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CADA PALAVRA, UMA TESE Marcelo Soriano Cada palavra é uma tese. Não. Na verdade, cada letra é uma tese. O traço, o simbolismo, a significação... Repensando... Cada letra em cada palavra gera um sem fim de teses. Uma tese (literalmente 'posição', do grego θέσις) é uma proposição intelectual, segundo Wikipédia, a enciclopédia livre. E não raro ignorarmos, em prol do afã imediato, a história, a origem, a cosmogonia, o universo daquela palavra específica que já existia - ou pré existia - muito antes de pesarmos nosso corpo sobre a superfície da Terra da Linguagem, do letramento, da alfabetização. Quantos lugares inóspitos, de difícil acesso, nos propõem as palavras?! Isso quando não nos acenam de 'não lugares' semi perfeitos, a partir de regiões inalcançáveis de nossa ilusão, de nossas inquietudes emocionais e intelectuais. Hoje, por exemplo, enquanto ser dominical que não refuta o extremismo do ócio imposto ao homem biológico e suscetível ao tédio que, também, sou... Nenhuma palavra me ocorre. Até porque a palavra "palavra" para mim é tão íntima e intimidadora quanto um espelho e quanto aquelas fotografias em momentos de esculhambação pessoal. E, também, porque a palavra "palavra" suscita outra para mim: Trabalho. E domingo, corriqueiramente falando, seria dia de descanso. Outro dia, se não me falha a memória, li que a palavra "criança" foi a escolhida por Manoel de Barros. E pensei, pensei, refleti... E não leio outra igual no mundo. E criança não é gente, é um composto entre passarinho e redemoinho, ou àquilo que as avós entendiam por anjos e que se confunde, entre a poeira corrida da estrada e o pé por pé na flor d'água das vertentes.

Cada palavra uma tese marcelo soriano - literatas

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CADA PALAVRA, UMA TESE

Marcelo Soriano

Cada palavra é uma tese. Não. Na verdade, cada letra é uma tese. O traço, o

simbolismo, a significação... Repensando... Cada letra em cada palavra gera um sem fim

de teses.

Uma tese (literalmente 'posição', do grego θέσις) é uma proposição intelectual,

segundo Wikipédia, a enciclopédia livre. E não raro ignorarmos, em prol do afã

imediato, a história, a origem, a cosmogonia, o universo daquela palavra específica que

já existia - ou pré existia - muito antes de pesarmos nosso corpo sobre a superfície da

Terra da Linguagem, do letramento, da alfabetização.

Quantos lugares inóspitos, de difícil acesso, nos propõem as palavras?! Isso quando

não nos acenam de 'não lugares' semi perfeitos, a partir de regiões inalcançáveis de

nossa ilusão, de nossas inquietudes emocionais e intelectuais.

Hoje, por exemplo, enquanto ser dominical que não refuta o extremismo do ócio

imposto ao homem biológico e suscetível ao tédio que, também, sou... Nenhuma

palavra me ocorre. Até porque a palavra "palavra" para mim é tão íntima e intimidadora

quanto um espelho e quanto aquelas fotografias em momentos de esculhambação

pessoal. E, também, porque a palavra "palavra" suscita outra para mim: Trabalho. E

domingo, corriqueiramente falando, seria dia de descanso.

Outro dia, se não me falha a memória, li que a palavra "criança" foi a escolhida por

Manoel de Barros. E pensei, pensei, refleti... E não leio outra igual no mundo. E criança

não é gente, é um composto entre passarinho e redemoinho, ou àquilo que as avós

entendiam por anjos e que se confunde, entre a poeira corrida da estrada e o pé por pé

na flor d'água das vertentes.

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A palavra das palavras, a mãe das crianças e das teses, para mim, Senhor Manoelito -

ser letral das próprias 'criaturezas' - seria Silêncio - a ausência total de barulho. Aquele

que nos embalsama com perfumes durante a hora dos sonhos; aquele que olha nos olhos

e não precisa dizer mais nada; o silêncio da pedra que confabula com o vento...

Bom, a tese (não concluo, nem defino) seria o oposto da poesia, mas ambas

perambulam de mãos dadas pelo fio da meada que se perde e se encontra de modo

descomportado pelos confins dos cadernos rabiscados das crianças que, em silêncio,

aprendem desmedidamente a ler e a desenhar o mundo muito antes de aprenderem os

vieses caligráficos de um redigir sistemático com excesso de palavras expelidas ao

deus-dará, em plena tarde quente, que configuram este maçante, porém, perseverante

monólogo sobre as palavras dominical. _

(Escrito para a Revista Literatas - Maputo, MZ, 2012)