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C C A A D D E E R R N N O O D D E E E E D D U U C C A A Ç Ç Ã Ã O O P P A A T T R R I I M MO O N N I I A A L L M Me e m mó ó r r i i a a s s U U r r b b a a n n a a s s d d e e I I g g u u a a p p e e S S P P

Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

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A presente publicação é um dos produtos do Projeto Memórias Urbanas – Iguape/Vale do Ribeira, realizado por um grupo de docentes e alunos do Departamento de Geografia e do Laboratório de Geografia Urbana (Labur) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), em parceria com a Prefeitura Municipal de Iguape e com a Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira, durante o ano de 2011. O projeto teve como principais objetivos: envolver a comunidade local na valorização das memórias e do patrimônio cultural; registrar e documentar a memória urbana para dar visibilidade e socializar conhecimentos populares; fortalecer o vínculo das comunidades com o seu patrimônio cultural, fomentando o reconhecimento de sua importância e incentivando, assim, a participação social na sua proteção.

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Page 1: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CCCAAADDDEEERRRNNNOOO DDDEEE EEEDDDUUUCCCAAAÇÇÇÃÃÃOOO PPPAAATTTRRRIIIMMMOOONNNIIIAAALLL

MMMeeemmmóóórrriiiaaasss UUUrrrbbbaaannnaaasss dddeee IIIggguuuaaapppeee ––– SSSPPP

Page 2: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

Foto da capa: Simone Scifoni

Page 3: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

“A própria cidade, entre a floresta e o rio, comprime-se à volta da grande igreja do Bom

Jesus.”

(Diário de Viagem de Albert Camus)

Page 4: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

PREFEITURA MUNICIPAL DE IGUAPE

Prefeito Municipal

Joaquim Antonio Coutinho Ribeiro

Diretor de Cultura

Josimar Paranhos Rio Branco

Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira

Myrian Teresa Veiga Fortes

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor

João Grandino Rodas

Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária

Maria Arminda do Nascimento Arruda

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Sérgio França Adorno de Abreu

Departamento de Geografia

André Roberto Martin

Laboratório de Geografia Urbana

Anselmo Alfredo

EQUIPE TÉCNICA

Simone Scifoni, Professora do Depto de Geografia/FFLCH/USP/Labur

Danilo Celso Pereira, Geógrafo, FFLCH/USP

Talita dos Santos Barbosa, Geógrafa, FFLCH/USP

Projeto Gráfico

Danilo Celso Pereira

Page 5: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

Simone Scifoni

(org)

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

Memórias Urbanas de Iguape – SP

Iguape

2011

Page 6: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CCAANNTTIIGGAA PPAARRAA UUMMAA PPRRIINNCCEESSAA

DDee oonnddee vveemm tteeuu eennccaannttoo,, ddee oonnddee vveemm ttuuaa bbeelleezzaa

TTeeuuss bbeeccooss ttuuaass eessqquuiinnaass,, vveeiioo ddoo tteemmppoo ddoo oouurroo ee ddaa llaavvoouurraa ddee aarrrroozz

AAiinnddaa ttee vveejjoo pprriinncceessaa,, ccoomm oo tteeuu aarr ddee nnoobbrreezzaa,, aass mmaarrccaass nnooss vveellhhooss tteellhhaaddooss

TTuuaass aallttaass ccaallççaaddaass,, aa ssoommbbrraa ddooss tteeuuss bbeeiirraaiiss

CCeenntteennáárriiaass iiggrreejjaass,, eerraa uumm tteemmppoo ddee ooppuullêênncciiaa,, qquuee jjáá ffiiccoouu nnoo ppaassssaaddoo

OOss tteeuuss vveellhhooss ssoobbrraaddooss,, ccaassaarrõõeess ccoolloonniiaaiiss......

EErraa ddee ssee aaddmmiirraarr,, oo ssoobbrraaddoo ddooss TToolleeddooss,, aass rruuíínnaass ddoo IIttaagguuáá,, oo ccaassaarrããoo ddooss VVeeiiggaass

OO ssoobbrraaddoo ddaa PPiirráá......

OO ssoobbrraaddoo ddooss MMâânncciiooss,, oo bbeeccoo ddooss qquuaattrroo ccaannttooss,, TTeeuu rriiccoo ccaassaarriioo,,

CCaassaarrããoo ddooss OOlliivveeiirraass,, RRuuaa ddoo FFuunniill

TTeemm oo ssoobbrraaddoo ddooss FFoorrtteess,, VVeellhhoo pprrééddiioo ddoo CCoorrrreeiioo,,

PPaallaacceettee EEuurriiccoo MMoouuttiinnhhoo,, oonnddee gguuaarrddaa tteeuuss mmiissttéérriiooss,,

OOnnddee eessccoonnddee tteeuu ppeelloouurriinnhhoo..

AAnnttoonniioo ddee LLaarraa MMeennddeess

Foto: Danilo Pereira

Page 7: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

Dedicamos este trabalho a todos os iguapenses, em particular a todos que contribuíram para a realização deste projeto, em especial aos familiares do Silvio Fernando Rodrigues, o Silvio do Despraiado (in memoriam).

Page 8: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP

Page 9: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

Sumário

11

13

14

23

24

35

45

47 64 81 95

107

108 113 116 119

121

122

Introdução 1. A Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira 1.1 O Iphan e a Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira/SP: experiências Carina Mendes dos S. Melo 2. Reflexões: cidade, patrimônio cultural e educação 2.1. Educação para o exercício da cidadania Simone Scifoni 2.2. Iguape, arquiteturas em processo e construção da proteção federal, Flávia Brito do Nascimento 3. Memórias Urbanas de Iguape: Rodas de Memórias 3.1. Cultura Caiçara 3.2. Quilombos do Ribeira 3.3. Histórias de Pedra e Cal 3.4. Águas de Iguape 4. Práticas em Educação Patrimonial 4.1. Trabalho com textos 4.2. Valorização dos conhecimentos tradicionais 4.3. Explorar e conhecer o patrimônio edificado 4.4. Linha do tempo: memória e história oficial Sobre os autores Referencias bibliográficas

Page 10: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

“Algumas centenas de casas, mas de estilo

único, baixas, caiadas, multicoloridas. [...]

Iguape tem ares de estampa colonial.”

(Diário de Viagem, de Albert Camus)

Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP

Page 11: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

INTRODUÇÃO | 11

INTRODUÇÃO

A presente publicação é um dos produtos do Projeto Memórias Urbanas –

Iguape/Vale do Ribeira, realizado por um grupo de docentes e alunos do

Departamento de Geografia e do Laboratório de Geografia Urbana (Labur) da

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

(FFLCH/USP)1, em parceria com a Prefeitura Municipal de Iguape e com a Casa

do Patrimônio do Vale do Ribeira, durante o ano de 2011.

O projeto teve como principais objetivos: envolver a comunidade local na

valorização das memórias e do patrimônio cultural; registrar e documentar a

memória urbana para dar visibilidade e socializar conhecimentos populares;

fortalecer o vínculo das comunidades com o seu patrimônio cultural, fomentando

o reconhecimento de sua importância e incentivando, assim, a participação social

na sua proteção.

Entendemos a Educação Patrimonial para além da simples divulgação do

patrimônio: não se trata apenas de difundir conhecimentos ou de reproduzir

informações a um número maior de pessoas. Trata-se, antes de tudo, de

construir uma nova relação das comunidades e o seu patrimônio,

possibilitando a apropriação social de conhecimentos do qual ele é suporte. Mas

essa construção só pode ser feita quando se considera e se incorpora as

necessidades e expectativas das comunidades envolvidas.

Assim sendo, a valorização da memória coletiva foi o ponto de partida neste

projeto, compreendendo que na essência dos objetos materiais, das arquiteturas e

do urbanismo, há moradores e suas vivências, um cotidiano que dá vida e

dinamismo a esse patrimônio. Neste sentido, o projeto envolveu a realização de

quatro “Rodas de Memória”, que foram momentos de encontro nos quais

pudemos ouvir e registrar as falas e relatos das vivências dos moradores, os

“causos” e as histórias iguapenses.

O resultado é a publicação deste volume voltado à formação de educadores que

atuam no município de Iguape. Ele se encontra organizado em quatro partes:

inicialmente é apresentado um relato sobre algumas experiências e reflexões

sobre a atuação do Iphan/SP na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira; na

segunda parte temos artigos que buscam introduzir e problematizar as questões

relativas à própria Educação Patrimonial e as ações relativas ao processo de

tombamento do Centro Histórico de Iguape; na terceira parte encontram-se os

1 O projeto contou com apoio do Fundo de Fomento às Iniciativas de Cultura e Extensão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo.

Page 12: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

12 | INTRODUÇÃO

registros das quatro Rodas de Memória, organizados sob a forma de temáticas de

discussão; e na última parte incorporamos algumas sugestões de práticas

educativas para que os professores possam se inspirar criando, assim, suas

próprias atividades em sala de aula. A expectativa é de contribuir para a formação

em Educação, pela via da memória e do patrimônio cultural.

“De todas as necessidades da alma humana não há outra mais

vital que o passado”. Simone Weil

Simone Scifoni

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O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS

CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 13

A Casa do Patrimônio do

VALE DO RIBEIRA

Foto: Leônidas Damasceno / Acervo da Casa do

Patrimônio do Vale do Ribeira

Page 14: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP

14 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO

O Iphan e a Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira/SP:

experiências

Carina Mendes dos Santos Melo

Este breve artigo busca relatar

algumas experiências e reflexões

sobre a atuação do Iphan/SP na Casa

do Patrimônio do Vale do Ribeira,

onde são desenvolvidas atividades

práticas no campo da educação

patrimonial, não tendo a pretensão

de apontar metodologias em

educação, conceitos e linhas

pedagógicas ou estratégias para

gestão das Casas.

De forma geral, a linha condutora

para atuação do Iphan tem sido a

busca pela participação social,

promovendo o envolvimento da

população local, não apenas para o

esclarecimento de questões

referentes ao patrimônio cultural,

mas também, para a construção de

uma relação compactuada, dialógica,

de duas vias, onde entendemos como

indispensável para as ações de

salvaguarda considerar os valores

individuais e coletivos atribuídos por

aqueles que vivenciam os objetos e

manifestações patrimoniais. São os

olhares, as formas de sentir, os

valores afetivos e simbólicos que se

tem buscado respeitar nesta relação

que vem se estabelecendo, tendo

como espaço de interlocução a Casa

do Patrimônio.

CONTEXTUALIZAÇÃO

O projeto das Casas do Patrimônio

foi concebido nacionalmente pelo

Iphan como uma proposta de

transformar as sedes e

representações do órgão, nos

estados, em pólos de referência local

e regional, para qualificar e atender a

população residente em uma

perspectiva de diálogo e reflexão.

Tratava-se ainda de uma estratégia

para reverter a visão negativa da

população em relação à instituição

que possuía prolongada atuação em

determinados locais.

Em Iguape, a proposta foi conduzida

de forma pioneira dentro do Iphan,

pois a Casa do Patrimônio foi

estruturada antes mesmo da

proteção federal, durante os

trabalhos de identificação do

patrimônio cultural desenvolvidos na

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O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS

CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 15

região sul do estado. Sob a temática

da paisagem cultural, a partir de

2007, a equipe técnica da

Superintendência do Iphan em São

Paulo, iniciou os trabalhos num

amplo projeto de identificação

denominado “Paisagem Cultural do

Vale do Ribeira”. Naquele momento

foram realizadas as primeiras

aproximações com representantes

dos diversos municípios ao longo do

Vale, e que resultaram em ricos e

densos estudos, desenvolvidos com a

participação e anuência da

população, e formalizados nos

seguintes documentos: Dossiê da

Paisagem Cultural do Vale do

Ribeira; Dossiê para Registro do

Tooro Nagashi; Dossiê de

tombamento do Centro Histórico de

Iguape e Dossiê da Imigração

Japonesa, todos finalizados, tendo os

dois últimos resultado em

tombamento.

O tombamento de Iguape acontece

em dezembro de 2009, em

reconhecimento aos seus valores

históricos e paisagísticos. A proteção

federal engloba seu núcleo histórico,

o Morro da Espia e o Canal do Valo

Grande, elementos materiais

testemunhos de sua história. Em

suma, representam aspectos da

cidade no período de exploração do

ouro nos séculos XVII e XVIII,

passando pelo faustoso ciclo do arroz

entre o final do século XVIII e a

primeira metade do século XIX, pelo

crescimento e apogeu da indústria

naval, até o período de ostracismo, a

partir de meados do século XX,

ocasionado pelos desdobramentos

ecológicos decorrentes da abertura

do Canal do Valo Grande no século

anterior que inviabilizou o

funcionamento do seu porto

marítimo.

A implantação da Casa do

Patrimônio foi viabilizada, devido,

principalmente, a uma parceria com

a Prefeitura Municipal que enxergou

no projeto uma oportunidade de

potencializar as ações locais,

aproximando a população aos temas

preservação, patrimônio,

tombamento, etc. A formalização da

iniciativa foi feita por meio de um

Termo de Cooperação Técnica

celebrado entre o Iphan e a

Prefeitura de Iguape para

implementação da Casa, cujo

objetivo principal consistia em

conformar um espaço de

interlocução com a comunidade

local, visando propiciar o debate e a

participação social na gestão,

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP

16 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO

proteção e valorização do patrimônio

cultural. No documento, compete ao

Iphan-SP, a organização e gestão das

atividades educativas, além de

orientação técnica e apoio na

execução de ações de iniciativa da

Prefeitura; e à Prefeitura, a

administração e gestão da Casa de

Patrimônio, podendo também

desenvolver atividades e eventos em

seu espaço, de comum acordo com o

Iphan-SP.

AÇÕES DO IPHAN NA CASA

Inaugurada em maio de 2009, as

primeiras ações desenvolvidas na

Casa do Patrimônio foram voltadas

principalmente para sua estruturação

e consolidação como espaço cujo

elemento principal, o eixo condutor

das atividades, é o patrimônio

cultural, colocando em evidência sua

vocação e suas possibilidades de

atuação nos municípios do Vale e,

especialmente, em Iguape. Assim, foi

montada biblioteca especializada em

temas relacionados ao patrimônio

cultural, visando transformar a Casa

num centro de referência regional

dentro do Vale do Ribeira para a

pesquisa e a reflexão sobre a

temática; foi inaugurada exposição

sobre a atuação do Iphan no Vale do

Ribeira, com o intuito de socializar o

conhecimento produzido por meio

das ações de identificação na região;

foram realizadas oficinas voltadas

para formação e capacitação como

uma oficina de maquetes - visando

capacitar estudantes e educadores

com relação a essa técnica de

representação espacial; e oficina de

biblioteca – visando transmitir

critérios e orientações básicas na

formação e gestão de bibliotecas.

O tombamento de Iguape acontece

em dezembro de 2009. As ações do

Foto da Oficina de Maquete, em 2009. Alunos durante os trabalhos da Oficina e uma das maquetes finalizada. Fonte: Sentidos Urbanos

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O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS

CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 17

Iphan na Casa do Patrimônio nos

anos seguintes concentram-se

basicamente na divulgação e

construção da informação e das

diretrizes necessárias para gestão e

valorização do sítio tombado. A Casa

desenvolve importante papel como

canal de aproximação com a

população, torna-se o local

referencial do Iphan na cidade, e

agrega em suas ações a função de

atendimento ao público para

esclarecimentos e orientações

técnicas necessárias diante das

questões decorrentes da proteção

legal do patrimônio material da

cidade. Alguns dos projetos que vem

sendo realizados:

Iphan Conversa

Com o intuito de abordar diversos

temas relacionados ao patrimônio

cultural, os primeiros esforços de

aproximação com a população no

momento pós-tombamento foram

feitos por meio de encontros

realizados na Casa do Patrimônio,

denominados “Iphan Conversa”.

Cabe ressaltar que este título foi

utilizado primeiramente para

denominar uma série de encontros

técnicos realizados na própria

Superintendência do Iphan São

Paulo para discutir a temática do

patrimônio cultural especialmente

entre órgãos preservacionistas.

A denominação nos pareceu profícua

e potencialmente adequada aos

encontros que se pretendia realizar

em Iguape, uma vez que o termo

“conversa” remete à ideia do

“diálogo”. Assim, conceitualmente, o

que se tem buscado nestes encontros

não é simplesmente a transmissão de

informação, de caráter unilateral,

mas a construção dela, a partir de um

formato aberto, onde além de

esclarecimentos e orientações são

possíveis intervenções, sugestões e

críticas. Em 2010, dentre outros,

foram realizados encontros sobre o

tombamento de Iguape; sobre

colocação de letreiros e toldos no

centro histórico; sobre patrimônio

imaterial; e encontros com

profissionais da construção civil.

Exemplificando, o formato se

mostrou muito adequado para o trato

de questões como a normatização

para letreiros e toldos em Iguape. A

partir de um primeiro estudo

elaborado por técnicos da instituição,

com a participação e anuência da

Prefeitura e do órgão de preservação

estadual (UPPH/Condephaat), a

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP

18 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO

proposta foi apresentada em dois

encontros “IPHAN Conversa” abertos

à comunidade, onde foram colocadas

as inadequações da proposta, tendo

sido esta ajustada de acordo com as

necessidades dos comerciantes.

Sentidos Urbanos: Patrimônio e

Cidadania

Durante o I Seminário de Avaliação e

Planejamento das Casas do

Patrimônio, realizado entre 27 de

novembro e 01 de dezembro de

2009, em Nova Olinda/CE, tomamos

conhecimento do Programa Sentidos

Urbanos: Patrimônio e Cidadania,

projeto condutor das ações

educativas da Casa do Patrimônio de

Ouro Preto/MG. Segundo o

coordenador pedagógico do projeto,

Prof. Juca Villaschi do Departamento

de Turismo da Universidade Federal

de Outro Preto – UFOP:

[...] a concepção deste programa se caracteriza por desconstruir práticas cotidianas de deslocamentos urbanos automatizados e de provocar novos olhares, ‘sentires’ e ‘fazeres’, com leituras diferenciadas dos feitos passados, do tempo presente e das situações futuras, potencializando a construção de novos comportamentos cidadãos. (SENTIDOS, 2010, p.30)

O programa é pautado na

metodologia de roteiros

interpretativos do patrimônio e visa

provocar, antes de tudo, “a

desconstrução da prática cotidiana e

dos deslocamentos automatizados

pela cidade e requalifica[r] o olhar

anestesiado do morador, na

qualidade de sujeito dialógico”

(idem, ibidem, p. 17)

Enxergou-se no projeto um grande

potencial para trabalhar a

sensibilização para a normatização

do centro histórico tombado de

Iguape. Assim, por meio da Rede

Casas do Patrimônio, foi possível

realizar um intercâmbio de

experiências com a Casa do

Patrimônio de Ouro Preto/MG para

capacitação de monitores locais para

aplicação da metodologia de roteiros

sensoriais interpretativos localmente.

Já foram realizadas oficinas de

capacitação, ministradas pelo

professor Juca Villaschi da

Universidade Federal de Ouro Preto -

UFOP - e pela historiadora Simone

Fernandes do Escritório Técnico do

Iphan em Ouro Preto / Casa do

Patrimônio de Ouro Preto, em dois

módulos, de 08 a 10 de novembro e

de 06 a 08 de dezembro de 2010.

Falta ainda o último módulo de

capacitação para então disponibilizá-

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O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS

CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 19

lo para a população; a previsão é que

a formação dos monitores termine

ainda neste ano de 2011.

Os roteiros sensoriais formulados

nas oficinas têm como eixo

estruturador a sensibilização para a

questão da regulamentação para

intervenções no sítio tombado, busca

evidenciar os valores que foram

considerados no momento do

tombamento, ao mesmo tempo em

que busca coletar que outros valores

revelados por esta

vivência/experiência individual

devem ser também considerados e

preservados no sítio histórico. Estes

dados são levantados especialmente

nas oficinas de síntese e socialização

das impressões que são realizadas ao

final de cada roteiro.

Em síntese, a proposta consiste em

adotar o programa como projeto de

educação patrimonial suporte para as

ações normativas a serem

empreendidas pelo Iphan/SP. Um

recurso para sensibilização dos

moradores no tocante à necessidade

“de atitudes de valorização e co-

responsabilidade pela proteção do

patrimônio cultural e natural” (idem,

ibidem, p.21) da cidade.

Projeto Cores para Iguape

Em 2011 torna-se premente a

necessidade de consolidação de

diretrizes e normas para o centro

histórico de Iguape, por meio de

ações mais diretas e efetivas para

construção de manuais, documentos

e projetos, visando especialmente à

valorização da área tombada. Desta

necessidade propôs-se o projeto

“Cores para Iguape”, que parte de

uma negociação com os moradores

da cidade para regulamentação dos

serviços de pintura no seu centro

histórico.

Assim, a partir de uma parceria com

a Prefeitura Municipal, o Projeto

Oficina Escola de Artes e Ofícios

(POEAO) e a empresa de restauro

Estúdio Sarasá, a oficina foi realizada

em dois módulos. Em maio

aconteceu o primeiro módulo onde se

discutiu tipos de tintas, cores e

padrões de pinturas adotados

tradicionalmente no centro histórico,

além de terem sido realizados testes

de pintura à base de cal, com a

finalidade de subsidiar o primeiro

estudo para regulamentação para

pintura das fachadas.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP

20 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO

O segundo módulo da oficina, no

final de junho, contou com nova

apresentação do documento sobre

pinturas, juntamente com a proposta

para regulamentação de letreiros e

toldos, que já havia sido apresentado

à população em outubro de 2010,

num “Iphan Conversa”. Neste

módulo foi elaborada uma paleta de

cores no muro dos fundos da Casa do

Patrimônio com o objetivo de servir

como referência para os moradores

que queiram pintar seus imóveis

situados em área tombada e seu

entorno, respeitando e valorizando a

cidade, sua história, seu patrimônio e

os materiais tradicionais de Iguape.

Cabe ressaltar que o projeto não

propunha resgatar padrões de

pintura do passado para serem

reproduzidos no presente. O objetivo

baseava-se na ideia de que a partir do

conhecimento técnico e da análise e

avaliação dos recursos, combinações,

contrastes e tonalidades utilizados

em épocas passadas, se pudesse

construir diretrizes para o presente e

futuro do sítio tombado, pautado na

conservação e valorização da

arquitetura histórica e nos anseios da

população residente.

Parcerias

O estabelecimento de parcerias

esteve presente desde o momento

inicial de criação da Casa do

Patrimônio do Vale do Ribeira, e

caracteriza-se como fator que

viabiliza e potencializa suas ações

educativas. Dentre os parceiros

temos: Prefeitura Municipal de

Iguape; Governo do Estado de São

Paulo, por meio da Secretaria de

Estado da Cultura: UPPM (Unidade

de Proteção do Patrimônio

Museológico) e UPPH (Unidade de

Proteção do Patrimônio

Histórico/CONDEPHAAT); ABAÇAÍ

Cultura e Arte; Ponto de Cultura

“Cultura esse é o ponto”; Ponto de

Cultura "Jovens da Juréia"; AAPCI –

Associação de Artesãos e Produtores

Caseiros de Iguape; Programa de

Promoção do Artesanato de Tradição

Cultural/Promoart; Associação de

Amigos do Museu de Folclore Edison

Carneiro Acamufec/Centro Nacional

de Folclore e Cultura Popular/Iphan;

Museu Vivo do Fandango; Estúdio

Sarasá; POEAO – Projeto Oficina

Escola de Artes e Ofícios; Curso de

Geografia da Universidade de São

Paulo/USP; ETEC/Iguape (Centro

Paula Souza - Curso de Turismo);

Page 21: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS

CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 21

Casa do Patrimônio de Ouro Preto;

Museu da Pessoa.

Perspectivas e Desafios

O I Seminário de Avaliação e

Planejamento das Casas do

Patrimônio realizado no final de

2009 foi um momento emblemático

de avaliação das primeiras Casas, e

de reflexão para o estabelecimento de

diretrizes comuns para sua

constituição e formulação de

atividades. Conceitualmente,

A Casa do Patrimônio tem por

objetivo constituir-se como um

espaço de interlocução com a

comunidade local, de articulação

institucional e de promoção de ações

educativas, visando fomentar e

favorecer a construção do

conhecimento e a participação social

para o aperfeiçoamento da gestão,

proteção, salvaguarda, valorização e

usufruto do patrimônio cultural.

(CARTA, 2010)

A Casa do Patrimônio de Iguape teve

participação neste Seminário;

naquele momento, haviam sido

realizadas ações estruturantes, sua

inauguração, as primeiras oficinas e

uma exposição temática sobre os

trabalhos realizados pelo Iphan na

região. As reflexões estimuladas

durante o encontro, sobre a educação

patrimonial e o papel do Iphan neste

processo, reposicionaram a Casa do

Patrimônio de Iguape como parte de

uma rede nacional de Casas do

Patrimônio. Este fato apontava a

possibilidade da troca de

informações e experiências, um

caminho capaz de fortalecê-la

enquanto seu papel como pólo

referencial regional em ações

educativas pautadas na temática do

patrimônio cultural. Após o

encontro, passou-se denominar como

Casa do Patrimônio do Vale do

Ribeira; contudo, a consolidação de

sua atuação regional, trata-se de um

desafio a ser ainda transposto:

Ficou ainda o entendimento da

necessária formação de uma rede

partindo da Casa, através do

estabelecimento de parcerias

locais/regionais. Esta rede vem se

formando gradativamente, o que tem

possibilitado a implementação de

uma diversidade de ações educativas.

Nesta ótica, a gestão do espaço segue

compartilhada. Em geral, os projetos

que tratam de patrimônio cultural,

formas de registro, apropriação,

valorização etc. são sempre bem-

Page 22: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP

22 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO

vindos e encontram a Casa de portas

abertas.

Para o Iphan, a Casa do Patrimônio

efetiva-se principalmente como

espaço de interlocução com a

comunidade local, uma das missões

previstas na Carta de Nova Olinda,

aberta ao debate e à participação

social para gestão do patrimônio

cultural, conforme previsto no Termo

de Cooperação Técnica. Tem sido

estratégica nesta aproximação entre

a instituição e a população,

desmistificando o trabalho de

proteção do acervo patrimonial

regional e compartilhando

responsabilidades.

Entendemos que a proteção

patrimonial deve ser uma tarefa

coletiva e deve, antes de tudo, ser

compreendida, (re)construída e

compartilhada, para que não se

configure apenas como uma visão

técnica institucional. O

reconhecimento de que a

participação social deve ser uma das

premissas de todos os trabalhos de

identificação, gestão, proteção e

valorização do patrimônio cultural

tem sido patente dentro do Iphan.

Os desafios são muitos, mas as

perspectivas são promissoras. A

equipe da Casa do Patrimônio do

Vale do Ribeira encontra-se num

momento de avaliação de sua

atuação até o momento com o intuito

de desenhar suas próximas

diretrizes.

Referências Bibliográficas:

SENTIDOS URBANOS: Patrimônio e Cidadania. IPHAN, FAOP, UFOP: Ouro Preto, 2010.

CARTA DE NOVA OLINDA. Documento final do I Seminário de Avaliação e Planejamento das Casas do Patrimônio. IPHAN: Nova Olinda/CE, 2010. Disponível em: http://educacaopatrimonial.files.wordpress.com/2010/08/cartaa5_09marco2010.pdf

Sites acessados:

Blog da Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira: http://casadopatrimoniovaledoribeira.wordpress.com/, acesso em 14 de agosto de 2011.

Blog de Educação Patrimonial: http://educacaopatrimonial.wordpress.com/, acesso em 14 de agosto de 2011.

Page 23: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA

SIMONE SCIFONI | 23

REFLEXÕES:

cidade, patrimônio cultural e educação

Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP

Page 24: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

24 | SIMONE SCIFONI

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA

CIDADANIA

Simone Scifoni

Introdução

Vinte anos se passaram desde que a

Constituição Federal inaugurou uma

noção renovada de patrimônio

cultural, imprimindo novos

postulados, os quais já se

encontravam presentes tanto no

debate sobre o tema como em

algumas práticas institucionais.

Com a definição estabelecida no

artigo 216 da Constituição superou-

se a noção de patrimônio

exclusivamente centrada nos “fatos

memoráveis” da história oficial

nacional, tal qual estava estabelecido

bem antes no Decreto Lei Federal

no 25, de 1937, permitindo assim a

compreensão da memória nacional

para além daquela postura

eminentemente celebrativa. Ao

mesmo tempo isso possibilitou

ampliar a visão tradicional do

patrimônio desvinculando o valor

cultural do caráter necessariamente

excepcional ou monumental dos

bens. A partir da Constituição

Federal o valor cultural deve ser

atribuído àqueles bens portadores de

referência à ação, memória e

identidade dos diversos grupos

sociais que compõe a nação e, com

isso, possibilita-se reconhecer o

patrimônio como memória plural.

Outros avanços na noção

estabelecida constitucionalmente

foram: a inclusão dos bens

intangíveis como uma nova

categoria de patrimônio a ser

Artigo 216 da Constituição

Federal:

Constituem patrimônio cultural

brasileiro os bens de natureza

material e imaterial, tomados

individualmente ou em conjunto,

portadores de referência à

identidade, ação, à memória

dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira.

Decreto-lei Federal no 25/1937:

Art. 1o: Constitui patrimônio

histórico e artístico nacional o

conjunto de bens móveis e imóveis

existentes no país e cuja conservação

seja de interesse público, quer por

sua vinculação a fatos

memoráveis da história do Brasil,

quer por seu excepcional valor

arqueológico ou etnográfico,

bibliográfico ou artístico.

Bens intangíveis:

São aqueles de natureza imaterial

tais como os saberes (conhecimentos

e modos de fazer), as formas de

expressão (manifestações artísticas),

as celebrações (rituais e festas).

Fonte: Decreto federal 3.551/2000.

Page 25: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA

SIMONE SCIFONI | 25

protegida e reconhecida e o

entendimento do patrimônio natural

como parte da natureza incorporada

à memória social e parte da vida

humana.

Estes postulados propostos desde

então têm implicado em novos

desafios para os órgãos públicos,

uma árdua tarefa de pensar e

estabelecer outras formas de atuação

para proteger o patrimônio cultural,

já que as metodologias e práticas que

foram utilizadas por décadas atrás,

nem sempre conseguem dar

respostas às novas necessidades.

Dentre essas questões que se

colocam na atualidade está a

necessidade de construir uma nova

relação da população com o seu

patrimônio. Isso porque no Brasil,

nem sempre a população se identifica

com o patrimônio cultural tombado,

resultado de um histórico

distanciamento entre os órgãos de

preservação e a sociedade.

Essa distância histórica, justificada

pelos contextos políticos de criação

dos órgãos de preservação

federal e estadual paulista não se

reverteu plenamente hoje e disso

resulta a fraca participação social em

todo o processo. Ausência de

participação social vai desde a eleição

dos bens patrimoniais, ou seja, do

que deve ou não ser tombado,

passando também pela definição de

usos para esses bens, principalmente

no caso de patrimônios públicos, e

culmina em projetos de restauração

que nem sempre levam em conta a

relação afetiva entre as comunidades

e o seu patrimônio e, portanto, os

valores sociais envolvidos em uma

tarefa que não é meramente técnica e

nem implica somente em critérios de

autenticidade. Como resultado, via

de regra, aparecem conflitos, tensões

e freqüentemente uma imagem

negativa do patrimônio e dos órgãos

de preservação.

Iphan, Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, órgão

vinculado ao Ministério da Cultura e

criado em 1937. Está presente nos

estados da federação, por meio de

suas superintendências estaduais e

escritórios técnicos.

Condephaat, Conselho de Defesa

do Patrimônio Histórico,

Arqueológico, Artístico e Turístico do

Estado de São Paulo, órgão

vinculado à Secretaria de Estado da

Cultura e pela Lei 10.247 de 1968.

Teve sua estrutura modificada pelo

decreto 50.941/2006. O processo de

tombamento é regulamentado pelo

Decreto 13.426/1979.

Conselho de Defesa do

Patrimônio Histórico e Cultural

de Iguape, criado pela Lei 1.927 de

2007 e tem sua sede na Casa de

Patrimônio do Vale do Ribeira.

Page 26: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

26 | SIMONE SCIFONI

Neste contexto, a Educação

Patrimonial, dentre as diversas

formas de aproximação entre os

órgãos de preservação do patrimônio

e a sociedade, tem sido vista como

fundamental e com papel estratégico.

No entanto, esse papel muitas vezes

tem se restringido na atuação ora

como difusão de informações, ora

como marketing institucional.

Tradicionalmente a Educação

Patrimonial tem sido entendida

como atividade de divulgação e de

transmissão de informações após a

realização dos tombamentos, dentro

da idéia redentora de levar

conhecimento ao outro, conforme

discutem Silveira & Bezerra (2007).

Ou então tem sido tratada como peça

de publicidade oficial, por meio de

folhetos, cartazes e outros materiais

de divulgação elaborados sem

preocupação didática qualquer.

Mas há outra possibilidade, aquela

de trabalhar a Educação Patrimonial

em sua dimensão política ampla, a

partir da concepção de que tanto a

memória como o esquecimento são

produtos sociais e não dados

aleatórios, segundo apresenta Chauí

(2006). À história oficial celebrativa

dos dominantes se contrapõe a

memória social, constituída

localmente no seio de grupos sociais

não hegemônicos. Propiciar

mecanismos de valorização destas

memórias é parte essencial do que a

autora chamou de cultura política.

Afinal, é preciso questionar, o que

vem a ser a Educação Patrimonial,

quais são seus propósitos e seus

princípios?

O papel e o lugar da Educação

Patrimonial

Pode-se afirmar que a gênese do que

chamamos hoje de Educação

Patrimonial se deu no interior dos

museus. Chagas (2006, p.5) nos

lembra que apesar de ainda não estar

prevista esta expressão, as práticas

da educação patrimonial já ocorriam

nos museus brasileiros desde o

século XIX, conforme constatamos

na seguinte citação:

No senso comum a expressão

“educação patrimonial” significa

apenas o desenvolvimento de práticas

educativas (mais ou menos

transformadoras) tendo por base

determinados bens ou manifestações

considerados como patrimônio

cultural. Esse não é um entendimento

estranho a Paulo Freire, Darcy

Ribeiro, Gilberto Freyre, Gustavo

Barroso, Anísio Teixeira, Roquete

Pinto, Liana Rubi O’Campo, Sigrid

Porto, Waldisa Russio e tantos outros.

De igual modo, este entendimento,

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EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA

SIMONE SCIFONI | 27

ainda que não lançasse mão da

expressão em debate, estava

presente em práticas

museológicas do século XIX e no

serviço educativo do Museu

Nacional, formalmente criado

em 1926. (grifo nosso)

A expressão surge no Brasil muito

recentemente, quando em 1983 é

apresentada em um seminário

realizado no Museu Imperial de

Petrópolis, no Rio de Janeiro, como

tradução do termo Heritage

Education e baseada na experiência

que até então era desenvolvida na

Inglaterra. A partir da edição do

Guia Básico de Educação

Patrimonial publicado pelo Iphan

na década de 1990, o termo ganha

força e se consolida.

Ao longo do tempo as atividades

foram ultrapassando os muros dos

museus, se expandiram e

multiplicaram em projetos nos

órgãos de proteção da memória,

cultura e patrimônio, nas instituições

de ensino e organizações civis,

generalizando e consagrando a

Educação Patrimonial como um novo

campo de atuação. No entanto,

enquanto as práticas se ampliaram, o

mesmo não ocorreu com a

fundamentação teórica e a reflexão

crítica sobre estas ações, o que coloca

atualmente o desafio da necessidade

do debate e da construção coletiva

desta fundamentação.

A ausência de uma base teórica

consistente nesse novo campo de

atuação chamado de Educação

Patrimonial tem permitido que se

generalizem ações de caráter

meramente informativo, o que

representa uma limitação desse

campo. O cerne da problemática está

no fato de que tais ações não

transformam a realidade sobre a qual

elas pretender agir, pois não foram

pensadas para isso. No entanto, elas

se somam e alimentam um

crescimento quantitativo do campo

de atuação - já que nunca se falou

tanto em Educação Patrimonial como

hoje -, porém sem necessariamente

significar, qualitativamente, um

processo de transformação.

Acreditamos que o debate teórico

deve se posicionar, inicialmente,

sobre o papel e o lugar a ser ocupado

pela Educação Patrimonial,

Guia Básico de Educação

Patrimonial é uma publicação do

Iphan e tem como autoras Maria

Lourdes Parreiras Horta, Evelina

Grunberg e Adriane Queiroz

Monteiro.

Page 28: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

28 | SIMONE SCIFONI

problematizando questões sobre as

quais é urgente refletir. As atividades

educativas continuarão a ser

relegadas à etapa final do processo de

identificação, estudo e proteção do

patrimônio cultural, como

meramente divulgação dos bens

tombados ou como forma de

resolução de conflitos gerados pela

ausência de participação social no

processo? Continuarão a serem

tratadas como apêndice,

desvinculado do planejamento das

ações de estudo? Que papel elas

devem cumprir, devem ser

entendidas como atividades em si

mesmas ou elas se integram a um

projeto de transformação da

realidade e do mundo que vivemos?

Planejar uma atividade de Educação

Patrimonial implica em ter claro,

antes de tudo, as respostas para estas

questões.

O desafio hoje da Educação

Patrimonial é torná-la um

componente essencial de todo o

processo de identificação do

patrimônio, o que significa

incorporá-la como atividade pari

passu e integrada às pesquisas de

tombamento e/ou de inventário do

patrimônio imaterial, fomentando,

desde muito cedo, uma relação

próxima e dialógica com as

comunidades do lugar em que se vai

atuar. Neste caso ela se revela como

uma possibilidade de participação

social na construção de um

patrimônio compartilhado,

considerando as necessidades e as

expectativas das comunidades

envolvidas.

Este é o lugar e o papel que lhe cabe.

Neste sentido, a Educação

Patrimonial reconhece a existência

de um saber local, considera e

valoriza o olhar e a vivência dos

moradores, sinalizando-se, assim,

para uma concepção de educação de

caráter dialógico, conforme propôs

Freire (2011), na qual se busca a

consciência crítica, aquela que insere

as pessoas como sujeitos no

mundo, uma educação libertadora.

O papel da Educação Patrimonial

deve ser o de superar aquela visão de

uma “educação para o patrimônio”,

como se esta se restringisse apenas à

compreensão das questões do

patrimônio. Para uma educação

patrimonial libertadora, o

patrimônio e a cultura são elementos

de mediação, através dos quais as

pessoas podem se reconhecer como

Page 29: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA

SIMONE SCIFONI | 29

sujeitos da realidade e do mundo.

Reconhecem-se a partir da

valorização de sua cultura e de uma

postura problematizadora em relação

à história, à memória oficial e ao

patrimônio.

Por meio do patrimônio e da cultura,

mas apenas sob um olhar

problematizador e sob uma

perspectiva dialógica, como propôs

Paulo Freire, é possível contribuir

para a tomada de consciência

dos homens como sujeitos da

sua própria história. Este sim

deve ser o objetivo maior da

Educação Patrimonial. Não significa

de forma alguma, dentro da

concepção freireana, tomada de

consciência em relação à cultura,

como se esta estivesse fora da

realidade objetiva considerada ou

como se tratasse de levar cultura aos

lugares destituídos desta. É

compreender a cultura como

mediação, ou seja, como meio que

contribuirá para a consciência dos

homens sobre o seu papel de sujeito,

consciência de si mesmo e de sua

ação.

Pressupostos para a Educação

Patrimonial

Na tentativa de iniciar um debate

teórico que possa fundamentar mais

coerentemente as ações e as práticas

propomos dois pressupostos

essenciais para uma Educação

Patrimonial de caráter dialógico e

libertador.

Em primeiro lugar, é preciso

desmistificar e desfetichizar o

patrimônio, o que significa explicitar

que os patrimônios não são objetos

dados, cabendo ao poder público

apenas a tarefa de reconhecer neles

valores intrínsecos. Valores são

atribuídos, resultado de escolhas que

são feitas. Como nos lembra Meneses

(1996), os valores culturais não são

espontâneos, eles decorrem da ação

social, eles são produzidos no jogo

concreto das relações sociais. Valores

são historicamente constituídos, o

que significa seu caráter relativo ao

tempo, as condições em que a

sociedade opera naquele momento.

Isso significa que um patrimônio

reconhecido não tem valor em si

mesmo, ele possui propriedades

estéticas, físicas para as quais são

atribuídos valores, em determinado

momento e contexto histórico.

Page 30: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

30 | SIMONE SCIFONI

Disto resulta o caráter político e,

portanto, conflituoso do universo

cultural.

Declaram-se valores e propõem-se

sentidos que podem entrar em conflito

com outros valores e sentidos. O

campo cultural, portanto, imbrica-se

no do poder. Assim, o conflito deve ser

considerado não apenas como

ingrediente normal da cultura, mas

ainda como instância geradora, força

motriz. Como conseqüência,

pretender que a cultura tenha funções

anestésicas, de harmonização e

integração social, já é uma forma

cultural de agir (segundo interesses

hegemônicos), mas desfigura o

fenômeno se pretender eliminar de

seu horizonte especificamente o

conflito, a desarmonia, a

segmentação. (MENESES, 1996, p.

92)

Assim sendo, o patrimônio não é

neutro, por meio dele são

explicitadas determinadas

hegemonias e legitimados

determinados pontos de vista

perante a sociedade. Para Chagas

(2002), na prática, não há como

separar memória e preservação do

exercício do poder. Pergunta-se:

quem são os responsáveis pelas

escolhas que se faz do que deve ou

não ser preservado? Como essas

escolhas são feitas e em nome de

quais memórias? Pode haver critério

absolutamente objetivo em um

universo onde essas escolhas são

parte do aparelho onde está sediado

o exercício do poder? Estas questões

devem fazer parte da Educação

Patrimonial, do contrário somente

contribuiremos para a fetichização

do patrimônio e para que este se

torne um instrumento de reprodução

das relações de dominação e de

desigualdade social.

Seguindo um modelo internacional

de proteção do patrimônio,

fundamentalmente francês e

europeu, a escolha histórica dos

nossos órgãos de preservação deu-se

pela representação da memória a

partir de tudo que é monumental e

excepcional, simulando uma

sociedade nacional cujos símbolos

são a grandiosidade e o prestígio. Ao

mesmo tempo apagam-se os conflitos

e as desigualdades que marcaram os

processos históricos, como quando se

preserva unicamente as sedes da

fazenda, mas, em contrapartida

deixa-se desaparecer as senzalas e as

casas de colonos.

Ainda, segundo este mesmo autor, a

desigualdade do patrimônio aparece

também na hierarquia de valores

atribuída, uma hierarquia dos

capitais culturais na qual vale mais a

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EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA

SIMONE SCIFONI | 31

arte, a cultura escrita e as formas

eruditas do que o artesanato, a

cultura oral e as formas populares,

respectivamente. “O patrimônio

cultural serve, assim, como recurso

para produzir as diferenças entre os

grupos sociais e a hegemonia que

gozam de acesso preferencial à

produção e distribuição dos bens”

(CANCLINI, 1996, p.97).

Neste modelo de patrimônio cultural,

como é possível que operários e

camponeses, por exemplo, possam se

enxergar neste conjunto da memória

nacional? Marins (2008), ao analisar

as políticas públicas federais em São

Paulo, é incisivo ao afirmar que as

escolhas feitas excluíram grande

parte das “multifacetadas heranças

culturais”. Ainda, segundo o autor a

“[...] memória unívoca de uma ‘nação

brasileira’ não acolhia, nem poderia

acolher, a imensa maioria dos

brasileiros”(op.cit, p.146).

Os estudos que vem sendo

desenvolvidos pelo Iphan, desde

2007, para a identificação e proteção

do patrimônio cultural na região do

Vale do Ribeira procuraram

enfrentar esse desafio. Criar um

mapa do patrimônio mais plural e

representativo da diversidade

paulista, ampliando o estoque

patrimonial e sua diversificação

tipológica e promovendo um olhar

voltado para o interior do estado,

contemplando outros territórios e

novas temáticas.

Reconhecer de vez o caráter desigual

do patrimônio cultural é condição

essencial para uma Educação

Patrimonial libertadora e que busca a

transformação da realidade.

Reconhecer que a desigualdade

começa na eleição e sacralização do

patrimônio e que é preciso uma

participação mais igualitária na sua

construção, conforme discute

Canclini (1994). E assim, ao garantir

uma participação social efetiva na

construção das políticas de proteção

da memória e do patrimônio, criar a

condição para que a população possa

se identificar e se enxergar no

patrimônio e na memória oficial. É

fundamental, para tanto, considerar

no processo de valoração do

patrimônio cultural, além dos valores

estéticos e formais, os laços afetivos,

sociais, simbólicos.

Tem-se aqui o segundo pressuposto

essencial para a Educação

Patrimonial libertadora e dialógica,

ou seja, a necessidade de uma

Page 32: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

32 | SIMONE SCIFONI

postura problematizadora frente a

este patrimônio cultural e, portanto,

à própria realidade objetiva. Isso

significa superar aquelas ações que

apresentam apenas um caráter

meramente informativo e

conteúdista, enquadrando-se dentro

do que Freire (2011) chamou de

“concepção bancária”. Nesta o ato é

de depositar, de transferir conteúdos

não se propondo ao desvendamento

do mundo. As pessoas, nesta

perspectiva educacional são o

público, objeto sobre o qual devemos

agir.

Ao contrário, segundo o autor, a

educação problematizadora é um

esforço permanente no qual os

homens, sujeitos do processo, vão se

percebendo criticamente no mundo,

no qual pensam a si próprios e sua

condição frente à realidade. “Desta

forma, aprofundando a tomada de

consciência da situação, os homens

se ‘apropriam’ dela como realidade

histórica, por isto mesmo, capaz de

ser transformada por eles”. (FREIRE,

2011, p.104).

Uma Educação Patrimonial

problematizadora não significa, de

forma alguma, desconsiderar o

conjunto de bens já constituído, jogar

tudo fora, mas enxergar esse nosso

legado a partir de uma perspectiva

mais crítica. Considerar o patrimônio

no contexto dos processos sociais, em

seu cotidiano contraditório que

revela riqueza mas, ao mesmo tempo,

limitações e indigência humana. Um

patrimônio que pode ter sua leitura

feita a partir da produção de riqueza

material, da técnica, do comércio e

das mercadorias, mas que não deve

esconder as relações de trabalho,

desigualdade, sujeição e opressão.

Tal qual propõe Benjamim (2010,

p.225), reconhecendo que nunca

houve um documento de cultura que

não fosse também um documento de

barbárie. “E assim como a cultura

não é isenta de barbárie, não é,

tampouco, o processo de transmissão

da cultura. Por isso, na medida do

possível, o materialista histórico se

desvia dela. Considera sua tarefa

escovar a história a contrapelo.”

A expressão “escovar a história a

contrapelo” sugere para a Educação

Patrimonial a necessidade de

problematização da memória oficial,

superação da visão celebrativa e

acrítica dos patrimônios, aquela que

não vê conflitos e opressão, mas

somente heróis. A história a

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EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA

SIMONE SCIFONI | 33

contrapelo é recusar identificar-se

com o opressor, é a busca por novos

olhares, sob ponto de vista

radicalmente oposto, iluminando no

processo o ponto de vista dos

oprimidos, dos esquecidos.

Valorizando o trabalho vivo e o

trabalhador como o verdadeiro

criador de riquezas, como sujeitos da

cultura; dá-se, assim, um novo

sentido a esse mesmo patrimônio.

No Vale do Ribeira “escovar a

história a contrapelo” pode significar

olhar para o patrimônio e enxergar

por detrás dos casarões de pedra e

cal, o trabalho de tantos escravos

negros e sua condição de opressão e

exploração. O êxito da exploração do

ouro, durante o período colonial,

somente foi possível a partir da

instituição da força de trabalho

escrava que abastecia os garimpos. A

população escrava de origem africana

chegou até mesmo a superar a de

homens livres, mostrando o papel

que estes trabalhadores tiveram na

criação de riquezas materiais, da

arquitetura, da cidade histórica que

hoje se identifica como de valor. Mas

o quanto estudamos sob esta

perspectiva na escola? Quando

enfatizamos a arquitetura de pedra e

cal tombada, é lembrado destes

trabalhadores, de suas condições

reais e objetivas de trabalho e vida? É

feita uma reflexão sobre as relações

de trabalho escravo e a criação dessa

riqueza material, expressa nas

edificações?

O mesmo pode-se dizer de outros

sujeitos dessa história pouco

referenciados. Escovar a história a

contrapelo é mostrar, conforme

discute Diegues (2004), que a

história caiçara ainda está por ser

escrita, dada a ausência de

documentação escrita sobre estas

comunidades, ao contrário das

grandes famílias e seus engenhos e

fazendas. Segundo este autor, o

caiçara, entendido como fruto da

mistura do elemento indígena, do

colonizador português e do escravo

africano, teve um papel importante

na manutenção da economia

mercantil, produzindo gêneros de

primeira necessidade para abastecer

o mercado local, tais como a farinha

de mandioca, o pescado e a lenha.

A perspectiva de uma Educação

libertadora e emancipatória pede que

se ilumine e valorize a história destes

sujeitos. Trabalhar com Educação

Patrimonial em Iguape e no Vale do

Ribeira é tratar destes sujeitos da

Page 34: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

34 | SIMONE SCIFONI

história, tanto quanto se trata das

construções do centro histórico,

reconhecendo, assim, o seu conteúdo

social.

Referencias Bibliográficas:

BENJAMIM, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura

e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2010.

CANCLINI, N. G. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional.

Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília: Instituto

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 23, 1994. p.95-115.

CHAGAS, M. Educação, museu e patrimônio: tensão, devoração e adjetivação.

Dossiê Educação Patrimonial nº3, Iphan, jan/fev. 2006.

CHAUI, M. Cidadania cultural. O direito à cultura. São Paulo: Editora

Fundação Perseu Abramo, 2006.

FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação. São Paulo:

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FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

HORTA, M. L. P.; GRUMBERG, E.; MONTEIRO, A. Q. Guia Básico de

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Nacional, Museu Imperial, 1999

MARINS, P. C. G.. Trajetórias da preservação do patrimônio cultural paulista. In:

SETUBAL, M. A. (coord). Terra paulista: trajetórias contemporâneas. São

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MENESES, U.B.T. Os usos culturais da cultura. Contribuição para uma

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CARLOS, A.F.A.; CRUZ, R.C.A. (orgs) Turismo Espaço Paisagem e Cultura.

São Paulo: Hucitec, 1996.

SILVEIRA, F. L. A.; BEZERRA, M. Educação Patrimonial: perspectivas e dilemas.

In: LIMA FILHO, M.F.; ECKERT, C.; BELTRÃO, J.F. (orgs). Antropologia e

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Page 35: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL

FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 35

IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO

DA PROTEÇÃO FEDERAL

Flávia Brito do Nascimento

Em dezembro de 2009 o conselho

consultivo do Iphan aprovou o

tombamento do Centro Histórico de

Iguape, numa decisão que trouxe

novidades importantes para a

política de patrimônio no Estado de

São Paulo. A primeira proteção em

esfera federal de núcleo urbano no

estado, a inclusão do patrimônio

natural como parte integrante dos

bens edificados, a construção do

estudo feita de modo indissociável da

educação patrimonial e o

entendimento dos vestígios materiais

a partir dos processos históricos e de

sua sobreposição espacial foram de

decisões metodológicas do estudo

que se fundamentou nas muitas

transformações do patrimônio

cultural como campo disciplinar

postas desde a Constituição de 1988.

Por sucessivas vezes ao longo da

história da Superintendência

Regional do Iphan em São Paulo

Iguape foi objeto de interesse. Em

1942, Hermann Kruse foi

encarregado por Luiz Saia de viajar

ao município para realizar

“levantamento de plantas e

documentação fotográfica de

edifícios antigos (igrejas, casas de

residências, fortes antigos, etc),

pesquisas em sambaquis ou

quaisquer outros monumentos

naturais ou não que tenham interesse

artístico ou histórico”, conforme

escreveu em ofício ao prefeito de

Iguape em 9 de janeiro daquele ano.

No dia quatorze do mesmo mês

Kruse encaminha ao Diretor da então

6ª Região, relatório escrito à mão e à

lápis, informando:

Iguape é um colosso.(...) Aqui o lugar é mais interessante que Ubatuba (Itanhém não conheço). Tem uma infinidade de construções, cujas idades ninguém pode saber. Todas elas construções de pedra e cal. As igrejas não são grande coisa. (...) Acho que futuramente Iguape será um campo de atividade vossa, - a tal “casa de fundição de ouro”, precisa ser tombada e restaurada. (KRUSE, 1942)

Hermann Kruse foi um alemão,

naturalizado brasileiro, contratado

pelo IPHAN para expedições

etnográficas.

Luís Saia foi arquiteto e comandou o

IPHAN em São Paulo de 1938 até o

seu falecimento em 1975.

Lúcio Costa foi arquiteto, urbanista

e professor, nasceu em 1902 e faleceu

em 1998, entre seus principais legados

está o Plano Urbanístico de Brasília.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

36 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO

Em 1968 o senador Lino de Mattos

solicita o tombamento do núcleo

urbano de Iguape, e, no ano seguinte,

Lucio Costa escreve nota sobre o

assunto:

A farta documentação fotográfica do arquivo data de 1942 (Kruse) e 1950 (Germano), - convirá pois indagar do Saia se o estado de preservação ainda é o mesmo, porque nesse caso impõe-se providência acauteladora definitiva de cuidado – embora tardia -, seja pelo Conselho do P.A.A. e T. do Estado, ou mesmo pela própria DPHAN.(COSTA, 1968)

As prioridades e estratégias de

trabalho estabelecidas pela geração

fundadora do Iphan não levaram à

proteção federal de Iguape como

parte da política de construção

identitária nacional por meio do

patrimônio. As alegações para a sua

não-inclusão nos livros do tombo da

instituição foram desde ausência de

caráter de ancianidade e pouco valor

individual até a falta originalidade

das edificações e do tecido urbano

sucessivamente sobreposto pelos

processos históricos.

Em 1975 diversos bens imóveis do

Centro Histórico de Iguape foram

tombados pelo Condephaat

(Processo 00469/74, resolução

6/2/1975), e a proteção federal

acabou não ocorrendo. O

tombamento de núcleos urbanos pelo

Iphan, não somente no Estado de São

Paulo, vem recorrentemente sendo

retomado desde os anos 80. Tal

movimento gerou diversas proteções

de núcleos que na origem da

Instituição não foram arrolados

como sendo de interesse à

construção do nacional e de sua

materialidade. Este é o caso dos

núcleos de Antônio Prado (1990),

São Francisco do Sul (1987),

Pirenópolis (1990) e Icó (1998). Não

houve, contudo, em São Paulo

nenhum tombamento de centros

históricos, apenas o da Vila

Ferroviária de Paranapiacaba,

pertencente ao município de Santo

André.

Diversos são os esforços que veem

sendo realizados, desde os anos

2000, para a ampliação do estoque

patrimonial do Iphan em todo

território nacional e incluir quer

sejam bens isolados, quer sejam

centros históricos no escopo dos

tombamentos federais. Bens imóveis

que não se enquadravam em

determinados parâmetros ou

conceitos estabelecidos são

investidos de novos significados e

valores compatíveis com a proteção

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IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL

FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 37

federal. Tais esforços são, em grande

medida, corroborados pela iniciativa

das populações e dos poderes

públicos locais que zelosos de seu

passado e da materialidade ainda

existente em suas cidades,

demandam ações do Iphan.

O tombamento do centro histórico de

Iguape, da forma como foi realizado,

só foi possível diante de tais

processos. Ele foi gestado no âmbito

do projeto mais amplo sobre o Vale

do Ribeira, intitulado “Paisagem

Cultural: Inventário de

Conhecimento de Bens Culturais no

Vale do Ribeira”, iniciado em 2007 e

desenvolvido nas ações de inventário

do patrimônio cultural promovidas

nacionalmente pelo Depam -

Departamento do Patrimônio

Material e Fiscalização. Os objetivos

do inventário no Vale foram

reconhecer a diversidade cultural da

região, atribuir valor ao patrimônio

cultural, fomentar ações de

salvaguarda a partir da publicização

do conhecimento produzido, além de

promover o desenvolvimento social e

econômico por meio da promoção

das referências patrimoniais.

Sua primeira etapa identificou

expressões culturais em seis

municípios: Iguape, Cananéia,

Registro, Iporanga, Eldorado e Apiaí.

Como patrimônio urbano foram

estudados os núcleos históricos de

Iguape, Iporanga e Registro, núcleos

formados pelas atividades

econômicas da mineração no período

colonial, pela cultura do arroz no

século XIX ou do chá no século XX,

quer pela exploração ou cultivo, quer

pela comercialização. Ouro, arroz e

chá promoveram não só a formação

dos centros urbanos

comercializadores, mas também da

zona rural de tais municípios, cujas

expressões de cultura são, dentre

outras, vestígios de antigas

mineradoras, diversos quilombos que

deram origem a bairros rurais,

propriedades de imigrantes

japoneses e fábricas de chá,2 além de

portos fluviais e de caminhos

terrestres.

Como parte do processo de pesquisa

e levantamento de dados, foi

realizada viagem de campo em que

aconteceram diversas reuniões com

2 Como resultado do Inventário foi também elaborado o dossiê de tombamento de “Bens Culturais da Imigração Japonesa em Registro e Iguape”, visando à proteção de quatorze bens culturais, quase todos implantados em meio à área rural daqueles municípios. O tombamento foi aprovado pelo Conselho Consultivo do Iphan em junho de 2010.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

38 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO

dirigentes locais e membros da

sociedade civil a fim de incorporar as

demandas e também identificar os

bens culturais de interesse à

proteção. Tal atuação justificou-se

pela abordagem da Paisagem

Cultural, que significa a gestão de

um território e implica na

necessidade de constituição de

trabalho em rede, que possa articular

diferentes esferas do setor público e

organizações da sociedade civil,

fomentando, desta forma, ações

coordenadas de proteção e

valorização do patrimônio cultural.

Ao longo deste período de trabalho

buscou-se organizar a montagem de

uma rede a partir da identificação e

mapeamento dos agentes envolvidos

e o estabelecimento de contatos

iniciais viabilizados na execução dos

trabalhos de campo.

No município de Iguape foi expresso

o interesse, por parte da Prefeitura

Municipal, do tombamento do seu

centro histórico, pedido formalizado

em junho de 2008 pela prefeitura de

município Maria Elizabeth da Silva

ao diretor do Depam Dalmo Vieira

Filho, quando da realização do

Encontro de Trabalho Paisagem

Cultural no Vale do Ribeira:

Planejamento Estratégico. Tal evento

integrou-se à agenda do Revelando

Vale do Ribeira e foi realizado em

conjunto com a Secretaria de Estado

da Cultura, a Abaçaí Arte e Cultura e

a Prefeitura Municipal de Iguape,

que teve por objetivo congregar as

instituições, as municipalidades e a

sociedade civil para traçar estratégias

conjuntas de atuação quanto ao

patrimônio cultural do Vale do

Ribeira. Compareceram cerca de 25

instituições com atuação no Vale do

Ribeira que puderam debater sobre o

tema do patrimônio cultural,

expressando intenções e demandas.

O centro histórico de Iguape foi

entendido e estudado no âmbito dos

processos históricos formadores da

sua fisicidade, os quais remontam ao

período da exploração aurífera no

século XVI, às atividades ligadas à

A paisagem cultural, no âmbito do

Iphan, apresenta-se como um nova

categoria de patrimônio, pensada a

partir das experiências desenvolvidas

pela Unesco (1992) e das proposições

estabelecidas na Convenção Europeia

da Paisagem ( 2000).

O instrumento jurídico para o seu

reconhecimento e proteção dá-se com

a Chancela da Paisagem Cultural.

Segundo a Portaria 127 de 2009, do

Iphan, em seu artigo 1o: Paisagem

Cultural é uma porção peculiar do

território nacional, representativa do

processo de interação do homem com

o meio natural, à qual a vida e a

ciência humana imprimiram marcas

ou atribuíram valores.

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IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL

FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 39

construção naval, a partir de meados

do XVIII e à cultura de arroz no

século XIX. O acautelamento do sítio

procurou respeitar a passagem do

tempo nos espaços da cidade e

proteger as muitas expressões

impostas pelas variações econômicas,

sociais e culturais da cidade. Olhou-

se para os bens imóveis de Iguape

considerando como valor as

inúmeras sobreposições e rearranjos

espaciais constituídos ao longo de

muitas décadas. As representações

históricas de diversos momentos são

parte evidente de sua feição atual.

São para, além disso, parte dos

sentidos identitários, sociais e

históricos dos que as habitam, os

quais lhes asseguram, em algum

sentido, sua permanência tanto

física, quanto simbólica.

O litoral do Vale do Ribeira foi local

chave para a projeção de expedições

ao sertão, desde os primeiros tempos

da conquista ibérica. A união entre as

coroas portuguesa e espanhola entre

1580 e 1640 tornou o Tratado de

Tordesilhas não operativo no sul do

País. No litoral estão os municípios

de Cananéia e Iguape, construídos

em pedra e cal, dentre os primeiros

núcleos urbanos de São Paulo. Foram

erguidos segundo ordenamentos da

Coroa Portuguesa, para abrigar a

administração pública, ocupar o

território, e cumprir funções de

guarda do território. Voltadas para as

funções litorâneas, de caráter

eminentemente portuário, foram

também o contato com o interior por

meio do rio Ribeira de Iguape, que

transportava os produtos, ao mesmo

tempo em que forjava os modos de

ser e construir.

Iguape tem seu sítio urbano

composto por importantes casas e

sobrados de pedra e cal remontam ao

período da exploração aurífera no

século XVI, das atividades ligadas à

construção naval a partir de meados

do XVIII e da cultura de arroz no

século XIX. A Igreja do Bom Jesus de

Iguape, que atrai milhares de

romeiros de todo Brasil para a festa

do padroeiro, inaugurada em 1858, é

ponto focal no tecido construído.

Sobressaem também o Sobrado do

Toledo, relevante exemplar

neoclássico e as casas da Rua das

Neves, ou do chamado Funil, o mais

antigo conjunto arquitetônico da

cidade.

Page 40: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

40 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO

A arquitetura ainda existente em

Iguape e no Vale do Ribeira,

apropriada e sucessivamente

revestida de novos significados,

permite também compreender certa

dimensão dos processos sociais da

cultura, como os modos de morar. A

arquitetura é ser documento

histórico, que deve ser interpretado e

investido de significado, para fins de

pesquisa, valoração patrimonial,

construção identitária e apropriação

econômica. Para valorar as suas

expressões arquitetônicas e

compreender seu potencial é

necessário ter em conta o contexto e

os processos sociais que as

produziram e que seguem dotando-

as de sentido. No Vale do Ribeira

encontram-se técnicas e formas de

ocupação tanto do litoral, como

construções em pedra, e do planalto,

como construções com técnicas de

barro. Estas denotam a

complexidade e a singularidade do

patrimônio material do vale,

resultado da sua história, de seu

povoamento, das estratégias e

contingências econômicas, do

território e das sociabilidades.

O núcleo urbano de Iguape

caracteriza-se pela singularidade do

traçado urbano, com ruas levemente

sinuosas e entrecortadas por

pequenas ruas estreitas e com a

dominante Praça da Basílica, pela

impressionante riqueza dos marcos

naturais que a circundam e dela

fazem parte, e, finalmente, pela

composição de arquiteturas que lhe

conferem aspecto de conjunto, e, ao

mesmo tempo, são o testemunho dos

sucessivos processos históricos e

culturais dos seus muitos anos.

O visível tecido urbano da cidade se

relaciona à sua história e ao

momento de ocupação do território

brasileiro, em que a defesa era fator

central para escolha do sítio. O

primeiro núcleo urbano foi

implantado junto à barra do Rio

Ribeira de Iguape, em Icapara, que

logo se mostrou vulnerável, já que

junto ao mar aberto. O sítio onde se

desenvolveu a cidade é bastante

significativo do ponto de vista da

defesa e da possibilidade de

circulação. Iguape está

estrategicamente localizada junto a

Neoclássico aqui se refere à

arquitetura surgida durante o

neoclassicismo, movimento cultural

do fim do século XVIII, que utilizava

elementos clássicos que remontavam

a antiguidade grega e romana na

composição de novas edificações.

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IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL

FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 41

três marcos na paisagem da baixada

do rio de Ribeira: a oeste, o Morro do

Espia, elevação de grande destaque

toda a região majoritariamente

plana, no norte, a cerca de 2 km do

que hoje é o centro histórico, o rio

Ribeira de Iguape, grande eixo de

circulação de produtos como ouro e

arroz em toda a história da região e,

no sul, o braço de mar, chamado Mar

Pequeno. Este garantia fácil acesso

ao mar aberto, mas também, lhe dava

certa proteção, por ter a Ilha

Comprida à sua frente.

A implantação do sítio urbano de

Iguape tirou partido dos elementos

geográficos singulares da região,

tendo em vista os objetivos de

conquista e desbravamento dos

colonizadores. Diferentemente de

outras cidades coloniais que lhe são

contemporâneas, a cidade não foi

construída em alto de elevações, o

que lhe tornava mais vulnerável. Esta

é uma das explicações para o traçado

original do núcleo, fechado ao

exterior, voltado para si mesmo e

com aspecto de fortificação. Suas

ruas em forma de funil, com

pequenas aberturas para o exterior,

dispostas em semicírculo, como a

Rua XV de novembro, contribuíam

para o controle do núcleo urbano.

Mapa do centro histórico de Iguape. Fonte: IGC, 1943.

A função de controle conferiu a

Iguape tecido bastante singular. O

núcleo inicial, implantado em

terreno de topografia praticamente

plana, tem formato que se assemelha

a uma elipse de pontas alongadas,

onde estão os chamados funis. A Rua

XV de Novembro e a orla do Mar

Pequeno são os limites externos

deste formato que desaparece na Rua

Major Rabelo de desenho retilíneo.

As curvas suaves, as pequenas vielas,

o traçado não ordenado, com

pequenos largos e repleto esquinas,

garantem ao transeunte percursos

dinâmicos e ricos em visadas e

perspectivas. O contraste das

pequenas ruas com lotes estreitos é a

grande praça da Basílica do Bom

Jesus, cuja imponente construção

domina todo composição do

conjunto imediato e da cidade. A

praça de São Benedito, de formato

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

42 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO

retangular e tendo a igreja em uma

de suas extremidades, situa-se numa

das extremidades do centro

tradicional, para fora das ruas curvas

do funil. O chafariz ao centro praça

era parte do sistema de

abastecimento da cidade que se

iniciava onde está a Fonte do Senhor,

no sopé do Morro da Espia.

O núcleo central da cidade, composto

por cerca de 30 quadras,

conformadas por lotes de pequena

testada, podendo ser mais ou menos

profundos. Estes abrigam casas de

meia morada e de porta e janela,

ocupando majoritariamente as Ruas

XV de novembro, Rua das Neves ou

do Funil e Rua Tiradentes, com

trechos significativos de unidade e

continuidade visual.

Na Praça da Basílica e nas Ruas Nove

de Julho, e em alguns pontos da Rua

XV de Novembro, os lotes são

maiores, e tem sobrados de dois

pavimentos, casas de morada inteira

com telhados de quatro águas, e são

pontuadas por edificações de aspecto

eclético ou de início do século XX.

Exemplares arquitetônicos como o

Sobrado dos Toledo e o Hotel São

Paulo, com frontões triangulares e

envasaduras de caráter

neoclássico, informam sobre a

diversidade de expressões

arquitetônicas que se sobrepuseram

no tecido urbano inicial. Casas

térreas com fins comerciais (com

portas em toda fachada) são

encontradas na Praça da Basílica. Em

torno da Praça de Benedito, por

tratar-se de ocupação posterior ao

núcleo central em torno da Basílica

são encontrados terrenos de testada

maior, com casas implantadas na

lateral do lote com jardins também

laterais.

A Rua Major Rebello é o limite norte

do núcleo urbano antigo,

configurando-se como área de

transição, onde são encontradas

edificações maiores e de períodos

mais recentes, como a Escola

Testada refere-se à medida dos lotes

em relação ao arruamento.

Meia Morada são as edificações

térreas , cujo fachadas possuem uma

porta e uma janela e não apresentam

recuo em relação a rua.

Eclético aqui se refere ao estilo

arquitetônico do fim do século XIX que

exibe combinações de elementos da

arquitetura clássica, medieval,

renascentista, barroca e neoclássica.

Envasaduras são as aberturas das

paredes externas onde são colocadas as

janelas e portas de uma edificação

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IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL

FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 43

Estadual, cuja arquitetura está

inserida no contexto da construção

de escolas no período republicano.

Indo em direção ao Valo Grande,

seguindo pela rua à esquerda da

Basílica, a cidade terminava na Igreja

do Rosário, voltada para o lado

oposto da Basílica, onde

originalmente havia uma grande área

livre de edificações. Na rua à direita

da Basílica, acompanhando em

paralelo do Mar Pequeno, seguia a

Rua Tiradentes, onde se localizavam

casas mais simples e que leva ao

cemitério, afastado quatro quadras

da pequena praça situada junto à

fachada posterior da Basílica. Junto

ao cemitério, a antiga Fábrica

Matarazzo, voltada para o Valo

Grande, é a expressão do uso fabril e

portuário que predominou na orla da

passagem construída para ligar o rio

Ribeira e o mar.

Situada entre importantes marcos da

paisagem como o Morro da Espia, o

Canal do Valo Grande e o Mar

Pequeno, Iguape caracteriza-se por

guardar expressões arquitetônicas

que são testemunhos dos inúmeros

processos socais e econômicos por

que passou.

Na atribuição de valor à cidade com

vistas ao tombamento federal

buscamos estudar e valorá-la como

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

44 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO

patrimônio nacional no contexto das

cidades do território paulista

constituídas a partir de processos

históricos anteriores ao café, seja

exploração aurífera, seja rizicultura,

ou mesmo a própria ocupação do

território, o que no que se refere aos

valores memoriais, incorreu em

articular sentidos que vão para além

da materialidade. O que significa

dizer que, ao se pensar na lógica

construída expressa na atualidade

em Iguape, tivemos em conta as

sobreposições e rearranjos espaciais

constituídos ao longo de muitas

décadas, conformadoras do que se

encontra hoje naquelas cidades.

As representações históricas de

diversos momentos são parte

evidente de sua feição atual e, neste

estudo, buscou-se entender Iguape

no âmbito dos processos históricos

formadores da sua fisicidade. Estes

são parte dos sentidos identitários,

sociais e históricos dos que as

habitam, os quais lhes asseguram sua

permanência tanto física, quanto

simbólica.

Referencias Bibliográficas COSTA, Lúcio. Lucio Costa, registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1969. IPHAN. Dossiê de Tombamento de Iguape. São Paulo: Minc/IPHAN, 2009. SECRETARIA DE CULTURA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Resolução nº 06 de janeiro de 1975. Dispõe sobre o Tombamento de um conjunto de Imóveis no Centro de Iguape. Diário Oficial. São Paulo, São Paulo, 1975.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 45

Memórias Urbanas de Iguape:

RODAS DE MEMÓRIAS

Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

46 | RODAS DE MEMÓRIAS

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 47

CULTURA CAIÇARA

Em 20 de agosto de 2011 foi realizada na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira a

primeira Roda de Memória do Projeto Memórias Urbanas, cujo tema estava voltado à

necessidade de valorização da Cultura Caiçara. Os textos que estão expostos nesta

publicação são recortes dos registros de falas dos convidados, os quais foram organizados

na forma de temas em comum para facilitar a leitura e o trabalho com os estudantes nas

escolas. Procuramos manter o tom da fala dos entrevistados, fazendo apenas uma edição

dos textos visando retirar as repetições e tornar a leitura mais fluída3. Os registros

integrais das falas podem ser encontrados na biblioteca da Casa de Patrimônio do Vale

do Ribeira.

3 Foram adotados os critérios e orientação da textualização, ou seja, quando se transforma da forma oral para a escrita eliminando-se as perguntas, os erros gramaticais e reparadas as palavras sem peso semântico, conforme Meihy & Holanda (2010).

Convidados:

Lauro Evilásio de Andrade, nascido

no bairro do Rocio, em setembro de 1953.

Filho de Dona Maria de Lourdes Andrade

e do Seu Antonio Pereira de Andrade.

Glória do Prado Carneiro, a Glórinha,

nascida na Juréia, na época, Rio Verde,

em 1958. Tem quatro filhos e mora desde

os 19 anos na Barra do Ribeira.

Dauro M. do Prado, nascido em julho

de 1964, no Rio Verde, Juréia. È da União

dos Moradores da Juréia.

Pedro Sardinha do Prado, o

Pedrinho, nascido em 1992 em

Pariquera-Açu e morador da Barra do

Ribeira. Integrante da Diretoria da

Associação Jovens da Juréia (AJJ).

Silvio Fernando Rodrigues, nascido

em 1957 no bairro do Despraiado.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

48 | CULTURA CAIÇARA

1986 – Criação da Estação

Ecológica da Juréia-Itatins

(Decreto nº 24.646 de 20

de janeiro de 1986)

1987 – Criação da União

dos Moradores da Juréia

(UMJ)

1993 – Criação da

Associação dos Jovens da

Juréia (AJJ)

2006 – Criação do Mosaico

da Juréia-Itatins (Lei nº

12.406 de 12 de dezembro

de 2006)

2009 – Extinção do

mosaico e recategorização

como Estação Ecológica da

Juréia-Itatins

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 49

Infância no Bairro do Rocio:

“O bairro era bem pequeno, hoje é

um dos maiores bairros do Vale do

Ribeira. Estudei na primeira escola

do Rocio, que era de madeira, o Seu

Francisco Costa, mais conhecido

como Chico Banana. Eu brincava na

rua, como nós não tínhamos

condição os brinquedos eram latas de

leite, você enchia as latas de areia e

furava, e emendava uma na outra.

Festas só tinham do lado de cá. Tinha

só um fandango, que não é

salgadinho, é baile! Meu pai plantava

arroz, feijão, não tinha agrotóxico, e

comíamos mais peixe. Ele chegou a

plantar no lugar onde hoje é a igreja

católica, lugar perto da minha casa,

depois ele passou a arrendar terras lá

da Ilha Comprida. Meu pai era

pescador e agricultor. Na escola a

gente aprendia bastante coisas,

porém aqui, naquela época, você

definia quem era da cidade e quem

era da zona rural. Igreja era só pra

cá, depois que começou a chegar lá.

Naquela época as casas eram tudo de

madeira [...] na época tinha balsa,

mas a maioria atravessa de canoa,

para fazer compra, não existia água

lá. Tinha um chafariz do lado de cá,

vinha buscar num pote, banho, lavar

roupa, essas coisas era tudo no rio.

Água encanada não existia, tinha

fossa nas casas, rede de esgoto nem

pensar. O bairro era pequenininho. A

única coisa de importante que tinha

na época, a gente chamava de campo

de aviação, que é aeroporto, era da

Varig”. (Lauro)

Crescimento do Bairro do

Rocio:

“[...] foi a pesca da manjuba que

trouxe muita gente pra lá. O pessoal

deixava de plantar pra vir pescar,

principalmente de Cananéia. Hoje

não, se você for para as ruas lá do

fundo, tem muita gente do Norte e do

Nordeste do Brasil. A gente nem

conhece as pessoas que tem lá. Antes

era só compadre e comadre. Ainda

cheguei a pegar navios de pequeno

porte carregando lá no ponto da

frente de casa, carregando arroz, que

vinha lá de Registro. Eu tinha uns

Atualmente o bairro do Rocio é o mais

populoso de Iguape, está separado do

centro pelo Valo Grande. Neste bairro

vive uma comunidade bastante

diversa, com pessoas vindas de várias

localidades, porém, com o predomínio

de caiçaras. As principais atividades

econômicas do bairro são a pesca

esportiva e comercialização do

artesanato local, com destaque para a

confecção das panelas de Jairê.

(PEREIRA JUNIOR, 2005)

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

50 | CULTURA CAIÇARA

dez, doze anos. Da minha casa para o

rio hoje, dá mais ou menos uns

cinquenta ou sessenta metros”.

(Lauro)

Infância na Juréia:

“Andávamos tudo a pé, pela praia.

Éramos em 10 irmãos, todo mundo

nasceu lá mesmo, de parteira e criou-

se lá. Na época tinha muito morador,

umas 300 famílias. A gente nunca

veio em médico, nunca vinha à

cidade para nada, só meu pai que

vinha fazer compras. Brincava lá

mesmo, fazíamos os brinquedos

como Seu Lauro falou. Meus pais,

meus avós, eram todos de lá,

nascidos e criados lá. Tinha curador

que curava, nosso médico era o

curador, benzia, fazia remédio de

erva, ninguém ia ao médico.

Fazíamos muito mutirão para fazer a

roça e cada semana era um morador

que fazia. Fazia a roça e a tarde tinha

o fandango, era o baile. Todo sábado

tinha mutirão, até terminar a época

da roça. Tinha roça de mandioca e de

arroz. Meus avôs, meus tios, faziam a

viola, a rabeca.” (Glorinha)

“Eu nasci um pouco mais tarde que a

Glorinha, da mesma mãe. Em julho

de 64, no Rio Verde. Lá tem várias

comunidades, varias vizinhanças,

acho que doze comunidades. Rio das

Pedras, Cachoeira do Guilherme,

Praia do Una, Grajaúna, Rio Verde,

Praia da Juréia, Barra do Una, Rio

Comprido, Despraiado e Guapiú.

Morei lá até os 25 anos. Vim para

cidade com 18 anos porque precisava

me alistar, eu não conhecia luz

elétrica. Nessa época eu vim

conhecer a cidade, me alistei e voltei

para lá.” (Dauro)

Migração para a cidade:

“Depois que surgiu a estação

ecológica começamos a ser retirados

e viemos morar na Barra do Ribeira.

Meu pai e minha mãe ainda moram

lá, ele tem 82 anos e ela tem 73,

ainda sobem a Serra da Juréia para

vir para cá e voltam. A gente não

queria sair, mas fomos obrigados.

Fomos saindo aos poucos, alguns

foram para Peruíbe, outros para o

Guaraú e uns poucos para a Barra.

Nossa família veio para a Barra,

O bairro Barra do Ribeira está

localizado a 18 km do centro da

cidade, é o local onde o rio Ribeira

deságua no mar. Apesar de ser um

local muito apreciado por

veranistas, ainda mantém sua

característica de comunidade

caiçara. É também a porta de

entrada para a Estação Ecológica de

Juréia-Itatins (PEREIRA JÚNUOR,

2005).

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RODAS DE MEMÓRIAS | 51

alguns irmãos foram para Itanhaem”.

(Glorinha)

Cultura e modo de vida caiçara:

“Vivíamos da pesca e da agricultura,

como a Glorinha falou, do

extrativismo, como a maioria das

comunidades, seja ela quilombola,

caiçara, indígena, ele vive dos

recursos que tem ali: da terra e da

pesca se faz o seu próprio

instrumento de trabalho. Sempre vivi

nessas condições. Aconteciam vários

mutirões, para várias coisas, então o

que é um mutirão? É juntar um

monte de gente para construir uma

coisa coletivamente. Então você

constrói a roça em um dia, para

plantar dois sacos de semente de

arroz. E aquele cara daquela

comunidade combinava com o da

outra e da outra e da outra. Época de

fazer a roça todo mundo sabia que

era de julho a setembro, todo mundo

plantava, então sabiam que era hora

de acelerar o plantio”.

“Para fazer canoa, duas ou três

pessoas derrubam a arvore e faziam a

canoa, era feita de um pau só e

precisava de umas vinte pessoas para

puxar a canoa do mato. É chamado

de varação de canoa”.

“As comunidades quilombolas,

indígenas, caiçaras e outros

segmentos da sociedade civil, que

estão mais afastadas, na periferia da

cidade, são expulsas pela especulação

imobiliária, pelas grandes empresas

ou pelas unidades de conservação

integral, essas três coisas expulsaram

as comunidades dos seus territórios,

onde eles viviam coletivamente, cada

um fazendo sua agricultura onde

queria, buscando seus recursos onde

queriam, era completamente

Dauro, Silvio e Pedrinho.

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52 | CULTURA CAIÇARA

organizado. Outra forma de

organização [...] a gente tem uma

cultura diferenciada, um modo de

vida diferenciado, um modo de falar

diferenciado. Qualquer um que for

para casa do meu pai vai ser muito

bem tratado. Ele vai te dar comida, a

melhor coberta, por água quente

para lavar seus pés, o caiçara faz isso

para todo mundo. Meu pai vinha

fazer compra, ele pegava algumas

coisas como bolacha, coisas que não

estragavam e guardava, para quando

alguém chegar ele ter com que

alimentar essa pessoa. Esse é um

modo de vida da comunidade. Essa

relação harmoniosa tanto com a

natureza quanto com aqueles que

estavam ali. A gente não podia perder

isso e quando eu senti que estávamos

perdendo falei para nos

organizarmos na associação”.

(Dauro)

“A gente tem uma história que acho

que acontecesse com todo mundo

que aprende a tocar viola. Quando

faziam o fandango era muito raro

uma criança pegar em um

instrumento, não podia e ninguém

falava por que. Eu acho que era

porque é muito fácil estourar a corda,

desafina e é difícil de afinar...

Quando eu quis começar a aprender

era muito difícil porque não podia

pegar no instrumento. A gente ouve

história de tios, que o pai deixava a

viola encostada no canto da casa e ai

se o filho pegasse, levava uma surra

que nunca ia esquecer! Eles tinham

que roubar a viola do pai, aí iam para

a beira do rio aprender a tocar.

Também aprende muito de olhar, lá

no fandango, vendo como ele tocava,

como cantava as músicas, muitos das

gerações anteriores aprenderam

assim! Quando eu comecei tinha um

pouco disto também, meu tio não me

deixava pegar o instrumento. Os

instrumentos das apresentações

geralmente ficavam em casa e teve

uma época que ficamos uns três

meses sem fazer apresentação, aí eu

peguei a viola e comecei a mexer,

estourei corda, troquei. Meu tio me

viu mexendo, mas não falou nada,

não falou que ia me ensinar. Só

depois que eu aprendi a tocar é que

percebi como a vontade de aprender

é importante. Quando eu fui para o

baile é que percebi que estava

tocando errado. Teve uma festa lá na

Praia do Una, o primeiro fandango

que eu ia participar, ficava ali meio

no canto, meio de lado, mas ninguém

chamava pra participar. Aí lá na

comunidade do Prelado tinha

poucos violeiros e eu comecei a tocar.

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RODAS DE MEMÓRIAS | 53

O pessoal viu que eu sabia e começou

a chamar. Comecei a tocar de

maneira informal, tinha de 13 para 14

anos. No próximo baile já fui como

violeiro e meu primo Cleiton me

chamou, lá que eu senti o que era

tocar por duas horas, dor no dedo,

todo mundo te olhando, é

emocionante. Tive outro primo que

também aprendeu e a gente toca

junto, o Wellington. Depois que

toquei que meu tio começou a me

mostrar outras músicas, outros

ritmos. A gente foi acumulando

conhecimento e agora fazemos

oficinas, ensinamos as crianças.

Outro instrumento que eu quero

aprender a tocar e ainda não sei é a

rabeca. Estou tentando e não consigo

aprender porque quase não tem

rabequista. Isso também é por conta

de não deixarem a gente mexer nos

instrumentos, isso se perdeu um

pouco. Também porque não tem a

convivência de fazer o mutirão e o

fandango logo depois. Tem menos

baile. Tenho um primo que tem oito

anos e ele é fascinado por rabeca,

mas não tem ninguém que pode

ensinar para ele, meu tio só toca

viola. Por outro lado, tem alguns que

não ligam mais, porque vem funk,

axé, black, outras músicas e eles

preferem isso do fandango, acho que

é por vergonha da própria cultura.

(Pedrinho)

“O que a gente tem feito é carregar as

crianças para o galpão depois da aula

para dançar o fandango, se não

dançar, pelo menos fica ali vendo,

vivenciando. Porque se a gente não

fizer isso eles vão dançar funk

mesmo, eu não tenho nada contra o

funk, mas acho que cada um tem que

valorizar sua cultura, porque essa

diversidade cultural que é bonita no

povo brasileiro. Chamar os jovens

para participar, levar para a escola,

agora eles tem feito oficinas”.

(Dauro)

“E como a gente tem o momento de

trabalhar, de ir pra escola, de sair,

acho que a gente também tem que ter

o momento de ser caiçara, da cultura

caiçara, de sentar com um

instrumento, sentar com um tio, com

o avô e perguntar como era, o que

eles faziam, pedir pra contar uma

história. Porque não é para sempre

que os mais velhos vão estar ali para

passar essa carga pra gente”.

(Pedrinho)

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54 | CULTURA CAIÇARA

“Uma coisa legal que aconteceu sem

iniciativa de nenhuma organização

foi a volta da Reiada, tem uns 3 anos

já que ela acontece todo final de ano.

Eles passam de casa em casa, das

pessoas que aceitam e dão ofertas,

dão dinheiro e isso tá indo. Partiu da

própria comunidade, teve um

violeiro que aprendeu toda a música

da Reiada, nosso folião já está bem

velho, ele sabe muito, tem uma carga

muito grande sobre música, cultura

caiçara, mas ele já está bem velhinho

e não dá mais conta de vir mostrar.

Tem um moço mais novo que tá

levando tudo isso nas costas, porque

ele que faz e está incluindo gente da

comunidade e tá se expandindo. A

Associação de Jovens da Juréia (AJJ)

dá um apoio logístico, com

instrumentos, essas coisas, mas eles

fazem tudo sozinhos. Eles montaram

o próprio grupo de fandango, quando

a gente vai se apresentar e dá para

levar, eles vão junto. Já participaram

do Revelando São Paulo também.

Isso foi uma iniciativa que pra gente

serviu como incentivo e tá

avançando. Tem um menino que

canta lá que tem 7 anos”.

(Pedrinho)

“Acho que tá faltando incentivo da

cultura, do meu ponto de vista, vocês

ouviram ele falando de “Revelando

São Paulo”, eles só vêm para cá, só se

apresentam no “Revelando São

Paulo”, depois esquecem, deixam

eles sozinhos. Por parte da cultura eu

acho que tinha que ter mais

incentivos. Se vocês fazem o

fandango, vamos lá, vamos gravar.

Até por parte das escolas, na época

da minha Irma ela brincava de roda,

não existe mais isso. Acho que em

termos de cultura tem que se

resgatar tudo isso aí e falta incentivo.

Tem que colocar na mão dos

professores material para mostrar

isso para as crianças”. (Lauro)

A Estação Ecológica da Juréia:

“Na década de 1980, havia a

Nuclebrás, empresa que constrói

usinas nucleares, e o Brasil tinha um

convenio com a Alemanha para

Estação Ecológica é uma categoria de

unidade de conservação destinada à

preservação da natureza e a pesquisa

científica. Nelas são proibidas a

visitação pública, exceto com o

objetivo científico que depende de

autorização prévia do órgão

responsável pela administração da

unidade. A posse é de domínio

público, sendo que as áreas

particulares incluídas em seus limites

devem ser desapropriadas (Lei nº

9.985, de 18 de julho de 2000).

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RODAS DE MEMÓRIAS | 55

construir duas usinas atômicas aqui

na Juréia. Começou um movimento

para a construção da usina atômica.

Nesse tempo cresceu o movimento

ambientalista, dizendo que não

podiam construir uma usina atômica

ali, porque ia destruir todo esse

patrimônio. Vamos criar aqui um

santuário ecológico. Era uma ideia

legal, vamos deixar as comunidades

tradicionais aqui, vamos mandar

todos estes veranistas embora, as

casas deles vão ficar para vocês. Isso

era o que eles vendiam pra gente.

Não era qualquer um que ia lá, o

próprio Paulo Nogueira Neto, ele era

secretário na época do Franco

Montoro, Doutor José Pedro de

Oliveira Costa, o Zé Pedro, virou

Secretário de Meio Ambiente. Iam

tomar cafezinho com o meu pai: Zé

Pedro, Fabio Feldmann, Mario

Mantovani, João Paulo Capobianco

da S.O.S. Mata Atlântica, iam lá

dizer: ‘Não se preocupem, vai dar

tudo certo! Vocês são maravilhosos,

podem ficar tranquilos, se eles

quiserem expulsar vocês da terra nós

não vamos deixar. Vamos criar aqui

um santuário ecológico onde vocês

vão viver tranquilamente, as

comunidades tradicionais vão ficar

bem.’ Ficamos contentes, pensando

que ia ser muito legal. De repente,

em 1986, se cria a Lei de Estação

Ecológica, só que Estação Ecológica é

uma unidade de conservação de

proteção integral que não permite a

presença humana. Meu pai sempre

trabalhou com agricultura, fazendo

roça, que é uma agricultura

diferenciada, itinerante, você

constrói a roça sem agrotóxico, sem

nada, mas tem o momento de pousio

dessa roça, você constrói uma roça

aqui hoje, colhe todo o produto dela,

constrói uma outra aqui e vai

construindo ate voltar para aquela

primeira, onde a floresta já se

regenerou. O solo está fértil e você

começa de novo, uma agricultura

sustentável. O modo de vida dessas

comunidades no geral, é que

conserva esse meio ambiente. E essa

área exatamente da Juréia, como

outras do Vale do Ribeira está

preservada por quê? Por conta do

modo de vida dessa comunidade, de

como ela lida com esse ecossistema,

com a pesca, com a floresta”.

(Dauro)

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56 | CULTURA CAIÇARA

“Meu pai foi enganado. Falaram

para o meu pai trabalhar normal, ele

fez a roça e já veio uma multa.

Multado e meu pai não sabia de

nada, não sabia por que, foi aí que

acabou nossa vida lá. Começaram os

guardas a entrar nas casas,

destampar panela para ver o que o

pessoal estava comendo e pegar as

roupas das mulheres, vê o que tinha,

jogavam os colchões. Foi um inferno,

acabaram com tudo. Fomos

obrigados a sair, não podia plantar

mais, não podia matar nada para se

alimentar e foram acabando os

estoques. Tinham dias que a gente

fazia café com banana verde pros

filhos da gente comer porque não

tinha jeito. Como ia ficar num lugar

daqueles? Os guardas entravam nas

casas para ver se tinha caça, era um

inferno e fui obrigada a sair. A gente

vivia tão feliz, era um lugar tão bom.

E hoje, muito do pessoal que saiu de

lá, tão sofrendo nas beiras das

cidades e os filhos pegaram caminhos

errados. O que tinha lá era diferente,

a nossa cultura era outra. Foi se

perdendo a cultura, e viémos aqui

para a Barra, montaram a Associação

para gente não perder a cultura e

nossos filhos continuarem na mesma

cultura, nos meus afazeres. Assim

estamos até hoje, lutando para voltar

para lá. A gente quer voltar para as

nossas terras, enquanto meu pai e

minha mãe vivem, não sei se vai ser

possível, mas é nossa luta até hoje

[...] o pessoal foi saindo e foi

obrigado a fechar a escolinha que

tinha lá. Como o professor ia lá para

dar aula para duas crianças? Ele saiu.

E a escola foi acabando. Foi

acabando todo mundo, porque

também não tinha mutirão, ficou a

maioria das coisas abandonadas.

Porque as pessoas saíram sem nada,

sem direito a nada, só com a roupa

do corpo, porque era longe e nem

tinham como trazer as coisas”.

(Glorinha)

Glorinha e Lauro

Glorinha e Lauro

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RODAS DE MEMÓRIAS | 57

“A Lei de Estação Ecológica é para a

conservação da natureza, é o homem

fora da natureza, para preservar esse

meio ambiente para as futuras

gerações. É para olhar, não para

usufruir, olhar os bichinhos, os

macaquinhos, anta, capivara... E

como faz? Para mudar a lei você tem

que fazer um movimento! E foi aí que

eu comecei a entender!” (Dauro)

“Quando eu era criança, não sabia o

que era Estação Ecológica, o que era

polícia ambiental, nada disso. Para

viver na Juréia era simplesmente

entrar lá e pronto. Mas a gente

sempre ia e voltava da casa da minha

avó e meu pai falou que a gente não

podia morar lá. Ele já tinha morado

lá muito tempo e contava como era, o

que eles faziam, do que eles

brincavam. Eu já peguei essa parte de

tecnologia, controle remoto,

carrinho, não emprestava os

brinquedos para os outros. Mas eu

sempre tive contato com a questão da

Juréia... Se tinha reunião da AJJ a

gente estava lá, bagunçando, mas

estava. O pessoal estava discutindo, a

gente parava ouvia um pouco.

Sempre ouvíamos um pouco, mas

não entendíamos muito bem. Com o

passar do tempo, as coisas foram se

complicando cada vez mais, as

pessoas se mobilizando. Há uns seis

anos a gente começou a ver que o

negocio era sério, começamos a

participar das reuniões, discutir um

pouco, não sabíamos muito bem o

que era, mas já dávamos opiniões.

Em 2009, nós começamos a querer

estudar um pouco mais, trabalhar

um pouco mais com essa questão da

cultura, da legislação. Percebemos

que a coisa era muito grave para as

pessoas que vivem na Juréia, para

quem fazia mutirão, derrubava uma

roça. Graças a Deus a gente teve esse

conhecimento, de como derrubar

uma roça, de que madeira é boa para

fazer cada coisa, esse conhecimento a

gente conseguiu adquirir, apesar da

pouca vivência na mata. Mas a partir

daí a gente viu que precisávamos

fazer alguma coisa e começou a

participar. Em 2006, nós

conseguimos aprovar parcialmente o

Mosaico de Unidade de Conservação

da Juréia”. (Pedrinho)

“Hoje eu posso dizer que Despraiada

virou desprezada, eu tenho uma

professora que trabalhou lá, ela ainda

se lembra. Tenho certeza que se ela

for lá vai ficar triste, porque se antes

a gente achava que era difícil hoje tá

muito pior, tá um bagaço. Saiu muita

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58 | CULTURA CAIÇARA

gente de lá, os alunos não conseguem

mais ir à escola lá. Isso não é de hoje,

vem acontecendo há muito tempo.

Eu fico triste porque se você chegar

para um jovem que tá lá e perguntar,

eles não vão saber te responder nada

de lá, eles sabem o que eles

aprendem na escola, mas não sabem

nada da cultura do lugar. Se você

perguntar para eles: ‘tinha baile?’,

eles te dirão: ‘Não sei.’; e tinha baile!

Muita gente lá também fica triste

porque com essa coisas dos jovens

irem estudar longe, eles acabam

ficando sozinhos, perdendo os filhos,

porque eles saem de lá, vão

trabalhar, vão estudar[...] as crianças

sofrem com isso, porque estando no

lugar é mais fácil aprender. As

pessoas que moram lá, eles vivem de

uma maneira... Teve uma época que

uma professora foi para lá e ficou na

minha casa, ele disse que nós éramos

igual índios, não me surpreende,

porque a gente pesca, caça, tira

palmito, é cultura rural [...] essas

escolas estão tirando as pessoas do

meio do mato e levando para a

cidade, então isso vai esvaziando.

Que política é essa que nós estamos

fazendo? De esvaziamento dessas

comunidades? Será que é isso que a

gente quer? Não, não é isso que a

gente quer. Então vamos trabalhar

uma política educacional melhor,

vamos discutir uma proposta melhor.

Porque vocês já sabem do problema,

já sabem que estamos aqui

discutindo essa questão de trazer o

jovem para a cidade. Isso não ajuda,

vamos fazer com que o jovem

continue no seu território e vamos

levar condições para lá. Internet,

antena são coisas que não são

difíceis, fazer um convenio com o

governo federal. São investimentos

públicos que tem que ser feitos...

Agora se você dá condições de ele

ficar lá até o ensino médio, aí ele

quer fazer a faculdade dele, tem

direito de escolher, de sair. Mas ter

certeza de que quando ele tiver desse

tamanho aqui eles vão querer voltar,

porque o sitio é um lugar bom para

viver, não é um inferno. Porque esses

jovens vão embora e não querem

voltar? Por causa dessas condições de

estrada, da falta de emprego. O poder

Mosaico se constitui em um conjunto

de unidades de conservação de

categorias diferentes ou não, próximas,

justapostas ou sobrepostas, e outras

áreas protegidas públicas ou privadas.

A gestão do conjunto deverá ser feita de

forma integrada e participativa, de

forma a compatibilizar a presença da

biodiversidade, a valorização da

sociodiversidade e o desenvolvimento

sustentável no contexto regional (Lei nº

9.985, de 18 de julho de 2000).

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RODAS DE MEMÓRIAS | 59

público tem que investir mais, nós

estamos perdendo o local de

moradia. (Silvio)

“Espero um dia estar lá na casa do

meu avô sossegado, poder chamar

meus amigos para ir visitar a casa do

meu avô. Porque hoje ir à casa do

meu avô não é fácil, não posso levar

visita lá, nada que pareça com

turismo. Tem uma concessão para o

meu avô morar lá, aí eu posso ir

visitar, mas se ele não estiver lá no

futuro, a Juréia vai acabar para mim

e para a minha família. Quem sabe se

a lei mudar, todos nós possamos ir lá.

Fica aí a interrogação para o futuro”.

(Pedrinho)

A luta pela cultura e pela terra:

“Conseguimos juntar alguns dos

irmãos, só tem dois que moram em

Itanhaém e Peruíbe. Nós ficamos na

Barra, montamos a Associação e

estamos todos juntos, vamos sempre

à casa do meu pai, tem mutirão.

Fizemos uma roça de mandioca para

ele e sempre que vamos para lá

fazemos um mutirão. Nós juntamos

sempre para não perder a nossa

cultura. A gente trabalha com

artesanato, com os jovens, com a

caixeta, instrumentos musicais,

oficinas de dança de música, fazemos

fandango. As crianças vão crescendo

e pensando em outras coisas, não

sabem fazer uma roça, usar a palha, o

machado, não sabem como colhe o

arroz, como pilar o arroz, fazer o

cuscuz. Vai perdendo aquela coisa,

você solta um moleque desse no

mato, ele não vai sobrevive”.

(Glórinha)

“Foi aí que criamos a União dos

Moradores da Juréia (UMJ), da qual

eu sou presidente, em 1989. Mas a

luta começou em 1987. Começamos a

reunir todas as comunidades da

Juréia para lutar pelos direitos das

comunidades tradicionais. O objetivo

da UMJ é mudar a lei, criar uma

unidade de conservação de uso

sustentável para que as comunidades

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60 | CULTURA CAIÇARA

continuem com seu modo de vida.

Porque todas as comunidades ali

vivem nesse sistema. A gente travou

uma briga muito grande para ter esse

direito. Houve uma perseguição

muito grande da parte do Estado

contra o meu pai, porque eu era uma

liderança que estava organizando a

comunidade. Eles diziam para o meu

pai que em cobra eles pisavam na

cabeça. Meu pai me pedia para parar

com medo que eles me fizessem algo.

Eu pedia para eles lhes responder

que eu era um filho rebelde que não

ouvia seus conselhos. Ele foi

obrigado a falar isso mesmo. Mesmo

assim eles cortaram a energia. Existia

um sistema de gerador que

alimentava o sistema telefônico da

Nuclebras na Juréia. De vez em

quando eu usava esse telefone para

mobilizar a comunidade, para marcar

as reuniões, porque era o único que

tinha, eu esperava meu pai dormir e

ia lá ligar. Quando o Estado percebeu

foi lá e cortou o telefone. Eles

cortaram a energia elétrica que tinha

em casa e meu pai me pressionava,

tinha medo de perder o emprego. Eu

dizia a ele que se ele não perdesse o

emprego, nós perderíamos o

território. Eles estavam nos usando,

colocando um contra o outro. Fui

obrigado a sair de lá, porque a

pressão era muito forte, mas eu não

ia desistir da luta. Eles mandaram

meu pai lá para Peruíbe e minha mãe

ficou lá sozinha. Era época de eleição.

Eu fui até o Secretario de Meio

Ambiente, Edis Milaré, contar como

estava a situação da nossa família.

Ele me garantiu que ia mandar meu

pai para casa, mas que depois das

eleições não sabia o que ia acontecer,

nem se ele mesmo estaria ali, por

enquanto meu pai ficaria em casa

tranquilo, porque três meses antes e

três meses depois das eleições

ninguém podia ser demitido. Nesses

seis meses corri para aposentar o

meu pai, conseguimos depois de

algumas tentativas. Em seguida

entraram com uma ação de

reintegração de posse contra a casa

do meu pai. Pensei que não ia ganhar

do governo, mas o Bom Jesus de

Iguape sempre ajuda a gente.

Encontrei com um amigo que me

indicou uma advogada que era a

favor das comunidades. Consegui

falar com ela e fui até seu gabinete,

pois ela estava com o processo e ia

despachá-lo. Quando a encontrei, ela

me instruiu a fazer um abaixo-

assinado para reverter a situação.

Com o abaixo-assinado ela deu ao

meu pai uma concessão de direito

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RODAS DE MEMÓRIAS | 61

real de uso a titulo precário, por

enquanto ele tá lá seguro”. (Dauro)

“Criamos um projeto de lei e levamos

para o Secretário José Goldemberg,

que começou a pressionar o Instituto

Florestal para mudar a lei. O IF não

queria mexer na Juréia de modo

algum, mas com alguma pressão eles

mesmos criaram outro projeto de lei,

um projeto de transformar a estação

me um parque, mas parque também

não prevê a presença humana, só que

permite a visitação pública o que

traria dinheiro e investimentos. Nós

falamos que não, o que nós queremos

é que se criem unidades de

conservação de uso sustentável.

Criaram-se duas: uma na

Despraiada, outra na Barra do Una,

as demais comunidades estão fora

desse contexto. Em seguida o Fabio

Feldmann mandou entrarem com

uma ação de inconstitucionalidade

para derrubar essa lei, foi o que o

procurador geral fez. Entrou com

uma ação dizendo que a lei tinha

vício de iniciativa, significa que o

legislativo não pode onerar o

executivo. Derrubou a lei e é tudo

estação ecológica de novo. A gente

está na briga de novo”. (Dauro)

“A gente sente que tem um avanço

muito pequeno, mas tem. Em passos

curtos a gente tem conseguido

algumas coisas. Espero que em

poucos anos a gente possa caminhar

mais tranquilamente, porque a gente

tá cansado de vir aqui falar de tudo

isso. Ninguém olha pra isso como a

gente olha. Ninguém, eu falo dos

poderes em si. Ninguém sabe o que é

passar a noite com a polícia

ambiental na janela do seu quarto

para saber o que você está fazendo

ali, abrindo a porta do seu armário

para ver o que tem guardado ali,

olhando o fumeiro do fogo para ver

se você não tem nenhuma caça. A

gente está vivendo o que já viveu

alguns anos atrás, um regime militar.

Porque a gente não pode fazer nada,

nosso regime é não poder caçar, não

poder praticar a cultura que a gente

tem [...] a lei do mosaico caiu em

2009, e a gente se sentiu mais

motivado a participar da questão

política. Esse ano nós entramos na

diretoria da Associação, somos novos

ainda nisso, mas estamos

trabalhando para que esse projeto de

lei seja aprovado de novo, que o

desenvolvimento sustentável seja

implantado na Juréia. A gente quer

voltar lá e trabalhar um pouco no que

meus pais e meus tios, meus avós

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

62 | CULTURA CAIÇARA

trabalhavam na Juréia. Por exemplo,

o que minha tia Glória falou: colher

arroz, eu não sei colher arroz. Não é

porque não quiseram me ensinar,

mas porque não teve oportunidade

mesmo. Muita coisa que a gente sabe,

muito nome de planta, é porque vai

passando no Morro da Juréia e eles

vão falando o que é. Essa questão de

aprender as coisas que a gente não

sabe, é bem a questão de não ter essa

vivência, não estar ali trabalhando

com os avós e os tios, fazendo roça,

canoa. Só vi fazer uma vez e assim

não dá para aprender e muitas das

coisas que a gente perdeu se devem a

isso, não tem como aprender se a

gente não vive no lugar”.

(Pedrinho)

“O esforço de pesca hoje é muito

grande, por conta desse êxodo, as

comunidades saindo do seu lugar e

vindo para Iguape. Lá tinham uns

mil pescadores, aqui deve ter uns três

mil. Lá nós tínhamos outras

atividades: o extrativismo, a

agricultura, etc. aqui só têm a pesca.

E todo mundo veio para cá pra

pescar e não tem recurso para todo

mundo. Isso tem acontecido com

comunidades de todo o Brasil, nas

reuniões que nós temos com os

outros povos tradicionais, na

Comissão Nacional, a reivindicação

principal é o território. Tendo nosso

território nós podemos fazer tudo:

pesca, mutirão, fandango, tudo... Na

Juréia nossa briga, nossa luta é

mudar a lei. Transformar toda aquela

área em reserva de desenvolvimento

sustentável, para que possamos

voltar para lá, assim nós também

tomaríamos conta dos recursos que

tem ali. Ao contrario, tem muito mais

gente aqui, no posto de saúde, tem

muito mais fila. Lá nós temos outros

recursos, chás, ervas, não precisamos

vir até aqui nos médicos. Porque

vindo para cá, nós também estamos

sujeitos as doenças daqui, ao stress.

Se o governo desse espaço pra gente

viver, ia todo mundo viver melhor,

ter uma qualidade de vida garantida.

Eles estão expulsando nossos povos

do território, eles vem inchar a

cidade... Vocês têm que nos ajudar a

levar esses povos de volta para o seu

A Reserva de Desenvolvimento

Sustentável é uma área natural que

abriga populações tradicionais, cuja

existência baseia-se em sistemas

sustentáveis de exploração dos

recursos naturais, desenvolvidos ao

longo de gerações e adaptados às

condições ecológicas locais e que

desempenham um papel

fundamental na proteção da natureza

e na manutenção da diversidade

biológica (Lei nº 9.985, de 18 de

julho de 2000).

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 63

lugar, porque lá também é de vocês

[...] finalizando, quando a gente

mudou a lei de novo e derrubaram a

lei (Mosaico da Juréia) e voltou a ser

estação ecológica, o promotor

público de Santos entrou com uma

ação civil pública dizendo que o

governo tinha 120 dias para tirar

todo mundo da estação ecológica,

porque lá não é permitida a presença

humana. Nós entramos com um

mandado de segurança pública

coletivo, chamamos a defensoria

pública e explicamos que estão

querendo tirar todo mundo de lá,

fizemos manifesto, abaixo-assinado,

divulgamos no “Revelando o Vale do

Ribeira”. Conseguimos segurar à

liminar, mas foi julgada agora e a

gente perdeu. E tá todo mundo no fio

da faca de novo. Mas para salvar esse

povo, para que a cultura caiçara

continue, tem que mudar a lei da

Juréia para todas as comunidades.

Para criar um instrumento jurídico e

ter mais força para falar em nome

das comunidades caiçaras, que tenha

uma abrangência nacional. Temos

que dar visibilidade para essas

comunidades, não temos que ter

vergonha de ser caiçara, porque ser

caiçara é muito bom. As

comunidades indígenas e

quilombolas têm um marco legal,

elas estão na lei. E nós precisamos

dar visibilidade às comunidades

caiçaras para que um dia elas

também estejam. Porque a partir do

momento que você tem um marco

legal, você tem como cobrar mais

afinco do poder público”. (Dauro)

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

64 | QUILOMBOS DO RIBEIRA

QUILOMBOS DO RIBEIRA

Em 27 de agosto de 2011 foi realizada na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira a Roda

de Memória do Projeto Memórias Urbanas, cujo tema estava voltado às questões sobre a

presença do negro na história da região. Sob o tema Quilombos do Ribeira, este encontro

buscou registrar elementos dessa história pouco conhecida e trabalhada nas escolas.

Cabe destacar que a Lei federal 10.639, de 2003, institui a necessidade de incorporar nos

currículos escolares a História e Cultura Afro-brasileira e nossa intenção foi contribuir

com material para que os educadores possam fazer esta abordagem a partir da história

local.

Convidados:

Francisco de Sales Coutinho, o

Chico Mandira, nascido no município

de Cananéia na comunidade do

Quilombo do Mandira. Presidente da

Cooperostra.

Irene M. Coutinho, nascida no

município de Cananéia na comunidade

do Quilombo do Mandira.

Anna Maria de Andrade é

antropóloga e trabalha no Instituto

Socioambiental (ISA). Coordenou o

Inventário Nacional de Referências

Culturais das Comunidades Quilombolas

do Ribeira.

José Rubens Fortes, nascido em

Iguape. Formado como professor de

educação básica, atuou como mestre de

escola nos municípios de Iguape,

Pariquera-Açu e Registro. É autor de

uma coluna mensal no jornal A Tribuna

de Iguape.

Júlio Cesar da Costa, poeta popular

no Vale do Ribeira, nascido em

Maracatu. Integrante do Batucajé e autor

dos livros “Cacos de Mim” (1994) e

“Sortilégios e Tesouros: poemas, causos e

lendas do Vale do Ribeira” (2007).

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 65

1888 - Lei Áurea

1912 - Registro das terras

dos Mandira

1969 – Criação do Parque

Estadual Jacupiranga

1988 – A Constituição

Federal determina a

regulamentação dos

territórios das

comunidades quilombolas

1998 – Criação da

Cooperostra

2002 – Criação da Reserva

Extrativista do Mandira

2003 – Decretos

regulamentam o

procedimento para

identificação,

reconhecimento,

delimitação e titulação de

territórios quilombolas

2009 – Criação do Grupo

Batucagé do Vale do

Ribeira

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

66 | QUILOMBOS DO RIBEIRA

Escravidão em Iguape

“É encontrável aqui na região de

Iguape vestígios de engenho, de

senzalas, de obras feitas por escravos,

da existência do negro na

comunidade, mas que não estava

abarcado por um trabalho

acadêmico, então nos distribuímos

alguns afazeres e de minha parte

ficaram temas relacionados a cultura.

O que constatamos é que o negro

começou a chegar no Brasil no

começo da colonização e em Iguape

no século XVII com a mineração de

ouro, esse ouro não era como o do

norte em que se escava o rochedo,

aqui o ouro era de aluvião, de rio. De

inicio os escravos foram trazidos para

esse afã, de trabalhar na coleta do

ouro. O negro da mineração tinha

uma formação diferente do negro que

trabalhou depois no arroz, ele tinha

essa mesma ocupação lá na África,

então ele já veio com o conhecimento

do garimpo. Este negro era alto,

magro, esguio e de perna fina porque

os senhores distinguiam o negro pela

batata da perna, entendia-se que o

negro de perna fina era mais eficaz

no trabalho. Não se tem registros de

Iguape até Santos de entrepostos

negreiros, então eles eram trazidos e

vendidos sucessivamente até chegar

aqui na região de Iguape. Os

Chico Mandira

Irene Mandira

Júlio

José Rubens e Anna Maria

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 67

empresários não possuíam grandes

levas de escravos, cerca de 10 a 15

escravos por propriedade. Esses

negros trabalharam na coleta do ouro

até a exaustão desse ciclo por volta

de 1700, então temos o inicio do ciclo

do arroz que foi muito mais

significativo pra região. Segundo se

entende esse negro trabalhou no

arroz, nos engenhos e moravam nas

senzalas próximas, estavam sobre o

domínio do senhor. Já os quilombos

possuíam um agrupamento mais

amplo e se constituíam pelos

escravos libertos, ou os negros que

não se encontravam mais sob o julgo.

Essa época do ciclo do arroz por volta

de 1800 é o responsável pela

construção desses casarões e das

Igrejas aqui em Iguape”. (José

Rubens)

Bairro do Mandira

“Hoje o bairro do Mandira conta com

24 famílias, mais ou menos 115

pessoas. Nossa comunidade é uma

das mais antigas de Cananéia, somos

a sexta geração na comunidade. No

quilombo Mandira, tudo possui este

nome, o sítio, o rio e o sobrenome

dos moradores, porém os negros

mais antigos não possuíam esse

sobrenome, à época era Vicente, e

depois que o pessoal passou a ser

chamado de Mandira, e adotamos

esse nome. Esse nome Mandira vem

de uma historia muito antiga, remete

ao Dilúvio de Cananéia de 1615 que

está no livro de histórias de

Cananéia. O Mandira é uma

comunidade quilombola reconhecida

pelo Estado, Fundação Palmares,

porém, ela é diferente dos demais

quilombos onde os negros fugiam e

iam para lugares distantes e

formavam seus quilombos, locais

onde os Capitães do Mato não

poderiam localizá-los. O Mandira era

uma fazenda de produção de arroz,

na época em que o Vale do Ribeira

produzia muito arroz. Teve o dono de

escravo chamado Antonio Florêncio

de Andrade, ele teve três filhos, dois

homens e uma mulher, um deles com

uma escrava. Esse filho se chamava

Francisco Vicente. Na época, com o

falecimento no D. Antônio, ficou

apenas a filha mulher, Celestina de

Andrade, como proprietária do sítio.

Porém, ela queria ir embora para

Minas por conta da exploração de

ouro, então ela doou o sítio para seu

A Constituição Federal de 1988, nos

artigos 215 e 216, reconhece aos

remanescentes das comunidades dos

quilombos que estejam ocupando suas

terras a propriedade definitiva,

devendo o Estado emitir-lhes os títulos

respectivos.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

68 | QUILOMBOS DO RIBEIRA

meio irmão, o filho da escrava, surgia

então a família Mandira. Alguns

foram embora, porém muitos

ficaram, entre eles o João Antônio.

Este teve dois filhos, um chamava

João e o outro Antonio. Quanto a

esse ultimo existem muitas histórias,

que ele era muito forte, carregava sua

canoa nas costas, ele era muito forte

e ao mesmo tempo muito ruim, então

ele levava a canoa dele pra um lugar

muito distante nas costas para

ninguém mexer, segundo o que

contavam, ele jogava lá no barranco

porque era muito pesado. Já o João

era diferente, era calmo, era vidente e

previa as coisas que estavam

acontecendo com ele e com a

comunidade. Muito inteligente ele se

tornou na região como um advogado

dos pobres, mesmo não tendo

frequentado a escola ele aprendeu a

ler e escrever em casa. Quando ele ia

defender as pessoas no juiz ou na

delegacia ele ditava o que o

escrevente tinha que escrever.

Naquela época tinha os coronéis, e

um chamado Coronel Cabral que

ainda hoje possui terras na região,

ele queria ser dono da área sobre

domínio do Mandira, queria ser dono

de toda área, uma área muito grande

de terra. Na época não existia

estradas, então para ele defender

suas terras, herança do pai, ele

pegava a canoa a remos, com a

família, e ia até Cananéia e de lá

através da praia chegava em Iguape e

pegava um barco chamado Vapor de

Iguape e ia até São Paulo para brigar

pelo terreno no Mandira e ganhou a

questão, registrando as terras como

sendo do Mandira em 1912. Bom,

quando a Celestina doou a terra para

o Francisco foi em 1888, antes da Lei

Áurea. Naquela época o pessoal do

Mandira era muito discriminado,

eram briguentos, andavam juntos e

começaram a falar “lá vem a negrada

do Mandira” e o pessoal achava que

eles ocupam a área, mas na verdade

eram proprietário. Então, teve a

questão desse Coronel que queria

registrar a terra no nome dele, e o

meio de sobrevivência da

comunidade era a caça, a pesca, a

lavoura, conhecida como agricultura

familiar, mas nos conhecemos toda

vida como lavoura e também chegou

a década de 1950, 1960, começamos

a explorar Caxeta e o Palmito Juçara.

Na época o pessoal do sítio tinha um

grande amor pela natureza, pela

água, pela mata, por tudo aquilo que

se sobrevivia dele. Cipós, eles só

tiravam cipó maduro quando eles

precisavam, os que estavam verde

eles deixavam pra tirar pro futuro.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 69

Eles preservavam a natureza, tinham

um cuidado. O Palmito Juçara

antigamente se tinha dez pés de

palmito eles tiravam 5 ou 6 e

deixavam o resto para repovoamento

e alimentação dos bichos, assim era

feito também com a caça”. (Chico)

Modo de vida na comunidade

quilombola

“Hoje é proibido caça. Antigamente

tinha porque o pessoal respeitava o

ciclo de reprodução dos bichos. A

partir do meio de maio até agosto é o

mês de caça de paca, tatu, veado e

depois dessa época o pessoal não

caçava porque é a época de cria. Se

matar uma caça entre agosto e

outubro, além de matar a mãe irá

matar os filhotes. A única caça que

era morta o ano todo era o porco do

mato e o cateto porque eles criam o

ano todo, então não tem época de

criação, o pessoal sabia dessas coisas,

não precisava ninguém ensinar.

Tinha a questão que o pessoal fala

“não pode caçar”, mas naquele tempo

quando nascia um filho homem, o

pai da criança, ou avô, já pegava a

espingarda e saia na rua e atirava pra

cima e você sabia que nascia um filho

homem, e se fazia isso para que

aquela criança se tornasse um ótimo

caçador, era tradição, fazia parte da

cultura dos negros, caiçaras, por isso

que tinha caça, as pessoas viviam da

caça, eu me criei comendo carne de

caça, meu pai nunca foi no mercado

comprar um quilo de carne. No

passado os homens respeitavam a

natureza. Tem uma parte de mato lá

que estávamos fazendo uma trilha,

uma área de um sítio arqueológico,

sambaqui, uma mata em que meu

avô falava que ali não poderia

derrubar, em qualquer lugar poderia

pra fazer roça, mas ali só poderia

tirar madeira pra fazer um cabo de

foice, uma casa, ela tinha que ser

preservada pra esses fins”. (Chico)

Remanescentes de quilombo

“Quando ficamos sabendo que

éramos uma comunidade negra, o

padre João Trinta disse isso e o povo

ficou tudo revoltado contra ele, não

queríamos ser classificado como

negros, tínhamos vergonha disso.

Depois começamos a nos identificar

como negro quando duas irmãs

vieram fazer alguns estudos na

comunidade e ficamos sabendo que

enquanto quilombola teríamos

alguns direitos. Então hoje nós

assumimos que somos negros

remanescentes de quilombo. Fruto

de várias reuniões, nós conseguimos

descobrir qual a nossa situação,

Page 70: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

70 | QUILOMBOS DO RIBEIRA

nossos direitos, a questão do

trabalho das ostras e desse como

sendo desqualificado. E com esse

trabalho também foi responsável pela

elevação da nossa estima e passamos

a assumir esse trabalho também,

nesse contexto tivemos a criação da

cooperativa”. (Irene)

Tradições

“Quanto às tradições religiosas, hoje

elas diminuíram muito se comparado

da época dos meus pais, o que

preservamos ainda é o terço cantado,

já o Fandango está muito pouco,

apenas o meu cunhado que sabe

tocar o fandango.Os meninos

começaram a praticar capoeira mas

pararam também, não sabemos, mas

os jovens não tem mais interesse na

nossa cultura, eles querem sair. Das

festas religiosas nos temos apenas a

do padroeiro, a de Santo Antonio,

mas as outras festas que tínhamos

antes como o carnaval, as reiadas, os

moleirões, não tem mais”. (Irene)

“No tempo em que éramos jovens

tinha muito fandango, tinha porque

nós éramos solteiros e queríamos

namorar, então quase todo fim de

semana tinha fandango e mutirão,

outra coisa que acabou praticamente.

Outra coisa era a festa de S. Antônio,

hoje nos fazemos uma festa para

arrecadar fundos, pelo menos

tentamos, antigamente o pessoal

fazia o terço. Dia 12 a noite tem o

terço cantado e de manha cedo tinha

o terço normal. Então o pessoal de

várias comunidades, até do

Município de Jacupiranga iam pra

festa, ai eles levavam arroz, porco,

galinha e tal. Lá a noite eles faziam

um café e colocavam tudo ali e todo

mundo tomava café e comia daquilo

ali, todo mundo junto em comum.

Depois do café as mulheres pegavam

todo a doação, cortavam e faziam a

carne com arroz, e ali pelas 11 da

noite tinha a janta e ninguém

comprava nada, nós tínhamos o que

sobrava e o que o pessoal trazia e de

manha tinha outro café, o que a gente

chamava de alvorada e outro terço

cantado. Quem vendia alguma coisa

nas festas eram as moças que faziam

broinhas de mandioca, então

vendiam pra rapaziada... eram as

únicas que vendiam alguma coisa.

Depois mudou, o pessoal começou a

fazer barracas e não tem mais àquela

coisa de trazer as coisas, tem que

comprar... então mudou a festa de S.

Antônio, mas ainda tem o terço

cantado, que já foi gravado pelo

pessoal do Itesp. Então são

memórias, muitas coisas se perderam

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 71

porque os jovens não querem mais

saber de fandango”. (Chico)

“As pessoas chamam qualquer coisa

de mutirão, mas tem o mutirão, a

pojuba e o ajutório. Mutirão é

quando alguém queria fazer uma

roça ou canoa ou uma coisa desse

tipo, ai juntava 30 a 40 pessoas que

trabalhavam o dia inteiro e o dono da

roça dava o almoço e a janta e a noite

tinha o fandango, o baile, isso é

Mutirão. A pojuba também tinha

baile, mas as pessoas que eram

convidadas almoçavam em casa e

depois do almoço iam trabalhar até a

noite e depois tinha a janta e o baile.

O ajutório o pessoal juntava 10 a 15

pessoas e iam fazer uma roça ou

trabalhar numa casa e todo mundo

dava o café, o almoço, café da tarde e

depois as pessoas iam embora, não

tinha baile. Hoje eles convidam 4

pessoas pra trabalhar em alguma

coisa e fala que é mutirão, não é, isso

é ajutório”. (Chico)

“Imaginam o quanto de produção de

mestrado e doutorado foi produzido

nesses anos, e o que voltou à

comunidade? Pouquíssimo neh. Você

já pensou uma pessoa que foi

entrevistada em 1977, uma pessoa de

80 anos, é um material que a

comunidade não vai ter acesso

porque está lá na academia, e seria

muito importante que isso voltasse

principalmente para os jovens

poderem entender, por exemplo,

porque Ivoporundura se chama

Ivoporundura. As pessoas precisam

tem o conhecimento do que é seu, e

esse é um pouco do sentido da nossa

poesia da oralidade, ela não é feita

pra ficar presa no papel, ela foi feita

pra dialogar, pra permitir a

compreensão, essa é a principal

ferramenta do meu trabalho. Não

tenho pretensão de dizer que é um

trabalho bom ou ruim, melhor ou

pior, mas é um trabalho autentico,

nosso e quando começamos com esse

trabalho as pessoas perguntavam o

que a gente ia ganhar falando do vale

do Ribeira? Gente, é aquela coisa que

para você entender essa questão do

advento global, da questão das

fronteiras em que o mundo está

pequeno, o Chico mesmo já virou

cidadão do mundo, mas a gente

precisa aprender a entender o

próprio espaço da gente, como a

gente vai ser universal se não

conhecemos nem o nosso quintal.

Precisamos nos apropriar do nosso

gueto, do nosso espaço”. (Júlio)

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

72 | QUILOMBOS DO RIBEIRA

Criação do Parque Estadual de

Jacupiranga

“Na década de 1960 foi criada na

nossa comunidade o Parque de

Jacupiranga, pegando sete

municípios desde Cananéia até

Jacupiranga, pegando vários

quilombos, inclusive parte do sítio do

Mandira foi incluída. Com isso o

Estado criou a Polícia Ambiental e as

comunidades foram proibidas de

fazer tudo. Não poderia caçar, fazer

roça, tirar palmito, caxeta, e ai nós

resolvemos vender o sitio do

Mandira, na década de 1970, 85%

das terras. E algumas pessoas que

não venderam, como minha mãe e

alguns dos meus tios, ficaram lá, mas

tinham que sobreviver de alguma

maneira, ai a única solução foi partir

para trabalhar com ostra. A parir de

então passamos a viver da ostra a

partir de 1978”. (Chico)

Criação de ostras

“Nós trabalhávamos com ostra como

clandestinos, tirando ostra em

quantidade muito grande porque o

preço era muito pouco, vendíamos

para o atravessador e como todos

sabem, quem produz e vende para o

atravessador não estabelece o preço

do produto, é o atravessador quem

diz quanto quer pagar pelo produto,

e você precisa vender para

sobreviver. Éramos perseguidos pela

policia ambiental, quando a gente

voltava e ouvia a fala da polícia na

beira do porto a gente corria e virava

a canoa e escondia a coleta porque

nos não tínhamos o dinheiro para

sobreviver, imagina para pagar a

multa, era muito difícil. Então

tínhamos vontade de mudar isso,

quando foi em 1993 o pessoal da

Universidade de São Paulo (USP),

através do professor Diegues,

estiveram em Mandira e fizeram uma

proposta para o meu tio, já falecido,

de fazer um trabalho na comunidade.

Naquela época tinha um rapaz

chamado Renato Sales que

trabalhava na SUDELPA, ele

trabalhou na estrada do Itapitangui

ao Ariri e conheceu a história da

comunidade e acabou simpatizando

pela nossa causa e junto ao Diegues

realizou esse trabalho junto à

comunidade. Na época o Instituto

Florestal (IF) contratou um técnico

que foi gestor do Parque da Ilha do

Cardoso, ele fez um trabalho no sul

com mexilhões. Ele chegou na

comunidade com a proposta de

engorda de ostra para tentar

melhorar a qualidade da ostra.

Quando começou esse trabalho com

a USP e o IF começamos a trabalhar

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 73

Reserva Extrativista é de domínio

público, com uso concedido às

populações extrativistas tradicionais

conforme o disposto no art. 23 desta

Lei e em regulamentação específica,

sendo que as áreas particulares

incluídas em seus limites devem ser

desapropriadas (Lei nº 9.985, de 18

de julho de 2000).

de outra maneira com a ostra,

pegávamos ela no mangue e

levávamos para o viveiro e

esperávamos sua engorda. Nos

trabalhávamos com ostra a muitos

anos e nós ficamos receosos de

mudar nossa técnica de trabalho,

mas eu falei que ia fazer a

experiência e se não desse certo eu

voltaria pra mesma atividade. Foi

quando eu chamei um técnico do

Instituto de Pesca, na década de

1960, também teve um estudo de

criação de ostra em Cananéia e o

técnico falou que lá não era um local

propicio para criação de ostra, havia

apenas alguns pontos do estuário que

era propicio para a criação de ostra.

Então chamamos esse técnico e ele

falou o local que era bom, então

definimos aquele local e a

comunidade começou a ir ao viveiro

e a ver que a ostra estava crescendo

com aquele sistema de trabalhar,

então todos foram fazer o mesmo

serviço, e assim fizemos. Começamos

a vender in natura para um cara de

São Paulo e um do litoral, a procura

da ostra de viveiro passou a ser maior

do que a retirada do mangue, pois a

sua durabilidade é muito maior.

Então as outras comunidades de

Cananéia começaram a ir ao Mandira

para ver o sistema e começaram a

implantar nas suas comunidades,

então começou uma mobilização dos

técnicos que estavam nos apoiando

para que nós saíssemos da

clandestinidade”. (Chico)

“Então surgiu a ideia de criar uma

cooperativa, uma associação ou

pequena empresa. Em 1995 já

havíamos criado a Associação

Reserva Extrativista do Mandira,

pois à época alguns ambientalistas

viram um casal de mico leão dourado

lá na divisa com o Paraná, então

queriam criar uma Estação Ecológica

desde Itapitangui até Guaraquiçaba.

Com a criação da estação não

poderiam mais ter moradores,

apenas a visita de pesquisadores.

Então com a chegada do Instituto

Chico Mendes, chegou a APA e nos

mostraram como funcionava e nos

disseram que para garantirmos o

direito de permanecer na terra

teríamos que criar a reserva. Então

fizemos o pedido da criação junto ao

Page 74: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

74 | QUILOMBOS DO RIBEIRA

governo federal em 1995, o diretor do

IBAMA esteve na comunidade, disse

que poderíamos criar a Reserva do

Mandira, porem ele foi embora e

poucos dias recebemos uma carta

dizendo que era impossível criar uma

reserva extrativista em terra firme

porque o governo não teria recursos

para desapropriação dos

proprietários. Então o Secretário do

Meio Ambiente do estado de São

Paulo, Fabio Feldman, propôs à

comunidade a criação de uma reserva

estadual, e por fim não conseguimos

também. Depois de alguns anos, o

IBAMA retomou o projeto de criação

da reserva e este se deu em 2002, a

criação da primeira reserva federal

em são Paulo. Como eu disse do

processo de sairmos da

clandestinidade, optamos pela

cooperativa porque todos os

cooperados são proprietários da

cooperativa e numa pequena

empresa possui um dono e os demais

trabalham para este, nesse sentido

criamos a cooperativa. De inicio

quase fechamos porque não

sabíamos como administrar, mas

conseguimos um curso para que os

filhos dos cooperados fizessem

cursos de informática voltada ao

cooperativismo. Meu filho ficou

depois dois anos trabalhando, minha

sobrinha saiu a pouco tempo depois

de dar a luz, então estamos

colocando outra sobrinha minha para

trabalhar como secretária, então os

mais jovens ficam a cargo da

administração, mas nós todos

estamos interados e palpitamos,

agora depois de 13 anos que estamos

conseguindo entrar no mercado de

São Paulo, em litoral já temos um

mercado garantindo. Porem antes

nós dizíamos que a ostra era de

Cananéia, porem com isso outros se

beneficiavam, então passamos a

divulgar a ostra da cooperativa”.

(Chico)

O reconhecimento da

comunidade

“Nesse ano (2002) também fomos

reconhecidos como comunidade

quilombola e ganhamos o premio Rio

+ 10, pela ONU, que possibilitou a

saída do primeiro Mandirano para

fora do país e ir à Johanesburgo na

África do Sul. Eu fui mostrar nosso

trabalho de preservação ambiental e

de desenvolvimento social da

comunidade, com esse trabalho

também ganhamos o premio ECO 99,

da Shell. Nós ressaltamos esse

prêmio não pelo prêmio, mas pela

valorização do nosso trabalho,

porque a gente lá na roça não

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 75

percebe a importância do nosso

trabalho, tínhamos a impressão que a

gente nem faz parte desse país. Mas

nós participamos sim, nossos

antepassados morreram lutando para

melhorar nosso país e até hoje nos

trabalhamos para melhorar isso.

Conseguimos vários benefícios, entre

as mulheres e os jovens. Já estive na

Itália, fui convidado no ano passado

pelo ISA para ir à Dinamarca para

discutir a questão climática, e mostra

a importância do nosso trabalho na

questão da preservação ambiental,

não é apenas importante para a

comunidade, é relevante para o

mundo todo. Com isso as pessoas

veem que o Mandira esta no caminho

certo, e não é que estamos fazendo

agora, não tem nada de novo, tudo

aprendemos com nossos antigos.

Hoje tem educação ambiental, mas o

que fazemos são coisas que meu avô

fazia, só não possuía esse nome. Hoje

é proibido derrubar a margem do rio,

e naquele tempo o pessoal preservava

uma vasta margem do rio, ano

passado fizemos roça e preservamos

a beira do rio, nós sempre tivemos

esse cuidado da preservação porque

nós dependemos da natureza. Esses

tempos eu estive em Campos (RJ)

para mostrar nossa experiência, de

como nós nos organizamos e como o

Estado nos apoia. Estive também

com pescadores no sul da Bahia e o

pessoal por lá conseguiu retomar

suas atividades com as questões que

eu passei para eles, a forma que nós

trabalhamos na nossa cooperativa,

mesmo eles não trabalhando com

ostras. Estive em Paraty e um

condomínio esta querendo construir

um píer no mangue, ai o pessoal me

chamou para ensinar a fazer viveiro

de ostra por lá, ai as pessoas me

perguntaram se eles não iam

competir comigo, mas não é assim,

eu vendo o meu e ele vendo o dele, eu

acho que é importante a gente estar

passando os conhecimentos que a

gente tem. Depois de um tempo eu

encontrei com o presidente da

cooperativa de Paraty e ele me disse

que eles já estavam vendendo ostra,

tem coisa melhor que isso? E assim a

gente vai mudando o Brasil, a gente

brasileiro”. (Chico)

Decreto nº 4887 de 20 de novembro de 2003 regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

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76 | QUILOMBOS DO RIBEIRA

Articulação das comunidades

quilombolas

“Nós temos no Vale do Ribeira o

EAACONE (Equipe de Articulação e

Acessória das Comunidades Negras

do Vale) que tem sede em Registro e

periodicamente temos reuniões,

mais ou menos a cada dois mês para

planejar a articulação das

comunidades para buscar seus

direitos. Antes, nós não sabíamos de

nossos direitos enquanto negros, e

com esse grupo temos acesso a essas

informações, agora temos orgulho

de sermos negros e fazermos parte

da história do Brasil. Mas tem

muitas comunidades que ainda tem

vergonha de sua origem. Uma vez fui

para Manaus e uma mulher da

Fundação Florestal (FF) que me

acompanhava perguntou para uma

moça que possuía traços indígenas:

“você é descendente de índio?”, e ela

não assumiu, mas a cara dela é de

índia, então a pessoa tem vergonha

de sua origem, claro que isso vem

mudando, o negro já possui sua

identidade, mas ainda tem pessoas

que se auto-discriminam por ser

negros. Muitos dizem “Chico você

não é negro, sua cor é de burro

perdido”, mas minha ascendência é

de negro, olha o meu cabelo. Então

temos que nos assumir, por isso

temos essa associação”. (Chico)

Poesia no Vale do Ribeira

“Falo um pouco da minha

experiência do meu trabalho com

poesia popular no Vale do Ribeira.

Estudei na minha cidade até

adolescência, minha primeira

formação foi em Ed. Física, fui atleta,

defendi a seleção brasileira em

Roda de Memória

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 77

alguns eventos regionais e

internacionais, depois voltei ao Vale

do Ribeira e como essa coisa da

poesia, do texto sempre me

acompanhou eu acabei cursando

Letras e nesse meio tempo eu

comecei um processo de descobrir

essa questão da formação do vale,

dos povos e esses conceitos de

quilombo, mesmo a minha cidade

possuindo uma comunidade

quilombola. Ai conversando com a

minha mãe ela começou a me contar

as histórias dos seus pais, meus avós,

ai eu comecei a perceber essas

questões que não são só do litoral,

mas de todo o Vale como um todo

através da ocupação por meio do rio.

Nos anos 90 eu conheci o Lara, nos

encontramos aqui no Vale e eu já

tinha esse trabalho com poesia e ele

com a música. A partir disso, nos

unimos para cantar e fazer um

trabalho, não tínhamos muitas

pretensões, trocávamos experiências

de arte e poesia. Montamos um

grupo que se chamava Batucajé e

começamos a participar de algumas

intervenções aqui e ali e nosso

trabalho foi ganhando um destaque”.

(Júlio)

Batucajé e as memórias do Vale

do Ribeira

“Esse trabalho é sediado em

Maracatu, nosso projeto é bem

parecido com esse que é de

memórias, buscamos contar a

história da cidade através do olhar da

população e dentro dessa questão da

memória vamos bebendo de outras

fontes como a poesia, a música e a

historiografia da cidade. Dentro

desse meu trabalho do grupo eu

acabei tomando a linha da poesia

regional. Lancei um livro em 1994

chamado “Cacos de Mim” que tratava

das minhas influencias da poesia

moderna (Drummond, Vinicius,

Cecília Meireles) eu sempre tive uma

influencia desses poetas, que eu

sempre li na minha juventude, então

esse primeiro livro traz fortes

influências do modernismo.

Batucagé na etimologia está ligado

aos batuques com intenções

religiosas. Mas nós, dentro do nosso

caiçares, a gente colocou esse nome

para remeter as questões de como

você junta às pessoas para contar

histórias, como a gente ta fazendo

aqui, isso é um batucagé. Mas eu

trazia essa coisa de redescobrir o

Vale, eu passei muito tempo fora,

então era mesmo um processo de

redescobrir e através desse grupo

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

78 | QUILOMBOS DO RIBEIRA

viajamos e passamos a ter uma

aproximação com as comunidades,

as lideranças. Eu e o Lara temos

personalidades diferentes, enquanto

ele é mais comunicativo eu sou mais

calado, fico mais atento a fala e em

incorporar isso. Eu sempre acho que

a poesia nasce de forma oral, da

oratória. A escrita e essa questão da

oralidade caminham juntas, é

necessário que você registre, mas o

que da vida a poesia é a verbalização,

quando você pega os violeiros, que

tem domínio do verso e da

improvisação é fantástico, você

consegue usas de diversos recursos, é

uma gama de coisas muito grande”.

(Júlio)

Inventário de Referências

Culturais dos quilombolas

“O projeto específico no qual eu vou

me ater aqui é o Inventário de

Referencias Culturais das

Comunidades Quilombolas e o que é

isso? É uma maneira de levantar e

dar visibilidade ao patrimônio

imaterial dos Quilombos. Nesse

trabalho nos adotamos uma

metodologia elaborada pelo IPHAN,

então nos realizamos um trabalho

para o IPHAN, essa metodologia do

IPHAN é uma das partes da política

de salvaguarda do patrimônio

imaterial. Esse trabalho não é apenas

pesquisa, é um projeto de

intervenção, a ideia é que as

comunidades se apropriem desse

trabalho e toquem esse levantamento

por elas mesmas. São 16

comunidades que participam: aqui

em baixo nos temos em Cananéia os

quilombos do Mandira, Morro Seco.

Em Eldorados nos temos o Abobral,

Sapatu, Pedro Cubas, Pedro Cubas de

Cima, Ivaporunduva, São Pedro,

Galvão, Nhunguara. Em Iporanga

nos temos Santa Rosa, Pilões,

Pombas e Praia Grande. Em Itaoca

temos Cangume e Porto Velho. Em

cada comunidade dessas nos temos

um agente cultural treinado por nós

do ISA e pelo IPHAN para aplicar os

questionários do inventário. Esse

questionário é dividido em cinco

temos principais: as celebrações, as

formas de expressão, os ofícios e os

Mutirão em Iporanga

Foto: Titi Ribeiro.

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RODAS DE MEMÓRIAS | 79

modos de fazer, os lugares e as

edificações... Ai, quando a gente

chega lá uma das principais

dificuldades pra gente, enquanto

antropólogo ou pesquisador é como

colocar aquilo que estamos vendo, a

vida acontecendo, transformada em

dados e encaixá-la nessa classificação

do IPHAN, então temos todo um

trabalho de ‘domesticar’ esses dados

e transformá-lo num texto que se

encaixe nessa metodologia. Então, o

inventário está sendo composto

dessas informações, mas nós estamos

tentando levantar junto às

comunidades também se esses bens

estão íntegros, se eles são memória

ou se eles são ruína. Isso é para a

gente começar a pensar se esses bens

estão ok, se está sinal amarelo e esta

se perdendo muita coisa e é

necessário fazer alguma coisa pra

garantir sua salvaguarda. E o que eu

tenho a dizer no panorama que

estamos traçando é que tem muita

coisa que é integro e memória,

porque o bem natural ainda existe,

mas, ou uma pessoa quem faz ou ele

mudou tanto que o jeito que ele era

feito não existe mais, então ele

encontra-se em um estagio

intermediário entre existir e não

existir. É o caso da bandeira do

divino em muitos lugares, porque ela

não anda mais com os foliões, ela

anda em silencio. Outra coisa

preocupante é o declínio da atividade

agrícola, a atividade de roça. É claro

que a ajuda do governo a essas

comunidades é importante, mas sem

uma política de incentivo a roça

acabam solapando essa atividade, e

sem a roça não temos o mutirão,

pulhuva, nem reunida, nem ajutório,

não tem mais, e se a gente não tem

mais isso não tem os bailes depois e

se a gente não tem os bailes a gente

não tem as musquetas, a dança do

chapéu, a anhamaruca, o fandango, e

se a gente não tem os produtos da

roça a gente não tem mais o tipiti,

peneira, pilão, a roda, o monjolo...

quer dizer, acaba tudo, ai a gente vê o

sistema. [...] se a vida é difícil na roça

é importante que a gente crie

condições pra que não seja tão difícil,

eu não sei se eu sou muito nostálgica,

mas eu quero que esses

conhecimentos não acabem. As

crianças hoje fazem uma trilha e não

sabem identificar um pé de planta,

tem que comprar um pacote de arroz

que os pais dele plantavam e às vezes

eles não tem o dinheiro. O objetivo

desse trabalho é fazer com que essas

comunidades se apropriem desse

conhecimento, nos estamos

sistematizando todas essas

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

80 | QUILOMBOS DO RIBEIRA

informações e estamos passando pra

elas para que elas vejam o que e

como elas eram preservar e se gostar.

Muitas escolas desvalorizam os

conhecimentos dos mais velhos, das

comunidades quilombolas. Gostaria

de salientar que toda essas história

tem também como objetivo dar

visibilidade e valorizar o Rio Ribeira

nesse processo atual da construção

de represas, represas estas que vão,

além de inundar terras, inundar

história, memórias e uma boa parte

da historia do Vale do Ribeira que

esta ai nas comunidades

quilombolas, então é uma luta nossa

porque tem muitas histórias do vale

que estão nessas comunidades”.

(Anna Maria)

Quilombo dos Mandira, Cananéia. Foto: Danilo Pereira, 2009.

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RODAS DE MEMÓRIAS | 81

HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL

Em 17 de setembro de 2011 foi realizada na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira a

Roda de Memória sobre a temática: Histórias de Pedra e Cal. O objetivo era ouvir relatos

que tivessem como foco o patrimônio edificado na cidade e na área rural. Detalhes das

técnicas construtivas e da fonte dos recursos para a construção, as iniciativas para a

conservação deste patrimônio e as histórias de vida de nossos convidados alimentaram as

conversas, cujo registro encontra-se aqui dividido por temas de falas.

Convidados:

Lúcio de Aguiar, morador do

Costão do Engenho.

Paulo Fortes Filho, pesquisador e

historiador da cidade.

Cleide de Moraes Carneiro,

moradora de Iguape.

Emerson da Silva Santos,

responsável pelo Projeto Oficina

Escola.

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82 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL

1538 – Fundação da sede

da vila onde hoje se

encontra o bairro do

Icapara

1614 – Transferência da

sede da vila para a região

às margens do Mar

Pequeno, onde hoje se

encontra o Centro

Histórico

1653 – Construção da Casa

Real de Fundição de Ouro,

a primeira no Brasil à

época.

1848 – a Vila é elevada à

categoria de cidade

1856 – Inaugurações da

Basílica do Bom Jesus de

Iguape

1969 – o centro histórico

de Iguape é tombado pelo

CONDEPHAAT

2009 – o centro histórico

de Iguape é reconhecido

como patrimônio nacional

pelo IPHAN

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 83

Trabalho na roça

“As construções em Iguape, no

começo, principalmente no rural,

eram de madeira. Casa de pau a

pique. Ali ia vivendo, plantando as

coisas. Criava também os animais, as

condições de antigamente não eram

iguais as de hoje, antigamente era

mais fácil, não tinha tanta exigência

como hoje tem. Antes a gente

derrubava o mato, plantava e colhia.

Hoje não pode nem derrubar para

plantar. Mas é ignorância, porque o

trabalhador rural braçal nunca deixa

a terra nua, para não dar erosão,

enchente. São os grandes que

derrubam tudo e a erosão vai para o

rio. Eles podem fazer, mas a gente

não. Eu trabalhava na roça, hoje não

trabalho mais, porque tem que fazer

um requerimento pro IBAMA, você

se você faz hoje, só daqui três ou seis

meses que sai o resultado. O que

adianta isso? O fazendeiro grande

não, ele entra derruba a mata, aí vem

a erosão e leva tudo para o rio”.

(Lúcio)

Engenhos de arroz

“Eu trabalhei no sítio. Quebrei muita

pedra para construir casa em Ilha

Comprida, em Iguape e assim fui

vivendo. Era pedra, cal e cimento

para fazer o alicerce, as casas não

eram feita de pedra, fazer casa de

pedra é difícil. Só o alicerce. O

casarão perto do engenho é de pedra

e cal, feito pelos escravos. Ali tinha

um engenho de pilar arroz, tinha esse

monjolo, tinha a cachoeira, aí fazia

um pilão e aqui atrás ficava uma água

e a água caia aqui, quando a água

caia, enchia e suspendia isso aqui

virado para cá e a outra caia e o

monjolo caia no arroz para pilar.

Depois que veio a construção dos

engenhos, tinham vários engenhos

ali que faziam, tinha uns oito

engenhos, tudo de arroz, até lá no

Matias. Quando foi feita a maquina,

caiu tudo e não tem água mais. Na

casa grande, ali era de pilão também,

depois que caiu. Na época da

revolução de 1930, Iguape levou

muita gente para se esconder lá. O

prefeito pegou a maioria do povo e

levou lá para cima, aquele casarão

ficou lotado de gente”. (Lúcio)

Icapara

“A maioria das casas de Icapara era

de taboado, que cortava do mato ou

que acostava na praia. Eram bem

simples, uma sala enorme e a outra

parte a cozinha. Com o passar do

tempo, as casas ganharam outros

compartimentos: os quartos.

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84 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL

Geralmente um quarto maior, o mais

reservado no fundo da casa era para

as moças. Era uma casa bem simples,

bem rústica. Depois apareceram as

casas de tijolos. A casa do caiçara

geralmente é de madeira. A

passagem para o quarto das moças

era quase proibida. Até hoje a gente

percebe em algumas casas de

caiçaras, na porta da entrada uma

cruz e na porta do fundo a estrela de

Davi, o signo de Salomão. Eu não

entendia o porquê disso, porque

nunca soube que tinha uma

comunidade de judeus aqui no nosso

litoral. Então o dono da casa falava: a

gente se pega com Deus e com o

Diabo, para se defender de tudo”.

(Paulo Fortes)

Legislação Ambiental

“Depois também com as leis

ambientais, não sou contra porque

elas são necessárias, mas não se

pensou no caiçara que vive lá. A lei

protege a formiga, o caramujo,

lagarto, o jacaré, o macaco, a onça,

mas não protege o homem. Hoje em

dia, se a gente passar nas ruas do

litoral, a gente encontra uma roça de

mandioca. Mas é como se fosse um

museu, porque hoje não tem como

plantar. Durante séculos o caiçara

viveu e preservou aquilo, mas a lei

tem que ser alterada para que ele

possa viver. Claro, com certo limite,

que reprima aquilo que não tá certo,

mas a gente não pode deixar que ele

não viva. Ele foi expulso do seu

habitat e veio engrossar a periferia

das grandes cidades, com

subemprego”. (Paulo Fortes)

Festas

“As festas eram mais modernas do

que hoje. Dançava de verdade. Hoje

tem uma separação terrível, o pobre

não pode se misturar com o grande.

Era melhor que hoje. O motivo devia

ser de acordo com a exigência. A

Paulo Fortes

Lúcio de Aguiar

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 85

festa do povo do sítio antigamente

era o carnaval, ia na casa de um hoje,

na do outro amanhã, cada dia na casa

de um. E o baile da Sandália de

Prata? Esse era aqui na cidade. No

meu tempo não existia, só fandango.

Faz tempo que eu comecei a

frequentar, muito antes de vocês

chegarem lá”. (Lúcio)

“Nos bailes que se faziam para

dançar com alguém a gente tinha que

falar uma trova para essa pessoa.

Tinha o violeiro, era um negro, uma

hora ele deixou a viola para ir dançar,

foi tirar a moça para dançar e ela

disse que não dançaria com aquele

negro, aquele urubu. Eu disse: eu

sim. Dançamos e ele voltou para a

viola. Aí ele fez uma modinha assim:

Urubu é bicho preto, feio e muito

catinguento, mesmo assim as moças

chamam para o seu divertimento.

Porque ele que era o violeiro”.

(Cleide)

Pedra

“Tirava pedra com a marreta de cinco

quilos, com a base do martelo,

pegava assim na pedra, batia, a pedra

abria, ferro grande comprido. Batia

com a marreta quebrando. Da minha

família só eu que tirava pedra. Vendi

muita pedra para construir as casas

dessa cidade, tirava sozinho, cada um

tinha seu lugar. Tinha uma porção de

gente que fazia isso. A vida modificou

muito”. (Lúcio)

Preservação

“O tempo marca as coisas, o

progresso tem algumas vantagens e

algumas coisas que atrapalham. O

que a gente percebe que aos poucos

vai se degradando é o centro

histórico, era mais bem cuidado.

Agora com essa nova orientação do

IPHAN, do CONDEPHAAT, da

Prefeitura que tão cuidando e

preservando, mas muita coisa foi

deixada de lado. A gente vê em

algumas fotos. Ali no funil, onde está

Conforme Machado (1986), o

tombamento é um instrumento jurídico

de proteção do patrimônio natural e

cultural. É considerado por este mesmo

autor como uma “intervenção

ordenadora do Estado na propriedade

privada” e que tem a finalidade de

colocar os bens sob um regime especial

de cuidados. O tombamento

corresponde a um ato administrativo

que tem por finalidade a conservação

de bens materiais móveis ou imóveis,

sendo este o seu preceito básico, ou

seja, a obrigação de conservar a coisa

tombada, como definiu Rabello (2009).

Um dos principais efeitos do

instrumento do tombamento é

transformar os valores culturais

contidos nos bens como questão de

interesse jurídico, uma vez que paira

sobre o objeto tombado um interesse

público.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

86 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL

o marco da fundação da cidade,

aquela parte ali o calçamento era de

pedra, com o tempo foram tirando,

foi se descaracterizando. A própria

Basílica, essa pastilha é o fim da

picada, é um crime contra tudo. Na

própria igreja, na capela do

Santíssimo, algum iluminado teve a

ideia de combater o cupim

levantando uma parede em frente o

altar. Na época que foi feito ninguém

reclamou, ninguém tomou

conhecimento. As coisas vão pouco a

pouco se deteriorando. Aconteceu em

60. Onde era o prédio da capitania, o

mais bonito da praça, a frente toda

era de azulejo português, o único que

restou na praça, derrubaram o prédio

e fizeram uma coisa medonha de feia.

Com o tempo se não tiver pulso firme

as coisas vão se deteriorar e a cidade

vai perdendo suas características. A

arquitetura é um conjunto, se alguma

coisa fica fora daquele alinhamento,

com o tempo aquilo vai se perdendo.

Se a gente olhar nessa rua aqui, nós

não vamos ver, fizeram uma reforma,

cada porta da casa ficou de um

tamanho, na frente do casario a

janela é arqueada e a porta é reta.

Coisas que não casam com o próprio

estilo. Aqui na rua 15, em duas casas

tiraram as portas de madeira de lei e

puseram portas de vergalhão. É

lógico que a gente não vai querer

voltar ao passado, mas muita coisa a

gente tem que preservar. Uma

concessão que foi feita é que se

conserve a fachada, dentro a pessoa

faz o que achar melhor, o que achar

mais prático. Geralmente as casas

eram um corredor comprido, os

compartimentos, os quartos muitas

vezes não tinham ventilação, não

tinham abertura de janela,

confinavam a pessoa lá dentro. A

gente não quer que volte como

antigamente, mas que pelo menos se

preserve a fachada. As divisões eram

de taipa ou de parede francesa,

algumas com madeira”. (Paulo

Fortes)

Saudade de Iguape

“Eu fui para São Paulo quando tinha

quatro anos, mas vinha para Iguape

todas as férias, se a gente estivesse

bagunçando minha mãe já falava: as

férias estão chegando, hein! E aí a

gente dava até banho em porco,

porque não queria deixar de vir para

cá de jeito nenhum. Era muito

gostoso. A gente vê que algumas

pessoas quando falam de Iguape tem

vergonha de sua história, tem

vergonha de ser caiçara. Cada coisa

que a gente fazia aqui tinha cheiro de

Iguape, os passeios de barco a vapor.

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RODAS DE MEMÓRIAS | 87

Quando chegávamos e quando íamos

embora, a lancha parava perto do

barranco e toda a vizinhança vinha

ver. O café daqui cheirava diferente,

o pão era diferente, pão sovado.

Realmente a cozinha era a parte

maior, chão batido, uma mesa

enorme, os barris, uma porta bem

pequena que dava para uma horta de

onde eram tirados todos os

temperos. Do outro lado tinha só

ervas medicinais, porque meu avô

receitava para todo o vilarejo, havia

herdado isso da minha bisavó, que

era filha de escravo e tinha muito

conhecimento. Morreu com 115 anos

e nunca tomou um comprimido.

Lembro-me que quando ela faleceu

eu tinha uns três anos, ela me fez

uma bruxinha de pano, fazia o

cabelinho de tucum. Quando a gente

era criança, essa ideia de preservação

de pegar só o necessário era comum.

Quando havia um cerco que pegava

muitos peixes, aquilo era dividido

com toda a comunidade”. (Cleide)

Nossas Raízes

“Eu bato o pé que nós temos que

manter os olhos no futuro sem

esquecer o nosso passado, das nossas

raízes, da nossa história. Então

quando a gente vê uma casa assim

(paredes de pedra) é bonito, está

mudando a cabeça das pessoas.

Porque antes isso era vergonhoso,

tratavam logo de cobrir com reboco.

A calçada também, se sobrava um

dinheiro iam cimentar e alisar,

colocar piso. Os nossos casarios, as

brincadeiras, tudo isso tem que ser

preservado porque é a nossa história.

Porque um lugar sem história é como

uma árvore plantada no concreto, um

vento derruba, porque não tem raiz.

Eu vejo que poucas casas se

conservam. Na rua Tiradentes muitas

delas perderam suas características.

Nós temos aqui a casa paroquial que

foi colocada esquadria de alumínio,

não sei se existe uma orientação.

Quando eu era jovem tinha orgulho

de ser caiçara e agora com quase

sessenta anos não vou ouvir ninguém

chamar minha cidade de capela

velha. Essa mudança tem que estar

dentro de cada um. Vi uma Cleide

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88 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL

reportagem sobre o 11 de setembro,

as várias coisas que Nova Iorque

passou e o repórter disse: a cidade se

destaque não pelo acidente das torres

gêmeas, mas porque constantemente

se renova, sem perder de vista sua

história. Não existe folha se não

existe raiz”. (Cleide)

Pedra e Cal

“A maioria das paredes era coberta,

quando não era rebocado com

argamassa era com barro. Não havia

uma valorização. Então era pau-a-

pique ou madeira, mais na área rural.

Esse prédio aqui do Di Paolo, a frente

dele é uma fachada de pedra. A casa

do meu avô, hoje você passa lá, não

resta nada daquilo que era. A gente

fica triste com isso. Ali na Rua

Tiradentes o telhado era um só,

cobria várias casas. Hoje foi

modificado. Ali na orla do mar

pequeno foi feito um aterro, a maré

chegava até as casas, no fundo não

era muro, era cerca de bambu,

quando a maré ficava alta e depois

baixava, ficava um lodo só, a gente

tinha que andar pela cerca. Passando

ali o Di Paolo, lá na onde tem a auto-

escola, era um telhado só. Imenso,

com as vigas, mandei passar óleo na

madeira para evitar cupim, porque

era madeira de mato, grossa, rústica.

Umas tinham casca outras não. Meu

comercio era de roupas, durante a

noite a gente estendia um plástico

porque a noite caía muita sujeira.

Quando acontecia de quebrar uma

telha daquela, não existia, porque as

telhas eram desse tamanho, todas

irregulares, para encaixar aquilo ali

era igual a um quebra-cabeça. Minha

avó fazia telha para casa dela, não

tinha forma. Às vezes se fazia a telha

na perna, na coxa. Minha avó era

ceramista, fazia moringa, telha, essas

coisas. Meu avô também era

ceramista, mas fazia mais decoração.

Aqui era exatamente com essas

telhas. Tinha um rapaz que

trabalhava na basílica e era o único

que arrumava esses telhados, o

Uriti”. (Cleide)

“Trabalho nesse segmento da parte

Projeto Oficina Escola há 11 anos, sou

formado em pedagogia. E só

completando uma coisa, para depois

eu entrar na parte da Oficina Escola,

o uso da cal, ela é muito importante

quando você fala desses centros

históricos de casario colonial por

muitos aspectos. Primeiro

econômico, uma lata de tinta se você

for colocar o preço entre o

rendimento da cal e de uma lata de

tinta látex, é muito mais barato,

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RODAS DE MEMÓRIAS | 89

segundo a questão da higiene. A cal é

uma tinta que mata os fungos, ela

permite a entrada e saída da umidade

então a questão higiênica conta

muito em relação a uso da cal. Pra

mim, claro que tem pessoas que não

concordam, eu gosto muito da

textura da aplicação da cal, dá uma

textura diferenciada, uma coisa

muito bonita. Hoje a gente utiliza a

questão da cal hidratada que é

industrializada, a gente já compra

com aditivos e coisas do tipo, tem

também no mercado a questão da cal

virgem que é aquela que você

prepara, têm que ter toda a espera do

tempo de cura dela para você

utilizar”. (Emerson)

As Casas

“Todas as casas tinham horta, pé de

cebolinha, alfavaca, coentro e

salsinha, pés de tomate e árvore

frutífera, goiabeira, abacateiro, fruta

do conde, limão. Tinha muita

daquela ameixa amarela. Era na areia

branca, enterravam o lixo orgânico e

cobria, depois jogava aquilo para

adubar. Eles adubavam também com

aguapé. Usava-se muita pimenta

como tempero, hortelã pimenta. Eu

fiquei viúva muito cedo, tinha quatro

filhos na faculdade, fui trabalhar em

uma empresa para sustentar minha

família. Hoje trabalho com arte, com

pesquisa, amo ficar pesquisando.

Acabei de fazer um projeto para o

Morro do Bacharel. Alguém aqui

falou que não sabia o porquê da

Estrela de Davi nas casas, eu acabei

vendo em um estudo da USP que

existe uma hipótese de que Cosme

Fernandes era judeu, por isso ele

teria sido desterrado em Portugal”.

(Cleide)

“O professor Paulinho e o Seu Lucio

falaram da questão das paredes

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

90 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL

divisórias. Geralmente você vai

identificar as paredes da casa dessa

maneira: as estruturais são as quatro

paredes que vão sustentar o peso da

casa, elas tem uma característica um

pouco mais larga até chegam a ser 1m

e 1,5m e 2,0m de espessura para

aguentar a carga. Para as paredes

internas eles utilizavam muito a

questão do sopapo, como o professor

citou que é o entrelaçado de cipó e

bambu, eles chapavam o barro, por

isso que a questão do sopapo, fica um

de cada lado, eles chapavam o barro,

tudo isso ao mesmo tempo. O

acabamento eles davam não só por

questão estética, mas sim por

questão de você manter também toda

essa estrutura, de você dar uma

sustentabilidade maior pra essa tua

construção. As paredes não ficavam

sem revestimento porque tinha essa

necessidade da proteção. Hoje em dia

a gente vê muitas casas com paredes

aparentes, muitas delas sem um

tratamento e isso está incorreto,

porque é legal, bonito, esteticamente

bacana. Mas pra você ter isso, pra

você manter e preservar tem que

fazer um tratamento. Ai o Toninho,

ele esteve aqui com a gente falando

um pouco de o que se utilizar, tem

pessoas que utilizam a resina. Ele

fala que a própria água da cal que é

aquele cristalino que a cal libera,

aquele produto seria importante você

aplicá-lo borrifando-o nessa parede

que vai estar aparente, porque ela

cria essa película de tratamento na

parede propriamente dita”.

(Emerson)

Sambaquis

“Só que essas construções aqui na

parte do litoral, as pessoas

construíam muito com os sambaquis,

que são aquelas conchinhas. Como

eles utilizavam isso ai? Eles

esmagavam todas essas conchas para

utilizar aquele pó. Se vocês

repararem em muitas dessas

construções que a gente tem de pedra

argamassada, vocês vão ver que um

pedaço delas tem carvão, outras a

concha toda inteira. Isso por quê?

Porque eles faziam aquela grande

pilha de concha, revestiam toda de

madeira em volta, colocavam fogo.

Porque o fogo, fazia o quê? Ele

trabalhava todo o processo do

sambaqui, derretia aquilo ali e

quando eles fossem para amacetar,

para triturar, ela fica muito mais

mole e eles aproveitam aquele pó.

Então quando eles vão fazer essa

peneiração, vinham alguns pedaços

de carvão que tinha usado. Porque

eles tinham uma necessidade de

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 91

construção, até mesmo por conta de

se proteger de chuva, sol, todo esse

tipo de coisa que hoje em dia

também temos essa necessidade. Só

que eles iam fazendo os testes. E eu

vou lá pegar, vou utilizar o que eu

tenho, a pedra argamassada com o

barro. Legal, só que não deu certo,

começou a cair, a trincar. Aí vou

atrás da areia que tem um pouco

mais de argila, não deu certo, tá

caindo. Então eles vão procurar o

que? Os aditivos, primeiro o

sambaquis que eles tinham muito ali,

essas conchinhas todas e depois disso

eles utilizavam muito o óleo de baleia

que era o que eles tinham na época.

Para quê? Para dar toda essa liga

para a massa, ela tinha um pouco

mais de sustentabilidade para

manter uma estrutura que fosse de

grande necessidade”. (Emerson)

Projeto Oficina Escola

“A gente tem a cal com essa principal

característica de proteção do imóvel,

e é difícil você colocar isso na cabeça

do morador, das pessoas que a gente

vê ai querem ter uma coisa mais

moderna, acompanhar a questão da

textura. É todo um trabalho, um

processo que a gente faz através do

Projeto Oficina Escola, é claro que

principalmente a prefeitura. Você

sente que o morador se preocupa

mais, está procurando os

responsáveis, as pessoas perguntam:

posso fazer isso, não posso, como

funciona, por quê? Porque o jovem,

principalmente o jovem que trabalha

com a gente, acaba se tornando o

próprio agente do seu próprio

patrimônio. Porque imaginem vocês:

um dia desses de sol, vocês ali na

fachada fazendo todo um trabalho e a

meninada, com o capacete e bota que

eles não gostam, brigam bastante pra

não usar, mas utilizam. E aí estão

passando ali a noite e vê um

camarada pichando, vão brigar com

certeza e vão pra cima mesmo. Então

acho que essa é a importância de

você desenvolver o trabalho e ter essa

questão da conscientização,

principalmente dos próprios

munícipes. Dentro disso, a gente tem

que mostrar pra eles qual é a técnica

mais apropriada que esta sendo

utilizada, e pra mim não tem

material melhor pra você trabalhar

com esse casario do que a cal, não

tem mesmo. Dizem: Ah, mas a cal,

ela não da firmeza para parede, o

reboco não vai ficar tão bom!

Engana-se quem pensa dessa forma,

a partir do momento que você

respeitou todas as técnicas, que você

respeitou todos os períodos dessa

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92 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL

construção, que você soube trabalhar

com as medidas tudo certinho, você

tem um trabalho para anos e anos. A

Oficina Escola veio pra cá na época

do Ariovaldo, o Carlinhos foi um dos

grandes idealizadores do projeto, foi

quem realmente foi atrás. Então

conseguiu implantar o projeto aqui

se não me engano no final de 2005

pra 2006. No início nós

trabalhávamos com turmas de 50

alunos no período da manhã, 50 no

período da tarde, tínhamos duas

oficinas, a de pedreiro e pintor

restaurador onde o laboratório era o

próprio centro histórico. Os alunos,

eles podem vivenciar e trabalhar as

técnicas aprendidas em sala de aula.

Porque antes do início da prática eles

têm todo um aparato teórico, uma

questão teórica que eles têm que

conhecer, noções de cartas

patrimoniais, conhecimento dos

órgãos propriamente ditos, o que é o

IPHAN, o que é o CONDEPHAAT, o

Conselho Municipal, qual a

importâncias de cada órgão. Então

toda essa questão teórica é passada

para os alunos antes mesmo deles

colocarem o pé na rua, segurança no

trabalho e qualquer coisa nesse

sentido. Os resultados sempre foram

muito positivos em relação ao centro

histórico de Iguape, até mesmo

porque o espaço que foi cedido pra

gente desenvolver as atividades teve

o apoio total dos moradores,

principalmente da parte da

prefeitura, e a força de vontade do

pessoal, dos alunos. Eu falo que é

impressionante porque realmente

quando eles querem fazer, se

apropriam daquilo e fazem com que a

coisa aconteça e querem cada vez

mais se aprofundar, querem

conhecer e vão atrás e pesquisam.

Então isso foi muito importante para

que até hoje a gente consiga manter

toda essa estrutura que temos em

Iguape. Hoje temos algumas outras

oficinas relacionas a questão da

Emerson

Parede de Pedra e Cal. Foto

Helena Rios, arquivo

Iphan/SP.

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RODAS DE MEMÓRIAS | 93

restauração ainda, que é o

carpinteiro, o serralheiro

restaurador, são todas oficinas

internas na nossa sede na (rua)

Major Rebelo e dentre isso a gente

tem as aulas com engenheiros,

arquitetos, historiadores”.

(Emerson)

“As técnicas são desenvolvidas a

partir da necessidade da nossa

realidade, por exemplo, aqui nós

tínhamos alguns entalhadores de

placa alguns anos atrás que até foram

embora, então existe a necessidade

de ter alguém que trabalhe com essa

questão do entalhe, até mesmo pra

dar a opção ao morador. Ai você não

tem quem faça essa questão do

suporte, aquela parte mais

desenhada, aquela coisa artística,

existe a necessidade de ter quem

trabalhe com essa parte de

serralheria. A gente vai atrás dessa

capacitação, vai formar essa mão-de-

obra. Estamos tentando, já há algum

tempo, trazer para cá a questão da

cantaria, por termos a necessidade

dessa mão de obra. Ela é escassa não

só aqui em Iguape, mas no Brasil

todo. Hoje temos um mestre canteiro

aqui em Iguape e estamos tentando

fazer com que ele dê um curso, uma

palestra, uma hora que seja, para os

meninos. É o Nilson, ele trabalha

com cantaria já faz algum

tempo.Trabalha hoje para um

advogado, ele faz trabalho particular,

e dentro disso a gente vai procurando

atender a questão da necessidade

local”. (Emerson)

“Claro, como qualquer tipo de coisa

sempre tem as dificuldades, um

morador ou outro que acaba

resistindo não fazer a intervenção na

sua própria fachada. Engraçado que

assim que nós iniciamos, temos um

roteiro que é seguido. Vamos ao

morador, pedimos autorização para

que os meninos possam realizar a

atividade, porque você não da uma

garantia de uma qualidade total, não

tem como, porque eles estão em fase

de aprendizagem, eles estão

aprimorando as técnicas, então pode

ficar muito bom como pode ficar

aquela coisa mais ou menos. Se eles

liberassem, tinham que correr esse

risco. Por ser uma manutenção fácil e

barata você tem a possibilidade de

corrigir de imediato, mas tinha

aqueles moradores que não

conheciam então tinham certa

resistência. Você fazia a casa da D.

Maria, do Seu João pulava, fazia de

não sei quem. Iam ficando todas

bonitas, todas legais. Depois aquele

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

94 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL

que não quis ia correndo atrás pedir

para fazer a dele. Eu procurei sempre

passar isso para os meninos porque é

uma forma de um reconhecimento da

atividade deles. Hoje a gente já

formou algumas dezenas de alunos,

alguns alunos que passaram na nossa

mão, hoje você escuta falar que está

em Curitiba em uma construtora, que

só aceitou o currículo dele por conta

de já ter passado na Oficina Escola.

Você vai escutando um que se

formou esses dias e te chamou pra ir

à formatura, fez arquitetura, você vai

escutando essas histórias e você vai

vendo. É um trabalho que realmente

vale muito à pena, mostrar para as

pessoas a conscientização do

patrimônio”. (Emerson)

Foto: Leonardo Falangola.

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RODAS DE MEMÓRIAS | 95

Águas de Iguape

Em 24 de setembro foi realizada a última Roda de Memória cuja temática buscou

ouvir e registrar as histórias relacionadas ao Rio Ribeira, à navegação, pesca e ao

lagamar. Em uma cidade cercada de águas doces e salgadas seria impossível

pensar que o cotidiano de vida não passasse por alguma história de pescador ou

de barqueiro. Com o fim das atividades portuárias em Iguape, muitas destas

histórias da navegação não são do conhecimento das gerações mais novas.

Buscou-se por meio desta Roda de Memória trazê-las à tona novamente.

Convidados:

João Xavier, mestre de embarcação da Sorocabana.

Felix Veiga do Nascimento, condutor de embarcação da Sorocabana.

Antonia Rosa Waldhehm, filha de condutor de embarcação da

Sorocabana.

Aparício Muniz Ribeiro, pescador do Rocio.

Eliel P. de Souza, biólogo, pesquisador do ICMBio.

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96 | ÁGUAS DE IGUAPE

1839 – Inicio oficial na

navegação fluvial no Brasil

1844 – Iguape recebe a

primeira linha de vapor

regular, o Vapor Voadora

1857 – Fundação da

primeira companhia de

navegação fluvial da região

1906 – Criação da Agência

de Colonização e Trabalho

1913 – Fundação da Vila

do Jipovura por

imigrantes japoneses que

passaram a se dedicar ao

cultivo do arroz

1916 – Fundação da

Companhia de Navegação

Fluvial Sul Paulista, a mais

importante que atuou em

Iguape

1955 – Encerramento das

atividades da Companhia

Fluvial Sul Paulista em

Iguape

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RODAS DE MEMÓRIAS | 97

Trabalho na Sorocabana

“Eu nasci no município de Cananéia

e de lá sai com 23 anos, casei e vim

pra cá, fui convidado para trabalhar

na Sorocabana. O trabalho de

condutor constituía em viajar, sou

mestre, então pegava a embarcação e

saia daqui até Cananéia, de Cananéia

até Ariri, Maruja, Paranaguá,

Ararapira, Guaraqueçaba e assim é

que me aposentei com trinta e

poucos anos. Nas viagens eu saía

daqui meio dia e ia pousar em

Cananéia, descendo e embarcando

passageiros, de lá nos pousávamos

em Cananéia e no outro dia, seis

horas, saiamos com destino a

Paranaguá, também deixando

passageiros e pegando por toda a

baia de Cananéia. Entravamos no rio

Ariri e ia até o canal do Varadouro e

seguíamos, embarcando e

desembarcando, carga e descarga,

porque todo passageiro levava sua

carguinha, compras que faziam por

aqueles lados. Então a gente chegava

cinco horas, cinco e meia, seis horas

em Paranaguá, pousava e ficava o

outro dia inteiro no porto de

Paranaguá para carga e descarga.

Daqui levava bastante carga, nos

puxávamos a esteira de piri pra fazer

forração para o navio no posto de

Paranaguá e lá ficávamos 2 dias, nos

ficávamos um dia inteiro e no outro

dia de manhã saíamos e vínhamos

para pousar em Cananéia

novamente. Depois nos íamos

continuar a viagem até Iguape pra

trazer a carga pra Registro, toda essa

beira de Ribeira aqui. Então eu

viajava daqui a Paranaguá, mas tinha

outro mestre igual o Felix que viajava

também comigo para Paranaguá,

quando eu faltava ele entrava e daqui

nos íamos para Registro levar carga,

e de Registro até Juquiá, de Juquiá

nos puxávamos pra IBC (Instituto

Brasileiro do Café) fardos enormes

de 400 kg, nos embarcávamos pra

descarrega aqui, e depois

carregávamos pra descarrega lá no

porto de Paranaguá e assim me

aposentei com trinta anos. Eu

gostava muito desse serviço, senti

muita falta quando me aposentei”.

(João)

“Eu moro no Bairro do Engenho, sou

uma pessoa bastante conhecida aqui

em Iguape, apesar de não ser nascida

aqui, eu nasci em Barra Bonita e com

sete anos vim morar em Iguape. Meu

pai foi transferido pra cá para

trabalhar na antiga Sorocabana no

dia 13 de agosto de 1951. Nessa época

Iguape era muito pequena, não tinha

movimento, meu pai veio só para

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

98 | ÁGUAS DE IGUAPE

aposentar depois de algum tempo,

mas continuou trabalhando. Meu pai

viajava assim como seu Felix,

também conheceu bastante dessa

costa. Eu me considero mais

iguapense, aqui eu vim, aqui eu

cresci, estudei um pouquinho porque

naquele tempo não tinha muita

necessidade, apesar dos meus pais

incentivarem. Eu me casei aqui em

Iguape, meu marido era do Rio de

Janeiro, ele era oleiro, trabalhava em

olaria na época, eu também trabalhei

muito em olarias, fiz tudo na vida,

trabalhei em olaria, trabalhei em roça

ai casei e fui morar no Rio Pequeno,

não tem aquela ponte pequenina lá,

então de lá eu vim em engenho,

cheguei aqui no comecinho da

estrada e agora já tenho raiz e num

saio mais”. (Antonia)

Dificuldades no mar

“Tem trechos entre o Paraná e São

Paulo que, quando viajávamos para

Paranaguá, dependendo do tempo

não podíamos atravessar na baía, a

baía com duas horas de extensão,

quebra mar pra cá, quebra mar pra

lá, lugar baixo que não pode passar,

tem que passar só pelo canal mesmo.

Então a gente já sabia daquele local

ali , quando o mar estava muito

bravo a gente parava em algum rio

por ali e dai nos jogávamos os ferros

e ficávamos e lá e dormíamos, as

vezes a noite inteira com o balanço

do mar, muitos passageiros

dormindo ali, muitos no porão da

lancha, muitos em cima porque não

tinham cômodos. Os cômodos eram o

convés e a cama dos tripulantes, eu

pelo menos diversas vezes dei a

minha cama para algum passageiro

dormir, ficava acordado e dava a

cama pra alguém. Quanto à serração

a gente ia por cálculo, tinha bússola,

mas não se enxergava nada, fazia

tudo por cálculo, tudo na base do

cálculo, fazia com tempo bom daqui

até tal lugar tantos minutos, a gente

marcava a direção. Saíamos de

Aparício e Antonia

Felix e João

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 99

Cananéia até o Mar Pequeno, isso

dava uns 15 minutos, por exemplo,

daí mais 25 minutos até a Barra de

Cananéia, de Cananéia uma hora e

quarenta e cinco minutos até Ilha, de

lá tantas horas. A gente ia fazendo

cálculos. Para Paranaguá eu ia por

dentro do canal, pegava na Ilha do

Cardoso, Ilha do Cardoso pra

esquerda, nos entravamos no barco

em Ararapira, entravamos pra direita

até o Canal... Ai seguíamos pra

passar pra Paranaguá. Era difícil,

mas vencíamos. Eu me lembro de

uma história interessante de

passageiro, tem até fotografia em

livro, um rapaz que caiu na água com

duas senhoras dentro da canoa, ele

caiu na água e foi segurando na

borda até a polpa, dai nos com a um

bambu comprido demos para ele, ele

segurou e nos puxamos até encostar

no barco pra subir em uma escadinha

pra dentro da embarcação. Comigo

foi só essa vez que aconteceu de cair

gente na água, mas com os outros

mestres não sei”. (João)

Último vapor

“Tinha o vapor, o último vapor era o

Bento Martins, então ele ia para

Registro na festa de agosto e trazia a

imagem, a gente esperava no porto

todo embandeirado na festa, a banda

tocava. Era muito bonito e eu me

sentia feliz porque sabia que tinha

alguma coisa minha ali também. Eu

conto para os meus netos e eles falam

‘conta mais’, mas a gente não lembra,

mas mesmo assim vai contando e é

muito bom, eu acho que temos que

passar para eles o que a gente viveu,

o que a gente conheceu, o que foi a

infância da gente pra eles

entenderam um pouco, mas pra mim

foi muito bom”. (Antonia)

Iguape nos anos 1940

“A locomoção do povo do sitio e das

mercadorias se dava por navegação,

não tinha estradas como hoje em dia

tem, aqui no nosso município era só

canoa e embarcação, hoje nem canoa

não tem mais, hoje só tem ônibus,

tudo mundo vai de ônibus. Pra vir de

onde eu morava tinha que ser de

manhã, dormia aqui e só voltava no

outro dia. Hoje ele vem de manhã

comprar pão e já volta pra comer, a

facilidade como ficou. Então ficou

fácil a coisa de certo jeito, mas na

condição monetária da população

não ficou, é difícil porque até o

pescado sumiu. Antigamente era

cheio de peixe ali, hoje não tem, eles

tem que ir busca em Cananéia

porque não tem peixe aqui”. (Felix)

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

100 | ÁGUAS DE IGUAPE

Navegação no Ribeira

“Começando na zona rural, no

Peroupava do tempo das bananeiras,

lá entravam dois barcos por semana

e levavam bananas do Peroupava pra

Santos, pra Argentina. Mais de trinta

barcos que puxavam banana, naquele

tempo a barragem era aberta e não

enchia Iguape. Para mim não sei,

posso estar enganado, mas vai ser

um desastre para o município de

Iguape essa comporta na barragem,

pra mim vai ser um desastre porque

eu conheço o município de Iguape.

Daqui de Iguape nos conhecemos até

Eldorado Paulista pelo rio. Todas

navegações que levavam

embarcações carregada de

mercadoria até Eldorado”. (Felix)

Jipovura

Quando a colônia japonesa veio aqui

para o Brasil, para São Paulo, eles

escolheram Registro, eles foram se

distribuindo para as colônias de

japoneses. Alguns japoneses que

escolheram o Jipovura pra se colocar

fizeram uma vila ali, lá já foi um

lugar de farmácia, teve correio, tinha

loja que aqui em Iguape não tinha. O

que tinha lá no Jipovura não tinha

aqui, tinha engenho de beneficiar

arroz, iluminação na vila de

Jipovura, tinha um medico”. (Felix)

Pesca

“Fiquei em Sorocabinha até 20 anos,

ai depois eu sai e fui trabalhar de

cobrador de ônibus na 9 de julho.

Mas foi pouco tempo, depois voltei a

pescar a manjuba no Sorocabinha. O

meu tio fez um cerco, ele tirava o

peixe com essa rede de manjuba.

Uma vez ele tirou meio alqueire com

aquela rede de manjuba de dentro do

cerco. Veio na cidade e pegou uma

rede de manjuba pequena, com trinta

braças de cumprimento e começamos

a trabalhar. Meu Deus! Aquilo era

tanta manjuba que nós limpamos a

área, era manjuba para fim de

mundo. Minha vida foi só pesca e

pesca, mas naquela época tinha

muito peixe e era muito fundo o rio.

Eu brincava com meus primos de

fincar uns bambus no meio do rio e

esses bambus tinham tamanho de

um poste. Ai, nós íamos para o meio

do canal e sobravam dois metros. A

gente fincava o que dava para fincar e

saia. Quando olhávamos para trás,

víamos aqueles bambus pulando,

porque o ar jogava para cima. Essa

era a brincadeira nossa e minha vida

foi assim [...] depois eu vim morar

em Iguape. Me casei em 1964 e, em

1967, vim morar para cá. Minha

família ficou no sítio. Depois voltei

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RODAS DE MEMÓRIAS | 101

para o sítio de novo em 1994, mas

nessa época meus filhos já estavam

todos criados. Conheço todo esse mar

que tinha tanta fartura! Esses

robalões, a gente corria deles.

Quando terminava a manjuba, no

mês de março, a gente começava a

pescar robalo. Era tanto robalo que

eu saia de manhã e levava uma

marmita para comer. Já levava o

camarão e o assado e deixava do lado

da canoa. Aí nos ficávamos em um

ponto único e, quando a maré

começava a subir, começava a pegar

robalo. Quando olhava o canal estava

alastrado de robalo. Mandava robalo

para São Paulo, dez, doze quilos de

robalos, porque robalo de quilo para

cima era robalo. Eu me lembro de

uma vez que meu pai fez um cerco lá

no sítio, mas naquela época não tinha

muito para quem vender, porque o

mercado era fraquinho e vinham

muitos vendedores de peixes, nós

fomos no cerco e não se enxergava a

água, era só peixe!! Ele pegava os

peixes especiais, que eram as tainhas

de ovas, jogava nas costas e vinha

vender para os de colarinhos duros.

Ia de casa em casa para vender e o

resto dividia com a vizinhança e,

também, tinha outra coisa, ninguém

tinha geladeira, era tudo salgado o

peixe, então eles colocavam em cima

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102 | ÁGUAS DE IGUAPE

do fogo e comia o peixe seco.

Acabava aquele tanto e fazia a

mesma coisa, durante a vida inteira

era assim. Uma coisa linda do

mundo, a gente era feliz e não sabia,

você achava ruim, mas tinha tudo,

você plantava mandioca, plantava

batata, plantava tudo e dava em

grande abundância, a gente até vinha

vender na cidade. Laranja, mexerica,

o pé ficava que ficava forrado no

chão, trazia a granel e jogava na

canoa para vender aquela cuia. Não

se vendia por peso e nem por dúzia,

você enchia aquela cuia e dava para

ele levar e era o que, um real, dois

mil réis. Era assim, tinha tudo em

fartura, o nosso mundo era assim

maravilhoso, teve muita coisa para

nós”. (Aparício)

“O pessoal do sitio tem até muita

curiosidade, hoje quando você quer

fazer uma linha de pescado, você

compra o tipo de linha que você quer.

Naquele tempo não tinha essa

facilidade. Sabe do que se tirava a

linha para fazer uma corda? Da folha

do tucum4, alguns não conhecem,

você tirava a folha do tucum, daquele

linho e a pessoa fazia um

cordãozinho, depois chegava as duas

4 Tucum é uma espécie de palmeira existente na região litorânea

pontas e torcia um no outro. Você

pegava na perna e fazia assim, ele

ficava torcidinho como se tivesse

comprado na loja”. (Felix)

Canoa a Vela

“Eu fui a ultima pessoa a pescar com

aquela canoa a vela, nos usávamos a

vela, não era só eu não, todo o povo

da Ribeira tinha a vela. Vinha para a

cidade, por exemplo, se era vento sul,

vinha de lá. Ou se vinha a remo, a

vela vinha na canoa. Agora mesmo, a

pouco tempo aqui no Rocio, eu

andava a vela. Eu ia lá para o Icapara

pescar com rede grossa. Quando

chegava na hora de vir embora,

levantava o motor, arrumava a vela e

vinha, passava esse canal do mercado

e ia embora para lá. A vela era de

pano, às vezes comprava saco de

trigo que tem na padaria ou então,

esse algodão que vende na loja de

roupa. Aí, você tira a medida

certinho, tem o mastro, tem a verga,

tem o retranca, tem um punhado de

nome lá que tem nela. A gente arma

ela, faz um furo no banco e, lá

embaixo, tem um lugar de segurar o

pé dele e segurar na corda guiando

com o remo. E assim vai, deixa que o

vento levar”. (Aparício)

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RODAS DE MEMÓRIAS | 103

Fandango

Eu era curioso, eu ia em um

fandango, em vez de fazer outra coisa

eu ficava em cima do violeiro

escutando o que ele cantava, via o

jeito que ele tocava, o jeito que ele

afinava a viola. E assim foi indo, com

12 anos eu tinha um tio que era um

dos melhores tocadores de viola e

cantava muito bem. Eles iam para

casa do meu avô, ia almoçar na casa

do meu avô e chegava a hora de

almoçar, eu pedia para ele afinar a

viola e deixar na cozinha. Então tinha

de fazer farinha, eu sentava no cocho

e ficava lá na viola. Eles iam dormir

para sala e para o quarto e eu ficava

sentado o cocho malhando para

aprender. Isso com 12 anos de idade.

Depois, com 15 anos eu já sabia tocar

viola, só que eu não tinha autorização

para pegar a viola em um baile e,

naquela época, tinha que o sujeito

que se metesse a intruso, ele levava

cascudo. Podia ser quem fosse, o pai

da gente não deixava. A gente não

podia se meter na roda dos mais

velhos de jeito algum, só se fosse

chamado. Eu fui pegava uma viola,

de segunda ainda e não podia cantar

de primeira. Tinha que acompanhar

o outro, isso com 17 anos. Com 17

anos que eu fui começar a tocar viola.

Eu me lembro de uma noite, eu era

fissurado nos bailes não tinha um

fandango que eu não fosse. Chegava

no sábado, eu ficava louco. Ai uma

noite que teve um baile lá na Ilha

Grande, longe pra caramba, não era

na nossa vizinhança, era em outra

comunidade, eu falei para o papai e

ele disse: ‘lá você não vai’. Eu falei

para mamãe e ela disse: ‘deixa que eu

dou um jeitinho para você, eu vou

arrumar a sua roupa e colocar em um

baú’. Tinha um baú para colocar

roupa porque na época não tinha

guarda-roupa. ‘Eu vou passar sua

roupa, você janta e vai dormir, dai

quando estiver todo mundo deitado

você levanta, veste a roupa e vai, mas

no outro dia você tem que estar aqui!’

Aí eu fiz isso, quando eles se

aquietaram para dentro do quarto, eu

dormia na sala e, quando eles se

aquietaram, me levantei, peguei a

bicicleta e sai no mundo. No outro

dia quando começou a amanhecer, o

galo começo a cantar, eu espichei de

lá, cheguei em casa, empurrei a porta

e coloquei a bicicleta para dentro.

Voltei para cama e deitei, nunca que

papai ficou sabendo!” (Aparício)

O Estuário

“Então a nossa cidade, Ilha

Comprida, Cananéia, Paranaguá,

Guaraqueçaba, estão em uma região

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

104 | ÁGUAS DE IGUAPE

que se chama zona costeira. Quer

dizer, é uma porção de terra que esta

próxima do mar, essa região sofre

influência física, química, biológica

da vida, dos fenômenos que

acontecem no mar e dos fenômenos

que acontecem em terra. É uma

região de transição, ela é terra e água,

tem horas que estão inundadas

outras que está seca. Essas regiões,

por exemplo, são denominadas

estuários. Essa palavra quer dizer

berçário ou alguma coisa assim, que

desde o inicio já sabia a função desse

tipo de ambiente, como um ambiente

de criação de vida, onde muitas

espécies acabam preferindo se

reproduzir e isso que da de certa

maneira o valor do estuário, e o que é

um estuário? Estuário é como se

fosse um pedaço de mar que fica

cravado dentro da terra, aberto que

permite a circulação de água do mar,

que permite a entrada e saída da

água do mar e, ao mesmo tempo,

essa região que recebe água que é

drenada no continente. Então vem

água do rio, essa água do rio de

mistura com água do mar e dá um

ambiente diferenciado. Essa mistura

varia ao longo do dia, ao longo do

ano, dos anos, de décadas e de

centenas de anos. O que influencia

essa mistura? Essa mistura é

influenciada por algumas coisas, por

exemplo, o relevo de fundo dessas

planícies, os canais, o fato de o lugar

ser fundo e depois não ser mais e isso

vai moldando as dinâmicas das

águas, a força das águas dos rios que

chegam. Se é um rio grande ou se é

um rio menor, que dependendo da

época do ano está seco, isso também

influencia nessa mistura. Outra coisa

importante é a dinâmica das

correntes de maré, com elas entram,

por onde elas entram e isso também

varia ao longo do dia, maré cheia,

maré seca. Então o movimento das

Mapas da Comissão Geographica e

Geológica, de 1914.

Page 105: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

RODAS DE MEMÓRIAS | 105

águas dos rios, o movimento das

marés, o relevo de fundo dá a

característica desse estuário. Tem

outro tipo de ambiente que é

chamado laguna. As lagunas são um

pouco mais abertas, a água doce

desce por vários riozinhos. Então a

gente tem aqui até ao longo de

Paranaguá um misto dessas duas

coisas, por isso que eles dão o nome

de sistema estuarino-lagunar, que se

comporta como cada uma dessas

coisas, ou estuário ou uma laguna.

Essa mistura que acontece nos

estuários e essa variação, ela é

sentida principalmente por essa

umidade, às vezes você tem um

estuário que as águas não se

misturam direito, é como se a água

salgada fosse um pouco mais densa e

ela ficasse mais no fundo e a água

doce ficasse mais para cima da

coluna d'água. A gente brincava

muito no vale, nadando e a gente

percebia isso nadando: você

mergulhava e de repente a água

esfriava, você sentia isso. É o que

chamamos de cunha salina, o fato é

que essa mistura de água propicia

uma condição de vida boa a uma

gama de espécies marinhas e as que

vivem no rio que vão para essa região

buscando condições para reprodução

ou para sobrevivência da espécie. As

diferentes espécies têm diferentes

comportamentos em relação ao

ambiente estuarino, hoje tem peixe

de rio que desce e às vezes frequenta

estuário. A gente tem peixe marinho

do oceano que passa algum tempo

aqui, por exemplo, a pescada

amarela”. (Eliel)

Construção da barragem no

Valo Grande

“Na década de sessenta alguns

pesquisadores, planejadores, pessoas

que trabalhavam para o Estado,

estudaram bem quais eram os

impactos do Valo Grande e na década

de setenta eles decidiram intervir

pensando em fazer aquele ambiente

estuarino voltar a ser como era antes

da abertura, ou seja, que a água

salgado pudesse entrar, tirar um

pouco da água doce. Eles conheciam

estuário de outros lugares e sabiam

que esse estuário era lugar altamente

produtivo em termos de

biodiversidade. Na década de setenta

eles construíram essa barragem (em

1978) e então a água doce deixou de

passar e começou a fluir pelo rio e

isso alterou tudo. Em 1983 deu para

sentir o drama que foi essa barragem,

porque apesar dela permitir a água,

ela fechou a passagem do rio. E o rio

foi obrigado a caminhar por onde ele

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

106 | ÁGUAS DE IGUAPE

caminhava antigamente, só que o

caminho dele já tinha mudado por

causa da ocupação, do assoreamento

e porque também passava pouco rio

por ali e, de repente, teve que passar

bastante. O que aconteceu? Essa

água tinha dificuldade de seguir para

a Barra do Ribeira, encheu e causou

muitos danos, catástrofes aos

bananeiros. Eles foram basicamente

dizimados, em 1983”. (Eliel)

“E com a barragem, tem que tragar o

rio Ribeira até a Barra da Ribeira pra

dar vazão para o rio e não inundar.

Isso é uma coisa impossível que o

município de Iguape não tem o que

tira daqui para o Governo gasta um

dinheiro desse absurdo, isso não vai

acontecer! No meu entender o

Governo vai gastar uma fábula de

dinheiro na barragem do rio Ribeira

e não vai resolver. Para mim eles

estão falando uma coisa que não

pensaram bem, houve um estudo,

mas não houve um estudo com quem

conhece o município, a situação do

município e do rio, eu não sei, mas

para mim vai ser o maior atraso

deixar fazer essa barragem aqui,

prova é que aquela tranqueira de

madeira, que não sei como vão tirar,

que encostou naquela barragem, até

pra abrir a comporta vai ser difícil e

pode levar o município pra breca,

porque a água vem de lá e vai ser um

perigo aquilo lá, eu sou favorável que

essas pessoas voltassem atrás e não

fechassem essa barragem”. (Felix)

“Uma vez eu escutei uma conversa no

bar que teve uma reunião em

Cananéia. Diziam que ia ser feito um

processo em Iguape, ia ser feito uma

comporta, ia ser fechado ali, ia ser

feito um muro de contenção nos dois

lados do Valo Grande, para então ser

feita a dragagem do Ribeira, ribeira

abaixo e ribeira acima, o valo grande

e o mar pequeno. Daí eu falei que

quero viver para ver, porque isso não

vai acontecer. Porque tem uma

musica de Milionário e Jose Rico que

canta assim: ‘Em cima da terra, no

fundo mar existe um tesouro para a

gente desfrutar” e o político faz isso

aqui embaixo da terra e no fundo do

mar, não se gasta dinheiro porque

ninguém vai enxergar”. (Aparício)

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PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 107

Práticas em Educação Patrimonial

Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

108 | TRABALHO COM TEXTOS

TRABALHO COM TEXTOS

Proposta

Trabalhar com os trechos da obra

de Albert Camus: o livro “Diário de

viagem” e o conto “A Pedra que

Cresce”, do livro “O Exílio e o

Reino”.

Objetivo

A atividade busca, partindo da

leitura e interpretação do texto, se

apropriar desta importante fonte

de literatura estrangeira, que tem

em Iguape sua inspiração,

trabalhando articuladamente os

conteúdos de História, Geografia,

Literatura, Biologia, Matemática e,

portanto, temáticas da cidade, sua

história, natureza e cultura, temas

afetos ao patrimônio cultural.

Atividade.

a) Preparação inicial.

Para iniciar os alunos na leitura, é

importante antes situá-los em

relação ao autor, quem ele é, sua

importância na literatura, quando

escreveu o texto e as suas razões:

porque vem a Iguape, o que ele

procurava aqui?

Justificativa: a escolha do texto

Em agosto de 1949, o importante escritor

francês August Camus, prêmio Nobel de

Literatura de 1957, encontrava-se em

viagem pelo Brasil e resolveu ir a Iguape

para acompanhar a Festa do Bom Jesus.

Camus foi autor do famoso livro “A Peste”,

considerado sua obra prima. Nasceu em

1906, na Argélia sob o domínio francês,

militou no Partido Comunista, que depois

deixou, mudando-se para Paris aos 27 anos

de idade.

Realizou uma série de viagens, em 1946 foi

aos Estados Unidos e, em 1949, à América

do Sul, incluindo o Brasil. Do registro

destas andanças nasceu o livro “Diário de

Viagem”, onde o autor vai abordar suas

impressões sobre os aspectos da vida

brasileira. Retiramos alguns trechos deste

livro, em particular os que retratam a

viagem de São Paulo para Iguape, na qual

ele foi acompanhado pelo escritor

modernista Oswald de Andrade e de seu

filho.

Desta viagem resultou também, em 1957, o

último conto do livro “O exílio e o reino”.

Esse conto denominado “A Pedra que

Cresce” fala da viagem a Iguape com

inúmeros detalhes, complementando as

impressões que teve sobre o contato com o

ambiente tropical e as pessoas do lugar.

Apesar de escrever sobre Iguape e sobre o

Brasil, tais textos de Camus ainda são pouco

conhecidos por nós. Vale a pena conhecê-

los melhor.

Destacamos alguns trechos que ilustram a

viagem até a cidade, as condições da estrada

e da paisagem que ele acompanhava, suas

impressões dos moradores e, por fim de um

lugar que lhe chamou a atenção especial: a

Fonte do Senhor, que virou o tema do conto

“A Pedra que Cresce”.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 109

b) Exploração do texto.

A leitura atenta com os alunos pode ser feita em uma Roda de Conversa,

ambiente que ajuda a explorar coletivamente as impressões. Pode-se criar uma

atmosfera que lembra a viagem: sons da floresta, águas do rio e mar, cheiro de

maresia. Explore cada passagem do texto: como foi a viagem? Como ele descreve

o percurso? O que ele viu que lhe chamou atenção? Como ele descreve a

paisagem? E as pessoas? E a cidade, as construções? O que fala da cultura local?

c) Atividades investigativas.

A pesquisa histórica sobre o contexto em que se dá a viagem é um passo

importante para que os alunos compreendam os detalhes. Do contrário,

eles não vão entender porque o autor vai para Iguape pela estrada que

passa por Piedade ou porque as estradas não são asfaltadas como hoje. O

que estava acontecendo no Brasil naquele momento, na história de Iguape

e de São Paulo? Camus é acompanhado na viagem de Oswald de Andrade,

importante escritor modernista. Seria recomendável uma pesquisar mais

detalhada sobre quem foi Camus para entender suas relações com

escritores modernistas brasileiros.

Proponha aos alunos, com apoio de um mapa oficial, desenhar o percurso

da viagem e ilustrar com as características que ele descreve sobre as

cidades pelas quais ele passa, as referências da paisagem, trabalhando

articuladamente, assim, conteúdos de Geografia, de História, de Ciências.

Os alunos podem remontar o percurso da viagem: quantos quilômetros

percorridos, quanto tempo de viagem em cada ponto. Podem comparar

com as distâncias e tempos de viagem que se leva hoje, de ônibus ou de

carro, trabalhando, também, os conteúdos de matemática.

Acompanhe agora os trechos de Diário de Viagem:

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

110 | TRABALHO COM TEXTOS

SAÍDA DE SÃO PAULO

“5 de agosto, 6 de agosto, 7 de agosto (A viagem de Iguape) [...] Partimos para as

festas religiosas de Iguape, mas às dez horas, em vez das sete, como previsto. Na

verdade, devemos passar o dia todo percorrendo o interior, nas estradas

esburacadas do Brasil, e é melhor chegar antes da noite. [...] A estrada, de terra ou

de pedra, está sempre coberta por uma poeira vermelha, que recobre toda a

vegetação, até um quilômetro de cada lado da estrada, de uma camada de lama

seca.” (p.99)

“Às treze horas, chegamos a Piedade, uma cidadezinha sem graça, onde somos

acolhidos calorosamente pela dona da pensão, Dona Anésia, a quem Andrade deve

ter feito a corte em outros tempos. Servidos por uma índia mestiça, Maria, que ao

final, irá oferecer-me flores artificiais. Refeição brasileira, que não caba mais e que

passa graças à pinga, nome da cachaça aqui.” (p.100)

DESCIDA DA SERRA:

“Na verdade, só começamos a descer novamente a serra no fim do dia. Tenho

tempo de ver os primeiros quilômetros de floresta virgem, a espessura desse mar

vegetal; de imaginar a solidão no meio deste mundo inexplorado, e a noite cai

enquanto nos embrenhamos pela floresta. Andamos durante horas e sacolejamos

por uma estrada estreita, entre paredes altas de árvores, em meio a um cheiro

úmido e adocicado. Na densidão da floresta correm de vez em quando pirilampos,

moscas luminosas, e pássaros de olhos vermelhos vêm bater um segundo no pára-

brisa. A não ser isso, a imobilidade e o mutismo deste mundo apavorante são

absolutos, se bem que Andrade às vezes julgue ouvir uma onça. A estrada volteia e

torna a voltear, passa por pontes de tábuas soltas que atravessam riachos. Depois,

vem a bruma e uma chuva fina que dissolve a luz dos nossos faróis.[...] São quase

sete horas da noite, estamos nisso desde as dez da manhã, e o cansaço é

tamanho[...]” (p.101/102)

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 111

TRAVESSIA DO RIO RIBEIRA DE IGUAPE

“[...] um grande rio nos obriga a parar. Sinais luminosos na outra margem, e

vemos chegar uma grande barcaça, do mais antigo sistema possível, movida por

meio de um cabo estendido entre as duas margens do rio e conduzida por mulatos

de chapéu de palha. Embarcamos, e a barcaça deriva lentamente sobre o rio

Ribeira. O rio é largo e corre suavemente em direção ao mar e à noite. Nas duas

margens, uma floresta ainda densa. No céu úmido, estrelas brumosas. Calam-se

todos a bordo.” (p.102)

“Desembarque. Depois continuamos a nos arrastar em direção a Registro,

verdadeira capital japonesa no meio do Brasil, onde tive tempo de ver casas de

decoração frágil e até mesmo um quimono.” (p.102)

EM IGUAPE:

“A própria estrada agora é de areia – ainda mais difícil e perigosa do que antes.

Finalmente, chegamos a Iguape, meio-dia. Descontando as paradas, levamos dez

horas para fazer os trezentos quilômetros que nos separam de São Paulo.

Tudo está fechado no hotel. Uma autoridade encontrada na noite nos leva à casa do

maire (o prefeito, como o chamam aqui). O prefeito nos avisa, pela porte, que

vamos dormir no Hospital.” (p.103)

HOSPITAL FELIZ LEMBRANÇA

“No hospital ‘Boa Memória’ (é este o nome), somos conduzidos pela amável

autoridade em direção a um pavilhão desativado que cheira pintura fresca, a uns

cem passos. Dizem-me que, na verdade, foi repintado em nossa homenagem. Mas

não há luz, já que a usina da região para as onze horas. Ao brilho dos isqueiros,

enxergamos, contudo, seis camas limpas e rústicas. É o nosso dormitório.” (p.103)

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

112 | TRABALHO COM TEXTOS

NA FONTE DO SENHOR (6 de agosto)

“No pequeno jardim da Fonte, misterioso e suave, com os cachos de flores de

bananeiras, reencontro um pouco de isolamento e tranqüilidade. Mestiços, mulatos

e os primeiros gaúchos que vejo, diante da entrada de uma gruta, esperam

pacientemente conseguir pedaços da Pedra que cresce. Iguape, na verdade, é a

cidade do Bom Jesus, cuja imagem foi encontrada sobre as ondas pelos pescadores

que a lavaram nesta gruta. Desde então, cresce ali incansavelmente uma pedra, que

é cortada em lascas, muito benéfica.” (p.105)

A CIDADE

“A própria cidade, entre a floresta e o rio, comprime-se à volta da grande igreja do

Bom Jesus. Algumas centenas de casas, mas de estilo único, baixas, caiadas,

multicoloridas. Sob a chuva fina que encharca as ruas mal pavimentadas, com a

multidão matizada que a preenche, gaúchos, japoneses, índios, mestiços,

autoridades elegantes, Iguape tem ares de estampa colonial.” (p.105)

A PROCISSÃO

“A multidão cresce. Alguns dos romeiros estão na estrada há cinco dias, nos

caminhos esburacados do interior. Um deles, que tem um ar de assírio, ornado de

uma bela barba negra, conta-nos que foi salvo de um naufrágio pelo Bom Jesus,

após uma noite e um dia passados em ondas furiosas, e que fez a promessa de

carregar na cabeça uma pedra de sessenta quilos durante a procissão. Mas a hora

se aproxima. Da igreja saem os penitentes negros, depois brancos, com roupas

clericais, depois as crianças vestidas de anjos; em seguida, o que poderia ser os

filhos de Maria e, ainda, a imagem do próprio Bom Jesus, atrás da qual adianta-se

o homem da barba, de dorso nu, carregando uma enorme laje na cabeça.[...] As

idades, as raças, a cor das roupas, as classes, as doenças, tudo fica misturado numa

massa oscilante e colorida, estrelada às vezes pelos círios, acima dos quais

explodem incansavelmente os fogos, passando também, vez por outra, um avião,

insólido neste mundo intemporal.” (p.106)

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 113

A VALORIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS.

Proposta

Para abordar a temática dos

conhecimentos tradicionais e do

patrimônio imaterial pode-se

trabalhar com diversos suportes,

entre eles, textos, músicas ou

entrevistas. Sugerimos uma

pesquisa no acervo da Biblioteca

da Casa do Patrimônio do Vale do

Ribeira, onde os educadores

poderão encontrar uma

diversidade de material para

embasar as atividades. Citaremos

2 exemplos de materiais que

podem ser utilizados: o livro

“Contos, Causos e Fatos da

Comunidade do Mandira” e o

folheto “Museu Vivo do

Fandango”.

Objetivo

Compreender os elementos

fundamentais que definem

algumas das comunidades tradicionais do Vale do Ribeira: os caiçaras e

quilombolas. As atividades permitem trabalhar articuladamente conteúdos de

várias disciplinas.

Justificativa

Conhecimentos tradicionais são produzidos

e geridos de forma coletiva, com base na

troca e difusão de ideias e informações, ao

longo do tempo, de geração a geração. São

produzidos no lugar em que se vive, pois as

culturas se realizam no marco de suas

territorialidades (ORTIZ, 2003). Na

sociedade contemporânea em que a cultura

se mundializou e, com isso, generalizaram-se

as referências, os gostos, os valores e os

modos de viver, contraditoriamente, isso não

significou que devem desparecer as

manifestações culturais singulares, geradas

localmente. Elas convivem e se alimentam

destes processos. São cada vez mais

essenciais para que as pessoas se

reconheçam nos lugares em que vivem.

Cultivar e garantir a reprodução destes

conhecimentos tradicionais e dessa cultura é

fundamental para garantir o princípio

constitucional de defesa da DIVERSIDADE

CULTURAL.

O patrimônio cultural brasileiro é, segundo a

Constituição Federal, formado pela

pluralidade de expressões, dos diferentes

grupos sociais e o Vale do Ribeira contribui

para a formação desta diversidade. Cabe aos

seus moradores, em primeiro lugar, se

reconhecerem como portadores desta

herança, a ser preservada e perpetuada.

Page 114: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

114 | A VALORIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS

Atividades

Os alunos, divididos em grupo, escolhem

o tipo de material que querem trabalhar.

A exploração dos materiais deve

identificar: os temas que aparecem nos

causos e contos; o que é Dança de São

Gonçalo ou a Lenda da Mãe de Ouro; de

que forma a realidade do lugar é

retratada; quais os elementos da cultura

tradicional estão presentes ali; como são

estas expressões culturais; sua

diversidade ao longo do litoral. Caiçaras

ou quilombolas? Será preciso pesquisar o

que significa cada um destes termos e

como a legislação (Decreto 6.040/2007)

define o que é uma comunidade

tradicional. Usando a definição do

Decreto, pode-se perguntar: quais os

recursos naturais que são utilizados pelos

caiçaras ou quilombolas? O que é recurso

natural?

Outras questões são pertinentes para o

estudo. Como os caiçaras e quilombolas

se relacionam com a natureza? Quais são as práticas agrícolas tradicionais? O que

é a coivara?

A pesquisa pode ser completada com outras atividades tais como: entrevistas com

moradores para coletar os causos e contos de Iguape; exploração dos textos das

Rodas de Memória; pesquisa em outros materiais da biblioteca da Casa do

Patrimônio, como por exemplo, a Agenda Socioambiental das Comunidades

Quilombolas do Vale do Ribeira (ISA, 2008), Enciclopédia Caiçara (DIEGUES,

2004).

Para saber mais...

O Decreto Federal 6.040/2007 instituiu

a Política Nacional para os Povos e

Comunidades Tradicionais.

O artigo 3o define Povos e Comunidades

Tradicionais como “grupos

culturalmente diferenciados e que se

reconhecem como tais, que possuem

formas próprias de organização social,

que ocupam e usam territórios e

recursos naturais como condição para

sua reprodução cultural, social,

religiosa, ancestral e econômica,

utilizando conhecimentos, inovações e

práticas gerados e transmitidos pela

tradição.

Para saber mais sobre o

Fandango...

O Fandango está em processo de

REGISTRO no Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

O REGISTRO é o instrumento de

proteção do patrimônio imaterial e foi

estabelecido pelo Decreto Federal 3.355

de 2003. Ele é um instrumento

equivalente ao tombamento do

patrimônio material. Informações:

www.iphan.gov.br.

Page 115: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 115

A socialização das conclusões dos grupos pode vir acompanhada da apresentação

dos causos e contos em forma de teatro, ou da representação em forma de

histórias de quadrinhos ou cartazes. O mais importante é que os alunos entendam

que, ao estudar a fundo estas culturas na escola, estão contribuindo para a sua

valorização e proteção.

Page 116: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

116 | EXPLORAR E CONHECER O PATRIMÔNIO EDIFICADO

EXPLORAR E CONHECER O PATRIMÔNIO EDIFICADO

Proposta

Para trabalhar com o patrimônio

edificado, nada melhor do que

usar como recurso pedagógico a

caminhada com os alunos para

estimular percepção sensorial,

observação e registro das

construções e do urbanismo do

Centro Histórico.

Objetivo

A atividade tem como finalidade

fomentar o exercício de pesquisa

para a construção de um

conhecimento por parte dos

alunos, a ser realizado com

autonomia.

O foco principal é aguçar a

curiosidade dos alunos e a

formulação de questões, que serão

respondidas com a realização das

pesquisas. O fundamental é que o

professor saiba que ele não

precisa dar conta de todos os

detalhes desta arquitetura e do

urbanismo, mas estimular os alunos a elaborarem as questões, buscando as

respostas na pesquisa.

Justificativa

Estudar o patrimônio edificado de Iguape é

compreender um pouco da história de

nosso estado e do Brasil. Como nos diz o

Dossiê de Tombamento do IPHAN:

“[...] Iguape é composta por importantes

casas e sobrados de pedra e cal que

remontam ao período da exploração

aurífera no século XVI, das atividades

ligadas à construção naval a partir de

meados do XVIII e da cultura de arroz

no século XIX. A Igreja do Bom Jesus de

Iguape, que atrai milhares de romeiros de

todo Brasil para a festa do padroeiro,

inaugurada em 1858, é ponto focal no

tecido construído. Sobressaem também o

Sobrado do Toledo, relevante exemplar

neoclássico e as casas da Rua das Neves, ou

do chamado Funil, o mais antigo conjunto

arquitetônico da cidade. Quanto aos

aspectos urbanos, pode-se observar

diversas características formais do

urbanismo português, tais como:

localização e escolha do sítio e sua relação

com o território, elementos estruturantes

do traçado urbano, as estruturas de

quarteirão e loteamento e o papel

importante das praças urbanas.

Page 117: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 117

Atividades

Sugere-se como percurso inicial as ruas XV de Novembro e Tiradentes, passando

pela Praça da Basílica e pelas Igrejas do Rosário e de São Benedito. Nesta

caminhada pode-se pedir aos alunos que escolham construções que eles

considerem importantes para a cidade. A cada escolha, os alunos são estimulados

a observar as cores e texturas, os detalhes construtivos (nas janelas, nas portas,

no telhado), os materiais, as formas. É de madeira, tijolo ou de pedra? Casa térrea

ou sobrado? Grande ou pequena? Antiga ou nova? Pedir que eles desenhem as

construções também ajuda a explorar os seus detalhes. Na leitura da “Roda de

Memória: Histórias de Pedra e Cal” os alunos irão encontrar elementos para

alimentar a pesquisa.

No retorno à sala de aula os alunos comparam as diferentes observações. Como o

objetivo do professor não é responder às questões, mas ao contrário, provocá-las

e, sendo assim, estimular a pesquisa, sugere-se a consulta ao folheto do

Tombamento do Centro Histórico. É possível encontrar no folheto os detalhes e

Mapa de apoio para a caminhada. Fonte: Dossiê de Tombamento do Centro Histórico de Iguape. Iphan/SP.

Page 118: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

118 | EXPLORAR E CONHECER O PATRIMÔNIO EDIFICADO

informações sobre alguns destes patrimônios tombados. Quem morou lá ou quem

construiu? Porque as construções são diferentes, algumas com uma única porta e

janela, enquanto outras têm dois andares, várias portas e janelas com sacadas?

Para trabalhar as questões relativas ao urbanismo de Iguape pode-se observar nos

percursos destas caminhadas o diferente formato das ruas na Praça da Basílica, a

forma dos quarteirões, as praças. Com auxílio de um mapa, fica mais clara ainda

esta diferença entre as ruas e a existência das praças.

Page 119: Caderno de Educação Patrimonial: Memórias Urbanas de Iguape - SP

CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 119

LINHA DO TEMPO: MEMÓRIA E HISTÓRIA OFICIAL

Proposta

Elaborar uma Linha do Tempo

cruzando as histórias de vida dos

alunos e de suas famílias com as

transformações ocorridas na

cidade. A inspiração partiu de uma

atividade proposta em uma Oficina

realizada pelo Museu da Pessoa.

Objetivo

Trabalhar com conceitos como o

de memória individual e coletiva e

sua relação com a formação de

uma história oficial da cidade e do

país.

Atividade

Preparação: corte retângulos de cartolina de duas cores diferentes e de tamanho

aproximado de 15 x 7 cm. Uma cor irá representar os acontecimentos da vida do

aluno e outra cor os fatos da vida da cidade.

Monte na parede duas linhas do tempo: na parte superior uma linha que será a da

cidade e na parte inferior a linha da vida cotidiana. As datas podem ser divididas

por década ou por ano, conforme a faixa etária dos alunos.

Distribuem-se inicialmente os cartões da cor que representa a história de vida.

Solicita-se que cada aluno escreva com poucas palavras algum fato que foi

importante para a sua vida e o ano em que ocorreu. Em seguida, ao terminar esta

Justificativa

Para Martins (1992), na história local e

cotidiana é que estão as circunstâncias da

História. Ela é constituída de fragmentos,

nos quais não estão os grandes heróis, mas

os protagonistas da vida cotidiana, das

relações miúdas do trabalhar e do viver.

Para escrevê-la recorre-se à memória de

muitos. Acontecimentos que, por vezes

parecem pessoais, são na verdade

compartilhados por muitos, pois não

estamos sozinhos. A articulação entre a

memória individual e a coletiva se impõe

para a escrita dessa história cotidiana.

Como compreender a riqueza do

patrimônio tombado sem levar em

consideração as histórias de vida, os

trabalhadores anônimos que construíram

essa riqueza, as relações sociais que as

sustentaram? Esta atividade procura

colocar o foco da história nestes

protagonistas do cotidiano de Iguape.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

120 | LINHA DO TEMPO: MEMÓRIA E HISTÓRIA OFICIAL

etapa, distribui-se o outro cartão,

com a cor que representa a história

da cidade. Solicita-se que os alunos

escrevam algo que marcou a

história da cidade, em poucas

palavras e a data do acontecimento.

Terminada esta fase inicia-se a

montagem da linha do tempo da

vida cotidiana. Chama-se cada

aluno para situar e colar o seu cartão na linha e explicar o fato brevemente.

Depois que todos colaram suas histórias, inicia-se a montagem da linha do tempo

da cidade, da mesma forma, pedindo a cada aluno que situe no tempo e explique

o acontecimento.

Percebe-se ao longo das falas, como as histórias se cruzam, a de cada um com a da

cidade. Acontecimentos podem se repetir ou se articular, um explicando o outro.

O professor observa as falas e os cartões mostrando as sequencias, as

articulações, as convergências, os encontros e desencontros. Explorando os

conceitos de que cada evento individual tem também sua dimensão

compartilhada.

Pode-se enriquecer as informações e discussão da Linha do Tempo paralelamente

a partir dos registros de fala dos moradores contida nas diferentes Rodas de

Memória.

Como textos de apoio são sugeridos os seguintes livros: “A Memória Coletiva” de

Maurice Halbwachs e “O tempo vivo da memória” de Eclea Bosi, ambos

disponíveis na biblioteca da Casa do Patrimônio.

A memória coletiva

“Nossas lembranças permanecem coletivas e

nos são lembradas por outros, ainda que se

trate de eventos em que somente nós

estivemos envolvidos e objetos que somente

nós vimos. Isto acontece porque jamais

estamos sós”. (HALBAWACHS, 2006, p.30)

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

SOBRE OS AUTORES | 121

Sobre os autores

Carina Mendes dos Santos Melo

Arquiteta graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em

Arquitetura, na área de História e Preservação do Patrimônio Cultural, também

pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi arquiteta da Superintendência

do IPHAN/SP, atualmente presta serviço à Superintendência do IPHAN/RJ.

Flávia Brito do Nascimento

Historiadora pela Universidade Federal Fluminense e Arquiteta pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui Mestrado e Doutorado em

Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Foi arquiteta da

Superintendência do IPHAN/SP, atualmente é Professora da Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP).

Simone Scifoni

Geógrafa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, Mestre e Doutora em Geografia também pela

Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de

Geografia/FFLCH/USP, coordenadora do Projeto Memórias Urbanas –

Iguape/SP. Foi técnica do IPHAN/SP.

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CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP

122 | REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Referencias Bibliográficas

FONSECA, M.C.L. O patrimônio em processo: Trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997.

IPHAN. Dossiê da paisagem Cultural do Vale do Ribeira. São Paulo: Minc/IPHAN, 2009a.

__________. Dossiê de Tombamento de Iguape. São Paulo: Minc/IPHAN, 2009b.

MACHADO, P.A.L. Ação civil pública e tombamento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.

MARTINS, J.S. Subúrbio. São Paulo: Hucitec/Ed. Unesp, 2002.

MEIHY, J.C.S. História Oral. Como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2010.

ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense,2003.

PEREIRA JUNIOR, C.A. Iguape: Princesa do Litoral, Terra do Bom Jesus, Bonita por Natureza!. São Paulo: NOOVHA AMÉRICA, 2005.

RABELLO, S. O Estado na preservação dos bens culturais. O tombamento. Rio de Janeiro: Iphan, 2009.

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Foto da contracapa: Flávia Brito do Nascimento

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Prefeitura Municipal de

Iguape