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PAULO ANTONIO DANTAS DE BLASIS A OCUPAÇÀO PRtuCOLONIAL DO VALE DO RIBEIRA DE ,IGUAPE Q 3 P: os SITIOS líTICOS DO tv~ÉDIO CURSO Mon grofia <lpr~s~ntact!l- ao curso de pôs-graduação -em Antropologia SO,dbl I '''lIÍl-.§r~a &: Arqu~olo9i6, da Facuidedt eJ~ tilosoF1&. 'li as c Ciêndu Humanas da UnivfTSidade de São P"uio, pari;! o obtenção do mulo de Mestre. Ori~nt •• dM: Dr. Uipi"no To/ec/o Blturr. ele Meneses. \2.\ Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de São Paulo BIBLIOTECA SAO PAULO 198 l3

VALE DO RIBEIRADE,IGUAPE os · PAULO ANTONIO DANTASDEBLASIS A OCUPAÇÀO PRtuCOLONIALDO VALE DO RIBEIRADE,IGUAPE Q 3P: os SITIOS líTICOS DO tv~ÉDIO CURSO Mon grofia

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PAULO ANTONIO DANTAS DE BLASIS

A OCUPAÇÀO PRtuCOLONIAL DO VALEDO RIBEIRA DE ,IGUAPEQ 3 P :

os SITIOS líTICOS DO tv~ÉDIO CURSO

Mon grofia <lpr~s~ntact!l- ao curso de pôs-graduação-em Antropologia SO,dbl I '''lIÍl-.§r~a &: Arqu~olo9i6, daFacuidedt eJ~ tilosoF1&. 'li as c Ciêndu Humanasda UnivfTSidade de São P"uio, pari;! o obtençãodo mulo de Mestre.Ori~nt ••dM: Dr. Uipi"no To/ec/o Blturr. ele Meneses.

\2.\Museu de Arqueologia e Etnologia

Universidade de São PauloBIBLIOTECA

SAO PAULO198 l3

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PAULO ANTONIO DANTAS DE BLASIS

A OCUPAÇÃO PRÉ-COLONIAL DO VALE DO RIBEIRA DE IGUAPE, SP: OSSÍTIOS LÍTICOS DO MÉDIO CURSO

Monografia apresentada ao curso de pós-graduação emAntropologia Social, sub-área de Arqueologia, da Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de

são Paulo, para a obtenção do título de Mestre.

orientador: Dr. ULPIANO TOLEDO BEZERRA DE MENESES

São Paulo ,

1988

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A Erika, Kica e Ulpi,companheiros desta jornada;

e Elu, sem a qualeste trabalho não se teria realizado.

Para que o Hexinho um dia leia, e aprecie.

-,

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Agradecer às tantas pessoas que colaboraram e ajudaram nas

diversas etapas deste projeto, em campo e laboratório, seriaimpossível. Convém destacar algumas, devido à importância que tiveram.

De início, gostaria de lembrar todo o povo do Betari, Itaoca e

Barra do Turvo, em especial o sr. Wandir, pela hospitalidade e

cooperação, assim como Ivo Karmann, Paulo C. Boggiani, Clayton F.

Lino, João Allievi e vários outros amigos, por nos apresentar à área,

e também pela ajuda em diversas etapas do projeto.

Gostaria de agradecer também ao pessoal do Instituto de Pré-História da USP, pela compreensão e paciência, em especial Denise DaI

Pino, responsável pelas ilustrações deste trabalho, e Eduardo Goes

Neves, pela atenção e a força na tipologia dos artefatos líticos. À

FFLCH-USP e FAPESP, pelo apoio institucional e financeiro, e ainda o

pessoal do CIN (FFLCH) e do CCE-USP, pela valiosa orientaçãooperacional, e colaboração.

Finalmente, quero deixar registra~a minha gratidão à Eloisinha,

minha companheira, pela infinita paciência e tolerância para comigo.

Sem ela, jamais teria sido possível concluir este trabalho.

* * *

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ÍNDICE

ApresentaçãoCapitulo I - O PROJETO DE PESQUISA

Problemática e Abordagem

Pressupostos teórico-metodológicos

Capítulo 11 - O VALE DO RIBEIRA DE~GUAPE

Características GeraisO médio Ribeira enquanto Área de Transição ambiental

A Área-piloto de Atuação do Projeto

capitulo 111 - O CONTEXTO ~QUEOLÓGICO DA PESQUISAPesquisas no Interior do Vale do Ribeira

O Contexto arqueológico regional

A ocupação pré-colonial do litoral

A ocupação pré-colonial do I'la~-:lto

As Relações entre Planalto e Litoral

capitulo IV - PROCEDIMENTOS E ENCAMINHAMENTO DA PESQUISALevantamento inicial da Área

As informações coletadas nos sitios

Segunda etapa de Investigação

Encaminhamento da PesquisaCapítulo V - OS SÍTIOS LÍTICOS

Distribuição e Denominação

A amostra de sítios

Estado de conservação

Implantação

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Forma e Dimensões

Estratigrafia

Frequência e DensidadeSítios líticos a céu aberto: urna tipologia preliminar

Os sítios em gruta

capítulo VI - A INDÚSTRIA LÍTICAcritérios e Metodologia

As variáveisA Amostra

Matérias Primas

Núcleos e Percutores

Lascas

Artefatos

Características funcionais

Tecnologiacapítulo VII - ELEMENTOS PARA UMA CRONOLOGIA DOS

SÍTIOS LÍTICOSReferências cronológicas relativas aos sítios líticos

Referências cronológicas relativas às outras

ocupações da área

Síntese da problemática cronológica

CAPÍTULO VIII - SÍTIOS E AGRUPAMEN~S

Baixo Betari

Bairro da SerraBombas

Gurútuba

Pavão

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Alto Palmital

Tememina

Discussãocaptação de Reéursos

DemografiaCAPÍTULO XIX - ORGANIZAÇÃO DOS SÍTIOS LÍTICOS EM ÂMBITO

REGIONAL: UM ESBOÇO DO PADRÃO DE ASSENTAMENTO DOS

CAÇADORES-COLETORES DO MÉDIO RIBEIRA

Distribuição

Espaçamento

Fluxo e Relações

SínteseAnalogia com os Assentamentos contemporãneos

CAPÍTULO X - RELAÇÕES COM O CONTEXTO ARQUEOLÓGICO

EXTRA-REGIONALA Tradição Urnbu

O vale do Paranapanema

Os sítios do médio Tietê

CAPÍTULO XI - BALANÇO, PROBLEMAS E ENCAMINHAMENTO

Balanço

Problemas e encaminhamento futuro do projetoREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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APRESENTAÇÃO

O interesse em realizar pesqu i sas no vale Ribeira de Iguapesurgiu em 1981, quando da identificação de vestígios arqueológicos noAbismo Ponta de Flecha, uma das numerosas cavernas do vale do rioBetari (Iporanga, Estado de São Paulo), motivando a elaboração de umprojeto de pesquisa interdisciplinar nas áreas de Arqueologia,Paleontologia e Geologia. Neste proj eto Cristiana Nunes Galvão deBarros Barreto, Erika Marion Robrahn e Paulo Antonio Dantas De Blasis,ainda alunos de .graduação, responsabilizaram-se pelos trabalhos deArqueolog ia, já contando com a orientação do Prof. Ulpiano ToledoBezerra ce Meneses. Além da escavação do abismo iniciou-se umlevantamento arqueológico da região, com prospecções de sítios no valedo Betari (Barros Barreto, De Blasis, Dias Neto, Karrnann, Lino eRobrahn 1982).

Em 1982 os mesmos três alunos, ingressando no curso de pós-graduação, elaboraram o proj eto de pesquisa inti tulado "A ocupaçãopré-colonial do vale do Ribeira de Iguape: um estudo exploratório". Aidéia básica era buscar entender os diferentes processos de ocupaçãopré-colonial em uma área de transição ambiental entre o litoral e oplaraIto e, portanto, particularrnente estratégica para avançarquestões da arqueologia do sul-sudeste brasileiro.

Em uma área delimitada no médio curso do Ribeira de Iguape foramrealizados vários levantamentos arqueológicos (somando ao todo 150dias de pesquisa de campo) intercalados às análises de laboratório.Considerando a extensão da área de estudo e a amplitude dos dadoslevantados, o desenvolvimento do p~ojeto só se tornou possível graçasao trabalho em equipe. A constituição dessa equipe de trabalhorepresentou também um ganho qualitativo, na medida em que ampliou asperspectivas do projeto, reduzindo os cortes temáticos tão comuns àpesquisa individual. Entretanto, o projeto não contou com o apoio deinstituições voltadas para a pesquisa arqueológica, tendo tido o apoioinstitucional da FFLCH-USP, com as campanhas de campo financiadas pelaFAPESP. Procurando adaptar-se às ~ondições oferecidas a pesquisa-,exibe, portanto, limitações de ordem prática e operacional.

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As questões aqui apresentadas refletem o nível de conhecimentoproduzido em uma primeira fase do projeto, tendo sido possíveldetectar três diferentes sistemas de assentamento na área, e levantaros principais problemas arqueológicos. que devem ser investigados paraa caracterização de cada um deles.

As exigências acadêmicas fizeram com que o estudo de cada umdestes sistemas constituisse tema individual das dissertações deMestrado. No entanto, o proj eto só faz sentido considerado como umtodo, daí a opção pela apresentação de ~m texto introdutório redigidoconjuntamente, comum às três dissertações (capítulos I a IV), dandoconta das premissas e do quadro geral do projeto.

No primeiro capítulo delimitam-se a~ diretrizes gerais e aproblemática da pesquisa, além dos pressupostos teórico-metodológicos.No segundo capítulo apresenta-se físicamente o vale do Ribeira, comênfase nos dados relevantes para a pesquisa arqueológica: acaracterização ambient~l de uma área de transição, definição de suasdiferentes compartimentações geográficas e, finalmente, delimitação edescrição da área-piloto de atuação.

O terceiro capítulo elabora um quadro sintético das informaçõesarqueológicas disponíveis para o Brasil meridional, orientado para acontextual Lzaç ão das quest ôes ;:O.bord;-das na presente pesquisa. Deespecial importância sãc as considerações sobre as relações entre osgrupos do planalto e do litoral, onde o vale do Ribeira ocupa um papelparticular. Faz-se ainda aqui uma breve apresentação das diferentesformas históricas de utilização e ocupação do vale, chegando até aosassentamentos atuais, referência obrigatória dentro da abordagem destapesquisa.

No quarto capitulo são explicitados os diferentes procedimentosde pesquisa e estratégias de campo adotadas ao longo dodesenvolvimento do projeto, nas suas diferentes fases, confluindo paraum primeiro quadro analítico das informações adquiridas. Segue-se aformulação da hipótese inicial da pesquisa, ou seja, de que ao menostrês sistemas de assentamento distintos se desenvolveram no médioRibeira em período pré-colonial, relacionados às três classes de sítiomais comuns na área: conche í.ros , liticos e cerâmicos. Encaminham-se.,então os estudos referentes aos temas individuais de pesquisa, sendo

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que o que se segue trata dos ca·çadores-coletores relacionados aossítios liticos.

No quinto capítulo os sítios líticos são descritos, e para elesse propõe uma tipologia preliminar. O sexto capítulo ocupa-se daindústria lítica presente nestes sítios, descrevendo-a e apresentandouma tipologia dos artefatos, assim como considerações acerca de suascaracterísticas tecnológicas e funcionais. No sétimo capítulo segueuma discussão das referências cronológicas disponíveis para estaocupação de caçadores-coletores.

O oitavo capítulo descreve e analisa os agrupamentos de sítioslíticos, e o nono capítulo é uma discussão da organização destessítios em âmbito regional. No décimo capítulo são examinadas asrelações extra-regionais da ocupaçâo aqui estudada, e no décimo-primeiro capítulo é apresentado um balanço final.

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CAPÍTULO I

O PROJETO DE PESQUISA

problemática e abordagemO vale do rio Ribeira de Iguape ocupa uma posição bastante

peculiar no contexto do Brasil meridional, tanto do ponto de vistageográfico como de uma perspectiva arqueológica.

O planalto meridional brasileiro, ao longo de toda a sua fachadaoriental, encontra-se nitidamente separado da orla litorânea por umaextensa escarpa, a Serra do Mar, configurando-se assim dois domíniosgeomorfoclimáticos que, embora contíguos, são bastante distintos eisolados. Esta oposição planal to/litoral é marcada não apenasecologicamente, mas também ao se. examinar o quadro das informaçõesarqueológicas disponíveis em cada um destes dorrínios ambientais. Ossítios e vestígios de cultura material neles presentes sãoperfeitamente distintos, caracterizando adaptações específicas,voltadas para cada um destes ambientes. Muito pouco se sabe sobre osgrupos que teriam extrapolado esses limites naturais, contatos entre.grupos que ocupavam o planalto e o litoral, ou ainda sobre mudançasadaptativas engendradas pelo deslocamento de um ambiente pa~3 out.o.

Alguns autores, como Prous (1977:14), apontam para o fato dosestudos não estarem ainda suficientemente avançados para se saber seestas diferenças encontradas entre os grupos de cada um destesambientes refletem de fato uma plural idade étnica, ou simplesmentevariações adaptativas e/ou cronológicas (ou ainda sazonais) dos mesmosgrupos.

Ao mesmo tempo que a Serra do Mar representa uma barreiranatural, a bacia do Ribeira de Iguape é uma das poucas áreas queconstituem zonas de contato entre estes dois grandes domíniosgeomorfoclimáticos. Sua peculiaridade consiste justamente emapresentar um trecho de transição extenso e suave reunindocaracterísticas ambientais do planalto e do litoral, além deconstituir um corredor de ligação ~ntre eles.

Dentro deste contexto ambiental e arqueológico, este projeto depesquisa trata de investigar os processos de ocupação pré-colonial da

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região, buscando na interpretação dos vestígios arqueológicos(estratégias de assentamento, tecnologia, subsistência, etc) pistaspara estudar problemas como migração e mudanças adaptativas, contatosculturais, cronologia parà a ocupação do vale e áreas contíguas, entreoutros.

Embora a perspectiva do proj eto sej a estudar a ocupação pré-colonial do vale do Ribeira como um todo, em suas diversas formas esignificações, impunha-se investigar prioritariamente a porçãointermediária do vale, a área de transição ambiental propriamentedita, portanto estratégica para a compreensão dos processos depovoamento de toda a região.

Dentro destas per spect.Lva s é que foi escolhida e delimitada aárea-piloto de atuação deste proj eto. Procurou-se trabalhar em umaárea suficientemente extensa, de forma a possibilitar a prática do queJohn'Son (1977) denomina arqueologia regional. Mesmo sendo um cortearbi~rário e apriorístico da paisagem, esta área é representativa dassuas características e diversidade naturais, teóricamente permitindoidentificar também as variações culturais presentes e seus padrões dedistribuição. Por se tratar de uma primeira abordagem, os sítiosarqueológicos (aqui definidos como locais de concentração dosvestígi os 'na t er i ai.s~ da atividade cultural) foram tratados comounidades mínimas de análise. Assim, a ênfase deste estudo recai maissobre as possibilidades de articulação espacial e funcional dos sítiosemâmbito local e regional, do que na organização interna do sítio.

A finalidade da pesquisa é, a partir desse espaço geográfico,tomado como um todo (nas suas variações internas e seu dinamismo),

examinar os srupos pré-coloniais, procurando examinar como seadaptaram a esse espaço, e dele se apropriaram. Naturalmente, o estudodestas diferentes formas de ocupação na área pesquisada não podeprescindir do exame das suas possíveis relações com os assentamentospré-coloniais conhecidos nas áreas circunj acentes, e mesmo no Brasilmeridional como um todo, sem o que a própria concei tualização doRibeira como área de transição deixa de fazer sentido. Assim, a área-piloto de .pesquisa deve ser entendida como um recurso estratégicoexploratório, e portanto flexível, tanto de uma perspectivageográfica, como no âmbito da experimentação metodológica e da

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problematização arqueológica. Representa mais uma referência de escalade atuação, particularmente no que se refere aos levantamentos decampo, do que como uma delimitação da abrangência da problemática dapesquisa.

O objetivo imediato deste projeto é detectar e investigar, apartir desta área-piloto, os d~ferentes padrões de assentamentopresentes na reglao, procurando reconhecê-los através do exame danatureza dos vestígios arqueológicos e sua distribuição na paisagem.Estes padrões de assentamento, por sua vez, deverão constituirreferência básica para identificar e apontar algumas dascaracterísticas dos sistemas sócio-culturais que configuram a ocupaçãopré-colonial do médio vale do Ribeira. Isto implica em algunspressupostos teórico-metodológicos, apresentados a seguir.

pressupostos teórico-metodológicosA perspectiva teórica fundamental é que a Arque.ologia é uma

ciência social, voltada para os estudo das sociedades humanas, atravésda investigação de seus vestígios materiais. Assim sendo, é precisoprocurar no vestígio arqueológico (sítios, artefatos e quaisqueroutros traços materiais de atividade cultural e seu contexto), seuconteúdo sociológico. Os remanescehtes de cultura mat.er í.e 1 s~o -::"ltãotratados enquanto documentos, vetores de informação que conduzemprlncipalmente às atividades cotidianas mas que, em última análise, sópodem ser entendidas na totalidade do sistema sócio-cultural.

Além dos diversos atributos observados habitualmente nosvestígios arqueológicos, a maneira como eles se dispõem no espaço étambém um atributo significativo, evidenciando característica~ deterritorialidade, organização e interação sócio-econômicas. Assimsendo, artefatos, estruturas, ou sítios não fazem sentido examinadosisoladamente, só podendo ser compreendidos como parte integrante de umsistema sócio-cultural, uma estrutura articulada e dinâmica.

A estratégia mais adequada para lidar com evidênciasarqueológicas dentro dessa perspectiva é o estudo dos padrões deassentamento, conceito originalmente definido por Willey (1953:1), edesenvolvido depois por autores como Chang (1972), Sanders (1975) eParsons (1971), entre outros. A idéia fundamental é que a distribuição

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dos sítios arqueológicos na paisa~em reflete os padrões de interaçãodos assentamentos humanos com o meio amb i.errt.e , assim como também ospadrões de articulação e interação entre eles, principalmente a partirde uma perspectiva ecológica. Torna-se então possível inferirprocessos ligados à organização sócio-cultural das sociedadesestudadas, conferindo assim à Arqueologia uma perspectiva propriamenteantropológica.

Metodologicamente, isto implica no exame dos vestígios em relaçãoà estrutura da paisagem, e no tratamento de sítios com um grau mínimode concomitância cronológica como unidades de um sistema deassentamento, onde são especialmente importantes as suascaracterísticas funcionais dentr J do sistema como um todo. Autorescomo Sanders (1975), Struever (1968) e Parsons (1972) entre outros,ressaltaram também a importância de prospecções sistemáticas, de modoa possi.b i.Lr.t.a r inferências acerca do sistema de assentamento como umtodo, o po~encial informativo das .coleções de superfície (ver tambémSchlanger & Orcutt 1986), e ainda o estudo da distribuição diferencialde sítios e artefatos na paisagem, como meios de inferir aspectosfuncionais e organizacionais dos assentamentos.

A partir desta perspectiva, dois foram os enfoques dedesenvolvimen~o de pT~jeto;

a) a inserção do sítio no espaço maior de que faz parte,examinando as interações do homem com o meio ambíente, tendo comoreferência o seu contexto tecnológico. Procurou-se entender alocalização dos sítios em relação aos elementos naturais queinterferem na sua implantação na paisagem (relevo, água, solo,vegetação, etc) , ~3sim como em relação à distribuição edisponibilidade tanto dos recursos potenciais que a área oferece, comoaqueles efetivamente documentados no registro arqueológico. No que serefere ao estudo de territorialidade e captação de recursos, serviramde referência os métodos propostos por vita-Finzi & Higgs (1972),Jarman (1972), Higgs et alo (1975), de que Roper (1979) faz umbalanço, e ainda os estudos de Longacre & Reid (1971), Judge (1971),Plog & Hill (1971), Flannery (1976) e Brose (1976), para os estudossobre análise locacional e distribuição espacial em relação àsvariáveis ambientais (ver Bettinger 1980, para uma discussão do tema) .

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b) a articulação do sítio em relação ao conjunto de sítios, nãosomente através de similaridades de seus atributos, mas também atravésdos arranjos espaciais que se ·observam entre eles. Procurou-seidentificar padrões de distribuição dos sítios em relação à

compartimentação natural da área e inferir, a partir deles (dispersão,concentração ou randomicidade), as características organizacionais dasunidades que compõem o sistema de assentamento. Para tal, foramutilizados os métodos propostos em Gummerman (1971), Hodder (1972),Hodder & Orton (1976), Earle (1976), Irwin-Williams (1977), entreoutros.

Os procedimentos da pesquisa, métodos específicos utilizados paraas prospecções, identificação de sítios e seus atributos,estratigrafia e materiais associados, e ainda para a análise dascoleções, serão discutidos oportunamente ao longo do texto.

Com estes objetivos e pressupostos procuramos evitar um~. práticacomum na pesquisa arqueológica brasileira, onde quase sempre seescolhe uma área geográfica e nela se examina os vestígiosarqueológicos, limitando-se à recuperação e descrição de sítios eartefatos. Geralmente reunidas em "biografias de sítio", as evidênciasarqueológicas assim tratadas resultam em estudos quase sempre pobresem conteúdo antropológico. Acreditamos que a vantagem e riecessLd.rde cese trabalhar com um proj eto de pesquisa está no fato de que ainvestigação arqueológica não mais se define como procura, recuperaçãoe descrição dos vestígios em si, mas como uma pesquisa onde essesprocedimentos estão orientados para o encaminhamento de problemasdefinidos sobre sociedades humanas específicas.

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CAPíTULO 11

O VALE DO RIBÊlRA DE IGUAPE

características geraisDesde a extremidade meridional do planalto sul-brasileiro até a

baixada de Campos, ao norte do Rio de Janeiro, as aI tas cristas daserra do Mar, numa longa escarpa, separam abruptamente o planalto dolitoral, definindo domínios ambientais bastante distintos e isolados.No planalto o sistema hidrográfico, frequentemente com cabeceiras naprópria escarpa da serra do Mar e seus contrafortes, se volta paraoeste-sudoeste, integrando a bacia Paraná-Uruguai.

Nesse contexto o Ribeira de Iguape aparece como algo à parte:formado no alto planalto paranaense pelos rios Assungui e Ribeirinha,volta-se para leste e, contrariando a tendência geral dos rios daregião, atravessa as serras do Mar e Paranapiacaba, terminando noAtlântico o seu percurso. Desta forma o vale do Ribeira integra as.regiões planál ticas à planície litorânea ao longo de uma extensa "zonade transição", permitindo certa fluidez no contato das variáveisambientais (fig 1). Nestes termos a região meridional brasileiraapr~sentê ainda duas áreas de transição ambiental semelhantes: o valedo Itaj aí, em Santa catarina (com dimensões menores que o vale doRibeira), e a borda meridional do pl.anal to, no Rio Grande do Sul(embora com características geomorfológicas e climáticas bastantedistintas) .

Apesar do gradiente suave que caracteriza esta situação detrar.sição ambiental, é possível dividir o vale do Ribeira em ao menosduas partes - a porção serrana e o baixo vale, ou Baixada.

Segundo Petrone (1966), a principal característica da Baixada doRibeira em relação ao restante da fachada atlântica é a extensão desua planície litorânea, que se aprofunda aproximadamente 80km para ointerior, tendo uma largura equivalente. Neste trecho a Baixada vai.gradualmente sendo entremeada com traços de serra, culminando nas

escarpas da serra de Paranapiacaba, a noroeste, e da serra do Mar, aoeste e nor"deste, que a ernoLdu.ram num g~ande semi-círculo. Na Baixadao Ribeira divaga lentamente pela planície sedimentar, apresentando

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inúmeros meandros e afluentes. Esta abundância hidrográfica certamenteestá relacionada à uma pluviosidade elevada (de 1.500 a 2.000 mmanuais) e, em muitos casos, a terrenos pouco permeáveis e deescoamento difícil (Silveira 1952). Quanto à vegetação, a Baixadaapresenta uma sucessão de formações da orla litorânea para o interior,onde se destacam o jundu, o mangue e a vegetação higrófila, com a matatropical ocupando os terrenos mais firmes e secos do interior (Camargoet alo 1972).

seguindo a sugestão de Silveira, Petrone estabelece o critério dacota de 100m como limite da Baixada, com cotas ocasionais de até 300m,mesclando-se com as serras que a emolduram. Esta situação ocorreaproximadamente até a cidade de Eldorado (mapa 1). À montantepercebe-se que o relevo vai se tornando montanhoso, com terrenosabaixo de 100m cada vez mais reduzidos, constituídos basicamente porpequenas extensões de terraços fluviais (Formação Pariquera-Açu), eáreas de sedimentação mais recente. Iporanga, por exemplo, se encontraàs margens do Ribeira de Iguape a aproximadamente 87m SNM, mas numponto em que o rio se encontra já bastante encaixado, totalmentecercado pelas serras. Consideramos, assim, Eldorado como Iimite daBaixada e, como diz o próprio Petrone, a porção acima como "faixali:uítrnfe.de e .pessura irregular, na qual se interpenetram condiçõespeculiares à Baixada com as das regiões contíguas" (1966:21).

A zona serrana do vale do Ribeira está na faixa de transiçãoentre o domínio morfoclimático dos mares de morros florestados e dosplanaltos de araucárias, a oeste e sudoeste, onde predominam as serrasde escarpa do planalto e seus contrafortes (Ab'Saber 1977). A porçãoalta do v ...le, no primeiro planalto paranaense, bastante montanhosa,contacta entretanto com áreas de relevo mais suave; a paisagem típicaa sudoeste, onde se encontra a cidade de Curitiba, é de camposabertos. A noroeste o alto Ribeira contacta o segundo planalto,domínio dos arenitos e basaltos da bacia do Paraná. É uma região alta,de cabeceiras, onde nascem, além das águas que correm para o Ribeira,várias outras que vão integrar as bacias dos rios Ivaí, Tibagi e19uaçu. Assim, o alto Ribeira está não apenas contíguo, mas integrado~ região planáltica, apesar das '5iferenças fisiográficas que apresentaem relação àquelas áreas.

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o aIto Ribeira é caracterizado por um relevo complexo, emvirtude de uma grande diversidade lito-estrutural. Os ciclos erosivosmais recentes entalharam profunda~ente a região, formando vales bemencaixados, profundos e estreitos, cóm vertentes íngremes comumenteapresentando inclinações superiores a 30 graus. As amplitudes locaismostram variações de até 700m, num dos relevos mais atormentados dopaís (Almeida 1964).

Nesta área o Ribeira se apresenta como um rio de montanha, cominúmeras corredeiras, desenvolvendo grande capacidade erosiva e detransporte. São frequentes as quebras verticais nos cursos d'agua, emzonas de contato com litologias de diferentes resistências à erosão,formando cachoeiras com at.~ 40m de desnível. O clima desta regiãoserrana é do tipo sub-tropical úmido, sendo afetado durante todo oano principalmente pela massa de ar Tropical Atlântica, com ventos desul €" sudeste trazendo umidade do mar descarregada no continenteatravés de chuvas orográficas. A atuação da massa de ar PolarAtlântica, apesar de Iimi t.ada- na região, é importante por provocarquedas bruscas de temperatura, com geadas nas porções malS altas(Camargo et aI. 1972).

A cobertura vegetal é a Mata SUb-Tropical Atlântica, constituídapor indi1íduos ~2 por~e arbóreo com até 30m de altura, muito densa ecom grande variedade de espécies. Conforme sobe em altitude sobre asescarpas do planalto, a floresta adquire feições de mata sub-tropicalde altitude, inclusive com araucárias nativas, testemunhos de um climamais frio e seco no passado (Ab'Saber 1977).

Os limites do alto e médio Ribeira são bastante difusos. Observa-se, entretanto, ~ue aproximadamente da cidade de Ribeira a juzante osbaixos vales vão-se tornando mais abertos, com maiores extensões deterrenos planos, conforme o nível de base se aproxima da Baixada. Opróprio Ribeira de Iguape apresenta aqui maior porte, um curso com bemmenos corredeiras. A partir destes dados, e atendendo às necessidadespráticas da presente pesquisa, fixa-se portanto a cidade de Ribeira.corno limite entre o alto e o médio vale (mapa 1).

Concluindo, é esta porção intermediária do vale, entre as cidadesde Ribeira e Eldorado, que des~gnamos como médio Ribeira. Caracteriza-se pela presença reunida de variáveis litorâneas (mais expressivas

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quanto mais próximo de Eldorado) - e das variáveis planál ticas (maisexpressivas quanto mais próximo de Ribeira), formando um gradienteentre o planalto e o litoral. Esta é, propriamente, a área detransição ambiental, e por esta razão a área de enfoque deste projeto.

o médio Ribeira de Iguape enquanto área de transição ambientalO rio Ribeira atravessa o médio vale na direção leste-nordeste,

inicialmente ainda bem encaixado entre as serras, apresentando váriascorredeiras. Após vencer a barreira de granitos da região de Itaoca(Varadouro), torna-se potencialmente navegável. Encontram-se, porvezes, algumas extensões sedimentares aplainadas (terraços da FormaçãoPariquera-Açu, bem corno outros mais recentes), que só aparecemocasionalmente no médio vale, formando enclaves ao longo das drenagensprincipais, e na confluência dos afluentes maiores, como o Turvo e opalmital. São frequentemente encontradas cascalheiras '1estas partesmais baixas, com materiais de formas e temanhos variados que refletema litologia diversificada da região.

Os maiores divisores de águas, a norte e a sul (as serras do Mare Paranapiacaba), são suportados principalmente por gnaisses egranitos, mas também rochas quartzíticas sustentam cristas salientes.As zonas reba ixadas, na porção central do vale, correspor;jeI'" afilitos, xistos e migmatitos, com calcários intercalados (Batolla Jr.et dl. 1~81, DNPM-CPRM 1981).

As drenagens da margem esquerda do Ribeira são mais curtas eencaixadas, formando às vezes verdadeiros "canyons". Destacam-se aquio rio Tij uco (próximo à cidade de Ribeira), as bacias do Betari,Iporanga e Pilões, formando urna z~na acidentada com terrenos altos epequenos vales estreitos e isolados, onde são comuns feições típicasde relevo cárstico, como dolinas e sumidouros, uma das maioresprovíncias espeleológicas do Brasil (Sanchez e Karmann 1977).

Consti tui urna exceção a região de Itaoca, verdadeira ilha degranito intrusivo que integra as bacias do médio-baixo Palmital e dosrios Gurutuba e Santo Antonio, caracterizada por uma paisagem maisaberta, um relevo onde sobressaem morros de formas arredondadas e-,maiores extensões de terrenos planos. Na parte mais baixa do médiovale, próxima a Eldorado, temos ainda os rios Pedra Cubas e Taquari.

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As drenagens da margem direita do Ribeira são mais alongadas, comrios de maior porte formando bacias dendríticas entre serrasarredondadas e com menor amplitude altimétrica local, resultando numapaisagem mais aberta e menos compartfmentada, que culmina na serra doMar. As drenagens principais são as bacias do Ribeirão Grande, Sãosebastião, Batatal e Pardo/Turvo, esta última a maior delas. Encaixadana confluência do Pardo com o Ribeira se observa urna zona escarpada,dominada pela serra das Andorinhas, que aqui chamaremos de região dobaixo Pardo. O vale do Batatal e a região de Cajati, a leste,constituem áreas ainda mais abertas, onde os baixos vales vão seintegrando à Baixada.

Observa-se, assim, que os va t.e s dos afluentes do médio Ribeiraconstituem unidades bastante isoladas, separadas por interflúvios quepodem alcançar mais de 800m de al~ura. Esta compartimentação naturalda paisagem resulta numa grande variedade de situações micro-ambientais. Assim, ainda que de modo geral seja possível referir-se à

região do médio Ribeira corno um todo, sensíveis diferenças de relevo,clima, solo, acesso e visibilidade podem ser percebidas de um valepara o outro, resultantes justamente de sua condição de transiçãoambiental.

a área-piloto de atuação do projetoMesmo tendo-se definido o médio Ribeira como o trecho

propriamente de transição ambiental, e portanto também de enfoquedesta pesquisa, esta é ainda uma área demasiadamente extensa dentro doâmbito atual de investigação. Foi necessário, assim, delimitar urnaporção imediata de atcaçâo , ou uma área-piloto, capaz de funcionarcorno uma amostragem do conjunto. A partir da abordagem do projeto,esta área-piloto deve abarcar uma ·parcela da diversidade de aspectosfisiográficos e ambientais de transição presentes na região, cornotambém ser contínua e grande o suficiente para tornar possível o exameda variedade de evidências arqueológicas e seus padrões dedistribuição.

Obedecendo à compartimentação natural da paisagem, os limites da,área-piloto são consti tbídos pelas aItas cristas dos divisores deáguas, e as porções escolhidas foram: na margem direita do Ribeira, a

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bacia do r ia Turvo (como uma amostra da área mais aberta da porçãomeridional do médio vale), e a região serrana do baixo Pardo (Rio daspedras e Andorinhas): na margem esquerda, foram escolhidas as baciasdo palmital e a dos rios Gurutuba e Santo Antonio (região de Itaoca),além da drenagem do rio Betari, -representando uma boa parcela dasterras altas a nordeste da região. Todas as adjacências do rio Ribeirana sua margem esquerda, desde o Varadouro até a cidade de Iporanga,também foram integradas, incluindo alguns pequenos afluentes como ocapuava e o Tatupeva (mapa 2).

Com esta delimitação a área-piloto, localizada bem no centro domédio vale, engloba uma área total de aproximadamente 1.550km2,representando em torno de 20% do trecho do vale aqui considerado comomédio Ribeira. Devido à sua diversidade e extensão terri torial, aárea-piloto representa uma boa amostra das característicasfisiográficas de transição que ocorrem na região.

Os diferentes vales que constituem a área-piloto são ba et.ant;eisolados pelas serras divisaras; e esta compartimentação acentuada dapaisagem condiciona em grande parte a distribuição dos assentamentosatuais e das vias de acesso. Hoje o povoamento se dá na forma depequenos bairros rurais, distribuíàos nas porções aplainadas de fundode vale ao longo dos principais rios e seus afluentes. Este é o casodos bairros Betari e Serra (no vale do Betari), Itaoca, Fazenda,Lageado e Serrinha (no Palmital), Barreira, Reginaldo, RibeirãoBonito, Águas Quentes, Ribeirão Grande e Cedro no vale do Turvo (mapa

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Tambémos caminhos preferem os fundos de vale, seguindo próximose paralelos aos leitos dos rios, e interligando os bairros rurais.Raros são os caminhos que atravessam de um vale para o outro,geralmente trilhas que alcançam poucas e esparsas casas e locais deplantio. Estas áreas de interflúvio, bem como os altos cursos dosrios, permanecem praticamente desocupadas, frequentemente aindacobertas por mata primária. Já os bairros ao longo do Ribeira deIguape, assim como os baixos vales do Betari, PaLmi.t.aL e Turvo, têmcomunicação garantida pelos próprios cursos do Ribeira e do Pardo,navegáveis nestes trechos. .,

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por outro lado, se estes vale? se mostram relativamente isolados,o contato com regiões externas ao vale do Ribeira a partir de algunsdeles não é difícil. O Betari e o aLto PaLm ital são acessíveis apartir da escarpa da serra de Paranapiacaba, o que os torna contíguosao plana Ito paulista, região das cabeceiras dos vales do Itararé eparanapanema. O baixo Palmital e o baixo Turvo são acessíveis por viafluvial a partir da Baixada do Ribeira, garantindo urna ligação com olitoral. Já o mé d i oy aIto Turvo se integra às áreas adj acentes doprimeiro planalto paranaense (região de curitiba), através da própria.continuidade de seu relevo colinar. Desta forma, as condiçõesambientais parecem possibilitar urna multiplicidade de relações entreáreas internas e externas ao médio vai e do Ribeira, e urna grandevariedade de arranjos locacionais ao longo do tempo .

.,

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CAPÍTPLO 111

o CONTEXTO ARQUEOLÓGICO DA PESQUISA

pesquisas no interior do vale do RibeiraO interior do vale do Ribeira nunca fora anteriormente objeto de

estudos arqueológicos sistemáticos, havendo apenas informaçõesesparsas e pontuais.

As notícias mais antigas são do naturalista Ricardo Krone que,participando da exploração do Ribeira pela Comissão Geográfica eGeológica do Estado de são Paulo, em 1908, registrou alguns"sambaquis" e "cemitérios .ind í qenas" às margens do médio curso doRibeira (Krone 1914). Estes últimos foram também descritos por EduardoKrug (1908), que escavando um "túmulo" encontrou fragmentos decerâmica. Em outro estudo, sobre as grutas calcárias da região, Krone(1950) se refere ainda a vestígios indígenas que encontrou à

superfície ou em escavações realizadas na entrada de algumas delas,como restos alimentares, fogueiras e artefatos líticos, lascados epolidos.

Na década de 30, Kiju Sakai (1981) identificou alguns sítiosconcheiros na região da Serra dos Itatins (próximos a Pedro deToledo), tendo realizado escavações em dois deles. Além de muitossepultamentos, foram também registrados restos alimentares e artefatoslíticos lascados.

Mais recentemente, o espeleólogo Guy C. Collet também seinteressou pela arqueologia da região, sobretudo no médio vale, ondeas.cavernas são numerosas. Notif ícou a presença de vários sítios,entre "sambaquis fluviais", líticos a céu aberto e em gruta ouabrigos. Realizou sondagens em vários deles, e através da análise domaterial encontrado nos sítios concheiros e líticos sugeriu quecorrespondiam a indústrias distintas. Observou também que a cerâmicaencontrada à superfície de alguns poucos sítios concheiros deveriaresultar da reocupação dos locais por grupos mais recentes, além defornecer as primeiras datações para esta classe de sítios (Collet1976a e b, 1978, 1982, 1983, '~985; Collet e Prous 1977).

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Sem dúvida, Collet foi quem, até o momento, trabalhou na regiãode maneira mais intensiva, tendo inclusive diagnosticado corretamentealguns de seus problemas arqueológicos básicos, como vimos acima.Infelizmente, entretanto, a documentação publ icada é bastanteimprecisa, não só na catalogação, localização dos sítios ecaracterização das indústrias, mas principalmente no que diz respeitoaos métodos de trabalho de campo, dificultando e restringindo em muitosua utilização. Deve-se ainda :i.ncluiraqui o resultado de nossotrabalho prel iminar na área, com vários sítios 1íticos a céu abertoidentificados no vale do rio Betari (Barros Barreto et alii 1982).

Como se vê, estas informações, de natureza e alcance variado,i.ndicavam desde o início das pesquisas uma .Jrande diversidade deevidências arqueológicas, o que se ajusta às expectativas de uma áreade ligação e transição entre dois ambientes tão distintos quanto oplanalto e o litoral do Brasil meridional. Dentro desta perspectiva, aarqueologia do vale do Rl.:':'eirasó faz sentido inserida no contextoarqueológico de que faz parte, ou seja, no quadro das ocupaçõeshumanas circunjacentes, no planalto e no litoral, o que será tratado aseguir.

o contexto arqueológico r eq i ona LO quadro arqueológico regional que se segue é decorrente de

várias categorias de informação, r~sultantes de pesquisas de naturezadiversa. Se por um lado ele é bastante incompleto, pela ausência deestudos em determinadas áreas geográficas, ou por algumas questõesterem sido ainda pouco exploradas, é também provisório, na medida em~e as unidades arqueológicas definidas não correspondemnecessariamente a unidades sócio-culturais, servindo mais comoparãmetros iniciais para diferenciar tipos de sítios, momentos ouáreas geográficas de ocupação. Trata-se, sobretudo, de trabalhosdescritivos, caracterização regional dos vestígios arqueológicos, ou oestudo de sítios isolados.

A dicotomia planalto-litoral está nitidamente presente naarqueologia da porção meridional do Brasil, sendo raros os trabalhosque procuram investigar as possíveis relações entre assentamentos pré-coloniais de um e outro ambiente. Além disto, as pesquisas são muito

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diversificadas quanto aos objetivos.' metodologia e alcance, tornandobastante difícil a utilização conjunta ou comparada de informações.

No litoral, as investigações concentram-se mais em torno de umaúnica categoria de sítio, os sambaquis ~ que são sem dúvida os maisestudados na arqueologia do sul do Brasil. Nas áreas imediatamenteadjacentes ao médio vale do Ribeira encontram-se duas grandes zonas deocorrência destes sítios: uma na própria porção estuarina do baixovale (Cananéia e Iguape), e outra mais ao sul, também contígua, queabrange as baías de paranaguá e Antonina, no estado do Paraná.

Na área de Cananéia e Iguape dispõe-se de um cadastramentosistemático de sambaquis, oferecendo dados principalmente quanto à

loc~lização dos sítios, dimensões, composição malac01ógica, datações eestado de conservação (Uchoa 1978/79/80, 1981/82; Uchoa e Garcia1983). Nesta área são poucas as informações sobre as indústrias eestruturas, fornecidas apenas pata alguns sítios por Emperaire eLaming (1956 e 1958).

No Paraná, os sambaquis foram objeto de estudos pontuais, como osde Hurt e Blasi (1960), Laming-Emperaire (1968), Menezes e Andreatta(1971) e Menezes (1976). Deve-se incluir também os numerosos trabalhosde Rauth, a maioria efetuada dentro do quadro de pesquisas do PRONAPA,englobando escavações e o levantamento de mais de uma dezena desitios, com dados sobre suas indústrias, estruturas internas e algumasreferências cronológicas (Rauth 1962, 1963, 1964, 1967, 1969, 1971,1974 e outros).

Além dos sambaquis, existem também registros de ocupaçãoposterior do litoral por grupos ceramistas, eventualmente perdurandoaté a época do descobrimento (Chmyz 1976). Os estudos arqueológicossão ainda bastante escassos e pontuais, mas para as épocas maisrecentes se dispõe de relatos de cronistas e viajantes do século XVI(Soares de Souza 1927, Staden 1974f.

Para as áreas litorâneas integradas ao vale do Ribeira inexiste~alquer tentativa de sistematização das questões arqueológicasrelacionadas aos sambaquis ou outros sítios litorãneos. Existem,entretanto, umas poucas obras de síntese regional, como a de Prous ePiazza (1977), restrita ao l~toral d~ Santa Catarina, e a de Neves(1984) que, embora voltada para o estudo da paleogenética de

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populações litorâneas do Paraná e· Santa catarina reune, em caráterintrodutório, os principais dados arqueológicos. Também foram úteis ostextos de Schmitz (1984a e b, 1987) sob~e os caçadores do litoral.

No planalto, as pesquisas foram mais diversificadas, lidando comsitios relacionados tanto a grupos caçadores coletores cornoceramistas. No Paraná se dispõe de informações arqueológicas sobreáreas próximas ao alto vale do Ribeira, nos vales do Itararé, do altoTibagi e do aLto Iguaçu, e ainda· à margem esquerda do Paranapanema(Chmyz 1967a, 1968, 1969a, 1971, 1972, 1977). Boa parte destesestudos, assim corno o levantamento da margem paul ista do vale doItararé (Maranca 1969, 1974), foram desenvolvidos no quadro depesquisas do PRONAPA, com sítios agrupados em fases e ~~radições, tantolíticas corno cerâmicas.

Em São Paulo, as pesquisas realizadas no vale do Paranapanemapelo Museu Paulista (Pallestrinj 1976, Morais 1983, vilhena de Moraes1977, e outros), são voltadas para o estudo individual de algunssítios, suas indústrias e estruturas internas evidenciadas porescavações intensivas. Em urna linha de pesquisa distinta encontra-se oprojeto de Caldarelli e Neves (1982) no médio vale do rio Tietê, ondeuma abordagem regional é combinada ao estudo mais aprofundado de umsítio escavado intensivamente.

Especificamente para os sítios relacionados às tradições líticas(ou a grupos caçadores e coletore~) conta-se com o trabalho de Kern(1982), que compilou e sistematizou os dados disponíveis para todo oBrasil meridional, em urna análise bem documentada, inclusive no quediz respeito ao contexto ambiental das tradições; e também as obras deSchmitz, que além de agrupar todas as fas~s e sítios esparsos destastradições (1978), apresenta urna síntese bastante prática e operacional(1984b).

Para as tradições cerâmicas, as obras de Brochado (1973a e b),Schmitz (1980), Scatamacchia (1981) e Chmyz (1968 e 1972) são as maisabrangentes. Aqui foram também utilizadas as referências etno-históricas sobre grupos indígenas do planalto.

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a ocupação pré-colonial do litoralOs sambaquis representam os assentamentos humanos mais antigos

que se conhece no litoral. Presentes ao longo da faixa costeira desdeo Rio de Janeiro até o Rio Grande do Sul, apresenta urna cronologiaininterrupta de aproximadamente 6.000 a 500 anos AP. Alguns autorescomo Schmitz (1984a) e Prous (1978/79/80) alertam para a possibilidadede haver sítios ainda mais antigos, hoje submersos pelo mar.

Schmitz (1984a) sugere que o povoamento do litoral se tenha dadoem função de mudanças climáticas, no final de um grande período detransição (entre 8.500 e 6.500 AP), de urna fase quente e seca paraoutra quente e úmida, propiciando a mu Itipl icação dos moluscos. Aformação dos sambaquis seria assim resul tante de uma adaptação depopulações planálticas que se teriam deslocado para o litoralexplorando recursos marinhos, especialmente moluscos.

A baixada de Cananéia e Iguape apresenta um total de 107sambaquis cadastrados, sendo urna das principais áreas de ocorrênciadeste tipo de sítio ao longo dé todo o litoral sul-sudeste. Os sítiosse concentram geralmente nos trechos do litoral menos expostos ao maraberto, ao longo do canal de Ararapira, estuários de rios, e nas ilhasComprida, Cardoso e Cananéia. As datações indicam urna ocupaçãoininterrupta da área por um r ;ríodo de ao menos 4.400 anos (Uchoa1978/79/80) .

O litoral norte do Paraná· (baías de paranaguá, Antonina eLaranjeiras) apresenta outro foco de sambaquis costeiros mais próximo,em distância linear, da região do médio Ribeira, ainda que separadospela escarpa da Serra do Mar. São aí conhecidos ao menos 109sambaquis (Posse 1978), t;.rnbémcobrindo um período de aproximadamente4.100 anos.

Dentre as áreas de concentração destes sítios, são justamente asdo sul de São paulo e norte do Paraná que apresentam um maior númerode datações recuadas, sugerindo que o povoamento do litoral se tenhainiciado por aí, expandindo-se então para o restante da faixacosteira, ao norte e ao sul «1)1). É também possível que o povoamento

(1) Apenas dois sambaquis fora desta área apresentaram datações maisrecuadas: o de Camboinhas novk i.o de Janeiro, com 7958+-224 AP (Kneipet aI. 1981) e o de Maratuá na Baixada Santista, com datas em torno de7000 anos AP (Emperaire & Laming 1958). Para este último sitio as

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se tenha dado em levas indepenBentes a partir de vários eixosinterior-litoral, em diferentes momentos, como sugere Neves (1984).

Os sambaquis do litoral sul-sudeste apresentam muitos elementoscomuns, tanto nos atributos estruturais como nas indústrias e restosalimentares. São sítios que se caracterizam por grandes amontoados deconchas em lentes superpostas, constituindo uma plataformatopograficamente distinta do substrato geológico. Os vestígiosalimentares indicam um padrão de subsistência fundamentado na coletade moluscos e na pesca, complementado pela caça e coleta de vegetais.

As indústrias apresentam instrumentos líticos tipologicamentepouco variados, constituindo-se basicamente de lascas utilizadas comofacas, talhadeiras, machados (lascados e polidos), e seixos quase semmodificação, como os quebra-cocos, bigornas, pesos de rede, etc. Asesculturas zoomorfas podem ser consideradas como "fóssil-guia", emborapresentes apenas nos sítios de Iguape para o sul. É frequent ~ autilização de conchas, ossos e dentes de animais na confecção deinstrumentos (pontas, agulhas, furadores) e adornos (colares,pingentes e outros) (prous 1977, Schmitz 1984a e b).

A prática de enterramentos na área do sítio é uma constante,sempre por inumação direta, simples ou múltipla, e frequentemente comalgum mobil iário funerário. São também comuns estruturas como rest os'de fogueiras, e fundos de cabanas puderam ser identificados em algunssítios (Schmi~z 1984 a e b) .

A recorrência destes elementos constitui uma boa pista para sesupor um mesmo padrão cultural entre as populações que ocuparam estessambaquis, mas esta é uma questão que permanece ainda em aberto naarqueologia litorânea, uma vez que as variações regionais ecronológicas existentes não foram tratadas de forma sistemática.Segundo Schmitz (1984b), as poucas tentativas de agrupar os sítiossegundo diferentes critérios são ainda bastante precárias ..

Além dos sambaquis, existe no litoral norte do Paraná o registrode outros sítios concheiros, menos numerosos, os "acampamentos

.,datações tem sido questionadas, uma vez que Garcia (1979) obteve sobrea mesma amostra uma datação de apenas 3865+-95 AP.

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conchíferos" «2)2). Este tipo de sítio é conhecido também no litoralde santa catarina (Prous e Piazza 1977), e apenas um foi identificadoem São Paulo, no litoral norte (trchoa 1982). Sua cronologia parececorresponder ao final do período dos sambaquis. A datação mais antigafoi obtida em um sítio de Santa catarina, 1.140 +- 180 anos AP (prouse piazza 1977:108).

Os acampamentos conchíferos são sítios rasos, onde a espessura dacamada arqueológica raramente ultrapassa 1,5m. As conchas sedistribuem em bolsões, pouco compactadas. Apresentam um grande númerode sepultamentos e de fossas de entulhamento com detritos diversos. Osrestos aLimentares são predominantemente de peixes, parecendo que aexploração de mo Iuscos ocupa aqui um par:sI secundário. Os restosindustriais líticos e ósseos pouco diferem dos sambaquis, mas namaioria dos casos há ainda a presença de cerâmica.

Apenas dois dest~s sítios foram registrados ao norte do Paraná,um deles constituindo um deP9si to sobreposto a um sambaqui (Neves1984:35). A cerâmica aí identificada foi associada à Tradição Itararé(Chmyz 1976a). Uma hipótese para a ocupação destes sítios é de queeles representariam uma transição dos grupos sambaquieiros para umaeconomia mais voltada para o consumo de peixes, em detrimento dosmoIuscos. Por outro lado. a 'Jre",=nçale cerâmica remete à questão deum possível contato com grupos do planalto, ou do deslocamento destespara o litoral (Neves 1984).

Além da cerâmica presente nos acampamentos conchíferos, há aindanotícias de vestígios da Tradição Tupiguarani em outras áreas próximasao Ribeira de Iguape: em Peruíbe (Pereira Jr. 1965) e no sítio Jairê,em Iguape, datado de 1.360 a 1.J59 AC (Krone 1914, Simons 1967). Defato, relatos de cronistas do séc. XVI confirmam que o litoral eraocupado por diferentes grupos do tronco linguístico Tupi-Guarani(Soares de Souza 1927, Staden 1974).

a ocupação pré-colonial do planaltogrupos de caçadores e coletores

(2) vista a diversidade de denominações existentes para este tipo desitio, optamos pela definição bastante precisa fornecida por Prous ePiazza (1977:23).

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AS evidências da ocupação de grupos caçadores-coletores nacircunjacências do Ribeira de Iguape são bastante esparsas. Aindústria Iítica destes sítios pode ser associada às duas grandestradições líticas estabelecidas para o sul do país: Umbu e Humaitá.

sítios da Tradição Umbu são e~contrados em boa parte do planaltosul brasileiro, do Paraná ao Rio Grande do Sul. O mais próximo ao valedo Ribeira é o sítio Céu Azul, no alto vale do Iguaçu, datado de 3.705+-130 a 755 +- 60 anos AP (Chmyz 1977a, Schmitz 1978). Existem tambémOS abrigos Cambi tu e Morro do Castelo, com .idade estimada de 3.000anos AP, mas de associação a esta tradição ainda incerta (Chmyz1976C) •

Em áreas um pouco mais distantes ocorrem vpstígios desta tradiçàonos níveis mais profundos dos sítios José vieira, no baixo vale doIvaí (Laming-Emperaire 1959, 1968 e 1979), e Camargo, na margempaulista doParanapanema (Pallestrini e Chiara 1978, Morais 1983).Evidências mais ao norte são es~assas, apenas no médio vale do Tietê,caldarelli (1983) e Morais (1983) descrevem sítios com indústriassemelhantes às desta tradição, sem no entanto associá-Ias formalmentea ela. Estes registros datam de aproximadamente 5.000 anos AP.

A tradição Umbu é definida- essencialmente por atributos daindústria lítica, que se caracteriza por artefatos de pequenasdimensões, onde as pontas proj é t.eí s assumem o papel de "fóssil-guia".Os instrumentos são em geral feitos sobre lascas, e frequentementeacabados por pressão. Além das pontas, morfologicamente bastantediversificadas, a indústria comporta outras peças bifaciais,geralmente foliáceas, e ainda furadores e raspadores de diversostipos. Alguns sítios apresentam urna grande quantidade de lascas,muitas utilizadas, e outros resíduos de lascamento. A matéria prima évariada, havendo preferência pelo sílex.

A ocupação de abrigos rochosos é comum, havendo inclusive algunscom gravuras rupestres. Quanto ao padrão de subsistência, evidênciasde alimentação apontam para atividades de caça, pesca e coletageneralizada, com a exploração de recursos de ambientes distintos e

~relativamente próximos, e possíveis d~slocamentos sazonais. Em sítios., -do interior do Rio Grande do Sul foi inclusive identificado material

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marinho, evidenciando contatos com o-litoral (E.T. Miller 1969, MentzRibeiro 1972).

Os grupos relacionados à Tradição Umbu tem sido considerados como"herdeiros legitimos dos antigos caçadores do Pleistoceno" (Kern1982:299). Os sitios mais antigos deste período (10.000 a 12.000 anosAP) estão no extremo sul do planalto, uma região já em contato com aplanície dos pampas. Schmitz (1984b) acredita que alguns destes sítios(OS da fase "paleoindígena" Uruguai) sejam os mais antigos diretamenteligados à Tradição Umbu.

Durante a transição para o Holoceno, o clima se torna mais~ente, apesar de ainda bastante seco, acentuando as condições áridase fazendo com que as matas subsistam apenas ac longo dos rios eencostas das serras. Para este período foram identificados sítios maisao norte, ao longo do rio Paraná, estimados em 8.000 anos AP (fasevinitu Chmyz 1976b, 1977, 197~). Estes sítios representariam atransição entre os caçadores adaptados ao ambiente pleistocênico e oscaçadores general izados de ambientes holocênicos diversificados, queiniciam a ocupação de todo o alto platõ por volta de 6.000 AP (Schmitz1984b). O clima mais úmido do periodo permite a expansão das florestase o recuo dos ambientes abertos.

De um modo geral os sítio;";Ii j adcs à 1rad í.ç âo Umbu passam a selocalizar nas porções mais aItas e abertas do planalto, próximos àsformações de mata galeria, araucárias e campos. Distribuem-se assim emsua borda meridional, a sudoeste e a sudeste do Rio Grande do Sul,sendo mais raros nos campos altos deste Estado, e nos de Santacatarina e do Paraná. O limite ao norte ainda não está claro, masparece ser acima do Paranapanema (Schmi~z 1984b).

A partir de 4.000 anos AP o clima vai-se resfriandogradativamente, aproximando-se do atual. Neste momento os sítiosassociados à Tradição Umbu se eS};lalham, ocupando mais densamente oplanalto. Tudo indica que estes grupos caçadores resistiram à presençados ceramistas que começam a ocupar intensamente o planalto sul-sudeste brasileiro a partir de 1.500 anos AP. Refugiados nas porçõesmais altas do platô e menos atrat~vas para a horticultura, nasperiferias dos grandes vales, estes caçadores teriam persistido em

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seus habituais padrões de subsistência mesmo após o contato com ocolonizador europeu.

* * *

Também em áreas próximas ao Ribeira ocorrem algumas evidênciasrelacionadas a outra grande tradição lítica do sul do Brasil: aHumaitá. São os sítios das fases Timburi e Andirá (Chmyz 1967a,1977a), no vale do rio Itararé, sendo que a última apresenta ainda umsítio bastante próximo ao alto Ribeira. No entanto, a inserção destafase na tradição Humai tá ainda é duvidosa. Um pouco mais ao norte,exist~m evidências no Paranapanema, onde o sítio Ccmargo, datado em4.650 +- 170 AP, parece conter material lítico semelhante ao destatradição (Pallestrini 1976, Kern 1982).

Outros sítios desta tradição são encontrados do Paranapanema parao sul, até a vertente meridional do platõ, e a leste ao longo do riouruguai. Ao norte do Paranapanema, no vale do rio Pardo, nordestepaulista, Guidon (1964) e Caldarell i & Neves (1981) descrevemindústrias semelhantes.

A indústria lítica desta tradição reune artefatos de maioresproporções, sobre lascas espessas (\ ~:ocos, utilizando sempre apercussão direta. O biface curvo (ou "boomerang") é seu "fossil-guia".Outros artefatos mais comuns são os raspadores pesados e médios(plano-convexos, laterais e circulares) , lascas irregularmenteretocadas, picões e talhadeiras. A matéria prima por excelência é oarenito silicificado, sendo também empregadas outras rochas efusivas eo silex.

Para estes grupos supõe-se urna subsistência baseada na caça,coleta e pesca, explorando os diversos e abundantes recursos da mata edos grandes rios, ao longo dos quais se encontram os sítios. As únicasévidências de restos alimentares apontam nesta direção, indicandoinclusive a importância da pesca, destacada pela presença de anzóis(Rizzo 1968).

Os sítios são, na sua grande ~ai~ria, a céu aberto, e distribuem-se de um modo geral na por-ção ocidental do planalto, mais baixa e

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~ente, em associação com áreqs onde predominam as formaçõesflorestais fechadas.

A origem desta tradição é desconhecida. Os sítios mais antigossão do começo do Holoceno, e as datações sugerem que sua distribuiçãoteria acompanhado a expansão holocênica das áreas florestadas. Conta-se com datas bastante recuadas, em torno de 8.000 a 7.000 anos AP, nochamado "complexo Altoparanaense", em Itapiranga, Santa catarina (Rohr1968); e também na margem direita do rio Uruguai, na provínciaargentina de Misiones (Rizzo 1979). A partir destas áreas, a tradiçãoparece ter-se expandido para leste, ao longo do rio Uruguai, emdireção à vertente meridional do platô, e também para o norte, no valedo rio Ivaí (por volta de 5.000 AP, Chmyz 1977), e no Paranapanema, umpouco mais tarde.

Assim como para a tradição Umbu, a partir de 4.000 AP, quando oclima vai se resfriando, os sítios da tradição Humai t:"'I.passam a sedistribuir mais densamente por todo o planalto. Em det.erminada s áreas,como na encosta meridional, as duas tradições parecem se misturar.

Schmi tz (1984b) sugere que os grupos relacionados à tradiçãoHumaitá teriam desenvolvido uma agricultura incipiente, talvez mesmodando origem a certas tradições ceramistas regionais do planalto sul-brasileiro (Taquara, Itararé ou Casa de Pedra). Infel .izmente, a~_:,danão existem evidências consistentes para se avançar esta questão, e opróprio Schmi tz (1984b: 26) aponta que "sítios da tradição Humai tácontinuam a se desenvolver dentro da floresta ainda por um longotempo, até que os horticultores da Tradição Tupiguarani a conquistamintegralmente" .

os grupos horticultoresA partir do primeiro milênio de nossa era, o planalto meridional

vai sendo gradualmente ocupado por povos horticultores e ceramistas,que podem ser divididos em dois ·grandes grupos: os relacionados à

tradição cerâmica Tupiguarani, e aqueles com uma cerâmica bastantedistinta, em sítios com distribuição restrita ao sul do Brasil, e porisso relacionados a "tradições regionais" (Schmitz 1968, 1980;Brochado 1969). .,

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Nas áreas planál ticas circunj acentes ao Ribeira de Iguape são

~contrados sitios da Tradição Tupiguarani no alto Paranapanema(sitios José Fernandes e Fonseca - Maranca 1968/69; Pallestrini 1969;Chmyz 1972), no vale do Itararé onde além de sitios a céu aberto

identificados "sitios cemitério" (Chmyz 1972; Chmyz et aliiforam1968; Maranca 1974), no alto Iguaçu (Chmyz 1969a) e no médio Tibagi(Nigro 1970; Chmyz 1977).

os grupos relacionados a esta tradição eram horticultores,~~ando grandes aldeias, geralmente sobre colinas próximas aos riosprincipais, sempre nas áreas florestadas. Um de seus elementosdiagnósticos são os enterramentos secundários em urnas, realizados naprópria aldeia ou nas proximidad .s . A indústria litica se resume agrandes bi faces pol idos e abrasadores, com raros instrumentoslascados, como as talhadeiras. São ainda comuns o tembetá e o

cachimbo.Seu pr .inc LpaL indicador arqueológico é a cerâmica que pode ser

lisa, com decoração plástica (co;rrugada, ungulada ou escovada) oupintada. De acordo com a predominância destes tipos, a tradição foidividida em 3 sub-tradições: Pintada, Corrugada e Escovada.

A mais antiga seria a "Pintada inicial", representando os

~i~eiros grupos qle ~lcanç~ram a porção meridional brasileira, até oParanapanema. É no I imi te desta área que aparecem as datações maisantigas: 470 DC no médio vale do Paranapanema e 570 DC no rio Ivai.Nasáreas mais quentes, ao norte, teria havido uma especialização nocultivo predominante da mandioca, representando a sub-tradição"Pintada clássica" (Schmitz 1980, Ferrari e Schmitz 1981/82).

A sub-tradição "':orrugada seria também derivada da "Pintada~icial", como uma adaptação especializada nas áreas mais frias ao suldoParanapanema. Estes grupos teriam uma alimentação mais variada, combase no milho e no aipim (Schmitz 1980, Brochado 1973 a e b, 1980). Ossítios mais antigos estão no vale do Jacui, no Rio Grande do Sul, edatam de 475 DC. Existem também outros nos vales dos rios Paraná,Pirapó, baixo Iguaçu e Ivai, no Paraná, este último com datas maisrecentes, dos séculos XV ao XVII (Schmitz 1980, Chmyz 1968b, 1969,1977) •

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Já a sub-tradição Escovada foi contemporânea à chegada dosuropeus, dos quais recebe várias influências, sendo mais restrita naua distribuição geográfica. Dos poucos sítios conhecidos, algunsorrespondem a reduções jesuíticas (Chmyz 1968).

* * *

Para os sítios associados às "tradições regionais", os maisróxirnos ao Ribeira estão no alto Iguaçu, próximos à cidade deuritiba, e no vale do Itararé (Chrnyz 1967a, 1968, 1969a, 1972), todoso paraná. Estas ocorrências também integram urna extensa distribuiçãoor todo o planalto sul-brasileiro.

Os sítios foram agrupados em diferentes tradições e fases, apesarda extrema semelhança que em g~ral apresentam. Recentemente, suaintegração vem sendo sugerida, principalmente para as tr~diçõesItararé e Casa de Pedra (T.O. Miller 1978, Prous 1979, Schmitz 1980).Estas são justamente as que apre?entam sítios nos estados de São Pauloe paraná, e suas características podem ser apresentadas como um todo.

Os sítios se encontram ao longo dos rios Paranapanema, Itararé,Tibagi, Ivaí, Paraná, Piquiri e Iguaçu, sob diferentes formas: a céuaberto, em abrigos rochosos, em casas subterrâneas e em aterros (C~myz1967a, 1969b, 1972, 1981, 1982; Chmyz e Sauner 1971, Chmyz et alii1968, Prous 1979, Neves et alli 1984).

O elemento diagnóstico é uma cerâmica simples, fina, bem alisadae de coloração entre o vermelho, marrom e cinza/preto. O antiplásticoé geralmente areia. Os vasilhames são pequenos (com altura máxima de30cm) e suas formas, abertas e fechadas, variam entre contornoscilíndricos, circulares e ovais.

O material lítico lascado é· bastante numeroso mas com poucaspeças retocadas, em geral grandes raspadores, furadores e facas. Sãocomuns os seixos ou blocos apenas utilizados.

Os sítios são de tamanho reduzido e pouco espessos, o que levouChmyz (1972) a supor que corresponderiam a assentamentos de gruposnômades. A subsistência parece ter sido voltada para a caça e coleta,provavelmente auxiliada por uma aqrLcuLt.ura incipiente (Chmyz 1972,.,Schmitz 1980).

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A data mais recuada para e~tes "ceramistas regionais" é de 475 +-65 De, no vale do rio Iguaçu. No entanto, os registros são maisnumerosos a partir do 800 DC, perdurando em algumas áreas até acolonização (Chmyz 1981, 1982).

No Paranapanema e Ivaí, a cerâmica da tradição Itararé aparecetambém intrusiva em sítios Tupiguarani, e a cronologia de ambas astradições reforça o argumento de que, ao menos em algumas áreas, foramcontemporâneas (Chmyz 1972). A expansão dos ceramistas associados à

Tradição Itararé parece ter sido limitada nas matas subtropicais peloshorticultores Tupiguarani, e nos campos mais limpos do sul peloscaçadores da tradição Vieira (Schmitz 1978/79/80). No entanto, poucose sabe sobre as relações entre., estv.s di ferentes ceramistas queocuparam intensamente áreas muito próximas e, por vezes, coincidentes.

as relações entre o planalto e o litoralA idéia do ~solamento entre as populações pré-coloniais que

ocuparam o litoral e o planalto parece ter inicialmente prevalecido naliteratura arqueológica. Autores como Altenfelder Silva (1967) ouLaming-Emperaire (1975) sugeriram desenvolvimentos culturaisindependentes, especialmente para os grupos pré-ceramistas. Prous ePiazza (1977: 45) Le nbran r;..:e h~ muito a Serra do Mar tem sidoconsiderada como uma barreira natural, isolando as populaçõesplaná 1ticas das litorâneas desde os primeiros assentamentos até osTupiguarani. No entanto alguns problemas, ainda pouco aprofundados naarqueologia do Brasil meridional, apontam para outra direção.

A origem dos grupos sambaquieiros é um deles. Desde Willey(1971), e mais recentemente ~chmitz (1981) e Neves (1984), argumenta-se que a ocupação do litoral ter-se-ia dado por populaçõesprovenientes do planalto. Por outro lado, a ocorrência no interior deartefatos tradicionalmente associados aos sambaquis (como os zoólitos- Prous 1977), ou mesmo de sítios concheiros em altos cursos fluviais- como no Itajaí (Eble 1973b) e no próprio vale do Ribeira - sugerem apossibilidade de grupos sambaquieiros terem também ocupado áreasinterioranas, valendo-se do acesso facilitado pelas vias fluviais.,Além disso, não se descar~a a possibilidade de que estas populações

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possam ter-se deslocado sazonalm~nte entre o planalto e o 1itoral,explorando recursos diversificados (Schmitz 1984a:14).

A possibilidade de uma exploração simultânea do planalto e dolitoral parece se colocar mais concretamente para outros grupos. Asinferências quanto ao padrão de subsistência dos caçadores da TradiçãoUmbu sugerem uma exploração tambem da costa, ao menos em certasregiões, como na borda meridional do planalto (E.T. Miller 1969, MentzRibeiro 1972). Da mesma forma, para as tribos Tupi-Guarani de Sãopaulo, habitantes do planalto, conta-se com informações de cronistasdo séc. XVI, segundo os quais seus territórios abrangiam extensasáreas litorâneas (Staden 1974, Leite 1958).

Outra evidência que implica em considerar deslocamentos doplanalto para o litoral é a presença de cerâmica em sítios litorâneos,associada à Tradição Itararé. Tal deslocamento foi inclusive sugeridopara o vale do Itajaí, onde tanto no planalto circunjacente como nosacampamentos conchíferos esta cerâmica está presente (Beck 1971, Eble1973a e b). Com esta migração, ter ia havido mudanças na culturamaterial e no padrão de subsistência, voltando-se mais para a pesca, ecujos assentamentos corresponderiam aos acampamentos conchíferos,(Neves 1984). No próprio vale do Ribeira de Iguape, Chmyz (1967b)sugeriu a presença desta cerâmica,· corno decorrência dos desloc~mentosoeste-leste da tradição.

Esta discussao se estende aos grupos da Tradição Tupiguarani,considerando ainda a intrincada rede de comunicação que mantinham emtodo o planalto e litoral sul-sudeste. À rota principal, integrada aoPeabiru, cruzavam-se inúmeras vias secundárias, principalmentefluviais, sendo uma delas o próprio Ribeira de Iguape (Maack 1959).

Assim, mesmo contando-se com poucas informações sobre movimentosentre planalto e litoral, e tomando a Serra do Mar corno o grandedivisor natural, vê-se que três áreas favoreceriam sua ligação: aencosta da serra meridional do planalto, o vale do Itajaí, e o própriovale do Ribeira de Iguape. A investigação destas áreas constitui,portanto, um caminho prioritário para o avanço destas questões.

Para a borda meridional do planalto, no Rio Grande do Sul, oproblema chegou apenas a ~er levantado por Schmitz (1984b), quanto

-;

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àS evidências de material marinho em sítios interioranos da tradiçãoUmbU, e por Prous (1977), quanto à ocorrência de zoólitos no interior.

Para o vale do Itajaí, em "Santa catarina, Eble (1973a e b)apresentou um projeto de pesquisa, onde.~e propunha a estudar o valeenquanto um eixo de ligação entre a costa e o interior, favorável àadaptação ecológica de grupos migrantes.

Para o vale do Ribeira, T.O. Miller Jr. (1970) observou que estaseria a região ideal de ocorrência de vestígios arqueológicosculturalmente diversificados. O autor baseou-se em um modelo deswanson (1962) onde se pressupõe que nas áreas nucleares ("coreareas") de a~~ientes naturais estáveis, a estratigrafia cultural tenden apresentar um desenvolvimento gradual e homog:neo, enquanto que nasáreas periféricas e intermediárias esta estratigrafia conteria camadassucessivas ou entrecruzadas de diferentes ocupações o "bolo defatias arqueológico". serv í ndo=s e deste modelo, Tom Miller situou ovale do Ribeira como uma região suscetível de apresentar este tipo deestratigrafia cultural complexa, em virtude de sua situaçãointermediária entre o litoral e o planalto.

Neste sentido, a colocação do Ribeira como área de transiçãoparece perfeitamente adequada. Estas observações, se somadas àsevidências da grande diversicade je s-rupos que ocuparam o planalto e olitoral (os "ambientes estáveis" de Swanson), aumentam ainda mais opotencial arqueológico do vale do Ribeira, não só enquanto área detransição, mas também como um eixo de ligação para as populações dosdois ambientes.

* * *

Considerando ainda alguns aspectos do seu processo de ocupaçãohistórica vemos que, de fato, em diferentes momentos, o vale doRibeira parece ter desempenhado este papel. As diferentes formas depenetração, ocupação e desenvolvimento do vale revelam, sempre, ter setratado de uma área periférica ou marginal no contexto do Brasilcolonial.

Isto se aplica desd~ as primeiras incursões européias aointerior, realizadas pelos "caçadores de índios", no início do século

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XVI. Nestas atividades, o Ribeira foi explorado apenas enquanto umavia de acesso ao planalto, e nunca como uma região interessante para acaptura de indígenas. Já os "sertões" de Peruíbe e paranaguá(adjacentes ao vale) eram bastante pro~urados (Leão 1911, Magalhães1915, Leite 1938).

seguindo suas trilhas, os jesuítas instalaram urna série dealdeamentos no litoral e no planalto, formando um verdadeiro anel emvolta do interior do vale, mas nele mesmo parece não ter havido maioratuação da Companhia (Leite 1938, Hernrning1978).

O pouco interesse pelo vale dq Ribeira continua com as bandeiras.Apesar de algum ouro de lavagem ter sido aí explorado, o valenov<mente serve mais como urnavia de acesso ao planC'lto (Martins 1911,Leão 1911, Magalhães 1915). Logo a descoberta de jazidas nas regiõesleste e centro-oeste do Brasil atraem os poucos exploradores deminério que se haviam fixado no vale.

Assim, a partir do século XVII, a exploração de ouro no interiordo Ribeira foi em parte sendo s~bstituída por um cultivo incipiente dearroz e mandioca, em parte pela extração de madeira, mas ambas com umcurto período de desenvolvimento. As condições geográficas nãofavoreceram urna agricultura de maior porte, além das dificuldades deescoamento da pequena produção do interior para o porto de Cananéia,onde o rio é a única via de transporte. Isto fez com que o vale semantivesse novamente à margem de outro grande ciclo econõmico, o docafé (Silva Bruno 1957).

De todas estas tentativas de ocupação foram aos poucos resultandonúcleos de povoamento no interior do vale, sempre seguindo o eixo dorio, mas bastante reduzidos e dispersos. A precariedade das vias decomunicação e transporte em muito contribuem para isto, pois atéinício do século xx limitam-se em grande parte às vias fluviais (Krug1908, Krone 1914). Os imigrantes que tentam fixar-se no vale, desde ofinal do século XIX, acabam por abandoná-l o , atraídos pelodesenvolvimento de outras áreas do interior de São Paulo (Silva Bruno1957).

Atualmente, apesar de um relativo progresso e aumentopopulacional, o vale do Ribeira ainda ,guarda a posição periférica quedesempenhou em todas as fren~es de ocupação histórica de São Paulo e

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araná. O porto de Cananéia 1imita-se ao escoamento de urna pequenaariedade de produtos agrícolas, trazidos do interior ainda poreficiente transporte fluvial ou terrestre. Na região da baixada

plantações de banana e chá repres7ntam as produções de maiorMais para o interior, o relevo montanhoso não favorece

alguer tipo de produção agrícola mais intensiva. A recente chegadade estradas ainda não foi suficiente para mudar a forma deistribuição dos assentamentos, definida por urna dinâmica em que osias tem um papel determinante (Petrone 1966).

Assim, a história do vale do Ribeira aponta para duascaracterísticas fundamentais a serem consideradas no estudo dosassentamentos humanos: o papel d,p rio corno via de comunicação etransporte, definindo inclusive um eixo de seu povoamento; e o caráter~riférico de ao menos sua porção interiorana, em relação às áreascircunjacentes.

Somando às características arnbientais de transição do vale asdeste contexto arqueológico e h i st.ó rico , confirma-se a importância dovale do Ribeira corno urna área estratégica para a investigaçãoarqueológica dos processos de ocupação pré-colonial entre o interior eo litoral, problemática mais ampla deste projeto .

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