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A presente publicação é um dos produtos do Projeto Memórias Urbanas – Iguape/Vale do Ribeira, realizado por um grupo de docentes e alunos do Departamento de Geografia e do Labur da FFLCH/USP , em parceria com a Prefeitura Municipal de Iguape e com a Superintendência do Iphan de São Paulo, durante o ano de 2011. O projeto teve como principais objetivos: envolver a comunidade local na valorização das memórias e do patrimônio cultural; registrar e documentar a memória urbana para dar visibilidade e socializar conhecimentos populares; fortalecer o vínculo das comunidades com o seu patrimônio cultural, fomentando o reconhecimento de sua importância e incentivando, assim, a participação social na sua proteção.
Citation preview
CCCAAADDDEEERRRNNNOOO DDDEEE EEEDDDUUUCCCAAAÇÇÇÃÃÃOOO PPPAAATTTRRRIIIMMMOOONNNIIIAAALLL
MMMeeemmmóóórrriiiaaasss UUUrrrbbbaaannnaaasss dddeee IIIggguuuaaapppeee ––– SSSPPP
Foto da capa: Simone Scifoni
“A própria cidade, entre a floresta e o rio, comprime-se à volta da grande igreja do Bom
Jesus.”
(Diário de Viagem de Albert Camus)
PREFEITURA MUNICIPAL DE IGUAPE
Prefeita Municipal
Elisabete Negrão
Secretário de Cultura
Carlos Alberto Pereira Junior
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor
João Grandino Rodas
Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Sandra Margarida Nitrini
Departamento de Geografia
André Roberto Martin
Laboratório de Geografia Urbana
Anselmo Alfredo
EQUIPE TÉCNICA
Simone Scifoni, Professora do Depto de Geografia/FFLCH/USP/Labur
Danilo Celso Pereira, Geógrafo, FFLCH/USP
Talita dos Santos Barbosa, Geógrafa, FFLCH/USP
Projeto Gráfico
Danilo Celso Pereira
Simone Scifoni
(org)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
Memórias Urbanas de Iguape – SP
Iguape
2011
CCAANNTTIIGGAA PPAARRAA UUMMAA PPRRIINNCCEESSAA
DDee oonnddee vveemm tteeuu eennccaannttoo,, ddee oonnddee vveemm ttuuaa bbeelleezzaa
TTeeuuss bbeeccooss ttuuaass eessqquuiinnaass,, vveeiioo ddoo tteemmppoo ddoo oouurroo ee ddaa llaavvoouurraa ddee aarrrroozz
AAiinnddaa ttee vveejjoo pprriinncceessaa,, ccoomm oo tteeuu aarr ddee nnoobbrreezzaa,, aass mmaarrccaass nnooss vveellhhooss tteellhhaaddooss
TTuuaass aallttaass ccaallççaaddaass,, aa ssoommbbrraa ddooss tteeuuss bbeeiirraaiiss
CCeenntteennáárriiaass iiggrreejjaass,, eerraa uumm tteemmppoo ddee ooppuullêênncciiaa,, qquuee jjáá ffiiccoouu nnoo ppaassssaaddoo
OOss tteeuuss vveellhhooss ssoobbrraaddooss,, ccaassaarrõõeess ccoolloonniiaaiiss......
EErraa ddee ssee aaddmmiirraarr,, oo ssoobbrraaddoo ddooss TToolleeddooss,, aass rruuíínnaass ddoo IIttaagguuáá,, oo ccaassaarrããoo ddooss VVeeiiggaass
OO ssoobbrraaddoo ddaa PPiirráá......
OO ssoobbrraaddoo ddooss MMâânncciiooss,, oo bbeeccoo ddooss qquuaattrroo ccaannttooss,, TTeeuu rriiccoo ccaassaarriioo,,
CCaassaarrããoo ddooss OOlliivveeiirraass,, RRuuaa ddoo FFuunniill
TTeemm oo ssoobbrraaddoo ddooss FFoorrtteess,, VVeellhhoo pprrééddiioo ddoo CCoorrrreeiioo,,
PPaallaacceettee EEuurriiccoo MMoouuttiinnhhoo,, oonnddee gguuaarrddaa tteeuuss mmiissttéérriiooss,,
OOnnddee eessccoonnddee tteeuu ppeelloouurriinnhhoo..
AAnnttoonniioo ddee LLaarraa MMeennddeess
Foto: Danilo Pereira
Dedicamos este trabalho a todos os iguapenses, em particular a todos que contribuíram para a realização deste projeto, em especial aos familiares do Silvio Fernando Rodrigues, o Silvio do Despraiado (in memoriam).
Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP
Sumário
11
13
14
23
24
35
45
47 64 81 95
107
108 113 116 119
121
122
Introdução 1. A Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira 1.1 O Iphan e a Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira/SP: experiências Carina Mendes dos S. Melo 2. Reflexões: cidade, patrimônio cultural e educação 2.1. Educação para o exercício da cidadania Simone Scifoni 2.2. Iguape, arquiteturas em processo e construção da proteção federal, Flávia Brito do Nascimento 3. Memórias Urbanas de Iguape: Rodas de Memórias 3.1. Cultura Caiçara 3.2. Quilombos do Ribeira 3.3. Histórias de Pedra e Cal 3.4. Águas de Iguape 4. Práticas em Educação Patrimonial 4.1. Trabalho com textos 4.2. Valorização dos conhecimentos tradicionais 4.3. Explorar e conhecer o patrimônio edificado 4.4. Linha do tempo: memória e história oficial Sobre os autores Referencias bibliográficas
“Algumas centenas de casas, mas de estilo
único, baixas, caiadas, multicoloridas. [...]
Iguape tem ares de estampa colonial.”
(Diário de Viagem, de Albert Camus)
Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
INTRODUÇÃO | 11
INTRODUÇÃO
A presente publicação é um dos produtos do Projeto Memórias Urbanas –
Iguape/Vale do Ribeira, realizado por um grupo de docentes e alunos do
Departamento de Geografia e do Labur da FFLCH/USP1, em parceria com a
Prefeitura Municipal de Iguape e com a Superintendência do Iphan de São Paulo,
durante o ano de 2011.
O projeto teve como principais objetivos: envolver a comunidade local na
valorização das memórias e do patrimônio cultural; registrar e documentar a
memória urbana para dar visibilidade e socializar conhecimentos populares;
fortalecer o vínculo das comunidades com o seu patrimônio cultural, fomentando
o reconhecimento de sua importância e incentivando, assim, a participação social
na sua proteção.
Entendemos a Educação Patrimonial para além da simples divulgação do
patrimônio: não se trata apenas de difundir conhecimentos ou de reproduzir
informações a um número maior de pessoas. Trata-se, antes de tudo, de
construir uma nova relação das comunidades e o seu patrimônio,
possibilitando a apropriação social de conhecimentos do qual ele é suporte. Mas
essa construção só pode ser feita quando se considera e se incorpora as
necessidades e expectativas das comunidades envolvidas.
Assim sendo, a valorização da memória coletiva foi o ponto de partida neste
projeto, compreendendo que na essência dos objetos materiais, das arquiteturas e
do urbanismo, há moradores e suas vivências, um cotidiano que dá vida e
dinamismo a esse patrimônio. Neste sentido, o projeto envolveu a realização de
quatro “Rodas de Memória”, que foram momentos de encontro nos quais
pudemos ouvir e registrar as falas e relatos das vivências dos moradores, os
“causos” e as histórias iguapenses.
O resultado é a publicação deste volume voltado à formação de educadores que
atuam no município de Iguape. Ele se encontra organizado em quatro partes:
inicialmente é apresentado um relato sobre algumas experiências e reflexões
sobre a atuação do Iphan/SP na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira; na
segunda parte temos artigos que buscam introduzir e problematizar as questões
relativas à própria Educação Patrimonial e as ações relativas ao processo de
tombamento do Centro Histórico de Iguape; na terceira parte encontram-se os
registros das quatro Rodas de Memória, organizados sob a forma de temáticas de
1 O projeto contou com apoio do Fundo de Fomento às Iniciativas de Cultura e Extensão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
12 | INTRODUÇÃO
discussão; e na última parte incorporamos algumas sugestões de práticas
educativas para que os professores possam se inspirar criando, assim, suas
próprias atividades em sala de aula. A expectativa é de contribuir para a formação
em Educação, pela via da memória e do patrimônio cultural.
“De todas as necessidades da alma humana não há outra mais
vital que o passado”. Simone Weil
Simone Scifoni
O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS
CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 13
A Casa do Patrimônio do
VALE DO RIBEIRA
Foto: Leônidas Damasceno / Acervo da Casa do
Patrimônio do Vale do Ribeira
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP
14 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO
O Iphan e a Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira/SP:
experiências
Carina Mendes dos Santos Melo
Este breve artigo busca relatar
algumas experiências e reflexões
sobre a atuação do Iphan/SP na Casa
do Patrimônio do Vale do Ribeira,
onde são desenvolvidas atividades
práticas no campo da educação
patrimonial, não tendo a pretensão
de apontar metodologias em
educação, conceitos e linhas
pedagógicas ou estratégias para
gestão das Casas.
De forma geral, a linha condutora
para atuação do Iphan tem sido a
busca pela participação social,
promovendo o envolvimento da
população local, não apenas para o
esclarecimento de questões
referentes ao patrimônio cultural,
mas também, para a construção de
uma relação compactuada, dialógica,
de duas vias, onde entendemos como
indispensável para as ações de
salvaguarda considerar os valores
individuais e coletivos atribuídos por
aqueles que vivenciam os objetos e
manifestações patrimoniais. São os
olhares, as formas de sentir, os
valores afetivos e simbólicos que se
tem buscado respeitar nesta relação
que vem se estabelecendo, tendo
como espaço de interlocução a Casa
do Patrimônio.
CONTEXTUALIZAÇÃO
O projeto das Casas do Patrimônio
foi concebido nacionalmente pelo
Iphan como uma proposta de
transformar as sedes e
representações do órgão, nos
estados, em pólos de referência local
e regional, para qualificar e atender a
população residente em uma
perspectiva de diálogo e reflexão.
Tratava-se ainda de uma estratégia
para reverter a visão negativa da
população em relação à instituição
que possuía prolongada atuação em
determinados locais.
Em Iguape, a proposta foi conduzida
de forma pioneira dentro do Iphan,
pois a Casa do Patrimônio foi
estruturada antes mesmo da
proteção federal, durante os
trabalhos de identificação do
patrimônio cultural desenvolvidos na
O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS
CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 15
região sul do estado. Sob a temática
da paisagem cultural, a partir de
2007, a equipe técnica da
Superintendência do Iphan em São
Paulo, iniciou os trabalhos num
amplo projeto de identificação
denominado “Paisagem Cultural do
Vale do Ribeira”. Naquele momento
foram realizadas as primeiras
aproximações com representantes
dos diversos municípios ao longo do
Vale, e que resultaram em ricos e
densos estudos, desenvolvidos com a
participação e anuência da
população, e formalizados nos
seguintes documentos: Dossiê da
Paisagem Cultural do Vale do
Ribeira; Dossiê para Registro do
Tooro Nagashi; Dossiê de
tombamento do Centro Histórico de
Iguape e Dossiê da Imigração
Japonesa, todos finalizados, tendo os
dois últimos resultado em
tombamento.
O tombamento de Iguape acontece
em dezembro de 2009, em
reconhecimento aos seus valores
históricos e paisagísticos. A proteção
federal engloba seu núcleo histórico,
o Morro da Espia e o Canal do Valo
Grande, elementos materiais
testemunhos de sua história. Em
suma, representam aspectos da
cidade no período de exploração do
ouro nos séculos XVII e XVIII,
passando pelo faustoso ciclo do arroz
entre o final do século XVIII e a
primeira metade do século XIX, pelo
crescimento e apogeu da indústria
naval, até o período de ostracismo, a
partir de meados do século XX,
ocasionado pelos desdobramentos
ecológicos decorrentes da abertura
do Canal do Valo Grande no século
anterior que inviabilizou o
funcionamento do seu porto
marítimo.
A implantação da Casa do
Patrimônio foi viabilizada, devido,
principalmente, a uma parceria com
a Prefeitura Municipal que enxergou
no projeto uma oportunidade de
potencializar as ações locais,
aproximando a população aos temas
preservação, patrimônio,
tombamento, etc. A formalização da
iniciativa foi feita por meio de um
Termo de Cooperação Técnica
celebrado entre o Iphan e a
Prefeitura de Iguape para
implementação da Casa, cujo
objetivo principal consistia em
conformar um espaço de
interlocução com a comunidade
local, visando propiciar o debate e a
participação social na gestão,
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP
16 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO
proteção e valorização do patrimônio
cultural. No documento, compete ao
Iphan-SP, a organização e gestão das
atividades educativas, além de
orientação técnica e apoio na
execução de ações de iniciativa da
Prefeitura; e à Prefeitura, a
administração e gestão da Casa de
Patrimônio, podendo também
desenvolver atividades e eventos em
seu espaço, de comum acordo com o
Iphan-SP.
AÇÕES DO IPHAN NA CASA
Inaugurada em maio de 2009, as
primeiras ações desenvolvidas na
Casa do Patrimônio foram voltadas
principalmente para sua estruturação
e consolidação como espaço cujo
elemento principal, o eixo condutor
das atividades, é o patrimônio
cultural, colocando em evidência sua
vocação e suas possibilidades de
atuação nos municípios do Vale e,
especialmente, em Iguape. Assim, foi
montada biblioteca especializada em
temas relacionados ao patrimônio
cultural, visando transformar a Casa
num centro de referência regional
dentro do Vale do Ribeira para a
pesquisa e a reflexão sobre a
temática; foi inaugurada exposição
sobre a atuação do Iphan no Vale do
Ribeira, com o intuito de socializar o
conhecimento produzido por meio
das ações de identificação na região;
foram realizadas oficinas voltadas
para formação e capacitação como
uma oficina de maquetes - visando
capacitar estudantes e educadores
com relação a essa técnica de
representação espacial; e oficina de
biblioteca – visando transmitir
critérios e orientações básicas na
formação e gestão de bibliotecas.
O tombamento de Iguape acontece
em dezembro de 2009. As ações do
Foto da Oficina de Maquete, em 2009. Alunos durante os trabalhos da Oficina e uma das maquetes finalizada. Fonte: Sentidos Urbanos
O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS
CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 17
Iphan na Casa do Patrimônio nos
anos seguintes concentram-se
basicamente na divulgação e
construção da informação e das
diretrizes necessárias para gestão e
valorização do sítio tombado. A Casa
desenvolve importante papel como
canal de aproximação com a
população, torna-se o local
referencial do Iphan na cidade, e
agrega em suas ações a função de
atendimento ao público para
esclarecimentos e orientações
técnicas necessárias diante das
questões decorrentes da proteção
legal do patrimônio material da
cidade. Alguns dos projetos que vem
sendo realizados:
Iphan Conversa
Com o intuito de abordar diversos
temas relacionados ao patrimônio
cultural, os primeiros esforços de
aproximação com a população no
momento pós-tombamento foram
feitos por meio de encontros
realizados na Casa do Patrimônio,
denominados “Iphan Conversa”.
Cabe ressaltar que este título foi
utilizado primeiramente para
denominar uma série de encontros
técnicos realizados na própria
Superintendência do Iphan São
Paulo para discutir a temática do
patrimônio cultural especialmente
entre órgãos preservacionistas.
A denominação nos pareceu profícua
e potencialmente adequada aos
encontros que se pretendia realizar
em Iguape, uma vez que o termo
“conversa” remete à ideia do
“diálogo”. Assim, conceitualmente, o
que se tem buscado nestes encontros
não é simplesmente a transmissão de
informação, de caráter unilateral,
mas a construção dela, a partir de um
formato aberto, onde além de
esclarecimentos e orientações são
possíveis intervenções, sugestões e
críticas. Em 2010, dentre outros,
foram realizados encontros sobre o
tombamento de Iguape; sobre
colocação de letreiros e toldos no
centro histórico; sobre patrimônio
imaterial; e encontros com
profissionais da construção civil.
Exemplificando, o formato se
mostrou muito adequado para o trato
de questões como a normatização
para letreiros e toldos em Iguape. A
partir de um primeiro estudo
elaborado por técnicos da instituição,
com a participação e anuência da
Prefeitura e do órgão de preservação
estadual (UPPH/Condephaat), a
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP
18 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO
proposta foi apresentada em dois
encontros “IPHAN Conversa” abertos
à comunidade, onde foram colocadas
as inadequações da proposta, tendo
sido esta ajustada de acordo com as
necessidades dos comerciantes.
Sentidos Urbanos: Patrimônio e
Cidadania
Durante o I Seminário de Avaliação e
Planejamento das Casas do
Patrimônio, realizado entre 27 de
novembro e 01 de dezembro de
2009, em Nova Olinda/CE, tomamos
conhecimento do Programa Sentidos
Urbanos: Patrimônio e Cidadania,
projeto condutor das ações
educativas da Casa do Patrimônio de
Ouro Preto/MG. Segundo o
coordenador pedagógico do projeto,
Prof. Juca Villaschi do Departamento
de Turismo da Universidade Federal
de Outro Preto – UFOP:
[...] a concepção deste programa se caracteriza por desconstruir práticas cotidianas de deslocamentos urbanos automatizados e de provocar novos olhares, ‘sentires’ e ‘fazeres’, com leituras diferenciadas dos feitos passados, do tempo presente e das situações futuras, potencializando a construção de novos comportamentos cidadãos. (SENTIDOS, 2010, p.30)
O programa é pautado na
metodologia de roteiros
interpretativos do patrimônio e visa
provocar, antes de tudo, “a
desconstrução da prática cotidiana e
dos deslocamentos automatizados
pela cidade e requalifica[r] o olhar
anestesiado do morador, na
qualidade de sujeito dialógico”
(idem, ibidem, p. 17)
Enxergou-se no projeto um grande
potencial para trabalhar a
sensibilização para a normatização
do centro histórico tombado de
Iguape. Assim, por meio da Rede
Casas do Patrimônio, foi possível
realizar um intercâmbio de
experiências com a Casa do
Patrimônio de Ouro Preto/MG para
capacitação de monitores locais para
aplicação da metodologia de roteiros
sensoriais interpretativos localmente.
Já foram realizadas oficinas de
capacitação, ministradas pelo
professor Juca Villaschi da
Universidade Federal de Ouro Preto -
UFOP - e pela historiadora Simone
Fernandes do Escritório Técnico do
Iphan em Ouro Preto / Casa do
Patrimônio de Ouro Preto, em dois
módulos, de 08 a 10 de novembro e
de 06 a 08 de dezembro de 2010.
Falta ainda o último módulo de
capacitação para então disponibilizá-
O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS
CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 19
lo para a população; a previsão é que
a formação dos monitores termine
ainda neste ano de 2011.
Os roteiros sensoriais formulados
nas oficinas têm como eixo
estruturador a sensibilização para a
questão da regulamentação para
intervenções no sítio tombado, busca
evidenciar os valores que foram
considerados no momento do
tombamento, ao mesmo tempo em
que busca coletar que outros valores
revelados por esta
vivência/experiência individual
devem ser também considerados e
preservados no sítio histórico. Estes
dados são levantados especialmente
nas oficinas de síntese e socialização
das impressões que são realizadas ao
final de cada roteiro.
Em síntese, a proposta consiste em
adotar o programa como projeto de
educação patrimonial suporte para as
ações normativas a serem
empreendidas pelo Iphan/SP. Um
recurso para sensibilização dos
moradores no tocante à necessidade
“de atitudes de valorização e co-
responsabilidade pela proteção do
patrimônio cultural e natural” (idem,
ibidem, p.21) da cidade.
Projeto Cores para Iguape
Em 2011 torna-se premente a
necessidade de consolidação de
diretrizes e normas para o centro
histórico de Iguape, por meio de
ações mais diretas e efetivas para
construção de manuais, documentos
e projetos, visando especialmente à
valorização da área tombada. Desta
necessidade propôs-se o projeto
“Cores para Iguape”, que parte de
uma negociação com os moradores
da cidade para regulamentação dos
serviços de pintura no seu centro
histórico.
Assim, a partir de uma parceria com
a Prefeitura Municipal, o Projeto
Oficina Escola de Artes e Ofícios
(POEAO) e a empresa de restauro
Estúdio Sarasá, a oficina foi realizada
em dois módulos. Em maio
aconteceu o primeiro módulo onde se
discutiu tipos de tintas, cores e
padrões de pinturas adotados
tradicionalmente no centro histórico,
além de terem sido realizados testes
de pintura à base de cal, com a
finalidade de subsidiar o primeiro
estudo para regulamentação para
pintura das fachadas.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP
20 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO
O segundo módulo da oficina, no
final de junho, contou com nova
apresentação do documento sobre
pinturas, juntamente com a proposta
para regulamentação de letreiros e
toldos, que já havia sido apresentado
à população em outubro de 2010,
num “Iphan Conversa”. Neste
módulo foi elaborada uma paleta de
cores no muro dos fundos da Casa do
Patrimônio com o objetivo de servir
como referência para os moradores
que queiram pintar seus imóveis
situados em área tombada e seu
entorno, respeitando e valorizando a
cidade, sua história, seu patrimônio e
os materiais tradicionais de Iguape.
Cabe ressaltar que o projeto não
propunha resgatar padrões de
pintura do passado para serem
reproduzidos no presente. O objetivo
baseava-se na ideia de que a partir do
conhecimento técnico e da análise e
avaliação dos recursos, combinações,
contrastes e tonalidades utilizados
em épocas passadas, se pudesse
construir diretrizes para o presente e
futuro do sítio tombado, pautado na
conservação e valorização da
arquitetura histórica e nos anseios da
população residente.
Parcerias
O estabelecimento de parcerias
esteve presente desde o momento
inicial de criação da Casa do
Patrimônio do Vale do Ribeira, e
caracteriza-se como fator que
viabiliza e potencializa suas ações
educativas. Dentre os parceiros
temos: Prefeitura Municipal de
Iguape; Governo do Estado de São
Paulo, por meio da Secretaria de
Estado da Cultura: UPPM (Unidade
de Proteção do Patrimônio
Museológico) e UPPH (Unidade de
Proteção do Patrimônio
Histórico/CONDEPHAAT); ABAÇAÍ
Cultura e Arte; Ponto de Cultura
“Cultura esse é o ponto”; Ponto de
Cultura "Jovens da Juréia"; AAPCI –
Associação de Artesãos e Produtores
Caseiros de Iguape; Programa de
Promoção do Artesanato de Tradição
Cultural/Promoart; Associação de
Amigos do Museu de Folclore Edison
Carneiro Acamufec/Centro Nacional
de Folclore e Cultura Popular/Iphan;
Museu Vivo do Fandango; Estúdio
Sarasá; POEAO – Projeto Oficina
Escola de Artes e Ofícios; Curso de
Geografia da Universidade de São
Paulo/USP; ETEC/Iguape (Centro
Paula Souza - Curso de Turismo);
O IPHAN E A CASA DE PATRIMÔNIO DO VALE DO RIBEIRA/SP: EXPERIÊNCIAS
CARINA MENDES DOS SANTOS MELO| 21
Casa do Patrimônio de Ouro Preto;
Museu da Pessoa.
Perspectivas e Desafios
O I Seminário de Avaliação e
Planejamento das Casas do
Patrimônio realizado no final de
2009 foi um momento emblemático
de avaliação das primeiras Casas, e
de reflexão para o estabelecimento de
diretrizes comuns para sua
constituição e formulação de
atividades. Conceitualmente,
A Casa do Patrimônio tem por
objetivo constituir-se como um
espaço de interlocução com a
comunidade local, de articulação
institucional e de promoção de ações
educativas, visando fomentar e
favorecer a construção do
conhecimento e a participação social
para o aperfeiçoamento da gestão,
proteção, salvaguarda, valorização e
usufruto do patrimônio cultural.
(CARTA, 2010)
A Casa do Patrimônio de Iguape teve
participação neste Seminário;
naquele momento, haviam sido
realizadas ações estruturantes, sua
inauguração, as primeiras oficinas e
uma exposição temática sobre os
trabalhos realizados pelo Iphan na
região. As reflexões estimuladas
durante o encontro, sobre a educação
patrimonial e o papel do Iphan neste
processo, reposicionaram a Casa do
Patrimônio de Iguape como parte de
uma rede nacional de Casas do
Patrimônio. Este fato apontava a
possibilidade da troca de
informações e experiências, um
caminho capaz de fortalecê-la
enquanto seu papel como pólo
referencial regional em ações
educativas pautadas na temática do
patrimônio cultural. Após o
encontro, passou-se denominar como
Casa do Patrimônio do Vale do
Ribeira; contudo, a consolidação de
sua atuação regional, trata-se de um
desafio a ser ainda transposto:
Ficou ainda o entendimento da
necessária formação de uma rede
partindo da Casa, através do
estabelecimento de parcerias
locais/regionais. Esta rede vem se
formando gradativamente, o que tem
possibilitado a implementação de
uma diversidade de ações educativas.
Nesta ótica, a gestão do espaço segue
compartilhada. Em geral, os projetos
que tratam de patrimônio cultural,
formas de registro, apropriação,
valorização etc. são sempre bem-
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE - SP
22 | CARINA MENDES DOS SANTOS MELO
vindos e encontram a Casa de portas
abertas.
Para o Iphan, a Casa do Patrimônio
efetiva-se principalmente como
espaço de interlocução com a
comunidade local, uma das missões
previstas na Carta de Nova Olinda,
aberta ao debate e à participação
social para gestão do patrimônio
cultural, conforme previsto no Termo
de Cooperação Técnica. Tem sido
estratégica nesta aproximação entre
a instituição e a população,
desmistificando o trabalho de
proteção do acervo patrimonial
regional e compartilhando
responsabilidades.
Entendemos que a proteção
patrimonial deve ser uma tarefa
coletiva e deve, antes de tudo, ser
compreendida, (re)construída e
compartilhada, para que não se
configure apenas como uma visão
técnica institucional. O
reconhecimento de que a
participação social deve ser uma das
premissas de todos os trabalhos de
identificação, gestão, proteção e
valorização do patrimônio cultural
tem sido patente dentro do Iphan.
Os desafios são muitos, mas as
perspectivas são promissoras. A
equipe da Casa do Patrimônio do
Vale do Ribeira encontra-se num
momento de avaliação de sua
atuação até o momento com o intuito
de desenhar suas próximas
diretrizes.
Referências Bibliográficas:
SENTIDOS URBANOS: Patrimônio e Cidadania. IPHAN, FAOP, UFOP: Ouro Preto, 2010.
CARTA DE NOVA OLINDA. Documento final do I Seminário de Avaliação e Planejamento das Casas do Patrimônio. IPHAN: Nova Olinda/CE, 2010. Disponível em: http://educacaopatrimonial.files.wordpress.com/2010/08/cartaa5_09marco2010.pdf
Sites acessados:
Blog da Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira: http://casadopatrimoniovaledoribeira.wordpress.com/, acesso em 14 de agosto de 2011.
Blog de Educação Patrimonial: http://educacaopatrimonial.wordpress.com/, acesso em 14 de agosto de 2011.
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
SIMONE SCIFONI | 23
REFLEXÕES:
cidade, patrimônio cultural e educação
Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
24 | SIMONE SCIFONI
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA
CIDADANIA
Simone Scifoni
Introdução
Vinte anos se passaram desde que a
Constituição Federal inaugurou uma
noção renovada de patrimônio
cultural, imprimindo novos
postulados, os quais já se
encontravam presentes tanto no
debate sobre o tema como em
algumas práticas institucionais.
Com a definição estabelecida no
artigo 216 da Constituição superou-
se a noção de patrimônio
exclusivamente centrada nos “fatos
memoráveis” da história oficial
nacional, tal qual estava estabelecido
bem antes no Decreto Lei Federal
no 25, de 1937, permitindo assim a
compreensão da memória nacional
para além daquela postura
eminentemente celebrativa. Ao
mesmo tempo isso possibilitou
ampliar a visão tradicional do
patrimônio desvinculando o valor
cultural do caráter necessariamente
excepcional ou monumental dos
bens. A partir da Constituição
Federal o valor cultural deve ser
atribuído àqueles bens portadores de
referência à ação, memória e
identidade dos diversos grupos
sociais que compõe a nação e, com
isso, possibilita-se reconhecer o
patrimônio como memória plural.
Outros avanços na noção
estabelecida constitucionalmente
foram: a inclusão dos bens
intangíveis como uma nova
categoria de patrimônio a ser
Artigo 216 da Constituição
Federal:
Constituem patrimônio cultural
brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à
identidade, ação, à memória
dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira.
Decreto-lei Federal no 25/1937:
Art. 1o: Constitui patrimônio
histórico e artístico nacional o
conjunto de bens móveis e imóveis
existentes no país e cuja conservação
seja de interesse público, quer por
sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil,
quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico.
Bens intangíveis:
São aqueles de natureza imaterial
tais como os saberes (conhecimentos
e modos de fazer), as formas de
expressão (manifestações artísticas),
as celebrações (rituais e festas).
Fonte: Decreto federal 3.551/2000.
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
SIMONE SCIFONI | 25
protegida e reconhecida e o
entendimento do patrimônio natural
como parte da natureza incorporada
à memória social e parte da vida
humana.
Estes postulados propostos desde
então têm implicado em novos
desafios para os órgãos públicos,
uma árdua tarefa de pensar e
estabelecer outras formas de atuação
para proteger o patrimônio cultural,
já que as metodologias e práticas que
foram utilizadas por décadas atrás,
nem sempre conseguem dar
respostas às novas necessidades.
Dentre essas questões que se
colocam na atualidade está a
necessidade de construir uma nova
relação da população com o seu
patrimônio. Isso porque no Brasil,
nem sempre a população se identifica
com o patrimônio cultural tombado,
resultado de um histórico
distanciamento entre os órgãos de
preservação e a sociedade.
Essa distância histórica, justificada
pelos contextos políticos de criação
dos órgãos de preservação
federal e estadual paulista não se
reverteu plenamente hoje e disso
resulta a fraca participação social em
todo o processo. Ausência de
participação social vai desde a eleição
dos bens patrimoniais, ou seja, do
que deve ou não ser tombado,
passando também pela definição de
usos para esses bens, principalmente
no caso de patrimônios públicos, e
culmina em projetos de restauração
que nem sempre levam em conta a
relação afetiva entre as comunidades
e o seu patrimônio e, portanto, os
valores sociais envolvidos em uma
tarefa que não é meramente técnica e
nem implica somente em critérios de
autenticidade. Como resultado, via
de regra, aparecem conflitos, tensões
e freqüentemente uma imagem
negativa do patrimônio e dos órgãos
de preservação.
Iphan, Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, órgão
vinculado ao Ministério da Cultura e
criado em 1937. Está presente nos
estados da federação, por meio de
suas superintendências estaduais e
escritórios técnicos.
Condephaat, Conselho de Defesa
do Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico do
Estado de São Paulo, órgão
vinculado à Secretaria de Estado da
Cultura e pela Lei 10.247 de 1968.
Teve sua estrutura modificada pelo
decreto 50.941/2006. O processo de
tombamento é regulamentado pelo
Decreto 13.426/1979.
Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico e Cultural
de Iguape, criado pela Lei 1.927 de
2007 e tem sua sede na Casa de
Patrimônio do Vale do Ribeira.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
26 | SIMONE SCIFONI
Neste contexto, a Educação
Patrimonial, dentre as diversas
formas de aproximação entre os
órgãos de preservação do patrimônio
e a sociedade, tem sido vista como
fundamental e com papel estratégico.
No entanto, esse papel muitas vezes
tem se restringido na atuação ora
como difusão de informações, ora
como marketing institucional.
Tradicionalmente a Educação
Patrimonial tem sido entendida
como atividade de divulgação e de
transmissão de informações após a
realização dos tombamentos, dentro
da idéia redentora de levar
conhecimento ao outro, conforme
discutem Silveira & Bezerra (2007).
Ou então tem sido tratada como peça
de publicidade oficial, por meio de
folhetos, cartazes e outros materiais
de divulgação elaborados sem
preocupação didática qualquer.
Mas há outra possibilidade, aquela
de trabalhar a Educação Patrimonial
em sua dimensão política ampla, a
partir da concepção de que tanto a
memória como o esquecimento são
produtos sociais e não dados
aleatórios, segundo apresenta Chauí
(2006). À história oficial celebrativa
dos dominantes se contrapõe a
memória social, constituída
localmente no seio de grupos sociais
não hegemônicos. Propiciar
mecanismos de valorização destas
memórias é parte essencial do que a
autora chamou de cultura política.
Afinal, é preciso questionar, o que
vem a ser a Educação Patrimonial,
quais são seus propósitos e seus
princípios?
O papel e o lugar da Educação
Patrimonial
Pode-se afirmar que a gênese do que
chamamos hoje de Educação
Patrimonial se deu no interior dos
museus. Chagas (2006, p.5) nos
lembra que apesar de ainda não estar
prevista esta expressão, as práticas
da educação patrimonial já ocorriam
nos museus brasileiros desde o
século XIX, conforme constatamos
na seguinte citação:
No senso comum a expressão
“educação patrimonial” significa
apenas o desenvolvimento de práticas
educativas (mais ou menos
transformadoras) tendo por base
determinados bens ou manifestações
considerados como patrimônio
cultural. Esse não é um entendimento
estranho a Paulo Freire, Darcy
Ribeiro, Gilberto Freyre, Gustavo
Barroso, Anísio Teixeira, Roquete
Pinto, Liana Rubi O’Campo, Sigrid
Porto, Waldisa Russio e tantos outros.
De igual modo, este entendimento,
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
SIMONE SCIFONI | 27
ainda que não lançasse mão da
expressão em debate, estava
presente em práticas
museológicas do século XIX e no
serviço educativo do Museu
Nacional, formalmente criado
em 1926. (grifo nosso)
A expressão surge no Brasil muito
recentemente, quando em 1983 é
apresentada em um seminário
realizado no Museu Imperial de
Petrópolis, no Rio de Janeiro, como
tradução do termo Heritage
Education e baseada na experiência
que até então era desenvolvida na
Inglaterra. A partir da edição do
Guia Básico de Educação
Patrimonial publicado pelo Iphan
na década de 1990, o termo ganha
força e se consolida.
Ao longo do tempo as atividades
foram ultrapassando os muros dos
museus, se expandiram e
multiplicaram em projetos nos
órgãos de proteção da memória,
cultura e patrimônio, nas instituições
de ensino e organizações civis,
generalizando e consagrando a
Educação Patrimonial como um novo
campo de atuação. No entanto,
enquanto as práticas se ampliaram, o
mesmo não ocorreu com a
fundamentação teórica e a reflexão
crítica sobre estas ações, o que coloca
atualmente o desafio da necessidade
do debate e da construção coletiva
desta fundamentação.
A ausência de uma base teórica
consistente nesse novo campo de
atuação chamado de Educação
Patrimonial tem permitido que se
generalizem ações de caráter
meramente informativo, o que
representa uma limitação desse
campo. O cerne da problemática está
no fato de que tais ações não
transformam a realidade sobre a qual
elas pretender agir, pois não foram
pensadas para isso. No entanto, elas
se somam e alimentam um
crescimento quantitativo do campo
de atuação - já que nunca se falou
tanto em Educação Patrimonial como
hoje -, porém sem necessariamente
significar, qualitativamente, um
processo de transformação.
Acreditamos que o debate teórico
deve se posicionar, inicialmente,
sobre o papel e o lugar a ser ocupado
pela Educação Patrimonial,
Guia Básico de Educação
Patrimonial é uma publicação do
Iphan e tem como autoras Maria
Lourdes Parreiras Horta, Evelina
Grunberg e Adriane Queiroz
Monteiro.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
28 | SIMONE SCIFONI
problematizando questões sobre as
quais é urgente refletir. As atividades
educativas continuarão a ser
relegadas à etapa final do processo de
identificação, estudo e proteção do
patrimônio cultural, como
meramente divulgação dos bens
tombados ou como forma de
resolução de conflitos gerados pela
ausência de participação social no
processo? Continuarão a serem
tratadas como apêndice,
desvinculado do planejamento das
ações de estudo? Que papel elas
devem cumprir, devem ser
entendidas como atividades em si
mesmas ou elas se integram a um
projeto de transformação da
realidade e do mundo que vivemos?
Planejar uma atividade de Educação
Patrimonial implica em ter claro,
antes de tudo, as respostas para estas
questões.
O desafio hoje da Educação
Patrimonial é torná-la um
componente essencial de todo o
processo de identificação do
patrimônio, o que significa
incorporá-la como atividade pari
passu e integrada às pesquisas de
tombamento e/ou de inventário do
patrimônio imaterial, fomentando,
desde muito cedo, uma relação
próxima e dialógica com as
comunidades do lugar em que se vai
atuar. Neste caso ela se revela como
uma possibilidade de participação
social na construção de um
patrimônio compartilhado,
considerando as necessidades e as
expectativas das comunidades
envolvidas.
Este é o lugar e o papel que lhe cabe.
Neste sentido, a Educação
Patrimonial reconhece a existência
de um saber local, considera e
valoriza o olhar e a vivência dos
moradores, sinalizando-se, assim,
para uma concepção de educação de
caráter dialógico, conforme propôs
Freire (2011), na qual se busca a
consciência crítica, aquela que insere
as pessoas como sujeitos no
mundo, uma educação libertadora.
O papel da Educação Patrimonial
deve ser o de superar aquela visão de
uma “educação para o patrimônio”,
como se esta se restringisse apenas à
compreensão das questões do
patrimônio. Para uma educação
patrimonial libertadora, o
patrimônio e a cultura são elementos
de mediação, através dos quais as
pessoas podem se reconhecer como
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
SIMONE SCIFONI | 29
sujeitos da realidade e do mundo.
Reconhecem-se a partir da
valorização de sua cultura e de uma
postura problematizadora em relação
à história, à memória oficial e ao
patrimônio.
Por meio do patrimônio e da cultura,
mas apenas sob um olhar
problematizador e sob uma
perspectiva dialógica, como propôs
Paulo Freire, é possível contribuir
para a tomada de consciência
dos homens como sujeitos da
sua própria história. Este sim
deve ser o objetivo maior da
Educação Patrimonial. Não significa
de forma alguma, dentro da
concepção freireana, tomada de
consciência em relação à cultura,
como se esta estivesse fora da
realidade objetiva considerada ou
como se tratasse de levar cultura aos
lugares destituídos desta. É
compreender a cultura como
mediação, ou seja, como meio que
contribuirá para a consciência dos
homens sobre o seu papel de sujeito,
consciência de si mesmo e de sua
ação.
Pressupostos para a Educação
Patrimonial
Na tentativa de iniciar um debate
teórico que possa fundamentar mais
coerentemente as ações e as práticas
propomos dois pressupostos
essenciais para uma Educação
Patrimonial de caráter dialógico e
libertador.
Em primeiro lugar, é preciso
desmistificar e desfetichizar o
patrimônio, o que significa explicitar
que os patrimônios não são objetos
dados, cabendo ao poder público
apenas a tarefa de reconhecer neles
valores intrínsecos. Valores são
atribuídos, resultado de escolhas que
são feitas. Como nos lembra Meneses
(1996), os valores culturais não são
espontâneos, eles decorrem da ação
social, eles são produzidos no jogo
concreto das relações sociais. Valores
são historicamente constituídos, o
que significa seu caráter relativo ao
tempo, as condições em que a
sociedade opera naquele momento.
Isso significa que um patrimônio
reconhecido não tem valor em si
mesmo, ele possui propriedades
estéticas, físicas para as quais são
atribuídos valores, em determinado
momento e contexto histórico.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
30 | SIMONE SCIFONI
Disto resulta o caráter político e,
portanto, conflituoso do universo
cultural.
Declaram-se valores e propõem-se
sentidos que podem entrar em conflito
com outros valores e sentidos. O
campo cultural, portanto, imbrica-se
no do poder. Assim, o conflito deve ser
considerado não apenas como
ingrediente normal da cultura, mas
ainda como instância geradora, força
motriz. Como conseqüência,
pretender que a cultura tenha funções
anestésicas, de harmonização e
integração social, já é uma forma
cultural de agir (segundo interesses
hegemônicos), mas desfigura o
fenômeno se pretender eliminar de
seu horizonte especificamente o
conflito, a desarmonia, a
segmentação. (MENESES, 1996, p.
92)
Assim sendo, o patrimônio não é
neutro, por meio dele são
explicitadas determinadas
hegemonias e legitimados
determinados pontos de vista
perante a sociedade. Para Chagas
(2002), na prática, não há como
separar memória e preservação do
exercício do poder. Pergunta-se:
quem são os responsáveis pelas
escolhas que se faz do que deve ou
não ser preservado? Como essas
escolhas são feitas e em nome de
quais memórias? Pode haver critério
absolutamente objetivo em um
universo onde essas escolhas são
parte do aparelho onde está sediado
o exercício do poder? Estas questões
devem fazer parte da Educação
Patrimonial, do contrário somente
contribuiremos para a fetichização
do patrimônio e para que este se
torne um instrumento de reprodução
das relações de dominação e de
desigualdade social.
Seguindo um modelo internacional
de proteção do patrimônio,
fundamentalmente francês e
europeu, a escolha histórica dos
nossos órgãos de preservação deu-se
pela representação da memória a
partir de tudo que é monumental e
excepcional, simulando uma
sociedade nacional cujos símbolos
são a grandiosidade e o prestígio. Ao
mesmo tempo apagam-se os conflitos
e as desigualdades que marcaram os
processos históricos, como quando se
preserva unicamente as sedes da
fazenda, mas, em contrapartida
deixa-se desaparecer as senzalas e as
casas de colonos.
Ainda, segundo este mesmo autor, a
desigualdade do patrimônio aparece
também na hierarquia de valores
atribuída, uma hierarquia dos
capitais culturais na qual vale mais a
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
SIMONE SCIFONI | 31
arte, a cultura escrita e as formas
eruditas do que o artesanato, a
cultura oral e as formas populares,
respectivamente. “O patrimônio
cultural serve, assim, como recurso
para produzir as diferenças entre os
grupos sociais e a hegemonia que
gozam de acesso preferencial à
produção e distribuição dos bens”
(CANCLINI, 1996, p.97).
Neste modelo de patrimônio cultural,
como é possível que operários e
camponeses, por exemplo, possam se
enxergar neste conjunto da memória
nacional? Marins (2008), ao analisar
as políticas públicas federais em São
Paulo, é incisivo ao afirmar que as
escolhas feitas excluíram grande
parte das “multifacetadas heranças
culturais”. Ainda, segundo o autor a
“[...] memória unívoca de uma ‘nação
brasileira’ não acolhia, nem poderia
acolher, a imensa maioria dos
brasileiros”(op.cit, p.146).
Os estudos que vem sendo
desenvolvidos pelo Iphan, desde
2007, para a identificação e proteção
do patrimônio cultural na região do
Vale do Ribeira procuraram
enfrentar esse desafio. Criar um
mapa do patrimônio mais plural e
representativo da diversidade
paulista, ampliando o estoque
patrimonial e sua diversificação
tipológica e promovendo um olhar
voltado para o interior do estado,
contemplando outros territórios e
novas temáticas.
Reconhecer de vez o caráter desigual
do patrimônio cultural é condição
essencial para uma Educação
Patrimonial libertadora e que busca a
transformação da realidade.
Reconhecer que a desigualdade
começa na eleição e sacralização do
patrimônio e que é preciso uma
participação mais igualitária na sua
construção, conforme discute
Canclini (1994). E assim, ao garantir
uma participação social efetiva na
construção das políticas de proteção
da memória e do patrimônio, criar a
condição para que a população possa
se identificar e se enxergar no
patrimônio e na memória oficial. É
fundamental, para tanto, considerar
no processo de valoração do
patrimônio cultural, além dos valores
estéticos e formais, os laços afetivos,
sociais, simbólicos.
Tem-se aqui o segundo pressuposto
essencial para a Educação
Patrimonial libertadora e dialógica,
ou seja, a necessidade de uma
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
32 | SIMONE SCIFONI
postura problematizadora frente a
este patrimônio cultural e, portanto,
à própria realidade objetiva. Isso
significa superar aquelas ações que
apresentam apenas um caráter
meramente informativo e
conteúdista, enquadrando-se dentro
do que Freire (2011) chamou de
“concepção bancária”. Nesta o ato é
de depositar, de transferir conteúdos
não se propondo ao desvendamento
do mundo. As pessoas, nesta
perspectiva educacional são o
público, objeto sobre o qual devemos
agir.
Ao contrário, segundo o autor, a
educação problematizadora é um
esforço permanente no qual os
homens, sujeitos do processo, vão se
percebendo criticamente no mundo,
no qual pensam a si próprios e sua
condição frente à realidade. “Desta
forma, aprofundando a tomada de
consciência da situação, os homens
se ‘apropriam’ dela como realidade
histórica, por isto mesmo, capaz de
ser transformada por eles”. (FREIRE,
2011, p.104).
Uma Educação Patrimonial
problematizadora não significa, de
forma alguma, desconsiderar o
conjunto de bens já constituído, jogar
tudo fora, mas enxergar esse nosso
legado a partir de uma perspectiva
mais crítica. Considerar o patrimônio
no contexto dos processos sociais, em
seu cotidiano contraditório que
revela riqueza mas, ao mesmo tempo,
limitações e indigência humana. Um
patrimônio que pode ter sua leitura
feita a partir da produção de riqueza
material, da técnica, do comércio e
das mercadorias, mas que não deve
esconder as relações de trabalho,
desigualdade, sujeição e opressão.
Tal qual propõe Benjamim (2010,
p.225), reconhecendo que nunca
houve um documento de cultura que
não fosse também um documento de
barbárie. “E assim como a cultura
não é isenta de barbárie, não é,
tampouco, o processo de transmissão
da cultura. Por isso, na medida do
possível, o materialista histórico se
desvia dela. Considera sua tarefa
escovar a história a contrapelo.”
A expressão “escovar a história a
contrapelo” sugere para a Educação
Patrimonial a necessidade de
problematização da memória oficial,
superação da visão celebrativa e
acrítica dos patrimônios, aquela que
não vê conflitos e opressão, mas
somente heróis. A história a
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA
SIMONE SCIFONI | 33
contrapelo é recusar identificar-se
com o opressor, é a busca por novos
olhares, sob ponto de vista
radicalmente oposto, iluminando no
processo o ponto de vista dos
oprimidos, dos esquecidos.
Valorizando o trabalho vivo e o
trabalhador como o verdadeiro
criador de riquezas, como sujeitos da
cultura; dá-se, assim, um novo
sentido a esse mesmo patrimônio.
No Vale do Ribeira “escovar a
história a contrapelo” pode significar
olhar para o patrimônio e enxergar
por detrás dos casarões de pedra e
cal, o trabalho de tantos escravos
negros e sua condição de opressão e
exploração. O êxito da exploração do
ouro, durante o período colonial,
somente foi possível a partir da
instituição da força de trabalho
escrava que abastecia os garimpos. A
população escrava de origem africana
chegou até mesmo a superar a de
homens livres, mostrando o papel
que estes trabalhadores tiveram na
criação de riquezas materiais, da
arquitetura, da cidade histórica que
hoje se identifica como de valor. Mas
o quanto estudamos sob esta
perspectiva na escola? Quando
enfatizamos a arquitetura de pedra e
cal tombada, é lembrado destes
trabalhadores, de suas condições
reais e objetivas de trabalho e vida? É
feita uma reflexão sobre as relações
de trabalho escravo e a criação dessa
riqueza material, expressa nas
edificações?
O mesmo pode-se dizer de outros
sujeitos dessa história pouco
referenciados. Escovar a história a
contrapelo é mostrar, conforme
discute Diegues (2004), que a
história caiçara ainda está por ser
escrita, dada a ausência de
documentação escrita sobre estas
comunidades, ao contrário das
grandes famílias e seus engenhos e
fazendas. Segundo este autor, o
caiçara, entendido como fruto da
mistura do elemento indígena, do
colonizador português e do escravo
africano, teve um papel importante
na manutenção da economia
mercantil, produzindo gêneros de
primeira necessidade para abastecer
o mercado local, tais como a farinha
de mandioca, o pescado e a lenha.
A perspectiva de uma Educação
libertadora e emancipatória pede que
se ilumine e valorize a história destes
sujeitos. Trabalhar com Educação
Patrimonial em Iguape e no Vale do
Ribeira é tratar destes sujeitos da
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
34 | SIMONE SCIFONI
história, tanto quanto se trata das
construções do centro histórico,
reconhecendo, assim, o seu conteúdo
social.
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IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL
FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 35
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO
DA PROTEÇÃO FEDERAL
Flávia Brito do Nascimento
Em dezembro de 2009 o conselho
consultivo do Iphan aprovou o
tombamento do Centro Histórico de
Iguape, numa decisão que trouxe
novidades importantes para a
política de patrimônio no Estado de
São Paulo. A primeira proteção em
esfera federal de núcleo urbano no
estado, a inclusão do patrimônio
natural como parte integrante dos
bens edificados, a construção do
estudo feita de modo indissociável da
educação patrimonial e o
entendimento dos vestígios materiais
a partir dos processos históricos e de
sua sobreposição espacial foram de
decisões metodológicas do estudo
que se fundamentou nas muitas
transformações do patrimônio
cultural como campo disciplinar
postas desde a Constituição de 1988.
Por sucessivas vezes ao longo da
história da Superintendência
Regional do Iphan em São Paulo
Iguape foi objeto de interesse. Em
1942, Hermann Kruse foi
encarregado por Luiz Saia de viajar
ao município para realizar
“levantamento de plantas e
documentação fotográfica de
edifícios antigos (igrejas, casas de
residências, fortes antigos, etc),
pesquisas em sambaquis ou
quaisquer outros monumentos
naturais ou não que tenham interesse
artístico ou histórico”, conforme
escreveu em ofício ao prefeito de
Iguape em 9 de janeiro daquele ano.
No dia quatorze do mesmo mês
Kruse encaminha ao Diretor da então
6ª Região, relatório escrito à mão e à
lápis, informando:
Iguape é um colosso.(...) Aqui o lugar é mais interessante que Ubatuba (Itanhém não conheço). Tem uma infinidade de construções, cujas idades ninguém pode saber. Todas elas construções de pedra e cal. As igrejas não são grande coisa. (...) Acho que futuramente Iguape será um campo de atividade vossa, - a tal “casa de fundição de ouro”, precisa ser tombada e restaurada. (KRUSE, 1942)
Hermann Kruse foi um alemão,
naturalizado brasileiro, contratado
pelo IPHAN para expedições
etnográficas.
Luís Saia foi arquiteto e comandou o
IPHAN em São Paulo de 1938 até o
seu falecimento em 1975.
Lúcio Costa foi arquiteto, urbanista
e professor, nasceu em 1902 e faleceu
em 1998, entre seus principais legados
está o Plano Urbanístico de Brasília.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
36 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO
Em 1968 o senador Lino de Mattos
solicita o tombamento do núcleo
urbano de Iguape, e, no ano seguinte,
Lucio Costa escreve nota sobre o
assunto:
A farta documentação fotográfica do arquivo data de 1942 (Kruse) e 1950 (Germano), - convirá pois indagar do Saia se o estado de preservação ainda é o mesmo, porque nesse caso impõe-se providência acauteladora definitiva de cuidado – embora tardia -, seja pelo Conselho do P.A.A. e T. do Estado, ou mesmo pela própria DPHAN.(COSTA, 1968)
As prioridades e estratégias de
trabalho estabelecidas pela geração
fundadora do Iphan não levaram à
proteção federal de Iguape como
parte da política de construção
identitária nacional por meio do
patrimônio. As alegações para a sua
não-inclusão nos livros do tombo da
instituição foram desde ausência de
caráter de ancianidade e pouco valor
individual até a falta originalidade
das edificações e do tecido urbano
sucessivamente sobreposto pelos
processos históricos.
Em 1975 diversos bens imóveis do
Centro Histórico de Iguape foram
tombados pelo Condephaat
(Processo 00469/74, resolução
6/2/1975), e a proteção federal
acabou não ocorrendo. O
tombamento de núcleos urbanos pelo
Iphan, não somente no Estado de São
Paulo, vem recorrentemente sendo
retomado desde os anos 80. Tal
movimento gerou diversas proteções
de núcleos que na origem da
Instituição não foram arrolados
como sendo de interesse à
construção do nacional e de sua
materialidade. Este é o caso dos
núcleos de Antônio Prado (1990),
São Francisco do Sul (1987),
Pirenópolis (1990) e Icó (1998). Não
houve, contudo, em São Paulo
nenhum tombamento de centros
históricos, apenas o da Vila
Ferroviária de Paranapiacaba,
pertencente ao município de Santo
André.
Diversos são os esforços que veem
sendo realizados, desde os anos
2000, para a ampliação do estoque
patrimonial do Iphan em todo
território nacional e incluir quer
sejam bens isolados, quer sejam
centros históricos no escopo dos
tombamentos federais. Bens imóveis
que não se enquadravam em
determinados parâmetros ou
conceitos estabelecidos são
investidos de novos significados e
valores compatíveis com a proteção
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL
FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 37
federal. Tais esforços são, em grande
medida, corroborados pela iniciativa
das populações e dos poderes
públicos locais que zelosos de seu
passado e da materialidade ainda
existente em suas cidades,
demandam ações do Iphan.
O tombamento do centro histórico de
Iguape, da forma como foi realizado,
só foi possível diante de tais
processos. Ele foi gestado no âmbito
do projeto mais amplo sobre o Vale
do Ribeira, intitulado “Paisagem
Cultural: Inventário de
Conhecimento de Bens Culturais no
Vale do Ribeira”, iniciado em 2007 e
desenvolvido nas ações de inventário
do patrimônio cultural promovidas
nacionalmente pelo Depam -
Departamento do Patrimônio
Material e Fiscalização. Os objetivos
do inventário no Vale foram
reconhecer a diversidade cultural da
região, atribuir valor ao patrimônio
cultural, fomentar ações de
salvaguarda a partir da publicização
do conhecimento produzido, além de
promover o desenvolvimento social e
econômico por meio da promoção
das referências patrimoniais.
Sua primeira etapa identificou
expressões culturais em seis
municípios: Iguape, Cananéia,
Registro, Iporanga, Eldorado e Apiaí.
Como patrimônio urbano foram
estudados os núcleos históricos de
Iguape, Iporanga e Registro, núcleos
formados pelas atividades
econômicas da mineração no período
colonial, pela cultura do arroz no
século XIX ou do chá no século XX,
quer pela exploração ou cultivo, quer
pela comercialização. Ouro, arroz e
chá promoveram não só a formação
dos centros urbanos
comercializadores, mas também da
zona rural de tais municípios, cujas
expressões de cultura são, dentre
outras, vestígios de antigas
mineradoras, diversos quilombos que
deram origem a bairros rurais,
propriedades de imigrantes
japoneses e fábricas de chá,2 além de
portos fluviais e de caminhos
terrestres.
Como parte do processo de pesquisa
e levantamento de dados, foi
realizada viagem de campo em que
aconteceram diversas reuniões com
2 Como resultado do Inventário foi também elaborado o dossiê de tombamento de “Bens Culturais da Imigração Japonesa em Registro e Iguape”, visando à proteção de quatorze bens culturais, quase todos implantados em meio à área rural daqueles municípios. O tombamento foi aprovado pelo Conselho Consultivo do Iphan em junho de 2010.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
38 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO
dirigentes locais e membros da
sociedade civil a fim de incorporar as
demandas e também identificar os
bens culturais de interesse à
proteção. Tal atuação justificou-se
pela abordagem da Paisagem
Cultural, que significa a gestão de
um território e implica na
necessidade de constituição de
trabalho em rede, que possa articular
diferentes esferas do setor público e
organizações da sociedade civil,
fomentando, desta forma, ações
coordenadas de proteção e
valorização do patrimônio cultural.
Ao longo deste período de trabalho
buscou-se organizar a montagem de
uma rede a partir da identificação e
mapeamento dos agentes envolvidos
e o estabelecimento de contatos
iniciais viabilizados na execução dos
trabalhos de campo.
No município de Iguape foi expresso
o interesse, por parte da Prefeitura
Municipal, do tombamento do seu
centro histórico, pedido formalizado
em junho de 2008 pela prefeitura de
município Maria Elizabeth da Silva
ao diretor do Depam Dalmo Vieira
Filho, quando da realização do
Encontro de Trabalho Paisagem
Cultural no Vale do Ribeira:
Planejamento Estratégico. Tal evento
integrou-se à agenda do Revelando
Vale do Ribeira e foi realizado em
conjunto com a Secretaria de Estado
da Cultura, a Abaçaí Arte e Cultura e
a Prefeitura Municipal de Iguape,
que teve por objetivo congregar as
instituições, as municipalidades e a
sociedade civil para traçar estratégias
conjuntas de atuação quanto ao
patrimônio cultural do Vale do
Ribeira. Compareceram cerca de 25
instituições com atuação no Vale do
Ribeira que puderam debater sobre o
tema do patrimônio cultural,
expressando intenções e demandas.
O centro histórico de Iguape foi
entendido e estudado no âmbito dos
processos históricos formadores da
sua fisicidade, os quais remontam ao
período da exploração aurífera no
século XVI, às atividades ligadas à
A paisagem cultural, no âmbito do
Iphan, apresenta-se como um nova
categoria de patrimônio, pensada a
partir das experiências desenvolvidas
pela Unesco (1992) e das proposições
estabelecidas na Convenção Europeia
da Paisagem ( 2000).
O instrumento jurídico para o seu
reconhecimento e proteção dá-se com
a Chancela da Paisagem Cultural.
Segundo a Portaria 127 de 2009, do
Iphan, em seu artigo 1o: Paisagem
Cultural é uma porção peculiar do
território nacional, representativa do
processo de interação do homem com
o meio natural, à qual a vida e a
ciência humana imprimiram marcas
ou atribuíram valores.
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL
FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 39
construção naval, a partir de meados
do XVIII e à cultura de arroz no
século XIX. O acautelamento do sítio
procurou respeitar a passagem do
tempo nos espaços da cidade e
proteger as muitas expressões
impostas pelas variações econômicas,
sociais e culturais da cidade. Olhou-
se para os bens imóveis de Iguape
considerando como valor as
inúmeras sobreposições e rearranjos
espaciais constituídos ao longo de
muitas décadas. As representações
históricas de diversos momentos são
parte evidente de sua feição atual.
São para, além disso, parte dos
sentidos identitários, sociais e
históricos dos que as habitam, os
quais lhes asseguram, em algum
sentido, sua permanência tanto
física, quanto simbólica.
O litoral do Vale do Ribeira foi local
chave para a projeção de expedições
ao sertão, desde os primeiros tempos
da conquista ibérica. A união entre as
coroas portuguesa e espanhola entre
1580 e 1640 tornou o Tratado de
Tordesilhas não operativo no sul do
País. No litoral estão os municípios
de Cananéia e Iguape, construídos
em pedra e cal, dentre os primeiros
núcleos urbanos de São Paulo. Foram
erguidos segundo ordenamentos da
Coroa Portuguesa, para abrigar a
administração pública, ocupar o
território, e cumprir funções de
guarda do território. Voltadas para as
funções litorâneas, de caráter
eminentemente portuário, foram
também o contato com o interior por
meio do rio Ribeira de Iguape, que
transportava os produtos, ao mesmo
tempo em que forjava os modos de
ser e construir.
Iguape tem seu sítio urbano
composto por importantes casas e
sobrados de pedra e cal remontam ao
período da exploração aurífera no
século XVI, das atividades ligadas à
construção naval a partir de meados
do XVIII e da cultura de arroz no
século XIX. A Igreja do Bom Jesus de
Iguape, que atrai milhares de
romeiros de todo Brasil para a festa
do padroeiro, inaugurada em 1858, é
ponto focal no tecido construído.
Sobressaem também o Sobrado do
Toledo, relevante exemplar
neoclássico e as casas da Rua das
Neves, ou do chamado Funil, o mais
antigo conjunto arquitetônico da
cidade.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
40 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO
A arquitetura ainda existente em
Iguape e no Vale do Ribeira,
apropriada e sucessivamente
revestida de novos significados,
permite também compreender certa
dimensão dos processos sociais da
cultura, como os modos de morar. A
arquitetura é ser documento
histórico, que deve ser interpretado e
investido de significado, para fins de
pesquisa, valoração patrimonial,
construção identitária e apropriação
econômica. Para valorar as suas
expressões arquitetônicas e
compreender seu potencial é
necessário ter em conta o contexto e
os processos sociais que as
produziram e que seguem dotando-
as de sentido. No Vale do Ribeira
encontram-se técnicas e formas de
ocupação tanto do litoral, como
construções em pedra, e do planalto,
como construções com técnicas de
barro. Estas denotam a
complexidade e a singularidade do
patrimônio material do vale,
resultado da sua história, de seu
povoamento, das estratégias e
contingências econômicas, do
território e das sociabilidades.
O núcleo urbano de Iguape
caracteriza-se pela singularidade do
traçado urbano, com ruas levemente
sinuosas e entrecortadas por
pequenas ruas estreitas e com a
dominante Praça da Basílica, pela
impressionante riqueza dos marcos
naturais que a circundam e dela
fazem parte, e, finalmente, pela
composição de arquiteturas que lhe
conferem aspecto de conjunto, e, ao
mesmo tempo, são o testemunho dos
sucessivos processos históricos e
culturais dos seus muitos anos.
O visível tecido urbano da cidade se
relaciona à sua história e ao
momento de ocupação do território
brasileiro, em que a defesa era fator
central para escolha do sítio. O
primeiro núcleo urbano foi
implantado junto à barra do Rio
Ribeira de Iguape, em Icapara, que
logo se mostrou vulnerável, já que
junto ao mar aberto. O sítio onde se
desenvolveu a cidade é bastante
significativo do ponto de vista da
defesa e da possibilidade de
circulação. Iguape está
estrategicamente localizada junto a
Neoclássico aqui se refere à
arquitetura surgida durante o
neoclassicismo, movimento cultural
do fim do século XVIII, que utilizava
elementos clássicos que remontavam
a antiguidade grega e romana na
composição de novas edificações.
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL
FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 41
três marcos na paisagem da baixada
do rio de Ribeira: a oeste, o Morro do
Espia, elevação de grande destaque
toda a região majoritariamente
plana, no norte, a cerca de 2 km do
que hoje é o centro histórico, o rio
Ribeira de Iguape, grande eixo de
circulação de produtos como ouro e
arroz em toda a história da região e,
no sul, o braço de mar, chamado Mar
Pequeno. Este garantia fácil acesso
ao mar aberto, mas também, lhe dava
certa proteção, por ter a Ilha
Comprida à sua frente.
A implantação do sítio urbano de
Iguape tirou partido dos elementos
geográficos singulares da região,
tendo em vista os objetivos de
conquista e desbravamento dos
colonizadores. Diferentemente de
outras cidades coloniais que lhe são
contemporâneas, a cidade não foi
construída em alto de elevações, o
que lhe tornava mais vulnerável. Esta
é uma das explicações para o traçado
original do núcleo, fechado ao
exterior, voltado para si mesmo e
com aspecto de fortificação. Suas
ruas em forma de funil, com
pequenas aberturas para o exterior,
dispostas em semicírculo, como a
Rua XV de novembro, contribuíam
para o controle do núcleo urbano.
Mapa do centro histórico de Iguape. Fonte: IGC, 1943.
A função de controle conferiu a
Iguape tecido bastante singular. O
núcleo inicial, implantado em
terreno de topografia praticamente
plana, tem formato que se assemelha
a uma elipse de pontas alongadas,
onde estão os chamados funis. A Rua
XV de Novembro e a orla do Mar
Pequeno são os limites externos
deste formato que desaparece na Rua
Major Rabelo de desenho retilíneo.
As curvas suaves, as pequenas vielas,
o traçado não ordenado, com
pequenos largos e repleto esquinas,
garantem ao transeunte percursos
dinâmicos e ricos em visadas e
perspectivas. O contraste das
pequenas ruas com lotes estreitos é a
grande praça da Basílica do Bom
Jesus, cuja imponente construção
domina todo composição do
conjunto imediato e da cidade. A
praça de São Benedito, de formato
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
42 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO
retangular e tendo a igreja em uma
de suas extremidades, situa-se numa
das extremidades do centro
tradicional, para fora das ruas curvas
do funil. O chafariz ao centro praça
era parte do sistema de
abastecimento da cidade que se
iniciava onde está a Fonte do Senhor,
no sopé do Morro da Espia.
O núcleo central da cidade, composto
por cerca de 30 quadras,
conformadas por lotes de pequena
testada, podendo ser mais ou menos
profundos. Estes abrigam casas de
meia morada e de porta e janela,
ocupando majoritariamente as Ruas
XV de novembro, Rua das Neves ou
do Funil e Rua Tiradentes, com
trechos significativos de unidade e
continuidade visual.
Na Praça da Basílica e nas Ruas Nove
de Julho, e em alguns pontos da Rua
XV de Novembro, os lotes são
maiores, e tem sobrados de dois
pavimentos, casas de morada inteira
com telhados de quatro águas, e são
pontuadas por edificações de aspecto
eclético ou de início do século XX.
Exemplares arquitetônicos como o
Sobrado dos Toledo e o Hotel São
Paulo, com frontões triangulares e
envasaduras de caráter
neoclássico, informam sobre a
diversidade de expressões
arquitetônicas que se sobrepuseram
no tecido urbano inicial. Casas
térreas com fins comerciais (com
portas em toda fachada) são
encontradas na Praça da Basílica. Em
torno da Praça de Benedito, por
tratar-se de ocupação posterior ao
núcleo central em torno da Basílica
são encontrados terrenos de testada
maior, com casas implantadas na
lateral do lote com jardins também
laterais.
A Rua Major Rebello é o limite norte
do núcleo urbano antigo,
configurando-se como área de
transição, onde são encontradas
edificações maiores e de períodos
mais recentes, como a Escola
Testada refere-se à medida dos lotes
em relação ao arruamento.
Meia Morada são as edificações
térreas , cujo fachadas possuem uma
porta e uma janela e não apresentam
recuo em relação a rua.
Eclético aqui se refere ao estilo
arquitetônico do fim do século XIX que
exibe combinações de elementos da
arquitetura clássica, medieval,
renascentista, barroca e neoclássica.
Envasaduras são as aberturas das
paredes externas onde são colocadas as
janelas e portas de uma edificação
IGUAPE, ARQUITETURAS EM PROCESSO E CONSTRUÇÃO DA PROTEÇÃO FEDERAL
FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO | 43
Estadual, cuja arquitetura está
inserida no contexto da construção
de escolas no período republicano.
Indo em direção ao Valo Grande,
seguindo pela rua à esquerda da
Basílica, a cidade terminava na Igreja
do Rosário, voltada para o lado
oposto da Basílica, onde
originalmente havia uma grande área
livre de edificações. Na rua à direita
da Basílica, acompanhando em
paralelo do Mar Pequeno, seguia a
Rua Tiradentes, onde se localizavam
casas mais simples e que leva ao
cemitério, afastado quatro quadras
da pequena praça situada junto à
fachada posterior da Basílica. Junto
ao cemitério, a antiga Fábrica
Matarazzo, voltada para o Valo
Grande, é a expressão do uso fabril e
portuário que predominou na orla da
passagem construída para ligar o rio
Ribeira e o mar.
Situada entre importantes marcos da
paisagem como o Morro da Espia, o
Canal do Valo Grande e o Mar
Pequeno, Iguape caracteriza-se por
guardar expressões arquitetônicas
que são testemunhos dos inúmeros
processos socais e econômicos por
que passou.
Na atribuição de valor à cidade com
vistas ao tombamento federal
buscamos estudar e valorá-la como
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
44 | FLÁVIA BRITO DO NASCIMENTO
patrimônio nacional no contexto das
cidades do território paulista
constituídas a partir de processos
históricos anteriores ao café, seja
exploração aurífera, seja rizicultura,
ou mesmo a própria ocupação do
território, o que no que se refere aos
valores memoriais, incorreu em
articular sentidos que vão para além
da materialidade. O que significa
dizer que, ao se pensar na lógica
construída expressa na atualidade
em Iguape, tivemos em conta as
sobreposições e rearranjos espaciais
constituídos ao longo de muitas
décadas, conformadoras do que se
encontra hoje naquelas cidades.
As representações históricas de
diversos momentos são parte
evidente de sua feição atual e, neste
estudo, buscou-se entender Iguape
no âmbito dos processos históricos
formadores da sua fisicidade. Estes
são parte dos sentidos identitários,
sociais e históricos dos que as
habitam, os quais lhes asseguram sua
permanência tanto física, quanto
simbólica.
Referencias Bibliográficas COSTA, Lúcio. Lucio Costa, registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1969. IPHAN. Dossiê de Tombamento de Iguape. São Paulo: Minc/IPHAN, 2009. SECRETARIA DE CULTURA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Resolução nº 06 de janeiro de 1975. Dispõe sobre o Tombamento de um conjunto de Imóveis no Centro de Iguape. Diário Oficial. São Paulo, São Paulo, 1975.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 45
Memórias Urbanas de Iguape:
RODAS DE MEMÓRIAS
Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
46 | RODAS DE MEMÓRIAS
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 47
CULTURA CAIÇARA
Em 20 de agosto de 2011 foi realizada na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira a
primeira Roda de Memória do Projeto Memórias Urbanas, cujo tema estava voltado à
necessidade de valorização da Cultura Caiçara. Os textos que estão expostos nesta
publicação são recortes dos registros de falas dos convidados, os quais foram organizados
na forma de temas em comum para facilitar a leitura e o trabalho com os estudantes nas
escolas. Procuramos manter o tom da fala dos entrevistados, fazendo apenas uma edição
dos textos visando retirar as repetições e tornar a leitura mais fluída3. Os registros
integrais das falas podem ser encontrados na biblioteca da Casa de Patrimônio do Vale
do Ribeira.
3 Foram adotados os critérios e orientação da textualização, ou seja, quando se transforma da forma oral para a escrita eliminando-se as perguntas, os erros gramaticais e reparadas as palavras sem peso semântico, conforme Meihy & Holanda (2010).
Convidados:
Lauro Evilásio de Andrade, nascido
no bairro do Rocio, em setembro de 1953.
Filho de Dona Maria de Lourdes Andrade
e do Seu Antonio Pereira de Andrade.
Glória do Prado Carneiro, a Glórinha,
nascida na Juréia, na época, Rio Verde,
em 1958. Tem quatro filhos e mora desde
os 19 anos na Barra do Ribeira.
Dauro M. do Prado, nascido em julho
de 1964, no Rio Verde, Juréia. È da União
dos Moradores da Juréia.
Pedro Sardinha do Prado, o
Pedrinho, nascido em 1992 em
Pariquera-Açu e morador da Barra do
Ribeira. Integrante da Diretoria da
Associação Jovens da Juréia (AJJ).
Silvio Fernando Rodrigues, nascido
em 1957 no bairro do Despraiado.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
48 | CULTURA CAIÇARA
1986 – Criação da Estação
Ecológica da Juréia-Itatins
(Decreto nº 24.646 de 20
de janeiro de 1986)
1987 – Criação da União
dos Moradores da Juréia
(UMJ)
1993 – Criação da
Associação dos Jovens da
Juréia (AJJ)
2006 – Criação do Mosaico
da Juréia-Itatins (Lei nº
12.406 de 12 de dezembro
de 2006)
2009 – Extinção do
mosaico e recategorização
como Estação Ecológica da
Juréia-Itatins
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 49
Infância no Bairro do Rocio:
“O bairro era bem pequeno, hoje é
um dos maiores bairros do Vale do
Ribeira. Estudei na primeira escola
do Rocio, que era de madeira, o Seu
Francisco Costa, mais conhecido
como Chico Banana. Eu brincava na
rua, como nós não tínhamos
condição os brinquedos eram latas de
leite, você enchia as latas de areia e
furava, e emendava uma na outra.
Festas só tinham do lado de cá. Tinha
só um fandango, que não é
salgadinho, é baile! Meu pai plantava
arroz, feijão, não tinha agrotóxico, e
comíamos mais peixe. Ele chegou a
plantar no lugar onde hoje é a igreja
católica, lugar perto da minha casa,
depois ele passou a arrendar terras lá
da Ilha Comprida. Meu pai era
pescador e agricultor. Na escola a
gente aprendia bastante coisas,
porém aqui, naquela época, você
definia quem era da cidade e quem
era da zona rural. Igreja era só pra
cá, depois que começou a chegar lá.
Naquela época as casas eram tudo de
madeira [...] na época tinha balsa,
mas a maioria atravessa de canoa,
para fazer compra, não existia água
lá. Tinha um chafariz do lado de cá,
vinha buscar num pote, banho, lavar
roupa, essas coisas era tudo no rio.
Água encanada não existia, tinha
fossa nas casas, rede de esgoto nem
pensar. O bairro era pequenininho. A
única coisa de importante que tinha
na época, a gente chamava de campo
de aviação, que é aeroporto, era da
Varig”. (Lauro)
Crescimento do Bairro do
Rocio:
“[...] foi a pesca da manjuba que
trouxe muita gente pra lá. O pessoal
deixava de plantar pra vir pescar,
principalmente de Cananéia. Hoje
não, se você for para as ruas lá do
fundo, tem muita gente do Norte e do
Nordeste do Brasil. A gente nem
conhece as pessoas que tem lá. Antes
era só compadre e comadre. Ainda
cheguei a pegar navios de pequeno
porte carregando lá no ponto da
frente de casa, carregando arroz, que
vinha lá de Registro. Eu tinha uns
Atualmente o bairro do Rocio é o mais
populoso de Iguape, está separado do
centro pelo Valo Grande. Neste bairro
vive uma comunidade bastante
diversa, com pessoas vindas de várias
localidades, porém, com o predomínio
de caiçaras. As principais atividades
econômicas do bairro são a pesca
esportiva e comercialização do
artesanato local, com destaque para a
confecção das panelas de Jairê.
(PEREIRA JUNIOR, 2005)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
50 | CULTURA CAIÇARA
dez, doze anos. Da minha casa para o
rio hoje, dá mais ou menos uns
cinquenta ou sessenta metros”.
(Lauro)
Infância na Juréia:
“Andávamos tudo a pé, pela praia.
Éramos em 10 irmãos, todo mundo
nasceu lá mesmo, de parteira e criou-
se lá. Na época tinha muito morador,
umas 300 famílias. A gente nunca
veio em médico, nunca vinha à
cidade para nada, só meu pai que
vinha fazer compras. Brincava lá
mesmo, fazíamos os brinquedos
como Seu Lauro falou. Meus pais,
meus avós, eram todos de lá,
nascidos e criados lá. Tinha curador
que curava, nosso médico era o
curador, benzia, fazia remédio de
erva, ninguém ia ao médico.
Fazíamos muito mutirão para fazer a
roça e cada semana era um morador
que fazia. Fazia a roça e a tarde tinha
o fandango, era o baile. Todo sábado
tinha mutirão, até terminar a época
da roça. Tinha roça de mandioca e de
arroz. Meus avôs, meus tios, faziam a
viola, a rabeca.” (Glorinha)
“Eu nasci um pouco mais tarde que a
Glorinha, da mesma mãe. Em julho
de 64, no Rio Verde. Lá tem várias
comunidades, varias vizinhanças,
acho que doze comunidades. Rio das
Pedras, Cachoeira do Guilherme,
Praia do Una, Grajaúna, Rio Verde,
Praia da Juréia, Barra do Una, Rio
Comprido, Despraiado e Guapiú.
Morei lá até os 25 anos. Vim para
cidade com 18 anos porque precisava
me alistar, eu não conhecia luz
elétrica. Nessa época eu vim
conhecer a cidade, me alistei e voltei
para lá.” (Dauro)
Migração para a cidade:
“Depois que surgiu a estação
ecológica começamos a ser retirados
e viemos morar na Barra do Ribeira.
Meu pai e minha mãe ainda moram
lá, ele tem 82 anos e ela tem 73,
ainda sobem a Serra da Juréia para
vir para cá e voltam. A gente não
queria sair, mas fomos obrigados.
Fomos saindo aos poucos, alguns
foram para Peruíbe, outros para o
Guaraú e uns poucos para a Barra.
Nossa família veio para a Barra,
O bairro Barra do Ribeira está
localizado a 18 km do centro da
cidade, é o local onde o rio Ribeira
deságua no mar. Apesar de ser um
local muito apreciado por
veranistas, ainda mantém sua
característica de comunidade
caiçara. É também a porta de
entrada para a Estação Ecológica de
Juréia-Itatins (PEREIRA JÚNUOR,
2005).
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 51
alguns irmãos foram para Itanhaem”.
(Glorinha)
Cultura e modo de vida caiçara:
“Vivíamos da pesca e da agricultura,
como a Glorinha falou, do
extrativismo, como a maioria das
comunidades, seja ela quilombola,
caiçara, indígena, ele vive dos
recursos que tem ali: da terra e da
pesca se faz o seu próprio
instrumento de trabalho. Sempre vivi
nessas condições. Aconteciam vários
mutirões, para várias coisas, então o
que é um mutirão? É juntar um
monte de gente para construir uma
coisa coletivamente. Então você
constrói a roça em um dia, para
plantar dois sacos de semente de
arroz. E aquele cara daquela
comunidade combinava com o da
outra e da outra e da outra. Época de
fazer a roça todo mundo sabia que
era de julho a setembro, todo mundo
plantava, então sabiam que era hora
de acelerar o plantio”.
“Para fazer canoa, duas ou três
pessoas derrubam a arvore e faziam a
canoa, era feita de um pau só e
precisava de umas vinte pessoas para
puxar a canoa do mato. É chamado
de varação de canoa”.
“As comunidades quilombolas,
indígenas, caiçaras e outros
segmentos da sociedade civil, que
estão mais afastadas, na periferia da
cidade, são expulsas pela especulação
imobiliária, pelas grandes empresas
ou pelas unidades de conservação
integral, essas três coisas expulsaram
as comunidades dos seus territórios,
onde eles viviam coletivamente, cada
um fazendo sua agricultura onde
queria, buscando seus recursos onde
queriam, era completamente
Dauro, Silvio e Pedrinho.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
52 | CULTURA CAIÇARA
organizado. Outra forma de
organização [...] a gente tem uma
cultura diferenciada, um modo de
vida diferenciado, um modo de falar
diferenciado. Qualquer um que for
para casa do meu pai vai ser muito
bem tratado. Ele vai te dar comida, a
melhor coberta, por água quente
para lavar seus pés, o caiçara faz isso
para todo mundo. Meu pai vinha
fazer compra, ele pegava algumas
coisas como bolacha, coisas que não
estragavam e guardava, para quando
alguém chegar ele ter com que
alimentar essa pessoa. Esse é um
modo de vida da comunidade. Essa
relação harmoniosa tanto com a
natureza quanto com aqueles que
estavam ali. A gente não podia perder
isso e quando eu senti que estávamos
perdendo falei para nos
organizarmos na associação”.
(Dauro)
“A gente tem uma história que acho
que acontecesse com todo mundo
que aprende a tocar viola. Quando
faziam o fandango era muito raro
uma criança pegar em um
instrumento, não podia e ninguém
falava por que. Eu acho que era
porque é muito fácil estourar a corda,
desafina e é difícil de afinar...
Quando eu quis começar a aprender
era muito difícil porque não podia
pegar no instrumento. A gente ouve
história de tios, que o pai deixava a
viola encostada no canto da casa e ai
se o filho pegasse, levava uma surra
que nunca ia esquecer! Eles tinham
que roubar a viola do pai, aí iam para
a beira do rio aprender a tocar.
Também aprende muito de olhar, lá
no fandango, vendo como ele tocava,
como cantava as músicas, muitos das
gerações anteriores aprenderam
assim! Quando eu comecei tinha um
pouco disto também, meu tio não me
deixava pegar o instrumento. Os
instrumentos das apresentações
geralmente ficavam em casa e teve
uma época que ficamos uns três
meses sem fazer apresentação, aí eu
peguei a viola e comecei a mexer,
estourei corda, troquei. Meu tio me
viu mexendo, mas não falou nada,
não falou que ia me ensinar. Só
depois que eu aprendi a tocar é que
percebi como a vontade de aprender
é importante. Quando eu fui para o
baile é que percebi que estava
tocando errado. Teve uma festa lá na
Praia do Una, o primeiro fandango
que eu ia participar, ficava ali meio
no canto, meio de lado, mas ninguém
chamava pra participar. Aí lá na
comunidade do Prelado tinha
poucos violeiros e eu comecei a tocar.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 53
O pessoal viu que eu sabia e começou
a chamar. Comecei a tocar de
maneira informal, tinha de 13 para 14
anos. No próximo baile já fui como
violeiro e meu primo Cleiton me
chamou, lá que eu senti o que era
tocar por duas horas, dor no dedo,
todo mundo te olhando, é
emocionante. Tive outro primo que
também aprendeu e a gente toca
junto, o Wellington. Depois que
toquei que meu tio começou a me
mostrar outras músicas, outros
ritmos. A gente foi acumulando
conhecimento e agora fazemos
oficinas, ensinamos as crianças.
Outro instrumento que eu quero
aprender a tocar e ainda não sei é a
rabeca. Estou tentando e não consigo
aprender porque quase não tem
rabequista. Isso também é por conta
de não deixarem a gente mexer nos
instrumentos, isso se perdeu um
pouco. Também porque não tem a
convivência de fazer o mutirão e o
fandango logo depois. Tem menos
baile. Tenho um primo que tem oito
anos e ele é fascinado por rabeca,
mas não tem ninguém que pode
ensinar para ele, meu tio só toca
viola. Por outro lado, tem alguns que
não ligam mais, porque vem funk,
axé, black, outras músicas e eles
preferem isso do fandango, acho que
é por vergonha da própria cultura.
(Pedrinho)
“O que a gente tem feito é carregar as
crianças para o galpão depois da aula
para dançar o fandango, se não
dançar, pelo menos fica ali vendo,
vivenciando. Porque se a gente não
fizer isso eles vão dançar funk
mesmo, eu não tenho nada contra o
funk, mas acho que cada um tem que
valorizar sua cultura, porque essa
diversidade cultural que é bonita no
povo brasileiro. Chamar os jovens
para participar, levar para a escola,
agora eles tem feito oficinas”.
(Dauro)
“E como a gente tem o momento de
trabalhar, de ir pra escola, de sair,
acho que a gente também tem que ter
o momento de ser caiçara, da cultura
caiçara, de sentar com um
instrumento, sentar com um tio, com
o avô e perguntar como era, o que
eles faziam, pedir pra contar uma
história. Porque não é para sempre
que os mais velhos vão estar ali para
passar essa carga pra gente”.
(Pedrinho)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
54 | CULTURA CAIÇARA
“Uma coisa legal que aconteceu sem
iniciativa de nenhuma organização
foi a volta da Reiada, tem uns 3 anos
já que ela acontece todo final de ano.
Eles passam de casa em casa, das
pessoas que aceitam e dão ofertas,
dão dinheiro e isso tá indo. Partiu da
própria comunidade, teve um
violeiro que aprendeu toda a música
da Reiada, nosso folião já está bem
velho, ele sabe muito, tem uma carga
muito grande sobre música, cultura
caiçara, mas ele já está bem velhinho
e não dá mais conta de vir mostrar.
Tem um moço mais novo que tá
levando tudo isso nas costas, porque
ele que faz e está incluindo gente da
comunidade e tá se expandindo. A
Associação de Jovens da Juréia (AJJ)
dá um apoio logístico, com
instrumentos, essas coisas, mas eles
fazem tudo sozinhos. Eles montaram
o próprio grupo de fandango, quando
a gente vai se apresentar e dá para
levar, eles vão junto. Já participaram
do Revelando São Paulo também.
Isso foi uma iniciativa que pra gente
serviu como incentivo e tá
avançando. Tem um menino que
canta lá que tem 7 anos”.
(Pedrinho)
“Acho que tá faltando incentivo da
cultura, do meu ponto de vista, vocês
ouviram ele falando de “Revelando
São Paulo”, eles só vêm para cá, só se
apresentam no “Revelando São
Paulo”, depois esquecem, deixam
eles sozinhos. Por parte da cultura eu
acho que tinha que ter mais
incentivos. Se vocês fazem o
fandango, vamos lá, vamos gravar.
Até por parte das escolas, na época
da minha Irma ela brincava de roda,
não existe mais isso. Acho que em
termos de cultura tem que se
resgatar tudo isso aí e falta incentivo.
Tem que colocar na mão dos
professores material para mostrar
isso para as crianças”. (Lauro)
A Estação Ecológica da Juréia:
“Na década de 1980, havia a
Nuclebrás, empresa que constrói
usinas nucleares, e o Brasil tinha um
convenio com a Alemanha para
Estação Ecológica é uma categoria de
unidade de conservação destinada à
preservação da natureza e a pesquisa
científica. Nelas são proibidas a
visitação pública, exceto com o
objetivo científico que depende de
autorização prévia do órgão
responsável pela administração da
unidade. A posse é de domínio
público, sendo que as áreas
particulares incluídas em seus limites
devem ser desapropriadas (Lei nº
9.985, de 18 de julho de 2000).
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 55
construir duas usinas atômicas aqui
na Juréia. Começou um movimento
para a construção da usina atômica.
Nesse tempo cresceu o movimento
ambientalista, dizendo que não
podiam construir uma usina atômica
ali, porque ia destruir todo esse
patrimônio. Vamos criar aqui um
santuário ecológico. Era uma ideia
legal, vamos deixar as comunidades
tradicionais aqui, vamos mandar
todos estes veranistas embora, as
casas deles vão ficar para vocês. Isso
era o que eles vendiam pra gente.
Não era qualquer um que ia lá, o
próprio Paulo Nogueira Neto, ele era
secretário na época do Franco
Montoro, Doutor José Pedro de
Oliveira Costa, o Zé Pedro, virou
Secretário de Meio Ambiente. Iam
tomar cafezinho com o meu pai: Zé
Pedro, Fabio Feldmann, Mario
Mantovani, João Paulo Capobianco
da S.O.S. Mata Atlântica, iam lá
dizer: ‘Não se preocupem, vai dar
tudo certo! Vocês são maravilhosos,
podem ficar tranquilos, se eles
quiserem expulsar vocês da terra nós
não vamos deixar. Vamos criar aqui
um santuário ecológico onde vocês
vão viver tranquilamente, as
comunidades tradicionais vão ficar
bem.’ Ficamos contentes, pensando
que ia ser muito legal. De repente,
em 1986, se cria a Lei de Estação
Ecológica, só que Estação Ecológica é
uma unidade de conservação de
proteção integral que não permite a
presença humana. Meu pai sempre
trabalhou com agricultura, fazendo
roça, que é uma agricultura
diferenciada, itinerante, você
constrói a roça sem agrotóxico, sem
nada, mas tem o momento de pousio
dessa roça, você constrói uma roça
aqui hoje, colhe todo o produto dela,
constrói uma outra aqui e vai
construindo ate voltar para aquela
primeira, onde a floresta já se
regenerou. O solo está fértil e você
começa de novo, uma agricultura
sustentável. O modo de vida dessas
comunidades no geral, é que
conserva esse meio ambiente. E essa
área exatamente da Juréia, como
outras do Vale do Ribeira está
preservada por quê? Por conta do
modo de vida dessa comunidade, de
como ela lida com esse ecossistema,
com a pesca, com a floresta”.
(Dauro)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
56 | CULTURA CAIÇARA
“Meu pai foi enganado. Falaram
para o meu pai trabalhar normal, ele
fez a roça e já veio uma multa.
Multado e meu pai não sabia de
nada, não sabia por que, foi aí que
acabou nossa vida lá. Começaram os
guardas a entrar nas casas,
destampar panela para ver o que o
pessoal estava comendo e pegar as
roupas das mulheres, vê o que tinha,
jogavam os colchões. Foi um inferno,
acabaram com tudo. Fomos
obrigados a sair, não podia plantar
mais, não podia matar nada para se
alimentar e foram acabando os
estoques. Tinham dias que a gente
fazia café com banana verde pros
filhos da gente comer porque não
tinha jeito. Como ia ficar num lugar
daqueles? Os guardas entravam nas
casas para ver se tinha caça, era um
inferno e fui obrigada a sair. A gente
vivia tão feliz, era um lugar tão bom.
E hoje, muito do pessoal que saiu de
lá, tão sofrendo nas beiras das
cidades e os filhos pegaram caminhos
errados. O que tinha lá era diferente,
a nossa cultura era outra. Foi se
perdendo a cultura, e viémos aqui
para a Barra, montaram a Associação
para gente não perder a cultura e
nossos filhos continuarem na mesma
cultura, nos meus afazeres. Assim
estamos até hoje, lutando para voltar
para lá. A gente quer voltar para as
nossas terras, enquanto meu pai e
minha mãe vivem, não sei se vai ser
possível, mas é nossa luta até hoje
[...] o pessoal foi saindo e foi
obrigado a fechar a escolinha que
tinha lá. Como o professor ia lá para
dar aula para duas crianças? Ele saiu.
E a escola foi acabando. Foi
acabando todo mundo, porque
também não tinha mutirão, ficou a
maioria das coisas abandonadas.
Porque as pessoas saíram sem nada,
sem direito a nada, só com a roupa
do corpo, porque era longe e nem
tinham como trazer as coisas”.
(Glorinha)
Glorinha e Lauro
Glorinha e Lauro
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 57
“A Lei de Estação Ecológica é para a
conservação da natureza, é o homem
fora da natureza, para preservar esse
meio ambiente para as futuras
gerações. É para olhar, não para
usufruir, olhar os bichinhos, os
macaquinhos, anta, capivara... E
como faz? Para mudar a lei você tem
que fazer um movimento! E foi aí que
eu comecei a entender!” (Dauro)
“Quando eu era criança, não sabia o
que era Estação Ecológica, o que era
polícia ambiental, nada disso. Para
viver na Juréia era simplesmente
entrar lá e pronto. Mas a gente
sempre ia e voltava da casa da minha
avó e meu pai falou que a gente não
podia morar lá. Ele já tinha morado
lá muito tempo e contava como era, o
que eles faziam, do que eles
brincavam. Eu já peguei essa parte de
tecnologia, controle remoto,
carrinho, não emprestava os
brinquedos para os outros. Mas eu
sempre tive contato com a questão da
Juréia... Se tinha reunião da AJJ a
gente estava lá, bagunçando, mas
estava. O pessoal estava discutindo, a
gente parava ouvia um pouco.
Sempre ouvíamos um pouco, mas
não entendíamos muito bem. Com o
passar do tempo, as coisas foram se
complicando cada vez mais, as
pessoas se mobilizando. Há uns seis
anos a gente começou a ver que o
negocio era sério, começamos a
participar das reuniões, discutir um
pouco, não sabíamos muito bem o
que era, mas já dávamos opiniões.
Em 2009, nós começamos a querer
estudar um pouco mais, trabalhar
um pouco mais com essa questão da
cultura, da legislação. Percebemos
que a coisa era muito grave para as
pessoas que vivem na Juréia, para
quem fazia mutirão, derrubava uma
roça. Graças a Deus a gente teve esse
conhecimento, de como derrubar
uma roça, de que madeira é boa para
fazer cada coisa, esse conhecimento a
gente conseguiu adquirir, apesar da
pouca vivência na mata. Mas a partir
daí a gente viu que precisávamos
fazer alguma coisa e começou a
participar. Em 2006, nós
conseguimos aprovar parcialmente o
Mosaico de Unidade de Conservação
da Juréia”. (Pedrinho)
“Hoje eu posso dizer que Despraiada
virou desprezada, eu tenho uma
professora que trabalhou lá, ela ainda
se lembra. Tenho certeza que se ela
for lá vai ficar triste, porque se antes
a gente achava que era difícil hoje tá
muito pior, tá um bagaço. Saiu muita
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
58 | CULTURA CAIÇARA
gente de lá, os alunos não conseguem
mais ir à escola lá. Isso não é de hoje,
vem acontecendo há muito tempo.
Eu fico triste porque se você chegar
para um jovem que tá lá e perguntar,
eles não vão saber te responder nada
de lá, eles sabem o que eles
aprendem na escola, mas não sabem
nada da cultura do lugar. Se você
perguntar para eles: ‘tinha baile?’,
eles te dirão: ‘Não sei.’; e tinha baile!
Muita gente lá também fica triste
porque com essa coisas dos jovens
irem estudar longe, eles acabam
ficando sozinhos, perdendo os filhos,
porque eles saem de lá, vão
trabalhar, vão estudar[...] as crianças
sofrem com isso, porque estando no
lugar é mais fácil aprender. As
pessoas que moram lá, eles vivem de
uma maneira... Teve uma época que
uma professora foi para lá e ficou na
minha casa, ele disse que nós éramos
igual índios, não me surpreende,
porque a gente pesca, caça, tira
palmito, é cultura rural [...] essas
escolas estão tirando as pessoas do
meio do mato e levando para a
cidade, então isso vai esvaziando.
Que política é essa que nós estamos
fazendo? De esvaziamento dessas
comunidades? Será que é isso que a
gente quer? Não, não é isso que a
gente quer. Então vamos trabalhar
uma política educacional melhor,
vamos discutir uma proposta melhor.
Porque vocês já sabem do problema,
já sabem que estamos aqui
discutindo essa questão de trazer o
jovem para a cidade. Isso não ajuda,
vamos fazer com que o jovem
continue no seu território e vamos
levar condições para lá. Internet,
antena são coisas que não são
difíceis, fazer um convenio com o
governo federal. São investimentos
públicos que tem que ser feitos...
Agora se você dá condições de ele
ficar lá até o ensino médio, aí ele
quer fazer a faculdade dele, tem
direito de escolher, de sair. Mas ter
certeza de que quando ele tiver desse
tamanho aqui eles vão querer voltar,
porque o sitio é um lugar bom para
viver, não é um inferno. Porque esses
jovens vão embora e não querem
voltar? Por causa dessas condições de
estrada, da falta de emprego. O poder
Mosaico se constitui em um conjunto
de unidades de conservação de
categorias diferentes ou não, próximas,
justapostas ou sobrepostas, e outras
áreas protegidas públicas ou privadas.
A gestão do conjunto deverá ser feita de
forma integrada e participativa, de
forma a compatibilizar a presença da
biodiversidade, a valorização da
sociodiversidade e o desenvolvimento
sustentável no contexto regional (Lei nº
9.985, de 18 de julho de 2000).
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 59
público tem que investir mais, nós
estamos perdendo o local de
moradia. (Silvio)
“Espero um dia estar lá na casa do
meu avô sossegado, poder chamar
meus amigos para ir visitar a casa do
meu avô. Porque hoje ir à casa do
meu avô não é fácil, não posso levar
visita lá, nada que pareça com
turismo. Tem uma concessão para o
meu avô morar lá, aí eu posso ir
visitar, mas se ele não estiver lá no
futuro, a Juréia vai acabar para mim
e para a minha família. Quem sabe se
a lei mudar, todos nós possamos ir lá.
Fica aí a interrogação para o futuro”.
(Pedrinho)
A luta pela cultura e pela terra:
“Conseguimos juntar alguns dos
irmãos, só tem dois que moram em
Itanhaém e Peruíbe. Nós ficamos na
Barra, montamos a Associação e
estamos todos juntos, vamos sempre
à casa do meu pai, tem mutirão.
Fizemos uma roça de mandioca para
ele e sempre que vamos para lá
fazemos um mutirão. Nós juntamos
sempre para não perder a nossa
cultura. A gente trabalha com
artesanato, com os jovens, com a
caixeta, instrumentos musicais,
oficinas de dança de música, fazemos
fandango. As crianças vão crescendo
e pensando em outras coisas, não
sabem fazer uma roça, usar a palha, o
machado, não sabem como colhe o
arroz, como pilar o arroz, fazer o
cuscuz. Vai perdendo aquela coisa,
você solta um moleque desse no
mato, ele não vai sobrevive”.
(Glórinha)
“Foi aí que criamos a União dos
Moradores da Juréia (UMJ), da qual
eu sou presidente, em 1989. Mas a
luta começou em 1987. Começamos a
reunir todas as comunidades da
Juréia para lutar pelos direitos das
comunidades tradicionais. O objetivo
da UMJ é mudar a lei, criar uma
unidade de conservação de uso
sustentável para que as comunidades
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
60 | CULTURA CAIÇARA
continuem com seu modo de vida.
Porque todas as comunidades ali
vivem nesse sistema. A gente travou
uma briga muito grande para ter esse
direito. Houve uma perseguição
muito grande da parte do Estado
contra o meu pai, porque eu era uma
liderança que estava organizando a
comunidade. Eles diziam para o meu
pai que em cobra eles pisavam na
cabeça. Meu pai me pedia para parar
com medo que eles me fizessem algo.
Eu pedia para eles lhes responder
que eu era um filho rebelde que não
ouvia seus conselhos. Ele foi
obrigado a falar isso mesmo. Mesmo
assim eles cortaram a energia. Existia
um sistema de gerador que
alimentava o sistema telefônico da
Nuclebras na Juréia. De vez em
quando eu usava esse telefone para
mobilizar a comunidade, para marcar
as reuniões, porque era o único que
tinha, eu esperava meu pai dormir e
ia lá ligar. Quando o Estado percebeu
foi lá e cortou o telefone. Eles
cortaram a energia elétrica que tinha
em casa e meu pai me pressionava,
tinha medo de perder o emprego. Eu
dizia a ele que se ele não perdesse o
emprego, nós perderíamos o
território. Eles estavam nos usando,
colocando um contra o outro. Fui
obrigado a sair de lá, porque a
pressão era muito forte, mas eu não
ia desistir da luta. Eles mandaram
meu pai lá para Peruíbe e minha mãe
ficou lá sozinha. Era época de eleição.
Eu fui até o Secretario de Meio
Ambiente, Edis Milaré, contar como
estava a situação da nossa família.
Ele me garantiu que ia mandar meu
pai para casa, mas que depois das
eleições não sabia o que ia acontecer,
nem se ele mesmo estaria ali, por
enquanto meu pai ficaria em casa
tranquilo, porque três meses antes e
três meses depois das eleições
ninguém podia ser demitido. Nesses
seis meses corri para aposentar o
meu pai, conseguimos depois de
algumas tentativas. Em seguida
entraram com uma ação de
reintegração de posse contra a casa
do meu pai. Pensei que não ia ganhar
do governo, mas o Bom Jesus de
Iguape sempre ajuda a gente.
Encontrei com um amigo que me
indicou uma advogada que era a
favor das comunidades. Consegui
falar com ela e fui até seu gabinete,
pois ela estava com o processo e ia
despachá-lo. Quando a encontrei, ela
me instruiu a fazer um abaixo-
assinado para reverter a situação.
Com o abaixo-assinado ela deu ao
meu pai uma concessão de direito
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 61
real de uso a titulo precário, por
enquanto ele tá lá seguro”. (Dauro)
“Criamos um projeto de lei e levamos
para o Secretário José Goldemberg,
que começou a pressionar o Instituto
Florestal para mudar a lei. O IF não
queria mexer na Juréia de modo
algum, mas com alguma pressão eles
mesmos criaram outro projeto de lei,
um projeto de transformar a estação
me um parque, mas parque também
não prevê a presença humana, só que
permite a visitação pública o que
traria dinheiro e investimentos. Nós
falamos que não, o que nós queremos
é que se criem unidades de
conservação de uso sustentável.
Criaram-se duas: uma na
Despraiada, outra na Barra do Una,
as demais comunidades estão fora
desse contexto. Em seguida o Fabio
Feldmann mandou entrarem com
uma ação de inconstitucionalidade
para derrubar essa lei, foi o que o
procurador geral fez. Entrou com
uma ação dizendo que a lei tinha
vício de iniciativa, significa que o
legislativo não pode onerar o
executivo. Derrubou a lei e é tudo
estação ecológica de novo. A gente
está na briga de novo”. (Dauro)
“A gente sente que tem um avanço
muito pequeno, mas tem. Em passos
curtos a gente tem conseguido
algumas coisas. Espero que em
poucos anos a gente possa caminhar
mais tranquilamente, porque a gente
tá cansado de vir aqui falar de tudo
isso. Ninguém olha pra isso como a
gente olha. Ninguém, eu falo dos
poderes em si. Ninguém sabe o que é
passar a noite com a polícia
ambiental na janela do seu quarto
para saber o que você está fazendo
ali, abrindo a porta do seu armário
para ver o que tem guardado ali,
olhando o fumeiro do fogo para ver
se você não tem nenhuma caça. A
gente está vivendo o que já viveu
alguns anos atrás, um regime militar.
Porque a gente não pode fazer nada,
nosso regime é não poder caçar, não
poder praticar a cultura que a gente
tem [...] a lei do mosaico caiu em
2009, e a gente se sentiu mais
motivado a participar da questão
política. Esse ano nós entramos na
diretoria da Associação, somos novos
ainda nisso, mas estamos
trabalhando para que esse projeto de
lei seja aprovado de novo, que o
desenvolvimento sustentável seja
implantado na Juréia. A gente quer
voltar lá e trabalhar um pouco no que
meus pais e meus tios, meus avós
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
62 | CULTURA CAIÇARA
trabalhavam na Juréia. Por exemplo,
o que minha tia Glória falou: colher
arroz, eu não sei colher arroz. Não é
porque não quiseram me ensinar,
mas porque não teve oportunidade
mesmo. Muita coisa que a gente sabe,
muito nome de planta, é porque vai
passando no Morro da Juréia e eles
vão falando o que é. Essa questão de
aprender as coisas que a gente não
sabe, é bem a questão de não ter essa
vivência, não estar ali trabalhando
com os avós e os tios, fazendo roça,
canoa. Só vi fazer uma vez e assim
não dá para aprender e muitas das
coisas que a gente perdeu se devem a
isso, não tem como aprender se a
gente não vive no lugar”.
(Pedrinho)
“O esforço de pesca hoje é muito
grande, por conta desse êxodo, as
comunidades saindo do seu lugar e
vindo para Iguape. Lá tinham uns
mil pescadores, aqui deve ter uns três
mil. Lá nós tínhamos outras
atividades: o extrativismo, a
agricultura, etc. aqui só têm a pesca.
E todo mundo veio para cá pra
pescar e não tem recurso para todo
mundo. Isso tem acontecido com
comunidades de todo o Brasil, nas
reuniões que nós temos com os
outros povos tradicionais, na
Comissão Nacional, a reivindicação
principal é o território. Tendo nosso
território nós podemos fazer tudo:
pesca, mutirão, fandango, tudo... Na
Juréia nossa briga, nossa luta é
mudar a lei. Transformar toda aquela
área em reserva de desenvolvimento
sustentável, para que possamos
voltar para lá, assim nós também
tomaríamos conta dos recursos que
tem ali. Ao contrario, tem muito mais
gente aqui, no posto de saúde, tem
muito mais fila. Lá nós temos outros
recursos, chás, ervas, não precisamos
vir até aqui nos médicos. Porque
vindo para cá, nós também estamos
sujeitos as doenças daqui, ao stress.
Se o governo desse espaço pra gente
viver, ia todo mundo viver melhor,
ter uma qualidade de vida garantida.
Eles estão expulsando nossos povos
do território, eles vem inchar a
cidade... Vocês têm que nos ajudar a
levar esses povos de volta para o seu
A Reserva de Desenvolvimento
Sustentável é uma área natural que
abriga populações tradicionais, cuja
existência baseia-se em sistemas
sustentáveis de exploração dos
recursos naturais, desenvolvidos ao
longo de gerações e adaptados às
condições ecológicas locais e que
desempenham um papel
fundamental na proteção da natureza
e na manutenção da diversidade
biológica (Lei nº 9.985, de 18 de
julho de 2000).
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 63
lugar, porque lá também é de vocês
[...] finalizando, quando a gente
mudou a lei de novo e derrubaram a
lei (Mosaico da Juréia) e voltou a ser
estação ecológica, o promotor
público de Santos entrou com uma
ação civil pública dizendo que o
governo tinha 120 dias para tirar
todo mundo da estação ecológica,
porque lá não é permitida a presença
humana. Nós entramos com um
mandado de segurança pública
coletivo, chamamos a defensoria
pública e explicamos que estão
querendo tirar todo mundo de lá,
fizemos manifesto, abaixo-assinado,
divulgamos no “Revelando o Vale do
Ribeira”. Conseguimos segurar à
liminar, mas foi julgada agora e a
gente perdeu. E tá todo mundo no fio
da faca de novo. Mas para salvar esse
povo, para que a cultura caiçara
continue, tem que mudar a lei da
Juréia para todas as comunidades.
Para criar um instrumento jurídico e
ter mais força para falar em nome
das comunidades caiçaras, que tenha
uma abrangência nacional. Temos
que dar visibilidade para essas
comunidades, não temos que ter
vergonha de ser caiçara, porque ser
caiçara é muito bom. As
comunidades indígenas e
quilombolas têm um marco legal,
elas estão na lei. E nós precisamos
dar visibilidade às comunidades
caiçaras para que um dia elas
também estejam. Porque a partir do
momento que você tem um marco
legal, você tem como cobrar mais
afinco do poder público”. (Dauro)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
64 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
QUILOMBOS DO RIBEIRA
Em 27 de agosto de 2011 foi realizada na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira a Roda
de Memória do Projeto Memórias Urbanas, cujo tema estava voltado às questões sobre a
presença do negro na história da região. Sob o tema Quilombos do Ribeira, este encontro
buscou registrar elementos dessa história pouco conhecida e trabalhada nas escolas.
Cabe destacar que a Lei federal 10.639, de 2003, institui a necessidade de incorporar nos
currículos escolares a História e Cultura Afro-brasileira e nossa intenção foi contribuir
com material para que os educadores possam fazer esta abordagem a partir da história
local.
Convidados:
Francisco de Sales Coutinho, o
Chico Mandira, nascido no município
de Cananéia na comunidade do
Quilombo do Mandira. Presidente da
Cooperostra.
Irene M. Coutinho, nascida no
município de Cananéia na comunidade
do Quilombo do Mandira.
Anna Maria de Andrade é
antropóloga e trabalha no Instituto
Socioambiental (ISA). Coordenou o
Inventário Nacional de Referências
Culturais das Comunidades Quilombolas
do Ribeira.
José Rubens Fortes, nascido em
Iguape. Formado como professor de
educação básica, atuou como mestre de
escola nos municípios de Iguape,
Pariquera-Açu e Registro. É autor de
uma coluna mensal no jornal A Tribuna
de Iguape.
Júlio Cesar da Costa, poeta popular
no Vale do Ribeira, nascido em
Maracatu. Integrante do Batucajé e autor
dos livros “Cacos de Mim” (1994) e
“Sortilégios e Tesouros: poemas, causos e
lendas do Vale do Ribeira” (2007).
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 65
1888 - Lei Áurea
1912 - Registro das terras
dos Mandira
1969 – Criação do Parque
Estadual Jacupiranga
1988 – A Constituição
Federal determina a
regulamentação dos
territórios das
comunidades quilombolas
1998 – Criação da
Cooperostra
2002 – Criação da Reserva
Extrativista do Mandira
2003 – Decretos
regulamentam o
procedimento para
identificação,
reconhecimento,
delimitação e titulação de
territórios quilombolas
2009 – Criação do Grupo
Batucagé do Vale do
Ribeira
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66 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
Escravidão em Iguape
“É encontrável aqui na região de
Iguape vestígios de engenho, de
senzalas, de obras feitas por escravos,
da existência do negro na
comunidade, mas que não estava
abarcado por um trabalho
acadêmico, então nos distribuímos
alguns afazeres e de minha parte
ficaram temas relacionados a cultura.
O que constatamos é que o negro
começou a chegar no Brasil no
começo da colonização e em Iguape
no século XVII com a mineração de
ouro, esse ouro não era como o do
norte em que se escava o rochedo,
aqui o ouro era de aluvião, de rio. De
inicio os escravos foram trazidos para
esse afã, de trabalhar na coleta do
ouro. O negro da mineração tinha
uma formação diferente do negro que
trabalhou depois no arroz, ele tinha
essa mesma ocupação lá na África,
então ele já veio com o conhecimento
do garimpo. Este negro era alto,
magro, esguio e de perna fina porque
os senhores distinguiam o negro pela
batata da perna, entendia-se que o
negro de perna fina era mais eficaz
no trabalho. Não se tem registros de
Iguape até Santos de entrepostos
negreiros, então eles eram trazidos e
vendidos sucessivamente até chegar
aqui na região de Iguape. Os
Chico Mandira
Irene Mandira
Júlio
José Rubens e Anna Maria
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RODAS DE MEMÓRIAS | 67
empresários não possuíam grandes
levas de escravos, cerca de 10 a 15
escravos por propriedade. Esses
negros trabalharam na coleta do ouro
até a exaustão desse ciclo por volta
de 1700, então temos o inicio do ciclo
do arroz que foi muito mais
significativo pra região. Segundo se
entende esse negro trabalhou no
arroz, nos engenhos e moravam nas
senzalas próximas, estavam sobre o
domínio do senhor. Já os quilombos
possuíam um agrupamento mais
amplo e se constituíam pelos
escravos libertos, ou os negros que
não se encontravam mais sob o julgo.
Essa época do ciclo do arroz por volta
de 1800 é o responsável pela
construção desses casarões e das
Igrejas aqui em Iguape”. (José
Rubens)
Bairro do Mandira
“Hoje o bairro do Mandira conta com
24 famílias, mais ou menos 115
pessoas. Nossa comunidade é uma
das mais antigas de Cananéia, somos
a sexta geração na comunidade. No
quilombo Mandira, tudo possui este
nome, o sítio, o rio e o sobrenome
dos moradores, porém os negros
mais antigos não possuíam esse
sobrenome, à época era Vicente, e
depois que o pessoal passou a ser
chamado de Mandira, e adotamos
esse nome. Esse nome Mandira vem
de uma historia muito antiga, remete
ao Dilúvio de Cananéia de 1615 que
está no livro de histórias de
Cananéia. O Mandira é uma
comunidade quilombola reconhecida
pelo Estado, Fundação Palmares,
porém, ela é diferente dos demais
quilombos onde os negros fugiam e
iam para lugares distantes e
formavam seus quilombos, locais
onde os Capitães do Mato não
poderiam localizá-los. O Mandira era
uma fazenda de produção de arroz,
na época em que o Vale do Ribeira
produzia muito arroz. Teve o dono de
escravo chamado Antonio Florêncio
de Andrade, ele teve três filhos, dois
homens e uma mulher, um deles com
uma escrava. Esse filho se chamava
Francisco Vicente. Na época, com o
falecimento no D. Antônio, ficou
apenas a filha mulher, Celestina de
Andrade, como proprietária do sítio.
Porém, ela queria ir embora para
Minas por conta da exploração de
ouro, então ela doou o sítio para seu
A Constituição Federal de 1988, nos
artigos 215 e 216, reconhece aos
remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas
terras a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
68 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
meio irmão, o filho da escrava, surgia
então a família Mandira. Alguns
foram embora, porém muitos
ficaram, entre eles o João Antônio.
Este teve dois filhos, um chamava
João e o outro Antonio. Quanto a
esse ultimo existem muitas histórias,
que ele era muito forte, carregava sua
canoa nas costas, ele era muito forte
e ao mesmo tempo muito ruim, então
ele levava a canoa dele pra um lugar
muito distante nas costas para
ninguém mexer, segundo o que
contavam, ele jogava lá no barranco
porque era muito pesado. Já o João
era diferente, era calmo, era vidente e
previa as coisas que estavam
acontecendo com ele e com a
comunidade. Muito inteligente ele se
tornou na região como um advogado
dos pobres, mesmo não tendo
frequentado a escola ele aprendeu a
ler e escrever em casa. Quando ele ia
defender as pessoas no juiz ou na
delegacia ele ditava o que o
escrevente tinha que escrever.
Naquela época tinha os coronéis, e
um chamado Coronel Cabral que
ainda hoje possui terras na região,
ele queria ser dono da área sobre
domínio do Mandira, queria ser dono
de toda área, uma área muito grande
de terra. Na época não existia
estradas, então para ele defender
suas terras, herança do pai, ele
pegava a canoa a remos, com a
família, e ia até Cananéia e de lá
através da praia chegava em Iguape e
pegava um barco chamado Vapor de
Iguape e ia até São Paulo para brigar
pelo terreno no Mandira e ganhou a
questão, registrando as terras como
sendo do Mandira em 1912. Bom,
quando a Celestina doou a terra para
o Francisco foi em 1888, antes da Lei
Áurea. Naquela época o pessoal do
Mandira era muito discriminado,
eram briguentos, andavam juntos e
começaram a falar “lá vem a negrada
do Mandira” e o pessoal achava que
eles ocupam a área, mas na verdade
eram proprietário. Então, teve a
questão desse Coronel que queria
registrar a terra no nome dele, e o
meio de sobrevivência da
comunidade era a caça, a pesca, a
lavoura, conhecida como agricultura
familiar, mas nos conhecemos toda
vida como lavoura e também chegou
a década de 1950, 1960, começamos
a explorar Caxeta e o Palmito Juçara.
Na época o pessoal do sítio tinha um
grande amor pela natureza, pela
água, pela mata, por tudo aquilo que
se sobrevivia dele. Cipós, eles só
tiravam cipó maduro quando eles
precisavam, os que estavam verde
eles deixavam pra tirar pro futuro.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 69
Eles preservavam a natureza, tinham
um cuidado. O Palmito Juçara
antigamente se tinha dez pés de
palmito eles tiravam 5 ou 6 e
deixavam o resto para repovoamento
e alimentação dos bichos, assim era
feito também com a caça”. (Chico)
Modo de vida na comunidade
quilombola
“Hoje é proibido caça. Antigamente
tinha porque o pessoal respeitava o
ciclo de reprodução dos bichos. A
partir do meio de maio até agosto é o
mês de caça de paca, tatu, veado e
depois dessa época o pessoal não
caçava porque é a época de cria. Se
matar uma caça entre agosto e
outubro, além de matar a mãe irá
matar os filhotes. A única caça que
era morta o ano todo era o porco do
mato e o cateto porque eles criam o
ano todo, então não tem época de
criação, o pessoal sabia dessas coisas,
não precisava ninguém ensinar.
Tinha a questão que o pessoal fala
“não pode caçar”, mas naquele tempo
quando nascia um filho homem, o
pai da criança, ou avô, já pegava a
espingarda e saia na rua e atirava pra
cima e você sabia que nascia um filho
homem, e se fazia isso para que
aquela criança se tornasse um ótimo
caçador, era tradição, fazia parte da
cultura dos negros, caiçaras, por isso
que tinha caça, as pessoas viviam da
caça, eu me criei comendo carne de
caça, meu pai nunca foi no mercado
comprar um quilo de carne. No
passado os homens respeitavam a
natureza. Tem uma parte de mato lá
que estávamos fazendo uma trilha,
uma área de um sítio arqueológico,
sambaqui, uma mata em que meu
avô falava que ali não poderia
derrubar, em qualquer lugar poderia
pra fazer roça, mas ali só poderia
tirar madeira pra fazer um cabo de
foice, uma casa, ela tinha que ser
preservada pra esses fins”. (Chico)
Remanescentes de quilombo
“Quando ficamos sabendo que
éramos uma comunidade negra, o
padre João Trinta disse isso e o povo
ficou tudo revoltado contra ele, não
queríamos ser classificado como
negros, tínhamos vergonha disso.
Depois começamos a nos identificar
como negro quando duas irmãs
vieram fazer alguns estudos na
comunidade e ficamos sabendo que
enquanto quilombola teríamos
alguns direitos. Então hoje nós
assumimos que somos negros
remanescentes de quilombo. Fruto
de várias reuniões, nós conseguimos
descobrir qual a nossa situação,
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
70 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
nossos direitos, a questão do
trabalho das ostras e desse como
sendo desqualificado. E com esse
trabalho também foi responsável pela
elevação da nossa estima e passamos
a assumir esse trabalho também,
nesse contexto tivemos a criação da
cooperativa”. (Irene)
Tradições
“Quanto às tradições religiosas, hoje
elas diminuíram muito se comparado
da época dos meus pais, o que
preservamos ainda é o terço cantado,
já o Fandango está muito pouco,
apenas o meu cunhado que sabe
tocar o fandango.Os meninos
começaram a praticar capoeira mas
pararam também, não sabemos, mas
os jovens não tem mais interesse na
nossa cultura, eles querem sair. Das
festas religiosas nos temos apenas a
do padroeiro, a de Santo Antonio,
mas as outras festas que tínhamos
antes como o carnaval, as reiadas, os
moleirões, não tem mais”. (Irene)
“No tempo em que éramos jovens
tinha muito fandango, tinha porque
nós éramos solteiros e queríamos
namorar, então quase todo fim de
semana tinha fandango e mutirão,
outra coisa que acabou praticamente.
Outra coisa era a festa de S. Antônio,
hoje nos fazemos uma festa para
arrecadar fundos, pelo menos
tentamos, antigamente o pessoal
fazia o terço. Dia 12 a noite tem o
terço cantado e de manha cedo tinha
o terço normal. Então o pessoal de
várias comunidades, até do
Município de Jacupiranga iam pra
festa, ai eles levavam arroz, porco,
galinha e tal. Lá a noite eles faziam
um café e colocavam tudo ali e todo
mundo tomava café e comia daquilo
ali, todo mundo junto em comum.
Depois do café as mulheres pegavam
todo a doação, cortavam e faziam a
carne com arroz, e ali pelas 11 da
noite tinha a janta e ninguém
comprava nada, nós tínhamos o que
sobrava e o que o pessoal trazia e de
manha tinha outro café, o que a gente
chamava de alvorada e outro terço
cantado. Quem vendia alguma coisa
nas festas eram as moças que faziam
broinhas de mandioca, então
vendiam pra rapaziada... eram as
únicas que vendiam alguma coisa.
Depois mudou, o pessoal começou a
fazer barracas e não tem mais àquela
coisa de trazer as coisas, tem que
comprar... então mudou a festa de S.
Antônio, mas ainda tem o terço
cantado, que já foi gravado pelo
pessoal do Itesp. Então são
memórias, muitas coisas se perderam
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 71
porque os jovens não querem mais
saber de fandango”. (Chico)
“As pessoas chamam qualquer coisa
de mutirão, mas tem o mutirão, a
pojuba e o ajutório. Mutirão é
quando alguém queria fazer uma
roça ou canoa ou uma coisa desse
tipo, ai juntava 30 a 40 pessoas que
trabalhavam o dia inteiro e o dono da
roça dava o almoço e a janta e a noite
tinha o fandango, o baile, isso é
Mutirão. A pojuba também tinha
baile, mas as pessoas que eram
convidadas almoçavam em casa e
depois do almoço iam trabalhar até a
noite e depois tinha a janta e o baile.
O ajutório o pessoal juntava 10 a 15
pessoas e iam fazer uma roça ou
trabalhar numa casa e todo mundo
dava o café, o almoço, café da tarde e
depois as pessoas iam embora, não
tinha baile. Hoje eles convidam 4
pessoas pra trabalhar em alguma
coisa e fala que é mutirão, não é, isso
é ajutório”. (Chico)
“Imaginam o quanto de produção de
mestrado e doutorado foi produzido
nesses anos, e o que voltou à
comunidade? Pouquíssimo neh. Você
já pensou uma pessoa que foi
entrevistada em 1977, uma pessoa de
80 anos, é um material que a
comunidade não vai ter acesso
porque está lá na academia, e seria
muito importante que isso voltasse
principalmente para os jovens
poderem entender, por exemplo,
porque Ivoporundura se chama
Ivoporundura. As pessoas precisam
tem o conhecimento do que é seu, e
esse é um pouco do sentido da nossa
poesia da oralidade, ela não é feita
pra ficar presa no papel, ela foi feita
pra dialogar, pra permitir a
compreensão, essa é a principal
ferramenta do meu trabalho. Não
tenho pretensão de dizer que é um
trabalho bom ou ruim, melhor ou
pior, mas é um trabalho autentico,
nosso e quando começamos com esse
trabalho as pessoas perguntavam o
que a gente ia ganhar falando do vale
do Ribeira? Gente, é aquela coisa que
para você entender essa questão do
advento global, da questão das
fronteiras em que o mundo está
pequeno, o Chico mesmo já virou
cidadão do mundo, mas a gente
precisa aprender a entender o
próprio espaço da gente, como a
gente vai ser universal se não
conhecemos nem o nosso quintal.
Precisamos nos apropriar do nosso
gueto, do nosso espaço”. (Júlio)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
72 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
Criação do Parque Estadual de
Jacupiranga
“Na década de 1960 foi criada na
nossa comunidade o Parque de
Jacupiranga, pegando sete
municípios desde Cananéia até
Jacupiranga, pegando vários
quilombos, inclusive parte do sítio do
Mandira foi incluída. Com isso o
Estado criou a Polícia Ambiental e as
comunidades foram proibidas de
fazer tudo. Não poderia caçar, fazer
roça, tirar palmito, caxeta, e ai nós
resolvemos vender o sitio do
Mandira, na década de 1970, 85%
das terras. E algumas pessoas que
não venderam, como minha mãe e
alguns dos meus tios, ficaram lá, mas
tinham que sobreviver de alguma
maneira, ai a única solução foi partir
para trabalhar com ostra. A parir de
então passamos a viver da ostra a
partir de 1978”. (Chico)
Criação de ostras
“Nós trabalhávamos com ostra como
clandestinos, tirando ostra em
quantidade muito grande porque o
preço era muito pouco, vendíamos
para o atravessador e como todos
sabem, quem produz e vende para o
atravessador não estabelece o preço
do produto, é o atravessador quem
diz quanto quer pagar pelo produto,
e você precisa vender para
sobreviver. Éramos perseguidos pela
policia ambiental, quando a gente
voltava e ouvia a fala da polícia na
beira do porto a gente corria e virava
a canoa e escondia a coleta porque
nos não tínhamos o dinheiro para
sobreviver, imagina para pagar a
multa, era muito difícil. Então
tínhamos vontade de mudar isso,
quando foi em 1993 o pessoal da
Universidade de São Paulo (USP),
através do professor Diegues,
estiveram em Mandira e fizeram uma
proposta para o meu tio, já falecido,
de fazer um trabalho na comunidade.
Naquela época tinha um rapaz
chamado Renato Sales que
trabalhava na SUDELPA, ele
trabalhou na estrada do Itapitangui
ao Ariri e conheceu a história da
comunidade e acabou simpatizando
pela nossa causa e junto ao Diegues
realizou esse trabalho junto à
comunidade. Na época o Instituto
Florestal (IF) contratou um técnico
que foi gestor do Parque da Ilha do
Cardoso, ele fez um trabalho no sul
com mexilhões. Ele chegou na
comunidade com a proposta de
engorda de ostra para tentar
melhorar a qualidade da ostra.
Quando começou esse trabalho com
a USP e o IF começamos a trabalhar
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 73
Reserva Extrativista é de domínio
público, com uso concedido às
populações extrativistas tradicionais
conforme o disposto no art. 23 desta
Lei e em regulamentação específica,
sendo que as áreas particulares
incluídas em seus limites devem ser
desapropriadas (Lei nº 9.985, de 18
de julho de 2000).
de outra maneira com a ostra,
pegávamos ela no mangue e
levávamos para o viveiro e
esperávamos sua engorda. Nos
trabalhávamos com ostra a muitos
anos e nós ficamos receosos de
mudar nossa técnica de trabalho,
mas eu falei que ia fazer a
experiência e se não desse certo eu
voltaria pra mesma atividade. Foi
quando eu chamei um técnico do
Instituto de Pesca, na década de
1960, também teve um estudo de
criação de ostra em Cananéia e o
técnico falou que lá não era um local
propicio para criação de ostra, havia
apenas alguns pontos do estuário que
era propicio para a criação de ostra.
Então chamamos esse técnico e ele
falou o local que era bom, então
definimos aquele local e a
comunidade começou a ir ao viveiro
e a ver que a ostra estava crescendo
com aquele sistema de trabalhar,
então todos foram fazer o mesmo
serviço, e assim fizemos. Começamos
a vender in natura para um cara de
São Paulo e um do litoral, a procura
da ostra de viveiro passou a ser maior
do que a retirada do mangue, pois a
sua durabilidade é muito maior.
Então as outras comunidades de
Cananéia começaram a ir ao Mandira
para ver o sistema e começaram a
implantar nas suas comunidades,
então começou uma mobilização dos
técnicos que estavam nos apoiando
para que nós saíssemos da
clandestinidade”. (Chico)
“Então surgiu a ideia de criar uma
cooperativa, uma associação ou
pequena empresa. Em 1995 já
havíamos criado a Associação
Reserva Extrativista do Mandira,
pois à época alguns ambientalistas
viram um casal de mico leão dourado
lá na divisa com o Paraná, então
queriam criar uma Estação Ecológica
desde Itapitangui até Guaraquiçaba.
Com a criação da estação não
poderiam mais ter moradores,
apenas a visita de pesquisadores.
Então com a chegada do Instituto
Chico Mendes, chegou a APA e nos
mostraram como funcionava e nos
disseram que para garantirmos o
direito de permanecer na terra
teríamos que criar a reserva. Então
fizemos o pedido da criação junto ao
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
74 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
governo federal em 1995, o diretor do
IBAMA esteve na comunidade, disse
que poderíamos criar a Reserva do
Mandira, porem ele foi embora e
poucos dias recebemos uma carta
dizendo que era impossível criar uma
reserva extrativista em terra firme
porque o governo não teria recursos
para desapropriação dos
proprietários. Então o Secretário do
Meio Ambiente do estado de São
Paulo, Fabio Feldman, propôs à
comunidade a criação de uma reserva
estadual, e por fim não conseguimos
também. Depois de alguns anos, o
IBAMA retomou o projeto de criação
da reserva e este se deu em 2002, a
criação da primeira reserva federal
em são Paulo. Como eu disse do
processo de sairmos da
clandestinidade, optamos pela
cooperativa porque todos os
cooperados são proprietários da
cooperativa e numa pequena
empresa possui um dono e os demais
trabalham para este, nesse sentido
criamos a cooperativa. De inicio
quase fechamos porque não
sabíamos como administrar, mas
conseguimos um curso para que os
filhos dos cooperados fizessem
cursos de informática voltada ao
cooperativismo. Meu filho ficou
depois dois anos trabalhando, minha
sobrinha saiu a pouco tempo depois
de dar a luz, então estamos
colocando outra sobrinha minha para
trabalhar como secretária, então os
mais jovens ficam a cargo da
administração, mas nós todos
estamos interados e palpitamos,
agora depois de 13 anos que estamos
conseguindo entrar no mercado de
São Paulo, em litoral já temos um
mercado garantindo. Porem antes
nós dizíamos que a ostra era de
Cananéia, porem com isso outros se
beneficiavam, então passamos a
divulgar a ostra da cooperativa”.
(Chico)
O reconhecimento da
comunidade
“Nesse ano (2002) também fomos
reconhecidos como comunidade
quilombola e ganhamos o premio Rio
+ 10, pela ONU, que possibilitou a
saída do primeiro Mandirano para
fora do país e ir à Johanesburgo na
África do Sul. Eu fui mostrar nosso
trabalho de preservação ambiental e
de desenvolvimento social da
comunidade, com esse trabalho
também ganhamos o premio ECO 99,
da Shell. Nós ressaltamos esse
prêmio não pelo prêmio, mas pela
valorização do nosso trabalho,
porque a gente lá na roça não
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 75
percebe a importância do nosso
trabalho, tínhamos a impressão que a
gente nem faz parte desse país. Mas
nós participamos sim, nossos
antepassados morreram lutando para
melhorar nosso país e até hoje nos
trabalhamos para melhorar isso.
Conseguimos vários benefícios, entre
as mulheres e os jovens. Já estive na
Itália, fui convidado no ano passado
pelo ISA para ir à Dinamarca para
discutir a questão climática, e mostra
a importância do nosso trabalho na
questão da preservação ambiental,
não é apenas importante para a
comunidade, é relevante para o
mundo todo. Com isso as pessoas
veem que o Mandira esta no caminho
certo, e não é que estamos fazendo
agora, não tem nada de novo, tudo
aprendemos com nossos antigos.
Hoje tem educação ambiental, mas o
que fazemos são coisas que meu avô
fazia, só não possuía esse nome. Hoje
é proibido derrubar a margem do rio,
e naquele tempo o pessoal preservava
uma vasta margem do rio, ano
passado fizemos roça e preservamos
a beira do rio, nós sempre tivemos
esse cuidado da preservação porque
nós dependemos da natureza. Esses
tempos eu estive em Campos (RJ)
para mostrar nossa experiência, de
como nós nos organizamos e como o
Estado nos apoia. Estive também
com pescadores no sul da Bahia e o
pessoal por lá conseguiu retomar
suas atividades com as questões que
eu passei para eles, a forma que nós
trabalhamos na nossa cooperativa,
mesmo eles não trabalhando com
ostras. Estive em Paraty e um
condomínio esta querendo construir
um píer no mangue, ai o pessoal me
chamou para ensinar a fazer viveiro
de ostra por lá, ai as pessoas me
perguntaram se eles não iam
competir comigo, mas não é assim,
eu vendo o meu e ele vendo o dele, eu
acho que é importante a gente estar
passando os conhecimentos que a
gente tem. Depois de um tempo eu
encontrei com o presidente da
cooperativa de Paraty e ele me disse
que eles já estavam vendendo ostra,
tem coisa melhor que isso? E assim a
gente vai mudando o Brasil, a gente
brasileiro”. (Chico)
Decreto nº 4887 de 20 de novembro de 2003 regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
76 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
Articulação das comunidades
quilombolas
“Nós temos no Vale do Ribeira o
EAACONE (Equipe de Articulação e
Acessória das Comunidades Negras
do Vale) que tem sede em Registro e
periodicamente temos reuniões,
mais ou menos a cada dois mês para
planejar a articulação das
comunidades para buscar seus
direitos. Antes, nós não sabíamos de
nossos direitos enquanto negros, e
com esse grupo temos acesso a essas
informações, agora temos orgulho
de sermos negros e fazermos parte
da história do Brasil. Mas tem
muitas comunidades que ainda tem
vergonha de sua origem. Uma vez fui
para Manaus e uma mulher da
Fundação Florestal (FF) que me
acompanhava perguntou para uma
moça que possuía traços indígenas:
“você é descendente de índio?”, e ela
não assumiu, mas a cara dela é de
índia, então a pessoa tem vergonha
de sua origem, claro que isso vem
mudando, o negro já possui sua
identidade, mas ainda tem pessoas
que se auto-discriminam por ser
negros. Muitos dizem “Chico você
não é negro, sua cor é de burro
perdido”, mas minha ascendência é
de negro, olha o meu cabelo. Então
temos que nos assumir, por isso
temos essa associação”. (Chico)
Poesia no Vale do Ribeira
“Falo um pouco da minha
experiência do meu trabalho com
poesia popular no Vale do Ribeira.
Estudei na minha cidade até
adolescência, minha primeira
formação foi em Ed. Física, fui atleta,
defendi a seleção brasileira em
Roda de Memória
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 77
alguns eventos regionais e
internacionais, depois voltei ao Vale
do Ribeira e como essa coisa da
poesia, do texto sempre me
acompanhou eu acabei cursando
Letras e nesse meio tempo eu
comecei um processo de descobrir
essa questão da formação do vale,
dos povos e esses conceitos de
quilombo, mesmo a minha cidade
possuindo uma comunidade
quilombola. Ai conversando com a
minha mãe ela começou a me contar
as histórias dos seus pais, meus avós,
ai eu comecei a perceber essas
questões que não são só do litoral,
mas de todo o Vale como um todo
através da ocupação por meio do rio.
Nos anos 90 eu conheci o Lara, nos
encontramos aqui no Vale e eu já
tinha esse trabalho com poesia e ele
com a música. A partir disso, nos
unimos para cantar e fazer um
trabalho, não tínhamos muitas
pretensões, trocávamos experiências
de arte e poesia. Montamos um
grupo que se chamava Batucajé e
começamos a participar de algumas
intervenções aqui e ali e nosso
trabalho foi ganhando um destaque”.
(Júlio)
Batucajé e as memórias do Vale
do Ribeira
“Esse trabalho é sediado em
Maracatu, nosso projeto é bem
parecido com esse que é de
memórias, buscamos contar a
história da cidade através do olhar da
população e dentro dessa questão da
memória vamos bebendo de outras
fontes como a poesia, a música e a
historiografia da cidade. Dentro
desse meu trabalho do grupo eu
acabei tomando a linha da poesia
regional. Lancei um livro em 1994
chamado “Cacos de Mim” que tratava
das minhas influencias da poesia
moderna (Drummond, Vinicius,
Cecília Meireles) eu sempre tive uma
influencia desses poetas, que eu
sempre li na minha juventude, então
esse primeiro livro traz fortes
influências do modernismo.
Batucagé na etimologia está ligado
aos batuques com intenções
religiosas. Mas nós, dentro do nosso
caiçares, a gente colocou esse nome
para remeter as questões de como
você junta às pessoas para contar
histórias, como a gente ta fazendo
aqui, isso é um batucagé. Mas eu
trazia essa coisa de redescobrir o
Vale, eu passei muito tempo fora,
então era mesmo um processo de
redescobrir e através desse grupo
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
78 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
viajamos e passamos a ter uma
aproximação com as comunidades,
as lideranças. Eu e o Lara temos
personalidades diferentes, enquanto
ele é mais comunicativo eu sou mais
calado, fico mais atento a fala e em
incorporar isso. Eu sempre acho que
a poesia nasce de forma oral, da
oratória. A escrita e essa questão da
oralidade caminham juntas, é
necessário que você registre, mas o
que da vida a poesia é a verbalização,
quando você pega os violeiros, que
tem domínio do verso e da
improvisação é fantástico, você
consegue usas de diversos recursos, é
uma gama de coisas muito grande”.
(Júlio)
Inventário de Referências
Culturais dos quilombolas
“O projeto específico no qual eu vou
me ater aqui é o Inventário de
Referencias Culturais das
Comunidades Quilombolas e o que é
isso? É uma maneira de levantar e
dar visibilidade ao patrimônio
imaterial dos Quilombos. Nesse
trabalho nos adotamos uma
metodologia elaborada pelo IPHAN,
então nos realizamos um trabalho
para o IPHAN, essa metodologia do
IPHAN é uma das partes da política
de salvaguarda do patrimônio
imaterial. Esse trabalho não é apenas
pesquisa, é um projeto de
intervenção, a ideia é que as
comunidades se apropriem desse
trabalho e toquem esse levantamento
por elas mesmas. São 16
comunidades que participam: aqui
em baixo nos temos em Cananéia os
quilombos do Mandira, Morro Seco.
Em Eldorados nos temos o Abobral,
Sapatu, Pedro Cubas, Pedro Cubas de
Cima, Ivaporunduva, São Pedro,
Galvão, Nhunguara. Em Iporanga
nos temos Santa Rosa, Pilões,
Pombas e Praia Grande. Em Itaoca
temos Cangume e Porto Velho. Em
cada comunidade dessas nos temos
um agente cultural treinado por nós
do ISA e pelo IPHAN para aplicar os
questionários do inventário. Esse
questionário é dividido em cinco
temos principais: as celebrações, as
formas de expressão, os ofícios e os
Mutirão em Iporanga
Foto: Titi Ribeiro.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 79
modos de fazer, os lugares e as
edificações... Ai, quando a gente
chega lá uma das principais
dificuldades pra gente, enquanto
antropólogo ou pesquisador é como
colocar aquilo que estamos vendo, a
vida acontecendo, transformada em
dados e encaixá-la nessa classificação
do IPHAN, então temos todo um
trabalho de ‘domesticar’ esses dados
e transformá-lo num texto que se
encaixe nessa metodologia. Então, o
inventário está sendo composto
dessas informações, mas nós estamos
tentando levantar junto às
comunidades também se esses bens
estão íntegros, se eles são memória
ou se eles são ruína. Isso é para a
gente começar a pensar se esses bens
estão ok, se está sinal amarelo e esta
se perdendo muita coisa e é
necessário fazer alguma coisa pra
garantir sua salvaguarda. E o que eu
tenho a dizer no panorama que
estamos traçando é que tem muita
coisa que é integro e memória,
porque o bem natural ainda existe,
mas, ou uma pessoa quem faz ou ele
mudou tanto que o jeito que ele era
feito não existe mais, então ele
encontra-se em um estagio
intermediário entre existir e não
existir. É o caso da bandeira do
divino em muitos lugares, porque ela
não anda mais com os foliões, ela
anda em silencio. Outra coisa
preocupante é o declínio da atividade
agrícola, a atividade de roça. É claro
que a ajuda do governo a essas
comunidades é importante, mas sem
uma política de incentivo a roça
acabam solapando essa atividade, e
sem a roça não temos o mutirão,
pulhuva, nem reunida, nem ajutório,
não tem mais, e se a gente não tem
mais isso não tem os bailes depois e
se a gente não tem os bailes a gente
não tem as musquetas, a dança do
chapéu, a anhamaruca, o fandango, e
se a gente não tem os produtos da
roça a gente não tem mais o tipiti,
peneira, pilão, a roda, o monjolo...
quer dizer, acaba tudo, ai a gente vê o
sistema. [...] se a vida é difícil na roça
é importante que a gente crie
condições pra que não seja tão difícil,
eu não sei se eu sou muito nostálgica,
mas eu quero que esses
conhecimentos não acabem. As
crianças hoje fazem uma trilha e não
sabem identificar um pé de planta,
tem que comprar um pacote de arroz
que os pais dele plantavam e às vezes
eles não tem o dinheiro. O objetivo
desse trabalho é fazer com que essas
comunidades se apropriem desse
conhecimento, nos estamos
sistematizando todas essas
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
80 | QUILOMBOS DO RIBEIRA
informações e estamos passando pra
elas para que elas vejam o que e
como elas eram preservar e se gostar.
Muitas escolas desvalorizam os
conhecimentos dos mais velhos, das
comunidades quilombolas. Gostaria
de salientar que toda essas história
tem também como objetivo dar
visibilidade e valorizar o Rio Ribeira
nesse processo atual da construção
de represas, represas estas que vão,
além de inundar terras, inundar
história, memórias e uma boa parte
da historia do Vale do Ribeira que
esta ai nas comunidades
quilombolas, então é uma luta nossa
porque tem muitas histórias do vale
que estão nessas comunidades”.
(Anna Maria)
Quilombo dos Mandira, Cananéia. Foto: Danilo Pereira, 2009.
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RODAS DE MEMÓRIAS | 81
HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
Em 17 de setembro de 2011 foi realizada na Casa do Patrimônio do Vale do Ribeira a
Roda de Memória sobre a temática: Histórias de Pedra e Cal. O objetivo era ouvir relatos
que tivessem como foco o patrimônio edificado na cidade e na área rural. Detalhes das
técnicas construtivas e da fonte dos recursos para a construção, as iniciativas para a
conservação deste patrimônio e as histórias de vida de nossos convidados alimentaram as
conversas, cujo registro encontra-se aqui dividido por temas de falas.
Convidados:
Lúcio de Aguiar, morador do
Costão do Engenho.
Paulo Fortes Filho, pesquisador e
historiador da cidade.
Cleide de Moraes Carneiro,
moradora de Iguape.
Emerson da Silva Santos,
responsável pelo Projeto Oficina
Escola.
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82 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
1538 – Fundação da sede
da vila onde hoje se
encontra o bairro do
Icapara
1614 – Transferência da
sede da vila para a região
às margens do Mar
Pequeno, onde hoje se
encontra o Centro
Histórico
1653 – Construção da Casa
Real de Fundição de Ouro,
a primeira no Brasil à
época.
1848 – a Vila é elevada à
categoria de cidade
1856 – Inaugurações da
Basílica do Bom Jesus de
Iguape
1969 – o centro histórico
de Iguape é tombado pelo
CONDEPHAAT
2009 – o centro histórico
de Iguape é reconhecido
como patrimônio nacional
pelo IPHAN
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 83
Trabalho na roça
“As construções em Iguape, no
começo, principalmente no rural,
eram de madeira. Casa de pau a
pique. Ali ia vivendo, plantando as
coisas. Criava também os animais, as
condições de antigamente não eram
iguais as de hoje, antigamente era
mais fácil, não tinha tanta exigência
como hoje tem. Antes a gente
derrubava o mato, plantava e colhia.
Hoje não pode nem derrubar para
plantar. Mas é ignorância, porque o
trabalhador rural braçal nunca deixa
a terra nua, para não dar erosão,
enchente. São os grandes que
derrubam tudo e a erosão vai para o
rio. Eles podem fazer, mas a gente
não. Eu trabalhava na roça, hoje não
trabalho mais, porque tem que fazer
um requerimento pro IBAMA, você
se você faz hoje, só daqui três ou seis
meses que sai o resultado. O que
adianta isso? O fazendeiro grande
não, ele entra derruba a mata, aí vem
a erosão e leva tudo para o rio”.
(Lúcio)
Engenhos de arroz
“Eu trabalhei no sítio. Quebrei muita
pedra para construir casa em Ilha
Comprida, em Iguape e assim fui
vivendo. Era pedra, cal e cimento
para fazer o alicerce, as casas não
eram feita de pedra, fazer casa de
pedra é difícil. Só o alicerce. O
casarão perto do engenho é de pedra
e cal, feito pelos escravos. Ali tinha
um engenho de pilar arroz, tinha esse
monjolo, tinha a cachoeira, aí fazia
um pilão e aqui atrás ficava uma água
e a água caia aqui, quando a água
caia, enchia e suspendia isso aqui
virado para cá e a outra caia e o
monjolo caia no arroz para pilar.
Depois que veio a construção dos
engenhos, tinham vários engenhos
ali que faziam, tinha uns oito
engenhos, tudo de arroz, até lá no
Matias. Quando foi feita a maquina,
caiu tudo e não tem água mais. Na
casa grande, ali era de pilão também,
depois que caiu. Na época da
revolução de 1930, Iguape levou
muita gente para se esconder lá. O
prefeito pegou a maioria do povo e
levou lá para cima, aquele casarão
ficou lotado de gente”. (Lúcio)
Icapara
“A maioria das casas de Icapara era
de taboado, que cortava do mato ou
que acostava na praia. Eram bem
simples, uma sala enorme e a outra
parte a cozinha. Com o passar do
tempo, as casas ganharam outros
compartimentos: os quartos.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
84 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
Geralmente um quarto maior, o mais
reservado no fundo da casa era para
as moças. Era uma casa bem simples,
bem rústica. Depois apareceram as
casas de tijolos. A casa do caiçara
geralmente é de madeira. A
passagem para o quarto das moças
era quase proibida. Até hoje a gente
percebe em algumas casas de
caiçaras, na porta da entrada uma
cruz e na porta do fundo a estrela de
Davi, o signo de Salomão. Eu não
entendia o porquê disso, porque
nunca soube que tinha uma
comunidade de judeus aqui no nosso
litoral. Então o dono da casa falava: a
gente se pega com Deus e com o
Diabo, para se defender de tudo”.
(Paulo Fortes)
Legislação Ambiental
“Depois também com as leis
ambientais, não sou contra porque
elas são necessárias, mas não se
pensou no caiçara que vive lá. A lei
protege a formiga, o caramujo,
lagarto, o jacaré, o macaco, a onça,
mas não protege o homem. Hoje em
dia, se a gente passar nas ruas do
litoral, a gente encontra uma roça de
mandioca. Mas é como se fosse um
museu, porque hoje não tem como
plantar. Durante séculos o caiçara
viveu e preservou aquilo, mas a lei
tem que ser alterada para que ele
possa viver. Claro, com certo limite,
que reprima aquilo que não tá certo,
mas a gente não pode deixar que ele
não viva. Ele foi expulso do seu
habitat e veio engrossar a periferia
das grandes cidades, com
subemprego”. (Paulo Fortes)
Festas
“As festas eram mais modernas do
que hoje. Dançava de verdade. Hoje
tem uma separação terrível, o pobre
não pode se misturar com o grande.
Era melhor que hoje. O motivo devia
ser de acordo com a exigência. A
Paulo Fortes
Lúcio de Aguiar
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 85
festa do povo do sítio antigamente
era o carnaval, ia na casa de um hoje,
na do outro amanhã, cada dia na casa
de um. E o baile da Sandália de
Prata? Esse era aqui na cidade. No
meu tempo não existia, só fandango.
Faz tempo que eu comecei a
frequentar, muito antes de vocês
chegarem lá”. (Lúcio)
“Nos bailes que se faziam para
dançar com alguém a gente tinha que
falar uma trova para essa pessoa.
Tinha o violeiro, era um negro, uma
hora ele deixou a viola para ir dançar,
foi tirar a moça para dançar e ela
disse que não dançaria com aquele
negro, aquele urubu. Eu disse: eu
sim. Dançamos e ele voltou para a
viola. Aí ele fez uma modinha assim:
Urubu é bicho preto, feio e muito
catinguento, mesmo assim as moças
chamam para o seu divertimento.
Porque ele que era o violeiro”.
(Cleide)
Pedra
“Tirava pedra com a marreta de cinco
quilos, com a base do martelo,
pegava assim na pedra, batia, a pedra
abria, ferro grande comprido. Batia
com a marreta quebrando. Da minha
família só eu que tirava pedra. Vendi
muita pedra para construir as casas
dessa cidade, tirava sozinho, cada um
tinha seu lugar. Tinha uma porção de
gente que fazia isso. A vida modificou
muito”. (Lúcio)
Preservação
“O tempo marca as coisas, o
progresso tem algumas vantagens e
algumas coisas que atrapalham. O
que a gente percebe que aos poucos
vai se degradando é o centro
histórico, era mais bem cuidado.
Agora com essa nova orientação do
IPHAN, do CONDEPHAAT, da
Prefeitura que tão cuidando e
preservando, mas muita coisa foi
deixada de lado. A gente vê em
algumas fotos. Ali no funil, onde está
Conforme Machado (1986), o
tombamento é um instrumento jurídico
de proteção do patrimônio natural e
cultural. É considerado por este mesmo
autor como uma “intervenção
ordenadora do Estado na propriedade
privada” e que tem a finalidade de
colocar os bens sob um regime especial
de cuidados. O tombamento
corresponde a um ato administrativo
que tem por finalidade a conservação
de bens materiais móveis ou imóveis,
sendo este o seu preceito básico, ou
seja, a obrigação de conservar a coisa
tombada, como definiu Rabello (2009).
Um dos principais efeitos do
instrumento do tombamento é
transformar os valores culturais
contidos nos bens como questão de
interesse jurídico, uma vez que paira
sobre o objeto tombado um interesse
público.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
86 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
o marco da fundação da cidade,
aquela parte ali o calçamento era de
pedra, com o tempo foram tirando,
foi se descaracterizando. A própria
Basílica, essa pastilha é o fim da
picada, é um crime contra tudo. Na
própria igreja, na capela do
Santíssimo, algum iluminado teve a
ideia de combater o cupim
levantando uma parede em frente o
altar. Na época que foi feito ninguém
reclamou, ninguém tomou
conhecimento. As coisas vão pouco a
pouco se deteriorando. Aconteceu em
60. Onde era o prédio da capitania, o
mais bonito da praça, a frente toda
era de azulejo português, o único que
restou na praça, derrubaram o prédio
e fizeram uma coisa medonha de feia.
Com o tempo se não tiver pulso firme
as coisas vão se deteriorar e a cidade
vai perdendo suas características. A
arquitetura é um conjunto, se alguma
coisa fica fora daquele alinhamento,
com o tempo aquilo vai se perdendo.
Se a gente olhar nessa rua aqui, nós
não vamos ver, fizeram uma reforma,
cada porta da casa ficou de um
tamanho, na frente do casario a
janela é arqueada e a porta é reta.
Coisas que não casam com o próprio
estilo. Aqui na rua 15, em duas casas
tiraram as portas de madeira de lei e
puseram portas de vergalhão. É
lógico que a gente não vai querer
voltar ao passado, mas muita coisa a
gente tem que preservar. Uma
concessão que foi feita é que se
conserve a fachada, dentro a pessoa
faz o que achar melhor, o que achar
mais prático. Geralmente as casas
eram um corredor comprido, os
compartimentos, os quartos muitas
vezes não tinham ventilação, não
tinham abertura de janela,
confinavam a pessoa lá dentro. A
gente não quer que volte como
antigamente, mas que pelo menos se
preserve a fachada. As divisões eram
de taipa ou de parede francesa,
algumas com madeira”. (Paulo
Fortes)
Saudade de Iguape
“Eu fui para São Paulo quando tinha
quatro anos, mas vinha para Iguape
todas as férias, se a gente estivesse
bagunçando minha mãe já falava: as
férias estão chegando, hein! E aí a
gente dava até banho em porco,
porque não queria deixar de vir para
cá de jeito nenhum. Era muito
gostoso. A gente vê que algumas
pessoas quando falam de Iguape tem
vergonha de sua história, tem
vergonha de ser caiçara. Cada coisa
que a gente fazia aqui tinha cheiro de
Iguape, os passeios de barco a vapor.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 87
Quando chegávamos e quando íamos
embora, a lancha parava perto do
barranco e toda a vizinhança vinha
ver. O café daqui cheirava diferente,
o pão era diferente, pão sovado.
Realmente a cozinha era a parte
maior, chão batido, uma mesa
enorme, os barris, uma porta bem
pequena que dava para uma horta de
onde eram tirados todos os
temperos. Do outro lado tinha só
ervas medicinais, porque meu avô
receitava para todo o vilarejo, havia
herdado isso da minha bisavó, que
era filha de escravo e tinha muito
conhecimento. Morreu com 115 anos
e nunca tomou um comprimido.
Lembro-me que quando ela faleceu
eu tinha uns três anos, ela me fez
uma bruxinha de pano, fazia o
cabelinho de tucum. Quando a gente
era criança, essa ideia de preservação
de pegar só o necessário era comum.
Quando havia um cerco que pegava
muitos peixes, aquilo era dividido
com toda a comunidade”. (Cleide)
Nossas Raízes
“Eu bato o pé que nós temos que
manter os olhos no futuro sem
esquecer o nosso passado, das nossas
raízes, da nossa história. Então
quando a gente vê uma casa assim
(paredes de pedra) é bonito, está
mudando a cabeça das pessoas.
Porque antes isso era vergonhoso,
tratavam logo de cobrir com reboco.
A calçada também, se sobrava um
dinheiro iam cimentar e alisar,
colocar piso. Os nossos casarios, as
brincadeiras, tudo isso tem que ser
preservado porque é a nossa história.
Porque um lugar sem história é como
uma árvore plantada no concreto, um
vento derruba, porque não tem raiz.
Eu vejo que poucas casas se
conservam. Na rua Tiradentes muitas
delas perderam suas características.
Nós temos aqui a casa paroquial que
foi colocada esquadria de alumínio,
não sei se existe uma orientação.
Quando eu era jovem tinha orgulho
de ser caiçara e agora com quase
sessenta anos não vou ouvir ninguém
chamar minha cidade de capela
velha. Essa mudança tem que estar
dentro de cada um. Vi uma Cleide
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
88 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
reportagem sobre o 11 de setembro,
as várias coisas que Nova Iorque
passou e o repórter disse: a cidade se
destaque não pelo acidente das torres
gêmeas, mas porque constantemente
se renova, sem perder de vista sua
história. Não existe folha se não
existe raiz”. (Cleide)
Pedra e Cal
“A maioria das paredes era coberta,
quando não era rebocado com
argamassa era com barro. Não havia
uma valorização. Então era pau-a-
pique ou madeira, mais na área rural.
Esse prédio aqui do Di Paolo, a frente
dele é uma fachada de pedra. A casa
do meu avô, hoje você passa lá, não
resta nada daquilo que era. A gente
fica triste com isso. Ali na Rua
Tiradentes o telhado era um só,
cobria várias casas. Hoje foi
modificado. Ali na orla do mar
pequeno foi feito um aterro, a maré
chegava até as casas, no fundo não
era muro, era cerca de bambu,
quando a maré ficava alta e depois
baixava, ficava um lodo só, a gente
tinha que andar pela cerca. Passando
ali o Di Paolo, lá na onde tem a auto-
escola, era um telhado só. Imenso,
com as vigas, mandei passar óleo na
madeira para evitar cupim, porque
era madeira de mato, grossa, rústica.
Umas tinham casca outras não. Meu
comercio era de roupas, durante a
noite a gente estendia um plástico
porque a noite caía muita sujeira.
Quando acontecia de quebrar uma
telha daquela, não existia, porque as
telhas eram desse tamanho, todas
irregulares, para encaixar aquilo ali
era igual a um quebra-cabeça. Minha
avó fazia telha para casa dela, não
tinha forma. Às vezes se fazia a telha
na perna, na coxa. Minha avó era
ceramista, fazia moringa, telha, essas
coisas. Meu avô também era
ceramista, mas fazia mais decoração.
Aqui era exatamente com essas
telhas. Tinha um rapaz que
trabalhava na basílica e era o único
que arrumava esses telhados, o
Uriti”. (Cleide)
“Trabalho nesse segmento da parte
Projeto Oficina Escola há 11 anos, sou
formado em pedagogia. E só
completando uma coisa, para depois
eu entrar na parte da Oficina Escola,
o uso da cal, ela é muito importante
quando você fala desses centros
históricos de casario colonial por
muitos aspectos. Primeiro
econômico, uma lata de tinta se você
for colocar o preço entre o
rendimento da cal e de uma lata de
tinta látex, é muito mais barato,
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 89
segundo a questão da higiene. A cal é
uma tinta que mata os fungos, ela
permite a entrada e saída da umidade
então a questão higiênica conta
muito em relação a uso da cal. Pra
mim, claro que tem pessoas que não
concordam, eu gosto muito da
textura da aplicação da cal, dá uma
textura diferenciada, uma coisa
muito bonita. Hoje a gente utiliza a
questão da cal hidratada que é
industrializada, a gente já compra
com aditivos e coisas do tipo, tem
também no mercado a questão da cal
virgem que é aquela que você
prepara, têm que ter toda a espera do
tempo de cura dela para você
utilizar”. (Emerson)
As Casas
“Todas as casas tinham horta, pé de
cebolinha, alfavaca, coentro e
salsinha, pés de tomate e árvore
frutífera, goiabeira, abacateiro, fruta
do conde, limão. Tinha muita
daquela ameixa amarela. Era na areia
branca, enterravam o lixo orgânico e
cobria, depois jogava aquilo para
adubar. Eles adubavam também com
aguapé. Usava-se muita pimenta
como tempero, hortelã pimenta. Eu
fiquei viúva muito cedo, tinha quatro
filhos na faculdade, fui trabalhar em
uma empresa para sustentar minha
família. Hoje trabalho com arte, com
pesquisa, amo ficar pesquisando.
Acabei de fazer um projeto para o
Morro do Bacharel. Alguém aqui
falou que não sabia o porquê da
Estrela de Davi nas casas, eu acabei
vendo em um estudo da USP que
existe uma hipótese de que Cosme
Fernandes era judeu, por isso ele
teria sido desterrado em Portugal”.
(Cleide)
“O professor Paulinho e o Seu Lucio
falaram da questão das paredes
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
90 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
divisórias. Geralmente você vai
identificar as paredes da casa dessa
maneira: as estruturais são as quatro
paredes que vão sustentar o peso da
casa, elas tem uma característica um
pouco mais larga até chegam a ser 1m
e 1,5m e 2,0m de espessura para
aguentar a carga. Para as paredes
internas eles utilizavam muito a
questão do sopapo, como o professor
citou que é o entrelaçado de cipó e
bambu, eles chapavam o barro, por
isso que a questão do sopapo, fica um
de cada lado, eles chapavam o barro,
tudo isso ao mesmo tempo. O
acabamento eles davam não só por
questão estética, mas sim por
questão de você manter também toda
essa estrutura, de você dar uma
sustentabilidade maior pra essa tua
construção. As paredes não ficavam
sem revestimento porque tinha essa
necessidade da proteção. Hoje em dia
a gente vê muitas casas com paredes
aparentes, muitas delas sem um
tratamento e isso está incorreto,
porque é legal, bonito, esteticamente
bacana. Mas pra você ter isso, pra
você manter e preservar tem que
fazer um tratamento. Ai o Toninho,
ele esteve aqui com a gente falando
um pouco de o que se utilizar, tem
pessoas que utilizam a resina. Ele
fala que a própria água da cal que é
aquele cristalino que a cal libera,
aquele produto seria importante você
aplicá-lo borrifando-o nessa parede
que vai estar aparente, porque ela
cria essa película de tratamento na
parede propriamente dita”.
(Emerson)
Sambaquis
“Só que essas construções aqui na
parte do litoral, as pessoas
construíam muito com os sambaquis,
que são aquelas conchinhas. Como
eles utilizavam isso ai? Eles
esmagavam todas essas conchas para
utilizar aquele pó. Se vocês
repararem em muitas dessas
construções que a gente tem de pedra
argamassada, vocês vão ver que um
pedaço delas tem carvão, outras a
concha toda inteira. Isso por quê?
Porque eles faziam aquela grande
pilha de concha, revestiam toda de
madeira em volta, colocavam fogo.
Porque o fogo, fazia o quê? Ele
trabalhava todo o processo do
sambaqui, derretia aquilo ali e
quando eles fossem para amacetar,
para triturar, ela fica muito mais
mole e eles aproveitam aquele pó.
Então quando eles vão fazer essa
peneiração, vinham alguns pedaços
de carvão que tinha usado. Porque
eles tinham uma necessidade de
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 91
construção, até mesmo por conta de
se proteger de chuva, sol, todo esse
tipo de coisa que hoje em dia
também temos essa necessidade. Só
que eles iam fazendo os testes. E eu
vou lá pegar, vou utilizar o que eu
tenho, a pedra argamassada com o
barro. Legal, só que não deu certo,
começou a cair, a trincar. Aí vou
atrás da areia que tem um pouco
mais de argila, não deu certo, tá
caindo. Então eles vão procurar o
que? Os aditivos, primeiro o
sambaquis que eles tinham muito ali,
essas conchinhas todas e depois disso
eles utilizavam muito o óleo de baleia
que era o que eles tinham na época.
Para quê? Para dar toda essa liga
para a massa, ela tinha um pouco
mais de sustentabilidade para
manter uma estrutura que fosse de
grande necessidade”. (Emerson)
Projeto Oficina Escola
“A gente tem a cal com essa principal
característica de proteção do imóvel,
e é difícil você colocar isso na cabeça
do morador, das pessoas que a gente
vê ai querem ter uma coisa mais
moderna, acompanhar a questão da
textura. É todo um trabalho, um
processo que a gente faz através do
Projeto Oficina Escola, é claro que
principalmente a prefeitura. Você
sente que o morador se preocupa
mais, está procurando os
responsáveis, as pessoas perguntam:
posso fazer isso, não posso, como
funciona, por quê? Porque o jovem,
principalmente o jovem que trabalha
com a gente, acaba se tornando o
próprio agente do seu próprio
patrimônio. Porque imaginem vocês:
um dia desses de sol, vocês ali na
fachada fazendo todo um trabalho e a
meninada, com o capacete e bota que
eles não gostam, brigam bastante pra
não usar, mas utilizam. E aí estão
passando ali a noite e vê um
camarada pichando, vão brigar com
certeza e vão pra cima mesmo. Então
acho que essa é a importância de
você desenvolver o trabalho e ter essa
questão da conscientização,
principalmente dos próprios
munícipes. Dentro disso, a gente tem
que mostrar pra eles qual é a técnica
mais apropriada que esta sendo
utilizada, e pra mim não tem
material melhor pra você trabalhar
com esse casario do que a cal, não
tem mesmo. Dizem: Ah, mas a cal,
ela não da firmeza para parede, o
reboco não vai ficar tão bom!
Engana-se quem pensa dessa forma,
a partir do momento que você
respeitou todas as técnicas, que você
respeitou todos os períodos dessa
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
92 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
construção, que você soube trabalhar
com as medidas tudo certinho, você
tem um trabalho para anos e anos. A
Oficina Escola veio pra cá na época
do Ariovaldo, o Carlinhos foi um dos
grandes idealizadores do projeto, foi
quem realmente foi atrás. Então
conseguiu implantar o projeto aqui
se não me engano no final de 2005
pra 2006. No início nós
trabalhávamos com turmas de 50
alunos no período da manhã, 50 no
período da tarde, tínhamos duas
oficinas, a de pedreiro e pintor
restaurador onde o laboratório era o
próprio centro histórico. Os alunos,
eles podem vivenciar e trabalhar as
técnicas aprendidas em sala de aula.
Porque antes do início da prática eles
têm todo um aparato teórico, uma
questão teórica que eles têm que
conhecer, noções de cartas
patrimoniais, conhecimento dos
órgãos propriamente ditos, o que é o
IPHAN, o que é o CONDEPHAAT, o
Conselho Municipal, qual a
importâncias de cada órgão. Então
toda essa questão teórica é passada
para os alunos antes mesmo deles
colocarem o pé na rua, segurança no
trabalho e qualquer coisa nesse
sentido. Os resultados sempre foram
muito positivos em relação ao centro
histórico de Iguape, até mesmo
porque o espaço que foi cedido pra
gente desenvolver as atividades teve
o apoio total dos moradores,
principalmente da parte da
prefeitura, e a força de vontade do
pessoal, dos alunos. Eu falo que é
impressionante porque realmente
quando eles querem fazer, se
apropriam daquilo e fazem com que a
coisa aconteça e querem cada vez
mais se aprofundar, querem
conhecer e vão atrás e pesquisam.
Então isso foi muito importante para
que até hoje a gente consiga manter
toda essa estrutura que temos em
Iguape. Hoje temos algumas outras
oficinas relacionas a questão da
Emerson
Parede de Pedra e Cal. Foto
Helena Rios, arquivo
Iphan/SP.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 93
restauração ainda, que é o
carpinteiro, o serralheiro
restaurador, são todas oficinas
internas na nossa sede na (rua)
Major Rebelo e dentre isso a gente
tem as aulas com engenheiros,
arquitetos, historiadores”.
(Emerson)
“As técnicas são desenvolvidas a
partir da necessidade da nossa
realidade, por exemplo, aqui nós
tínhamos alguns entalhadores de
placa alguns anos atrás que até foram
embora, então existe a necessidade
de ter alguém que trabalhe com essa
questão do entalhe, até mesmo pra
dar a opção ao morador. Ai você não
tem quem faça essa questão do
suporte, aquela parte mais
desenhada, aquela coisa artística,
existe a necessidade de ter quem
trabalhe com essa parte de
serralheria. A gente vai atrás dessa
capacitação, vai formar essa mão-de-
obra. Estamos tentando, já há algum
tempo, trazer para cá a questão da
cantaria, por termos a necessidade
dessa mão de obra. Ela é escassa não
só aqui em Iguape, mas no Brasil
todo. Hoje temos um mestre canteiro
aqui em Iguape e estamos tentando
fazer com que ele dê um curso, uma
palestra, uma hora que seja, para os
meninos. É o Nilson, ele trabalha
com cantaria já faz algum
tempo.Trabalha hoje para um
advogado, ele faz trabalho particular,
e dentro disso a gente vai procurando
atender a questão da necessidade
local”. (Emerson)
“Claro, como qualquer tipo de coisa
sempre tem as dificuldades, um
morador ou outro que acaba
resistindo não fazer a intervenção na
sua própria fachada. Engraçado que
assim que nós iniciamos, temos um
roteiro que é seguido. Vamos ao
morador, pedimos autorização para
que os meninos possam realizar a
atividade, porque você não da uma
garantia de uma qualidade total, não
tem como, porque eles estão em fase
de aprendizagem, eles estão
aprimorando as técnicas, então pode
ficar muito bom como pode ficar
aquela coisa mais ou menos. Se eles
liberassem, tinham que correr esse
risco. Por ser uma manutenção fácil e
barata você tem a possibilidade de
corrigir de imediato, mas tinha
aqueles moradores que não
conheciam então tinham certa
resistência. Você fazia a casa da D.
Maria, do Seu João pulava, fazia de
não sei quem. Iam ficando todas
bonitas, todas legais. Depois aquele
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
94 | HISTÓRIAS DE PEDRA E CAL
que não quis ia correndo atrás pedir
para fazer a dele. Eu procurei sempre
passar isso para os meninos porque é
uma forma de um reconhecimento da
atividade deles. Hoje a gente já
formou algumas dezenas de alunos,
alguns alunos que passaram na nossa
mão, hoje você escuta falar que está
em Curitiba em uma construtora, que
só aceitou o currículo dele por conta
de já ter passado na Oficina Escola.
Você vai escutando um que se
formou esses dias e te chamou pra ir
à formatura, fez arquitetura, você vai
escutando essas histórias e você vai
vendo. É um trabalho que realmente
vale muito à pena, mostrar para as
pessoas a conscientização do
patrimônio”. (Emerson)
Foto: Leonardo Falangola.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 95
Águas de Iguape
Em 24 de setembro foi realizada a última Roda de Memória cuja temática buscou
ouvir e registrar as histórias relacionadas ao Rio Ribeira, à navegação, pesca e ao
lagamar. Em uma cidade cercada de águas doces e salgadas seria impossível
pensar que o cotidiano de vida não passasse por alguma história de pescador ou
de barqueiro. Com o fim das atividades portuárias em Iguape, muitas destas
histórias da navegação não são do conhecimento das gerações mais novas.
Buscou-se por meio desta Roda de Memória trazê-las à tona novamente.
Convidados:
João Xavier, mestre de embarcação da Sorocabana.
Felix Veiga do Nascimento, condutor de embarcação da Sorocabana.
Antonia Rosa Waldhehm, filha de condutor de embarcação da
Sorocabana.
Aparício Muniz Ribeiro, pescador do Rocio.
Eliel P. de Souza, biólogo, pesquisador do ICMBio.
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96 | ÁGUAS DE IGUAPE
1839 – Inicio oficial na
navegação fluvial no Brasil
1844 – Iguape recebe a
primeira linha de vapor
regular, o Vapor Voadora
1857 – Fundação da
primeira companhia de
navegação fluvial da região
1906 – Criação da Agência
de Colonização e Trabalho
1913 – Fundação da Vila
do Jipovura por
imigrantes japoneses que
passaram a se dedicar ao
cultivo do arroz
1916 – Fundação da
Companhia de Navegação
Fluvial Sul Paulista, a mais
importante que atuou em
Iguape
1955 – Encerramento das
atividades da Companhia
Fluvial Sul Paulista em
Iguape
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 97
Trabalho na Sorocabana
“Eu nasci no município de Cananéia
e de lá sai com 23 anos, casei e vim
pra cá, fui convidado para trabalhar
na Sorocabana. O trabalho de
condutor constituía em viajar, sou
mestre, então pegava a embarcação e
saia daqui até Cananéia, de Cananéia
até Ariri, Maruja, Paranaguá,
Ararapira, Guaraqueçaba e assim é
que me aposentei com trinta e
poucos anos. Nas viagens eu saía
daqui meio dia e ia pousar em
Cananéia, descendo e embarcando
passageiros, de lá nos pousávamos
em Cananéia e no outro dia, seis
horas, saiamos com destino a
Paranaguá, também deixando
passageiros e pegando por toda a
baia de Cananéia. Entravamos no rio
Ariri e ia até o canal do Varadouro e
seguíamos, embarcando e
desembarcando, carga e descarga,
porque todo passageiro levava sua
carguinha, compras que faziam por
aqueles lados. Então a gente chegava
cinco horas, cinco e meia, seis horas
em Paranaguá, pousava e ficava o
outro dia inteiro no porto de
Paranaguá para carga e descarga.
Daqui levava bastante carga, nos
puxávamos a esteira de piri pra fazer
forração para o navio no posto de
Paranaguá e lá ficávamos 2 dias, nos
ficávamos um dia inteiro e no outro
dia de manhã saíamos e vínhamos
para pousar em Cananéia
novamente. Depois nos íamos
continuar a viagem até Iguape pra
trazer a carga pra Registro, toda essa
beira de Ribeira aqui. Então eu
viajava daqui a Paranaguá, mas tinha
outro mestre igual o Felix que viajava
também comigo para Paranaguá,
quando eu faltava ele entrava e daqui
nos íamos para Registro levar carga,
e de Registro até Juquiá, de Juquiá
nos puxávamos pra IBC (Instituto
Brasileiro do Café) fardos enormes
de 400 kg, nos embarcávamos pra
descarrega aqui, e depois
carregávamos pra descarrega lá no
porto de Paranaguá e assim me
aposentei com trinta anos. Eu
gostava muito desse serviço, senti
muita falta quando me aposentei”.
(João)
“Eu moro no Bairro do Engenho, sou
uma pessoa bastante conhecida aqui
em Iguape, apesar de não ser nascida
aqui, eu nasci em Barra Bonita e com
sete anos vim morar em Iguape. Meu
pai foi transferido pra cá para
trabalhar na antiga Sorocabana no
dia 13 de agosto de 1951. Nessa época
Iguape era muito pequena, não tinha
movimento, meu pai veio só para
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
98 | ÁGUAS DE IGUAPE
aposentar depois de algum tempo,
mas continuou trabalhando. Meu pai
viajava assim como seu Felix,
também conheceu bastante dessa
costa. Eu me considero mais
iguapense, aqui eu vim, aqui eu
cresci, estudei um pouquinho porque
naquele tempo não tinha muita
necessidade, apesar dos meus pais
incentivarem. Eu me casei aqui em
Iguape, meu marido era do Rio de
Janeiro, ele era oleiro, trabalhava em
olaria na época, eu também trabalhei
muito em olarias, fiz tudo na vida,
trabalhei em olaria, trabalhei em roça
ai casei e fui morar no Rio Pequeno,
não tem aquela ponte pequenina lá,
então de lá eu vim em engenho,
cheguei aqui no comecinho da
estrada e agora já tenho raiz e num
saio mais”. (Antonia)
Dificuldades no mar
“Tem trechos entre o Paraná e São
Paulo que, quando viajávamos para
Paranaguá, dependendo do tempo
não podíamos atravessar na baía, a
baía com duas horas de extensão,
quebra mar pra cá, quebra mar pra
lá, lugar baixo que não pode passar,
tem que passar só pelo canal mesmo.
Então a gente já sabia daquele local
ali , quando o mar estava muito
bravo a gente parava em algum rio
por ali e dai nos jogávamos os ferros
e ficávamos e lá e dormíamos, as
vezes a noite inteira com o balanço
do mar, muitos passageiros
dormindo ali, muitos no porão da
lancha, muitos em cima porque não
tinham cômodos. Os cômodos eram o
convés e a cama dos tripulantes, eu
pelo menos diversas vezes dei a
minha cama para algum passageiro
dormir, ficava acordado e dava a
cama pra alguém. Quanto à serração
a gente ia por cálculo, tinha bússola,
mas não se enxergava nada, fazia
tudo por cálculo, tudo na base do
cálculo, fazia com tempo bom daqui
até tal lugar tantos minutos, a gente
marcava a direção. Saíamos de
Aparício e Antonia
Felix e João
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 99
Cananéia até o Mar Pequeno, isso
dava uns 15 minutos, por exemplo,
daí mais 25 minutos até a Barra de
Cananéia, de Cananéia uma hora e
quarenta e cinco minutos até Ilha, de
lá tantas horas. A gente ia fazendo
cálculos. Para Paranaguá eu ia por
dentro do canal, pegava na Ilha do
Cardoso, Ilha do Cardoso pra
esquerda, nos entravamos no barco
em Ararapira, entravamos pra direita
até o Canal... Ai seguíamos pra
passar pra Paranaguá. Era difícil,
mas vencíamos. Eu me lembro de
uma história interessante de
passageiro, tem até fotografia em
livro, um rapaz que caiu na água com
duas senhoras dentro da canoa, ele
caiu na água e foi segurando na
borda até a polpa, dai nos com a um
bambu comprido demos para ele, ele
segurou e nos puxamos até encostar
no barco pra subir em uma escadinha
pra dentro da embarcação. Comigo
foi só essa vez que aconteceu de cair
gente na água, mas com os outros
mestres não sei”. (João)
Último vapor
“Tinha o vapor, o último vapor era o
Bento Martins, então ele ia para
Registro na festa de agosto e trazia a
imagem, a gente esperava no porto
todo embandeirado na festa, a banda
tocava. Era muito bonito e eu me
sentia feliz porque sabia que tinha
alguma coisa minha ali também. Eu
conto para os meus netos e eles falam
‘conta mais’, mas a gente não lembra,
mas mesmo assim vai contando e é
muito bom, eu acho que temos que
passar para eles o que a gente viveu,
o que a gente conheceu, o que foi a
infância da gente pra eles
entenderam um pouco, mas pra mim
foi muito bom”. (Antonia)
Iguape nos anos 1940
“A locomoção do povo do sitio e das
mercadorias se dava por navegação,
não tinha estradas como hoje em dia
tem, aqui no nosso município era só
canoa e embarcação, hoje nem canoa
não tem mais, hoje só tem ônibus,
tudo mundo vai de ônibus. Pra vir de
onde eu morava tinha que ser de
manhã, dormia aqui e só voltava no
outro dia. Hoje ele vem de manhã
comprar pão e já volta pra comer, a
facilidade como ficou. Então ficou
fácil a coisa de certo jeito, mas na
condição monetária da população
não ficou, é difícil porque até o
pescado sumiu. Antigamente era
cheio de peixe ali, hoje não tem, eles
tem que ir busca em Cananéia
porque não tem peixe aqui”. (Felix)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
100 | ÁGUAS DE IGUAPE
Navegação no Ribeira
“Começando na zona rural, no
Peroupava do tempo das bananeiras,
lá entravam dois barcos por semana
e levavam bananas do Peroupava pra
Santos, pra Argentina. Mais de trinta
barcos que puxavam banana, naquele
tempo a barragem era aberta e não
enchia Iguape. Para mim não sei,
posso estar enganado, mas vai ser
um desastre para o município de
Iguape essa comporta na barragem,
pra mim vai ser um desastre porque
eu conheço o município de Iguape.
Daqui de Iguape nos conhecemos até
Eldorado Paulista pelo rio. Todas
navegações que levavam
embarcações carregada de
mercadoria até Eldorado”. (Felix)
Jipovura
Quando a colônia japonesa veio aqui
para o Brasil, para São Paulo, eles
escolheram Registro, eles foram se
distribuindo para as colônias de
japoneses. Alguns japoneses que
escolheram o Jipovura pra se colocar
fizeram uma vila ali, lá já foi um
lugar de farmácia, teve correio, tinha
loja que aqui em Iguape não tinha. O
que tinha lá no Jipovura não tinha
aqui, tinha engenho de beneficiar
arroz, iluminação na vila de
Jipovura, tinha um medico”. (Felix)
Pesca
“Fiquei em Sorocabinha até 20 anos,
ai depois eu sai e fui trabalhar de
cobrador de ônibus na 9 de julho.
Mas foi pouco tempo, depois voltei a
pescar a manjuba no Sorocabinha. O
meu tio fez um cerco, ele tirava o
peixe com essa rede de manjuba.
Uma vez ele tirou meio alqueire com
aquela rede de manjuba de dentro do
cerco. Veio na cidade e pegou uma
rede de manjuba pequena, com trinta
braças de cumprimento e começamos
a trabalhar. Meu Deus! Aquilo era
tanta manjuba que nós limpamos a
área, era manjuba para fim de
mundo. Minha vida foi só pesca e
pesca, mas naquela época tinha
muito peixe e era muito fundo o rio.
Eu brincava com meus primos de
fincar uns bambus no meio do rio e
esses bambus tinham tamanho de
um poste. Ai, nós íamos para o meio
do canal e sobravam dois metros. A
gente fincava o que dava para fincar e
saia. Quando olhávamos para trás,
víamos aqueles bambus pulando,
porque o ar jogava para cima. Essa
era a brincadeira nossa e minha vida
foi assim [...] depois eu vim morar
em Iguape. Me casei em 1964 e, em
1967, vim morar para cá. Minha
família ficou no sítio. Depois voltei
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 101
para o sítio de novo em 1994, mas
nessa época meus filhos já estavam
todos criados. Conheço todo esse mar
que tinha tanta fartura! Esses
robalões, a gente corria deles.
Quando terminava a manjuba, no
mês de março, a gente começava a
pescar robalo. Era tanto robalo que
eu saia de manhã e levava uma
marmita para comer. Já levava o
camarão e o assado e deixava do lado
da canoa. Aí nos ficávamos em um
ponto único e, quando a maré
começava a subir, começava a pegar
robalo. Quando olhava o canal estava
alastrado de robalo. Mandava robalo
para São Paulo, dez, doze quilos de
robalos, porque robalo de quilo para
cima era robalo. Eu me lembro de
uma vez que meu pai fez um cerco lá
no sítio, mas naquela época não tinha
muito para quem vender, porque o
mercado era fraquinho e vinham
muitos vendedores de peixes, nós
fomos no cerco e não se enxergava a
água, era só peixe!! Ele pegava os
peixes especiais, que eram as tainhas
de ovas, jogava nas costas e vinha
vender para os de colarinhos duros.
Ia de casa em casa para vender e o
resto dividia com a vizinhança e,
também, tinha outra coisa, ninguém
tinha geladeira, era tudo salgado o
peixe, então eles colocavam em cima
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
102 | ÁGUAS DE IGUAPE
do fogo e comia o peixe seco.
Acabava aquele tanto e fazia a
mesma coisa, durante a vida inteira
era assim. Uma coisa linda do
mundo, a gente era feliz e não sabia,
você achava ruim, mas tinha tudo,
você plantava mandioca, plantava
batata, plantava tudo e dava em
grande abundância, a gente até vinha
vender na cidade. Laranja, mexerica,
o pé ficava que ficava forrado no
chão, trazia a granel e jogava na
canoa para vender aquela cuia. Não
se vendia por peso e nem por dúzia,
você enchia aquela cuia e dava para
ele levar e era o que, um real, dois
mil réis. Era assim, tinha tudo em
fartura, o nosso mundo era assim
maravilhoso, teve muita coisa para
nós”. (Aparício)
“O pessoal do sitio tem até muita
curiosidade, hoje quando você quer
fazer uma linha de pescado, você
compra o tipo de linha que você quer.
Naquele tempo não tinha essa
facilidade. Sabe do que se tirava a
linha para fazer uma corda? Da folha
do tucum4, alguns não conhecem,
você tirava a folha do tucum, daquele
linho e a pessoa fazia um
cordãozinho, depois chegava as duas
4 Tucum é uma espécie de palmeira existente na região litorânea
pontas e torcia um no outro. Você
pegava na perna e fazia assim, ele
ficava torcidinho como se tivesse
comprado na loja”. (Felix)
Canoa a Vela
“Eu fui a ultima pessoa a pescar com
aquela canoa a vela, nos usávamos a
vela, não era só eu não, todo o povo
da Ribeira tinha a vela. Vinha para a
cidade, por exemplo, se era vento sul,
vinha de lá. Ou se vinha a remo, a
vela vinha na canoa. Agora mesmo, a
pouco tempo aqui no Rocio, eu
andava a vela. Eu ia lá para o Icapara
pescar com rede grossa. Quando
chegava na hora de vir embora,
levantava o motor, arrumava a vela e
vinha, passava esse canal do mercado
e ia embora para lá. A vela era de
pano, às vezes comprava saco de
trigo que tem na padaria ou então,
esse algodão que vende na loja de
roupa. Aí, você tira a medida
certinho, tem o mastro, tem a verga,
tem o retranca, tem um punhado de
nome lá que tem nela. A gente arma
ela, faz um furo no banco e, lá
embaixo, tem um lugar de segurar o
pé dele e segurar na corda guiando
com o remo. E assim vai, deixa que o
vento levar”. (Aparício)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 103
Fandango
Eu era curioso, eu ia em um
fandango, em vez de fazer outra coisa
eu ficava em cima do violeiro
escutando o que ele cantava, via o
jeito que ele tocava, o jeito que ele
afinava a viola. E assim foi indo, com
12 anos eu tinha um tio que era um
dos melhores tocadores de viola e
cantava muito bem. Eles iam para
casa do meu avô, ia almoçar na casa
do meu avô e chegava a hora de
almoçar, eu pedia para ele afinar a
viola e deixar na cozinha. Então tinha
de fazer farinha, eu sentava no cocho
e ficava lá na viola. Eles iam dormir
para sala e para o quarto e eu ficava
sentado o cocho malhando para
aprender. Isso com 12 anos de idade.
Depois, com 15 anos eu já sabia tocar
viola, só que eu não tinha autorização
para pegar a viola em um baile e,
naquela época, tinha que o sujeito
que se metesse a intruso, ele levava
cascudo. Podia ser quem fosse, o pai
da gente não deixava. A gente não
podia se meter na roda dos mais
velhos de jeito algum, só se fosse
chamado. Eu fui pegava uma viola,
de segunda ainda e não podia cantar
de primeira. Tinha que acompanhar
o outro, isso com 17 anos. Com 17
anos que eu fui começar a tocar viola.
Eu me lembro de uma noite, eu era
fissurado nos bailes não tinha um
fandango que eu não fosse. Chegava
no sábado, eu ficava louco. Ai uma
noite que teve um baile lá na Ilha
Grande, longe pra caramba, não era
na nossa vizinhança, era em outra
comunidade, eu falei para o papai e
ele disse: ‘lá você não vai’. Eu falei
para mamãe e ela disse: ‘deixa que eu
dou um jeitinho para você, eu vou
arrumar a sua roupa e colocar em um
baú’. Tinha um baú para colocar
roupa porque na época não tinha
guarda-roupa. ‘Eu vou passar sua
roupa, você janta e vai dormir, dai
quando estiver todo mundo deitado
você levanta, veste a roupa e vai, mas
no outro dia você tem que estar aqui!’
Aí eu fiz isso, quando eles se
aquietaram para dentro do quarto, eu
dormia na sala e, quando eles se
aquietaram, me levantei, peguei a
bicicleta e sai no mundo. No outro
dia quando começou a amanhecer, o
galo começo a cantar, eu espichei de
lá, cheguei em casa, empurrei a porta
e coloquei a bicicleta para dentro.
Voltei para cama e deitei, nunca que
papai ficou sabendo!” (Aparício)
O Estuário
“Então a nossa cidade, Ilha
Comprida, Cananéia, Paranaguá,
Guaraqueçaba, estão em uma região
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
104 | ÁGUAS DE IGUAPE
que se chama zona costeira. Quer
dizer, é uma porção de terra que esta
próxima do mar, essa região sofre
influência física, química, biológica
da vida, dos fenômenos que
acontecem no mar e dos fenômenos
que acontecem em terra. É uma
região de transição, ela é terra e água,
tem horas que estão inundadas
outras que está seca. Essas regiões,
por exemplo, são denominadas
estuários. Essa palavra quer dizer
berçário ou alguma coisa assim, que
desde o inicio já sabia a função desse
tipo de ambiente, como um ambiente
de criação de vida, onde muitas
espécies acabam preferindo se
reproduzir e isso que da de certa
maneira o valor do estuário, e o que é
um estuário? Estuário é como se
fosse um pedaço de mar que fica
cravado dentro da terra, aberto que
permite a circulação de água do mar,
que permite a entrada e saída da
água do mar e, ao mesmo tempo,
essa região que recebe água que é
drenada no continente. Então vem
água do rio, essa água do rio de
mistura com água do mar e dá um
ambiente diferenciado. Essa mistura
varia ao longo do dia, ao longo do
ano, dos anos, de décadas e de
centenas de anos. O que influencia
essa mistura? Essa mistura é
influenciada por algumas coisas, por
exemplo, o relevo de fundo dessas
planícies, os canais, o fato de o lugar
ser fundo e depois não ser mais e isso
vai moldando as dinâmicas das
águas, a força das águas dos rios que
chegam. Se é um rio grande ou se é
um rio menor, que dependendo da
época do ano está seco, isso também
influencia nessa mistura. Outra coisa
importante é a dinâmica das
correntes de maré, com elas entram,
por onde elas entram e isso também
varia ao longo do dia, maré cheia,
maré seca. Então o movimento das
Mapas da Comissão Geographica e
Geológica, de 1914.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
RODAS DE MEMÓRIAS | 105
águas dos rios, o movimento das
marés, o relevo de fundo dá a
característica desse estuário. Tem
outro tipo de ambiente que é
chamado laguna. As lagunas são um
pouco mais abertas, a água doce
desce por vários riozinhos. Então a
gente tem aqui até ao longo de
Paranaguá um misto dessas duas
coisas, por isso que eles dão o nome
de sistema estuarino-lagunar, que se
comporta como cada uma dessas
coisas, ou estuário ou uma laguna.
Essa mistura que acontece nos
estuários e essa variação, ela é
sentida principalmente por essa
umidade, às vezes você tem um
estuário que as águas não se
misturam direito, é como se a água
salgada fosse um pouco mais densa e
ela ficasse mais no fundo e a água
doce ficasse mais para cima da
coluna d'água. A gente brincava
muito no vale, nadando e a gente
percebia isso nadando: você
mergulhava e de repente a água
esfriava, você sentia isso. É o que
chamamos de cunha salina, o fato é
que essa mistura de água propicia
uma condição de vida boa a uma
gama de espécies marinhas e as que
vivem no rio que vão para essa região
buscando condições para reprodução
ou para sobrevivência da espécie. As
diferentes espécies têm diferentes
comportamentos em relação ao
ambiente estuarino, hoje tem peixe
de rio que desce e às vezes frequenta
estuário. A gente tem peixe marinho
do oceano que passa algum tempo
aqui, por exemplo, a pescada
amarela”. (Eliel)
Construção da barragem no
Valo Grande
“Na década de sessenta alguns
pesquisadores, planejadores, pessoas
que trabalhavam para o Estado,
estudaram bem quais eram os
impactos do Valo Grande e na década
de setenta eles decidiram intervir
pensando em fazer aquele ambiente
estuarino voltar a ser como era antes
da abertura, ou seja, que a água
salgado pudesse entrar, tirar um
pouco da água doce. Eles conheciam
estuário de outros lugares e sabiam
que esse estuário era lugar altamente
produtivo em termos de
biodiversidade. Na década de setenta
eles construíram essa barragem (em
1978) e então a água doce deixou de
passar e começou a fluir pelo rio e
isso alterou tudo. Em 1983 deu para
sentir o drama que foi essa barragem,
porque apesar dela permitir a água,
ela fechou a passagem do rio. E o rio
foi obrigado a caminhar por onde ele
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
106 | ÁGUAS DE IGUAPE
caminhava antigamente, só que o
caminho dele já tinha mudado por
causa da ocupação, do assoreamento
e porque também passava pouco rio
por ali e, de repente, teve que passar
bastante. O que aconteceu? Essa
água tinha dificuldade de seguir para
a Barra do Ribeira, encheu e causou
muitos danos, catástrofes aos
bananeiros. Eles foram basicamente
dizimados, em 1983”. (Eliel)
“E com a barragem, tem que tragar o
rio Ribeira até a Barra da Ribeira pra
dar vazão para o rio e não inundar.
Isso é uma coisa impossível que o
município de Iguape não tem o que
tira daqui para o Governo gasta um
dinheiro desse absurdo, isso não vai
acontecer! No meu entender o
Governo vai gastar uma fábula de
dinheiro na barragem do rio Ribeira
e não vai resolver. Para mim eles
estão falando uma coisa que não
pensaram bem, houve um estudo,
mas não houve um estudo com quem
conhece o município, a situação do
município e do rio, eu não sei, mas
para mim vai ser o maior atraso
deixar fazer essa barragem aqui,
prova é que aquela tranqueira de
madeira, que não sei como vão tirar,
que encostou naquela barragem, até
pra abrir a comporta vai ser difícil e
pode levar o município pra breca,
porque a água vem de lá e vai ser um
perigo aquilo lá, eu sou favorável que
essas pessoas voltassem atrás e não
fechassem essa barragem”. (Felix)
“Uma vez eu escutei uma conversa no
bar que teve uma reunião em
Cananéia. Diziam que ia ser feito um
processo em Iguape, ia ser feito uma
comporta, ia ser fechado ali, ia ser
feito um muro de contenção nos dois
lados do Valo Grande, para então ser
feita a dragagem do Ribeira, ribeira
abaixo e ribeira acima, o valo grande
e o mar pequeno. Daí eu falei que
quero viver para ver, porque isso não
vai acontecer. Porque tem uma
musica de Milionário e Jose Rico que
canta assim: ‘Em cima da terra, no
fundo mar existe um tesouro para a
gente desfrutar” e o político faz isso
aqui embaixo da terra e no fundo do
mar, não se gasta dinheiro porque
ninguém vai enxergar”. (Aparício)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 107
Práticas em Educação Patrimonial
Foto: Helena Rios, arquivo Iphan/SP
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
108 | TRABALHO COM TEXTOS
TRABALHO COM TEXTOS
Proposta
Trabalhar com os trechos da obra
de Albert Camus: o livro “Diário de
viagem” e o conto “A Pedra que
Cresce”, do livro “O Exílio e o
Reino”.
Objetivo
A atividade busca, partindo da
leitura e interpretação do texto, se
apropriar desta importante fonte
de literatura estrangeira, que tem
em Iguape sua inspiração,
trabalhando articuladamente os
conteúdos de História, Geografia,
Literatura, Biologia, Matemática e,
portanto, temáticas da cidade, sua
história, natureza e cultura, temas
afetos ao patrimônio cultural.
Atividade.
a) Preparação inicial.
Para iniciar os alunos na leitura, é
importante antes situá-los em
relação ao autor, quem ele é, sua
importância na literatura, quando
escreveu o texto e as suas razões:
porque vem a Iguape, o que ele
procurava aqui?
Justificativa: a escolha do texto
Em agosto de 1949, o importante escritor
francês August Camus, prêmio Nobel de
Literatura de 1957, encontrava-se em
viagem pelo Brasil e resolveu ir a Iguape
para acompanhar a Festa do Bom Jesus.
Camus foi autor do famoso livro “A Peste”,
considerado sua obra prima. Nasceu em
1906, na Argélia sob o domínio francês,
militou no Partido Comunista, que depois
deixou, mudando-se para Paris aos 27 anos
de idade.
Realizou uma série de viagens, em 1946 foi
aos Estados Unidos e, em 1949, à América
do Sul, incluindo o Brasil. Do registro
destas andanças nasceu o livro “Diário de
Viagem”, onde o autor vai abordar suas
impressões sobre os aspectos da vida
brasileira. Retiramos alguns trechos deste
livro, em particular os que retratam a
viagem de São Paulo para Iguape, na qual
ele foi acompanhado pelo escritor
modernista Oswald de Andrade e de seu
filho.
Desta viagem resultou também, em 1957, o
último conto do livro “O exílio e o reino”.
Esse conto denominado “A Pedra que
Cresce” fala da viagem a Iguape com
inúmeros detalhes, complementando as
impressões que teve sobre o contato com o
ambiente tropical e as pessoas do lugar.
Apesar de escrever sobre Iguape e sobre o
Brasil, tais textos de Camus ainda são pouco
conhecidos por nós. Vale a pena conhecê-
los melhor.
Destacamos alguns trechos que ilustram a
viagem até a cidade, as condições da estrada
e da paisagem que ele acompanhava, suas
impressões dos moradores e, por fim de um
lugar que lhe chamou a atenção especial: a
Fonte do Senhor, que virou o tema do conto
“A Pedra que Cresce”.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 109
b) Exploração do texto.
A leitura atenta com os alunos pode ser feita em uma Roda de Conversa,
ambiente que ajuda a explorar coletivamente as impressões. Pode-se criar uma
atmosfera que lembra a viagem: sons da floresta, águas do rio e mar, cheiro de
maresia. Explore cada passagem do texto: como foi a viagem? Como ele descreve
o percurso? O que ele viu que lhe chamou atenção? Como ele descreve a
paisagem? E as pessoas? E a cidade, as construções? O que fala da cultura local?
c) Atividades investigativas.
A pesquisa histórica sobre o contexto em que se dá a viagem é um passo
importante para que os alunos compreendam os detalhes. Do contrário,
eles não vão entender porque o autor vai para Iguape pela estrada que
passa por Piedade ou porque as estradas não são asfaltadas como hoje. O
que estava acontecendo no Brasil naquele momento, na história de Iguape
e de São Paulo? Camus é acompanhado na viagem de Oswald de Andrade,
importante escritor modernista. Seria recomendável uma pesquisar mais
detalhada sobre quem foi Camus para entender suas relações com
escritores modernistas brasileiros.
Proponha aos alunos, com apoio de um mapa oficial, desenhar o percurso
da viagem e ilustrar com as características que ele descreve sobre as
cidades pelas quais ele passa, as referências da paisagem, trabalhando
articuladamente, assim, conteúdos de Geografia, de História, de Ciências.
Os alunos podem remontar o percurso da viagem: quantos quilômetros
percorridos, quanto tempo de viagem em cada ponto. Podem comparar
com as distâncias e tempos de viagem que se leva hoje, de ônibus ou de
carro, trabalhando, também, os conteúdos de matemática.
Acompanhe agora os trechos de Diário de Viagem:
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
110 | TRABALHO COM TEXTOS
SAÍDA DE SÃO PAULO
“5 de agosto, 6 de agosto, 7 de agosto (A viagem de Iguape) [...] Partimos para as
festas religiosas de Iguape, mas às dez horas, em vez das sete, como previsto. Na
verdade, devemos passar o dia todo percorrendo o interior, nas estradas
esburacadas do Brasil, e é melhor chegar antes da noite. [...] A estrada, de terra ou
de pedra, está sempre coberta por uma poeira vermelha, que recobre toda a
vegetação, até um quilômetro de cada lado da estrada, de uma camada de lama
seca.” (p.99)
“Às treze horas, chegamos a Piedade, uma cidadezinha sem graça, onde somos
acolhidos calorosamente pela dona da pensão, Dona Anésia, a quem Andrade deve
ter feito a corte em outros tempos. Servidos por uma índia mestiça, Maria, que ao
final, irá oferecer-me flores artificiais. Refeição brasileira, que não caba mais e que
passa graças à pinga, nome da cachaça aqui.” (p.100)
DESCIDA DA SERRA:
“Na verdade, só começamos a descer novamente a serra no fim do dia. Tenho
tempo de ver os primeiros quilômetros de floresta virgem, a espessura desse mar
vegetal; de imaginar a solidão no meio deste mundo inexplorado, e a noite cai
enquanto nos embrenhamos pela floresta. Andamos durante horas e sacolejamos
por uma estrada estreita, entre paredes altas de árvores, em meio a um cheiro
úmido e adocicado. Na densidão da floresta correm de vez em quando pirilampos,
moscas luminosas, e pássaros de olhos vermelhos vêm bater um segundo no pára-
brisa. A não ser isso, a imobilidade e o mutismo deste mundo apavorante são
absolutos, se bem que Andrade às vezes julgue ouvir uma onça. A estrada volteia e
torna a voltear, passa por pontes de tábuas soltas que atravessam riachos. Depois,
vem a bruma e uma chuva fina que dissolve a luz dos nossos faróis.[...] São quase
sete horas da noite, estamos nisso desde as dez da manhã, e o cansaço é
tamanho[...]” (p.101/102)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 111
TRAVESSIA DO RIO RIBEIRA DE IGUAPE
“[...] um grande rio nos obriga a parar. Sinais luminosos na outra margem, e
vemos chegar uma grande barcaça, do mais antigo sistema possível, movida por
meio de um cabo estendido entre as duas margens do rio e conduzida por mulatos
de chapéu de palha. Embarcamos, e a barcaça deriva lentamente sobre o rio
Ribeira. O rio é largo e corre suavemente em direção ao mar e à noite. Nas duas
margens, uma floresta ainda densa. No céu úmido, estrelas brumosas. Calam-se
todos a bordo.” (p.102)
“Desembarque. Depois continuamos a nos arrastar em direção a Registro,
verdadeira capital japonesa no meio do Brasil, onde tive tempo de ver casas de
decoração frágil e até mesmo um quimono.” (p.102)
EM IGUAPE:
“A própria estrada agora é de areia – ainda mais difícil e perigosa do que antes.
Finalmente, chegamos a Iguape, meio-dia. Descontando as paradas, levamos dez
horas para fazer os trezentos quilômetros que nos separam de São Paulo.
Tudo está fechado no hotel. Uma autoridade encontrada na noite nos leva à casa do
maire (o prefeito, como o chamam aqui). O prefeito nos avisa, pela porte, que
vamos dormir no Hospital.” (p.103)
HOSPITAL FELIZ LEMBRANÇA
“No hospital ‘Boa Memória’ (é este o nome), somos conduzidos pela amável
autoridade em direção a um pavilhão desativado que cheira pintura fresca, a uns
cem passos. Dizem-me que, na verdade, foi repintado em nossa homenagem. Mas
não há luz, já que a usina da região para as onze horas. Ao brilho dos isqueiros,
enxergamos, contudo, seis camas limpas e rústicas. É o nosso dormitório.” (p.103)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
112 | TRABALHO COM TEXTOS
NA FONTE DO SENHOR (6 de agosto)
“No pequeno jardim da Fonte, misterioso e suave, com os cachos de flores de
bananeiras, reencontro um pouco de isolamento e tranqüilidade. Mestiços, mulatos
e os primeiros gaúchos que vejo, diante da entrada de uma gruta, esperam
pacientemente conseguir pedaços da Pedra que cresce. Iguape, na verdade, é a
cidade do Bom Jesus, cuja imagem foi encontrada sobre as ondas pelos pescadores
que a lavaram nesta gruta. Desde então, cresce ali incansavelmente uma pedra, que
é cortada em lascas, muito benéfica.” (p.105)
A CIDADE
“A própria cidade, entre a floresta e o rio, comprime-se à volta da grande igreja do
Bom Jesus. Algumas centenas de casas, mas de estilo único, baixas, caiadas,
multicoloridas. Sob a chuva fina que encharca as ruas mal pavimentadas, com a
multidão matizada que a preenche, gaúchos, japoneses, índios, mestiços,
autoridades elegantes, Iguape tem ares de estampa colonial.” (p.105)
A PROCISSÃO
“A multidão cresce. Alguns dos romeiros estão na estrada há cinco dias, nos
caminhos esburacados do interior. Um deles, que tem um ar de assírio, ornado de
uma bela barba negra, conta-nos que foi salvo de um naufrágio pelo Bom Jesus,
após uma noite e um dia passados em ondas furiosas, e que fez a promessa de
carregar na cabeça uma pedra de sessenta quilos durante a procissão. Mas a hora
se aproxima. Da igreja saem os penitentes negros, depois brancos, com roupas
clericais, depois as crianças vestidas de anjos; em seguida, o que poderia ser os
filhos de Maria e, ainda, a imagem do próprio Bom Jesus, atrás da qual adianta-se
o homem da barba, de dorso nu, carregando uma enorme laje na cabeça.[...] As
idades, as raças, a cor das roupas, as classes, as doenças, tudo fica misturado numa
massa oscilante e colorida, estrelada às vezes pelos círios, acima dos quais
explodem incansavelmente os fogos, passando também, vez por outra, um avião,
insólido neste mundo intemporal.” (p.106)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 113
A VALORIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS.
Proposta
Para abordar a temática dos
conhecimentos tradicionais e do
patrimônio imaterial pode-se
trabalhar com diversos suportes,
entre eles, textos, músicas ou
entrevistas. Sugerimos uma
pesquisa no acervo da Biblioteca
da Casa do Patrimônio do Vale do
Ribeira, onde os educadores
poderão encontrar uma
diversidade de material para
embasar as atividades. Citaremos
2 exemplos de materiais que
podem ser utilizados: o livro
“Contos, Causos e Fatos da
Comunidade do Mandira” e o
folheto “Museu Vivo do
Fandango”.
Objetivo
Compreender os elementos
fundamentais que definem
algumas das comunidades tradicionais do Vale do Ribeira: os caiçaras e
quilombolas. As atividades permitem trabalhar articuladamente conteúdos de
várias disciplinas.
Justificativa
Conhecimentos tradicionais são produzidos
e geridos de forma coletiva, com base na
troca e difusão de ideias e informações, ao
longo do tempo, de geração a geração. São
produzidos no lugar em que se vive, pois as
culturas se realizam no marco de suas
territorialidades (ORTIZ, 2003). Na
sociedade contemporânea em que a cultura
se mundializou e, com isso, generalizaram-se
as referências, os gostos, os valores e os
modos de viver, contraditoriamente, isso não
significou que devem desparecer as
manifestações culturais singulares, geradas
localmente. Elas convivem e se alimentam
destes processos. São cada vez mais
essenciais para que as pessoas se
reconheçam nos lugares em que vivem.
Cultivar e garantir a reprodução destes
conhecimentos tradicionais e dessa cultura é
fundamental para garantir o princípio
constitucional de defesa da DIVERSIDADE
CULTURAL.
O patrimônio cultural brasileiro é, segundo a
Constituição Federal, formado pela
pluralidade de expressões, dos diferentes
grupos sociais e o Vale do Ribeira contribui
para a formação desta diversidade. Cabe aos
seus moradores, em primeiro lugar, se
reconhecerem como portadores desta
herança, a ser preservada e perpetuada.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
114 | A VALORIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS
Atividades
Os alunos, divididos em grupo, escolhem
o tipo de material que querem trabalhar.
A exploração dos materiais deve
identificar: os temas que aparecem nos
causos e contos; o que é Dança de São
Gonçalo ou a Lenda da Mãe de Ouro; de
que forma a realidade do lugar é
retratada; quais os elementos da cultura
tradicional estão presentes ali; como são
estas expressões culturais; sua
diversidade ao longo do litoral. Caiçaras
ou quilombolas? Será preciso pesquisar o
que significa cada um destes termos e
como a legislação (Decreto 6.040/2007)
define o que é uma comunidade
tradicional. Usando a definição do
Decreto, pode-se perguntar: quais os
recursos naturais que são utilizados pelos
caiçaras ou quilombolas? O que é recurso
natural?
Outras questões são pertinentes para o
estudo. Como os caiçaras e quilombolas
se relacionam com a natureza? Quais são as práticas agrícolas tradicionais? O que
é a coivara?
A pesquisa pode ser completada com outras atividades tais como: entrevistas com
moradores para coletar os causos e contos de Iguape; exploração dos textos das
Rodas de Memória; pesquisa em outros materiais da biblioteca da Casa do
Patrimônio, como por exemplo, a Agenda Socioambiental das Comunidades
Quilombolas do Vale do Ribeira (ISA, 2008), Enciclopédia Caiçara (DIEGUES,
2004).
Para saber mais...
O Decreto Federal 6.040/2007 instituiu
a Política Nacional para os Povos e
Comunidades Tradicionais.
O artigo 3o define Povos e Comunidades
Tradicionais como “grupos
culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e
recursos naturais como condição para
sua reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e
práticas gerados e transmitidos pela
tradição.
Para saber mais sobre o
Fandango...
O Fandango está em processo de
REGISTRO no Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
O REGISTRO é o instrumento de
proteção do patrimônio imaterial e foi
estabelecido pelo Decreto Federal 3.355
de 2003. Ele é um instrumento
equivalente ao tombamento do
patrimônio material. Informações:
www.iphan.gov.br.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 115
A socialização das conclusões dos grupos pode vir acompanhada da apresentação
dos causos e contos em forma de teatro, ou da representação em forma de
histórias de quadrinhos ou cartazes. O mais importante é que os alunos entendam
que, ao estudar a fundo estas culturas na escola, estão contribuindo para a sua
valorização e proteção.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
116 | EXPLORAR E CONHECER O PATRIMÔNIO EDIFICADO
EXPLORAR E CONHECER O PATRIMÔNIO EDIFICADO
Proposta
Para trabalhar com o patrimônio
edificado, nada melhor do que
usar como recurso pedagógico a
caminhada com os alunos para
estimular percepção sensorial,
observação e registro das
construções e do urbanismo do
Centro Histórico.
Objetivo
A atividade tem como finalidade
fomentar o exercício de pesquisa
para a construção de um
conhecimento por parte dos
alunos, a ser realizado com
autonomia.
O foco principal é aguçar a
curiosidade dos alunos e a
formulação de questões, que serão
respondidas com a realização das
pesquisas. O fundamental é que o
professor saiba que ele não
precisa dar conta de todos os
detalhes desta arquitetura e do
urbanismo, mas estimular os alunos a elaborarem as questões, buscando as
respostas na pesquisa.
Justificativa
Estudar o patrimônio edificado de Iguape é
compreender um pouco da história de
nosso estado e do Brasil. Como nos diz o
Dossiê de Tombamento do IPHAN:
“[...] Iguape é composta por importantes
casas e sobrados de pedra e cal que
remontam ao período da exploração
aurífera no século XVI, das atividades
ligadas à construção naval a partir de
meados do XVIII e da cultura de arroz
no século XIX. A Igreja do Bom Jesus de
Iguape, que atrai milhares de romeiros de
todo Brasil para a festa do padroeiro,
inaugurada em 1858, é ponto focal no
tecido construído. Sobressaem também o
Sobrado do Toledo, relevante exemplar
neoclássico e as casas da Rua das Neves, ou
do chamado Funil, o mais antigo conjunto
arquitetônico da cidade. Quanto aos
aspectos urbanos, pode-se observar
diversas características formais do
urbanismo português, tais como:
localização e escolha do sítio e sua relação
com o território, elementos estruturantes
do traçado urbano, as estruturas de
quarteirão e loteamento e o papel
importante das praças urbanas.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 117
Atividades
Sugere-se como percurso inicial as ruas XV de Novembro e Tiradentes, passando
pela Praça da Basílica e pelas Igrejas do Rosário e de São Benedito. Nesta
caminhada pode-se pedir aos alunos que escolham construções que eles
considerem importantes para a cidade. A cada escolha, os alunos são estimulados
a observar as cores e texturas, os detalhes construtivos (nas janelas, nas portas,
no telhado), os materiais, as formas. É de madeira, tijolo ou de pedra? Casa térrea
ou sobrado? Grande ou pequena? Antiga ou nova? Pedir que eles desenhem as
construções também ajuda a explorar os seus detalhes. Na leitura da “Roda de
Memória: Histórias de Pedra e Cal” os alunos irão encontrar elementos para
alimentar a pesquisa.
No retorno à sala de aula os alunos comparam as diferentes observações. Como o
objetivo do professor não é responder às questões, mas ao contrário, provocá-las
e, sendo assim, estimular a pesquisa, sugere-se a consulta ao folheto do
Tombamento do Centro Histórico. É possível encontrar no folheto os detalhes e
Mapa de apoio para a caminhada. Fonte: Dossiê de Tombamento do Centro Histórico de Iguape. Iphan/SP.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
118 | EXPLORAR E CONHECER O PATRIMÔNIO EDIFICADO
informações sobre alguns destes patrimônios tombados. Quem morou lá ou quem
construiu? Porque as construções são diferentes, algumas com uma única porta e
janela, enquanto outras têm dois andares, várias portas e janelas com sacadas?
Para trabalhar as questões relativas ao urbanismo de Iguape pode-se observar nos
percursos destas caminhadas o diferente formato das ruas na Praça da Basílica, a
forma dos quarteirões, as praças. Com auxílio de um mapa, fica mais clara ainda
esta diferença entre as ruas e a existência das praças.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
PRATICAS EM EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | 119
LINHA DO TEMPO: MEMÓRIA E HISTÓRIA OFICIAL
Proposta
Elaborar uma Linha do Tempo
cruzando as histórias de vida dos
alunos e de suas famílias com as
transformações ocorridas na
cidade. A inspiração partiu de uma
atividade proposta em uma Oficina
realizada pelo Museu da Pessoa.
Objetivo
Trabalhar com conceitos como o
de memória individual e coletiva e
sua relação com a formação de
uma história oficial da cidade e do
país.
Atividade
Preparação: corte retângulos de cartolina de duas cores diferentes e de tamanho
aproximado de 15 x 7 cm. Uma cor irá representar os acontecimentos da vida do
aluno e outra cor os fatos da vida da cidade.
Monte na parede duas linhas do tempo: na parte superior uma linha que será a da
cidade e na parte inferior a linha da vida cotidiana. As datas podem ser divididas
por década ou por ano, conforme a faixa etária dos alunos.
Distribuem-se inicialmente os cartões da cor que representa a história de vida.
Solicita-se que cada aluno escreva com poucas palavras algum fato que foi
importante para a sua vida e o ano em que ocorreu. Em seguida, ao terminar esta
Justificativa
Para Martins (1992), na história local e
cotidiana é que estão as circunstâncias da
História. Ela é constituída de fragmentos,
nos quais não estão os grandes heróis, mas
os protagonistas da vida cotidiana, das
relações miúdas do trabalhar e do viver.
Para escrevê-la recorre-se à memória de
muitos. Acontecimentos que, por vezes
parecem pessoais, são na verdade
compartilhados por muitos, pois não
estamos sozinhos. A articulação entre a
memória individual e a coletiva se impõe
para a escrita dessa história cotidiana.
Como compreender a riqueza do
patrimônio tombado sem levar em
consideração as histórias de vida, os
trabalhadores anônimos que construíram
essa riqueza, as relações sociais que as
sustentaram? Esta atividade procura
colocar o foco da história nestes
protagonistas do cotidiano de Iguape.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
120 | LINHA DO TEMPO: MEMÓRIA E HISTÓRIA OFICIAL
etapa, distribui-se o outro cartão,
com a cor que representa a história
da cidade. Solicita-se que os alunos
escrevam algo que marcou a
história da cidade, em poucas
palavras e a data do acontecimento.
Terminada esta fase inicia-se a
montagem da linha do tempo da
vida cotidiana. Chama-se cada
aluno para situar e colar o seu cartão na linha e explicar o fato brevemente.
Depois que todos colaram suas histórias, inicia-se a montagem da linha do tempo
da cidade, da mesma forma, pedindo a cada aluno que situe no tempo e explique
o acontecimento.
Percebe-se ao longo das falas, como as histórias se cruzam, a de cada um com a da
cidade. Acontecimentos podem se repetir ou se articular, um explicando o outro.
O professor observa as falas e os cartões mostrando as sequencias, as
articulações, as convergências, os encontros e desencontros. Explorando os
conceitos de que cada evento individual tem também sua dimensão
compartilhada.
Pode-se enriquecer as informações e discussão da Linha do Tempo paralelamente
a partir dos registros de fala dos moradores contida nas diferentes Rodas de
Memória.
Como textos de apoio são sugeridos os seguintes livros: “A Memória Coletiva” de
Maurice Halbwachs e “O tempo vivo da memória” de Eclea Bosi, ambos
disponíveis na biblioteca da Casa do Patrimônio.
A memória coletiva
“Nossas lembranças permanecem coletivas e
nos são lembradas por outros, ainda que se
trate de eventos em que somente nós
estivemos envolvidos e objetos que somente
nós vimos. Isto acontece porque jamais
estamos sós”. (HALBAWACHS, 2006, p.30)
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
SOBRE OS AUTORES | 121
Sobre os autores
Carina Mendes dos Santos Melo
Arquiteta graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em
Arquitetura, na área de História e Preservação do Patrimônio Cultural, também
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi arquiteta da Superintendência
do IPHAN/SP, atualmente presta serviço à Superintendência do IPHAN/RJ.
Flávia Brito do Nascimento
Historiadora pela Universidade Federal Fluminense e Arquiteta pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui Mestrado e Doutorado em
Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Atualmente é arquiteta
da Superintendência do IPHAN/SP.
Simone Scifoni
Geógrafa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, Mestre e Doutora em Geografia também pela
Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de
Geografia/FFLCH/USP, coordenadora do Projeto Memórias Urbanas –
Iguape/SP. Foi técnica do IPHAN/SP.
CADERNO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: MEMÓRIAS URBANAS DE IGUAPE – SP
122 | REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Referencias Bibliográficas
FONSECA, M.C.L. O patrimônio em processo: Trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997.
IPHAN. Dossiê da paisagem Cultural do Vale do Ribeira. São Paulo: Minc/IPHAN, 2009a.
__________. Dossiê de Tombamento de Iguape. São Paulo: Minc/IPHAN, 2009b.
MACHADO, P.A.L. Ação civil pública e tombamento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.
MARTINS, J.S. Subúrbio. São Paulo: Hucitec/Ed. Unesp, 2002.
MEIHY, J.C.S. História Oral. Como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2010.
ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense,2003.
PEREIRA JUNIOR, C.A. Iguape: Princesa do Litoral, Terra do Bom Jesus, Bonita por Natureza!. São Paulo: NOOVHA AMÉRICA, 2005.
RABELLO, S. O Estado na preservação dos bens culturais. O tombamento. Rio de Janeiro: Iphan, 2009.
123
Foto da contracapa: Flávia Brito do Nascimento
124
Prefeitura Municipal de
Iguape