caderno metrópole 21

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ISSN 1517-2422

cadernos

metrpolecidade, cidadania governana democrtica

Cadernos Metrpole n. 21 pp. 1-283 1 semestre 2009

Catalogao na Fonte Biblioteca Reitora Nadir Gouva Kfouri / PUC-SP Cadernos Metrpole / Observatrio das Metrpoles n. 1 (1999) So Paulo: EDUC, 1999 Semestral ISSN 1517-2422 1. reas Metropolitanas - Peridicos. 2. Sociologia urbana - Peridicos. I. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. II. Grupo Pronex Metrpole: Desigualdades Socioespaciais e Governana Urbana CDD300.5 Peridico indexado na Library of Congress Washington

cidade, cidadania governana democrtica

PUC-SP

Reitor Dirceu de Mello

Direo Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Ana Maria Rapassi Bader Burihan Sawaia (Presidente) Bernardete A. Gatti Cibele Isaac Saad Rodrigues Dino Preti Marcelo Figueiredo Maria do Carmo Guedes Maria Eliza Mazzilli Pereira Maura Pardini Bicudo Vras Onsimo de Oliveira Cardoso Scipione Di Pierro Netto (in memoriam) Vladimir O. Silveira

Coordenao Editorial Sonia Montone Reviso de portugus Sonia Rangel Reviso de ingls Carolina Siqueira M. Ventura Reviso de espanhol Vivian Motta Pires Capa Raquel Cerqueira

Rua Monte Alegre, 971, sala 38CA 05015-001 So Paulo - SP Tel/Fax: (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ

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metrpoleEDITORESLucia Bgus Luiz Csar de Q. Ribeiro

CONSELHO EDITORIALAdauto Lucio Cardoso (UFRJ) Aldo Paviani (UnB) Alfonso X. Iracheta (El Colegio Mexiquense) Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ) Ana Fani Alessandri Carlos (USP) Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto (UFRJ) Ana Maria Fernandes (UFBA) Andra Catenazzi (Univ.Nac.de General Sarmiento-ARG) Anna Alabart Vill (Universidad de Barcelona-ESP) Arlete Moyss Rodrigues (Unicamp) Brasilmar Ferreira Nunes (UnB) Carlos Antonio de Mattos (PUC/CHI) Carlos Jos C. G. Fortuna (Univ.de Coimbra-POR) Cristina Lpes Villanueva (Univ. de Barcelona-ESP) Edna Maria Ramos de Castro (UFPA) Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA) Erminia T. M. Maricato (USP) Flix Ramon Ruiz Snchz (PUC/SP) Fernando Nunes da Silva (Inst. Sup. Tcnico/POR) Geraldo Magela Costa (UFMG) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (PUC/SP) Heliana Comin Vargas (USP) Helosa Soares de Moura Costa (UFMG) Jess Leal (Univ. Complutense de Madri-ESP) Jos Antnio Fialho Alonso (FEE) Jos Machado Pais (Univ. de Lisboa-POR) Jos Marcos P. da Cunha (Unicamp) Jos Maria C. Ferreira (Univ. Tc. de Lisboa-POR) Jos Tavares Correia Lira (USP) Leila Christina Duarte Dias (UFSC) Luciana Corra do Lago (UFRJ) Lus Antonio Machado da Silva (Iuperj/Ucam) Lus Renato Bezerra Pequeno (UFCE) Marco Aurlio A. de Filgueiras Gomes (UFBA) Maria do Livramento M. Clementino (UFRN) Marlia Steinberger (UnB) Ndia Somekh (Univ.Presbiteriana Mackenzie) Nelson Baltrusis (Univ. Catlica do Salvador) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG) Ricardo Toledo Silva (USP) Roberto Lus de Melo Monte-Mr (UFMG) Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes) Rosana Baeninger (Unicamp) Sarah Feldman (USP) Srgio de Azevedo (UENF) Suzana Pasternak (USP) Tamara Benakouche (UFSC) Vera Lucia Michalany Chaia (PUC/SP)

SecretariaRaquel Cerqueira

Wrana Maria Panizzi (UFRGS)

Projeto grco e Editorao eletrnicaRaquel Cerqueira

Colaboradores deste nmero

Ilza Leo UFRN Marcelo J. P. Paixo UFRJ

sumrio9

Apresentao

dossi: cidade, cidadania governana democrtica

Elements for the sociology of constructed spaces in cities: the Conic in Braslias Pilot Plan

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Elementos para uma sociologia dos espaos edicados em cidades: o Conic no Plano Piloto de Braslia Brasilmar Ferreira Nunes

Defending a new theoretical 33 Por um novo enfoque terico framework in housing research na pesquisa sobre habitaoErmnia Maricato

Metropolitics: an analysis of some 53 Metropoltica: una anlisis de algunas global metropolitan experience experiencias metropolitanas globalesscar A. Alfonso R.

Social demands and urban space occupation. 75 Demandas sociais e ocupao do espao The case of Braslia, Federal District urbano. O caso de Braslia, DFAldo Paviani

Cultural heritage urban policies 93 Polticas urbanas de patrimonializao and counter-revanchism: Old Recife e contrarrevanchismo: o Recife Antigo and the Historic Area of the City of Porto e a Zona Histrica da Cidade do PortoRogrio Proena Leite Paulo Peixoto

Housing policy in central areas: 105 Poltica de habitao nas reas centrais: rhetoric versus practice retrica versus prticaMariana Fialho Bonates

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Public spaces: new 131 Espaos pblicos: novas sociabilities, new controls sociabilidades, novos controlesLuciana Teixeira de Andrade Juliana Gonzaga Jayme Rachel de Castro Almeida

The foundations of trust: civic engagement, 155 Fundamentos da conana: associativismo, political-administrative institutions and social instituies poltico-administrativas e capital capital in the Metropolitan Region of Porto Alegre social na Regio Metropolitana de Porto Alegre Marcelo Kunrath Silva Soraya Vargas Crtes

The confrontation between Participatory 173 O confronto do Oramento Participativo com as tradies representativas em So Paulo Budget and representative traditions in So PauloPaulo Edgar da Rocha Resende

Participation and territory management: 197 Participao e gesto territorial: onde where are the favorable conditions? se encontram as condies favorveis?Ctia Wanderley Lubambo Flavio Cireno Fernandes

Regularization of urban settlements 219 Regularizao de assentamentos urbanos e sustentabilidade and sustainabilityManoel Teixeira Azevedo Jr.

Public sphere construction 233 A construo da esfera pblica no planejamento urbano. Um percurso in urban planning. A historical histrico na cidade de Santos path in the city of SantosLuiz Antonio de Paula Nunes

The construction of public power as private 247 A construo do poder pblico como espao space in the city of Diadema (1983 to 1996) privado na cidade de Diadema (1983 a 1996)Joana Darc Virgnia dos Santos

Groups of independent scavengers in the 261 Grupos de catadores autnomos na coleta seletiva do municpio de So Paulo selective collection of the city of So PauloMarina Pacheco e Silva Helena Ribeiro

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Apresentao

O Cadernos Metrpole n. 21 rearma o carter interdisciplinar do peridico, reunindo trabalhos de cientistas sociais e planejadores urbanos num debate sobre os temas da cidadania e da gesto democrtica da cidade. Esses temas, cada vez mais caros s discusses contemporneas sobre as cidades, envolvem, por sua vez, a anlise das formas de sociabilidade e das relaes de conito que se estabelecem e se reproduzem com as transformaes do territrio e das relaes de poder. No contexto dessas preocupaes, o texto de Brasilmar Ferreira Nunes busca compreender a relao entre o espao construdo e a sociedade na cidade de Braslia, mostrando como a capital federal moldou-se s necessidades de seus habitantes e como os espaos edicados e sua transformao interferem nos padres de sociabilidade, alterando o uso dos espaos e resignicando territrios. Tomando como referncia o Plano Piloto de Braslia e o seu Setor de Diverses Sul SDS/Conic, o autor discute a relao espao construdo-sociedade, demonstrando que a cidade, em sua dinmica, altera as propostas originais do planejamento, adaptando-se s necessidades de seus habitantes e s formas de sociabilidade cotidianamente estabelecidas. Ainda sobre o caso de Braslia recaem as preocupaes de Aldo Paviani, cujo texto analisa as demandas no atendidas de moradores de certas reas do Distrito Federal por servios de sade pblica, educao, transporte e habitao. Segundo o autor, alguns encaminhamentos se fazem necessrios para que o poder pblico adote polticas globalizantes, superando aes isoladas, paternalistas ou clientelistas, pois somente a viso da totalidade ampliar o acesso democrtico ao espao da cidade por parte dos urbanistas, cidados e construtores da vida urbana.cadernos metrpole 21 pp. 9-12 1 sem. 2009

apresentao

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Outra questo central no debate sobre a gesto da cidade e da cidadania refere-se ao dcit habitacional e s pesquisas sobre habitao. Contribuindo para esclarecer pontos importantes da discusso, o texto de Ermnia Maricato aponta a partir de cuidadosa reviso bibliogrca que a maior parte das pesquisas sobre habitao, embora fornea um quadro importante sobre a carncia de moradias, a segregao, a excluso social e as polticas institucionais, aborda prioritariamente a esfera do consumo ignorando a centralidade da produo na determinao do ambiente construdo. Maricato discute, ainda, o impacto da globalizao na proviso de moradias e incentiva os pesquisadores brasileiros a enfrentarem o desao de realizar estudos que venham suprir as lacunas apontadas. Ampliando o debate para o carter e a dimenso internacionais da metropolizao, scar Alfonso destaca que a maior parte da literatura recente se concentra mais na necessidade de atuar sobre o fenmeno metropolitano do que de compreend-lo. A partir de um exame crtico de alguns casos concretos, seu artigo analisa, de modo comparativo, os desaos enfrentados por aglomeraes metropolitanas da Europa, da Amrica Latina e da Amrica do Norte na busca por alternativas que favoream a adoo de polticas pblicas voltadas ao desenvolvimento metropolitano. Os resultados de outro estudo comparativo entre reas metropolitanas so apresentados no trabalho de Rogrio Proena Leite e Paulo Peixoto, questionando os processos de patrimonializao de centros histricos implantados em reas degradadas do Recife Antigo, no Brasil, e na Zona Histrica da Cidade do Porto, em Portugal. O argumento central do trabalho apoia-se na constatao de que aps o perodo de apogeu das intervenes urbanas, que agem como um elixir para os problemas de uma realidade decadente, ocorre uma contrarrevanche exacerbada por um sentimento de reconquista do espao que aniquila as perspectivas depuradoras dessas operaes e contribui para a avaliao das polticas urbanas de enobrecimento. Trata-se de trabalho instigante que convida reexo acerca das consequncias de algumas polticas de interveno que, mais do que revitalizar, propem a mudana do uso dos espaos enobrecidos. Mariana Fialho Bonates tambm contribui para a discusso sobre a reabilitao de reas centrais analisando programas de interveno habitacional nos centros de cidades brasileiras de mdio e grande porte. A partir do estudo de situaes concretas, a autora lembra que a ideia de conjugar a poltica habitacional com a poltica de preservao dos stios histricos de reas centrais no recente e levanta hipteses que explicariam por que os recursos do Programa de Arrendamento Residencial (PAR) tm sido aplicados, em sua grande maioria, em obras de construo de novos conjuntos habitacionais e no na reabilitao de edifcios abandonados ou degradados. O texto de Luciana Teixeira de Andrade, Juliana Gonzaga Jayme e Rachel de Castro Almeida aborda o tema das mudanas no uso e o declneo dos espaos pblicos das grandes cidades, em detrimento dos espaos semipblicos ou privatizados. Partindo do estudo das formas de sociabilidade observadas em algumas praas de Belo Horizonte, as autoras demonstram que, apesar de ainda serem bastante utilizadas como espaoscadernos metrpole 21 pp. 9-12 1 sem. 2009

apresentao

pblicos, seus frequentadores buscam, preferencialmente, a relao entre iguais, reproduzindo nos espaos pblicos a segregao socioespacial observada na cidade. Problematizando o argumento de que a proliferao de organizaes sociais seria uma condio necessria para a gerao de conana e, consequentemente, de capital social, o texto de Marcelo Kunrath Silva e Soraya Vargas Crtes estabelece um dilogo crtico com a obra de Robert Putnam. A partir dos resultados de survey sobre Cultura Poltica na Regio Metropolitana de Porto Alegre, procuram demonstrar que tal argumento no tem sustentao e ressaltam a necessidade de incorporar a dimenso polticoinstitucional s anlises do associativismo, mostrando que no existe uma relao direta entre o associativismo e a conana em instituies polticas. A anlise de instrumentos de participao direta da cidadania, como o Oramento Participativo, podem representar, segundo Paulo Edgar da Rocha Resende, uma grande inovao no processo de tomada de decises de governos locais, ampliando a incluso de sujeitos polticos e a justia na distribuio territorial/social dos investimentos pblicos. A partir da avaliao do funcionamento do Oramento Participativo do Municpio de So Paulo, entre 2001 e 2004, o autor discute as razes pelas quais o Oramento Participativo, muitas vezes um ecaz mecanismo de participao cidad nos rumos das cidades, sofreu contingenciamentos e, consequentemente, perdeu peso no cenrio decisrio da maior metrpole brasileira. Na mesma linha de reexo proposta por Resende, o texto de Ctia Wanderley Lubambo e Flavio Cireno Fernandes aborda a questo da participao e da gesto territorial focalizando, mais especicamente, a capacidade de atuao de Conselhos e Fruns no sentido de inuenciar decises e aes pblicas. A partir de estudo comparativo de dois Programas de Governo em municpios localizados em Pernambuco e Santa Catarina , discutem as condies, expectativas e limitaes da implantao de estruturas de gesto territorial, destacando a inuncia dos atores polticos locais e de suas bases eleitorais. Manoel Teixeira Azevedo Junior, arquiteto e urbanista, apresenta, na sequncia, outra discusso de extrema relevncia para todos os que pensam e exercem a gesto do territrio em centros urbanos. O autor discute os programas de regularizao de assentamentos informais ou de loteamentos irregulares apontando a importncia dos instrumentos de poltica urbana do Estatuto das Cidades para a reverso das vrias formas de ilegalidade urbana e a universalizao do direito cidade. Analisar as formas de participao da sociedade civil no planejamento urbano da cidade de Santos, no perodo compreendido entre os anos de 1945 e 2009, o objetivo do artigo de Luiz Antonio de Paula Nunes. Seu estudo revela como a construo e institucionalizao de espaos polticos e a criao de comisses e conselhos conduziu ampliao da participao popular no planejamento urbano no transcorrer do perodo estudado, mudando de acordo com o pensamento urbanstico as ferramentas e os cenrios polticos.

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A participao popular, agora no Municpio de Diadema, na Regio Metropolitana de So Paulo, tambm o objeto do estudo da historiadora Joana Darc Virginia dos Santos. A mobilizao da populao por melhores condies de vida, em especial no que se refere infraestrutura, ocupou lugar de destaque ao longo de trs mandatos consecutivos de prefeitos do Partido dos Trabalhadores (1982-1996), reunindo experincias com resultados bastante heterogneos e que so analisados pela autora em sua investigao sobre os atores envolvidos. Em complementao aos textos do dossi, a cidade de So Paulo volta cena com o texto de Marina Pacheco e Silva e Helena Ribeiro sobre os catadores autnomos de materiais reciclveis. Aps a apresentao de informaes sobre a importncia da coleta seletiva e a dimenso do problema do lixo na cidade de So Paulo, as autoras elaboram algumas hipteses explicativas para a no incluso de parcela signicativa dos catadores no Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura Municipal de So Paulo. Essas hipteses apontam, entre outros fatores, para as diculdades de organizao e gesto dos grupos de catadores e para a ausncia de uma ao sistematizada da Prefeitura Municipal de So Paulo no sentido de incentivar a participao dos catadores no Programa de Coleta Seletiva ocial. A questo da gesto urbana novamente colocada, aliando-se da sustentabilidade urbana e aos desaos que se colocam para a conquista da cidadania. Ainda que se considerem as especicidades das abordagens, o carter interdisciplinar das discusses propostas e as peculiaridades dos estudos de caso, os artigos reunidos neste nmero apontam, de modo inequvoco, para as conquistas obtidas pelas novas formas de participao e para as mudanas geradas pelos novos instrumentos de gesto no mbito dos processos de governana democrtica.

Lucia Bgus Luiz Csar de Q. Ribeiro Editores cientficos

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Elementos para uma sociologia dos espaos edicados em cidades: o Conic no Plano Piloto de BrasliaBrasilmar Ferreira Nunes

Resumo O presente artigo procura discutir a relao do espao construdo e sociedade tomando como referncia o Plano Piloto de Braslia e o seu Setor de Diverses Sul SDS/Conic. Partindo da existncia de mltiplas determinaes na dinmica da cidade, procura analisar a relao entre os usos de um centro comercial na rea tombada de Braslia, o perl dos seus usurios que em princpio se chocam com a proposta original de um ambiente mais sosticado. Procura mostrar que a cidade, enquanto um fenmeno dinmico, modica propostas originais do planejamento e se adapta s necessidades de seus habitantes, numa estreita relao espao e sociedade, de tal maneira que sociabilidades heterogneas se articulam com espaos construdos heterogneos. Mostra ainda que o Conic contribui para tornar a rea tombada do Plano Piloto uma rea urbana, na perspectiva sociolgica: variada, densa e socialmente heterognea. Palavras-chave: Braslia; Conic; edifcios urbanos; sociabilidades urbanas; espao construdo e sociedade.

Abstract This paper tries to discuss the relationship between constructed space and society, using as reference the Pilot Plan for Braslia and its Setor de Diverses Sul (SDS-Conic South Entertainment Sector). Starting from the existence of multiple determinations in the citys dynamics, we try to analyze the relations between the uses of a commercial center in the listed area of Brasilia and the characteristics of its users which, in principle, collide with the original proposal for a more sophisticated environment. Also, we try to show that the city, as a dynamic phenomenon, modies the original planning proposals and adapts to its inhabitants needs, in a narrow space/society relation, in such a way that heterogeneous sociabilities articulate with heterogeneous constructed spaces. Finally, we try to show that the Conic contributes to make the listed area of the Pilot Plan an urban area, in the sociologic perspective: varied, dense and socially heterogeneous. Keywords: Braslia; Conic; urban constructions; urban sociability; constructed space and society.

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ApresentaoA sociologia urbana que se produz no Brasil vem se debruado com insistncia sobre processos sociais que ocorrem nos espaos das cidades, chamando ateno para aspectos os mais diversos e variados. Entretanto, curiosamente e com raras excees, o estudo de vnculos sociais determinados pelo espao construdo praas, imveis residenciais, industriais, comerciais, reas de circulao, etc. no prioriza o projeto em si, mas o considera como um suporte onde as prticas sociais ocorrem. Particularmente os imveis, os edifcios, so vistos como cenrios e no tratados como artefatos que interferem nas interaes que neles possam ocorrer. Podemos lembrar alguns ttulos que mais se aproximam desse recorte: o de Gilberto Velho (1989), analisando um edifcio em Copacabana no Rio de Janeiro, ainda na dcada de 1980, ou ainda, o excelente estudo de Paola Berenstein-Jacques sobre a arquitetura das favelas nos morros cariocas. Nesses trabalhos, observamos com detalhes como o ambiente construdo no apenas o cenrio, mas muito mais do que isso, interfere diretamente nas modalidades de vnculos e prticas sociais que a ocorrem. Curiosamente, a sociologia urbana pouco tem contribudo para esse debate, pois somos os que menos se interessam pelo desenho do ambiente construdo ou pela proposta de interveno no espao oriunda dos escritrios de arquitetura. Essa assertiva mais instigante ainda se nos dermos conta de que os prossionais da arquitetura e at mesmo os que, por razes diversas, impro-

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visam suas habitaes prescindindo de um projeto, sempre levam em conta o elemento humano que dele ir usufruir. Entretanto, as questes associadas prtica de construo, especialmente a arquitetura, complexa e de difcil discernimento, evoluindo permanentemente em funo de vrios fatores, mesmo se o resultado dessas prticas tenha implicaes diretas em nossos ambientes de vida. Aspecto corriqueiro, pois a arquitetura expresso da prpria cultura, alm do que, toda ela, mesmo as privadas, tem implicaes na qualidade dos espaos pblicos. Pressupomos que essa relativa ausncia de interesse advm do lugar que o territrio e o espao ocupam nas anlises sociais, embora sua presena na esfera terica seja uma constante entre autores consagrados do campo sociolgico.1 De fato e apesar de tudo, os tratamos (o territrio e o espao) invariavelmente como cenrio, raras vezes como agente. A discusso extensa e profcua; dicilmente se esgotaria nos quadros de um artigo. Porm, vale lembrar alguns aspectos que podem contribuir para esse debate e introduzir o nosso caso em anlise neste texto que se prope uma avaliao dos usos que se faz de um edifcio em pleno Plano Piloto de Braslia, cidade cone da arquitetura moderna no sculo XX.

Algumas consideraes tericas como apoioA sociologia parte do pressuposto de que sociedade interao social por meio da qual os seres humanos se ligam uns aos

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outros; atravs desses elos transformam coletivamente o meio natural, dando-lhe uma funo e um sentido. Dessa maneira, o meio natural se transforma e reete diretamente a estrutura social da qual ele o suporte. Assim, todo e qualquer territrio explorado ou habitado traz em si as marcas das atividades humanas que nele se desenvolvem. Se levarmos esse argumento para o espao da cidade, podemos constatar as diferentes formas que assumem os ambientes construdos em razo das modalidades e atividades humanas que neles se implantam. Durkheim (1987) argumenta que os substratos fsicos da vida social devem ser considerados como maneiras de ser que so maneiras de fazer consolidadas que reetem nveis diferenciados de cristalizao da vida social. Ambientes residenciais, industriais, comerciais, de lazer e de circulao trazem em si valores funcionais, estticos e econmicos inerentes aos seus interessados. Portanto, cada unidade arquitetnica integra um sistema que no nunca neutro, j que carregado de funcionalidades, mtodos estruturais e a prpria fisicidade das formas distribudas no espao (Coulquhon, 1991, apud Duarte, 2002, p. 152). Estamos ento em pleno contexto da multidisciplinaridade, pois esse sistema tratado por Durkheim como parte da morfologia social, tal qual a populao, as estruturas polticas e jurdicas, todas elas mais do que reexos, so sintomas da realidade social, um fator ativo que pesa sobre o movimento dos processos sociais. Assim, embora Durkheim se interesse mais pelas instituies sociais do que propriamente a cidade, suas anlises trazem subentendida uma problemtica do espao, o que nos leva a deduzir que quando

pensamos, portanto, a cidade estamos nos referindo a um ambiente ao mesmo tempo material e humano.2 Essa discusso, que, alis, avana muito alm do que aqui se apresenta, foi tratada por diferentes correntes do pensamento, especialmente os arquitetos, uma categoria socioprofissional diretamente envolvida com a produo fsica/funcional da cidade. Os modernistas, por exemplo, chegaram radical imagem da cidade como instrumento de trabalho e as casas como mquinas de morar, ao ponto de Le Corbusieur argumentar que os projetos de uma colher ou de uma cidade partiam de um mesmo problema de design industrial.3 Da a se chegar ideia de que a heterogeneidade que caracteriza sociolgica e sicamente a cidade pode ser sintoma do caos urbano seria um passo. As polmicas que caracterizam esse debate de difcil sntese. Podemos, entretanto lembrar o estudo de Jane Jacobs (1991) que criticando a viso dos modernistas, considera a cidade um laboratrio (alis, tal qual a produo de Chicago j o fazia, estudando as relaes sociais urbanas) e que muitas vezes as solues para problemas urbanos podem estar sendo apontadas pelas prprias caractersticas de tais stios e no necessariamente em debates intelectuais. Segundo a autora, no exatamente caos o que explicaria a complexa diversidade de ambientes que se encontram em uma metrpole; ao contrrio, estaria a o seu maior potencial. Alis, argumento que vai encontrar respaldo em Durkheim, para quem a diviso do trabalho tanto mais complexa quanto maior for a densidade populacional de uma sociedade4 (ou cidade, diria eu).

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Duarte (2002, p. 150) sintetiza com justeza esse fenmeno quando escreve:De uma forma ou de outra as cidades vo se destruindo e se reconstruindo, de acordo com valores culturais, econmicos e tecnolgicos. Essas destruies e reconstrues respondem ao que aqui se tem chamado de matrizes espaciais, isto , h uma interrelao dos sistemas que ativam a sociedade e formam uma matriz que, boa parte das vezes em silncio, transgura a cidade.5

Algumas caractersticas de Braslia e do ConicO exemplo escolhido aqui interessante por vrias razes, inclusive pelo fato de estarmos tratando de uma rea do Plano Piloto que foi priorizado com destaque no projeto original da capital do pas, aquela que na concepo de seu idealizador deveria se consolidar como um boulevard nos moldes de cidades europeias. J se discutiu bastante sobre a elevada dose de utopia que estava presente na proposta vencedora para a nova capital. Claro que, sendo na poca um territrio praticamente vazio, os arquitetos (tanto Lcio Costa como os demais concorrentes no concurso para o projeto para a nova capital) puderam expor muito de suas concepes sobre urbanismo e cidades. A ausncia de resistncias sociais implantao de qualquer um dos projetos inclusive aquele vencedor favorecia a livre imaginao.6 A racionalidade do projeto de Lcio Costa tinha pressupostos curiosos, no sentido de que imaginava a possibilidade de um novo homem naquele espao novo, portanto a relao espao e sociedade claramente demarcada. Alm disso, Braslia, sendo capital poltico-administrativa da nao, iria ser habitada sobretudo pela burocracia estatal que, no Brasil, goza de certas condies privilegiadas ante os percalos da conjuntura econmica: emprego estvel e salrios relativamente compensadores, alm, claro, das vantagens que advm da condio de funcionrio pblico. Poder-se-ia, portanto, imaginar esse novo homem, na medida em que as condies de sua existncia material estariam garantidas de antemo.

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De imediato, ca patente que a cidade a sua estrutura fsica e social um fenmeno dinmico que se modica continuamente em funo de modicaes nos elementos que compem a sua matriz constitutiva. Aos efeitos sobre o espao construdo de variaes nas dimenses sociais, polticas, econmicas, culturais e tecnolgicas se somam a prpria determinao do espao, suas restries e seus potenciais. Alm do mais, as caractersticas do lugar se agrega s identidades de seus usurios, de tal forma que podemos falar numa simbiose entre o ser e o estar em algum lugar. Ser carioca ou ser candango, por exemplo, remete a uma representao no s cultural mas tambm territorial. Essas questes so pertinentes nossa inteno de reetir sobre um edifcio construdo no Plano Piloto de Braslia, a partir de uma concepo de espao urbano presente nos autores, tanto do plano urbanstico da cidade (Lcio Costa) quanto de seus monumentos mais importantes (Oscar Niemeyer). Referimos-nos ao Conic, um complexo de lojas e escritrios situado na conuncia das Asas com o Eixo Monumental em Braslia.

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Entretanto, impossvel supor um espao urbano socialmente homogneo, mesmo se o seu desenho e a sua arquitetura possam ser padronizados. A dimenso cultural daquilo que chamamos de matrizes espaciais no cabem num modelo nico de homem, tendo que se adequar s heterogneas modalidades de existncia social. De fato, foi o que ocorreu no Distrito Federal: um crescimento populacional acima de qualquer previso, composto por migrantes de diferentes origens socioeconmicas e culturais, polarizados por um Plano Piloto (Braslia) que se apresenta hoje como uma exceo numa rea urbana com elevada dose de heterogeneidade. De um lado, um territrio planejado segundo critrios racionais e, de outro, um universo onde imperam as leis do mercado, com aquele ar catico que caracteriza as periferias urbanas brasileiras. Interessa-nos nessa discusso ressaltar o elevado peso simblico que Braslia detm, praticamente absorvendo toda e qualquer representao do universo urbano do Distrito Federal externa ao seu Plano Piloto. Ali se implantaram as representaes governamentais, seus edifcios e monumentos, alm de concentrar a macia oferta de trabalha formal no Distrito Federal. O cruzamento das Asas Norte e Sul com o Eixo Monumental a rea onde circula diariamente a populao oriunda das cidades satlites que trabalha no Plano Piloto. O Conic, portanto, um lugar privilegiado pela sua acessibilidade, justamente porque a implantao da rodoviria urbana na rea contribui para a paulatina mudana do padro de usurio

desse espao, particularmente nos chamados Setores de Diverso. Temos ento um cenrio peculiar: rea de moradia de famlias de altas rendas que lhe d um carter socialmente homogneo, o Plano Piloto tambm local de trabalho de diversas categorias socioprofissionais, alm claro do funcionalismo de baixo escalo, moradores das cidades satlites. Essa mistura faz desse cruzamento onde se situa o Conic uma das reas urbanas de Braslia, justamente pela heterognea composio de atividades e grupos sociais que ali transitam. O boulevard imaginado por Lcio Costa , portanto, o principal centro comercial do Plano Piloto. Trabalha nos edifcios do Conic uma populao aproximada de 10.000 pessoas e circulam pela sua rea cerca de 150.000 pessoas por dia. De fato, o Conic disputa com o Conjunto Nacional (aproximadamente 500.000 pessoas/dia) o maior nmero de pessoas dirias nas suas dependncias. Evidentemente, esse afluxo nesse espao est diretamente ligado presena da rodoviria urbana com nibus e outros tipos de transportes coletivos que unem a Esplanada a todo o Distrito Federal. Mesmo se a classe mdia do Plano e dos Lagos no tem o hbito de circular pelo Conic, no se deve menosprezar o seu potencial de atrao de pessoas. Ora, a presena de atividades de prestao de servios no edifcio exclusivamente pela sua localizao privilegiada, que o grande trunfo do Conic. O desenho a seguir permite visualizar esse ncleo central a que estamos nos referindo.

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Fonte: Iara Martorelli: O projeto Artes Visuais da Funarte CEAD/UNB Braslia 2008.

LEGENDA 1- Praa dos Trs Poderes 2- Marco da Bandeira 7- Panteo da Liberdade e da Democracia 5- Palcio do Itamarati 9- Catedral 45- Museu Nacional de Braslia 32- Biblioteca Nacional de Braslia 10- Teatro Nacional 1211131415161718Torre de TV Funarte Planetrio (desativado) Clube do Choro Centro de Convenes Complexo Esportivo do DF Memorial dos Povos Indgenas Memorial JK

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Cidade ainda em fase de consolidao, Braslia vive ainda um surto de construo na sua rea central, onde esto se implantando edifcios comerciais de alto luxo, hotis e shoppings centers justamente nesse polo central. A rea vem se transformando paulatinamente numa rea de alto padro de consumo e do tercirio sosticado (consultorias, comrcio, clnicas mdicas, etc.) afastando para mais distante atividades menos nobres. Os primeiros centros comerciais (Setor de Diverso Sul Conic e Setor de Diverses Norte Conjunto Nacional) vo perdendo status perante os novos que se implantam nos arredores. H, portanto, um movimento de valorizao de novos espaos da cidade e desvalorizao de outros, manifestos no perl do consumidor mdio que os frequenta. A inaugurao do Conic se deu por volta de 1967, ou seja, sete anos aps a inaugurao da nova capital, sendo o primeiro edifcio voltado para a Esplanada dos Ministrios. Foi batizado informalmente de Conic a partir do nome da construtora pernambucana que o edificou, com seu nome numa enorme placa durante a obra, terminando por se xar na memria dos passantes como uma das referncias da rea. Na poca, Braslia contava com poucos habitantes, a maioria moradores do Plano Piloto (ainda em fase de implantao) e algumas poucas cidades satlites (eram quatro: Taquatinga, Ceilndia, Sobradinho, Ncleo Bandeirantes e atualmente so vinte e duas). De fato, a burocracia do Estado que vinha se instalando em Braslia ainda era em pequeno nmero: os rgos pblicos e as embaixadas foram chegando devagar, alguns deles resistindo mudana, enquanto outros permanecem at hoje na antiga capital, Rio de Janeiro.

As superquadras mais antigas, da Asa Sul (108, 308, 208, 408 e as vizinhas), alm de algumas outras espordicas, no conseguiam tirar o sentimento de um grande canteiro de obras que ainda hoje surpreende o mais desprevenido visitante da cidade. Assim, na poca, o Conic era de fato longe e de difcil acesso, no exercendo um papel de centro de diverses cotidianas e rotineiras tal qual havia imaginado o seu idealizador. Como iremos observar mais frente, o edifcio vai assumindo funes que se alternam com a consolidao do projeto da nova capital, em cada momento funcionando de forma integrada vida da cidade. Mesmo assim, apesar de nunca ter se transformado naquilo que foi planejado, logo aps sua inaugurao, o Conic atraiu embaixadas ainda em fase de implantao na cidade com suas sedes em construo. Essa presena atraa restaurantes e lojas mais sosticadas, quase que concretizando a proposta original para o edifcio. A histria mostra que, na medida em que as embaixadas constroem suas sedes e transfere dali todas as atividades de rotina, o Conic experimenta rapidamente um processo de esvaziamento de suas funes e muda devagar o uso de suas instalaes. Comeam a aparecer clubes noturnos, bares pouco sosticados, dando incio degradao da rea, na medida em que afasta a classe mdia do Plano e esquecido pelas autoridades locais.

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Etnograa do Conic7Chegamos ao Conic no perodo da manh para dar uma explorada no prdio,cadernos metrpole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009

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caminhando pelas suas galerias comerciais procurando observar o ritmo de pessoas da rea. Sbado, dia de nossa visita, de fato um dia de menor movimento. O comrcio funcionava, mas se sentia que o ritmo era um pouco mais lento, diferente dos demais dias da semana, de segunda s sextas-feiras, quando funcionam as empresas e os escritrios nos andares superiores. O desenho da rea trrea, pela entrada da luz do sol no seu interior, aproxima-se daquele que se imagina para pequenas e antigas cidades: passagens, algumas amplas, outras estreitas, que do em pequenas praas a cu aberto, pequenos becos, esquinas, portanto onde o cruzamento pode dar origem ao inesperado. O lugar, apesar de no apresentar lixos ou detritos espalhados pelas vias, no transmite aquele ar actico tpico dos shoppings centers do Plano Piloto. H projetos para transformar as pistas de pedestres mais parecidas quelas dos shoppings, com a colocao de pisos em cermica ou granitos, talvez procurando atrair uma clientela de gosto mais dentro dos clichs tpicos da classe mdia brasiliense. Uma primeira sensao que vem quando se caminha por suas ruelas a diversidade de comrcio, com a presena marcante de algumas atividades em particular. Assim, entrando pela ala norte do Conic, no nvel da rua, so inmeros os comrcios de culos, tanto para venda como para reparao. Entre uma e outra, esporadicamente, encontrase um bar ou um boteco sem muita sosticao, com suas mesas e cadeiras de frmica ou plstico, sem uma harmonia aparente. Observa-se tambm um nmero importante de sales de cabeleireiros, manicuras ou de esttica em geral. Estes eram os mais procurados naquela hora da manh, entre nove e onze horas, com clientelas em todos eles.cadernos metrpole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009

Alm dessas atividades comerciais, o trreo do Conic apresenta, ao longo de suas ruelas e caminhos, ares de um verdadeiro centro comercial, com atividades as mais variadas, tais como lojas de discos, roupas, sapatos, instrumentos musicais, fotos, fotocpias, papelaria, etc. Cabe destaque a simplicidade das lojas, sem nenhuma preocupao em parecerem sosticadas, numa clara indicao de que a clientela que para l se dirige est procurando mercadorias cuja necessidade vem antes de um status ou prestgio oferecido por comrcios que trabalham com marcas ou grifes. Chama a ateno, ainda, a existncia de livrarias especializadas em cincias sociais, medicina e direito na ala sul do imvel, alm de um cinema com shows de strip tease e lmes pornogrcos (funcionando a partir do meio dia indo at altas horas da noite) ao lado de centros religiosos de cultos evanglicos. As livrarias so de excelente qualidade, com obras representativas de cada rea acadmica que trabalham. Visitei com mais cuidado a que oferece obras de cincias sociais e pude comprovar a excelente qualidade do acervo disponvel, alm do elevado domnio dos ltimos lanamentos pelo seu proprietrio. Destaca-se, inclusive, a erudio do mesmo, que no s est ciente dos ltimos ttulos no mercado como emite opinies de obras e autores com bastante conhecimento de causa. A distribuio do comrcio pela rea do imvel obedece lgica de localizao de atividades comerciais em stios urbanos tradicionais. Assim, h uma concentrao de atividades em reas prximas segundo a natureza do servio ou do produto ofertado: lojas de materiais ticos situam-se na entrada norte do imvel, as livrarias, na entrada

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sul, no centro espalham-se as roupas, discos, calados, etc. num diversificado ambiente comercial que indica uma lgica locacional no prdio. Os restaurantes se concentram mais aos fundos, onde tambm podem ser encontrados alguns estabelecimentos especializados, tais como instrumentos musicais, livrarias religiosas, sedes de partidos polticos e fotocopiadoras. A frente para a praa externa aparece como uma espcie de vitrine daquilo que est espalhado pelo interior do imvel, ou seja, materiais fotogrcos, ticas, roupas, livros e os bares um pouco mais sosticados. Essa calada faz claramente o papel de uma rua tradicional de cidade, talvez uma das poucas do Plano Piloto. O subsolo do edifcio tem ar de espao semiabandonado: muitas lojas fechadas, vazias, algumas situadas em becos com pouca luminosidade, alis, uma das particularidades de inmeros edifcios da primeira fase da cidade. No geral, o subsolo transmite uma sensao de difcil acessibilidade e em outros momentos foi o lugar preferido por marginais. O mesmo pode ser deduzido quando se olha para a lateral sul do prdio ou a parte detrs do imvel. Nesta h um estacionamento e serve tambm para cargas e descargas de mercadorias. Essa parte detrs , curiosamente, a de maior visibilidade para quem olha o Conic a partir do Setor Comercial Sul ou do Hotel Nacional, ou mesmo descendo o eixo monumental em direo Esplanada dos Ministrios. Uma visibilidade esteticamente comprometedora pois o bric-a-brac dos anncios comerciais transmite a impresso de um imvel sujo, sem regras ou administrao. Claro que essa impresso reforada pela arquitetura clean do Setor Hoteleiro ao lado ou mesmo pela perspectiva da plataforma da

rodoviria, vista por quem desce o eixo em automveis ou nibus. O comrcio que se encontra no Conic atende a uma clientela absolutamente heterognea. Nota-se perfeitamente a convivncia de indivduos de diferentes estratos sociais, fato de rara constatao no Plano Piloto, onde vive uma classe mdia padronizada no estilo de ser, vestir e se comportar em reas coletivas. O que se percebe que ali os moradores das satlites se sentem familiarizados com a disposio e padro das lojas, e a possibilidade de se apropriarem do espao sem a sensao de estarem invadindo um territrio privado. Essa sensao, visvel nos shopping centers mais sosticados da cidade (Ptio Brasil, Braslia Shopping, Liberty Mall e em menor escala no prprio Conjunto Nacional) ca completamente diludo no Conic, que transmite uma imagem de rea multisocial onde um indivduo morador do Plano Piloto convive com aquele das satlites, frequentando ambientes comuns. A frequncia de certos estabelecimentos do edifcio , no entanto, claramente, determinada pelo status social. Por exemplo, nos cabeleireiros, o que se percebe uma clientela mais popular, o mesmo pode tambm ser observado em alguns bares, restaurantes ou igrejas ali existentes. Porm, nas lojas de tnis, materiais de esportes radicais (skates, rollers, discos, etc.), a clientela mais heterognea, com indivduos de aspecto tpico dos frequentadores dos shoppings mais sosticados. Nestes, as rodas de jovens na porta ou alguns transeuntes que param nas vitrines indicam um territrio particular de tribos urbanas que se autoidentificam por um padro similar de consumo, de vestimenta, de gosto, enm, de esttica no seu sentido mais amplo. um territriocadernos metrpole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009

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aparentemente democrtico, onde o que une os que ali esto o interesse comum por certos produtos e marcas vendidas nas lojas, denindo certos espaos do Conic pelas caractersticas de seus frequentadores. As livrarias especializadas e a loja de partituras musicais uma das mais completas do pas, segundo o seu proprietrio tm uma clientela exclusiva: um ambiente calmo, tranquilo como deve ser um lugar de leitura e de pesquisa em acervos. A loja de instrumentos e partituras musicais j apresenta uma clientela maior, mas o ambiente peculiar, com pessoas conversando em voz baixa, vestidos de maneira tradicional sem ostentao, com gestos contidos, traduzindo uma clientela com certo grau de sosticao, habituados talvez a frequentar ambientes similares em outros centros. Circulando pelo Conic, pudemos observar a presena de pessoas notveis de Braslia, entre prossionais liberais, professores universitrios e indivduos com seleto gosto musical procurando material original nas livrarias e nas lojas especializadas (disco e de instrumentos e partituras musicais). Para os bomios, pessoas ligadas direta ou indiretamente atividade artstica, funciona ali um teatro e uma escola de arte dramtica. Este , sem dvida, um aspecto particular de um edifcio urbano que foge aos padres tradicionais dos edifcios da administrao federal na Esplanada ou mesmo de shoppings centers de Braslia, frequentados quase exclusivamente pela classe mdia. Se agregarmos ainda a possibilidade de convivncia com diferentes pers de pessoas atradas ainda pela diversidade de seu comrcio, o Conic

no deixa de ter o seu charme garantido. Isso, sobretudo, porque os frequentadores do Conic fazem dali um lugar para estar e no apenas para passar, como usual em shoppings. Um acontecimento curioso foi a chegada dos evanglicos na rea. Inicialmente, houve uma proposta do Bispo Macedo para comprar o Cine Atlntida, uma das melhores salas de cinema da cidade. De fato, o cinema, como todo o conjunto, tombado pelo IPHAN, mas o espao estava cando ocioso justamente pela fuga dos espectadores. O governo do DF encaminhou ento Cmara Legislativa uma consulta sobre as possibilidades de a Igreja Universal adquirir o Cine Atlntida numa rea do Plano projetada pelo Lcio Costa. O parecer da Cmara Legislativa foi positivo, sob o argumento de que atividades religiosas podem ser entendidas como teatro, uma diverso do povo, no ferindo as recomendaes do projeto original do Plano Piloto e do edifcio. Mesmo se no concordssemos com a designao de arte s cerimnias religiosas, do ponto de vista formal, diverso, encontro, interao. No h, portanto, incompatibilidade com o projeto de Lcio Costa.8 Por outro lado, a presena dos fiis no Conic praticamente no interfere em nada na rotina do edifcio: chegam, oram e partem sem olhar para o lado. um pblico que no consome, no se diverte, no se envolvendo com a vida do imvel. Mas acaba sendo a nica razo para o Conic estar nas residncias de milhes de brasileiros diariamente, pois as cerimnias que ali acontecem so televisionadas em cadeia nacional.

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A invisibilidade do concretoCompreender essa diversidade de tipos sociais que a circulam pode ser um exerccio interessante para analisar os efeitos do projeto de Lcio Costa para o Plano Piloto de Braslia. Saindo do Conic na pequena praa que se situa sua frente, nos damos conta de que, enquanto morador do Plano Piloto, que passa em automveis algumas vezes por semana vindo da Asa Norte em direo Asa Sul, o prdio parece invisvel. Curioso que, enquanto o Conjunto Nacional chama a ateno pelo movimento diurno ou pelos nons noturnos, o Conic no tem registro nenhum na nossa memria. Sinto-me incapaz de descrev-lo enquanto transeunte rotineiro do lugar. Tudo se passa como se olhssemos sem v-lo. um edifcio que, situado na rea mais privilegiada do desenho da Esplanada com exceo claro dos monumentos do Estado , consegue ser completamente invisvel ao olhar dos transeuntes, motorizados ou pedestres. S muito recentemente foram instalados anncios em non que se destacam, sobretudo para quem vem do Congresso Nacional, pela Esplanada dos Ministrios em direo ao cruzamento dos eixos. Podemos supor dois aspectos que podem estar na base de compreenso daquela sensao de invisibilidade que o edifcio transmite. Por um lado, um senso esttico hegemnico no Plano que no consegue incorporar nos seus parmetros alguns princpios de uso do espao, sobretudo quando vem expresso por indivduos ou grupos considerados exteriores ao que se toma

por bom-gosto. Certamente, o submundo que o Conic representou passou a ser a ferida exposta da cultura assptica que prevalece no Plano Piloto, que, fora esse edifcio, talvez s possa ser encontrada em alguns bares tradicionais redutos da boemia da cidade. Mesmo naqueles onde uma vanguarda da cidade faz ponto, o Conic sempre foi visto como muito mais maldito, muito mais transgressor. E isso, mesmo hoje, quando, com a chegada das igrejas evanglicas, o lugar passou de profano a sagrado, com requintes de bom comportamento por parte dos is frequentadores dos templos a localizados. Por outro lado, a prpria localizao do edifcio, uma extenso do Setor Comercial Sul, que como tudo no Plano Piloto parece to longe, mesmo quando est logo ali. O Conic s se torna uma exceo quando olhado ou da Esplanada, ou do Tea tro Nacional, ou at mesmo do Conjunto Nacional. Do contrrio, ele apenas uma prolongao do Setor Comercial Sul em direo rodoviria, beneciando-se de uma quantidade enorme de pedestres, consumidores em potenciais, que fazem o trajeto cotidiano de ida e volta ao Setor Comercial Sul nas suas rotinas de trabalho. A maioria habitante das cidades satlites, comerciantes, prossionais liberais, bancrios, camels, jornaleiros, anelinhas, auxiliares de escritrios, office boys , enfim, uma multiplicidade de tipos humanos e atividades que terminam por serem os verdadeiros responsveis para que o Plano Piloto adquira um ar de espao urbano, que alis causou admirao a Lcio Costa quando visitou Braslia em ns dos anos 80.

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O imaginado e o acontecido com o Conic interessante ressaltar que, com todas as restries que porventura se possa fazer ao edifcio, ele patrimnio da humanidade, tanto quanto os demais imveis de porte que aparecem no projeto original da cidade. Nesse aspecto, talvez seja essa a nica razo pela qual no tenha ainda sido demolido, como de tempos em tempos se cogita. Na proposta original de Lcio Costa, este Setor de Diverses Sul estaria selecionado para abrigar livrarias, cafs, boates e outras atividades que pudessem vir a preencher as necessidades de lazer da futura populao do Plano. interessante esse aspecto pois, embora se tenha tido a inteno de diversicar os grupos sociais que viriam habitar a cidade planejada, os equipamentos de lazer propostos se dirigiam, em tese, para padres sosticados de consumo, numa clara ambivalncia daquilo que a proposta continha. De fato, esse Setor de Diverses imaginado como algo sosticado, para atender padres tambm sosticados de consumo. A tentativa de se reproduzir um padro de uso do espao prximo de um Quartier Latin, onde diferentes grupos de funcionrios, estudantes, comerciantes, prossionais liberais se encontram denota uma inteno de reproduzir algo sosticado que, fora a democracia dos espaos das praias urbanas do Rio de Janeiro, no corresponde cultura de lazer da classe mdia urbana do pas. De qualquer forma, a existncia de um teatro, de uma escola de arte dramtica, de livrarias de diferentes especialidades cientficas, religiosas, etc. de cinemas (hoje cedendo lugar a templos evanglicos), dentre outras

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modalidades de comrcio, que poderia ser privilgio de consumidores mais exigentes, no foi suciente para evitar que, devagar, o uso do imvel fosse cada vez mais se popularizando. A esse discurso inicial que planeja uma rea com um certo uso para um grupo com um certo padro de exigncia e de esttica se impregnou a imagem estigmatizada que o Conic apresenta hoje perante os moradores do Plano Piloto. Essa imagem estigmatizada se apresenta em duas dimenses: por um lado, pelo estado de conservao do imvel, abaixo dos padres dos shoppings da cidade; por outro, pelo perl mdio dos frequentadores do lugar, no geral. Curioso que o Setor Comercial Sul (SCS), ao lado, no provoca tanto mal-estar, mesmo porque, compondo-se de diferentes edifcios, o uso e o porte muito superior ao do Conic e a sua apropriao absolutamente absorvida pelos moradores do Distrito Federal. Certamente essa absoro se d tambm pelo prprio desenho das ruas e dos imveis que compem o SCS que integra tambm aqueles espaos invisveis do Plano Piloto, em torno do qual passamos quotidianamente ser v-lo, ao contrrio, portanto, do Conic este sim, situado num lugar de passagem obrigatrio para quem circula no Plano Piloto, detentor de uma visibilidade evidente.

O processo de degradao do edifcio e arredoresNum primeiro momento, o fato de se ter um edifcio estigmatizado no centro do

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Plano Piloto de Braslia, em si, no uma questo original. Todas as grandes cidades do mundo apresentam reas desvalorizadas, justamente em locais que, pela sua antiguidade, j contam com infraestrutura urbana praticamente completa. , alis, essa a razo pela qual a onda de renovao urbana tem sido observada em praticamente todas as grandes cidades do mundo ocidental nestas ltimas dcadas. Paris, Nova York, Barcelona, So Paulo, Salvador, Recife, dentre outras, passam por processos de gentricao de seus espaos degradados, atraindo uma classe mdia endinheirada e intelectualizada que valoriza justamente a esttica e o conforto dos velhos imveis de outros tempos. Apesar de tmida, a tentativa de renovao do Conic vai na mesma direo, Entretanto, ca sempre uma questo inquietante: por que edifcios ainda recentes, situados em reas privilegiadas da cidade, gozando de facilidade de acesso e de uma infraestrutura completa e adequada se deterioram com tanta rapidez? verdade que o Plano Piloto tem alguns edifcios com caractersticas de degradao precoce, mas todos eles nunca antes ocupados efetivamente. So muitos deles projetos inacabados, que se transformam em runas antes mesmo de terem sido inaugurados. Mas o Conic diferente. Aqui , de fato, um imvel em pleno uso, com uma insero especca na vida da cidade e que pode ser considerado como um dos mais eclticos imveis do Plano Piloto, pela diversidade de usos e de frequncia. Se rompermos com a imagem de shopping center como aquele lugar superprotegido, fechado, sem visibilidade externa, o Conic pode ser considerado um shopping center tal e qual os demais. Talvez at mesmo uma proposta

de centro comercial e de diverses que foge aos padres similares oriundos dos modelos norte-americanos, alm de sua originalidade arquitetnica, dada as caractersticas climticas do Planalto. Poderamos tambm formular uma outra questo: por que o Conic se deteriora, enquanto o Conjunto Nacional, de seu lado e com vrias semelhanas de usos, guarda sua imagem? Mesmo se levarmos em conta que o pblico que frequenta o Conjunto Nacional seja tambm diversicado por origem e renda (caracterstica, alis, inevitvel, pois a localizao no cruzamento dos eixos e sobre a rodoviria urbana induz a isso), o edifcio tem muito dos princpios arquitetnicos padronizados para shopping centers. A exceo so lojas com abertura para as caladas externas, mas que, por arranjos de fcil execuo, voltaram-se para o interior do prdio. Fora isso, um shopping com diversidade de usos e de frequncia dos mais movimentados da cidade com condies semelhantes ao Conic. No deixa de ser, portanto, uma questo que se coloca quando se pensa nos caminhos que seguiram um e outro edifcio. Uma das causas dessa diferena pode ser atribuda ao modelo de gesto adotado em ambos. Enquanto o Conjunto Nacional foi adquirido por um grande grupo que o transforma naquilo que ele hoje, submetendo-o a uma nica administrao, o Conic formado por 13 edifcios, logo, 13 condomnios, com 1.700 proprietrios, cada qual com sua parcela de poder na denio dos rumos do imvel. H cerca de dez anos atrs foi criada uma Prefeitura do conjunto para centralizar a administrao do prdio, com a funo prioritria de acabar com o estigma de rea perigosa e para normatizar as reas degradadas. A primeira funo foicadernos metrpole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009

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praticamente cumprida: cria-se uma delegacia de polcia dentro do edifcio e restringese o trco de drogas e prostituio. Podemos, mesmo sem parecer enfticos, considerar que hoje o Conic uma das reas mais seguras dentro do Plano Piloto.9 Entretanto, o estigma permanece. As razes disso s poderiam ser encontradas na lgica de xao de pr-conceitos no imaginrio dos habitantes da cidade que se enrazam e se espacializam. O espao urbano a concretizao do imaginrio social que se constri no histrico cotidiano e o Conic permanece ainda como lugar pouco nobre. De qualquer forma, com a retirada de marginais que ali tinham suas bases, devagar o Conic vem se transformando atravs de remodelao de aspectos do projeto original,10 numa procura de resgate de sua primeira proposta. Isso signica que enquanto o Conic no for transformado esteticamente segundo padres usuais dos shoppings vizinhos ele permanecer um corpo estranho, separado, mas funcionalmente necessrio, limitado que est quela racionalidade do Plano Piloto. Por outro lado, essa diferenciao no uso ante os demais imveis da rea que parece constituir o ponto de apoio mais importante do argumento segundo o qual no se pode considerar a rea da Esplanada dos Ministrios esteticamente unicada. Entretanto, vale ressaltar ainda o potencial de rea alternativa que o Conic contm. Se, por um lado, conforme destacado acima, a multiplicidade de proprietrios diculta a gesto do imvel nos moldes que ocorrem em outros shoppings centers, por outro, essa condio pode ser um trunfo que o diferencia das experincias similares no Plano. Sim, porque o Conic vem, devagar, se tornando uma rea alternativa dentro do Plano Piloto, numacadernos metrpole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009

clara diferenciao entre o organizado e o racional cartesiano que o Projeto de Lcio Costa; de fato, por se tratar de uma rea anrquica, catica, enm urbana, e graas a essa indenio, uma rea com maior liberdade de uso, o edifcio comea a seduzir uma gama de artistas, arquitetos, poetas, cineastas, etc., atrados justamente por esta irracionalidade e este ar de pretensa marginalidade. Na verdade, uma rea que aparece quase que como um gueto dentro do Plano Piloto.

Um gueto ao inverso no Plano PilotoA ideia de gueto urbano vem da obra de Wirth, quando trata das caractersticas socioculturais do bairro judeu de Chicago na primeira metade do sculo XX. Conforme o prprio Wirth destaca, o gueto foi, na origem, um lugar de Veneza, um de seus bairros, onde se estabeleceu a primeira comunidade judaica. Transformou-se, ao longo do tempo, numa instituio reconhecida pelo costume e denida pela lei. Os dicionrios da lngua portuguesa denem gueto como bairro em qualquer cidade, onde so connadas certas minorias por imposies econmicas e/ou raciais. Tanto a denio de Wirth como aquela do dicionrio no poderiam se adequar caracterizao do Conic como um gueto. Um olhar mais apressado diria mesmo que o oposto, dada a diversidade de tipos urbanos que o frequenta e que terminam por dar-lhe sua identidade. Entretanto, visto no contexto do Plano Piloto, especialmente na Esplanada dos Ministrios, no qual ele se insere,

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ele aparece justamente como uma exceo ao padro esttico e funcional da rea. Neste sentido, e apenas neste, ele aparece como um espao singular que abrange no apenas os tipos sociais, mas tambm a sua prpria arquitetura interna que vai sendo criada e recriada sem a rigidez legal da Esplanada. A sim ele singular; uma singularidade que se acentua dada a distncia do Setor Comercial Sul. A ele pode ser visto como um gueto, um corpo estranho a uma classe mdia moradora do Plano Piloto, com a diferenciao nos tipos sociais e no uso ante os demais imveis da rea. Permanece sempre a pergunta do porque numa rea to privilegiada o povo brasileiro11 tomou conta daquele espao. Uma das possveis explicaes pode estar no grupo que est por detrs da construo dos prdios do Conic. Braslia foi um eldorado para as construtoras quando da edicao da cidade nos anos 50. Alm das grandes empresas nacionais que se responsabilizaram pelas obras dos edifcios pblicos, pelo sistema virio e mesmo pelos blocos dos apartamentos funcionais, outras empresas regionais tambm zeram fortuna naquele momento.12 Talvez por razes de economia ou por valores culturais e estticos, ou mesmo porque a cidade que se construa naquele momento, no tinha ainda como exigncia a ostentao de luxo e sosticao como atualmente ocorre, o fato que o visual do prdio simples, sem ostentao. Fica evidente quando o olhamos que seus idealizadores no tiveram a esttica como diretriz. Alis, se olharmos os prdios por eles construdos no Plano Piloto, certamente, eles estariam classicados entre os que apresentam uma arquitetura sem estilo, numa caricatura de um modernismo caboclo: construes que

envelheceram e perderam o charme muito rapidamente.

A dinmica social do edifcioH um consenso entre os frequentadores usuais do Conic, mais particularmente entre os comerciantes que tm lojas no edifcio, de que se trata de um dos lugares mais seguros do Plano Piloto, incluindo o Setor Comercial Sul e o prprio complexo Gilberto Salomo no Lago Sul rea nobre da cidade. Esse argumento pode encontrar princpio de realidade, sobretudo se levarmos em conta a presena de um batalho da polcia militar com uma delegacia dentro do prprio conjunto edicado: fala-se num efetivo de 500 homens que se revezam dia e noite na viglia do prdio e arredores, o que inviabiliza qualquer convvio com criminosos de qualquer estirpe. Claro que no estamos aqui considerando o trabalho das prostitutas que ali fazem ponto noturno, no causando nenhum transtorno maior aos frequentadores do lugar, inclusive os evanglicos e suas famlias. Entretanto, o Conic hoje tem uma imagem estigmatizada, principalmente junto classe mdia tradicional do Plano Piloto, resqucio de um perodo em que a situao beirava o descontrole. Podemos considerar trs fases na vida do edifcio a partir de sua inaugurao. Numa primeira fase, o edifcio atraa as embaixadas estrangeiras que tinham ali seus escritrios de representao, os prossionais liberais, partidos polticos, etc. A localizao privilegiada facilitava a preferncia, que se manteve enquanto as sedes ociais das representaes diplomticas foramcadernos metrpole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009

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sendo construdas. Naquele momento, o local era frequentado pela alta burocracia do Estado, tinha lojas e restaurantes condizentes com os frequentadores, um retrato que se aproximava muito daquele imaginado por Lcio Costa. Esse pblico com poder de compra estvel e de elevado padro certamente atrai diferentes atividades para a rea, particularmente aquela que se instala na segunda fase do edifcio. Nessa fase segunda, o local invadido pela prostituio, pelo crime, trfego de drogas, num perodo de decadncia, responsvel pela imagem que o edifcio carrega at os dias atuais. Essa imagem se alastra com uma certa facilidade, talvez pela situao do imvel dentro do Plano Piloto e a sensao de invisibilidade que ele transmite aos passantes pelas suas caladas e ruas que o circundam. essa ambivalente situao espacial visibilidade e invisibilidade aliada a um desenho interno que, tentando reproduzir ruas e becos de stios urbanos tradicionais, termina por ser funcional s transgresses que ali se desenrolavam. Se considerarmos que a sociedade no deixa de ser um mecanismo de introjeo de valores e comportamentos, muitos deles restringindo a prpria natureza humana, podemos tambm assumir que espaos de transgresso sempre existiram nas cidades na histria. A funcionalidade da prostituio a mais antiga prosso do mundo , as drogas, que funcionam como mecanismos de escape, ou de vcios, enm uma srie de prticas que so reprimidas socialmente, mas que a sociedade arruma sempre uma forma de permitir a sua existncia regra geral em reas de elevada densidade populacional. Claro que os espaos urbanos para prticas transgressoras nunca so definidos de formacadernos metrpole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009

legal ou tranquila, mesmo se em passado recente era comum nas cidades brasileiras reservar uma de suas reas onde se concentravam as prostitutas (a zona); hoje essas zonas esto praticamente desaparecidas. de se supor que nos anos sessenta e setenta a cidade tinha um mercado razovel para o sexo, na medida em que as pessoas chegavam, desenraizadas, descoladas de vnculos mais estreitos e, sobretudo, com salrios xos que permitiam alguns excessos. Uma parcela da burocracia vai encontrar na oferta das prostitutas do Conic uma facilidade enorme para se satisfazer e, em sendo um negcio, pode-se argumentar que h uma racionalidade econmica na opo por aquele territrio.13 Atualmente, podemos considerar como sendo a terceira fase do Conic. Cria-se a sua prefeitura atendendo demanda dos comerciantes e profissionais que ali trabalham, instala-se uma delegacia, h uma debandada do crime e do trfego. Essa terceira fase pode ser considerada a onda poltica com a presena da sede de diferentes partidos e, portanto, frequentado rotineiramente pelos dirigentes e militantes. Alguns estabelecimentos comerciais (livrarias, teatro, lojas especializadas, alguns bares) atraem professores universitrios, aposentados (no Plano Piloto importante a presena de aposentados), prossionais liberais que, ao lado dos candangos das satlites, fazem do lugar um ponto de referncia, de encontro. De forma que, hoje, entre o estigma de lugar decadente e a procura de um charme de vida urbana que raramente se encontra no Plano Piloto, o Conic vive sua nova fase. Poderia estar a um dos trunfos da reabilitao ou da insero do Conic no Plano Piloto nos moldes que foi pensado por

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Lcio Costa. Para os moradores da cidade, uma das maiores carncias so as reas de convvio coletivo que escape aos jardins e reas verdes. Ou seja, aquilo que falta nas grandes cidades brasileiras, Braslia tem em quantidade, porm no dispe, por exemplo, de botecos um velho hbito urbano do pas, que foi completamente esquecido, talvez pela trivialidade do fato. reas onde seja possvel tomar um cafezinho, utilizar um banheiro, sentar numa mesa para um aperitivo, uma conversa. Lazer em Braslia so bares e restaurantes, a maioria deles formais o suciente para exigir um certo ritual de frequncia. Dicilmente so lugares onde se vai espontaneamente. Pois o Conic justamente isso. Com uma localizao privilegiada, pensado justamente para ter estas caractersticas de uso, sem a assepsia de shoppings com seus insistentes apelos de consumo. Aqui se v que a parcela criativa do urbanista foi pensada, o que faltou foi a criatividade das pessoas que para c vieram, obviamente com as excees de praxe.

Espao de exceo, espao de outras sociabilidadesToda a discusso sobre o estigma que caracteriza o Conic no fundo um olhar de fora sobre o edifcio. H na cidade indivduos que frequentam rotineiramente o lugar, fazem dali um ponto de encontro entre amigos, de conversas, compras, enm, fazem dele um lugar urbano de multiusos. Para a rotina de Braslia, onde o ato de andar p s se faz nos ns de semana, quando se caminha pelas superquadras ou pelos parques, cou

uma sensao curiosa e familiar ao mesmo tempo. De fato, a cidade tem gente, tem um movimento. No fundo, ali que a Esplanada mais cidade. Na verdade, podemos nos perguntar se seria o caso de intervir para alterar ou ordenar o espao coletivo do edifcio? Claro que se olharmos pelo lado da arquitetura no oficial do Plano Piloto, especialmente da Esplanada, o Conic sem dvida o maior monumento histrico da cidade. O fato de os arquitetos da nova capital no terem tido nenhuma preocupao com populaes fora do ncleo do poder, do governo, fez do Conic o contraponto entre o ocial e o no ocial na esttica do Plano Piloto: a anttese daquilo que a regra geral para o Plano Piloto. Talvez seja o nico edifcio de uma rea tombada pela Unesco que, de tempos em tempos, algum prope demolir. Causam pouca reao propostas dessa natureza, mas servem para reunir um grupo de intelectuais, arquitetos, artistas, comerciantes e frequentadores do Conic num grupo de reexo para traar o futuro do edifcio e proteg-lo das ameaas de destruio. Tudo est indicando que intervenes seriam simplesmente para consolidar o papel atual do Conic construdo em dcadas de existncia que se confunde com a prpria histria da cidade. Ser nesse confronto entre o dio que o Conic provoca em uns e o amor que desperta em outros que o futuro do edifcio est sendo tratado. Os clssicos da sociologia, Simmel frente, trataram a metrpole como um fato civilizatrio na medida em que ela simbolizava a forma geral da modernidade. Nisbet (1984, p. 381) argumenta que a metrpole joga no pensamento de Simmel o mesmo papel que a democracia para Tocqueville, ocadernos metrpole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009

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capitalismo para Marx e a burocracia para Weber. Foi ele o primeiro que fez da grande cidade o lugar por excelncia no qual se exprime a lgica social da sua poca. Com os avanos do capitalismo e com a globalizao, podemos armar que essa uma assertiva cada vez mais evidente. No se pode perder de foco o fato que a heterogeneidade da metrpole termina encontrando nela um ambiente adequado existncia de grupos e tipos urbanos singulares e com menores possibilidades de controle. Garantindo a unidade na diversidade, a metrpole termina por se constituir como a sntese civilizatria dos tempos modernos, ambiente propcio ao aparecimento de formas originais de socializao. Mais uma vez temos que recorrer a Simmel para recuperar o seu argumento de generalizao da moeda na metrpole, fenmeno que permite o aparecimento de tipos originais no ambiente da grande cidade (o indivduo blas, o estrangeiro, o reservado), resultando na diferenciao social tpica da modernidade. interessante essa tipologia simmeliana, pois no se trata aqui de classicar os indivduos que frequentam o Conic como excludos ou algo parecido. A diversidade de tipos humanos e de atividades econmicas poderia dar margens a tenses no convvio dirio. Mas tudo est indicando que h cdigos informais de convvio e as pessoas terminam por no interferir no espao uma das outras. Certamente, a imagem de uma rea catica que se sente quando ali estamos tem muito da programao visual do comrcio ali existente e do contraste com o desenho racional da maioria dos edifcios do Plano Piloto. Assim, no se trata de um recorte econmico simplesmente, mas sim de formas de sociabilidade distintas. O que procuramoscadernos metrpole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009

mostrar para o caso do Conic que sociabilidades heterogneas induzem ao aparecimento de ambientes (estticas) tambm heterogneos, mesmo em espaos pensados para serem homogneos, como o Plano Piloto. A rea escolhida pode ser lida ento como um espao de possibilidades de novas modalidades de uso da cidade por indivduos e grupos que no estavam contemplados no seu projeto original, apontando ssuras no seu espao fsico.14 H aqui estreita relao entre ambiente construdo e seus usos: frequentar o Conic elemento identicatrio do lugar social do indivduo, exigindo na sua anlise elementos cientcos e metodolgicos que dialoguem com um certo nmero de disciplinas, tais como a arquitetura, a economia, o urbanismo em torno de questes sobre a racionalizao, a concentrao, a diviso do trabalho. J consensual entre os estudiosos do urbanismo modernista no Brasil da segunda metade do sculo XX que a cidade era a sntese de um projeto de sociedade. Braslia, sob essa perspectiva, aparece como a unidade central (a city) fsica e social, cujo espao construdo denso, com funes econmicas (tercirias) vitais. Ela se liga s cidades satlites, relativamente autnomas, mas se mantm como sede das atividades econmicas, do emprego formal, com uma autonomia interna. Essa centralidade fsica e social polariza os seus arredores e deve, portanto, garantir espaos de sociabilidades que escapam quela hegemnica oriunda da cultura burocrtica de uma cidade-Estado. Na verdade, ela cumpre assim seu papel de metrpole, na medida em que garante a existncia de tipos urbanos peculiares da grande cidade: em outras palavras, o estrangeiro tem seu territrio de existncia garantido no Conic.

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Brasilmar Ferreira Nunes Doutor em Sociologia pela Universit de Picardie Frana. Professor Ttitular de Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected]

Notas(1) Ver, por exemplo, Georg Simmel, Max Weber e Pierre Bourdieu, para car apenas entre os considerados referncias em nosso campo de trabalho. Isso para no falar no gegrafo, Prof. Milton Santos, que insiste de forma recorrente em sua obra sobre a importncia do espao na construo das relaes sociais. (2) O que, alis, foi a perspectiva dos intelectuais da Escola de Chicago na primeira metade do sculo XX que tratavam a cidade e suas reas como zonas morais. Park (1976), Chapoulie (2001). (3) Com a evoluo da tecnologia e a expanso do setor tercirio da economia onde hoje o lugar de trabalho cada vez menos dependente da localizao da unidade produtiva e onde o trabalho em casa ganha cada vez mais importncia, no se pode negar que o debate sobre os argumentos dos modernistas ganham novos elementos. (4) em razo disso que ele introduz a noo de ambiente e faz das variaes do ambiente um fator decisivo para compreender por que a solidariedade mecnica se torna ultrapassada e deve ser substituda pela solidariedade orgnica. A esse respeito, ver Jean Remy (1995). (5) A ideia de matriz utilizada pelo autor a organizao de paradigmas de vrias disciplinas que formam uma predisposio para a apreenso, compreenso e construo do mundo (Duarte, 2002, p. 23). (6) No iremos aqui reproduzir essa discusso, de resto intil, pois a cidade de Braslia se implantou e se consolidou com todas as limitaes que porventura possa se constatar no projeto apresentado. (7) Na elaborao desse tpico, tive a companhia de Naraina Kujimian, ento bolsista de PIBIC. Em certa medida, procuramos seguir as orientaes de Howard Becker (2008) sobre pesquisa, fazendo uma leitura minuciosa do cotidiano do edifcio para situar o leitor no contexto do objeto analisado. (8) Nas palavras de um de nossos entrevistados: polmico, mas se respeitarmos a liberdade de culto e de crena, a Igreja Universal hoje o teatro do absurdo mais importante do mundo. (9) Aps o perodo de auge, quando de sua inaugurao, o Conic sofre um processo de decadncia que transforma o lugar num ponto de trco de drogas, prostituio e mendicncia. A Prefeitura trouxe ento o Batalho da Polcia Militar, afugentando os indesejveis. Hoje no se fala mais em quadrilhas de tracantes agindo no Conic e a rea uma das mais seguras do Plano Piloto. (10) Liderados principalmente pela arquiteta Flavia Portella, que redesenha o projeto do Conic e prope vrias intervenes no seu desenho fsico. (11) Expresso de Lcio Costa referindo-se populao que tomou conta da rodoviria e arredores de Braslia. Ver Costa (1987). (12) Na construo do Conic esto trs dos grandes empresrios pioneiros construtores de Braslia: Venncio, Barac e o Karim Narrote.

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(13) Argumentos semelhantes podem ser aplicados para o trfego de drogas, que se benecia do mercado consumidor do Plano Piloto. (14) interessante isso, pois hoje j se pode constatar que essas ssuras no projeto original esto ampliando seus territrios dentro da rea, sobretudo na Avenida W3, onde a ocupao dos imveis por pessoas e atividades que fogem ao padro hegemnico no Plano est cada vez mais evidente, num claro sinal de que a cidade um produto coletivo em movimento. Ver Luis Felipe Castelo (2007).

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Recebido em dez/2008 Aprovado em mar/2009

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Por um novo enfoque terico na pesquisa sobre habitaoErmnia Maricato

Resumo O texto constata que a maior parte das pesquisas sobre habitao se do no contexto da esfera do consumo, dimensionando-o e qualicando-o. O Estado e as polticas pblicas ocupam um papel central no conjunto desses trabalhos. Embora eles forneam um quadro importante sobre a carncia de moradias, a segregao territorial, a excluso social e as polticas institucionais ignoram, frequentemente, a centralidade da produo na determinao do ambiente construdo. Em especial, chamam a ateno a produo acadmica sobre arquitetura e urbanismo que ignora a construo e a produo sobre tecnologia que ignora o trabalho. Essas caractersticas esto nas razes da formao da sociedade brasileira desprezo pelo trabalho, distanciamento entre discurso e prtica. preciso reorientar o enfoque terico da pesquisa sobre habitao. Palavras-chave: o; trabalho. habitao; teoria; constru-

Abstract This paper shows that most studies on housing are carried out in the context of consumption, by dimensioning and qualifying it. The State and public policies play a central role in these studies. Although they provide an important picture of the lack of housing, territorial segregation, social exclusion, and institutional policies, they often ignore the central role played by production in dening the constructed environment. In particular, attention is drawn to the academic production on architecture and urbanism that ignores construction and the technology production that ignores labor. These features are at the very roots of Brazilian society disdain for work, and a gap between discourse and practice. It is imperative to change the theoretical framework of housing research. Keywords: work.

housing; theory; construction;

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Teoria aos pedaos: a ausncia das determinaes gerais1No incio deste trabalho, queremos chamar a ateno para uma questo de ordem terico-metodolgica: o estreitamento do campo das pesquisas e da produo acadmica sobre o tema da habitao no Brasil, dominadas principalmente pelas abordagens do consumo dcit, carncia, m qualidade, tipologia, formas de ocupao do domiclio e do espao e da poltica habitacional praticada pelo Estado. Deve-se reconhecer que tal produo intelectual contribuiu para o conhecimento da situao de precariedade habitacional existente e dos desvios nas polticas pblicas, que se revelaram incapazes de sanar a carncia das camadas mais pobres da populao. No entanto, ela no contribuiu para desvendar uma leitura mais ampla sobre a produo da habitao ou mais propriamente da estrutura de proviso de habitao, dos interesses e dos agentes envolvidos.2 A relao de estudos e autores utilizados para representar essas tendncias dominantes na produo tcnica e acadmica no pretende ser exaustiva mas apontar alguns pioneiros nos temas abordados. 3 No se pretende ainda fazer uma crtica a essa produo intelectual que compe os autores citados na relao inicial (ao contrrio, reconhecemos a importncia desses estudos), mas sim destacar a predominncia da esfera do consumo e do Estado como temas dessa produo acadmica e a ausncia de abordagens histrico-estruturais que permitam reconhecer a permanncia ou a inovao nas determinaes dessa parcela do ambiente construdo.10 sem. 2009

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De fato, o foco nas carncias habitacionais e nos dcits de moradia tem sido a forma predominante dos rgos pblicos tratarem a questo da habitao, por meio de consultores contratados, como um problema quantitativo e mais recentemente, nos anos 90, tambm qualitativo.4 Os levantamentos promovidos pela Finep, em "Inventrio da ao governamental no campo da habitao popular, nalizado em 1979, e a posterior publicao de Habitao popular: inventrio da ao governamental (Finep, 1985), constituem um importante cadastro de documentos e bibliograa que comprovam o que armamos aqui. Carncia habitacional, periferizao, segregao urbana so temas recorrentes que tm sido bem desenvolvidos, tanto nas anlises dos planos urbansticos que tm incio com as reformas urbanas implementadas no comeo do sculo XX quanto nas anlises da moradia e condies de vida da classe trabalhadora no Brasil industrial, incluindo ainda a abordagem das dramticas e generalizadas condies de periferizao, guetizao, ilegalidade e favelizao caractersticos da chamada era da globalizao. As reformas urbanas que pretenderam dar s cidades brasileiras, na Repblica recm-proclamada, a imagem de progresso e modernidade visavam afastar o fantasma da presena da escravido recente, deslocando populaes pobres de reas centrais, e recuperar espaos para o mercado imobilirio. Estudos com esse sentido foram desenvolvidos, dentre outros autores, por Sevcenko (1984), Andrade (1992), Leme e outros (1999). Os cortios, como forma prioritria (e privada) de moradia da massa trabalhadora pobre no incio do sculo XX, foram

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analisados por PMSP-Sebes (1975), Vaz (1986), Villaa (1986 e 1999), Ribeiro (1991), Reis Filho (1994), Bonduki (1994), Piccini (1999), Kohara e Caricari (2006), entre outros. Importantes estudos sobre a reproduo da classe operria ou proletariado urbano que incluram a formao da periferia com a predominncia do transporte sobre rodas, a autoconstruo, os loteamentos ilegais, a partir dos anos 1930 e 1940, foram feitos por Sampaio (1972), Ferro (1972), Lemos e Sampaio (1976), Maricato (1976 e 1979), Bonduki e Rolnik (1979), Valladares (1980), Santos (1980), Bogus (1981), Mautner (1991) e Souza (1999). A terra tem sido reconhecida como elemento central do processo de excluso e segregao urbana, mas tambm tem sido frequentemente abordada segundo o enfoque da carncia e fortemente relacionada legislao.5 As favelas, uma forma variante daquela referida acima, mereceram ateno especial dos pesquisadores cujas cidades convivem com o fenmeno h mais tempo. Talvez o pioneiro e paradigmtico estudo sobre favela seja o clssico Sobrados e mocambos, de Gilberto Freyre; no entanto, a produo de autores cariocas destaca-se pela abundncia. Desde meados do sculo XX, os estudiosos da cidade do Rio de Janeiro dedicam importantes estudos s favelas cariocas, como mostra Lcia do Prado Valladares em seu livro Repensando a habitao no Brasil (Valladares, 1982). Ver ainda a sntese feita por Suzana Pasternak em sua tese Favelas e cortios no Brasil: 20 anos de pesquisas e polticas (Pasternak, 1993). Estudos mais recentes abordam novas formas de segregao socioespacial da populao. Eles se referem tanto aos crescen-

tes ncleos de pobreza nas reas centrais abandonadas pelo capital imobilirio, e que so objeto de planos ociais de renovao, reforma ou reabilitao (ver Silva, 2000 e 2007) quanto heterogeneidade trazida periferia ampliada por uma nova forma de ocupao do solo, pelos condomnios fechados de alta renda (ver, por exemplo, Caldeira, 2000; Marques e Torres, 2005). O impacto da reestruturao produtiva capitalista e das polticas neoliberais reconhecido como determinante desse espraiamento que dilui a cidade ou a metrpole na regio, mas esse impacto pode ser visto tambm como determinante do aumento da precariedade habitacional e urbana pelos autores Observatrio das Metrpoles (2005) e Davis (2006). As anlises das polticas pblicas de habitao engendradas pelo Estado permitiram o desvendamento do seu carter de agente ativo do processo de segregao territorial, estruturao e consolidao do mercado imobilirio privado, aprofundamento da concentrao da renda e, portanto, da desigualdade social. Tais anlises foram desenvolvidas por Bollafi (1975), Serran (1976), Azevedo e Andrade (1982), Maricato (1987), Arretche (1994), Draibe (1994), entre outros. Na extensa produo de livros, documentos e relatrios contratados pelo Ministrio das Cidades, a partir de sua criao em 2003, possvel encontrar dados atualizados sobre todos esses assuntos, incluindo o tema recm-adotado na esfera governamental federal: regularizao fundiria de habitao de interesse social. Apesar do nmero signicativo de estudos crticos sobre o assunto, notvel o desconhecimento do quadro geral da produo e distribuio da habitao, que estamoscadernos metrpole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009

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aqui denominando proviso da habitao, formado pelas diversas tipologias resultantes de diferentes arranjos entre: o nanciamento, a construo, a promoo, a comercializao, a participao da fora de trabalho e o lugar ocupado pela propriedade da terra no contexto da regulao instituda (e praticada de forma discriminatria no Brasil e em toda Amrica Latina) pela legislao de uso e ocupao do solo. O arranjo resultante do encontro desses agentes envolve, evidentemente, muitos conflitos. Como conflito bsico, podemos citar o interesse daqueles que precisam de uma moradia para viver e aqueles que lucram com sua proviso. Mas outros conitos internos e externos a esse arranjo ou a esses agentes podem aparecer. Por exemplo: conitos entre promotores e construtores, conitos entre a fora de trabalho e os construtores, conitos entre todos os agentes que compem o capital imobilirio e a poltica macroeconmica. Enm, estamos tratando de antagonismos que podem acontecer ou no, dependendo de uma dada correlao de foras denida historicamente e dos arranjos que podem ocorrer entre esses agentes (Harvey,1982).6 Num dos poucos momentos em que constatamos a mobilizao dos trabalhadores da construo civil contra os baixos salrios e as pssimas condies de trabalho, em diversas capitais brasileiras, o que aconteceu no nal dos anos 70 e incio dos 80 (quando a construo civil estava a todo o vapor), foi possvel acompanhar as mudanas signicativas na organizao do trabalho no canteiro de obras, alm do atendimento das reivindicaes (Valladares, 1982). Infelizmente, esse movimento de mudana no se sustentou devido ao drstico recuo nos investimentos pblicos a partir de 1983.cadernos metrpole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009

Iniciava-se um longo perodo de ajuste scal e corte nos gastos pblicos com aumento do desemprego (Maricato, 1988). Toda famlia precisa de uma moradia. Todos moram em algum lugar, ainda que seja numa manso em condomnio fechado ou num barraco sob um viaduto. O estoque de moradias resultante dos diferentes arranjos existentes no interior do conjunto formado pelo mercado privado, pela promoo pblica e pela promoo informal (o que inclui ainda arranjos mistos) em diferentes situaes histricas de uma dada sociedade. A estrutura de proviso de moradias se refere construo, manuteno e distribuio de um estoque, que se forma a partir de diversas formas de proviso de habitao: promoo privada de casas, apartamentos ou loteamentos, promoo pblica de casas ou apartamentos, autoconstruo no lote irregular ou na favela, autopromoo da casa unifamiliar de classe mdia ou mdia alta, loteamento irregular, entre outros. Apenas essa abordagem ampla, que toma a moradia como um produto social e histrico, pode explicar o desaparecimento de certas formas de proviso em algumas cidades. o caso das vilas populares ou carreiras de pequenos sobrados resultantes da ao de um pequeno promotor, nas primeiras dcadas do sculo XX, nas cidades de Rio de Janeiro e So Paulo, que desapareceriam na segunda metade do sculo (Ribeiro, 1996). Produtos semelhantes podem resultar de diferentes formas de proviso da moradia. Uma casa de alvenaria em uma favela pode parecer idntica, visualmente, a uma casa de alvenaria em um loteamento regular, mas a participao do componente terra , em geral, muito diferente: num caso, a terra

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invadida (embora a partir dessa primeira ao ela possa ser vendida informalmente) e no outro ela comprada, sendo objeto de um contrato de compra e venda registrado em cartrio. A condio jurdica diferente, embora possa apresentar muitas variantes, dependendo da condio de propriedade da terra que vendida ou invadida. As diversas formas de proviso da moradia (o que inclui a moradia de aluguel, obviamente) constituem um conjunto contnuo e interdependente: se o mercado muito restrito s camadas de mais altas rendas, como acontece no Brasil, e o investimento pblico escasso, a produo informal fatalmente se amplia, pois, como j foi destacado, todos moram em algum lugar. A abordagem da promoo pblica ou das polticas pblicas, isoladamente, como tradio em nosso meio acadmico, impede a compreenso sobre sua insero nessa estrutura geral de proviso das moradias, prejudicando o entendimento da realidade e a formulao de propostas. No h como responder s demandas de moradia da populao de baixa renda (ainda que hipoteticamente exista interesse governamental) se o mercado no responde s necessidades da classe mdia.7 No Brasil, a classe mdia no tem sido atendida pelo mercado privado, especialmente a partir do recuo dos investimentos do Sistema Financeiro da Habitao, a partir de 1980. A consequncia da falta de resposta necessidade de moradia da classe mdia, a partir dessa data, o acirramento da disputa com as camadas de baixa renda pelo acesso aos subsdios pblicos. Considerando-se que esses subsdios tiveram uma queda drstica, tornou-se lugar comum encontrar domiclios com famlias de classe mdia em favelas.

Tecnologia que ignora o trabalho, arquitetura e urbanismo que ignoram a construoA precariedade das pesquisas na rea de habitao no se esgota nessa ausncia de uma viso de conjunto; na medida em que ignoram a proviso (produo e distribuio), ainda que de uma forma especca de moradia, incorrem tambm em equvocos. Vamos lembrar algumas ausncias no escopo de trabalhos que t