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Cadernos Debates Sylvia Coutinho

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CADERNOSDE D~c=B==~==~==E======HISTORIA DO BRASIL

BlBlIOTECA DE FILOSOFIA~ -C1t:NC1AS SOCIAIS· U S F

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oeditora brasiliense

1976

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v. CULTURA E DEPENDÊNCIA:A QUESTAO DAS "IDÊIAS FORA DO LUGAR".

Até fins do século XVIII, o Brasil se inseria no mercado capitalista mundial através do regimecolonial. Por imposição do "Pacto Colonial", a exploração inicialmente era predatória, e, nouniverso capitalista, cabia à colônia a produção de matérias primas. Em 1785, Dona Maria I,Rainha de Portugal, promulgava no Brasil um decreto de proibição de manufaturas, que visavaaparentem~nte impedir a disseminação da produção capitalista, tentando manter o pa(s nos quadrosda produção de matérias primas para o mercado metropolitano. Com a vinda de D. João VI, aelevação da colônia a Reino-Unido e a independênci,a política, configurava-se de direito umasituação já existente de fato: a ,instalação definitiva do Brasil nas fileiras capitalistas, como naçãopoliticamente soberana, porém ainda dependente economicamente do mercado mundial, enquantopaís agrário-exportador.

Este trajeto histórico seria responsável pela instalação entre nós, de um capitalismo particular.Se de início a exploração colonial impunha à colônia uma produção baseada no braço escravo, aprópria conjuntura capitalista mundial acabaria por impor também ao Brasil o seu modo deprodução, baseado na exploração do trabalho livre .. Só que o trabalho assalariado se instalijriacoexistindo com as reminiscências escravistas da exploração predatória.

As idéias que na Europa acompanhavam o desenvolvimento capitalista, e que tinham porfunção conferir estabilidade ideológica à estrutura econômica baseada no trabalho assalariado,também entre nós acompanhavam o desfraldar do novo modo de produção. Na metrópole, era aideologia democrática do tripé Liberdade, Igualdade, Fraternidade, tal 'como estabelecido pelaRevolução Francesa. No Brasil, contudo, estas idéias' esbarravam com a instituição da escravidão.Longe de tentar eliminar a coerção imposta 'ao braço\jafricano (pois não tiveram significação asvozes favoráveis à Abolição no período da Independência), a particular via liberal brasileira iriaadequar as idéias liberais européias à nossa estrutura econômica, amálgama de braço livre e escravo.Assim, colocadas "fora do. seu lugar" em relação à Europa, as idéias liberais se fundiriam com aautoridade necessária para a exploração escrava, 'num contexto característico: a "ideologia dofavor". Esta, desenvolvendo-se apenas entre os homens livres, eliminaria do seu contexto averdadeira b,ase econômica da nação. No seu âmbito' se desenrolaria toda atividade cultural,ideológica e artística do período: prova disto é que o escravo se tornaria objeto literário específicono Brasil somente muito após a Independência.

Quando, com a Abolição, cai o Império e se instaura a República no país; a economiaagrário-exportadora conserva como super-estrutura a "ideologia do favor". Embora a mão-de-obra!ieja agora assalariada, as idéias liberais permanecem "fora do lugar". A função ideológica dofavor, que durante o Império afastava a base econômica escrava, continua inalterada: sua aparência

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democrática é falsa, vindo à tonn politicamente através do clientelismo dos coronéis, instrumentocom que se mantinha subjugada a parcela economicamente ativa da população.

Apenas com a Revolução de 1930, que empalma a transição no país da faseagrário-exportadora à fase urbano-industrial, levantar-se-iam as primeiras vozes alertando sobre ainadequação crescente das "idéias fora do lugar", com a estrutura econômica cada vez maisdependente da exploração do trabalho livre na inc!ústría. Esboçar-se-ia a partir deste período aestratégia do "por as idéias no seu lugar". Em outras palavras, acreditava-se na necessidade dainserção definitiva do país nos moldes clássicos do capitalismo, no sentido de promover seudesenvolvimento. A saída do sub-desenvolvimento se associaria à eliminação da "ideologia dofavor" e da estrutura sócio-econômica a que este se vincularia, cuja expressão máxima seria olatifúndio. A estratégia desenvolvimentista de va'lorJzação da indústria nacional, não seria adotadasomente nos meios governamentais, mas integraria o próprio programa da esquerda. Esta pretendia,por exemplo, eliminar o clientelismo coronelista pela implantação da reforma agrária de cunhoburguês. 'Uma tal coincidência de estratégias, motivaria a existência do "pacto de classes",caracter(stica do populismo deste período, que se encerra em 1964.

A partir de então a estratégia desenvolvimentista adquire nova tonalidade. A quebra do pacto,alinharia as clé!sses novamente em polos diversos. Seria válida ainda a estratégia em que aelimina-ção da ideologia do favor é necessária para uma perspectiva efetivamente democrática parao país? Ou existiria uma via brasileira própria, que prescinde da fase intermediária para colocar asidéias "no seu devido hJ9ar"? As 'idéias liberais não corresponderiam a elementos modernizantes,mas na verdade seriam o velho, a ser definitivamente superado?

É viva a controvérsia acerca desta~ questões. Ela se concretiza em torno da expressão "idéias.fora do lugar", criada por Roberto Schwarz em artigo homônimo publicado na revista "EstudosCebrap" nQ 3, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Duas 'posições se destacam_ A professora Maria Sylvía de Carvalho Franco, chefe doDepartamento de Filosofia da Universidade de Sao Paulo, critica a própria concepção teóricasubjacente às "idéias fora do ~u9ar", apontando' para uma via brasileira que prescinde desteconceito.

Carlos Nelson Coutinho, não ligado à universidade, primeiro tradutor de Gramsci no Brasil eautor de numerosos ensaios sobre literatura brasileira, adota a conceituação das "idéias fora dolugar"_ Aponta para uma via particular brasileira, em que o papel dado à cultura passariaobrigatoriamente pela eliminação do "intimiSmo à sombra do Qoder", que integra a "ideologia dofavor" em suas reminiscências atuais. ??9

AS IDÉIAS ESTÃO NO LUGAR

Maria Sylvia de Carvalho Franco

Pergunta - O Brasil, por ser um pa(s colonial, tem na Europa" a fonte ,de suas idéias. Comose processa a transferência do ideário europeu, e qual a originalidade das idéias assim resultantes?

Maria' Sylvia - Esta entrevista se in'ieia por uma afirmação que, se aceita, orientaria todas asrespostas: "O Brasil, por ser um pa(s colonial, tem na Europa a fonte de suas idéias." Só essaafirmação já implica num ideário cuja origem e cujo significado na vida pol(tica do pa rs mereceser questionado. Em termos gerais, essa formulação aparece inscrita em pelo menos dois séculosde nossa história intelectual: se "reconhece na metrópole o centro produtor das relaçõessócio-ecõnômicas e a colônia como seu produto. Metrópole e colônia, atraso e progresso,desenvolvimento e subdesenvolvimento, tradicionalismo e modernização, hegemonia e dependênciasão algumas das variantes desse tema com que' nos deparamos nas teorias da história brasileira.

Qualquer dessas oposições - desde a maneira como foram formuladas pelo romantismonacionalista até o r~alismo da atual teoria da dependência - traz impl (cito o pressuposto de umadiferença essencial entre nações metropolitanas, sede do capitalismo, núcleo hegemõnico do sistema,e os povos coloniais, subdesenvolvidos, periféricos e dependentes. Desse modo, se estabelece umarelação de exterioridade entre os dois termos em oposição: são concebidos discretamente, postos·um ao lado do outro e ligado por uma relação de causaiidade. Com isto, se estabelece entre eles I

uma ordem de sucessão, de modo tal que as sociedades vistas como' tributárias se definem como .0"

conseqüência do capitalismo central, sendo este dado como seu antecedente necessário,Especificando melhor essa relação, diz-se que é pela ação expansionista dos centros <Idi<.:;:;:L;Cse operam as mudanças substanciais nos países atrasados: na organização escravista, na CLül"l •••fI1,<.;

agrária, na sociedade tradicional, no personalismo político, no pénsamento conservador, Há,portanto, uma ordem nessas mudanças: vai ,das sociedades industrializadas para as agrícolas, dasmodernas· para as tradicionais, das hegemônicas para as tributárias. As primeiras encerram ascondiçqes pélra que sigam as mudanças nas segundas, mudanças que' vão aparecer como alteraçõesdaquilo ·que :apresentam de permanente.

Foi ness.es quadros de pensamento que emergiu, por exemplo, a noção de resistência àmudanr;;iI~tãQ;;freqüente nas teorias cient(ficas e programas pol(ticos de modernização dos~paísesatrasados.,'Qesses mesmos postulados - Europa e Brasil vistos numa relação de exterioridade comomodos ,de'."pro,dução essencialmente diferentes e o processo social referido a algo de permanente ed(verso ..do capitâlismo e que muda sob seu impacto - que deriva a nova teoria do pensamentobrasileim.:;com.o idéias fora do lugar. Ainda a( reconhecemos uma variante das interpretações que

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62 CADERNOS DE DEBATE 1 - HISTÓRIA DO BRASIL

combinam diferentes modos de produção: a sociedade e a economia brasileiras no século XIXaparecem como escravistas e articuladas aos grandes mercados mundiais, estes sim capitalistas,estabelecendo-se relações entre essas partes heterogêneas de um todo que as transcende.

É por força desse mesmo quadro de pensamento onde emergiu que a teoria das idéias forado lugar (importadas pelo Brasil dos centros europeus de produção de mercadorias e ideologias),encontra sua maior dificuldade. A circulação de mercadorias e sua absorção pelos paísesdependentes ou atrasados é inerente à natureza dos mercados internacionais, isto é, se explicampela divisão do trabalho social. Mas como se realiza a circulação de idéias? Pela via de umaindústria cultural dos centros hegemônicos que criaria e determinaria seus consumidores, suaspreferências intelectuais e seu gosto? Hoje, com cuidado, se pode.ria aVentar tal hipótese, dada aamplitude e o ritmo da reprodução de informações, dada a massificação das universidades e aquantidade de'literatura repetitiva que geram, recebem e distribuem. Mas, que dizer do século XIX,período que exatamente serviu de base. ~~ra essa .teor~a: como foi que as id~ia~ liberais-burguesas ><.pássaram de cabeça para cabeça, dos CIVilizados cldadaos europeus para os rustlcos senhores /brasileiros? Por força de prestígio social, de atração ornamental da cultura "sl!perior"? Peladifusão de idéias que transmigram nas consciências, indiferentes à radical diferença das basesmateriais daqui e de lá, diferenças justamente postuladas para que as idéias possam parecerdeslocadas? Teríamos, de um lado, as idéias e as razões burguesas européias sofregamente adotadaspara nada e, de outro, o favor e o escravismo brasileiros, incompatíveis com eJas. Montar essaoposição é, ;pso facto, separar abstratamente os seus termos, ao modo já indicado, e pertler devista os processos reais de produção ideológica no Brasil.

Para evitar esse risco, é preciso partir de uma teoria que diverge, ponto por ponto, do \esquema atrás expliCitado: colônia e metrópole não recobrem modos de produção essencialmente '? "diferentes, mas são situações particulares que se determinam no processo interno de diferenciação/do sistema capitalista mundial, no movimento imanente de sua constitu'ição e reprodução. Um'a eoutra são desenvolvimentos particulares, partes do sistema capitalista, mas carregam ambas, em seubojo, o conteúdo e~sencial - o lucro - que percorre todas as suas determinações. Assim, aprodução e a circulação de idéias só podem ser concebidas como internacionalmente determinadas,mas com o capitalismo mundiai pensado na forma indicada, sem a dissociação analítica de suaspartes.

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P - Como se daria a relação entre a ideologia do ,favor e o ideário liberal-burguês?

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M.S. - Retomemos o favor. e sua incompatibilidade com o ideário burguês e, em últimainstância, com o capitalismo. Comecemos pelas bases materiais da sociedade brasileira no séculoXIX: as grandes propriedades territoriais, organizadas para a produção mercantil. A escravidão,que nelas congregou pessoal.numeroso, e o caráter de lati1iúndio que as manteve isoladas dascidades, deram-lhes a aparência ,de uma unidade autônoma' de produção e consumo e uniram seusmembros numa estreita comunidade de destino. Em razão de seus fins e da forma que assumiram,as relações estabelecidas nas fazendas de café estiveram marcadas por elementos necessariamentecontraditórios: elas implicaram, a um só tempo, no reconhecimento do outro como pessoa ena sua extrema coisificação.

Desse solo brotou o favor: foi tecido como desdobramento da produção lucrativa, docapitalismo, tal como existiram no Brasil. Fundou as relações entre homens livres, que seconcebiam como iguais, e foi sobre essa igualdade mesma que se ergueu um ,forte prindpio dedominação pessoal implantada através da troca de serviços, e beneHcios é que conduzia, no limite, àdestruição dos predicados humanos do dependente. Nenhuma tradição, apenas costumes frouxos e \...;:.compromissos superficiàis selaram esse sistema de contra-prestações. Isto tornou os vínculos gerados'no latifúndio brasileiro absolutamente diverso de quaisquer outras obrigações pessoais. geradas naligação terra~senhor-dependente. Por exemplo, difere completamente da relação patrimonial, onde oamplo e exclusivo aproveitamento dos dominados como trabalhadores limita tradicionalmente suaexploração, de modo a não comprometer sua disposição de bem servir. Aqui, nada restringiu aarbitrariedade .do mais forte: os vínculos pessoais nasceram do caráter mercantil da produção e a \. '.ele foram subordinadas. O interesse material submetia à sua razão os laços da estima e da afeição, .'atando-os ou destruindo-os.

MARIA SYLVIA DE CARVALHO FRANCO - AS IDÉIAS ESTÃO NO LUGAR 63

A igualdade mesma sobre a qual ·esse sistema de dominação se ergueu, teve suas raízes nosfundamentos econômicos de uma sociedade centrada na produção do lucro. Nela, a aquisição de \

. riqueza como objetivo fundamental, a ausência de privilégios juridicamente estabelecidos, a ausêricia \ 1--de tradição, fizeram com que a situação econômica se ligasse imediatamente à posição social.Considere-se, também que essa sociedade constituiu-se rapidamente a partir ·de uma pobreza ,.rigeneralizada, onde a diferenciação social era rudimentar e onde, mesmo depois de acentuadas asdiversidades. de estilos de vida, manteve-se, entre dominantes e dominados, um tratoaparentemente nivelador. As representações igualitárias eram necessárias para sustentar o sistema dedominação e encobrir as disparidades, articulando-se ao postulado das desigualdades individuais deordem psicológica, intelectual, biológica e moral. Com efeito, é necessária a premissa de umasociedade onde todos são potencialmente iguais mas desigualmente capacitados para empreendersua conquista, a fim de legitimar os desequilíbrios de condição social e a exploração.

Essa igualdade, entranhada na consciência e na prática dos senhores do século XIX, nãoestava distante da liberdade formal dos códigos jurídicos e menos longe ainda de sua justificaçãoideológica. Constituído no mesmo movimento das unidades de produção mercantil, esse conceito deigualdade que alicerçou as práticas do favor não se opunha à ideologia burguesa da igualdadeabstrata: ao contrário, podia absorvê-Ia sem dificuldades, substancialmente iguais que eram ecumprindo as mesmas tarefas práticas.

Na vida urbana, o mesmo pode ser observado: a trama de relações pessoais foi imprescindívelpara a montagem e "racionalização" dos negócios do café. As relações de família e de amizadetransformaram-se em técnicas competitivas e em recursos para garantir o equilrbrio das transaçõescomerciais. As lealdades, as trocas de serviços, a honorabilidade, a confiança, garantiram o controlee o movimento dos capitais no comércio, na produç.ão e nas finanças. O mesmo se passa no pl;;:tnodas instituições, por exemplo, com a burocracia,' que realizou as formas e as teorias do estadoburguês pela mediação do clie'ntelismo, vinculando autoridade oficial e influência pessoal, namontagem eficiente de um instrumento centralizador e autoritário, explorado pela classe dominanteem vista de seus objetivos, identificados com os interesses nacionais.

Nessas breves indicações sobre a gênese e o significado prático do favor, procurei ·mostrarcomo o ideário ·Iiberal burguês em um de seus pilares - a .igualdade formal - não "entra" no {,Brasil, seja lá como for, mas aparece no processo de constituição das relações de mercado, àsquaIs é inerente. O conc.eito de igualdade emergiu no processo de dominação sócio-econômicavinculado ao conceito e ao direito de propriedade e por essa muito forte razão cumpre aqui,como lá fora, sua função prática de encobrir e inverter as coisas. Enfim, a "miséria brasileira"não deve ser procurada no ·empobrecimento de uma cultura importada e que aqui teria perdidoos vínculos com a realidade, mas no modo mesmo como a produção teórica se encontrainternamente ajustada à estrutura social e política do país.

P - Como se relacionariam estas tendências intelectuais e o processo político que vivemos?

M.S. - Uma reflexão sobre o pensamento brasileiro que procura alcançar suas relações com ahistória não escapa de questionar seu alcance político. Isto compreende tanto a tarefa de identificaros supostos sociais do p~nsamento, as idéias transferidas das situações concretas para o textoteórico, quanto o trabalho de apontar as implicações incrustadas nos p'rópriQs procedimentos deconhecer, nà prõpr)a forma como se articula o discurso. Voltando ao início desta exposição,relembro que, de modo geral, as teorias sobre a história brasileira são sustentadas por uma temporalidadeentendida como série causal, estabelecendo-se entre os polos que se articulam no capitalismo mundialuma relação linear c:Jecondição à conseqüência. De modo geral, também, está imp1fcito nelas um conjuntode juízos de valor que tacitamente acentuam como desejáveis os conteúdos "progressistas".

No caso das teorias dualistas mais antigas, isto é flagrante: toda a política a que servirammundialmente foi a de promover a "modernização", destruindo os bolsões de pobreza, Identificpdoscom o atraso, eliminando as resistências às mudanças e promovendo a industrialização. A crença noprogresso, linearmente entendido, perpassa essas teorias, reforçando a idéia paralela de uma'proclamada neutralidade da técnica e da produção científica.

No caso da teoria da dependência, como já se viu, foi mantida a distinção essencial entresociedades hegemônicas e periféricas: o próprio conceito de dependência se funda nessa apreensão

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de fenômenos diversos e se exprime pela relação causal entre eles. Falar, portanto, de capitalismomundial, nesse contexto, pouco altera o que se dizia e fazia sob a inspiração da teoria dualista.Esse novo dualismo v<:lipadecer exatamente dos mesmos prejuízos políticos e práticos já indicados:uma valorização tácita da industrialização, na verdade do capitalismo e de seus conteúdoscivilizatórios, no pressuposto de que traga consigo o progresso das instituições democráticasburguesas. Não raro, nesse esquema, o mal absoluto é colocado nas sociedades hegemônicas, nocapitalismo internacional e as esperanças de redenção são colocadas nas forças progressistas dapolítica, da sociedade e da economia nacion<:lis, na atuação de uma burguesia esclarecida.Desloca-se, assim, o foco da crítica t~órica e política da essência do capitalismo, de suasdeterminações universais presentes nas situações particulares, para estas últimas, vistas discretamente.Como resultado desta nova figura da mesma noção de progresso acima referida, vemosrevalorizados os componentes da cultura'capitalista: aparecem reforçadas as representações abstratasda demQcracia burguesa.,.Assim, em nome do realismo pol(tico se dá um passo atrás na crítica daconsciência social e por 'essa via - com as idéias bem no lugar e ajustadas às oportunidadespoHticas imediatas - se mergulha no retrocesso.

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CULTURA BRASILEIRA, UM INTIMISMO DESLOCADO,À SOMBRA DO PODER?

Carlos Nelson Coutinho

Pergunta - O Brasil, por ser um país colonial, tem na Europa a fonte de suas idéias. Como; se processa a transferência do ideário europeu, e qual a original idade das idéias assim resultantes?

Carlos Nelson - A análise da relação entre a cultura brasileira e a cultura universal passa -como, em geral, todos os problemas sociais - pela análise da gênese econômica. Nossa pré-históriacomo país, como formação econômico-~ocial espec(fica, não está nas tribos indígenas que aquihabitavam antes da chegada de Cabral. Está no processo da acumulação primitiva do" capital, oqual - embora tenha seu ponto central na Europa - é um processo de universalização. O Brasil,assim, surge no quadro da criação de um mercado mundial; fo.mos "programados" para cumprirfunções que se adequavam ao desenvolvimento do capitalismo; e nossa história, em grande parte,resuJta das transformações desse capitalismo, das metamorfoses que ele sofreu, desde a época docapitalismo mercantil, passando pelo industrial, até chegar ao imperialismo. Do ponto de vista"superestrutura I", isso quer dizer que nascemos na época da criação de uma cultura universal.Parece-me errado, por exemplo, dividir a cultu~a brasileira numa fase "colonial'" e em outra"nacional". O que há - o que sempre houve - foi um modo "colonbl" e outro "nacional" derelacionar-se com a cultura universal. No interior da formação econômico·social brasileira, foramsurgindo contra'dições, foram se delineando classes antagônicas e, conseqüentemente, formulaçõesideológicas diferentes. Moliere disse certa feita: "tiro vantagem de onde posso". Algo similar .ocorreu com as classes sociais brasileiras: a depender de sua situação na sociedade, de seus.projetos, etc., -cada uma delas assimilava (de modo mais ou menos "originai") a ideologia"universal" que lhe servia, que dava forma a seus interesses concretos. Por exemplo: quandoDomingos Guedes Cabral, em meados do século passado, defendia o materialismo mecanicista eencontrava como seus principais opositores os representantes de um clericalismo inspirado nastradições da Contra-Reforma, acontecia uma luta ideológica profundamente brasileira, não o simplesreflexo "alienado" de polêmicas culturais européias. Esse conflito entre o materialismo "vulgar" e oclericalismo era expressão de alternativas -que tinham suas raízes na própria sociedade brasileira.Em suma: quando o pensamento brasileiro "importa" uma ideologia européia, isso é prova de queuma determinada classe ou camada social de nosso país encontrou nessa ideologia a expressão deseus próprios interesses brasileiros de classe. Quando surgiu no Brasil a classe operária, por exemplo,não foi nos mitos bororos ou nas religiões africanas que ela foi encontrar sua expressão teóricaadequada.

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66 CADERNOS OE DEBATE 1 - HISTORIA DO BRASIL

Não me parece' que esse processo de assimilação resulte, em nosso caso, numa maior"autonomia" das ideologias em relação às classes que são suas "portadoras". Essa maior ou menorautonomia é sempre um problema concreto, que pode ser sobredeterminado (mas não determinadodiretamente) pela situação de dependência. Vejamos o caso do positivismo. Parece claro que, naEuropa (em particular na França), o positivismo foi uma ideologia da época da estabilização docapitalismo, foi uma ideologia - digamos - reacionária. No Brasil, em dado momento, opositivismo pareceu exercer uma ação progressista, foi favorável à República, etc. Mas já LimaBarreto denunciava, no início do século, o caráter reacionário do positivismo também entre nós:ele contribuiu para emprestar ao pensamento republicano uma feição autoritária, "bonapartista",ditatorial, que só muito relativamente pode ser considerada "progressista".

P - Em O significado de Uma Barreto na Literatura Brasileira afirma~se que o caminhobrasileiro é a "via prussiana" para o capitalismo, cuja característica principal seria a conciliação doprogresso com o atraso. Pode explicitar mais?

C.N. - A idéia da "via prussiana" é uma idéia simples: no Brasil tem havido progresso(chegamos a crescer 10% ao ano!) mas esse progresso jamais significou uma ruptura efetiva com asdeformações e misérias do nosso passado. Quem proclamou nossa Independência foi um príncipeportuguês; a classe dominante do Império foi a mesma da época colonial; quem terminoucapitalizando os resultados da implantação da República foi a velha oligarquia agrária; 1930 nãopassou de uma "rearrumação" do velho bloco de poder, etc. Isso não quer· dizer que não houvemudança: mas a mudança sempre foi realizada de tal modo que as velhas classes dominantes e asvelhas formações econômico-sociais não foram destruídas, mas se "fundiram" com os elementosdas novas classes e dos novos modos de produção. As transformações ocorriam sempre "peloalto", no quadro de uma conciliação ou "assimilação" de classes." Esse caminho "prussiano" tevedois resultados principais: 1) as classes efetivamente populares, interessadas numa transformaçãoradical, tiveram um peso bastante escasso na determinação dos eventos que marcaram nossahistória (e, conseqüentemente, um papel reduzido na criação de uma cultura nacional-popular);2) o local encontrado para a "conciliação" das classes foi sempre o Estado; isso teve comoconseqüência uma hipertrofia do que o pensador italiano Antonio Gramsci chamou de "sociedadepolítica'" em detrimento da "sociedade civil". A hipertrofia do Estado pode dar lugar a váriosfenômenos, desde o Estado cartorialista, .passando pelo bonapartismo, pelo paternalismo populista,até o fascismo. Ou seja: o Estado "prussiano" pode variar e efetivamente tem variado (uns sãomais "progressistas", outros mais "restauradores", etc.); mas todas as variantes têm umacaracter(stica fundamental: "são anti democráticas, na medida em que excluem o povo - entendidoaqui num sentido geral, no sentido do "bloco histórico" das classes subalternas - de qualquerparticipação determinante ná for~ação da vida nacionaL Isso tem enormes conseqüências nahistória da- cultura e da intelectualidade brasileiras.

P - A ideologia num país inserido no capitalismo liberal, mas que mantém o braço escravo,seria a ideologia do favor. Este seria o principal fator para a afirmação de que o intelectualbrasileiro se situa num "intimismo à sombra do poder"?

C.N. - Aquilo que Roberto Schwarz chamou de "ideologia do favor" me parece inserir·se noquadro do modelo prussiano: o "favor" é um dos modos pelo qual a classe dominante assimilaelementos das camadas ou classes ·in.termediárias e, desse modo, perpetua sua dominação semnecessidade de alterar as estruturas econômicas básicas. Em dado momento, o "favor" se.institucionalizou no Brasil: .foi na época chamado Estado cartorial, quando a oligarquiaagrário-mercantil, em meados do século passado, assimilou uma classe média emergente, que chegoumesmo a por em xeque ó seu domínio (basta pensar nos movimentos revolucionários da época daRegência), através do desenvolvimento da burocracia estatal. E ceáas formas de "favor" continuamaté hoje; basta pensar no fenômeno da (mal) chamada "tecnocracia", nos famosos 5% que sebeneficiam com a criação do mercado de "bens duráveis", etc. Quanto ao "intimismo à sombra dopoder", é claro que o "favor" tem algo a ver com isso, já que nossos intelectuais - na medida emque são oriundos das classes médias - são objetos privilegiados daquele processo de "assimilação"

CARLOS NELSON COUTINHO - CULTURA BRASILEIRA: UM INTfMISMO DESLOCADO, À SOMBRA DO PODER? 61

pela classe dominante. Isso impede que eles se tornam "intelectuais orgânicos" àas classespopulares.

P - Pode-se afirmar que a obra de Machado de Assis seria a melhor expressão da ideologiado favor, enquanto a obra de Lima Barreto seria sobretudo a sua crítica?

C.N. - Não me agrada a contraposição entre Machado de Assis e Lima Barreto. É certo queo próprio Lima não gostava de Machado, que considerava Machado um escritor "frio", desvinculadoda "alma popular", etc. Mas creio que já Astrojíldo Pereira chamou a atenção para o aspectoobjetivamente progressista da obra de Machado, que - enquanto escritor (não enquanto fundadorda Academia ou coisas assim) - foi um crítico implacável de nossas misérias e de nosso"prussianismo". Mfls, Lima pertence a uma etapa posterior; ele é contemporâneo do ingresso doBrasil numa nova .fase, na fase em que começa a nascer um "bloco histórico" popular, que passa apôr em questão (pela sua simples existência) todo o 'modelo prussiano seguido pelo Brasil atéentão. Lima apostou nesse bloco; escreveu sua obra literária e jornalística a partir do ponto devista alternativo que ele encarnava objetivamente. O fato de que tal bloco tenha continuadomarginalizado, que o caminho prussiano tenha continuado a ser dominante nas transformaçõessociais ocorridas no Brasil nos últimos cinqüenta anos, explica o mal-estar que grande parte dacrítica "bem-pensante" experimenta até hoje diante da obra de Lima. Mas, ao mesmo tempo, éporque aquele bloco continua a ser - ou melhor, agora é ainda mais - a concreta alternativa aocaminho prussiano, que Lima conserva toda sua atualidade. Lima Barreto não é mal estudadoapenas enquanto ficcionista (quantos reconhecem que, ao lado de Machado e de Graciliano, ele énosso maior romancista?); também não me parece. ainda corretamente esclarecido o seu papel nahistória da ideologia brasileira, o fato de ter sido ele ti primeiro a tentar materializar no Brasilaquilo que Gramsci chamou de ideologia nacional-popular. E veja bem: Lima não era defensor deum nacionalismo cultural estreito. Seus modelos literários eram Balzac, Dostoiewski, Gorki; e, empolítica, ele se considerava um "maximalista". Ou seja: ele sabia que na cultura progressistauniversal estão as raízes mais válidas de uma autêntica ideologia nacional brasileira.

P - Até que ponto ainda estão presentes hoje estas "raízes" do pensamento brasileiro doperíodo colonial e do Império?

C.N. - A ideologia de 1964 (mas sobretudo a de 1968) é de certo modo uma antiideologia:trata-se de demonstrar que a eficiência econômica e a segurança são resultados necessários de umasituação na qual as ideologias desaparecem. A coisa parece se colocar assim: quanto menosideologia, mais progresso econômico e maior segurança e bem-estar. É claro que também isso éuma ideologia: todos conhecem que as teses neopositivistas sobre o "fim da era ideológica", sobrea necessidade de fazer "ciência'" e não "metaf{sica", etc., são claras manifestações ideológicas (ede ideologia entendida em seu sentido mais pejorativo). Mas, o fato é que, a partir de 1968, a"situação" favoreceu essa Idéia do '''fim das ideol.ogias": houve uma tendência a "neutralizar"a cultura brasileira, a fazer com que fosse considerado anacrônico ocupar-se das questões ditas"ideológicas". Tudo isso reforçou a velha tendência do intelectual brasileiro a situar-se "nointimismo à sombra do poder": Mas a coisa, agora, encontrou resistências. Já começam a se formarno Brasil os germes de uma sociedade ci'{il articulada, pluralista; já existem as condições objetivaspara inverter o modelo prussiano e tentar pôr em prática uma alternativa efetivamente democrática.Eu creio que a cultura tem um grande papel a desempenhar nesse processo.