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CADERNOS IPP CADERNOS IPP CADERNOS IPP CADERNOS IPP CADERNOS IPPUR UR UR UR UR Publicação semestral do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro O CADERNOS IPP CADERNOS IPP CADERNOS IPP CADERNOS IPP CADERNOS IPPUR UR UR UR UR é um periódico semestral, editado desde 1986 pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regio- nal da UFRJ. Dirige-se ao público acadêmico interdisciplinar formado por professores, pesquisadores e estudantes interessados na compreensão dos objetos, escalas, atores e práticas da intervenção pública nas dimen- sões espaciais, territoriais e ambientais do desenvolvimento econômico-social. É dirigi- do por um Conselho Editorial composto por professores do IPPUR e tem como instância de consultação um Conselho Científico inte- grado por destacadas personalidades da pes- quisa urbana e regional do Brasil. Acolhe e seleciona artigos escritos por membros da comunidade científica em geral, baseando- se em pareceres solicitados a dois consulto- res, um deles obrigatoriamente externo ao corpo docente do IPPUR. Os artigos assina- dos são de responsabilidade dos autores, não expressando necessariamente a opinião do corpo de professores do IPPUR. Editor Editor Editor Editor Editor Henri Acselrad Conselho Editorial Conselho Editorial Conselho Editorial Conselho Editorial Conselho Editorial Ana Clara Torres Ribeiro Fania Fridman Henri Acselrad Hermes Magalhães Tavares Pedro Abramo Rosélia Perissé Piquet Conselho Científico Conselho Científico Conselho Científico Conselho Científico Conselho Científico Aldo Paviani (UNB) Bertha Becker (UFRJ) Celso Lamparelli (USP) Inaiá Carvalho (UFBA) Leonardo Guimarães (FIJN) Lícia do Prado Valladares (IUPERJ) Maria Brandão (UFBA) Maurício de Almeida Abreu (UFRJ) Milton Santos (USP) () Neide Patarra (UNICAMP) Roberto Smith (UFCE) Tânia Bacelar de Araújo (UFPE) Wrana Maria Panizzi (UFRGS) IPPUR / UFRJ IPPUR / UFRJ IPPUR / UFRJ IPPUR / UFRJ IPPUR / UFRJ Prédio da Reitoria, Sala 543 Cidade Universitária / Ilha do Fundão 21941-590 Rio de Janeiro RJ Tel.: (21) 2598-1676 Fax: (21) 2598-1923 E-mail: [email protected] http:\\www.ippur.ufrj.br

Cadernos IPPUR 23

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Ano XV, n1, Jan-jul 2001

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CADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPURURURURURPublicação semestral do Instituto de Pesquisa e PlanejamentoUrbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O CADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPURURURURUR é um periódicosemestral, editado desde 1986 pelo Institutode Pesquisa e Planejamento Urbano e Regio-nal da UFRJ. Dirige-se ao público acadêmicointerdisciplinar formado por professores,pesquisadores e estudantes interessados nacompreensão dos objetos, escalas, atores epráticas da intervenção pública nas dimen-sões espaciais, territoriais e ambientais dodesenvolvimento econômico-social. É dirigi-do por um Conselho Editorial composto porprofessores do IPPUR e tem como instânciade consultação um Conselho Científico inte-grado por destacadas personalidades da pes-quisa urbana e regional do Brasil. Acolhe eseleciona artigos escritos por membros dacomunidade científica em geral, baseando-se em pareceres solicitados a dois consulto-res, um deles obrigatoriamente externo aocorpo docente do IPPUR. Os artigos assina-dos são de responsabilidade dos autores, nãoexpressando necessariamente a opinião docorpo de professores do IPPUR.

Edi torEdi torEdi torEdi torEdi torHenri Acselrad

Conselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialAna Clara Torres RibeiroFania FridmanHenri AcselradHermes Magalhães TavaresPedro AbramoRosélia Perissé Piquet

Conselho Científ icoConselho Científ icoConselho Científ icoConselho Científ icoConselho Científ icoAldo Paviani (UNB)Bertha Becker (UFRJ)Celso Lamparelli (USP)Inaiá Carvalho (UFBA)Leonardo Guimarães (FIJN)Lícia do Prado Valladares (IUPERJ)Maria Brandão (UFBA)Maurício de Almeida Abreu (UFRJ)Milton Santos (USP) ()Neide Patarra (UNICAMP)Roberto Smith (UFCE)Tânia Bacelar de Araújo (UFPE)Wrana Maria Panizzi (UFRGS)

IPPUR / UFRJIPPUR / UFRJIPPUR / UFRJIPPUR / UFRJIPPUR / UFRJPrédio da Reitoria, Sala 543

Cidade Universitária / Ilha do Fundão21941-590 Rio de Janeiro RJ

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E-mail: [email protected]:\\www.ippur.ufrj.br

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CADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPURURURURURAno XAno XAno XAno XAno XVVVVV,,,,, NNNNNooooo 11111JanJanJanJanJan-----JulJulJulJulJul 20012001200120012001

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Cadernos IPPUR/UFRJ/Instituto de Pesquisa e Planeja-mento Urbano e Regional da Universidade Federaldo Rio de Janeiro. – ano 1, n.1 (jan./abr. 1986) –Rio de Janeiro : UFRJ/IPPUR, 1986 –

Irregular.Continuação de: Cadernos PUR/UFRJISSN 0103-1988

1. Planejamento urbano – Periódicos. 2. Planejamen-to regional – Periódicos. I. Universidade Federal do Riode Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbanoe Regional.

Indexado na Library of Congress (E.U.A.)e no Índice de Ciências Sociais do IUPERJ.

Apoio

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EDITORIALEDITORIALEDITORIALEDITORIALEDITORIAL

Em 31 de maio de 2001, Celso Daniel, prefeito de Santo André, dirigiu-se aosplanejadores e pesquisadores da questão urbana e regional por ocasião do IX EncontroNacional da ANPUR, que realizava-se então no Rio de Janeiro. Eis o essencial de suamensagem:

Os governos comprometidos com a construção democrática têm por desafiofazer convergir a democracia de procedimentos e a democracia de conteúdo. Noque diz respeito aos procedimentos, cabe assegurar a permanente participaçãocidadã, o debate de longo prazo sobre o futuro da cidade e a modernizaçãoadministrativa destinada a fazer a máquina pública funcionar. Quanto à demo-cracia substantiva, de conteúdo, esta implica combinar o desenvolvimento localinclusivo e o fortalecimento do direito à cidade. O desenvolvimento inclusivo éaquele que pressupõe a dinamização da economia por suas qualidades e nãopor intermédio da subtração de direitos. Deve-se assim dar combate à guerrafiscal, promovendo o empreendedorismo popular, a Ciência e a Tecnologia,bem como assegurar a proteção social e ambiental e combater a violência urbana.Programas integrados de inclusão social não devem reduzir-se a práticas com-pensatórias: devem pautar-se na garantia de direitos, através da promoção daregularização fundiária, da saúde da família, do microcrédito, de incubadorade cooperativas, de programas de renda mínima e apoio à educação e à cultura.É na conjunção entre procedimentos democráticos e democratização substantivaque poderemos proceder à revalorização da política, através de uma ética docompartilhamento do poder que é própria à esfera pública democrática.

Após repartir este saber com seus pares, Celso Daniel retirou-se afirmando ter decumprir compromissos de ensino, dos quais, mesmo enquanto prefeito, nunca sehavia separado. Assassinado em janeiro de 2002 pelos interesses que contrariou,Celso Daniel deixou por sua passagem entre nós as marcas do espírito crítico e abertoao diálogo, como só os verdadeiros pedagogos da democracia sabem cultivar.

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CADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPCADERNOS IPPURURURURUR

SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOAno XAno XAno XAno XAno XVVVVV,,,,, NNNNNooooo 11111JanJanJanJanJan----- JulJulJulJulJul 20012001200120012001

AAAAAtualidade Analíticatualidade Analíticatualidade Analíticatualidade Analíticatualidade Analítica, , , , , 77777Edésio FEdésio FEdésio FEdésio FEdésio Fererererernandes, nandes, nandes, nandes, nandes, 99999Perspectivas para a renovação daspolíticas de legalização de favelas no Brasil

ArArArArArtigostigostigostigostigos,,,,, 3939393939Emilio Duhau, Emilio Duhau, Emilio Duhau, Emilio Duhau, Emilio Duhau, 4141414141Las metrópolis latinoamericanas en el sigloXXI: de la modernidad inconclusa a lacrisis del espacio públicoFFFFFrrrrrederico Guilherederico Guilherederico Guilherederico Guilherederico Guilherme Bandeira deme Bandeira deme Bandeira deme Bandeira deme Bandeira deAraujoAraujoAraujoAraujoAraujo,,,,, 69 69 69 69 69Tempo-espaço-ambiente: para uma novaepistemeLuís Octávio da SilvaLuís Octávio da SilvaLuís Octávio da SilvaLuís Octávio da SilvaLuís Octávio da Silva,,,,, 97 97 97 97 97O surgimento da habitação social e aexperiência da Viena VermelhaCarlos Antônio BrandãoCarlos Antônio BrandãoCarlos Antônio BrandãoCarlos Antônio BrandãoCarlos Antônio Brandão,,,,, 119 119 119 119 119A espacialidade da riqueza: notas teóricassobre as principais determinações dadimensão espacial do desenvolvimentocapitalista

PPPPPesquisaesquisaesquisaesquisaesquisa, , , , , 135135135135135Cristovão FCristovão FCristovão FCristovão FCristovão Fererererernandes Duarnandes Duarnandes Duarnandes Duarnandes Duarte, te, te, te, te, 137137137137137Espaços de convergência e utopia: umdiálogo entre as obras de Milton Santos ede Henri Lefebvre

ResenhasResenhasResenhasResenhasResenhas, , , , , 147147147147147Charles JencksCharles JencksCharles JencksCharles JencksCharles Jencks, , , , , 149149149149149Le Corbusier and the Continual Revolution inArchitecture(por Roberto Segre)Luke Cole & Sheila FLuke Cole & Sheila FLuke Cole & Sheila FLuke Cole & Sheila FLuke Cole & Sheila Fosterosterosterosteroster, , , , , 151151151151151From the ground up: environmental racism andthe rise of the environmental justice movement(por Cecília Campello do Amaral Mello)

SECRETÁRIOSECRETÁRIOSECRETÁRIOSECRETÁRIOSECRETÁRIO

João Carlos de Paula Freire

PROJETOPROJETOPROJETOPROJETOPROJETO GRÁFICOGRÁFICOGRÁFICOGRÁFICOGRÁFICO EEEEE REVISÃOREVISÃOREVISÃOREVISÃOREVISÃO

Claudio Cesar Santoro

CAPCAPCAPCAPCAPAAAAA

André DorigoLícia Rubinstein

ILILILILILUSTRAÇÃOUSTRAÇÃOUSTRAÇÃOUSTRAÇÃOUSTRAÇÃO DADADADADA CAPCAPCAPCAPCAPAAAAA

Lebeau, R. Les grands types destructures agraires dans le monde.2. ed. Paris: Masson et Cie. Éditeurs,1972. p. 46; p. 57.

COLABORARAMCOLABORARAMCOLABORARAMCOLABORARAMCOLABORARAM NESTENESTENESTENESTENESTE NÚMERONÚMERONÚMERONÚMERONÚMERO

Ana Fani Alessandri CarlosFernanda FurtadoMargareth da Silva PereiraMarcos Pedlowski

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AAAAAtualidade Analíticatualidade Analíticatualidade Analíticatualidade Analíticatualidade Analítica

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PPPPPerspectivas para a rerspectivas para a rerspectivas para a rerspectivas para a rerspectivas para a renovação dasenovação dasenovação dasenovação dasenovação daspolíticas de legalização de favelaspolíticas de legalização de favelaspolíticas de legalização de favelaspolíticas de legalização de favelaspolíticas de legalização de favelasno Brasilno Brasilno Brasilno Brasilno Brasil

Edésio Fernandes

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XV, No 1, 2001, p. 9-38

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Este artigo se propõe a levantar algunspontos importantes para uma reflexãocrítica sobre as principais políticas de le-galização de favelas adotadas no Brasil.Algumas referências ao quadro interna-cional serão feitas, inclusive quanto àsidéias influentes de Hernando de Soto,no intuito de oferecer elementos para arenovação do contexto jurídico-políticoem que tem ocorrido a discussão da ques-tão, sobretudo à luz dos recentes dispo-sitivos do Estatuto da Cidade.

A proliferação de formas de ilegali-dade nas cidades é uma das principaisconseqüências do processo de exclusãosocial e segregação espacial que tem ca-racterizado o crescimento urbano inten-sivo nos países em desenvolvimento como

o Brasil. Um número cada vez maior depessoas tem sido levado a descumprir alei para ter um lugar nas cidades, viven-do sem segurança jurídica da posse emcondições precárias ou mesmo insalubrese perigosas, geralmente em áreas perifé-ricas ou em áreas centrais desprovidasde infra-estrutura urbana adequada. Di-versos dados de fontes distintas têm re-velado que, se consideradas tais formasde acesso ao solo urbano e à produçãoda moradia, entre 40% e 70% da popu-lação urbana nas grandes cidades dospaíses em desenvolvimento está vivendoilegalmente, índices que chegam a 80%em alguns casos. No Brasil, dados re-centes dos municípios de São Paulo e doRio de Janeiro têm evidenciado que pelomenos 50% da população desses muni-cípios vive ilegalmente.

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nar os altos custos da terra urbana e porreservar as áreas nobres e providas deinfra-estrutura para o mercado imobiliáriodestinado às classes médias e altas, igno-rando assim as necessidades dos gruposmenos favorecidos. 3 Tal processo tem sidoagravado pela falta de políticas urbanís-ticas e fiscais efetivas de combate à es-peculação imobiliária e de captura dasmais-valias produzidas pela ação pública.

Assim, as possibilidades oferecidaspelo quadro jurídico em vigor para a for-mulação de políticas de regularizaçãofundiária precisam ser mais bem com-preendidas, em especial pelos governosmunicipais comprometidos com propos-tas de democratização das formas deacesso ao solo urbano e à moradia. Darrespostas adequadas aos problemas com-plexos decorrentes da ilegalidade urbanaé difícil, e nem sempre soluções particula-res podem ser repetidas em outros casos.Em última análise, um programa de regu-larização bem-sucedido depende de umaação governamental sistemática e requertanto investimentos de vulto quanto a pro-moção de reformas jurídicas significati-vas. Entretanto, devido à enorme pressãopara que respostas sejam encontradaspara o fenômeno crescente da ilegalidade,as agências públicas têm-se concentradomais na cura do que na prevenção doproblema, sobretudo no plano municipal.

É preciso salientar que os programasde regularização têm um caráter essen-cialmente curativo e precisam ser com-binados com investimentos públicos e

políticas sociais e urbanísticas que geremopções adequadas e acessíveis de mora-dia social para os grupos mais pobres.Os governos locais têm de conceber ur-gentemente mecanismos que se prestempara romper com o processo cíclico deprodução da ilegalidade urbana, princi-palmente por meio da formulação de sis-temas mais eficientes de provisão deterras e moradias nas áreas centrais dascidades. Tais políticas sociais vão alémdos limites exclusivos da ação dos gover-nos municipais e requerem uma redefini-ção das relações intergovernamentais,inclusive de forma a considerar a dimen-são metropolitana inerente ao processode desenvolvimento urbano. Esse processotambém requer a formação de parceriasentre os setores estatal, privado, comu-nitário e voluntário, dentro de um qua-dro político-jurídico claramente definido.A necessidade de efetiva participaçãopopular no processo é de crucial impor-tância para que essas políticas sejam le-gitimadas e bem-sucedidas.

Mas, a legitimidade dos programasde regularização dos assentamentos in-formais existentes é inegável e pode serclaramente justificada seja por razõespragmáticas seja por envolver direitos fun-damentais. De modo geral, no Brasil osprogramas de regularização de favelastêm sido mais sistemáticos e consistentesdo que os de regularização de loteamen-tos, refletindo a maior mobilização dosmoradores em favelas, o que talvez possaser explicado por sua condição jurídicamais precária e sua maior vulnerabilidadepolítica e socioambiental.

3 Esse ponto foi demonstrado por Rolnik (1997) e Maricato (1996).

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uso pelo proprietário original, não exigin-do o pagamento de indenização financeirapelo ocupante ou pelo Poder Público.Entretanto, a caracterização do direito deusucapião tradicional é extremamentedifícil, porque os Códigos dão aos pro-prietários de terras um leque de instru-mentos legais que permitem questionar,em juízo, a ocupação da terra, e as inva-sões assim deixam de ser “pacíficas”. Nocaso das favelas, sua aplicação é quaseimpossível, porque a dinâmica, a alta mo-bilidade e a natureza coletiva do fenô-meno da favelização não se conformamaos requerimentos técnicos e individua-listas da legislação civil. Além disso, odireito de usucapião não pode absoluta-mente ser aplicado aos casos de inva-sões de terras públicas, portanto nãopode ser reivindicado por cerca de 50%dos favelados, que ocupam terras públi-cas nas várias cidades brasileiras.

O fato é que, antes da promulgaçãoda Constituição de 1988, ao longo doprocesso de urbanização, o Poder Público,em todas as esferas governamentais,tinha poucas condições jurídico-políticasde controlar os processos gerais de uso,de ocupação e de parcelamento do solourbano, fosse no sentido de impor res-trições aos direitos de propriedade ou,menos ainda, no sentido de materializara noção da função social da propriedadeintroduzida pela Constituição Federal de1934. Expressando a ideologia individua-lista do Código Civil, todas as Constitui-ções anteriores à de 1988 estabeleceramque somente uma legislação federal po-deria regular as relações de propriedade,já que essas teriam uma natureza civil –e não urbana ou social. Na falta dessa

lei federal, a intervenção do Poder Públicono controle do processo de desenvolvi-mento urbano sempre acarretou contro-vérsias jurídicas.

Tal limitação se fez sentir ainda maisno caso das favelas, em que qualqueriniciativa estatal mais ousada tinha deenfrentar a resistência do Poder Judiciá-rio, essencialmente conservador. É ver-dade que, desde meados da década de1930, o conceito tradicional dos direitosde propriedade tem sido cada vez maisdesafiado por diversas leis urbanísticas emesmo algumas decisões judiciais que,no seu conjunto, tentam materializar oprincípio constitucional da função socialda propriedade. Entretanto, embora vá-rias de tais decisões judiciais progressis-tas tenham reconhecido e ampliado osdireitos de inquilinos e posseiros em situa-ção irregular, antes da promulgação docapítulo constitucional elas não incluíamos favelados, já que, na perspectiva le-galista, constituíam meros invasores quenão tinham quaisquer títulos ou contra-tos formais.

A fórmula jurídica daA fórmula jurídica daA fórmula jurídica daA fórmula jurídica daA fórmula jurídica daregularização de favelasregularização de favelasregularização de favelasregularização de favelasregularização de favelas

Dada essa ordem jurídica proibitiva, foisomente no contexto contraditório daabertura política da década de 1980 queos primeiros programas de regularizaçãode favelas foram formulados em BeloHorizonte e em Recife, tendo como prin-cipal base jurídica os preceitos da LeiFederal n° 6.766, de 1979, que regula oparcelamento do solo urbano em todo opaís. Essa importante lei criou o conceito

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a legislação específica das favelas foramde imediato objeto de críticas jurídicascontundentes, que se traduziram em di-versas decisões judiciais conservadorascom base no argumento de que, confor-me mencionado anteriormente, a legisla-ção civil e constitucional em vigor nãoadmitia uma intervenção estatal tão ousa-da no campo dos direitos de propriedade,sobretudo através de leis municipais.

A Constituição de 1988A Constituição de 1988A Constituição de 1988A Constituição de 1988A Constituição de 1988

Foi somente por meio da Constituição Fe-deral de 1988 que os preceitos jurídicosgerais sobre política urbana e direitos depropriedade foram alterados e considera-velmente aprimorados (Fernandes, 1995,1997, 1998; Fernandes & Rolnik, 1998).Entretanto, até a recente aprovação doEstatuto da Cidade, diversos juristasainda defendiam a tese de que a aplica-ção adequada dos preceitos constitucio-nais sobre política urbana introduzidosem 1988 e, por conseguinte, a utilizaçãode seu potencial – assim como a consolida-ção do novo paradigma sobre a questãodos direitos de propriedade privada – aindadependiam de regulamentação por leifederal.

As políticas públicas de regularizaçãode favelas no período após a promulga-ção da Constituição de 1988 foram ba-seadas no argumento de que, embora nãohouvesse no texto original da Constitui-ção de 1988 nenhuma menção específi-ca à questão das favelas, a garantia demoradia fora considerada uma matéria

da competência concorrente da UniãoFederal, dos estados e dos municípios,que têm todos de “promover programasde construção de moradias e a melhoriadas condições habitacionais e de sanea-mento básico”. Também é sua obrigaçãoconstitucional “combater as causas dapobreza e os fatores de marginalização,promovendo a integração social dos se-tores desfavorecidos” (Constituição Fe-deral de 1988, art. 23, IX e X). Com aEmenda Constitucional n° 26, de 14/02/2000, o direito à moradia foi incluídoentre os direitos sociais originalmente re-conhecidos no art. 6°.

Outra inovação importante foi aaprovação do direito de usucapião espe-cial urbano para os que tivessem ocupadoáreas privadas – nunca públicas – meno-res do que 250 m2 por cinco anos consecu-tivos. Tal preceito progressista foi propostotendo em vista exatamente a situação dosfavelados e teve por objetivo não sótornar as políticas de regularização maisviáveis, mas reconhecer que – e esse éum dos princípios básicos do direito – otempo cria direitos. Entretanto, até aaprovação do Estatuto da Cidade, nafalta de regulamentação por lei federal,também sobre essa matéria havia contro-vérsias entre juristas acerca da possi-bilidade de sua plena aplicação. Contudo,a aprovação da nova lei federal pôs termoa tais controvérsias, uma vez que ratifi-cou o paradigma da função social da pro-priedade e da cidade, dando prioridadeao governo municipal para controlar oprocesso de desenvolvimento e uso dosolo.

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As principais experiências de regula-rização de favelas já foram objeto de umaimportante análise comparativa que mere-ce destaque especial. 7 Entretanto, éinegável que avaliações sistemáticas e emprofundidade de cada uma das diversasexperiências precisam ser feitas, como asrealizadas no Recife 8, únicas até agora.Assim, com base nos estudos existentes,pode-se dizer com certeza que há comfreqüência um descompasso significativoentre os objetivos dos programas de re-gularização e as políticas e instrumentosadotados. Com todas as limitações, essesprogramas têm sido mais bem-sucedidosem relação às políticas de urbanizaçãodo que em relação às políticas de legaliza-ção, e ao longo dos anos de investimentospúblicos muitas das favelas beneficiadasjá estão mais bem equipadas com infra-estrutura urbana e serviços públicos doque os loteamentos ilegais das periferiasdas cidades.

Problemas da legalização deProblemas da legalização deProblemas da legalização deProblemas da legalização deProblemas da legalização defavelas antes do Estatuto dafavelas antes do Estatuto dafavelas antes do Estatuto dafavelas antes do Estatuto dafavelas antes do Estatuto daCidadeCidadeCidadeCidadeCidade

Os programas de legalização têm variadofundamentalmente, sobretudo quanto àdefinição – de ordem política – da nature-za do direito dos ocupantes das favelasde serem reconhecidos. Seguindo a expe-riência pioneira de Belo Horizonte, outrosmunicípios têm favorecido a transferênciade títulos individuais de propriedade plenaem todas as áreas de favelas, independen-

temente do regime original – público ouprivado – de propriedade das áreas. JáRecife, Porto Alegre e outros municípiostêm encampado a noção de que o papele a obrigação do Poder Público municipalé garantir o direito social de moradia, quenão se reduz de forma alguma ao direitode propriedade individual. Assim, nas fa-velas que ocupam áreas de propriedadeparticular, sempre que possível o instru-mento constitucional do usucapião urba-no especial deve ser adotado; nas queocupam áreas públicas ou nos casos emque, não cabendo o usucapião, é necessá-rio proceder à desapropriação das áreas,por princípio não deve haver a privatiza-ção das áreas por meio da venda ou dadoação posterior dos lotes, mas sim pelaoutorga de títulos de concessão de direitoreal de uso aos ocupantes.

A utilização do instituto jurídico daconcessão do direito real de uso tem ge-rado controvérsias. Ainda que tenha afi-nidade com outras formas de direitos reaisprevistas no Código Civil, como a enfi-teuse, a concessão de direito real de usofoi efetivamente criada pelo Decreto-Lein° 271/67, que nunca foi devidamenteregulamentado, mas cujos dispositivos,segundo vários juristas, não seriam auto-aplicáveis. De qualquer modo, desde ocomeço da década de 1980, a partir doexemplo de Recife, e principalmente a par-tir da década de 1990, diversos municí-pios brasileiros – como Diadema, SantoAndré e Salvador – têm aplicado tal ins-trumento, com base no mesmo vago § 1º

7 Para uma ampla análise comparativa das principais experiências brasileiras, ver o trabalhofundamental de Betânia de Moraes Alfonsin (1997; 2001).

8 Ver FASE et al (1999; 2000).

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Entre direito e ideologiaEntre direito e ideologiaEntre direito e ideologiaEntre direito e ideologiaEntre direito e ideologia

As possibilidades jurídicas – e há de fatona ordem jurídica brasileira opções apre-sentadas aos planejadores urbanos – sãoinseparáveis dessas decisões políticas. Averdade é que, na falta de uma reflexãocrítica, as decisões quanto às estratégiaspolítico-jurídicas a serem adotadas naspolíticas de legalização têm sido justifica-das por uma combinação de argumentosreligiosos, humanitários, sociopolíticos eambientais nem sempre explicitados.Outro problema grave decorre da confusãoideológica daqueles que, não compreen-dendo que os programas de regularizaçãoem última análise visam reconhecer direi-tos de moradia, acreditam que tais inicia-tivas estariam indireta ou gradualmentepromovendo reformas fundiárias estru-turais.

Da mesma forma, argumentos deordem ambiental são cada vez mais uti-lizados para justificar a oposição – freqüen-temente de cunho ideológico – às políticassociais de regularização fundiária. Em quepese o papel fundamental que a instituiçãotem tido na construção de uma ordem pú-blica no Brasil, o próprio Ministério Público

quase sempre opõe valores ambientais aoutros valores sociais – como o direito so-cial, constitucional, de moradia –, mesmoem áreas urbanas (públicas e privadas)onde os assentamentos humanos já foramconsolidados ao longo de várias décadasde ocupação informal. 11 A medida dessaresistência ideológica pode ser percebidapela leitura inversa dos termos de umadecisão judicial recente: em uma açãomovida contra pessoas de condição eco-nômica privilegiada que construíram ver-dadeiras mansões em um “condomíniofechado” em uma área pública, o juiz in-deferiu o pedido de demolição das casascom o argumento de que, apesar da ilega-lidade manifesta da ocupação, ele nãopodia ignorar que dinheiro fora investidonas construções e empregos foram ge-rados. É de se perguntar se o mesmo ar-gumento seria aceito no caso de açõespropondo a remoção de favelados...

Legalização e mercado deLegalização e mercado deLegalização e mercado deLegalização e mercado deLegalização e mercado deterrasterrasterrasterrasterras

Nesse contexto, uma questão fundamen-tal a ser enfrentada refere-se aos impac-tos socioeconômicos que os programas

11 Muitos dos – poucos – juristas que têm-se ocupado da questão urbana ainda o fazem pelaperspectiva restritiva do Direito Administrativo. Enquanto as cidades e seus problemas crescemassustadoramente, e a despeito do fato de que milhares de leis urbanísticas têm sido aprovadasem todos os níveis de governo desde a década de 1930, mas sobretudo ao longo das três últimasdécadas, tais juristas ainda perdem tempo em discussões estéreis acerca da autonomia do DireitoUrbanístico. De modo geral, o Direito Urbanístico é aceito apenas como um sub-ramo do DireitoAdministrativo ou, em alguns casos, do Direito Ambiental. Como venho insistindo, acredito queessa resistência é de natureza ideológica e tem a ver com noções pré-concebidas e inquestionadassobre o direito de propriedade imobiliária. Já a maior aceitação do Direito Ambiental deve-seem parte ao fato de que a agenda “verde” é freqüentemente a expressão de uma visão naturalistade um espaço abstrato e sem conflitos, como tal mais próxima decerto da sensibilidade dasclasses médias do que a agenda “marrom” das cidades poluídas – que são estruturadas a partirdos conflitos político-sociais e jurídicos em torno da terra e das relações de propriedade.

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políticas socioeconômicas abrangentes,os programas de regularização fundiáriapodem ter outros efeitos indesejados, tra-zendo novos encargos financeiros paraos ocupantes, tendo impacto pouco ex-pressivo na redução da pobreza urbana

e, o que é ainda mais importante, refor-çando diretamente o conjunto de forçaseconômicas e políticas que têm tradicio-nalmente causado a exclusão social e asegregação espacial.

O capital sem mistérioO capital sem mistérioO capital sem mistérioO capital sem mistérioO capital sem mistério

Nesse contexto, deve ser dito que umatal renovação da discussão sobre as políti-cas de legalização de favelas no Brasil sejustifica ainda mais, dado o atual contextointernacional altamente favorável, já quehá hoje um movimento cada vez maisforte propondo a formulação de políticasde legalização de assentamentos infor-mais pelos governos nacionais e locais.Além da já referida Campanha Globalda ONU pela Segurança da Posse, agên-cias internacionais, como o Banco Mun-dial e a USAID, têm promovido debatesde toda ordem sobre o tema, sendo queem alguns casos o Banco Mundial impõemesmo a formulação e a implementaçãode políticas de legalização como condiçãopara a liberação de recursos. Há, contu-do, pelo menos uma distinção funda-mental entre a campanha da ONU e aspolíticas do Banco Mundial: enquanto aONU/Habitat propugna pelo reconheci-mento do direito social de moradia, oBanco Mundial defende explicitamente odireito individual de propriedade e a ho-mogeneização dos sistemas jurídicos na-cionais, entre outra razões para removeros obstáculos à circulação global do capi-tal imobiliário internacional.

12 Ver de Soto (1986; 2001); ver Mammen (2001).

Na origem de tal movimento, estãoas idéias do economista peruano Hernan-do de Soto, que é seguramente um dosideólogos mais influentes do momento.Seus livros O Outro Caminho e O Mistériodo Capital já viraram best-sellers emmuitos países e são freqüentemente acla-mados em editoriais de publicações in-fluentes, como The Economist, TheFinancial Times e The New York Times.12

Diversos países têm traduzido as propos-tas de de Soto em políticas públicas na-cionais de regularização fundiária emgrande escala – Peru, México, El Salva-dor, Egito, Romênia etc. –, sobretudo porexigência do Banco Mundial.

Parece que também o Brasil está en-trando nessa onda: pouco antes da apro-vação do Estatuto da Cidade, em váriascidades, como Rio de Janeiro e Recife,ocorreram reuniões visando viabilizar aadoção das idéias de de Soto, e há indí-cios de que o governo federal tambémestaria interessado em fazê-lo através dojá anunciado programa “Brasil Legal”.De uma hora para outra, políticos quenunca estiveram especialmente empenha-dos nas questões das cidades estão se

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ra de especulação que há muito tempodá suporte a uma herança de patrimonia-lismo e clientelismo político. Esse proces-so, por sua vez, afeta profundamente ascondições de acesso à terra urbana e àmoradia e a distribuição espacial de equi-pamentos e serviços públicos, bem comogera o fenômeno de ilegalidade urbana. 14

A lista de argumentos críticos, todosinter-relacionados, contra as idéias de deSoto continua: ele falha ao não reconhecerque em assentamentos consolidados ospobres, apesar da pobreza, já acumularamrecursos e formaram uma forma de patri-mônio, o que foi possível por meio de cré-dito, ainda que não através de instituiçõesformais. De fato, de Soto falha ao nãoproduzir nenhuma evidência de que, talcomo se encontram atualmente organiza-dos, bancos e outras instituições oficiaisde crédito e financiamento estariam dis-postos a oferecer crédito aos pobres – en-quanto há muitas provas históricas docontrário, inclusive no caso do Peru, ondeo número de pobres que efetivamente ti-veram acesso a crédito oficial sistemáticoem seguida a um programa massivo deregularização é totalmente insignificante. 15

Estudos na Colômbia questionam se ospobres têm interesse em obter crédito ofi-cial, devido às implicações financeiras efiscais do processo. 16

Além disso, estudos recentes têm con-testado a sustentabilidade urbanística esocioambiental dos assentamentos no

Peru, no México, em El Salvador e emoutros países, já legalizados como resulta-do de programas inspirados pelas idéiasde de Soto. Esses programas centram-seexclusivamente, e artificialmente, na lega-lização formal dos assentamentos infor-mais e não se apóiam em programas deurbanização e em outros programas so-cioeconômicos, deixando, pois, de promo-ver qualquer integração socioespacial. 17

De fato, diversas pesquisas no Brasile no mundo revelam que, mesmo na au-sência de legalização, dado um conjuntode fatores políticos, sociais e institucionais,os moradores de assentamentos ilegaistêm tido acesso a crédito informal – e mes-mo formal, em alguns casos – e se sentidoseguros de sua posse, a ponto de investirregularmente em suas casas e negóciosinformais. Por outro lado, essas pesquisasdemonstram que, na falta de outras polí-ticas sociais e programas econômicos quelhes dêem suporte, a mera atribuição detítulos individuais de propriedade pode atégarantir a segurança individual da posse,mas com freqüência acaba fazendo comque os moradores vendam suas novas pro-priedades e se mudem para as periferiasprecárias, em muitos casos invadindonovas áreas – onde recomeça o mesmoprocesso de ilegalidade. Se tomada isola-damente, a outorga de títulos individuaisde propriedade plena não leva à integraçãosocioespacial pretendida pelos programasde regularização, que justificaria o inves-timento público. Além do mais, se promo-

14 Ver Maricato (2000) para uma análise desse ponto no caso brasileiro, em especial de como aLei de Terras de 1850 foi fundamental para a configuração desse quadro.

15 Ver Calderón (2001) e Riofrio (1998).16 Ver Gilbert (2001).17 Ver Kagawa (2001), Duhau (2001) e Zeledon (2001).

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de regulamentações urbanísticas especí-ficas. Entretanto, enquanto as experiênciasde legalização baseadas na transferênciade títulos individuais de propriedade plenanão têm sido bem-sucedidas, a utilizaçãoda concessão do direito real de uso, comtodas as dificuldades ainda existentes,tem possibilitado maior controle pelos go-vernos e pelas comunidades locais dastransferências dos títulos pelos beneficiá-rios originais, de tal forma que o investi-mento público não seja apropriado pelospromotores imobiliários privados. Umadimensão básica de gênero é reconhecidanesses casos, em que os títulos de conces-são são freqüentemente conferidos aosdois parceiros independentemente do re-gime formal ou informal do casamento,sendo que, em situação de conflito, asmulheres têm recebido tratamento priori-tário. Uma decisão judicial importante emPorto Alegre, em um caso recente de se-paração por razão de violência domés-tica, reverteu para o nome da mulher otítulo que fora originalmente dado aos dois(não legalmente casados) parceiros.

Nas duas cidades, as políticas de ur-banização e de prestação de serviços nãotêm dependido diretamente da efetivaçãodas políticas de legalização. Políticas delegalização tendem a ser implementadasem áreas já consolidadas em termos urba-nísticos e sociopolíticos, onde é geral-mente aceito que os ocupantes tenhamdireito a serviços e a equipamentos pú-blicos e comunitários. A produção da mo-radia é em grande medida resultado deautoconstrução, melhorias nas constru-ções são realizadas com regularidade, eo acesso a crédito informal – e às vezesa crédito formal – é normalmente possí-

vel, sobretudo para a aquisição de mate-riais de construção, independentementedo fato de a legalização das áreas tersido completada ou não. No todo, as con-dições de integração socioespacial têmmelhorado. De modo geral, o mercadooficial de terras guarda uma certa distân-cia das áreas regularizadas e a populaçãooriginal nelas permanece; mesmo nasáreas onde há mobilização interna signi-ficativa, o perfil socioeconômico originalda comunidade beneficiada é mantido.

Todos esses fatores parecem estar di-retamente relacionados com a articulaçãoentre as políticas de legalização, as regrasurbanísticas de orientação social e as es-tratégias progressistas de gestão urbananaquelas cidades. Enquanto as zonas deinteresse social parecem dar às áreas eaos moradores uma forma de identidadelegal e social em face da sociedade maisampla e do mercado, o aparato institucio-nal criado para administrá-las constituiuma arena política em que os moradorespodem defender seus direitos e apresentarsuas reivindicações. Em particular, a ex-periência pioneira do orçamento parti-cipativo em Porto Alegre e sua relaçãodireta com os programas de regularizaçãotêm sido de importância fundamentalpara a consolidação dos direitos de cida-dania.

Apesar do caráter incipiente das polí-ticas de legalização, existe uma percepçãogeneralizada de segurança da posse, aqual, a meu ver, pode ser, e com freqüên-cia o é, politicamente falsa. Nas áreasonde há mobilização social consistente eimplementação de programas de regulari-zação, parece haver atualmente menos

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dominante dado a esse direito pela legis-lação civil, numa expressão dos funda-mentos do legalismo liberal clássico.

A sobrevivência do legalismo liberalquanto à propriedade da terra – quandoos governos intervêm em outros setoresda economia de forma ousada, a tal pontoque hoje já se discutem a retirada do Esta-do da economia e o lugar do mercado –deve-se naturalmente a uma combinaçãohistórica de fatores sociais, políticos eeconômicos, que tem de ser compreendi-da antes que qualquer programa delegalização em massa – tal como propostopor de Soto – possa ser implementado.As principais questões continuam semresposta, mesmo porque de Soto não astem levantado: que tipo de implicações aordem jurídica tem tido no processo decrescimento urbano e quem tem se bene-ficiado da manutenção inquestionada detal status quo?

A busca por soluções jurídico-políti-cas inovadoras para as políticas de legali-zação fundiária requer a compatibilizaçãoentre a promoção de segurança individualda posse com o reconhecimento de direi-tos sociais de moradia, a incorporaçãode uma dimensão de gênero há muito ne-gligenciada e a tentativa de minimizaçãodos impactos dessas políticas no mer-cado, de tal forma que os benefícios doinvestimento público sejam capturadospelos moradores – e não pelos promo-tores imobiliários privados. Perseguiresses objetivos é de fundamental impor-tância em um contexto mais amplo dapromoção de uma estratégia de reforma

urbana que vise à inclusão socioespacial.Diversas cidades, como Porto Alegre eBelo Horizonte, têm tentado operaciona-lizar essa agenda urbana progressistacom a reforma de sua ordem jurídica;avanços significativos têm incluído, alémda criação das zonas de interesse especial,a aprovação de normas e regulamenta-ções urbanísticas menos elitistas, e o en-frentamento da natureza excludente dosmecanismos fiscais de captura do valorda terra, de modo a torná-los menos re-gressivos.

É nesse contexto que a utilização daconcessão do direito real de uso podepromover condições jurídicas mais efeti-vas e mais sustentáveis em termos urba-nísticos e sociopolíticos de segurança daposse para os pobres. De maneira maisconsistente do que a transferência de tí-tulos individuais de propriedade plenapossibilita, tal direito – que pode ser usa-do de forma individual ou condominial –permite a promoção, de maneira combi-nada, do direito de moradia social e dasegurança individual da posse, e podeajudar a impulsionar a integração socio-espacial.

Essa parece ser uma fórmula vitorio-sa: um programa de regularização tecni-camente adequado e baseado em umquadro político-jurídico coerente; a com-binação entre as políticas de legalizaçãoe a legislação urbanística mais ampla; ea combinação de ambos com mecanis-mos político-institucionais progressistasque permitam a participação das comuni-dades no processo de gestão das cidades.

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O usucapião especialO usucapião especialO usucapião especialO usucapião especialO usucapião especialurbanourbanourbanourbanourbano

A Seção V do Estatuto da Cidade (arts.9° a 14) trata do usucapião especial deimóvel urbano, regulamentando assim oprincípio constitucional relativo às áreasurbanas até 250 m2. Dentre outras medi-das de caráter processual que visam fa-cilitar a utilização do instituto e o registrodas sentenças declaratórias, a nova Leiavançou no sentido de reconhecer queas áreas urbanas com mais de 250 m2,ocupadas por população de baixa rendapara moradia, por cinco anos, ininterrup-tamente e sem oposição, em que não épossível identificar os terrenos ocupadospor cada possuidor, são susceptíveis deserem usucapidas coletivamente, desdeque os possuidores não sejam proprietá-rios de outro imóvel urbano ou rural (art.10). Na sentença, o juiz atribuirá igualfração ideal de terreno a cada possuidor,independentemente da dimensão do ter-reno que cada um ocupe, salvo hipótesede acordo escrito entre os condôminos,estabelecendo frações ideais diferencia-das (§ 3°); tal forma de condomínio es-pecial constituído é indivisível, não sendopassível de extinção, salvo deliberaçãofavorável tomada por, no mínimo, doisterços dos condôminos, no caso de exe-cução de urbanização posterior à consti-tuição do condomínio (§ 4°).

Um outro avanço importante: de acor-do com o art. 12, são partes legítimaspara a propositura da ação de usucapiãoespecial urbano não apenas o possuidor,isoladamente ou em litisconsórcio originá-rio ou superveniente (I), ou os possui-dores, em estado de composse (II), mas

também, como substituto processual, aassociação de moradores da comunidade,regularmente constituída, com personali-dade jurídica, desde que explicitamenteautorizada pelos representados (III). Naação de usucapião especial urbano – naqual o rito processual a ser observado é osumário –, é obrigatória a intervenção doMinistério Público (§ 1°), sendo que o autorterá os benefícios da justiça e da assis-tência judiciária gratuita, inclusive peranteo cartório de registro de imóveis (§ 2°).

Tal regulamentação legal do institutotem sido aceita como um avanço no trata-mento da questão, sobretudo no sentidode permitir aos juízes que considerem amatéria de outra perspectiva que não ado usucapião tradicional previsto no Có-digo Civil. Contudo, somente as experiên-cias concretas poderão possibilitar umadevida avaliação acerca das implicaçõespráticas do novo instituto, bem como deseus limites, lacunas e possibilidades.

A concessão de direito realA concessão de direito realA concessão de direito realA concessão de direito realA concessão de direito realde usode usode usode usode uso

Em relação ao outro instituto que temsido proposto para a promoção de regu-larização fundiária em favelas, qual seja,a concessão de direito real de uso, o Es-tatuto da Cidade tratou da matéria deforma mais sintética. Conforme já men-cionado, o art. 4° inclui essa concessãoentre os instrumentos jurídicos e políti-cos da política urbana. Todavia, emboraestipule que nos casos de programas eprojetos habitacionais de interesse socialdesenvolvidos por órgãos ou entidades daAdministração Pública com atuação es-

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levar à ocupação de edificações públicase criar problemas administrativos e judi-ciais, foi argumentado que os arts. 15 a20 da lei aprovada contrariavam o inte-resse público sobretudo por não ressal-varem do direito à concessão de usoespecial os imóveis públicos afetados aouso comum do povo, como praças e ruas,e áreas urbanas de interesse da defesanacional, da preservação ambiental oudestinadas a obras públicas.

Contudo, “em reconhecimento à im-portância e validade do instituto da con-cessão de uso especial para fins demoradia”, o Poder Executivo se compro-meteu a submeter “sem demora ao Con-gresso Nacional um texto normativo quepreencha essa lacuna, buscando sanaras imprecisões apontadas.” Esse texto foiposteriormente discutido entre o governofederal e o Fórum Nacional de ReformaUrbana e outras entidades, e em 4 desetembro de 2001 foi adotada a MedidaProvisória n° 2.220, que dispõe “sobre aconcessão de uso especial de que trata o§ 1° do art. 183 da Constituição, cria oConselho Nacional de DesenvolvimentoUrbano - CNDU e dá outras providên-cias.” Trata-se certamente de um raroexemplo da utilização desse instrumentopolítico-jurídico controverso para um fimsocial.

A proposta básica é assegurar o direi-to a moradia a quem, “até 30 de junhode 2001, possuiu como seu, por cincoanos, ininterruptamente e sem oposição”,uma área urbana pública até 250 m2, uti-lizando-a para sua moradia ou de suafamília, através da “concessão de usoespecial para fins de moradia em rela-

ção ao bem objeto da posse”, desde queatendidos os mesmos requisitos do usu-capião urbano – isto é, desde que nãoseja proprietário ou concessionário, aqualquer título, de outro imóvel urbanoou rural (art. 1°). A concessão de usoespecial para fins de moradia será con-ferida de forma gratuita ao homem ou àmulher, ou a ambos, independentementedo estado civil (§ 1°); o direito não seráfacultado ao mesmo concessionário maisde uma vez (§ 2°), sendo que o herdeirolegítimo continua, de pleno direito, naposse de seu antecessor, desde que járesida no imóvel por ocasião da abertu-ra da sucessão (§ 3°).

Além disso, a Medida Provisória ino-vou ao estabelecer que nos imóveis quetenham mais de 250 m2 e que, até 30 dejunho de 2001, estavam ocupados porpopulação de baixa renda para sua mo-radia, por cinco anos, ininterruptamentee sem oposição, e em que não é possívelidentificar os terrenos ocupados por pos-suidor, a concessão de uso especial parafins de moradia será conferida de formacoletiva, desde que os possuidores nãosejam proprietários ou concessionários,a qualquer título, de outro imóvel urbanoou rural (art. 2°). O possuidor pode, parao fim de contar o prazo exigido por esseartigo, acrescentar sua posse à de seuantecessor, contanto que ambas sejamcontínuas (§ 1°); nessa forma coletiva deconcessão de uso especial será atribuídaigual fração ideal de terreno a cada pos-suidor, independentemente da dimensãodo terreno que cada um ocupe, salvo hi-pótese de acordo escrito entre os ocu-pantes, estabelecendo frações ideaisdiferenciadas (§ 2°), sendo que a fração

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tenças declaratórias de usucapião (I, 28);dos termos administrativos ou das sen-tenças declaratórias da concessão de usoespecial para fins de moradia (I, 37); edo contrato de concessão de direito realde uso de imóvel público (I, 40).

A enorme importância social e políti-ca do novo instituto criado pela MedidaProvisória n° 2.220 é indiscutível, sobre-tudo no que toca ao reconhecimento ofi-cial da urgência de se enfrentar a questãoda moradia social. Também da perspec-tiva jurídica, a importância do novo ins-tituto é inquestionável, já que implica naverificação inequívoca de que existe umdireito individual e coletivo à moradia.Entretanto, é de se supor que novas con-trovérsias jurídicas surgirão não só pelanatureza jurídico-política polêmica do ins-trumento da Medida Provisória, mas tam-bém pela falta de definição plena danatureza jurídica do instituto da conces-são de direito de uso especial em si – emoutras palavras, trata-se de uma novaforma de direito real de uso? Há muitoselementos nesse sentido, contudo a Me-dida Provisória não o explicita de manei-ra inquestionável. Se a Medida Provisóriaregulamenta o § 1° do art. 183 da Cons-tituição, como fica a questão da regula-mentação da concessão de direito realde uso instituído pelo Decreto-Lei n° 271/67? Como conciliar os dois institutos demodo adequado?

Se a destinação social do institutopara a população de baixa renda só éexplicitada na hipótese do art. 2°, comointerpretar o art. 1° de forma a impedir oabuso do instituto? A Medida Provisóriatambém não enfrenta a dimensão pro-

cessual da questão – conforme já eviden-ciado nas questões ambientais, os me-canismos processuais tradicionais nãodão conta dos novos direitos coletivos –,o que possivelmente vai gerar problemasde interpretação judicial que podem com-prometer sobremaneira a aplicação efe-tiva do instituto.

Outros problemas potencialmenteexplosivos – da ordem do pacto federati-vo constitucional e da autonomia dosentes federativos – são os que decorre-rão do impacto que a utilização do novoinstituto poderá exercer sobre os imóveisde propriedade dos estados e dos muni-cípios, sobretudo nos municípios, comoPorto Alegre, que já têm lei própria emvigor sobre a utilização da concessão dedireito real de uso.

Além disso, deve-se ressaltar que,conforme discutido anteriormente, váriosdos municípios que já utilizam a conces-são do direito real de uso – como Recifee Porto Alegre – o fazem por meio daarticulação entre a urbanização das fave-las e a legalização das áreas e dos lotes.Em que pesem as preocupações de ordemambiental claramente expressas na Medi-da Provisória, não foi feita essa necessáriaarticulação entre as duas dimensões dosprogramas de regularização.

De qualquer forma, a aprovação doimportante Estatuto da Cidade consolidoua ordem constitucional quanto ao controlejurídico do desenvolvimento urbano, vi-sando reorientar a ação do Poder Público,do mercado imobiliário e da sociedade,de acordo com novos critérios econômi-cos, sociais e ambientais. Sua efetiva ma-

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ma urbana na cidade. Um tal mecanismodemocrático de debate amplo decerto ga-rantiria que as propostas de mudançaseventualmente formuladas pudessem serdiscutidas sem que isso acarretasse o riscode perda dos avanços políticos e jurídicosfundamentais que, ao longo das décadasde resistência e mobilização, as comuni-dades faveladas vêm conquistando.

Além disso, as pesquisas existentesmostram que não há um laço claro entreregularização/legalização e erradicaçãoda pobreza, o que só pode ser obtidoatravés de uma reforma urbana estrutu-ral, que por sua vez depende, entre outrosfatores, de uma reforma abrangente da

ordem jurídica que afeta a regulação dosdireitos de propriedade imobiliária e oprocesso mais amplo de desenvolvimentourbano, planejamento e gestão. A realiza-ção gradual de obras de urbanização e aprestação de serviços têm inegavelmentemelhorado as condições de vida quoti-diana das comunidades beneficiadas.Contudo, se o objetivo é causar um im-pacto mais significativo na redução dascondições crescentes de pobreza social,os programas de regularização têm de serparte de um vasto conjunto tanto de polí-ticas públicas destinadas a promover areforma urbana quanto de políticas so-cioeconômicas especificamente destina-das a gerar emprego e renda.

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Las metrópolis latinoamericanasLas metrópolis latinoamericanasLas metrópolis latinoamericanasLas metrópolis latinoamericanasLas metrópolis latinoamericanasen el siglo XXI: en el siglo XXI: en el siglo XXI: en el siglo XXI: en el siglo XXI: de la moderde la moderde la moderde la moderde la modernidadnidadnidadnidadnidadinconclusa a la crisis del espacio públicoinconclusa a la crisis del espacio públicoinconclusa a la crisis del espacio públicoinconclusa a la crisis del espacio públicoinconclusa a la crisis del espacio público

Emilio Duhau

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XV, No 1, 2001, p. 41-68

Metrópolis y modernidadMetrópolis y modernidadMetrópolis y modernidadMetrópolis y modernidadMetrópolis y modernidad

Los principales estudios clásicos sobre elfenómeno urbano, coinciden en definir ala ciudad como la forma espacial asocia-da por excelencia al ámbito publico, yaque se vincula históricamente con el sur-gimiento y al desarrollo de la civitas y dela res publica, en cuanto formas institu-cionalizadas que hacen posible la convi-vencia, el intercambio, el encuentro y eldialogo entre sujetos e intereses diversos(Sjoberg, 1960; Weber, 1982; Mumford,1961)1.

La metrópolis como consumación dela vida urbana y de la modernidad, seafirma, en particular desde la segundamitad del siglo XIX, como forma urbana

1 Retomo este párrafo y algunas referencias utilizadas en el siguiente apartado, del protocolo deun proyecto de investigación en cuya elaboración final participó Angela Giglia.

y realidad social cosmopolita, frente a lasformas urbanas del pasado y a la socie-dad preindustrial. Producto simultáneo deldesarrollo industrial capitalista, la acele-rada urbanización de la población, eldesarrollo de nuevas tecnologías de trans-porte y la concentración de servicios yactividades de gestión, es percibida desdesu emergencia como concentración ur-bana en una escala virtualmente sinprecedentes, tanto como expresión porexcelencia del progreso, como realidadproblemática, escenario y ocasión de losmás diversos males. Sea porque el pro-greso debía ser expresado en ella demodo tangible y en lo posible monumen-tal y porque debía darse respuesta a las

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42 Las metrópolis latinoamericanas en el siglo XXI

necesidades de la vida moderna, seaporque los males de la metrópoli debíanser enfrentados a través de formas urba-nas alternativas, el urbanismo produciríadiversas propuestas.

De este modo, la renovación hauss-maniana de París, el ensanche de Barce-lona, la ciudad jardín británica, la ciudadde los rascacielos (Nueva York y Chica-go), entre otros modelos, funcionaronentre la segunda mitad del siglo XIX y lasprimeras décadas del XX, como otrostantos paradigmas que podemos obser-var todavía cristalizados en prácticamen-te todas las metrópolis occidentalesincluidas las mega ciudades latinoameri-canas (cfr. Hall, 1996).

En términos de las prácticas urbanaseste urbanismo de la primera modernidadmetropolitana, se caracterizó por confor-mar el espacio de lo que hoy retrospecti-vamente se nos presenta como ideal dela modernidad urbana: domesticación dela calle; clara separación entre el espacioprivado y el espacio público; uso intensode este último, como espacio de libreacceso, de uso simultáneamente recrea-tivo, de circulación y de acceso directo alas ofertas de consumo y en donde coexis-ten de modo normalizado los extraños yla diversidad y funciones diversas, in-cluida la habitacional, en los mismosespacios urbanos y; en general se desen-vuelve una activa vida pública. Públicaen un doble sentido, en tanto conjuntode prácticas desarrolladas en espaciosabiertos a todos y a través de las cualesse accede a la novedad y se participa einforma de los acontecimientos y manifes-

taciones de interés general. Todo estohecho posible tanto por medio de lainstitucionalización de reglas cívicas y deurbanidad que establecieron el uso y lasconductas apropiadas en el espaciopúblico, como por medio de dispositivosfísicos: aceras amplias y seguras para eluso peatonal, parques y plazas; paseos yavenidas; disposición espacial del comer-cio y los servicios, en particular los des-tinados al encuentro y la sociabilidad,destinada a facilitar un intercambio yacceso fluidos entre la calle y los localescerrados de uso público. 2

En las grandes ciudades latinoameri-canas, esta primera modernidad metro-politana, se expresó invariablemente,aunque con distintos ritmos y en distin-tos momentos, en la realización de gran-des proyectos urbanos, consistentes enla ampliación planeada de la traza colo-nial original, y también de su transfor-mación, el trazo de avenidas y paseos, laimplantación de monumentos y espaciosmonumentales destinados a representary escenificar tanto el progreso de nacio-nes que se querían modernas, como loshitos principales de la historia indepen-diente y, también, como en el caso deMéxico, la reivindicación y recuperaciónoficiales de las raíces indígenas. Mencio-nemos sólo algunas expresiones conspi-cuas de esta voluntad modernizadora ycosmopolita. En México el Paseo de laReforma, sus glorietas y monumentos, laAvenida Juárez, la Alameda Central y lasnuevas “colonias” residenciales destina-das a las clases acomodadas que aban-donaban el viejo centro colonial (véaseTenorio, 2000). En Buenos Aires el trazo

2 A este respecto resulta sumamente ilustrativo el trabajo de Baldwin, 1999.

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43Emilio Duhau

de las diagonales Norte y Sur, la avenidaNueve de Julio, la Avenida de Mayo, Pa-lermo Chico como asiento de la oligar-quía y el Barrio Norte como nuevoespacio residencial. En San Pablo, la Ave-nida Paulista, Higienópolis, espacioresidencial inspirado en la ciudad jardín,y el parque Ibirapuera.

Pero si esta modernidad urbana seinspiró en todos los casos en modeloseuropeos y produjo el espacio público quehoy podríamos denominar clásico, debióentre los años treinta y cincuenta del siglopasado, coexistir e incorporar de algunaforma, procesos y realidades generadospor un proceso de industrialización quea diferencia del europeo, sólo de modoparcial y fragmentado convergió con eldesarrollo del Estado Benefactor (cfr.Duhau, 1995). Así, en las metrópolis lati-noamericanas, convertidas en principalescentros industriales de sus respectivos paí-ses, la inmigración masiva, la presenciaexplosiva de la industria y el rápidodesarrollo de una clase obrera industrial,se manifestaron en diversas formas dehábitat urbano muy distantes del modelode la metrópoli moderno imaginado porlas élites. Entre otros, suburbios popularescarentes de atributos y dispositivos bási-

cos de la metrópoli moderna, formas dehábitat-refugio como las favelas, las villasmiseria y las ciudades perdidas y, másadelante la sustitución de éstas por mediode la difusión de un urbanismo popularque combinado con las implantacionesindustriales y con el encuentro con cascosurbanos preexistentes pero ajenos a la me-trópoli, daría lugar a procesos de conur-bación y de urbanización extensivas.

De este modo, la realidad que hoyenfrentan las mega ciudades latinoame-ricanas es la convergencia de una mo-dernización inconclusa, en el sentido deque integró, hasta cierto punto, con apoyoen la industrialización sustitutiva, a lasnuevas masas urbanas en el mercadourbano de trabajo, pero de modo muylimitado en términos de la ciudadaníapolítica y social (Duhau y Girola, 1992),con los impactos de procesos de globali-zación que parecen potenciar en térmi-nos de las prácticas y procesos urbanos,las contradicciones y ausencias que he-redó de la primera. Es en este contextoque pretendo situar la cuestión de la trans-formación de las prácticas urbanas y lacrisis del espacio público en la mega ciu-dad contemporánea.

La crisis del espacio públicoLa crisis del espacio públicoLa crisis del espacio públicoLa crisis del espacio públicoLa crisis del espacio público

La problematización de los espacios pú-blicos en el mundo occidental se remontaa los años sesenta del siglo XX y apareceasociada a la observación de síntomasque parecen poner en cuestión las carac-terísticas y valores atribuidas a la ciudadmoderna: diferenciación social sin exclu-

sión; coexistencia de funciones diversas;aceptación y disfrute de lo extraño, lo nue-vo y lo sorprendente; publicidad, que serefiere al espacio público como siendopor definición un lugar abierto y accesiblea cualquiera y donde cada uno arriesgay acepta encontrarse con quienes son

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diferentes (Simmel, 1977; Young, 1990:238-41, citado por Caldeira, 2000:301).

Entre los años sesenta y setenta, di-versos autores comenzaron a abordardesde diferentes ángulos la cuestión delo público en las sociedades modernas,inaugurando un debate que se mantienevigente, pero que, al menos en lo que res-pecta al espacio público, había sido engran medida ignorado hasta hace pocotanto en México como en general en Amé-rica Latina. Entre ellas, es necesario men-cionar cuando menos la obra de JaneJacobs (1961), Vida y muerte de las gran-des ciudades que constituye un manifiestoenormemente persuasivo en contra del ur-banismo funcionalista, entonces la co-rriente dominante en esta disciplina, asícomo un análisis brillante de los factoresy características que explican la vitalidadde la vida urbana y de los espacios públi-cos. El libro de Richard Sennet (1977),El declive del hombre público, que abordael problema de cómo una cierta concep-ción de los valores atribuidos a la vidaprivada en el mundo occidental, implicanel progresivo declive y vaciamiento de lavida pública y por consiguiente amenazanla supervivencia de los valores y prácticaspropios de la ciudad cosmopolita.

El debate iniciado por estos y otrosautores, está asociado a lo que en el marcode la crisis de los años setenta, puede serconsiderado como el rechazo al urbanismofuncionalista y al modernismo de Le Cor-busier, que habían inspirado en las décadasprevias, entre otras cosas la producciónde las nuevas periferias obreras en Europay el proyecto de Lúcio Costa para la nuevacapital de Brasil (Brasilia) en los años cin-

cuenta (véase Hall, 1996:cap. 7). Así, lareflexión sobre el espacio público iniciadoshacia los años sesenta del siglo XX, apa-rece en Europa como reacción a los efectospercibidos de decisiones, proyectos y pro-cesos urbanos (y macro sociales) previoso en gestación en esos años (urbanismofuncionalista, dispersión urbana, grandesy problemáticos conjuntos de vivienda deinterés social, rápida difusión del uso delautomóvil, de un lado, crisis de la industria-lización fordista y del Estado benefactor,del otro).

En los años ochenta, en los paísesdesarrollados, en el marco de la rees-tructuración industrial por una parte, yla puesta en cuestión del Estado Bene-factor, por otra, se produce una rede-finición de la cuestión urbana. En Europala brusca interrupción del crecimientodemográfico de las ciudades y la desin-dustrialización – o más bien la crisis delos espacios industriales en los que sehabía basado el consumo de masas –,así como las políticas de descentralizacióncomo componente de la gestión de lacrisis del Estado Benefactor centralizado,harían visibles o arrojarían nueva luzsobre algunas cuestiones que se converti-rían en problemas centrales de investiga-ción y de política pública.

Las periferias populares conformadaspor grandes conjuntos de interés socialen Francia, de vivienda pública en GranBretaña, comenzaron a ser observadoscomo espacios problema, tanto por mos-trar el relativo fracaso del Estado Bene-factor que no habría producido allíciudades sino espacios monofuncionalesy segregados de “la” ciudad, como por-

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que se advertía que habían evolucionadocomo ámbitos de concentración de lanueva problemática social. Una proble-mática en la que convergían altas tasasde desempleo y la difícil integración delos trabajadores inmigrados cuyo arribohabía sido promovido durante los “glorio-sos treinta”. Por otro lado, el principalproblema de las ciudades dejó de ser vistocomo el de la “reproducción de la fuerzade trabajo” por medio del Estado Bene-factor expresado de modo tangible en lasciudades, para pasar a ser definido comoel de la implantación de nuevas activi-dades económicas y de una integraciónsocial que el estatuto salarial ya no pare-cía garantizar. El municipio y las ciudadescomienzan a ser percibidos ahora comoactores políticos que, munidos de nuevascompetencias, estarán a cargo de la ges-tión local de la crisis. Tanto a nivel de laspolíticas públicas como de la investigaciónurbana y el urbanismo, se convierten encuestiones prioritarias la descentraliza-ción, el desempeño de los gobiernos loca-les, el mejoramiento barrial, los proyectosurbanos que sustituyen a la planeaciónen gran escala, la proyección de la imagenurbana, el rescate, los programas de me-joramiento o la privatización (en el casode Gran Bretaña), o de plano la demoli-ción de los grandes conjuntos más pro-blemáticos, como en el caso del conjuntoestadounidense de Pritt Igoe, antes ce-lebrado por importantes revistas dearquitectura y después modificado radi-calmente y finalmente demolido (Amen-dola, 1984).

Es en este contexto que emerge confuerza en Europa la cuestión de los espa-cios públicos y el rescate de los valores

de la ciudad moderna. En España elproyecto Barcelona 92, asociado a losJuegos Olímpicos que se realizarían enese año, al papel del gobierno autónomocatalán y a un protagónico gobierno dela ciudad, se convirtió en un paradigma,hoy todavía vigente y amplia y eficazmen-te difundido, de rescate de los espaciospúblicos y de la imagen urbana, asocia-do a un fuerte énfasis en el papel inte-grador de la ciudad y de la democracialocal. Pero si Barcelona es el caso másconocido y mejor difundido, no es el úni-co ni tampoco el primero.

En Estados Unidos, la reestructura-ción industrial, el aumento de las tasasde desempleo y la concentración del ingre-so transformaron rápidamente el escena-rio de las grandes zonas metropolitanas.Pero aquí la respuesta tanto a nivel delas políticas públicas como de la investi-gación, fue muy diferente. En primer tér-mino porque el desarrollo del EstadoBenefactor nunca convergió con el modeloeuropeo continental ni alcanzó su gradode penetración en la reproducción social.En segundo término porque la cuestiónde la descentralización no se planteó enla medida que se trataba de una estruc-tura gubernamental ya ampliamente des-centralizada.

Las políticas públicas se articularonen Estados Unidos en torno al discursoneo-conservador de la era Reagan. Enese contexto, el problema no consistía enafrontar los nuevos problemas a travésde políticas sociales y urbanas impulsadaspor el sector público, sino en facilitar lareestructuración económica a través dela flexibilización del mercado de trabajo,

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la inversión privada en nuevas tecnologíasapalancada sobre la maquinaria military la reestructuración económica y larenovación física de las ciudades a travésde coaliciones o “máquinas” orientadasal crecimiento. El éxito de los gobiernoslocales se mediría en función de su capa-cidad para promover tales coaliciones.Esto se tradujo en la proliferación de pro-yectos urbanos orientados a impulsar elmercado inmobiliario a través de la gene-ración de espacios e infraestructuras des-tinados a albergar las actividades quehegemonizaron las nuevas centralidadesen los años ochenta: servicios financieros,jurídicos, contables, consultoría, softwarey tecnologías de la información y la co-municación; así como a proporcionar laoferta de espacios residenciales y recrea-tivos destinados a los profesionales yejecutivos generosamente retribuidos poresta “nueva economía” (Squires, 1996;Logan y Molotch, 1996; Smith, 1996).

La expresión urbana de este procesofue la renovación de espacios tradicio-nales, convertidos en áreas “temáticas”(p.e waterfronts y áreas portuarias endecadencia) destinadas al turismo y alconsumo conspicuo y sofisticado de lanuevas clases profesionales, la gentrifi-cation de áreas residenciales que habíanconservado ciertos atractivos debido a suimagen urbana pero que se encontrabanen situación de relativa decadencia, y laproducción de nuevos centros comercia-les y temáticos en una escala inédita (véa-se Harvey, 1989).

La contrapartida de todo ello: por unaparte la presencia ostensible de un grupocreciente de excluidos, identificados como

desclasados (underclass), producto simul-táneo de la perdida de empleos en la in-dustria tradicional, el abandono por partede los aparatos públicos de asistencia ybienestar social (originado en el desfinan-ciamiento de estos aparatos) de las áreascentrales de vivienda popular y la “libera-ción” de enfermos mentales por los hospi-tales públicos, debido al recorte de losfondos destinados a los mismos. Home-less, bag-ladies, dealers y peddlers, pro-liferan entonces como la otra cara delpaisaje urbano de las metrópolis esta-dounidenses. Y por otra parte una ampli-ficación sin precedentes del tema del“miedo” como un ingrediente fundamen-tal y constitutivo de la experiencia urbanaactual, amplificado en forma exponencialpor los medios de comunicación y gene-rador de políticas de la seguridad urbanaque desde su formulación (el programa“tolerancia cero” implementada por Ru-dolph Giuliani en Nueva York) tienden a“limpiar” los espacios públicos hasta delmenor signo de “desviación” (Wacquant,1999), en un panorama socioespacial quealgunos denominan simplemente “ciudadblindada” (Amendola, 2000).

En el ámbito de la investigación ur-bana se desarrolla el estudio de la nuevageografía económica derivada de estosprocesos, la reestructuración urbana, lanueva cuestión social y las políticas ur-banas, así como a finales de la décadade los ochenta, los intentos por proporcio-nar explicaciones de conjunto de la evo-lución observada en términos primero deldebate sobre la postmodernidad (Harvey,1989; Lash, 1990) y luego a partir delconcepto de globalización (Sassen, 1992;Lash y Urry, 1994). 1990). La cuestión

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del espacio público, su decadencia o in-cluso su fin (Sorkin, ed., 1992), asocia-da a las nuevas formas urbanas y lasnuevas formas de consumo, segregaciónespacial, exclusión y control de las nue-vas “clases peligrosas”, es entonces ob-jeto de análisis que muestran escenariosurbanos caracterizados por el enclaustra-miento de los sectores medios y altos, laerección de barreras físicas o electróni-cas y la proliferación de los mecanismosy cuerpos de vigilancia y control centra-dos sobre las minorías étnicas y los des-clasados (Sorkin, ed., 1992; Davis, 1992).

Los años noventa, son a nivel inter-nacional años en los cuales la lógica y eldiscurso de la liberalización económica,los procesos de globalización y el papelde la nuevas tecnologías y en particularlas tecnologías de la información y co-municación, se imponen ampliamente.Son también años en los que los proce-sos de reestructuración económica de losaños setenta y ochenta se traducirán enel mundo desarrollado en una etapa decrecimiento económico sostenido quecoexiste con una rápida reestructuracióndel mercado de trabajo – iniciada en ladécada precedente – y la definición deuna nueva cuestión social, caracterizadapor altas tasas de desempleo, la precari-zación de una porción significativa de lospuestos de trabajo y dramáticos cambiosen la estructura social definidos por lapresencia de “perdedores” y “ganadores”(Castel, R, 1995; Bolstanski y Chiapello;1999, Thurow, 1996).

A nivel de las ciencias sociales, estasgrandes transformaciones detonadas enlos años setenta, pero que comienzan a

hacerse plenamente evidentes en la se-gunda mitad de los años ochenta, sontematizadas y teorizadas a través dealgunos conceptos y debates que ocupanhoy un lugar central: radicalización de lamodernidad, sociedad del riesgo, globali-zación, sociedad de la información. Enestas teorizaciones y debates, algunos au-tores cuyas obras han sido ampliamentedifundidas y reconocidas a nivel interna-cional, colocan la dimensión espacial deestos procesos – la relación entre globali-zación y localización, entre espacios deflujos y espacios de lugares, entre locali-zación y deslocalización, el futuro de lasciudades y el nuevo papel de las grandesmetrópolis –, como cuestiones centralespara entender las grandes transformacio-nes sociales en curso (Beck, 1986; Beck,Giddens y Lash, 1997; Castells y Hall,1994; Harvey, 1989; Castells, 1996,1997, 1998; Borja y Castells, 1997;Sassen 1991 y 1998). A partir de estosdesarrollos teóricos emergen con claridadun conjunto de procesos que parecenponer en cuestión las jerarquías urbanasy las relaciones entre territorios tal comohabían venido siendo concebidas hastalos años setenta y desde luego, la relaciónentre el espacio urbano y sus habitantesy entre el espacio privado y el espaciopúblico en las nuevas formas de habitar,de trabajar, de transitar, de consumir yde recrearse.

Con sus especificidades, las ciudadeslatinoamericanas también estaban expe-rimentando estos procesos. Pero la con-ciencia y la percepción de los cambiosglobales en curso aparecería retardadapor diversas razones, pero destacadamen-te porque sería en los años ochenta que

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los países latinoamericanos comenzaríana emerger de los regímenes político au-toritarios y dictaduras militares entoncespredominantes en la región y experimen-tarían de modo brutal los límites del mo-delo de desarrollo dominante hasta losaños setenta.

En América Latina, los años ochentason los años de la gestión de la crisis. Lasgrandes ciudades experimentan con fuerzala penuria de recursos fiscales y el procesode reestructuración industrial. Habiendosido espacios relativamente privilegiadoshasta los años setenta en tanto en ellas sehabía venido concentrado ampliamente lainversión pública y privada, dejan de serdurante los ochenta polos de atracción mi-gratoria y ámbitos concentradores de lainversión productiva. Las nuevas inver-siones en la industria manufacturera, enla medida que las hay, tienden a descon-centrarse durante la década, porque yano responden al modelo de sustitución deimportaciones. Las inversiones derivadasde la “nueva economía”, que posterior-mente se presentarán fundamentalmentebajo la forma de grandes proyectos inmo-biliarios y la reestructuración del comercioy de los servicios, sólo se insinúan tími-damente, dado que su auge está asociadoa la globalización. Esta última entendidaen este caso como apertura de la econo-mía, desregulación financiera, liberacióndel mercado cambiario, privatización deempresas públicas y asociación (o venta)de empresas nacionales con empresastransnacionales, políticas todas aplicadassobre todo a partir de los años noventa.

El escenario urbano se presenta eneste contexto marcado por el impacto de

la crisis del modelo de desarrollo haciaadentro y por consiguiente de la base in-dustrial de las grandes metrópolis. Porun lado se produce una interrupción delcrecimiento económico y el aumento deldesempleo o la sustitución del empleoformal por el empleo informal. Por otro,la crisis de las finanzas públicas y la au-sencia de inversión privada, se traducenen la ausencia de proyectos urbanos agran escala y el deterioro en los nivelesde mantenimiento de las infraestructuras,el equipamiento y el mobiliario urbanos.

En el caso específico de la ciudad deMéxico, se pueden observar diversos sín-tomas asociados a estos procesos: la con-versión del problema de la seguridad enun tema central de la agenda pública, laproliferación del llamado comercio am-bulante y de todo tipo de actividades eco-nómicas informales en la vía pública enuna escala sin precedentes en las déca-das anteriores; el crecimiento aceleradodel área urbanizada como mecanismopara hacer frente, a través de procesosde urbanización irregular, a las necesi-dades masivas de vivienda; el despobla-miento acelerado de la ciudad central (lascuatro delegaciones – distritos – centra-les); y la decadencia de áreas comercialesy equipamientos recreativos y culturalestradicionales.

En América Latina los años noventason los años en que estas transformacio-nes se traducen en cambios ostensiblesen la organización y las formas de pro-ducción y gestión del espacio urbano:proliferación de grandes proyectos inmo-biliarios conducidos por el capital priva-do; auge de la producción de espacios

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públicos cerrados y privadamente contro-lados, estratificados de acuerdo con lossectores sociales a los que están destina-dos; renovación de espacios urbanos endecadencia o en desuso destinados a con-vertirse en referentes simbólicos y turísti-cos; creciente difusión de urbanizacionescerradas y del cierre y control de accesode áreas urbanas previamente abiertas,así como de complejos urbanos multifun-cionales aislados del espacio urbano tra-dicional; abandono de espacios públicostradicionales por parte de las clases me-dia y alta y colonización de los mismospor los sectores populares (Caldeira,2000:cap. 7; Gamboa de Buen, 1994;Fidel y Fernández, 1998; Rolnik et al,1992).

Por su parte, la investigación urbanaen México ha venido incorporando lasteorías y debates internacionales y loscambios apuntados en la organización delespacio urbano, por distintas vías.

La primera consiste en el análisis dela reorganización del territorio y los es-pacios destinados a la producción y elpapel jugado en dicha reorganización porlas nuevas formas de la división interna-cional del trabajo y las nuevas tecnolo-gías de la información (Rosales Ortega,coord., 2000).

La segunda, emprendida sobre tododesde la antropología cultural, combinala cuestión del multiculturalismo y la frag-mentación de las prácticas urbanas enlas grandes metrópolis, la globalizacióndel consumo y el papel de los medioselectrónicos en la construcción de identi-dades y en la participación de los habitan-tes en la vida pública (García Canclini,1994 y 2000).

La tercera se aboca al estudio de lastrasformaciones en los usos y significa-dos de los espacios públicos, a través poruna parte del estudio de las practicas so-ciales propias de los nuevos espacios co-merciales (Ramírez Hurí, 1998; Cornejo2000) y; y por la otra abordando el estu-dio de las características y el significadosocial de las urbanizaciones cerradas(Giglia, 1998 y 2001). Esta segunda cues-tión será objeto de un seminario interna-cional en la ciudad de Guadalajara enjulio de 2002: “Latinoamérica: paísesabiertos, ciudades cerradas”.

Por mi parte, en los siguientes apar-tados intentaré aportar algunos elemen-tos para la interpretación de estosprocesos en términos de las formas deproducción de la ciudad y de la expre-sión espacial de la estructura social y lasprácticas urbanas.

LLLLLa ciudad de Méxicoa ciudad de Méxicoa ciudad de Méxicoa ciudad de Méxicoa ciudad de México: las dos caras de la r: las dos caras de la r: las dos caras de la r: las dos caras de la r: las dos caras de la realidadealidadealidadealidadealidadmetropolitanametropolitanametropolitanametropolitanametropolitana

La ciudad de México, en cuanto conglo-merado metropolitano, a pesar del inven-tario de lugares comunes que es posibleinvocar en cuanto a los males que la

aquejan (congestión vial, deficiencia delos servicios públicos, contaminaciónambiental, déficit de vivienda, pobreza,proliferación del comercio en la vía pú-

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blica, inseguridad, etc.), vista desde otraperspectiva, y tal como acertadamentelo ha señalado Gilbert, comparte conotras mega ciudades latinoamericanas, elhecho de exhibir logros notables en cuantoa haber enfrentado “extremadamentebien” las presiones generadas por el rá-pido crecimiento de la población (Gilbert,1995:1).

Y en efecto, la zona metropolitana dela ciudad de México (ZMCM), está con-formada por el Distrito Federal subdivi-dido en 16 delegaciones políticas, y unnúmero no oficialmente definido de mu-nicipios conurbados del Estado de Méxi-co, pero que si consideramos el tejidourbano continuo, ascienden a alrededorde 28, y una población censal de aproxi-madamente 18 millones de habitantes enel año 2000. Pero a pesar de sus dimen-siones y de las fuertes tasas de crecimien-to demográfico que experimentó hasta losaños setenta, ha sido capaz de proporcio-nar vivienda y servicios públicos básicos,transporte público, servicios educativosy de salud, a una escala y con niveles decobertura que se comparan favorable-mente no sólo con el conjunto del país,sino con las restantes 24 ciudades y zo-nas metropolitanas más importantes. Porejemplo, en 1970 el 77.5 de las viviendascontaban con agua potable suministradamediante red pública, pero en 1995 estaproporción ascendió a 95.7 %; en tantoque los porcentajes correspondientes adisponibilidad de drenaje para esos mis-mos años fueron respectivamente 42.7 %y 92.6 %. Si consideramos además que

durante ese mismo período su poblaciónpasó de poco más de 9 millones de habi-tantes a más de 16 millones y medio yque el stock habitacional se multiplicó 2.5veces, pasando de 1,562,610 viviendasa 3.775,756, estamos sin duda frente alogros notables. 3

El inventario de logros podría conti-nuar mencionando cuestiones como losniveles de cobertura educativa y el au-mento notable en el grado promedio deescolaridad de la población, el desarro-llo de la red del metro, cuya primera lí-nea inaugurada en 1969, contaba con 16estaciones, se extendía sobre 12.6 Km. ytransportaba 240.000 pasajeros, y queactualmente cuenta con 11 líneas, 167estaciones, 191.5 Km. de longitud ytransporta diariamente más de 4,200,000pasajeros. Pero todavía más notable esel hecho de que la indudable existenciade una amplia población en situación depobreza no haya llevado a la conforma-ción de áreas estigmatizadas, al menosno en una escala significativa. En estesentido, la urbanización popular periféri-ca, como alternativa al tugurio central,ha jugado un papel semejante al desem-peñado por el proceso de suburbaniza-ción masiva en Londres durante lasprimeras décadas del siglo XX (Hall,1996:9). Igualmente, la vivienda de inte-rés social, también con una presenciasignificativa que ha implicado la implan-tación de grandes conjuntos habitacio-nales que forman parte de la expansiónperiférica, tampoco ha dado lugar al tipode percepción que, como en el caso por

3 Los datos mencionados fueron elaborados con base en los Censos Generales de Población yVivienda de 1970 y 2000 y en el Conteo General de Población y Vivienda realizado en 1995.

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ejemplo de Francia, ha tendido a conver-tir a las banlieues en espacios estigmati-zados (cfr. Bourdieu, 1993; Champagne,1993, 1993a).

Y, sin embargo, es necesario pregun-tarse qué tipo de ciudad es la que se haproducido durante las últimas décadas,la cual cuantitativamente en términos denúmero de viviendas y del área urbani-zada supera ampliamente a la existentepara 1960. Esquemáticamente, se puedeafirmar que, hasta fines de los añosochenta, la expansión física de la metró-poli se realizó a través de cuatro modali-dades fundamentales. Las tres primerasforman parte de lo que podríamos deno-minar la ciudad planeada y en términosde la superficie urbanizada dan cuentade un área menor a la correspondiente ala “ciudad no planeada” o urbanizaciónirregular. Estas modalidades reguladas oplaneadas estuvieron en general orienta-das por una perspectiva funcionalista,basada en técnicas de zonificación com-binadas, en el caso de algunos grandesproyectos, con el modelo de las ciudadessatélite.

Una de estas modalidades correspon-de a la urbanización por incorporaciónde suelo a través de fraccionamientosdestinados al uso habitacional. El modeloespecífico subyacente en este caso es elde los suburbia norteamericanos: un nú-mero variable, pero generalmente im-portante de lotes destinados a viviendasunifamiliares con sus correspondientesvialidades a los que se agrega, en nuestro

caso y, en el mejor de los casos, un áreadestinada a edificios de departamentoscombinados con un área o centro comer-cial, y organizados a partir de una o másvialidades primarias de acceso que operancomo un circuito distribuidor a las distin-tas porciones del fraccionamiento. Bajoesta modalidad, además de los fracciona-mientos realizados en el Distrito Federal,se urbanizaron en 13 municipios conur-bados del Estado de México entre 1958 y1987, alrededor de 16,000 hectáreas, quecomprenden, de acuerdo con los planesoriginales, más de 500,000 viviendas(Schteingart, 1989: cuadro 9, p. 113).Una variante de esta modalidad es la co-rrespondiente a conjuntos habitacionalesde interés social. Se trata en este caso deunidades claramente diferenciadas y re-cortadas del tejido urbano adyacente,concebidas para uso puramente habita-cional, aún cuando en los casos de lasmás grandes suelen incluir pequeñasáreas comerciales y equipamientos comoescuelas. Sólo el Instituto Nacional delFondo de la Vivienda para los Trabaja-dores, financió bajo esta modalidad, parael conjunto de la ZMCM, entre 1973 (añoen que este Instituto comenzó a operar)y 1992, 228,806 viviendas (García yPuebla, 1998: cuadro 12, p. 78), peronuestro cálculo es que para el año 2000,alrededor de un 15 % de la poblaciónmetropolitana se alojaba en este tipo devivienda, es decir alrededor de 2,800,000personas y 670,000 viviendas. 4

La segunda modalidad correspondea la creación de espacios productivos a

4 Estimación realizada con base en las áreas geoestadísticas básicas definidas en el Censo Generalde Población y Vivienda de 1990.

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través de la implantación de parques in-dustriales. Buena parte de la industriaasentada en la zona metropolitana, sobretodo la gran industria fordista, se localizaen estos parques, básicamente al norte ynorponiente de la aglomeración, en lasdelegaciones Azcapotzalco y Gustavo A.Madero, y en los municipios de Naucal-pan, Tlalnepantla, Ecatepec y CuatitlánIzcalli. Al mismo tiempo, la poblacióncensal de estas seis unidades político-administrativas, fue para el año dos mil,de algo más de 5,300,000 habitantes.

La tercera modalidad planeadadurante la etapa de referencia (hasta losaños ochenta), que en parte incluye lasdos primeras, es la de las ciudades saté-lite. La primera en el tiempo, llamada pre-cisamente “Ciudad Satélite”, y localizadaen el municipio de Naucalpan que colindacon el norponiente del Distrito Federal.Ciudad Satélite fue concebida en los añoscincuenta como una gran suburbia resi-dencial destinada a las nuevas clasesmedias. La segunda, situada más al norte,y conectada por el mismo eje, y consti-tuida como municipio de Cuatitlán Izcalli,fue desarrollada en los años 70 a partirde un complejo industrial preexistente, ypensada al igual que la anterior como unmecanismo de descentralización de laindustria, vivienda y población. Esto du-rante un período en el que se partía de lapremisa de que el modelo de industrializa-ción sustitutiva continuaría indefinida-mente hacia delante, al mismo tiempoque seguía siendo una preocupación cen-tral la concentración industrial en las tres

grandes zonas metropolitanas del país(véase López Saavedra y Torres Jiménez,1984).

La modalidad no planeada, por suparte, corresponde a la llamada urbani-zación popular, resultado de un comple-jo proceso de urbanización irregular, enalgunos casos en gran escala, sobre todoen el oriente de la metrópoli, y en otrosen una escala menor, pero incluso másenmarañada. Se trata de un proceso que,aunque algunos casos y, sobre todo enlos momentos iniciales, implicó actos de“invasión”, en lo fundamental se ha asen-tado en el desarrollo de un mercado irre-gular de suelo para vivienda popular. Unaidea de su magnitud nos la proporcionael hecho de que para 1990 pudimos esti-mar que cerca del 60 % de la poblaciónmetropolitana y el 55 % del área urbani-zada correspondía a zonas que si bien enmuchos casos en la actualidad se encuen-tran plenamente consolidadas y resultan,salvo para el experto, difícilmente distin-guibles de las áreas cuyo desarrollo fueregulado, fueron desarrolladas irregular-mente5.

Al observar el resultado general de laconvergencia de estas distintas modalida-des, lo que podemos advertir es que setrata de respuestas a un proceso de me-trópolización basado en el desarrollo in-dustrial, que implicaron la adopción hastacierto punto planeada, pero de modo frag-mentado, de diferentes modelos de tejidourbano y la incorporación de un modelo,la urbanización popular, impuesto por la

5 Para un desarrollo pormenorizado del papel jugado por la urbanización popular en la ciudadde México, véase Duhau, 1998: capítulo 3.

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lógica de la renta del suelo, las necesi-dades habitacionales de los mayoritariossectores populares, y la lógica populistadel Estado (Duhau, 1998: cap. 4). Así, sibien diversos componentes del tejido me-tropolitano fueron planeados, la estruc-tura de conjunto no lo fue. El desarrollode las infraestructuras o bien respondióa las necesidades derivadas de cada pro-yecto en particular, o bien fue realizadocomo respuesta a posteriori a la dinámicaseguida por la expansión metropolitanay los procesos de conurbación. El resul-tado, una enorme metrópoli articuladapor unas pocas grandes vialidades queal mismo tiempo operan como tramo ur-bano de los ejes carreteros que conectana la metrópoli con la región centro y conel resto del país; y en términos de movili-dad cotidiana por varios millones deautomóviles particulares y algo así como200,000 microbuses, autobuses y taxis yel sistema de transporte colectivo (metro).

De acuerdo con la encuesta de ori-gen y destino realizada en 1994, en laZMCM se efectuaban diariamente más de20 millones y medio de viajes diariamen-te, de los cuales aproximadamente unacuarta parte se efectuaba en alrededorde tres millones de automóviles particu-lares y el restante 75 % en unidades detransporte público, correspondiendo, apesar de la importante red del metro exis-tente, más de la mitad a vehículos de bajacapacidad (microbuses y combis) (DDF-SETRAVI, 1994:53).

En conjunto, el resultado observablees un tejido urbano denso en promedio,sumamente intrincado y desigual y den-tro del cual las áreas que cuentan conlos atributos propios de una gran ciudad,es decir aquellas con un tránsito local in-tenso, diversidad de actividades, múlti-ples ofertas recreativas y culturales, áreasadecuadas para el tránsito peatonal, enbuena parte de los casos, en particular elcentro histórico y las áreas correspondien-tes a los principales nodos de transporte,han experimentado un serio deterioro desu imagen urbana y su espacio públicoha sido colonizado por modalidades delcomercio y la oferta de servicios en lavía pública, que no sólo han adquiridoun carácter masivo, sino que son realiza-das en condiciones tales que llevan a unfuerte deterioro del espacio público y tien-den a hacer incompatible el desarrollode otras actividades.

Por otro lado, cuando observamosestas formas de producción de la ciudaden términos de la distribución y condicio-nes habitacionales de la población, lo queencontramos es un resultado de conjunto,probablemente matizado, pero no modifi-cado en cuanto a su dirección fundamen-tal, por las nuevas formas de produccióndel espacio urbano cuyo auge se adviertea partir sobre todo de los años noventa.Este resultado muestra dos tendenciasclaramente definidas: el predominio cre-ciente de la vivienda independiente 6 enpropiedad en todos los niveles sociales y

6 En el Censo General de Población y Vivienda de 2000 se entiende por vivienda independientela casa unifamiliar que posee entrada independiente, se encuentre o no localizada en un con-junto habitacional o condominio. En las áreas de clase media se trata de viviendas desarrolladaspredominantemente en dos niveles; en conjuntos habitacionales generalmente de viviendasconocidas como “duplex”; y en los barrios populares de viviendas construidas generalmente enun nivel, aunque pueden contar con dos y hasta tres niveles.

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la relocalización permanente de la pobla-ción desde áreas más centrales a áreasmenos centrales, periféricas o no en senti-do estricto.

En lo que respecta al predominio dela vivienda independiente, de acuerdo condatos censales correspondientes al año2000, para el conjunto de la ZMCM, éstaconstituye, con 2,787,458 unidades, el66.4 %, es decir las dos terceras partesde las 4,194,622 viviendas particularesexistentes. Y, aunque los censos anterioresno registraron este dato, resulta muy claroque la expansión del área urbanizada, queno sólo se ha derivado del crecimiento dela población sino también de su relocaliza-ción intrametropolitana, ha sido al mismotiempo el factor inductor de este predomi-nio creciente. Porque, y esto nos remite ala segunda tendencia apuntada, por unaparte la ciudad central (las cuatro delega-ciones centrales) perdió entre 1970 y 2000el 41,8 % de su población, al pasar depoco más de 2,900,000 habitantes en elprimer año a poco más de 1,688,000 enel último. Por otra, porque con la excepciónde algunas jurisdicciones cuyo urbaniza-ción ha respondido en buena medida a laimplantación más o menos planeada deconjuntos habitacionales de interés social,en gran parte conformados por edificiosde departamentos, todas las demás cuyaurbanización se inició en los años cincuentao posteriormente, tanto si se trata de de-legaciones del Distrito Federal como demunicipios conurbados, muestran propor-ciones de viviendas independientes sig-nificativamente superiores al promedioseñalado.

Esto desde luego, puede ser objeto de

una lectura positiva, en el sentido de queestaría reflejando una tendencia univer-sal a la suburbanización, facilitada porel desarrollo de la movilidad y la descen-tralización no sólo de la vivienda sino tam-bién del empleo, a través de la cual serealiza la aspiración cada vez más gene-ralizada a la vivienda independiente Pero,si en general es probable que estemosfrente a un espejismo, no cabe duda queen el caso de la ciudad de México no haycasi nada o, muy poco de eso. No es po-sible abundar aquí al respecto, pero unejemplo servirá para ilustrar la cuestión.

Consideremos el caso del municipiode Nezahualcóyotl, situado a unos pocoskilómetros al oriente del centro histórico.Con una población censal de 1,224,924habitantes en el año 2000, este municipioes demográficamente hablando, la cuartajurisdicción político-administrativa de lazona metropolitana. Se trata de una pobla-ción semejante a la que en Europa corres-ponde a una “gran” ciudad. Sin embargo,no encontraremos casi nada en este mu-nicipio, nacido en los años sesenta comociudad popular dormitorio, que nos hagarecordar no digamos una “gran” ciudadeuropea, sino algunas capitales y ciudadesde provincia mexicanas que, con una po-blación considerablemente menor, cuentanen la actualidad con una oferta comercialy de servicios mucho más diversificada,así como con una imagen urbana, áreasrecreativas, patrimonio arquitectónico yofertas culturales enormemente superiores.Pero tampoco encontraremos nada seme-jante a los suburbia norteamericanos (cen-tros comerciales, grandes áreas verdes,viviendas rodeadas por jardines, etc). Ensu lugar, encontramos en cambio una ur-

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banización sumamente densa, en dondeel coeficiente de construcción de los terre-nos es notablemente alto, las áreas verdesson prácticamente inexistentes, una muyalta proporción de la población económi-camente activa se desplaza para trabajaral Distrito Federal y, cuando cuenta conel tiempo y los recursos para realizar acti-vidades recreativas, no encontrará casinada en el propio municipio.

La paradoja reside en que mientrasque gran parte de la ciudad producidadespués de los años cincuenta, ha tendidoa replicar, desde luego con diferencias enlas que no me puedo detener aquí, en suvariante popular, el modelo de Nezahual-cóyotl, y en su variante de clase media eldel fraccionamiento planeado para segre-gar totalmente la función habitacional delas restantes funciones urbanas, la ciudadcentral que reúne todavía lo más destaca-do del patrimonio arquitectónico, culturaly urbano con que cuenta la metrópoli,ha venido perdiendo consistentemente po-blación, un proceso que además pareceestar haciéndose extensivo a otras cuatrodelegaciones de la capital, las que colin-dan con las cuatro centrales al norte, aloriente y al sur 7.

Podríamos invocar para explicarlo elimpacto de procesos “globales”. Pero estainvocación no resiste una mínima aproxi-mación comparativa. Otras mega ciu-dades, tanto en América Latina como enEuropa e incluso Estados Unidos hanvenido experimentando, bajo condicionesdiferentes, pero con algunos efectos muy

semejantes, los impactos de la llamadaglobalización, sin que ello haya significadola pérdida de población en la ciudad cen-tral. Para citar sólo casos latinoameri-canos; Buenos Aires (la capital Federal),sigue teniendo los aproximadamente 3millones de habitantes con los que cuentadesde hace décadas (Pírez, 1994: cuadro4, p. 26) y; San Pablo sigue teniendo unaamplia porción central, habitada sobretodo por las clases medias, que sólo haciafines de los años ochenta ha manifestadocierta reducción de población (Caldeira,2000:228-233).

Lo anterior no significa que en BuenosAires y San Pablo no se adviertan sínto-mas semejantes a los que es posible obser-var en México, ya que también en estasciudades se puede observar durante losúltimos años el auge de las áreas residen-ciales cerradas, la rápida difusión de cen-tros comerciales y recreativos planeadospor el capital inmobiliario con una lógicatransnacional y que tienden a producirburbujas que operan como dispositivosde segregación; la instalación de la cues-tión de la seguridad y el discurso de lainseguridad y el miedo como inductoresdel repliegue de las clases media y altasobre espacios asumidos como “seguros”,entre otros. Es decir, aunque en gradosdiferentes, y probablemente con efectosmenos ostensibles en Buenos Aires queen San Pablo, también en estas ciudadesse pueden percibir cambios en las prác-ticas urbanas asociados a procesos dereestructuración social, a nuevos modelosresidenciales y nuevas formas de segre-

7 Las delegaciones G.A. Madero, Azcapotzalco e Iztacalco, perdieron en conjunto más de 105,000habitantes entre 1990 y 2000, y la Delegación Coyoacán, cuya población todavía aumentóentre 1990 y 1995, perdió algo más de 15,000 habitantes entre entre 1995 y 2000.

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gación urbana y al rápido aumento de lamovilidad individual y de sus formas pormedio del automóvil entre las clases me-dias y a cambios en las modalidades ylos espacios de consumo y de recreaciónque tienden a redefinir la relación con elespacio público.

En todo caso parece importante explo-rar en qué medida este rasgo relativamenteespecífico de la ciudad de México estáasociado a la forma aguda en que en estamega ciudad se manifiesta actualmente la

crisis del espacio público. La observaciónde los componentes fundamentales de estacrisis seguramente puede ayudar a enten-der mejor las tendencias en curso y a re-pensar en qué medida sigue siendo todavíala ciudad concebida como realidad abiertay como espacio público una alternativa ala ciudad amurallada de la que nos hablaTeresa Caldeira, refiriéndose al caso deSan Pablo, pero con el mismo propósitoque anima estas páginas, de comprendertendencias observables en muchas otrasciudades (Caldeira, 2000).

El orden reglamentario urbano y la crisis del espacioEl orden reglamentario urbano y la crisis del espacioEl orden reglamentario urbano y la crisis del espacioEl orden reglamentario urbano y la crisis del espacioEl orden reglamentario urbano y la crisis del espaciopúblicopúblicopúblicopúblicopúblicoManteniéndonos en un plano comparati-vo, es evidente que lo que podemos de-nominar como crisis del espacio público,aparece asociado en todas partes, a nue-vos problemas de integración social quese manifiestan de formas más agudas enlas grandes ciudades y en particular, enlas mega ciudades. Pero es más o menosobvio que estos problemas no han alcan-zado en todas partes las mismas dimen-siones y que se despliegan en contextossociales y urbanos que presentan evolu-ciones muy dispares.

Por ejemplo, una parte de la periferiaparisina ha adquirido las característicasde espacios de exclusión, y de acuerdocon las estadísticas disponibles, Parísparece estar experimentando un incre-mento considerable de acciones delicti-vas (The Economist, 11-17 de agosto de2001) pero, con la excepción del fraca-sado modelo de los “grandes conjuntos”de vivienda social, continúa siendo en lo

fundamental una ciudad “abierta”, en lacual la suburbanización de las clasesmedias no constituye una forma de es-capar de los “males” de la ciudad cen-tral, sino de las dificultades, en particularpara las familias nucleares completas, desufragar los costos monetarios de residiren ella. En contraste, Los Angeles, me-trópolis del siglo veinte y referente origi-nal del concepto de “megalópolis”, desdeel comienzo evolucionó como aglomera-ción policéntrica, impulsada por la uto-pía antiurbana de la ciudad fuera de laciudad y del automóvil y la autopistacomo manifestación de las libertadesamericanas (Hall, 1996:cap. 9). Comocontrapartida, en los años noventa seconvirtió en paradigma de la ciudad se-gregada y de las murallas físicas y elec-trónicas (Davis, M., 1992, 1992a).

México, comparada con sus pares deAmérica Latina, Buenos Aires y San Pablo,como hemos visto presenta en forma

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relativamente temprana, un proceso desuburbanización que comprende, al igualque en Buenos Aires, pero a diferenciade San Pablo, tanto a los sectores popula-res como a las clases medias, pero que adiferencia de lo ocurrido en las mega ciu-dades sudamericanas está acompañadode la tendencia al abandono de la ciudadcentral por parte de las últimas por mediode un modelo que ha intentado ser unaréplica del modelo de los suburbia nortea-mericanos.

Es muy probable que este proceso enparte tenga sus orígenes en el desarrollode un imaginario urbano, o más bien su-burbano, que dio sustento al recurso alos espacios residenciales socialmentehomogéneos y monofuncionales comodispositivo de construcción física de lasdistancias sociales en un contexto urbanomarcado durante varias décadas por mi-graciones masivas constituidas por unapoblación mayoritariamente pobre prove-niente del interior del país. En todo caso,este imaginario suburbano, parece habertenido profundas consecuencias respectode las formas de organización espacial yde gestión tanto de los espacios residen-ciales como de los espacios públicos.Cabe subrayar a este respecto que losespacios residenciales cerrados que enBuenos Aires y San Pablo se presentancomo novedad en los años noventa (Cal-deira, 2000: cap. 6; Fidel y Fernández,1998), reconocen en México antecedentesconsiderablemente anteriores, ya quedesde al menos los años setenta comenza-ron a producirse “fraccionamientos” yconjuntos habitacionales de acceso con-trolado y desde mucho antes apareció,sobre todo en áreas más o menos centra-

les, lo que podríamos considerar comosu réplica en pequeña escala, las llama-das originalmente “privadas” y actual-mente “condominios horizontales”. Esdecir, conjuntos de viviendas indepen-dientes que comparten un mismo accesoprivado y que dependiendo de su tamañoy nivel económico cuentan también conciertos equipamientos poseídos en co-propiedad (condominio) como áreas re-creativas, canchas de tenis, piscina, salónpara fiestas, etc. Este modelo alcanza suapogeo en años recientes, ya que prác-ticamente todas las nuevas viviendasdestinadas a las clases medias ofrecidasactualmente por la promoción inmobilia-ria, incluidas las correspondientes a losnuevos “conjuntos urbanos” que han veni-do a sustituir a los fraccionamientos, sondesarrolladas bajo esta modalidad o, ensu defecto, constituyen departamentos encondominio horizontal, que cuando elnivel económico del proyecto lo permite,buscan interiorizar los espacios recreati-vos y diversos servicios personales. Igual-mente, el proceso de renovación que seinsinúa en algunas áreas centrales de laciudad se apoya en gran medida en estemodelo, a través de la utilización de lospredios en los que existían residencias degran tamaño para la implantación de pe-queños condominios horizontales.

¿Cuál es la importancia de todo estorespecto de la cuestión abordada? Quees posible sostener que se trata de dispo-sitivos que al mismo tiempo que consti-tuyen una respuesta a lo que podemosconsiderar como una profunda crisis delorden reglamentario y cívico urbano, con-tribuyen a que la misma sea enfrentadaa través de la balcanización o feudaliza-

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ción de la gestión urbana. Veamos porqué.

Lo que denomino como orden regla-mentario urbano, es aquella parte de lasnormas jurídicas, y por siguiente del ar-mazón del Estado de derecho, en granmedida correspondiente a la jurisdicciónadministrativa y judicial local, orientadaa regular no sólo la organización delespacio urbano, cuestión que cae nor-malmente en la esfera de la llamada “pla-neación urbana”, sino las característicasy el uso de los inmuebles privados, de loslocales y equipamientos de uso público ylos espacios públicos. Es decir, abarca,en una lista sin duda incompleta, aspectostan variados como los reglamentos detránsito, la regulación del transporte pú-blico, las características de las aceras, eluso, el equipamiento, el cuidado y vigilan-cia, de los parques, plazas y paseos, elmobiliario urbano, la altura de las edifica-ciones y las características de sus facha-das, las obligaciones de los particularesrespecto la limpieza y cuidado de las ace-ras situadas frente a los inmuebles quehabitan o que utilizan para diferentesfines, las actividades comerciales y de ser-vicio que se desarrollan en la vía públicay el dónde, cómo y cuándo tales activida-des podrán ser llevadas a cabo, las carac-terísticas de los anuncios publicitarios ycomerciales que se ven desde el exterioro que están situados en vías públicas; loshorarios de funcionamiento, las caracte-rísticas, los requisitos y localización delos locales públicos destinados al consu-mo de alimentos y bebidas, la música, elbaile, los espectáculos.

En este sentido, los usos y significados

actuales de los espacios públicos en laciudad de México, no pueden ser entendi-dos sin tener en cuenta lo que podríamosdenominar como crisis de la relación ciu-dadana con la cosa pública, y por consi-guiente con los espacios públicos. De estemodo, por una parte se observa el desplie-gue de un seudo comunitarismo defensivo(y a veces muy agresivo) que en las áreasde clase media se expresa a través dereivindicaciones en torno a la defensa delentorno urbano inmediato, buscando laprotección del valor de la propiedad, elcontrol de las externalidades urbanas yla exclusividad de los espacios residencia-les en tanto que dispositivo de distinción,a través de instrumentos como los planesde usos del suelo, y de lo que podríamosdenominar como creciente “condomini-zación de la ciudad”. Pero por otra, esterecurso a dispositivos jurídico-urbanís-ticos, implica la paradoja de la apelacióna instrumentos públicos como un mediopara garantizar el valor de la propiedady la calidad y seguridad de la vida privada,en un contexto de incertidumbre y deprescindencia generalizada respecto de lavigencia efectiva de las normas que regu-lan la organización del espacio urbano ylos usos legítimos del espacio público, másallá del entorno urbano inmediato dellugar donde cada uno habita. Entornoque como acabamos de ver, puede redu-cirse y parece tender a reducirse progresi-vamente a la escala “condominial” o ala pretensión manifestada y, muchasveces realizada, de convertir en una suer-te de condominio espacios residencialesque no lo son.

En estas tendencias convergen dife-rentes procesos y circunstancias: una es-

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tructura social sumamente polarizada;modos específicos de percibir y enfrentarla cuestión de la inseguridad; actitudesdepredadoras respecto de los espacios ylos bienes públicos; ignorancia generali-zada, aplicación limitada y serias omisio-nes y deficiencia de regulaciones urbanasbásicas relativas a la circulación, los usospermitidos de las vialidades y aceras, lapublicidad en la vía pública, los derechosy obligaciones respecto de los espaciospúblicos contiguos a la vivienda, entreotros. Así, prácticamente hacia cualquierade las dimensiones del orden reglamen-tario urbano que dirijamos nuestra mira-da, encontraremos, por una parte, quelas regulaciones o bien presentan nota-bles vacíos, u operan como letra muertaal haber sido ampliamente desbordadaspor la generalización de prácticas que lasignoran. Y, por otra, que el espacio pú-blico es objeto de una gran diversidad deprácticas que lo deterioran, de las másdiversas modalidades de apropiaciónpara fines particulares y de diversas for-mas de privatización tanto por grupos deinterés organizados como por colectivosvecinales.

Es imposible detenerse aquí en lasmúltiples manifestaciones de este fenó-meno, pero lo que debe remarcarse esque tiene profundos impactos en la cali-dad del medio urbano y que sus mani-festaciones más conspicuas contribuyenfuertemente a convertir el espacio públi-co en un medio hostil, a través de unalógica sostenida en lo que Carlos Nino

ha denominado una “anomia boba”(Nino, 1992), es decir una situación endonde la ignorancia y ausencia de respe-to y aplicación de las normas, en estecasos las correspondientes a lo que hellamado el orden reglamentario urbano,determinan que todos los habitantes dela ciudad resultemos igualmente perde-dores.

Esta situación presenta algunas ma-nifestaciones particularmente conspicuaspor la importancia y masividad de las acti-vidades con las que están relacionadas.Es el caso del servicio concesionado detransporte público, cuyos microbuses ychoferes han sido definidos con razóncomo uno de los “imaginarios malignos”de la ciudad (Mandoki, 1998) pero tam-bién del individualismo exacerbado, pre-potente e invasivo exhibido por gran partede los automovilistas de clase media 8, elcontrol absoluto ejercido sobre ciertasáreas, de la metrópoli, por el comercioen la vía pública; la explotación sin frenode ciertas externalidades urbanas porparte de restaurantes, bares, locales noc-turnos y anunciadores de todo tipo; y lasmanifestaciones generalizadas del en-capsulamiento residencial de las clasesmedias.

Cuando observamos desde una pers-pectiva de conjunto lo que resulta comoimagen general del modo en que diferen-tes clases sociales se relacionan con laciudad y con el espacio público, es lo si-guiente.

8 En relación con el tráfico en la ciudad de México se puede afirmar, tal como lo hace Caldeirapara San Pablo, que el mismo revela que la gente usa las calles de acuerdo con su particularconveniencia y no parece estar dispuesta a sujetarse a reglas generales o a respetar los derechosde los demás (Caldeira, 2000:316).

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La movilidad consumo y en generalla reproducción de las mayorías popula-res, ha sido objeto de soluciones, en granmedida de bajo costo, que tienen efectosmuy definidos en la estructura y los usosdel espacio urbano. La movilidad cotidia-na estas mayorías (75 % de los viajesintrametropolitanos son realizados entransporte público) se resuelve a travésde dos medios fundamentales. En primertérmino, un sistema de bajo costo (direc-to pero no social) de microbuses, queproporciona un servicio de transporte degran flexibilidad y tarifas reducidas, perode baja calidad e inseguro. Sólo en el Dis-trito Federal circulan 28,000 de estosmicrobuses, los cuales saturan las princi-pales vialidades y no cumplen con reglaselementales como realizar las paradas enlugares preestablecidos. En segundo tér-mino, el metro, un sistema moderno, debuena calidad y de elevado costo, a tra-vés del cual se subsidia la movilidad delos sectores populares, diseñado sobretodo para facilitar la realización de trayec-tos largos, pero que al estar diseñado condistancias relativamente largas entre es-taciones y baja conectividad entre las dis-tintas líneas, salvo en el centro de laciudad, desestimula su utilización parala realización de trayectos cortos, lo queha contribuido a la proliferación del trans-porte de superficie, inclusive en los mis-mos recorridos de las líneas del metro.

A su vez el sistema de microbusesestá vinculado, al proporcionar la movi-lidad a escala metropolitana, al desarro-llo no planeado de extensas áreashabitacionales populares. Estas áreas, almismo tiempo que son una solución alas necesidades habitacionales populares,

han limitado enormemente los intentosde organización espacial de la metrópoli,al generar áreas urbanas que vinculadasfuncionalmente a la ciudad central, y aotras áreas urbanas concentradoras deactividades económicas, presentan unadeficiente conectividad interna, así comofuertes limitaciones en cuanto a su co-nectividad con el resto de la ciudad.

Por otro lado, el desplazamiento ur-bano de las multitudes populares y susreducidos niveles de ingreso, se articulancon una solución a los problemas deempleo, consistente en el uso intensivo ygeneralizado del espacio público comoespacio para el desarrollo del comercio ylos servicios populares, así como de unagran variedad de servicios informales di-rigidos a las clases medias y relaciona-dos en gran medida con el uso delautomóvil (lavacoches, acomodadores,cuidadores, venta de artículos en los se-máforos). Así, a escala metropolitana,alrededor de uno de cada cinco trabaja-dores tiene como lugar de trabajo el es-pacio público.

Esta presencia y uso intensivo de laciudad y su espacio público por parte delos sectores populares, a su vez se vinculacon las formas en que ha evolucionadola inserción en la ciudad de los espaciosresidenciales ocupados por las clases me-dias y la clase alta, así como con el uso yla relación que dichas clases tienen conla ciudad y en particular con los espaciospúblicos.

Como ya hemos mencionado, los es-pacios residenciales destinados a estasclases, son crecientemente organizados

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o reorganizados como enclaves orienta-dos hacia la homogeneidad social y hacenuso de diversos dispositivos de clausurarespecto del espacio urbano circundante:fraccionamientos de acceso controlado,condominios de viviendas independientescerrados hacia el exterior, áreas resi-denciales originalmente abiertas que in-corporan dispositivos de cierre y control(barreras, rejas, casetas de vigilancia),procediendo de este modo a la privatiza-ción no sólo de las calles, sino incluso enmuchos casos de equipamientos públicos,parques por ejemplo, que se encuentrandentro del área cuyo acceso ahora es con-trolado.

Al mismo tiempo estas clases abando-nan crecientemente el uso peatonal de laciudad y los espacios públicos “clásicos”(parques, plazas, calles comerciales), de-sarrollando sus actividades extradomés-ticas en espacios especializados en loscuales tienden a concentrar sus activida-des de consumo y de recreación y en losque reencuentran la homogeneidad socialde su espacio residencial y creen obteneruna seguridad que perciben que la calley los espacios públicos tradicionales noles ofrecen. Su vinculación con éstoscobra entonces un carácter puntual, porejemplo acceder en automóvil hasta lapuerta de un restaurante situado sobreuna avenida, donde el vehículo será recibi-do por un servicio de “valet parking”.

Por supuesto, en la ciudad de Méxicosiguen existiendo espacios típicos de la

ciudad moderna, en los cuales convergenmúltiples usos, actividades y grupossociales 9. Dichos espacios, situados fun-damentalmente en la ciudad central, co-rresponden a lo que originalmente fueronlos espacios residenciales de clase mediay alta, a través de los cuales la ciudad seexpandió desde principios de siglo hastaaproximadamente los años cuarenta. Oque, como el centro de Coyoacán, al surde la capital, fue originalmente un núcleourbano que no formaba parte de la ciu-dad. Estos espacios típicamente moder-nos en el sentido señalado, pudieronevolucionar de este modo porque nofueron constreñidos por las regulacionesque bloquean la transformación de áreasresidenciales producidas posteriormente,las cuales fueron ya concebidas comoespacios puramente residenciales, al estilode los suburbia norteamericanos, aúncuando en la actualidad ya muchos deellos no poseen una localización peri-férica.

Tiende de este modo a definirse unadeterminada organización socio-espaci-al de los espacios residenciales de lamega-ciudad y una polarización de lasprácticas relacionadas con su uso. Estapolarización expresa la organización deuna coexistencia de los sectores popula-res con las clases medias y alta que im-plica que los primeros y sus prácticastiendan a ser dominantes, con algunasexcepciones importantes, en la calle y losespacios públicos tradicionales, y los se-gundos se desentiendan de ellos en la

9 Es importante enfatizar, sin embargo, que tales espacios destacan por ser muy pocos y estarpermanentemente amenazados por los estragos que produce la “anomia boba” a la que hicereferencia un poco más adelante.

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medida que de acuerdo con sus prácti-cas sólo operan como lugares de tránsitoen automóvil entre enclaves y locales deusos especializados y socialmente homo-géneos.

Así, las clases medias y la clase altatienden a replegarse sobre sus espaciosresidenciales y sobre espacios públicosbajo control privado socialmente segre-gados, adoptando una actitud indiferen-te respecto del espacio público “clásico”,salvo en lo que se relaciona con sus ne-cesidades de desplazamiento. Tanto esterepliegue como esta actitud indiferentetienen vastas consecuencias, porque im-plican que la ciudad en cuanto tal es asu-mida como una realidad ajena y en ciertomodo irredimible y con ello sus apuestasfundamentales respecto de ella quedanreducidas al control del ámbito donde selocaliza su vivienda, respecto del cual de

lo que parece tratarse para ellas es delimitar su carácter de espacio público.

Las clases populares por su parte,usan intensivamente el espacio públicotradicional, colonizándolo a través de susprácticas económicas, de movilidad, deconsumo y de recreación. Imponen sobreellos su propia estética, marcada por laausencia de una cultura cívica que per-mita asumir lo público como propio y almismo tiempo de todos, y por consiguien-te como algo que debe ser respetado ycuidado. Esta actitud tiene su contrapar-tida en el individualismo anómico de lasclases medias 10, expresado en la actitudde primero yo, mi comodidad, mi libertadde movimiento y mi propiedad, las quese traducen en un conjunto de prácticasque resultan igualmente depredadoras yen formas de uso y apropiación del espa-cio público indiferentes al bien común.

10 El concepto de individualismo anómico lo tomo de Girola, 2001.

ConclusionesConclusionesConclusionesConclusionesConclusiones

Junto con los procesos a los que he hechoreferencia que estarían operando comofactores inductores de los cambios obser-vables en las prácticas urbanas, la antro-pología cultural ha enfatizado, el papelde los medios de comunicación electró-nica y las nuevas tecnologías de la infor-mación, y la imposibilidad física para elhabitante de las mega ciudades de contarcon referentes comunes y de participaren la esfera pública, sino a través de estosmedios, en el repliegue sobre la esferadoméstica de una amplia proporción delos citadinos (García Canclini, 1997,

1995). Sin embargo creo que existen bue-nas razones para sostener que estosefectos de anclaje en la esfera domésticaobservables sobre todo en las clases po-pulares y en una parte de las clases me-dias, y de extensión de la esfera privadaen la esfera pública, a través del automó-vil-cápsula, la privatización de los espa-cios residenciales y la recreación de losespacios públicos como lugares “riguro-samente vigilados”, no son el productodirecto de los diversos procesos y tenden-cias invocados (polarización social, cam-bios en la movilidad y en las formas de

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consumo, papel de los medios electróni-cos, etc.). Y no lo son porque están me-diados por el tipo de respuestas que através de las formas de producción delespacio urbano y de gestión de la ciudad,y en general, del orden urbano, se estándando a las nuevas circunstancias y deuna crisis del orden reglamentario urbanocuyos orígenes son anteriores a tales cir-cunstancias.

Es cierto que el espacio público yano desempeña el papel que tenía hastamediados del siglo pasado y que por con-siguiente no se trata simplemente de la-mentar los cambios sino de entender quelos nuevos espacios públicos desempeñanfunciones en muchos casos semejantes alas desempeñadas por los espacios pú-blicos clásicos y, que al igual que estos,también guardan una estrecha relacióncon formas específicas de consumo. Porlo demás, podemos estar de acuerdo conGarcía Canclini en que el “consumo sir-ve para pensar” 11.

Es cierto también que los medioselectrónicos han suplantado en buenamedida el papel de los espacios públicoscomo ámbito de participación en la esferapública. Pero es también igualmentecierto que allí donde la organización espa-cial de las actividades urbanas y la vivien-da y los dispositivos físico-espaciales queofrece la ciudad, lo hacen posible, unaparte significativa de la vida cotidiana,de la recreación y el disfrute de bienesculturales y de la sociabilidad sigue tenien-

do lugar en espacios públicos. Incluso enuna ciudad como México, donde las cos-tumbres y las distancias sociales tiendena valorizar el espacio privado como espa-cio de sociabilidad, se advierte no sólouna intensa y socialmente diversa apro-piación, sino también un notorio “apetito”de espacio público. Pero ello ocurre preci-samente en los pocos lugares donde laconvergencia, en cierta medida fortuita,de una traza y una imagen urbanas propi-cias, la coexistencia de diferentes activi-dades y ofertas recreativas, culturales ycomerciales y de públicos diversos y porlo mismo, la experiencia de sentirse seguroen el seno de la multitud, lo hacen posible.Hasta cierto punto, paradójicamente,estos escasos lugares en el sentido fuertedel término, en la medida que tienden aconcentrar prácticas urbanas que, en uncontexto urbano diferente estarían distri-buidos en un gran número de lugaresparecen tender, por saturación, a ser víc-timas de su propio éxito.

Sin duda en un conglomerado urbanode 18 millones de habitantes si bien, talcomo parecen mostrarlo algunas inves-tigaciones recientes, no dejan de existirlugares y símbolos que operan hasta ciertopunto como referentes urbanos comparti-dos de modo generalizado (véase Nieto,1995), es imposible pretender que lasprácticas urbanas estén estructuradaspor medio de una jerarquía ordenada yfácilmente legible de centralidades y refe-rentes espaciales. Es inevitable por consi-guiente, que las experiencias urbanas de

11 Luego de discutir diferentes formas de abordar los significados del consumo y su papel culturaly político, este autor concluye, con base en argumentos sin duda plausibles, que “... debemosadmitir que en el consumo se construye parte de la racionalidad integrativa y comunicativa deuna sociedad” (García Canclini, 1995:45).

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los habitantes de la metrópoli, resultenmúltiples y hasta cierto punto fragmen-tadas. ¿Pero debe esto necesariamenteimplicar el repliegue y la decadencia irre-versible de las prácticas urbanas que sedesenvuelven en el espacio público preci-samente por ser espacio público? ¿Lafigura del citadino cosmopolita capaz dedesenvolverse con soltura entre extrañosy de aplicar las reglas inscritas en unsaber práctico que podemos definir comoel de la urbanidad y el civismo, será efecti-vamente una especie definitivamente enextinción? ¿Es que al ser expulsado de su“hábitat natural” por el temor y el desor-den, habrá de replegarse necesariamenteen el espacio privado de su casa o en elprivatizado de su seudo comunidad o delos espacios comerciales de uso públicoen los cuales “la casa se reserva el dere-cho de admisión”?

En todo caso no debemos engañar-nos, como ya lo planteó la sociologíadesde comienzos del siglo pasado: la granciudad y, en general la ciudad moderna,es la negación histórica de la comunidadbasada en el terruño, el apego a lo conoci-do y familiar y el rechazo del extraño.Sustituir la experiencia de la modernidadurbana por la de feudos residencialesamurallados, guetos populares abando-

nados a su propia suerte por el Estado, yespacios monofuncionales del capital, sinduda es una posibilidad, pero no la única¿Pero acaso será que como parecen indu-cirnos a pensar sociólogos como Castells,la sociedad de la información trae consigola construcción de una ciudadanía globaly de comunidades virtuales que existenen el espacio de los flujos y pueden pres-cindir del espacio de los lugares, en tantoque los nuevos desheredados, los puestosa un lado por la globalización, habrán depermanecer aferrados a lugares creciente-mente desvalorizados y a la pantalla bri-llante del televisor? (cfr. Castells, 1998:cap. VI). Creo que se trata de una visiónextremadamente hiperbólica de la últimamodernidad. El espacio de los lugaressigue siendo tan importante como siem-pre, incluso para la organización de lasredes electrónicas y, tanto para los ricoscomo para los pobres.

La respuesta a la pregunta sobre laextinción del citadino cosmopolita deberíaser por consiguiente un contundente no ylleva implícita una apuesta en sentidocontrario. ¿O acaso es posible suponerque ciudades amuralladas puedan ser unmedio propicio para la construcción desociedades abiertas y plurales?

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PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: metrópoles, moderni-dade, espaço público.

ResumoResumoResumoResumoResumo Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract

This paper addresses the issue of publicspace in large Latin American metropolis,as a specific form of crisis of the modernurban order. To this regard, the authorstates that in those metropolis, this crisis,on one hand, combines the limits facedby the social, economic, political and ur-ban model of population integration pre-vailing until the seventies of the XX century(unfinished modernity), with the social anurban effects of the political-economy ofa rather peripheral globalization. But, onthe other hand, it shows, as the Braziliananthropologist Teresa Caldeira has recentlypointed out, a disjunction between a pro-cess of political democratization and thebuilding of walled cities. This latter, takingas main concern the case of Mexico city,is explored in the paper as a process ofmaterial and symbolic strengthening ofsocial unequalities and of plannified orga-nization of urban segregation, perverseways of confronting the collapse of the civicand statutory urban order.

KeywordsKeywordsKeywordsKeywordsKeywords: metropolis, modernity, publicspace.

Emilio DuhauEmilio DuhauEmilio DuhauEmilio DuhauEmilio Duhau é professor do Departamento de Sociologia da Universidad AutónomaMetropolitana, Azcapotzalco, México.

Recebido para publicação em julho de 2001

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TTTTTempo-espaço-ambiente: paraempo-espaço-ambiente: paraempo-espaço-ambiente: paraempo-espaço-ambiente: paraempo-espaço-ambiente: parauma nova epistemuma nova epistemuma nova epistemuma nova epistemuma nova epistemeeeee *****

Frederico Guilherme Bandeira de Araujo

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XV, No 1, 2001, p. 69-95

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

* Este texto é baseado, em parte, na tese de doutorado Saber sobre os homens, saber sobre ascoisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza, defendida pelo autor em maiode 1997 na COPPE / UFRJ.

Este texto tem como plano de frente osaber sobre os homens. Diz respeito aosmodos de conhecimento das suas rela-ções entre si e com o meio, no contextoda modernidade radicalizada, visando aapresentar idéias que possam servir defundamento a narrativas das práticas con-temporâneas, para enfrentá-las na pleni-tude de suas complexidades. O caráterprofundo das amplas transformações emvigor – ainda que condicionado pelosmarcos do modo de produção capitalista,agora não mais restrito ao território queantes convencionou-se chamar de “oci-dente” – objetiva-se por meio de mudan-ças na capacidade de manipulação dos

materiais, nos modos técnicos e organiza-cionais de produzir, na divisão técnica esocial do trabalho, nas formas e modosde circulação e consumo, nos modos ena velocidade das trocas comunicacio-nais, no arranjo e nos mecanismos deconservação do poder internacional e nointerior de cada nação, no caráter da glo-balização dos diversos tipos de relaçõese valores, na configuração das subjetivi-dades, no sentido da criação artística, e,em especial, objetiva-se também pelacrescente aceleração do próprio processode transformação. Isso tudo importa emvivências temporais e espaciais drastica-mente distintas das até então experimen-

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70 Tempo-espaço-ambiente: para uma nova episteme

tadas pelos homens; da mesma maneira,e talvez em sentido mais dramático, cor-responde ainda, pelo domínio adquiridosobre os processos genéticos e sobre asformas de existência da matéria, a umaexperiência demiúrgica em relação aosviventes e às coisas inanimadas, porven-tura, em relação ao próprio Universo. Asmodalidades de saber sobre os homensvigentes na alta modernidade mostram-se em estranheza com essas novas vivên-cias de tempo, de espaço e do mundodas coisas, o que torna a episteme querege esse saber, em si, um objeto proble-mático contemporâneo.

O caráter das idéias que serão apre-sentadas adiante não é o de novos câno-nes, nem seus eventuais conjuntos erespectivas articulações devem ser supos-tos como organizadores de uma novaepisteme no sentido tradicional do termo,ou seja, enquanto quadro rígido de dog-mas fundamentais, princípios lógicos derelação e hipóteses operativas. Por essemotivo, denominamos o referencial aosaber que compõe essas idéias de “episte-me não-canônica”. Cada idéia aí, então,não deve ser entendida como mais doque uma alusão possível, ou, talvez maisnitidamente, como mais do que umapista – instigante, fértil, múltipla e proble-mática em si mesma – às narrativas sobreum objeto compreendido por princípiocomo opaco e, por conseguinte, abordadonecessariamente como pura superfície.São instrumentos praticáveis às fugidias

demarcações regionais nos jogos de legiti-mação dos valores, dos juízos e do saberno mundo hodierno. Assim, não confor-mam totalidade fechada, muito menosarranjo perene; a escolha em meio àspossibilidades de cada idéia e a conse-qüente configuração, pelo conjunto dasopções tomadas, de determinado quadrognosiológico, têm validade apenas locali-zada, regional, no tempo-espaço.

O método utilizado para a construçãoteórica das idéias em pauta tem, comovetor primário, o olhar inquiridor sobreas próprias práticas às quais busca-seoferecer elementos descritivos. Esse olhar,todavia, olhar da cultura, não seria capazde extrair nada novo desse exercício, caso,em primeira instância, não estivesse cri-ticamente distanciado dos dogmas quecristalizaram os juízos do saber sobre oshomens na alta modernidade e, ao mes-mo tempo, não estivesse municiado dafertilidade do ideário especulativo fermen-tado em outros campos do conhecimento.Isso evidentemente não é uma inovação,basta lembrar a singular posição dasciências humanas no “triedro dos sabe-res” de Foucault e a prática de importa-ção conceitual identificada historicamentepor esse autor 1. Assim, tendo por referên-cia genérica toda a bagagem da culturaocidental é que se constitui o olhar comque buscamos fundamentar idéias a essa“episteme não-canônica”, em compatibi-lidade com o devir humano dos dias quecorrem. Tomamos como inspiração mais

1 Existe ampla literatura sobre a problemática do liame entre ciência e filosofia. Queremos aquidestacar, no entanto, ante os aspectos particulares do tema a que nos referimos nesta passa-gem, além do trabalho citado de Michel Foucault, o artigo/conferência de Alexandre Koyréintitulado “Da influência das concepções filosóficas sobre a evolução das teorias científicas”(Koyré, 1991).

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imediata, todavia, concepções oriundasda ciência das coisas que se apresentamem ruptura com o padrão construído pelaRevolução Científica e, ao mesmo tempo,

as críticas que se erigem em contraposi-ção às modalidades historicistas do sabersobre os homens. Enfrentemos o desafio.

Idéias para uma “episteme não-canônica”Idéias para uma “episteme não-canônica”Idéias para uma “episteme não-canônica”Idéias para uma “episteme não-canônica”Idéias para uma “episteme não-canônica”

Práticas contemporâneas, oPráticas contemporâneas, oPráticas contemporâneas, oPráticas contemporâneas, oPráticas contemporâneas, otempotempotempotempotempo, o espaço, o espaço, o espaço, o espaço, o espaço

Da sistematização das práticas contem-porâneas podemos pinçar os seguintestópicos relacionados de modo mais dire-to e objetivo a vivências inovadoras rela-tivas ao tempo, ao espaço e às coisas.

A criação artística predominante nostempos atuais, contrapondo-se ao padrãohegemônico na alta modernidade, é mar-cada pela rejeição a qualquer caminhode deslindamento de algum suposto abso-luto, visto que, por princípio, nega toda equalquer essência e totalidade. É uma lin-guagem simbólica que ressalta as dife-renças, os fragmentos, e os superpõe emcolagem. Como não há essência a serrevelada, mas apenas “dobras”, “textu-ras”, “cores”, “temperaturas” daquiloque é exclusivamente superfície, sem de-terminação pretérita e destino sinalizadordo futuro, cada criação é por naturezaaberta; os significados emergem no atode confronto do observador com a obra,não estão dados previamente e não per-manecem a partir daí à guisa de univer-sais. Isso proporciona uma experiênciatemporal exclusiva ao momento vivido e,em termos de espaço, uma experiênciade descontinuidade, de acidente, de rele-

vo, de textura, de não-direção privilegiada,de caleidoscópio de infinitas possibili-dades.

Sobre o tópico do poder, saltam ime-diatamente aos olhos a drástica transfor-mação representada pelo fim da utopiasocialista enquanto experiência em práticae a associada quebra da bipolaridade soba qual se estruturava a política mundial apartir do Pós-Guerra. Nesse mesmo cam-po temático, embora observando-se a per-manência formal de organismos estataisvinculados a territórios singulares de escalavariada, não se pode deixar de constatarum nítido enfraquecimento do papel queessas instituições políticas cumpriram naalta modernidade, paralelo à emergênciae ao crescimento do significado de entida-des político-econômicas multinacionais, eà proliferação e ao alargamento vertigino-so das áreas de atuação, dos objetivos eda importância de organizações empresa-riais transnacionais. Isso corresponde, noque tange ao nosso escopo, a certa diluiçãodas fronteiras entre as bases territoriaisdos estados-nação e entre seus recortespolítico-administrativos internos.

No âmbito particular da sociedadecivil há, de modo similar, um enfraqueci-mento do papel disseminador e legitima-

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dor do poder cumprido por estruturas tra-dicionais – família, escola, partido, sindi-cato –, por sua vez tendo como duplacontraface tanto a emergência de entida-des reivindicadoras de cidadania, a ex-pressar novas e velhas subjetividades,mas sob formato organizacional não liga-do imediatamente à relação entre capitale trabalho, quanto o florescimento comoprocesso de largo espectro de modos in-formativos e normativos de disseminaçãoindiscriminada (mídia de massa). Emparalelo – todavia como processo aindamais recente e em aceleradíssima dinâmi-ca de mudanças de qualidade, possibili-dade técnica e abrangência –, eclodemmeios informáticos de comunicação,capazes de tornar cada indivíduo um seralém-fronteiras, desde que esteja em sin-tonia com as possibilidades do mundo ho-dierno; portanto, para o que importa nestetrabalho, que esteja devidamente amalga-mado a seu álter maquinal, seu personalcomputer, por sua vez conectado às in-fovias.

Na esfera do trabalho, os modelos or-ganizacionais flexíveis, as modalidadesjust in time e lean production, a fragmen-

tação global da atividade produtiva,associados a uma tecnologia que rapida-mente está abandonando o antigo padrãoanalógico da divisão fordista-tayloristados tempos e movimentos – cuja essênciaé a série sucessiva singular e constante –por um padrão correspondente de caráterdigital – cuja essência é a multiplicidadesimultânea e inconstante –, fazem comque o tempo das máquinas clássicas, dooperário, das fábricas, típico da Revolu-ção Industrial e mensurável pelo relógiomecânico, até bem poucos anos passa-dos, tempo padrão do agitado viver mo-derno, seja agora confrontado pelo tempodo computador, do trabalhador do imate-rial 2, da Internet, cujo padrão de mensu-ração é a “instantaneidade” ilusoriamentecriada pela comunicação e pela operaçãode informações à velocidade da luz.

A experiência artística e a situaçãode traspassamento dos limites territoriaisassociado ao enfraquecimento dos Esta-dos, assim como as situações configura-das pelo advento da mídia de massa, dasmodalidades flexíveis da atividade pro-dutiva e do largo uso de sistemas infor-macionais, proporcionam novas vivências

2 Denominamos “trabalhador do imaterial” o trabalhador que realiza “trabalho imaterial”, noção,como esclarece Giuseppe Cocco (1995, p. 97. Grifo do autor), referente a uma atividade produ-tiva comunicativo-relacional “que, por um lado, leva em conta o processo de desmaterializaçãodo trabalho e dos produtos e, por outro lado, enfatiza a dimensão cooperativa e conflitual (...)O trabalho desmaterializado, o trabalho imaterial aparece como fruto (...) da marginalizaçãodo trabalho repetitivo taylorista cuja dimensão coletiva é abstraída na maquinaria e (...) daafirmação do trabalho como capacidade de intervenção sobre as relações sociais. Um trabalhocuja dimensão coletiva tornou-se, de novo, concreta, independente da maquinaria. Yves Clotexplica como, de fato, as performances da maquinaria dependem da subjetividade do trabalhador(e não mais da sua submissão a ela) até determinar uma patologia ansiosa, uma extensão –dolorosa porque não reconhecida – do esforço (imaterial) de produção ao tempo da vidacomo um todo.” Sobre o tema, ver Corsani, A.; Lazzarato, M.; Negri, A. Le bassin de travailimmatériel (B.T.I.) dans la métropole parisienne. Paris: L’Harmattan, 1996; e Marazzi, C. Lasvolta linguistica dell’economia e i suoi effetti nella politica, Bellinzona: Casa Grande, 1994.

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73Frederico Guilherme Bandeira de Araujo

de tempo e espaço. A ruptura que cadaum desses tipos de vivência propicia temseu conteúdo qualificado sob a égide dopadrão digital; nele, ou a partir dele, tra-dicionais noções, como as de duração,de sucessão, de distância, de forma e depresença, não mais se sustentam.

Nesse contexto, o ethos global desdesempre presente no capitalismo está mu-dando de qualidade, reiterando a desqua-lificação territorial do poder apontada. Aglobalização contemporânea – da econo-mia, dos valores, dos saberes – é menosuma problemática de abrangência quanti-tativa, geográfica – afinal de contas, aindaque em formas, em intensidades e emmodos variados, os padrões capitalistasespraiam-se hoje por todo o planeta –,que uma questão da natureza singular darelação das partes entre si e com o todo.Agora, o que era um todo recortado empartes explode em miríades de fragmentos,sendo cada uma dessas unidades não maisapenas seção que, em somatório, compõedeterminado conjunto. Em acepção distin-ta, cada uma contém esse conjunto, é esseconjunto, no sentido de que somente existee se transforma em referência e tensãocom o arranjo do qual é constituinte. Osloci das positivações, das afirmações sobe-ranas, assim, deixam de ter a forma derecorte territorial especificado a partir desi, de sua interioridade, por contraposiçãoa seu “fora”. O poder situa-se da mesmamaneira, portanto, em todo e nenhumlugar; sua efetividade tem como eixo a arti-culação de escalas. As regiões de fragmen-tos configuradas nesse contexto escapamà necessidade férrea da contigüidade. Asidentidades e diferenças que podem espe-

cificá-las em grande parte não mais semostram constrangidas por impedimentosrelativos à distância; têm caráter essencial-mente topológico. A globalização capitalis-ta hodierna, além disso, não trata apenasde algo que diz respeito exclusivamenteao espaço, mas mergulha duplamente notempo exacerbando o presente. Procuralivrar-se das amarras com o passado pormeio da imposição de padrões globais 3

permanentemente recriados de formadescomprometida com o então vigente,tanto quanto visa a “eternizar” o momentoatual negando qualquer novidade essencialposterior – o futuro é aqui, é agora, é sem-pre – no mesmo compasso que, incorpo-rando uma ratio oriunda do ecologismo,açambarca o tempo vindouro através deuma utopia tornada atual, em cada instan-te, por intermédio da intenção concernenteao apregoado compromisso de “sustenta-bilidade” com as gerações que virão.Nesse contexto de privilégio quase queabsoluto do tempo presente e de requalifi-cação do espaço, as modalidades moder-nas de planejamento estratégico global ede planejamento territorial revelam-se ana-crônicas e, em conseqüência, têm sidoabandonadas em nome de uma práticareguladora, de ajuste, instantânea e cons-tante, imaginada para ser realizada porintermédio da própria dinâmica do merca-do globalizado. Os significados singularesde certos recortes espaciais e temporaisatribuídos em consonância com as práti-cas da alta modernidade – respectiva-mente, por exemplo, os significados de:cidade, região e território nacional; passa-do, presente e futuro – tendem também ase mostrar inadequados.

3 Referimo-nos a padrões produtivos, de consumo, culturais etc.

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74 Tempo-espaço-ambiente: para uma nova episteme

É destacável ainda nas práticas con-temporâneas o fato de o caráter de cadaobjeto, de cada processo, enfim, o caráterdo mundo globalizado, ser fortementemarcado por determinada impregnação“técnica-científica-informacional” 4. Oconjunto de coisas distintas do self huma-no não deixa de continuar a ser predo-minantemente apropriado como recursoeconômico viabilizado por determinadopadrão técnico-científico, em prossegui-mento ao modo consagrado com a mo-dernidade. Mas agora a técnica deixa deser simplesmente um meio que permite ouso dos materiais enquanto coisas dadas,transfigurando-os em recursos; torna-setambém, com o caráter expandido apon-tado anteriormente, modo necessário eprimordial de instituição das próprias coi-sas enquanto tais. A solidez da separaçãoentre o que era visto como existente autô-nomo, natural, e o artifício apresenta-sequebrada pelo alcance e a profundidadeda intervenção humana na estrutura e nosprocessos do mundo das coisas. Alémdisso, a impregnação aludida faz com queas mãos, os corações e as mentes que“se apropriam” dos materiais não direta-mente trabalhados, não mais neles distin-gam, metodológica e gnosiológicamente,qualquer sentido específico próprio, isola-do do contexto. Tudo transcorre como seos existentes “naturais” fossem amálga-mas indissolúveis: ao mesmo tempo todosos valores e tensões sociais a eles asso-

ciados, todas as quantidades verificadase imaginadas, todas as propriedades tes-tadas e concebidas, todas as teorias queos descrevem, todas as fórmulas matemá-ticas capazes de traduzir essas teorias emsuas múltiplas facetas, todas as formase modos concernentes às manipulaçõespossíveis e supostas, todas as imagensassociadas a essas formas e modos, todosos correspondentes números e combina-ções de bits que traduzem tudo isso eminformação digital disponível, todo o es-pectro de distribuição dessa informação.É claro que, na ação, cada agente, emfunção de seu escopo e de condicionantescircunstanciais, opera seletivamente emmeio a esse conjunto do que cada coisa“é”; mas a síntese sinérgica de todas asfacetas nunca deixa de ser o referencialsubjacente.

Questões atuais do saberQuestões atuais do saberQuestões atuais do saberQuestões atuais do saberQuestões atuais do sabersobre os homenssobre os homenssobre os homenssobre os homenssobre os homens

A análise dos eixos de mudança no âmbi-to das práticas sociais contemporâneasacima abordados – referentes particular-mente à criação artística, às relações depoder, à globalização da economia e dacultura, e à base técnico-científica – per-mite afirmar que essas práticas, no queaportam de novidade5 e pelas conseqüen-tes vivências que produzem, estabelecemcertos campos problemáticos em relação

4 A noção é do geógrafo Milton Santos (1993).5 A observação é necessária para destacar, mais uma vez, que não compreendemos as práticas

efetivamente realizadas na atualidade como exercício puro de novas formas e modos de açãosocial e técnica, mas como resultantes da tensão viva entre a resistência do velho, do cristalizado,do experimentado, e o ímpeto arrebatador da inovação. Por conseguinte, não consideramosválida qualquer reflexão sobre as experiências hodiernas que despreze de forma absoluta ostermos de referência antes instituídos.

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ao modo de saber sobre os homens hege-mônico na alta modernidade. Dois dessescampos nos parecem traduzir ampla eessencialmente o ponto principal da ques-tão. O primeiro, mais genérico, diz respei-to ao tópico do próprio caráter específicodo saber sobre os homens, expressandoas questões decorrentes da débâcle dasgrandes narrativas de legitimação e, aomesmo tempo, trazendo à baila as con-tradições relativas ao esvaimento dadicotomia diferencial entre artifício e não-artifício, e das correspondentes metonímiasde artifício com cultura e de não-artifíciocom natureza. O outro campo polariza-seno tópico mais circunscrito do conteúdodas afirmações referentes ao par presença/ausência enquanto metonímia do par inclu-são/exclusão, sintetizando os paradoxosrelacionados ao tempo e ao espaço.

Do campo problemático primeiramen-te indicado, o tema da legitimação do saberna modernidade radicalizada não consti-tuindo foco central nas preocupações quenorteiam este trabalho, queremos apenasdeixar claro nosso entendimento cultural

do saber e nossa proximidade com a visãolyotardiana, no que aponta a ruína dasmetanarrativas modernas como falênciada razão enquanto seu (das metanarrati-vas) sustentáculo por excelência e no queindica, como caminho de superação doimpasse, a legitimação através do con-fronto das “pequenas narrativas” emjogos paralógicos, jogos em que mesmoas regras permanecem em constantedisputa e nos quais não há, como idéiamestra subjacente, a necessidade de “vitó-ria” por eliminação dos contrários. Asso-ciamos a essas idéias a de que o sabernão só é uma elaboração cultural emtermos gerais, mas é uma elaboração eri-gida especificamente como símbolo6. Ouseja, esse saber não nega em absoluto aexistência efetiva do mundo, mas parte doprincípio da impossibilidade da constitui-ção de elementos de juízo que permitamqualquer afirmação sobre o sentido absolu-to de verdade das apresentações narrati-vas. Isso tampouco é uma fenomenologiaque aceita a impossibilidade do conheci-mento diante das coisas em si, mas fluisem agravos em meio à supostamente des-lindável verdade do aparente fenomênico7.

6 Adotamos a nomenclatura usual na antropologia americana, oposta à de Saussure. Objetiva-mente, então, neste texto: símbolo é a elaboração arbitrária; signo, a motivada (Sahlins, 1979,cap. 2, especialmente p. 72, nota 1).

7 Referimo-nos à fenomenologia de base husserliana. Essa teoria opera uma “suspensão dejuízo” sobre o mundo das coisas de modo a realizar o que denomina de “reduçãofenomenológica”. O mundo resultante dessa operação é então passível de uma fenomenologia,ou seja, é passível de conhecimento. Como explica Mora (1994, p. 1.240), a redução referidanão significa negação da realidade, mas a abstenção de juízos sobre a existência espaço-temporal do mundo. “El método fenomenológico consiste, pues”, diz aquele autor, “en re-considerar todos los contenidos de conciencia. En vez de examinar si tales contenidos sonreales o irreales, ideales, imaginarios, etc., se procede a examinarlos en cuanto son puramentedados. Mediante la epojé (a suspensão aludida) le es posible a la conciencia fenomenológicaatenerse a lo dado en cuanto tal y describirlo en su pureza. Lo dado no es en la fenomenologíade Husserl lo que es en la filosofía trascendental (um material que se organiza mediante formasde intuición y categorías). No es tampoco algo ‘empírico’ (los dados de los sentidos). Lo dado

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Na concepção que adotamos, as idéiasaparentadas de Ser, Verdade, Essência,Natureza 8 – enquanto substância dascoisas ou, em relação aos homens, noformato de “natureza humana” –, estãodescartadas; do mesmo modo, noçõescorrelatas, como as de Historicidade,Destino e Progresso humanos. Conformejá aludimos, a gnosiologia que temos emconta esgota-se em si mesma enquantonarrativa de descrição “de superfície” 9;constrói propriamente simulacros, como

caracterizados por Deleuze (1974) 10, namedida em que apenas elabora imagenssem semelhança “daquilo que é”, desig-nando potência para produção de umefeito. O valor próprio de uma narrativa,portanto, rigorosamente só diz respeitoao contexto que a empreende e tem comoreferência um tópico específico. Há nessamodalidade gnosiológica um largo e, semdúvida, sofrido salto em abandono dapretensão desde sempre reiterada deconhecimento exato e verdadeiro “daquilo

es el correlato de la conciencia intencional*. No hay contenidos de conciencia, sino únicamente‘fenómenos’. La fenomenología es una pura descripción de lo que se muestra por sí mismo, deacuerdo com <el principio de los principios>: reconocer que <toda intuición primordial esuna fuente legítima de conocimiento, que todo lo que se presenta por sí mismo ‘en la intuición’(y, por así decirlo, ‘en persona’) debe ser aceptado simplemente como lo que se ofrece y talcomo se ofrece, aunque solamente dentro de los límites en los cuales se presenta>.” O tema éabordado por Edmund Husserl na “Sexta investigação” de sua obra Investigações Lógicas (verHusserl, 1996).*Observe-se que intenção no pensamento de Husserl expressa um sentido gnosiológico, desig-nando o fato de que qualquer conhecimento só se torna possível quando existe determinadaintencionalidade em operação. Na explicação de Mora, “La intención es entonces el acto delentendimiento dirigido al conocimiento de un objeto.” (p. 1.878)

8 Na interpretação de Clément Rosset, as visões que se pautam por alguma forma direta oucorrelata da idéia de natureza – que ele denomina genericamente de visões “naturalistas” –podem ser agrupadas na modernidade “segundo três grandes tendências, que figuram trêsmaneiras diferentes de utilizar a idéia de natureza: ou se estima que a natureza estava presentemas se degradou, sendo necessário protegê-la de toda deterioração nova (naturalismo conser-vador); ou se estima que a natureza ainda não está presente e que é preciso instaurá-la (natu-ralismo revolucionário); ou, enfim, se estima a natureza como uma instância ausente, cujaspretendidas manifestações são puramente de ordem social, tratando-se de, paradoxalmente,transgredi-la para alcançar uma existência real e verdadeiramente ‘natural’ (naturalismo per-verso).” (Rosset, 1989, p. 284)

9 O que não quer dizer, evidentemente, superficial em relação a algo profundo; isso simplesmenteporque, em termos gnosiológicos, como visto, essa imaginável profundidade está fora de questão.Para nós a cultura é arranjo com a opacidade.

10 Deleuze (1974, p. 263. Grifo nosso), ao discutir a nietzschiana proposição de “reversão doplatonismo” em apêndice da Lógica do Sentido, especifica: “A cópia é uma imagem dotada desemelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança (...) O simulacro é construído sobreuma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude.” “O simulacro incluiem si o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transfor-ma e se deforma com seu ponto de vista.” (ibid., p. 264). “O simulacro não é uma cópiadegradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto omodelo como a reprodução.” (ibid., p. 267. Grifo do autor)

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de que se trata”. Se aqui, no entanto, essecaráter de superfície do saber é entendidocomo necessário em resposta ao reconhe-cimento da limitação humana – resposta,conseqüentemente, ao arrogante e ilusórioautoritarismo epistemológico que pretendeajuizar sobre o essencial –, a modernaciência das coisas – em sentido distintodo moderno saber sobre os homens, queem momento algum deixou de estarenamorado de alguma forma de histo-ricidade – desde há muito vem assumindona prática postura assemelhada11 – aindaque no discurso sempre tergiverse sobre otema –, contentando-se com um saber cujovalor é atribuído primordialmente por suafuncionalidade em relação à determinaçãomaior de apropriação utilitária do mundo.

O segundo tópico distinguido aindadentro do campo problemático referenteà especificidade do saber sobre os homensé o que considera a ruptura da diferencia-ção moderna entre artifício e não-artifício.Não há nenhuma dificuldade em tomarexemplos à modernidade radicalizada emque o mais duro predicado associado àidéia de natureza, o atributo de auto-nomia, fique abalado 12. Assim, nesse es-pectro em que o não-artifício parece terdesaparecido – ou, no máximo, é vistocomo ainda não tendo desaparecido detodo –, poder-se-ia imaginar o esvaeci-mento da diferença entre as noções que

respectivamente especificam os mundosdos homens e das coisas; a idéia de natu-reza como categoria própria do que existee desenvolve-se independentemente daação humana voluntária desapareceria.Entretanto, no que se refere ao âmbitoda teoria do conhecimento que vimosassumindo, toda descrição é tomada porprincípio como cultura. Se, no plano daspráticas, cada vez mais a existência deobjetos vivos e inanimados pode serreproduzida ou recriada em inusitadasformas e modalidades, a fantasia demiúr-gica gerada não implica, dentro da esferagnosiológica, a desqualificação da especi-ficidade ao que denominamos mundo doshomens. A perda de significado das meto-nímias indicadas – artifício por cultura,não-artifício por natureza – não expressao desaparecimento da sociedade e dascoisas (enquanto res naturalis) como sin-gulares objetos do conhecimento, ou seja,presumidos no âmbito das apresentaçõesnarrativas como estruturados em funda-mentos próprios e distintos entre si.

Mas quais são exatamente as dife-renças imaginadas – dentro do âmbitoda própria cultura, frisemos, e não comodiscernimento entre o que é e o que nãoé elaboração cultural – que considera-mos em sintonia com o saber e as práti-cas atuais? Recordemos inicialmente quea visão dominante de natureza na mo-

11 Não queremos dizer com isso que a ciência moderna opere com referência a uma idéia desimulacro; queremos apenas destacar que, após a Revolução Científica, o valor do saber cien-tífico tornou-se primordialmente atrelado à sua utilidade técnica. Mesmo teorias que,declaradamente, especulam sobre “o que é”, como a atual concepção da origem do Universoatravés de um “Big Bang”, não escapam mediatamente a essa designação.

12 Para não deixarmos de citar ao menos um caso, lembremos a clonagem de mamíferos adultosexperimentada com êxito recentemente, porta aberta à recriação não ficcional da epopéia deFrankenstein.

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dernidade centra-se não somente no prin-cípio de autonomia – hoje minado, comovisto –, mas também no de ordem ne-cessária, caracterizado nos viventes peloimpulso inevitável e sem tensões do in-tento de reprodução da espécie.

Em paralelo, marcada pela similari-dade formal, a visão moderna sobre omundo dos homens baseia-se no princí-pio de historicidade, a expressar a “natu-reza humana” em seu inexorável destinode reprodução social no caminho da sal-vação. O devir humano imaginado poressa visão, entretanto, é gravado pela ten-são entre as determinações maiores dahistoricidade e os anseios da vontade,predicado também considerado inerente,ainda que, em última instância, constran-gido pela rota ao destino. A questão daliberdade assim estabelecida é o pólo dra-mático desse devir e, sob outro ponto devista, o verdadeiro tópico da especificida-de humana. A modernidade radicalizadaincorporou à idéia de natureza certa mo-dalidade de acaso, qual seja, o eventodecorrente do cruzamento não estrita-mente previsto – no entanto, passível deantecipação probabilística – de sériescausais perfeitamente determinadas; in-corporou ainda a noção de ordem de-corrente da desordem. Nos dois casos,como se pode inferir, não há rompimen-to com a amarração às âncoras da cau-salidade – agora, então, probabilística oudeterminística – e do ordenamento. Nocampo do saber sobre os homens, a ne-cessidade foi abrandada como “historici-dade fraca” de modo a incorporar certascontingências não abarcadas pelo olharseveramente necessitarista e teleológico.Mas isso não desarma o naturalismo da

concepção. Em nosso ponto de vista,mesmo suavizada, a suposição de umahistoricidade qualquer para os homens édescabida por corresponder à suposiçãode uma natureza humana universal – nãohá como sustentar, por mais difícil queseja compreender e aceitar o vazio daídecorrente, que mesmo idéias tão carasao mundo moderno, como as de liberda-de, de fraternidade e de igualdade, nor-teiem universalmente o existir e o devirdos homens. Nem ainda como instrumen-to gnosiológico a idéia de historicidade éválida, visto que não poderia deixar detornar-se o pólo forte do saber gerado,obscurecendo todas as vicissitudes, osmeandros e a textura errática do aconte-cer do mundo dos homens, prenhe deacaso, invento e intenção. De modo simi-lar, é descabida a própria noção de na-tureza como essência absoluta e universaldas coisas, o que não impede, esclare-ça-se, a consideração gnosiológica de re-gularidades situadas no tempo-espaço.Assim, na concepção que vimos susten-tando, como as afirmações tanto sobre omundo dos homens quanto sobre o mun-do das coisas são apresentações produzi-das pelo contexto cultural, é internamenteao âmbito desse contexto que a especifi-cidade gnosiológica de cada um dos mun-dos tem que ser buscada.

Em primeiro lugar, há que se ter emconta a “metadistinção” representadapelo fato de serem os homens que se in-terrogam a si mesmo e interrogam o quediscernem como seu exterior, produzin-do desse modo saber, cultura. De modocorolário, esse meio exterior ao self, queinclui tanto os objetos materiais – inclu-sive o próprio corpo humano – quanto

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as relações sociais, é o objeto das interro-gações. Enquanto objeto de conhecimen-to, dois planos, totalmente entrelaçadose em tensão, podem ser tomados comoplanos de afirmação do que seria especí-fico ao mundo dos homens: o das regu-laridades causais regionais, determinadasintencionalmente em função de certa uto-pia teleológica mentalizada, e o do aca-so, não somente na dimensão restrita do“por acaso” das ordens, mencionadoanteriormente, mas na dimensão da in-certeza decorrente da arrojada capaci-dade de criação humana. O mundo dascoisas, por sua vez, pode ser especifica-do gnosiologicamente também através deum plano que tome regularidades cau-sais regionais, no qual, porém, as dura-ções e as extensões vigorantes podem sersupostas em escalas distintas das imagi-nadas para os mesmos termos no reinodos homens e, ainda mais significativo,no qual essas regularidades são conside-radas movimento sem intenção, mas queconstituem certas “normas locais de con-vívio” 13. O outro plano de afirmação daespecificidade do âmbito das coisas étambém o que tem por referência o aca-so. Do mesmo modo, reivindicamos paraesse plano a amplitude que transcende oterritório restrito do “por acaso”. Mas aquisitua-se uma das delicadas pedras de to-que do mundo das coisas. O acaso radi-cal então imaginado não correspondemais, evidentemente, à indeterminação

de um ato criativo puro, nem à incertezade uma invenção intencional – que, mes-mo inusitados e em ruptura de padrões,não escapam ao gravame da cultura, ouseja, não escapam ao fato de se consti-tuírem enquanto novidade que politica-mente reitera ou nega valores. O acasono mundo das coisas, em seu sentidomais próprio, corresponde à impondera-bilidade absoluta da novidade genuína –que somente é, independentemente dequalquer contexto do que era, ou do queserá –; é aquela transformação que eclo-de em decorrência de uma mudança cujosignificado nos parece bem traduzido pelaidéia de clinamen do velho atomismo lu-creciano.

O outro campo problemático assina-lado, aquele cujo foco nevrálgico é a pro-blemática das afirmações de presença eausência e das metonímias corresponden-tes, tem sido objeto de alentada discussãono seio da espaciologia. Para AnthonyGiddens, o tópico é crucial à compreen-são da sociedade, por considerar que“toda vida social ocorre em – e é constituí-da por – interseções de presença e ausênciano ‘escoamento’ do tempo e na ‘transfor-mação gradual’ do espaço” (Giddens,1989, p. 107). Todavia, neste ponto dotrabalho, fixemo-nos na contribuição deR. Shields (1992), que, usufruindo da basegiddensiana, caminha mais diretamenteno sentido do que queremos discernir 14.

13 No “local” “mundo dos viventes”, por exemplo, a norma em referência pode ser tomada comoa reprodução regular e sistemática do que já é; qualquer mudança decorre de injunções necessá-rias a esse intento reprodutivo. No “local” correspondente à constituição íntima dos materiais,outro exemplo, a norma gnosiológica de convívio pode ser constituída pelo conjunto de instru-mentos à narrativa que a teoria quântica especifica e trata como leis.

14 Apesar de adotar a caracterização de “pós-modernidade” ao mundo hodierno, caracterizaçãodistinta, portanto, da posição firmada por Giddens e por nós assumida (modernidaderadicalizada).

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Esse autor, argüindo através da análisedo que toma como três formas de mani-festação da espacialidade – inclusão/ex-clusão, diferenciação espacial e presença/ausência – sobre as descontinuidadesgeográficas dos processos sociais contem-porâneos, constata que a fundamentaçãodo par presença/ausência, como estrutu-radora do espaço, encontra-se subverti-da. Para ele,

“the modernist alignment of presenceand absence with interiority and ex-teriority, wich gives rise to all thosetropes of exclusion and distance,should not be taken for granted as auniversal. Post modernism destabili-ses the metonymic structure whichrelates presence and absence with pro-ximity and distance. A synthetic uni-on of distance and presence, of theforeign and intimate, becomes con-ceivable and practicable. But anypotential rapprochement of presenceand absence implies changes in thespatialisation by which identities suchas the state, community, or personare understood. In turn, this cannotbut have widespread impacts on theconception of society and the indivi-dual.” (Shields, p. 192. Grifo nosso)

“The world is no longer given as a sim-ple presence and what is present, butas an incongruous synthesis of newsocial proximities which may not co-incide with spatial proximity...” (Ibid.,p. 196. Grifo nosso)

No pensamento de Shields, por con-seguinte, a incorporação do tópico doespaço na teoria social através da abor-

dagem da tensão presença/ausência, as-sociada aos pares inclusão/exclusão eproximidade/distância, se ainda faz sen-tido para uma interpretação paradigmá-tica da alta modernidade, tem que serrevista para uma narrativa sobre os pro-cessos atuais.

Na discussão traçada por Shields eGiddens sobre as noções de presença eausência como determinantes do conteúdodo espaço, destacamos especialmente aidéia, aceita por ambos, de que o vínculotempo-espacial dos acontecimentos nasociedade hodierna é de natureza distintado prevalecente na alta modernidade, namedida em que não mais se mostra subsu-mido de modo absoluto à problemáticado deslocamento dos corpos, o que corres-ponde, em outros termos, a uma situaçãolimítrofe em que a referência tempo-espa-cial dos eventos é a velocidade da luz. Se-gundo a formulação de Shields, há umaruptura na rigidez metonímica que permiteexclusivamente as associações presença/proximidade/inclusão e ausência/distân-cia/exclusão, e que então pode assumirformas múltiplas, contemplando tambémassociações antes imaginadas parado-xais, como presença/distância/inclusão.Isso é possível em decorrência da vigorosaintromissão do tempo nos processos es-paciais operada, como indicado, atravésdos novos modos e formas das práticasque transformam, até, o caráter resistenteda dimensão geográfica que a NouvelleHistoire especifica como tempo longo.Shields aparentemente dá um passoadiante, ao sugerir que o mundo atualdeve ser pensado como síntese de “pro-ximidades sociais” que não coincidemnecessariamente com “proximidades es-

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paciais”. A lógica é perfeita se aceitarmosque a idéia de “proximidade espacial”,inserida no contexto da teoria social – enão de qualquer ciência de caráter pura-mente geométrico –, possa ser concebidaem algum momento como mera expres-são quantitativa, simples medida consti-tuinte de uma idéia de espaço reduzido àextensão. Aqui transparece o fulcro doproblema que identificamos nas formula-ções tanto de Shields quanto de Giddens.A questão por eles corretamente identifica-da – a desvinculação tempo-espacial doseventos hodiernos – não pode ser tratadapor uma abordagem voltada exclusiva-mente à construção de novas metonímiasa partir dos mesmos conceitos-base; estespróprios conceitos devem ser (re)apreen-didos criticamente.

Com esse intuito, tomemos particu-larmente a idéia-chave de presença. Oque lhe confere positividade? Mesmo sefor aceita a noção de “proximidade” parareferência – como supôs-se válido paraa alta modernidade –, quais os critériospara definir a distância limite a partir daqual “há proximidade”, logo, presença?É um critério de percepção direta pelossentidos? Qual a temporalidade associa-da a essa presença? É necessário conti-nuidade? E qual duração? Enfim, aconsideração da idéia de presença – ede sua contraface, ausência –, sem adevida fundamentação conceitual, deixa-nos num terreno pantanoso, de vaguida-de teórica.

Um caminho fértil de substantivaçãoda noção referida é o de construí-la apartir das idéias-suporte de pertinência,identidade e alteridade, por sua vez con-

cebidas como fundamentos de carátertopológico e quântico. Topológico porquefundamentos entendidos como expressãode configurações relacionais, em que ocaracterístico não é meramente o fato deque os pontos conectados remetem-seuns aos outros; a relação aí dominante émais abrangente e globalizadora: cadaponto, ainda que de modo fugidio, definee constitui certo arranjo do conjunto;cada ponto “sabe” esse arranjo porque,como diferença na unidade, é tambémseu criador e sua síntese. Isso, não aomodo das mônadas leibnizianas – em queuma harmonia preestabelecida garante areciprocidade com o exterior diante danão-existência de “janelas” –, mas porintermédio de uma porosidade que tendeao absoluto, por meio da qual exterior einterior intercambiam recriando-se inten-sa, veloz e constantemente. O predicadotopológico, no modo aqui entendido, ex-pressa a vigência das relações conside-radas no tempo-espaço, portanto,frisemos, não apenas a vigência das rela-ções no espaço – como no sentido usualdo termo –, ou mesmo, independentemen-te, no tempo e no espaço. Os fundamen-tos referidos são também especificadosmetaforicamente como de caráter quân-tico porque, enquanto relações topológi-cas, são concebidos com característicasem que podemos identificar similarida-des formais com certos traços dos pro-cessos imaginados no seio da teoria dosquanta, quais sejam: não significam ne-cessariamente continuidades; não cons-tituem quadro fixo, mas apresentam-secomo febril campo de transformações;cada apresentação pela qual se objeti-vam depende duplamente do sujeito quea afirma, tanto pela linguagem adotada,

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quanto pelo fato de que o próprio atognosiológico é o que institui o objeto to-mado em consideração; as múltiplasapresentações que podem ser configura-das são tidas como complementares 15.

O caráter de relação topológica equântica especifica o que supomos comoessência das idéias-suporte de pertinência,identidade e alteridade. Desse modo, pode-mos compreender, de maneira precisa, osentido de pertinência como âmbito, comoatribuição. Isso, por sua vez, exige a explici-tação do contexto gnosiológico na forma“fictícia” de um par sujeito/objeto. Fictícia,visto que tal sujeito somente objetiva-secomo identidade positiva – como conteúdoespecífico, duração, extensão e situaçãono tempo-espaço –, quando sua virtuali-dade complexa confronta-se com um álter(objeto) constituído como significante e,ao mesmo tempo, como determinante dopróprio sujeito, no mesmo processo. Anoção de presença assim substantivadaexpressa estruturas e dinâmicas rela-cionais; em função de seu conteúdo to-pológico e quântico específico, definedeterminado território no tempo-espaço –ou, talvez melhor dizer, é determinadoterritório. Cada evento tomado, no entanto,é síntese complexa de inúmeras pertinên-

cias, portanto parte de inúmeros territóriostempo-espaciais.

Os termos geográficos de um eventopensados nesse arranjo teórico têm,assim, como vetor de positividade umaidéia de presença que escapa ao deter-minismo férreo do espaço euclidiano; afundamentação topológica e quântica dapertinência através da qual presença ouausência são afirmadas é incompatívelcom o caráter absoluto, com a homoge-neidade, com a continuidade e com a re-dução do espaço à extensão. Além disso,esses termos geográficos estão imbricadosnecessária e inexoravelmente em umahistória – o que está expresso acima pelanoção do uno tempo-espaço – que, demodo similar, possui como vetor de positi-vidade uma idéia de presença que foge àrígida sucessão comandada por Chronos.O devir histórico, marcado agora pelotempo de Zeus aberto a kairos, não é entãonecessariamente composto de momentoscontíguos em sucessão; a presença ou acontinuidade entre acontecimentos é so-mente afirmada pela pertinência estabe-lecida entre eles. Esse tempo, assim, nãoé único – pois várias podem ser as perti-nências associadas a um evento –, nemredutível à homogeneidade, à linearidade

15 A especificação “topológica e quântica” que fazemos para as idéias-suporte da noção depresença, inspira-se em certa formulação de Deleuze e Guattari relativa a conceitos de devir evizinhança. No Mil Mesetas (1988), eles afirmam: o “principio de proximidad o de aproximaciónes muy particular, y no reintroduce ninguna analogía. Indica lo más rigurosamente posible unazona de entorno o de copresencia de una partícula, el movimiento que adquiere cualquierpartícula cuando entra en esa zona (...) También se puede decir: emitir partículas que adquierentales relaciones de movimiento y de reposo porque entran en tal zona de entorno; o: que entranen esa zona porque adquieren esas relaciones. Una haecceidad es inseparable de la niebla ode la bruma que dependen de una zona molecular, de un espacio corpuscular. El entorno esuna noción a la vez topológica y cuántica, que indica la pertenencia a una misma molécula,independientemente de los sujetos considerados y de las formas determinadas.” (Op. cit., p.275. Grifos nossos)

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e a um irreversível caminho ao telos. Por-tanto, melhor dizendo, “os tempos históri-cos” incorporam também a possibilidadede serem heterogêneos, de bifurcarem-se,de mudarem de ritmo, de irem e voltarem,de serem intencionais, de viverem semculpa o prazer da incerteza da criação.Mas não é só. Como os eventos sociaisnão são pensados enquanto meras virtuali-dades, mas supostos enquanto aconteci-mentos efetivos – afirmados como tais pelainteração dos homens, mediada pela téc-nica, em relação a determinado meio –,as presenças que configuram no tempo-espaço através de pertinências, de identi-dades e de alteridades, envolvem também,necessariamente, termos ecológicos; osaber sobre eles, pois, envolve determina-da visão do mundo das coisas. A funda-mentação topológica e quântica assumidapara as noções-suporte da presença exige,em nome de uma compatibilidade concei-tual, que essa visão das coisas comporteo mesmo tipo de essência relacional, por-tanto, que seja livre de determinismos efins absolutos e, ao inverso, seja prenhede múltiplos caminhos, de regularidadeslocais, de incertezas probabilísticas, deacasos puros; que seja prenhe de camposqualitativos.

A construção teórico-conceitual deli-neada desarma a problemática gnosioló-gica encontrada perante as práticas domundo atual. A quebra do formato dasmetonímias modernas de presença por

proximidade ou por inclusão e de ausên-cia por distância ou por exclusão 16 deixade ter significado maior: as afirmações depresença/ausência ou de inclusão/exclu-são tornam-se possíveis a partir do con-teúdo da pertinência levada em conta enão de qualquer parâmetro quantitativode juízo.

O uno tempo-espaço-O uno tempo-espaço-O uno tempo-espaço-O uno tempo-espaço-O uno tempo-espaço-ambienteambienteambienteambienteambiente

Voltemo-nos agora mais diretamente àsidéias de “mundo das coisas” e “tempo-espaço” que acima adotamos associadasàs injunções dos fundamentos supostosà noção de presença. Em relação à idéiade mundo das coisas, já discorremos an-teriormente, no que tange à sua especifi-cidade de res naturalis, sobre os tópicosconcernentes que se articulam referencia-dos ao pólo problemático gerado pelatensão entre determinação e incerteza.Queremos ainda esclarecer a noção decomplexidade, fundamento que especificade modo particular a estrutura e a dinâ-mica dessas “coisas naturais” enquantoatravessadas pela mistura de ordens e de-sordens, por ruídos e silêncios, por passosà frente, retroações e derivações. Diferen-temente da concepção desenvolvida porEdgar Morin (1987) 17, queremos rompercom a fundamentação sistêmica da idéiade complexidade. Não no sentido de negara possibilidade da suposição de sistemas

16 Termos tomados em seus sentidos usuais.17 Uma visão mais recente e sob outro ângulo da concepção de Morin relativa ao tema pode ser

vista no artigo/conferência intitulado “Epistemologia da Complexidade” (Morin, 1996). Aí,preso à idéia de natureza em si, esse autor identifica, no que diz respeito à complexidade, umpólo empírico e um pólo lógico. O primeiro corresponde à idéia de que tudo está em relação noUniverso; o outro, às limitações de teorias particulares a dar conta de um evento.

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complexos localizados para as apresen-tações daquele mundo, mas no intuito de,afirmando também nesse âmbito o carátertopológico e quântico às relações, contra-pormo-nos à rigidez de uma amarraçãoabsoluta e determinista que tende a obscu-recer a emergência gnosiológica das regu-laridades regionais e do acaso. Isso vai deencontro também à ainda mais radicalvisão sistêmica, aquela sustentada, entreoutras, pela vertente do pensamento am-bientalista “Ecologia Profunda” com anoção de “campo total”, que indica a ab-soluta e indiscriminada interdependênciadas partes, fundindo homens e coisas emum colossal ecossistema Terra. Queremos,não obstante, destacar positivamente doispontos de ordens distintas relacionados àidéia de complexidade. Um deles é o queaponta a retroalimentação como o tipoparticular de mecanismo que caracterizao acontecer complexo, numa rica apro-priação ao campo do saber sobre a resnaturalis de uma idéia emergida dos es-tudos de técnicas de controle dos me-canismos e desenvolvida na esfera dacibernética 18. O outro é o que entende asapresentações complexas, segundo o espí-rito quântico, como trama de visões e dereinos complementares. No primeiro caso,significando, por exemplo, a complemen-taridade expressa pelas teorias ondulatória

e corpuscular da luz. No segundo, porexemplo, traduzindo a complementaridadeexistente entre as teorias voltadas à escalamicrodimensional – reino de forças eletro-magnéticas e nucleares – e as voltadas àescala macrodimensional – reino de forçasgravitacionais.

A introdução de concepções detempo-espaço no campo do saber sobreos homens acontece de modo mais explí-cito e significativo no seio da espaciologiacrítica, particularmente através de Antho-ny Giddens e David Harvey. Giddensincorpora determinada idéia de tempo-espaço 19 à sua visão do saber sobre oshomens no contexto de uma reflexão emque, como ponto de partida, imputa àteoria social dominante o exercício decerta “repressão do tempo e do espaço”,ou seja, ele identifica nessa teoria umapostura asséptica e distanciada em rela-ção às efetividades temporais e espaciaisdos eventos. Em contraposição a isso,procura desarmar os antagonismos pre-sentes na teoria social referentes à tensãoentre ação e estrutura, assumindo objeti-vamente que todas as interações entreos homens e destes com o meio consistemem práticas localizadas inexoravelmenteno tempo e no espaço. Em desdobramen-to, adota a correspondência gnosiológica

18 Nos mecanismos, a primeira aplicação conhecida do princípio de retroalimentação é o siste-ma usado por James Watt (1736-1819), para autocontrole de sua máquina a vapor, em 1788(Ryder, 1996). Numa especulação sobre a relação entre cibernética e sociedade, um dos pio-neiros da ciência cibernética, Norbert Wiener (1894-1964), chega a afirmar: “A minha tese é ade que o funcionamento físico do indivíduo e o de algumas máquinas de comunicação maisrecentes são exatamente paralelos no esforço análogo de dominar a entropia através da reali-mentação.” (Wiener, 1967, p. 26)

19 Giddens refere-se sempre à idéia pela forma “tempo-espaço”, sugerindo certa prevalência dotempo. Para nós, porém, a ordem de composição do termo não importa em nenhum significa-do especial, prévio e permanente, apesar de, em geral, o grafarmos da mesma maneira queGiddens.

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entre as tramas diacrônica e sincrônica,e, exatamente através do corolário conceitode “distanciamento tempo-espaço”, entre-laça a problemática da transformação aotópico do poder. Apesar disso, a conjuga-ção dos dois referentes (tempo e espaço)efetuada por Giddens não evidencia a as-sunção de um terceiro, novo, cujo caráterdiferencia-se por efeito sinérgico da simplesaglutinação, ou da consideração paralela,dos desdobramentos no tempo e dos ar-ranjos no espaço. A idéia de tempo-espaçonesse autor não chega a configurar umuno de espírito minkowskiano, visto queextensões e durações dos eventos perma-necem objetivações independentes. Issotransparece, por exemplo, na concepçãogiddensiana de “desencaixe dos sistemassociais”, que exprime para a modernidadea idéia de extravasamento desses sistemasdos contextos circunscritos de espaço etempo, através dos mecanismos que de-nomina de “fichas simbólicas” e “sistemas

peritos” 20; nada aí sugere mútua e ne-cessária vinculação entre os conteúdos doespaço e do tempo abarcados. A inde-pendência de espaço e tempo fica aindamais nítida no pensamento de Giddens,todavia, quando ele explicita a reproduçãodos sistemas sociais como práticas geo-gráficas – sincronias sociais num espaçode Euclides – e históricas – diacronias so-ciais num tempo de Zeus. Portanto, se nãosupõe oposição, nem mesmo diferençaslógicas e epistemológicas, entre as discipli-nas ciência social, história e geografia, a“teoria da estruturação” não deixa de ser,em última instância, uma teoria da estru-tura agregada a uma teoria da ação.

Harvey não escapa a essa forma“somatório” de configuração da idéia detempo-espaço. Não obstante, a associa-ção que estabelece entre distintos períodosdo mundo capitalista – Iluminismo, Mo-dernidade e Pós-Modernidade21 – e níveis

20 “Fichas simbólicas” significando “os meios de intercâmbio que podem ser ‘circulados’ sem terem vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qual-quer conjuntura particular” (Giddens, 1991, p. 30); por exemplo, o dinheiro. “Sistemas peri-tos” significando “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizamgrandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje.” (ibid., p. 35)

21 Harvey (1993, p. 7. Grifo nosso) considera a emergência de práticas culturais “pós-modernas”,mas não, propriamente, um conjunto de transformações que possam caracterizar globalmenteum novo paradigma. Sua tese sobre o tema afirma: “Vem ocorrendo uma mudança abissal naspráticas culturais, bem como político-econômicas, desde mais ou menos 1972. Essa mudança(...) está vinculada à emergência de novas maneiras dominantes pelas quais experimentamoso tempo e o espaço. Embora a simultaneidade nas dimensões mutantes do tempo e do espaçonão seja prova de conexão necessária ou causal, podem-se aduzir bases a priori em favor daproposição de que há algum tipo de relação necessária entre a ascensão de formas culturaispós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novociclo de ‘compressão do espaço-tempo’ na organização do capitalismo. Mas essas mudanças,quando confrontadas com as regras básicas de acumulação capitalista, mostram-se mais comotransformações da aparência superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedadepós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova.” Em outra passagem, esse autorafirma que o caos da vida moderna e a impossibilidade de sua abordagem pela razão “nãoimplica que o pós-modernismo não passe de uma versão do modernismo; verdadeiras revoluçõesda sensibilidade podem ocorrer quando idéias latentes e dominadas de um período se tornamexplícitas e dominantes em outro.” (p. 49)

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diferenciados daquilo que denomina“compressão do espaço-tempo” tem omérito de transcender ao reducionismoao tempo e ao espaço explícito em suaspróprias argumentações 22 e de suscitarum conceito de tempo-espaço comonoção de caráter particular e uno, cujasformas objetivas traduzem conteúdos sin-gulares das práticas. Para ele, a históriacapitalista tem-se caracterizado por pata-mares distintos de aceleração do ritmode vida e de superação das barreiras es-paciais. Mas se na modernidade essa“compressão” do tempo-espaço tevecomo operador um processo marcadopela espacialização do tempo, no mundoatual tem como operador uma dinâmicacujo traço delineador é a “temporaliza-

ção” do espaço, pela exacerbação do efê-mero e do fragmento. Harvey (1993, p.257), com a atenção voltada mais direta-mente às especificidades da acumulação,pergunta-se “como os usos e significadosdo espaço e do tempo mudaram com atransição do fordismo para a acumulaçãoflexível”. A resposta sublinha a aceleraçãodo tempo de circulação do capital e a con-seqüente volatilidade do mundo presente23.Todavia, neste momento, interessa-nosmenos a resposta do que a indagação.Queremos chamar atenção sobre um as-pecto que, apesar de identificar, Harveynão desdobra convenientemente em nossoentendimento. Se mudam na passagempara as práticas hodiernas da acumulaçãoos “usos e significados do espaço e do

22 Relembrando: “À medida que o espaço parece encolher numa ‘aldeia global’ de telecomunica-ções e numa ‘espaçonave terra’ de interdependências ecológicas e econômicas (...) e que oshorizontes temporais se reduzem a um ponto em que só existe o presente (o mundo doesquizofrênico), temos de aprender a lidar com um avassalador sentido de compressão dosnossos mundos espacial e temporal.” (Harvey, 1993, p. 219)

23 “Desejo sugerir”, diz Harvey (1993, p. 257-8), “que temos vivido nas duas últimas décadasuma intensa fase de compressão do espaço-tempo que tem sido um impacto desorientado edisruptivo sobre as práticas político-econômicas, sobre o equilíbrio do poder de classe, bemcomo sobre a vida social e cultural (...) A transição para a acumulação flexível foi feita empartes por meio da rápida implantação de novas formas organizacionais e de novas tecnologiasprodutivas. Embora estas últimas possam ter se originado da busca da superioridade militar,sua aplicação teve muito que ver com a superação da rigidez do fordismo e com a aceleraçãodo tempo de giro como solução para os graves problemas do fordismo-keynesianismo, que setornaram uma crise aberta em 1973 (...) A aceleração do tempo de giro na produção envolveacelerações paralelas na troca e no consumo (...) Dentre as inúmeras conseqüências dessaaceleração generalizada dos tempos de giro do capital, destacarei as que têm influênciaparticular nas maneiras pós-modernas de pensar, de sentir e de agir. A primeira conseqüênciaimportante foi acentuar a volatilidade e efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção,processos de trabalho, idéias e ideologias, valores e práticas estabelecidas (...) No domínio daprodução de mercadorias, o efeito primário foi a ênfase nos valores e virtudes da instantaneidade(alimentos e refeições instantâneos e rápidos e outras comodidades) e da descartabilidade(xícaras, pratos, talheres, embalagens, guardanapos, roupas etc.) (...) Foram essas as formasimediatas e tangíveis pelas quais o ‘impulso acelerador da sociedade mais ampla’ golpeou ‘aexperiência cotidiana comum do indivíduo’ (Alvin Toffler, Choque do Futuro). Por intermédiodesses mecanismos (altamente eficazes da perspectiva da aceleração do giro de bens no consu-mo), as pessoas foram forçadas a lidar com a descartabilidade, a novidade e as perspectivasde obsolescência instantânea.”

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tempo”, como explicitado na questão aci-ma reproduzida, então, nos parece, mudaa própria natureza de qualquer idéia detempo-espaço concernente. Assim sendo,não se trata do mesmo tempo-espaço emnível de maior ou menor compressão, masde outro tempo-espaço, dotado de conteú-do e forma correspondentes específicos.Ou seja, não é possível gnosiologicamentetrabalhar o saber sobre os homens na mo-dernidade radicalizada com um conceitode tempo-espaço anacrônico, cujo fun-damento não esteja em sintonia com acultura e as práticas hoje vigentes – porconseguinte, em sintonia com processosque envolvem, ainda que não exclusiva-mente, lógicas de “temporalização” do es-paço num quadro cujo referente primordialé o “último veículo” viriliano.

Mas, exatamente que elementos deforma e conteúdo podem especificar umanoção de tempo-espaço atinente às carac-terísticas da modernidade radicalizada?Em primeiro lugar, a nosso ver é indispen-sável a assunção de uma essência una àidéia, de modo a assegurar através dela aexpressão da mútua dependência entre du-rações e extensões dos eventos. Dentro dolargo espectro assim firmado, certas con-ceituações de tempo-espaço desenvolvidasno campo do saber sobre as coisas nosparecem ideações férteis a pensar a estru-tura da noção no contexto social. Elas sãosingularmente passíveis de apropriaçãopelas narrativas dedicadas ao período damodernidade radicalizada, exatamenteporque configuram e operam apresenta-ções cujos significados também têm pormetron a velocidade da luz. Fique claro,contudo, que a similaridade apontada nãoimplica trânsito livre dos conceitos desen-

volvidos para as descrições do mundo dascoisas no reino das relações sociais, umavez que o significado de cada noção so-mente se estabelece enquanto objetividadeno contexto teórico de que é constituinte.Operemos esse deslizamento recriador.

O tempo-espaço que temos em con-ta – como noção gnosiológica, instrumen-tal, que articula o enredo narrativo –,compatível em especial às descriçõessobre a modernidade radicalizada, não éum receptáculo neutro, nem algo cor-respondente ao estatuto posicional doseventos entre si. Como ferramenta queespecifica os simulacros, que dá texturaàs superfícies, é um pleno de qualidadesdiferenciadas constituído por (e consti-tuinte de) cada evento e pelo (do) conjuntode eventos. As densidades, texturas eformas singulares que toma – em que amétrica euclidiana é caso particular e ex-cepcional –, suas continuidades e ruptu-ras, são determinadas em cada ato dosaber pelo arranjo, pelas respectivas re-lações entre os eventos e pelo formato enatureza imaginados a cada um deles;dizem respeito, portanto, exclusivamentea cada intervenção gnosiológica. Nessequadro, as durações, os ritmos, as exten-sões e as formas dos acontecimentossociais, além da mútua dependência in-dicada, não podem ser assumidos comouniversais, mas como valores relativos aessa intervenção ou, em outros termos,como valores que se referem a um parti-cular contexto produtor de conhecimento.Do mesmo modo, a posição do dito acon-tecimento no tempo-espaço é relativa.Não há simultaneidade absoluta. Por con-seguinte, qualquer sincronia só pode serafirmada por intermédio de vinculação

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topológica (tempo-espacial) específicaque estabeleça os liames dos eventosentre si e destes com o sujeito cognoscen-te, configurando determinado contexto deconhecimento. Cada narrativa é dupla-mente amarrada ao pólo-sujeito dessecontexto, tanto pela singularidade deter-minada pela linguagem de interlocuçãoadotada, pelas questões pinçadas à inda-gação e pelo recorte tempo-espacial espe-cificado previamente ao olhar inquiridor,quanto pela interferência e pela incertezaresultantes da própria ação inquiridora.Nesse sentido, o ato de produção do saberé uma modalidade do agir social; todoobservador é necessariamente, voluntaria-mente ou não, conscientemente ou não,também jogador. Todo sujeito do conheci-mento é, como tal, um agente político.

Uma topologia histórico-Uma topologia histórico-Uma topologia histórico-Uma topologia histórico-Uma topologia histórico-geográfica-ecológicageográfica-ecológicageográfica-ecológicageográfica-ecológicageográfica-ecológica

Essa concepção de tempo-espaço gra-vada pelos predicados de relatividade emultiplicidade, no entanto, traz embutidao germe de um desdobramento que naverdade redefine mais amplamente a pró-pria idéia original. Se o tempo-espaço ésuposto dependente em sua essência qua-litativa do específico caráter social doseventos que abarca – e vice-versa –, e se

esses eventos, enquanto acontecimentossociais, expressam relações entre oshomens e, através destas, interações como ambiente físico em que vivem esseshomens, então também o mundo dascoisas – como res naturalis em sua duplae cada vez mais indistinguível especifici-dade de coisa fabricada ou não – é de-terminação e determinante indissociáveldas conformações particulares tomadaspelo tempo-espaço. Assim sendo, parece-nos mais conveniente, de modo a expli-citar a trama apontada, tomar comoreferente aos eventos sociais, enquantonoção gnosiológica articuladora dos enre-dos narrativos, uma noção una de tempo-espaço-ambiente 24 e, conseqüentemente,construir cada evento social e as relaçõesentre eles, enquanto objetos de conheci-mento, tanto através dos valores entre-laçados de duração, extensão, forma,localização, e de afirmações sobre origem,regularidade, acaso e intenção, quantopelas características de artifício e de não-artifício do ambiente com que interagempor incorporação direta e como locus deocorrência. Valores, afirmações e carac-terísticas que, reiteremos, são interdepen-dentes e concernentes ao contexto doconhecimento.

A idéia de um referente assim consti-tuído permite retomar em melhor base a

24 Pode-se objetar à idéia prescrita certa superposição entre os conteúdos expressos pelos termos“espaço” e “ambiente”. Evidentemente, o ambiente enquanto coletânea de artifícios e não-artifícios pode ser tomado na dimensão de res extensa, por conseguinte, enquanto espaço.Optamos, no entanto, por atribuir à noção de “ambiente” a exclusiva e particular discrimina-ção dos predicados de res naturalis, considerada tanto na forma manipulada quanto na não-manipulada. Assim agimos, em primeiro lugar, para preservar explicitamente na nova idéia aforma tempo-espaço da qual ela é desdobrada e, sem menos importância, por querermosdeixar em destaque a dimensão espacial. Além disso, assim fazendo, a noção de ambiente,exatamente por englobar o que seriam produtos artificiais e não-artificiais, sinaliza a caduci-dade da rígida distinção epistemológica entre ambos.

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problemática do saber sobre os homensna modernidade radicalizada. A topologiaquântica, que havíamos indicado comosubstrato às relações de pertinência e àsafirmações de identidade e alteridade,agora pode operar sobre um leito concei-tual que sintetiza e supera sinergicamenteas especificidades problemáticas das tra-mas temporais, dos arranjos espaciais edas injunções do meio. A especificidade“topo” é, agora, não somente localizaçãono tempo-espaço, mas, em pé de igual-dade gnosiológica, também discriminaçãodo ambiente como res naturalis manipu-lada ou não. Tempo-espaço-ambiente éa noção chave ao que denominamos deepisteme não-canônica. Essa episteme –antes de tudo um campo de jogo aos acor-dos paralógicos, nem de longe uma novametanarrativa legitimadora –, atenta ànovidade e ao tradicional das práticas –portanto abarcando em sua complexi-dade os confrontos paradoxais sucessão/não-sucessão, intenção/acaso, duração/não-duração, reversibilidade/irreversibili-dade, extensão/não-extensão, contigüi-dade/não-contigüidade, forma/não-forma,regularidade/não-regularidade e manipula-ção/não-manipulação –, tem o caráter detrama conjuntural da diferença, pois seuintento primordial é exatamente mostraro que é distinto – e, como contrapartida,o que expressa identidade –, além de, emdesdobramento, elaborar uma narrativaque navegue os meandros e as sutilezasda tensão das partes entre si e de cadauma em relação ao conjunto. A suposiçãoprimordial dessa narrativa é que a tensãoindicada é o substrato que confere positivi-dade permanentemente, de modo sin-gular em cada conjuntura, ao acontecerdos homens.

Trazendo à tona o modo como explici-tamos gnosiologicamente as conotaçõessociais do tempo, do espaço e do ambien-te, podemos caracterizar a idéia regenteda trama conjuntural indicada como topo-logia histórico-geográfica-ecológica. Nãose pode falar aí, propriamente, em “pas-sado”, “presente” e “futuro” como perío-dos no tempo, amarrados em seqüênciarígida segundo o sentido inexorável e irre-versível do fluir cronológico. A diferen-ciação nessa topologia apenas diz respeitoa situações qualitativamente distintas doemaranhado histórico-geográfico-ecoló-gico, elaboradas conjunta e mesclada-mente enquanto memória, vivência eutopia. É interessante observar que, ape-sar do formato similar, essa alma matrizda episteme imaginada é radicalmentedistinta da suscitada respectivamentepela espaciologia e pelo ecologismo atra-vés das idéias de geo-história e eco-histó-ria. Em primeiro lugar, essas proposiçõestraduzem o escopo das respectivas verten-tes de pretender configurar novos paradig-mas legitimadores mais eficazes, segundopontos de vista particulares, o que nãosomente foge aos nossos objetivos, masefetivamente contrapõe-se à nossa com-preensão da problemática da legitimaçãona modernidade radicalizada. Em segun-do lugar, cada uma dessas proposiçõesimporta na incorporação ao saber sobreos homens apenas de determinada dimen-são parcial do ambiente em que se dá odevir social: a idéia de geo-história indicaa junção da trama do espaço ao fio dotempo; a de eco-história indica posturasemelhante, agregando agora às arti-manhas temporais as injunções de umsuposto mundo natural. Não há nessaspropostas de modalidades do saber sobre

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os homens indicação rigorosa de que sãoimaginadas em patamar qualitativamentedistinto – de complexidade mais elevada,tradução de inexorável interdependênciaentre diacronias e durações do devir hu-mano com, no primeiro caso, suas sincro-nias, extensões e formas, e, no segundo,com as modalidades de existência e trans-formação das coisas – daquele em quese situam respectivamente os saberes sin-gulares das disciplinas história, geografiae ecologia. Além do mais, a noção detempo assumida para a história é, emgeral, a de um tempo intencional e hete-rogêneo mas dotado de destino – o tempoconspurcado de Clio –, e as idéias-basede espaço e natureza não escapam, res-pectivamente, enquanto padrões inques-tionáveis, às razões da métrica euclidianae às lógicas deterministas da pura neces-sidade.

A idéia de história-geográfica-ecoló-gica, como sinalizador não-canônico dosaber sobre os homens, na medida emque afirma e destaca o inescapável papelinterveniente e singular do sujeito no con-texto produtor de conhecimento, fazaflorar em toda a plenitude a questão dasubjetividade. Com isso não queremostrazer à baila as idiossincrasias dos indi-víduos, mas sim a problemática do livreexercício da cultura – melhor seria dizer“das culturas” presentes nas sociedadesheterogêneas e complexas –, ao construire questionar seus objetos, agora sem opeso absoluto da razão teleológica quefrustrou a subjetividade suscitada porHegel como princípio dos tempos moder-nos. Se a episteme imaginada tem o cará-ter de trama conjuntural da diferença,então é no tecer da trama e, particular-

mente, no tópico da diferença, que a sub-jetividade se exerce. Nossa visão sobre oestabelecimento dessas tramas entre osnão similares, em aparente paradoxo,recupera certos fundamentos da epistemeda tradição – conforme a interpretaçãode Foucault (1992) – usados exatamentepara indicar semelhanças. Retomemosessa interpretação para melhor esclareci-mento do que propugnamos.

Segundo o autor referido, o saber an-corado na noção de semelhança mostra-se dominante no período que vai daorigem do pensamento ocidental na Anti-güidade grega até o fim do século XVI, jáem pleno processo da Revolução iniciadapor Copérnico. Evidentemente esse recor-te temporal implica simplificações brutaisque reduzem ao mesmo leito as múltiplassingularidades do pensamento originário,o pensamento platônico, o de Aristóteles,as versões cristianizadas destes últimosque vigeram na Idade Média etc. Tome-mos, apenas para exemplificar, a repre-sentação aristotélica, base hegemônicado saber sobre as coisas quando da ruptu-ra considerada. Ali a representação doprocesso “movimento” é fundada numcomplexo causal dominado não só poruma dimensão teleológica, mas por umaessência qualitativa, o que indica na con-cepção uma mescla da racionalidadeemergente com a tradição do qualitativomágico: as coisas do Cosmo aristotélicomovem-se por “tendência imanente” aosseus “lugares naturais”. Há então umaharmonia, um equilíbrio, uma paz, umaempatia, uma identificação entre coisase locais determinados. Assim, dentrodessa concepção, dois objetos podem serlidos como semelhantes pela identificação

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do sentido comum de seus movimentosnaturais ou, o que é a mesma coisa, pelaidentidade de seus lugares naturais.

No momento de ruptura a um novopadrão de fundamentação das similitudes,na passagem do século XVI ao XVII, assemelhanças eram pensadas, não exclusi-vamente, mas em essência, através dequatro noções constitutivas: convenientia,aemulatio, analogia e simpatia 25. Conve-nientia, naquela conjuntura, designa umasemelhança por proximidade espacial que,supunha-se, permite a comunicação, atroca, a influência de paixões, energias,propriedades. Como explicita Foucault(1992, p. 34), trata-se de

“semelhança do lugar, do local onde anatureza colocou as duas coisas, si-militude, pois, de propriedades; poisneste continente natural que é omundo, a vizinhança não é uma rela-ção exterior entre as coisas, mas osigno de um parentesco ao menosobscuro (...) à similitude como razãosurda da vizinhança, superpõe-seuma semelhança que é o efeito visívelda proximidade.”

Convenientia, assim sendo, concernea uma semelhança devida mais ao am-biente comum aos objetos do que a eles

em si; “é da ordem da conjunção e doajustamento” (ibid.) ao meio. Aemulatioera também pensada como uma formade convenientia, mas que – e nisto aloca-se uma distinção especialmente significa-tiva à nossa argumentação – estabelecesimilitudes libertas de qualquer amarravinculada à distância ou ao posiciona-mento relativo. Atua por reflexão em cír-culos de recíproca mudança, ignorandoa extensão, o espaço. Já analogia eraimaginada como certa síntese de aspectosdas duas noções anteriores: as semelhan-ças que opera transcendem ao espaço,mas são expressões de ajustamentos, so-lidariedades, à maneira de convenientia;seu foco, todavia, são as relações consti-tutivas das coisas. Simpatia tem comocontraface antipatia. Era concebida confi-gurando uma semelhança sem nenhumsuposto; sua força arrasadora não se li-mita à similitude, mas também determinaassimilações, simbioses, alterações nosentido da identidade única. Assim sendo,antipatia funciona como uma saudávelsalvaguarda da diferença. É da tensãoentre os dois termos que se objetiva aexistência singular 26. O par simpatia/anti-patia como que envolve e suporta osoutros três fundamentos da similitude. Domesmo modo que aemulatio e analogia,estabelece semelhanças “desprezando”tempo e espaço.

25 Foucault (1992) neste ponto segue classificação apresentada por P. Grégoire, em 1610, na obraSyntaxeon artis mirabilis.

26 “A identidade das coisas, o fato de que possam assemelhar-se a outras e aproximar-se delas,sem contudo se dissiparem, preservando sua singularidade, é o contrabalançar constante dasimpatia e da antipatia que o garante. Explica que as coisas cresçam, se desenvolvam, semisturem, desapareçam, morram, mas indefinidamente se reencontrem; em suma, que hajaum espaço (não, porém, sem referência nem repetição, sem amparo de similitude) e um tempo(que deixa, porém, reaparecer indefinidamente as mesmas figuras, as mesmas espécies, osmesmos elementos).” (Foucault, 1992, p. 41)

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Supomos como base do estabeleci-mento de diferenças e suas tramas con-junturais, alma do saber sobre os homensconcebido para a modernidade radicaliza-da, essencialmente esses mesmos quatrofundamentos, alargando, porém, o signifi-cado de analogia com o sentido específicoque adquiriu na modernidade, ou seja,incluindo como objeto de seu campo focaltambém os ajustamentos expressos pelaexistência de descrições matemáticascomuns. Privilegiamos agora, no entanto,também a contraface das afirmações po-sitivas de semelhança operada pelos refe-ridos fundamentos, ou seja, colocandoigualmente em foco exatamente o que nãoé lido através deles como semelhante. Atranscendência ao tempo e ao espaço dosfundamentos indicados é uma caracterís-tica especialmente adequada à apresen-tação das práticas hodiernas que, comovisto, navegam por sobre as barreiras dasucessão cronológica e da extensão terri-torial. Essas diferenças e semelhanças,deixemos claro, não são algo em si, massim arranjos culturalmente determinados.É através dos fundamentos referidos quea subjetividade do sujeito do conhecimen-to manifesta-se, afirmando conveniências,emulações, analogias, simpatias e antipa-tias entre objetos que, por sua vez, consti-tuem-se como tal no mesmo processo deestabelecimento dessas afirmações rela-cionais. Em conjunto, essas afirmaçõesconfiguram propriamente um contextognosiológico enquanto erigem tramas aosolhos do sujeito, legitimáveis apenas nosconfrontos com outros sujeitos, comoutros contextos. As tramas, portanto,

como elaborações subjetivas da cultura,mesmo podendo ser eventualmente apre-sentadas em efêmeras classificações ouatravés de regularidades regionais, confor-mam especificidade que escapa tanto aoreino taxionômico da tradição quanto aodraconiano império de mathesis vigentenas epistemes modernas. Se, como explici-ta Foucault (1992), na alta modernidadeo saber histórico articula diacronicamenteanalogias 27 que relacionam diferentes or-ganizações, na sugestão gnosiológica queaportamos à modernidade radicalizadaé o saber de caráter histórico-geográfico-ecológico que institui topologias dadiferença como tramas complexas tem-porais-espaciais-ambientais.

Se lembramos os campos problemá-ticos anteriormente identificados comochaves ao saber hodierno, podemos verifi-car que, naquele que sintetiza os para-doxos expostos pelas práticas atuais emtermos de tempo e espaço, as noçõesadotadas como base às afirmações depresença/ausência – as noções de perti-nência, identidade e alteridade – podem,agora, ser compreendidas como impreg-nadas pelos sentidos de convenientia,aemulatio, analogia e do par simpatia/antipatia. Isso especifica de tal maneirao modo de olhar que – exatamente pordeixar aflorar a subjetividade alocada nopólo sujeito de cada contexto gnosiológicoparticular e positivada enquanto “escutapoética” permanentemente ativa – permi-te que o saber decorrente, essencialmentedinâmico, opere um verdadeiro (re)en-cantamento do mundo dos homens, tor-

27 Relembremos, como já explicitado, que “analogia” no contexto gnosiológico moderno expressarelação entre fenômenos que podem ser descritos por um mesmo formalismo matemático.

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nando-o “devir mágico”, visto que abertoao acaso das coisas e à incerteza da cria-tividade humana, livre das prisões daextensão e da seqüência cronológica irre-versível e, especialmente, descomprome-tido de quaisquer mathesis, taxionomiase telos desde sempre estabelecidos. A ver-dadeira estética da elaboração do saberassim desenhada, em nosso ponto devista, como gnosiologia de intensidades,é constitutivamente mais rica, mais nuan-çada, que a epistemologia de quanti-dades, segmentada, regida por lógicascausais lineares, expressa no saber dasgrandes narrativas modernas. As diferen-ças de culturas, de subjetividades e deinteresses na sociedade, entretanto, dãomargem à coexistência de múltiplos con-textos de conhecimento, portanto à varie-dade de histórias-geográficas-ecológicas,constituindo certo perspectivismo gnosio-lógico. Isto, apesar de tudo, não significanem implica relativismo absoluto, poisque necessariamente uma arete e um sen-tido de dike, devidamente acordados epermanentemente revalidados, devemgarantir a possibilidade de juízo elementarsobre os saberes nas regiões do tempo-espaço-ambiente em que se afirmam.

O saber sobre os homens constituídosegundo o traçamento anterior é também,e necessariamente, saber sobre as coisas.Enquanto tal, cumpre, como qualquerdiscurso desde os primórdios do pensa-mento ocidental, funções de pacificação,de explicação e de técnica de domíniodiante do que é constituído enquantoálter. Mas há nesse caso uma singula-ridade que recai sobre o papel explicativo.Esse saber sobre as coisas assume porpressuposto a impossibilidade de juízo em

face da especulação sobre “aquilo queverdadeiramente é”. Por conseguinte, apacificação que permite não tem caráterontológico, decorrendo, porém, da fertili-dade e da amplitude com que permiteaos homens afirmarem suas intenções noacontecer temporal-espacial-ambiental.

O reinado de Clio, musa da históriamoderna, parece definitivamente esgota-do, não só pelas críticas contundentes epelas novas concepções do saber sobreos homens emergidas desde o século an-terior, mas também por sua incapacida-de de responder satisfatoriamente aocaráter e à velocidade crescentementeacelerada das mudanças contemporâ-neas, e, o que é cruelmente arrasador,pela falência efetiva das diversas teleolo-gias que produziu. Entretanto, o que seprenuncia ao campo de jogo do sabersobre os homens não é uma sucessão desoberanos, na verdade não é mais reina-do algum; agora nesse campo, presentescomo em uma dança coletiva, solidáriae sublime, tão prazerosa quanto extenuan-te, despontam e fundem-se em múltiplascoreografias o tempo turbilhão de umZeus também maculado pelo sentido dekairos, o espaço de todas e nenhuma ex-tensão de um Hermes cavaleiro do últi-mo veículo, da centralidade sem centrode uma Hestia de múltiplas agoras, e anatureza artifício de uma Gaia que aco-lheu o homem. Não há nesse campo dejogo a dominância de intentos de preser-vação da cultura – como sob o reinadode Mnemosine –, ou salvacionistas –como no reinado de Clio –; a melodiaque embala o saber que aí brota, entre-tanto, é inspirada pelo desafio e pela atra-ção da criação do novo.

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94 Tempo-espaço-ambiente: para uma nova episteme

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95Frederico Guilherme Bandeira de Araujo

ResumoResumoResumoResumoResumo Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract

O presente trabalho trata do saber sobreos homens na contemporaneidade. Suaproblemática tem como um de seus tópi-cos-chave o fato de as práticas sociais navigente modernidade radicalizada – cujosconteúdos e formas são marcados pelaspossibilidades propiciadas pelo advento denovas tecnologias de comunicação, demodalidades particulares da organizaçãoprodutiva, de rearranjos nos domínios doEstado e da Sociedade Civil, e por novosreferentes estéticos e éticos – terem porbase, e ao mesmo tempo determinarem,novas temporalidades, espacialidades evisões da natureza dos diversos agentes.A premissa assumida em decorrência éque o saber sobre os homens necessita deuma epistemologia em concordância aosnovos fundamentos das práticas. O traba-lho desenvolvido reflete sobre o conteúdodas práticas sociais contemporâneas e su-gere elementos à construção de uma mo-dalidade epistemológica com o caráter de“topologia histórico-geográfica-ecológica”.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: epistemologia / pós-modernidade / práticas sociais

This article is about the knowledge on menin the contemporary world. It’s problem-atics has as one of its key topics the so-cial practices on the effective radicalizedmodernity, whose forms and contents aremarked by the possibilities of new com-munication technologies, of peculiar mo-dalities of productive organization, ofrearrangement in the domains of the Stateand Civil Society, and by new aestheticand ethics standards, being supported bynew temporalities, espacialities and vi-sions about Nature. The premise assumedis that the knowledge about men needsan epistemology in agreement with thenew practices foundations. The text dis-cusses the content of the contemporarysocial practices and suggests elements ofone epistemological modality synthesizedby the idea of “historical-geographical-ecological” topology.

KeywordsKeywordsKeywordsKeywordsKeywords: epistemology / postmoderni-ty / social practices

FFFFFrrrrrederico Guilherederico Guilherederico Guilherederico Guilherederico Guilherme Bandeira de Araujome Bandeira de Araujome Bandeira de Araujome Bandeira de Araujome Bandeira de Araujo é professor do Instituto de Pesquisae Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Recebido para publicação em junho de 2001

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O surgimento da habitação socialO surgimento da habitação socialO surgimento da habitação socialO surgimento da habitação socialO surgimento da habitação sociale a ee a ee a ee a ee a experiência da Vxperiência da Vxperiência da Vxperiência da Vxperiência da Viena Viena Viena Viena Viena Vererererermelhamelhamelhamelhamelha

Luís Octávio da Silva

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XV, No 1, 2001, p. 97-117

O O O O O backgroundbackgroundbackgroundbackgroundbackground das intervenções no setor habitacional das intervenções no setor habitacional das intervenções no setor habitacional das intervenções no setor habitacional das intervenções no setor habitacional

A questão habitacional constitui uma pro-blemática já antiga da história das cidades.Entretando, foi com a Revolução Industriale o processo de urbanização que essa pro-blemática adquiriu contornos quantitativosnunca dantes delineados. Os baixos sa-lários e a lógica de mercado aplicada àprodução imobiliária urbana foram respon-sáveis pelo estabelecimento de um quadrode grande precariedade das condições ha-bitacionais, num contexto de urbanizaçãoacelerada. A emergência de políticas públi-cas nesse setor decorreu de uma conver-gência de heterogêneas perspectivas quese debruçaram sobre a questão: as consta-tações e denúncias da situação, as formu-

lações utópicas propositivas e as expe-riências não-governamentais. No que dizrespeito às constatações e denúncias, po-demos listar um grande número de iniciati-vas, algumas delas governamentais, outrasnão. As comissões de estudo, o jornalismode denúncia, os relatórios médico-sanitá-rios, as denúncias na produção literáriaou mesmo iconográfica constituíram umareferência de base para as proposições dereforma urbana e os programas de habita-ção social.

Quanto às proposições utópicas,pode-se afirmar que, desde o Renasci-mento1, a questão habitacional esteve fre-

1 Foi só a partir do Renascimento que houve uma efetiva objetivação do espaço urbano. As for-mulações utópicas anteriores a essa época se centravam principalmente na organização social epolítica sem referências específicas à organização física do meio urbano. Na República, de Platão,por exemplo, o limite da comunidade (5.040 habitantes) era estabelecido não por condicionantesfísicas ou técnicas, mas sim por uma possível harmonia dada pela escala do convívio social.

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qüentemente contemplada e vinculada àspropostas de reforma social presentes nasformulações utópicas. Na Ilha da Utopia,de Thomas More (1516), de que provémo termo utopia, “as moradias não seriamde forma alguma miseráveis” 2. A tradiçãoutópica vem, de longa data, considerandotemáticas que se revelaram nevrálgicasnão só para os programas de habitaçãosocial como para o próprio urbanismocontemporâneo. Em Christianopolis, acidade utópica vislumbrada por JohannValentin Andreae (1619), inexiste a pro-priedade privada e o território é organi-zado em zonas de uso. Na Nova Atlântida,de Francis Bacon (1627), por sua vez,diferentemente da maioria das utopias,a propriedade privada é admitida. Ela sepretende assim uma “utopia realizável”.As cinqüenta e quatro cidades existentesna Ilha da Utopia, de More, se organizamsegundo um idêntico plano uniforme, re-petitivo, regular e racional. Pode-se ques-tionar em que medida essa concepção deregularidade, como uma característica al-mejada, antecipa a monotonia dos grandesconjuntos habitacionais contemporâneos.

O século XIX assistiu ao aparecimen-to das primeiras intervenções de reformada situação habitacional. No âmbito não-governamental, podem-se relacionar asvilas e cidades operárias, as ações filan-trópicas e as experiências das associaçõesde mutuários. Em 1825, por exemplo, umgrupo de industriais ingleses criou umconjunto de vilas operárias na região das

cidades de Bradford, Halifax e Leeds. Umoutro exemplo é a Cidade de Berlim, quefoi palco de experiências de promoçãohabitacional em bases cooperativas desde1847. Muitos dos consórcios cooperativosmutualistas, especialmente os ingleses (aschamadas building societies), constituíammais operações imobiliárias de pequenosinvestidores do que ações sociais propria-mente ditas 3. Apesar de não centradaespecificamente na questão habitacional,merece menção a existência de uma con-sistente tradição americana no tocante àimplantação de comunidades de orienta-ção religiosa, fortemente inspiradas pelasproposições utopistas. Essas experiênciasforam todas muito pouco significativasem termos numéricos. A maior parte dapopulação de baixa renda das cidadesindustriais do capitalismo nascente seabrigava em precárias moradias produ-zidas ou adaptadas pelo pequeno capitalrentista 4. Elas assumiram tipologias comgrandes variações geográficas, como porexemplo os slums londrinos, os tenementsnova-iorquinos ou as Mietkasernen berli-nenses. Como características comuns aessas variantes podem-se apontar asaltas densidades, a precariedade das ins-talações sanitárias e uma qualidade devida degradante, do ponto de vista tantofísico quanto moral. A evolução dos sis-temas de transporte possibilitou novasalternativas habitacionais. Nas grandescidades americanas e inglesas foram prin-cipalmente as classes médias e as maisabastadas que se suburbanizaram, ado-

2 Apud Borsi, 1997, p. 29 (tradução nossa).3 Tafuri e Dal Co, 1991.4 Peter Hall (1995) menciona que no caso dos EUA foi bastante corrente a adoção da solução de

co-habitação em residências unifamiliares.

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tando soluções extensivas e de baixa den-sidade. Em Berlim, o crescimento se fez,nessa época, seguindo os mesmos pa-drões urbanísticos então existentes. AsMietkasernen são blocos de apartamen-tos, de cinco pavimentos, organizados emtorno de exíguas áreas internas aos quar-teirões. Os novos bairros resultavam datransformação direta de áreas de usorural em densos bairros populares 5. EmParis, o aumento dos valores imobiliáriostornara difíceis as alternativas habitacio-nais para a população de mais baixarenda. Uma parte dela passou a ocupar

imóveis subdivididos nos bairros mais an-tigos. Ocupações ilegais (bidonvilles) ocu-param terrenos vazios, principalmentenas áreas periféricas antigamente ocupa-das pelas fortificações. As áreas maisafastadas foram ocupadas por um grandenúmero de loteamentos precários despro-vidos de infra-estrutura e de serviços 6.No caso de Paris nas últimas décadas doséculo XIX e primeiras do século XX, sãobastante evidentes as similaridades comos cortiços, favelas e loteamentos perifé-ricos atualmente existentes nas grandescidades brasileiras.

5 Ibid., p. 36.6 Evenson, 1983.

Mietkasernen Mayershof na Ackerstrasse,Berlim da segunda metade do século XIX (fonte:Dal Co e Tafuri, 1991, p. 22).

Tenement em Nova York, no final do século XIX(fonte: Dal Co e Tafuri, 1991, p. 38).

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As primeiras ações governamentaisAs primeiras ações governamentaisAs primeiras ações governamentaisAs primeiras ações governamentaisAs primeiras ações governamentais

As primeiras intervenções físicas porparte do Estado em relação à questãohabitacional se caracterizaram principal-mente pelas ações de erradicação doscortiços e de outros territórios indesejá-veis. De certa forma, pode-se dizer querepresentaram uma antipolítica de habi-tação social. Nas áreas que foram objetodas intervenções, eram significativos oscontingentes de desalojados. Obviamenteessas ações eram sempre justificadascomo medidas que visavam à melhoriadas condições sanitária, estética ou decirculação. Aconteceram de forma muitomais intensa nas cidades européias, ondeos bairros antigos e deteriorados tinhamum peso muito maior do que nas cidadesamericanas. Nos Estados Unidos, as inter-venções ocorreram essencialmente noâmbito da regulamentação da produçãorentista. Durante boa parte da segunda

metade do século XIX, várias medidaslegais, no plano tanto nacional quantolocal, procuraram normatizar a produçãodos tenements. Essas intervenções foramresponsáveis pela evolução dessa ti-pologia edilícia, que foi pouco a poucoganhando melhores condições de ilumi-nação e ventilação. Originalmente ela erauma edificação maciça, com vários anda-res, praticamente sem recuos, que ocu-pava a quase totalidade da área do lote.Os dumb-bell tenements, por sua vez, jápossuíam poços que garantiam um míni-mo de iluminação e ventilação. Em 1901,uma nova lei tentava pôr fim a essa mo-dalidade habitacional. Essa lei tornou-seum marco na história urbana do país e éreveladora da opção americana caracte-rizada pela não-intervenção direta com-pensada por uma hiper-regulamentação.A lei possuía mais de cem “pormenoriza-

Zona das fortificações parisiense, em 1919.Foto de Eugène Atget (fonte: Dethier; Guiheux.La ville, art et architecture en Europe, 1870-1993. Paris: Centre Georges Pompidou, 1994.p. 100).

Casa-cabana em um assentamento ilegalvienense, em 1922 (fonte: Blau, 1999, p. 85).

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dos parágrafos” regulamentando padrõesespaciais, dispositivos de proteção contraincêndios, sistemas de encanamento etc. 7

À medida que nos aproximamos dofinal do século XIX, evoluía a idéia da ne-cessidade da produção de moradias paraa população carente. Mas o desenvolvi-mento dos acontecimentos assumiu con-textos bastante díspares dependendo dopaís em questão. Nos Estados Unidos, aidéia pró-promoção da habitação socialera contraposta ao paradigma da não-intervenção ou, para ser mais exato, daintervenção indireta exclusivamente viaregulamentação da produção privada.Convém lembrar que, ao mesmo tempoque existe essa controvérsia em torno dopapel do Estado nesse setor, o planeja-mento e o urbanismo estavam se definindocomo campo de atuação. Nesse país, aquestão habitacional foi excluída do âm-bito de atuação do planejamento urbano.Nenhuma das grandes tendências e para-digmas do planejamento urbano ameri-cano incorporou a questão habitacional.Enquanto a reforma urbana européia es-teve diretamente ligada às tentativas deresolução da questão da moradia, o plane-jamento das cidades americanas continuoua se centrar na implantação de áreas ver-des públicas, nas ações de embelezamentoe finalmente na promoção da eficiência.O conteúdo programático do movimentopró-parques, do City Beautiful, da CivicArt e do City Efficient não deixa margema dúvidas a esse respeito. Peter Marcuse 8

foi um dos autores que procuraram apre-sentar os motivos dessa exclusão. Segundoele, após 1910, houve um esvaziamentodas duas principais razões que levariam ànecessidade de ações governamentais noâmbito habitacional. Os riscos de incêndioe as condições de saúde sofreram impactodas novas tecnologias nesses dois campos.Os riscos quanto à ordem pública foramequacionados principalmente por meio deações voluntárias de assistência social aosimigrantes. Daí o fato de o planejamentourbano americano dessa época não con-templar programas de habitação social.Na verdade, após a entrada dos EstadosUnidos na Primeira Guerra Mundial, em1917, esse país foi palco de uma breveexperiência de programa habitacional deinteresse social em larga escala. Essaexperiência se inseria num vasto programaconhecido como “economia de guerra”,através do qual o Estado, com o seu poderde compra, pretendia promover uma ra-cionalização dos processos produtivos,assegurando assim a provisão de deter-minados serviços e bens em setores es-pecíficos. Esse programa de provisão demoradias para a classe trabalhadoradurou um ano e consistia em um esquemafinanceiro e na imposição de padrões emrelação aos materiais, técnicas e projetosexecutados por agências específicas. Aswar villages construídas nesse breve perío-do foram responsáveis pela provisão demoradias para cerca de 360.000 trabalha-dores e suas famílias 9. A partir do final daguerra, na medida em que a dita situação

7 Hall, op. cit., p. 43.8 Housing Policy and City Planning: The Puzzling Split in the United States, 1893-1911. In:

Cherry, G. E. (Ed.). Shaping the Urban World. Londres: Mansell, 1980. p. 23-58. Apud Hall,op. cit., p. 45.

9 Dal Co, 1973, p. 230.

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de emergência era superada, o referidoembate das posições pró e anti-interven-ção voltaram à pauta. A posição hegemô-nica e vencedora foi a que advogava onão-intervencionismo.

No cenário europeu, a existência deum forte movimento operário aliado a umaburocracia estatal de tradição intervencio-nista fizeram com que o movimento pelareforma social e o planejamento urbanoincorporassem a questão habitacional nocerne de suas preocupações. As políticaspúblicas no setor da habitação tomaramcorpo principalmente por volta da viradado século XIX para o XX. Também nessecontinente evoluía a idéia da necessidadede produção de moradias, embora, numprimeiro momento, diretamente ligada àsações de erradicação dos cortiços, numintento de saneamento físico e “social”.Outra esfera de intervenção estatal foi ado controle dos aluguéis. A idéia da refor-ma das condições de habitação da classetrabalhadora não foi uma exclusividadedas correntes progressistas. Assim comoentidades privadas de orientação filan-trópica, algumas administrações de orien-tação mais conservadora viam nosprogramas sociais, de forma geral, umpreço a pagar pela paz e estabilidade so-cial. Mas nem todos eram a favor da re-

forma urbana. Na França, por exemplo,ainda na década de 1880, qualquer inten-to de intervenção ou de regulamentaçãodo direito de propriedade era prontamen-te lido como de orientação socialista, por-tanto, temido e condenado. Nesse mesmopaís, “em 1883, um médico exprimia odesejo de que cada habitação dispusessede um banheiro, mas reconhecia que essaproposição era ‘radical e absolutamenterevolucionária’” 10. A implantação de pro-gramas de habitação social ocorreu pormeio da montagem de quadros técnico-administrativos específicos (Secretarias deHabitação) no âmbito das gestões locais.Tomava corpo a idéia de que a garantiadas condições da habitação fazia parte dosdeveres e incumbências do Estado. NaFrança, evoluiu uma legislação (1894,1906 e 1912) que organizou a produçãode habitações sociais pelas administraçõeslocais. Nesse país, entretanto, em compa-ração à Inglaterra ou à Alemanha, até ofinal da Segunda Guerra Mundial, a habi-tação social não foi prioridade do Estado.Entre 1894 e 1914, só 10.000 moradiasforam produzidas em toda a região deParis 11. Na Grã-Bretanha, os programastiveram início com uma lei aprovada em1890, contaram com uma forte influênciado movimento fabiano 12 e, num primeiromomento, foram concentrados na região

10 Evenson, op. cit., p. 219 (tradução nossa).11 Evenson, op. cit.; e Hall, op. cit.12 “Sociedade Fabiana, formada em 1884” na Inglaterra “sob a liderança de Henry Mayers

Hyndman, membro da Federação Social-Democrata. Logo depois, com a dissidência da fede-ração, foi fundada a Liga Socialista. Entre seus membros fundadores, figuravam William Morris,Belford Bax, Edward Aveling e Elenor Marx. Nos bastidores, a liga recebeu o apoio de FrederickEngels, segundo Lichtheim” (Gunn, 1997, p. 16). Pregava uma visão reformista que incluía aidéia da necessidade de esperar que as premissas do socialismo amadurecessem e, portanto,se contrapunha a visões mais radicais de transformação social. O próprio termo “fabiano”advém do nome do comandante militar romano Fabius Cuntador, que, na guerra contra Aníbal,soube esperar o momento mais propício para desencadear uma vitoriosa ação de ataque.

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de Londres. Como já mencionado, consis-tiam principalmente em ações de erradica-ção de cortiços conjugadas à construçãode unidades novas no mesmo local e tam-bém em áreas periféricas. Em 1909, umanova lei possibilitou parcerias do poder pú-blico com construtores privados. A faltade controle das tarifas de transporte invia-bilizou a ocupação das novas unidadespela população mais carente, que conti-nuava a ocupar os cortiços em bairros de-teriorados. De 1890 a 1914, apenas18.000 moradias haviam sido concluídas,principalmente na região de Londres. Essenúmero era inferior ao de moradias elimi-nadas com as derrubadas dos cortiços. Oresultado foi que entre 1901 e 1913 a su-perpopulação das áreas deterioradas sófez aumentar13.

Na Europa do norte (aí incluídas aInglaterra e a Alemanha), foi principal-mente depois da Primeira Guerra Mundialque as autoridades públicas se sentiramrealmente pressionadas a buscar um novomodelo de políticas sociais. Era vergonho-so que ex-combatentes não possuíssemmoradia decente. A própria cidade deLondres foi, durante a guerra, cenário deuma importante greve de inquilinos queresultou na imposição de uma legislaçãode controle dos aluguéis. Finda a guerra,o abrandamento desse controle seria im-possível sem alterações significativas naoferta de moradias. Já em 1919 entrouem vigor a Lei de Habitação e do Planeja-

mento Urbano, que incumbiu as adminis-trações locais de conhecer a realidadehabitacional e de executar programas se-toriais não mais restritos apenas à derru-bada de cortiços. Essa lei garantiu tambéma provisão de subsídios para tal. Com re-fluxos e retomadas, que não cabe aquidetalhar, pode-se afirmar que no períodoque se seguiu implantou-se uma efetivapolítica de produção de moradias sociaisem larga escala. Entre 1919 e 1933/34,em toda a Grã-Bretanha, as autoridadeslocais foram responsáveis pela produçãode 763.000 moradias, das quais cerca de31% foram concluídas naqueles anos 14.

No período e na temática tratadosneste trabalho, o mundo germânico apre-sentou um quadro bastante particular einovador, comparado a países de fortetradição urbanística, como a França ou aGrã-Bretanha. Como já dito anteriormen-te, na França, os programas de habitaçãosocial adquiriram contornos numericamen-te significativos apenas após a SegundaGuerra Mundial. Na Grã-Bretanha, osresultados quantitativos foram qualitativa-mente decepcionantes. A expressivaprodução de moradias entre as guerrasapresentou soluções pouco imaginativas,tanto do ponto de vista urbanístico quantodo arquitetônico15. No que se pode consi-derar a segunda fase dos programas dehabitação social (1919-1933/34), o custodo transporte constituiu, nesse país, o fatorde elitização da clientela atendida16. A Ale-

13 Hall, op. cit., p. 77.14 Ibid., p. 83.15 Ibid., p. 84.16 Ibid. (citando Young. Becontree and Dagenham: The Story of the Growth of a Housing Estate.

Relatório para o Pilgrim Trust. Londres: Becontree Social Survey Commitee, 1934. p. 118-120; eBurnet. A Social History of Housing 1815-1970. New Abbot: David and Charle, 1978. 233p.).

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104 O surgimento da habitação social e a experiência da Viena Vermelha

manha, por sua vez, apresentava de longadata o que se poderia chamar de umatradição não só de gestão urbanística,veja-se o papel pioneiro do zoneamentoalemão, quanto do próprio tratamento daquestão habitacional. A tipologia arquite-tônica das Mietkasernen, supracitada,parece ter sido fruto de uma iniciativa deFrederico, o Grande (1712-1786), parao alojamento das famílias dos soldados,donde o nome, que significa “casernasde aluguel”. Posteriormente, esse tipo deimplantação foi muito difundida a partirda ação do prefeito Jakob Hobrecht em1858. O conceito das Mietkasernen envol-via a idéia de promover uma integraçãosocial que instalava, num mesmo blocode edifícios, ricos e pobres 17. Ironicamen-te, o que se pretendia uma solução, como aumento da demanda decorrente dogrande crescimento da população das ci-dades, acabou se convertendo num íconede sub-habitação e de ganância dos pro-prietários imobiliários. Durante o períodoentre as guerras, várias foram as munici-palidades alemãs que empreenderamprogramas de produção de habitaçãosocial (Colônia, Celle, Breslau, Hanover,Hamburgo), mas, dentre elas, as experiên-cias de Berlim e de Frankfurt foram cer-tamente as mais importantes. Nesse país,desde a segunda década do século XX,havia uma formulação bastante clara danecessidade de uma política de socia-lização dos terrenos e da indústria daconstrução como forma de garantir umcontrole sobre os processos de especula-ção imobiliária. Em 1919, a Constituiçãode Weimar estabeleceu como incumbên-

cia do Estado nacional alemão a defini-ção de uma política de gestão do solo,no intento de assegurar a generalizaçãodo direito a moradia 18. Essa diretriz nãochegou a ser efetivada, em função da tur-bulência financeira e política que se seguiu,mas a própria formulação dessa questãono texto constitucional é reveladora dograu de amadurecimento dessa problemá-tica. Durante os anos 1920, “pipocou” nasmais diversas localidades do país a açãode cooperativas de produção de moradiasligadas à central sindical, de orientaçãosocial-democrata. Essa produção, viabili-zada financeiramente pelo banco sindical,destinava-se aos trabalhadores sindicali-zados. Nas prefeituras de Frankfurt e deBerlim, essas iniciativas foram potenciali-zadas pela ação de administrações social-democratas. No caso de Frankfurt, oprograma foi em grande parte facilitadopela já existência de considerável quan-tidade de propriedade fundiária pública,fruto de toda uma política de constituiçãode estoque, política existente desde o finaldo século XIX. A isso somou-se a existênciade recursos financeiros consideráveis pro-venientes de uma taxa de 15% da rendaimobiliária dos imóveis construídos antesda Primeira Guerra. Vinte e cinco porcento desse montante era destinado à pro-moção pública. A experiência de Frankfurtfoi dirigida por Ernest May, figura de proje-ção internacional na difusão da arquiteturamoderna. Ela durou de 1923 até 1930,quando 15.000 unidades foram produzi-das, beneficiando 52.000 pessoas de umuniverso aproximado de 550.000 habi-tantes que a cidade abrigava naquela

17 Ibid., p. 36.18 Tafuri e Dal Co, op. cit., p. 149.

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época 19. Nesse caso, foi o valor dos alu-guéis que impediu o acesso das camadasmais desfavorecidas do operariado àsunidades produzidas. Tanto no caso deFrankfurt quanto no de Berlim, a dimensãoinovadora esteve ligada ao emprego detécnicas de produção industrializada e àestética modernista. Ambas as cidadesconstituíram o que se pode considerar umdos primeiros laboratórios aplicados domovimento moderno internacional.

Nos Países Baixos, desde 1852 tem-se notícia de ações filantrópicas que sededicam à questão da moradia. Em1868, já havia também cooperativas ope-rárias agindo conjuntamente com asadministrações locais. Assim como emoutros países, essas primeiras interven-ções foram quantitativamente insuficien-tes em face das dimensões do problema.A partir de 1896, a prefeitura da Cidadede Amsterdã implantou programas dedoação de terrenos e de prestação deassistência técnica para a elaboração deprojetos 20. Na verdade, os Países Baixos,dada a sua própria circunstância geológi-ca, vêm apresentando notáveis particula-ridades institucionais no que diz respeitoà gestão do território e, de uma formamais geral, à dos recursos naturais. Tal,por exemplo, é o caso da gestão dos recur-sos hídricos, em que a necessidade deconstrução e de manutenção de sistemasde diques e drenagens engendrou a neces-sidade do desenvolvimento de avançadasformas associativas e de peculiares re-lações público-privado. No tocante aodesenvolvimento urbano, os altos investi-

mentos necessários para tornar urbani-záveis áreas geologicamente delicadasinduziram ao desenvolvimento de umesquema institucional específico segundoo qual os proprietários se organizavamem consórcios e se faziam desapropriar,para o Estado executar os investimentose restituir ao consórcio a terra beneficiadapor um preço bem superior. A promoçãoimobiliária nesse país, segundo Tafuri eDal Co (1976, p. 164), teria um carátermuito menos especulativo (quanto à di-mensão fundiária) que em outros. Aliás,em termos político-econômicos, aquelecapitalismo holandês tenderia muito maisaos investimentos nos setores produtivos,destinando comparativamente uma pro-porção muito menor do capital à rendafundiária.

Em 1901, foi aprovada uma lei nacio-nal que conferiu às administrações locaiso direito, o dever e os meios financeirospara o estabelecimento de planos de exten-são para desapropriar imóveis insalubres,adquirir áreas e construir seja diretamenteseja por meio de parcerias com cooperati-vas operárias ou com sociedades de pro-moção de moradias populares21. De 1918a 1925, algumas administrações socialistasholandesas empreenderam importantesprogramas de promoção de habitaçãosocial, intimamente articulados com osprogramas de implantação de infra-estru-tura e de controle dos aluguéis. A partirde 1925, o avanço das forças conservado-ras significou o cancelamento de muitosdesses programas e do controle dos alu-guéis.

19 Ibid., p. 151-155.20 Panerai, Castex e Depaule, 1997.21 Ibid., p. 77-78.

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106 O surgimento da habitação social e a experiência da Viena Vermelha

Os modelos urbanísticosOs modelos urbanísticosOs modelos urbanísticosOs modelos urbanísticosOs modelos urbanísticos

Os ideais de reforma urbana que nortea-vam essas ações em relação à questãoda moradia sempre trouxeram, de formasubjacente ou explicitamente, determina-das visões, projeções e partidos de ordemgeográfica, urbanística e até arquitetônicaque pretendiam responder às problemá-ticas impostas pela cidade industrial. Aidentificação dessas visões, que passa-remos a designar como “paradigmas”,constitui um dado imprescindível para acompreensão e a análise das políticas dehabitação social.

A contraposição, diferenciação e mes-mo proximidade em relação ao meio ruraltêm sido uma temática permanente nadefinição do urbano e mesmo nas formu-lações do que seria o urbano desejável.Voltando ao exemplo de Thomas More,na Ilha da Utopia, “a menor distânciaentre duas cidades (dentre as cinqüentae quatro lá existentes) é de vinte e quatromilhas” 22. A idéia do esvaziamento dacidade em proveito do meio rural, nabusca de melhores condições ambientais,já existia, pelo menos desde a Antigüidaderomana. Sem dúvida, essa idéia foi enor-memente potencializada pela insalubri-dade da cidade industrial. Não é deestranhar que nas primeiras formulaçõesda reforma urbana/social tenha emergidoa proposta de desadensamento. Este em-butia a idéia do abandono e conseqüente-mente da negação da cidade existente.Essa perspectiva estava presente em pra-ticamente todas as figurações utópicas

do século XIX. Talvez uma das formula-ções mais acabadas e influentes dessaidéia de desadensamento e de abandonoda congestionada cidade industrial sejaa da Cidade-Jardim, apresentada origi-nalmente por Ebenezer Howard em 1898na obra To-morrow: A Peaceful Path toReal Reform. Ainda que a dimensão físi-co-territorial não esgote a proposta deHoward, ela foi seguramente a de maiorimpacto e repercussão. E decerto estáentre as de maior reverberação na histó-ria do urbanismo contemporâneo. Mas aproposta de Howard foi “apenas uma”dentro de um vasto conjunto de propostasde melhoria da cidade industrial via o seuesvaziamento/abandono e a construçãode núcleos de dimensões limitadas emmeio a parques e/ou a uma idílica zonarural. A proposta de desadensamento físi-co se articulava muito bem, por exemplo,com a perspectiva anti-urbana segundoa qual a cidade era local de inevitáveisvícios e perversões. Esse paradigma sealinhava também com a tradição paisa-gística rural inglesa e com a ideologiaentão bastante presente no mundo germâ-nico de que seria no pequeno vilarejo (enão na cidade) que residiria a verdadeiraalma alemã.

Entretanto, esse paradigma não eraúnico. Contrastada com ele, existia a visãode que a cidade desejável para o futuroseria densa, compacta e veloz, como porexemplo La città futurista, de AntonioSant’Elia (1914), ou a proposta de Cons-

22 Borsi, op. cit., p. 29 (tradução nossa).

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truções para uma metrópole moderna, deMario Chiattone, também de 1914. Naverdade, a principal referência temáticaem relação à qual os paradigmas se posi-cionavam era a da grande cidade, cheiade indústrias, poluída, congestionada eproblemática. Era fundamentalmente agrande metrópole que deveria ser esvazia-da, segundo o paradigma do desaden-samento. Muito próximo à idéia do futurourbano como sinônimo de altas densi-dades e arranha-céus, está o paradigmaque via a grande cidade como local devida cultural intensa, de realizações ar-quitetônicas monumentais, de desenvolvi-mento econômico e de oportunidades deemancipação dos indivíduos. Duas refe-rências importantes foram Otto Wagnere Ludwig Hilberseimer. O primeiro foi oganhador do concurso urbanístico paraa cidade de Viena em 1893 (cujo planonão foi realizado) e autor do projeto parao desenvolvimento de uma grande cidade(1911); o segundo foi o projetista daCidade vertical, em 1924, e autor de Aarquitetura da Grande Cidade, publicadaem 1927. O modo como esse paradigmaconfigurava a cidade existente, emboraambíguo, era certamente bastante diferen-te da proposta de abandoná-la, como erao caso do paradigma do desadensamento.A grande cidade, no paradigma que levao seu nome, deveria ser transformada eadaptada às necessidades do progresso edo desenvolvimento. Para os seus defenso-res, como Otto Wagner, o crescimento dagrande metrópole não deveria ser limitado.A tarefa a ser executada seria a de reor-ganizar suas funções, principalmente me-lhorando suas condições operacionais, de

comunicação e de articulação de suaspartes. Na proposta de Otto Wagner paraViena, assim como na proposta para odesenvolvimento de uma grande cidade,havia uma clara aceitação e mesmo re-produção da malha urbana e da tipologiahistórica existente. Isso é bastante explícito,por exemplo, quanto à organização volu-métrica, às proporções e principalmenteao esquema de ocupação dos quarteirões.

Gravura que figura no livro Ilha da Utopia deThomas More, 1516. Note-se já presente umadeterminada concepção de uma relação idealentre o urbano e o rural. No canto superior direi-to, o meio urbano, congestionado e densamenteocupado, antípoda do que se passava na ilha.

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Frontispício da edição inglesa de Notícias delugar algum, de William Morris, 1891. O idealde desadensamento é apresentado como solu-ção ao congestionamento da cidade industrial.

Cartaz publicitário americano, veículo da ideo-logia do subúrbio-jardim e da casa unifamiliarisolada como requisitos para a felicidade.

Projeto de “Contrução para uma metrópole moderna” de MarioChiattone, 1914 (fonte: Dethier e Guiheux, op. cit., p. 197).

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Estudo para “A cidade futurista” (projeto para aero-porto e estação ferroviária em Milão), de AntonioSant’Elia, 1914. O avião foi um elemento freqüentedas figurações da cidade futurista italiana (fonte: Borsi,1997, p. 120).

Projeto de “Avenida das casas-torre” deAuguste Perret, ligando Paris a Saint-Germain-en-Laye, 1922 (fonte: Evenson,1979, p. 183).

Projeto da “Grande cidade”, vista do centro do que seria o XXII“arrondissement” de Viena, de Otto Wagner, 1911 (fonte: Dethier eGuiheux, op. cit., p. 130).

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110 O surgimento da habitação social e a experiência da Viena Vermelha

Não é tarefa simples o estabelecimentode associações entre esses partidos ur-banísticos e posições políticas. A grandemetrópole era vista com desconfiançapelos conservadores e combatida tambémpelas posições de esquerda, veja-se porexemplo os “desurbanistas” soviéticos 23.A idéia do desadensamento, por sua vez,foi amplamente adotada pelos programasde habitação social anteriormente apresen-tados. Ela serviu de referência tanto paraos programas de orientação mais conser-vadora, como foi o caso do período ante-rior à Primeira Guerra em Londres, quantopor administrações mais progressistas,como foi o caso de Frankfurt entre 1923 e1930. Isso sem esquecer que essa idéiafoi apropriada também pelos promotoresprivados responsáveis pelo desenvolvi-mento de um enorme número de bairros-jardim. A idéia do desadensamentoimplicava ainda dois outros planos deresolução: o regional e o arquitetônico. Noplano regional, o desadensamento acarre-tava um projeto de ocupação geográficado território que ruralizava o urbano aomesmo tempo que urbanizava o meiorural. No arquitetônico, a opção pelasbaixas densidades estava originalmente

ligada à idéia da tipologia da casa indi-vidual. Os grandes conjuntos nas cidadessatélites se tornaram um fenômeno demassa somente após a Segunda Guerra.A unidade habitacional isolada, con-quanto possua raízes culturais longínquas,como é o caso do mundo anglófono, foiprontamente apropriada pela ideologiaconservadora de valorização da proprie-dade privada de caráter individualista.Uma vez mais podemos recorrer às for-mulações utópicas, para perceber o quan-to essas opções feitas pelos programassociais implantados no século XX per-tencem a paradigmas já de longa datadelineados. Nas principais figurações utó-picas dos socialistas do século XIX, o queaparece não é a casa individual e isolada,mas sim o grande conjunto coletivo.Assim eram organizados o Falanstério deFourier e o Familistério de Godin. Se qui-sermos, podemos recuar até pelo menosChristianopolis, de Johann Valentin An-dreae (1619), que sem dúvida se organi-zava, também, em forma de grandesconjuntos coletivos. Obviamente, comojá mencionado, em Christianopolis inexistea propriedade privada.

23 Banik-Schweitzer, 2000, p. 61.

A eA eA eA eA experiência da Vxperiência da Vxperiência da Vxperiência da Vxperiência da Viena Viena Viena Viena Viena Vererererermelhamelhamelhamelhamelha

Nos anos que se seguiram à PrimeiraGuerra Mundial, o crescimento da Cidadede Viena assumiu contornos extraor-dinários. A desarticulação do impérioaustro-húngaro implicou um rearranjo po-lítico-territorial e demográfico de grandesproporções. Em termos econômicos, a

grande metrópole viu-se esvaziada dafunção administrativa do extinto grandeimpério. Com o novo recorte territorial,Viena estava então isolada inclusive dasregiões que anteriormente a abasteciamde víveres e de carvão. O cenário do pós-guerra era de pobreza e penúria. Em

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1919, assumiu a administração munici-pal o Partido Social-Democrata, de orien-tação socialista. No plano nacional, issoaconteceu paralelamente à tomada depoder pelos socialistas cristãos (1920),nitidamente conservadores. A orientaçãopolítica dos social-democratas austríacosera um comprometimento explícito comas transformações sociais, posição bemmais progressista e radical que a damaioria dos social-democratas europeus.Estes últimos, desde a cisão da SegundaInternacional (1914), assumiam aberta-mente posições “reformistas”, em opo-sição à “ortodoxia” dos comunistas. Osocialismo municipal de Viena era entãouma vitrine observada atentamente, tantopela direita quanto pela esquerda. O mo-delo de passagem para o socialismo, aíproposto, diferia em muito da opção revo-lucionária russa, recém-vitoriosa. O pro-grama de habitação social da VienaVermelha era, na verdade, não apenasum programa social setorial, mas sim oponto central de articulação de todo umprojeto de desenvolvimento de uma cultu-ra da classe trabalhadora socializada. Eisso se dava fisicamente nos conjuntoshabitacionais, que eram multifuncionais,abrigando centros educativos, unidadesde prestação de serviço de saúde, creches,atividades culturais (cinemas, teatrosetc.), centros esportivos e centros comuni-tários. Esses conjuntos se chamavamGemeinbauten (edifícios municipais).

De fato, o programa habitacional daViena Vermelha teve início sob uma forma

bastante diferente. Durante o período deguerra, uma parte significativa da popula-ção, por uma estratégia de sobrevivência,mudou-se para a periferia da cidade. Emassentamentos ilegais, na literatura inter-nacional conhecidos como wild settle-ments, era possível a produção de víveresque permitiram a essa população sobre-viver à penúria que acompanhou ostempos de guerra. Findo o conflito, umaparcela dessa população voltou para acidade e uma outra se organizou em coo-perativas para a construção de moradiassegundo o modelo das cidades-jardim. Éimportante ressaltar que na Áustria essemodelo assumia contornos e traços muitodiversos tanto da formulação original deHoward quanto das experiências existen-tes em outros locais do universo germâ-nico. A cidade-jardim vienense não tinhanada de anti-urbana. Ela era relativamen-te densa e seus jardins, freqüentementeprodutivos. Em 1923, houve uma inversãode diretrizes e o programa abandonou omodelo dos Siedlungen 24 pela construçãodos Gemeinbauten, totalmente inseridosna cidade existente e, portanto, comcaracterísticas totalmente urbanas. De as-pecto denso e monumental, são conjun-tos bastante heterogêneos que ocupampequenas ou grandes áreas, com 20 a2.000 unidades habitacionais, e não obe-decem a soluções arquitetônicas únicas.Cento e noventa arquitetos, ligados a es-critórios particulares, foram responsáveispelo desenvolvimento dos projetos. Numquadro de grande desemprego, não foramprioridade nem a industrialização nem as

24 Designava originalmente o conjunto de casas agrupadas em torno das minas de carvão e dassiderúrgicas, não totalmente independentes do subúrbio. Em alemão tem o significado de colôniae era a forma como eram denominados os assentamentos que seguiam o “modelo” das cidades-jardim: unidades unifamiliares, baixas densidades, localizadas na periferia das áreas urbanas.

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inovações tecnológicas, mas sim o enga-jamento de mão-de-obra25.

Para a aquisição de áreas, a prefeituranão dispunha do instrumento da desapro-priação. Os terrenos eram negociadoseventualmente através de intermediárioscomo forma de escapar da majoraçãodos preços, de certa forma inevitável seo vendedor soubesse que o compradorseria o poder público. Na verdade, a pre-feitura beneficiou-se de um grande es-toque de terras preexistente, fruto depolíticas de aquisição anteriores. Em1918, antes portanto da administraçãosocial-democrata, a prefeitura já era pro-prietária de 4.690 hectares, perfazendo18% da superfície do município. O perío-do de crise financeira facilitou a quedados preços e ofereceu à prefeitura opor-tunidades bastante vantajosas. Em 1922,o Ato de Controle dos Aluguéis foi outrofator a contribuir para a depreciação docusto dos terrenos. Em 1928, a prefeiturajá era proprietária de 8.000 ha, correspon-dentes a 1/4 da superfície municipal. Em1931, possuía 1/3 do município 26. Emtermos de recursos financeiros, a principalfonte foi a taxa sobre os aluguéis estabele-cida pelo Ato de Controle dos Aluguéisde 1922, que era cobrada dos inquilinose cujas alíquotas eram altamente progres-sivas. A maior parte do total arrecadadoprovinha dos inquilinos das propriedadesde luxo. O sucesso do programa de habi-tação da Viena Vermelha deve-se emgrande medida ao fato de estar muitobem articulado e inserido em uma políticade gestão do solo mais ampla. Outrosinstrumentos garantiam o rebaixamento

do preço da terra e o controle da valoriza-ção imobiliária: o imposto sobre a terraurbanizável e não ocupada; a taxação davalorização imobiliária; o direito de re-compra pela prefeitura pelo valor decla-rado (o que inibia a subdeclaração comoestratégia de escapar da taxa sobre valori-zação); a manipulação do zoneamento;e uma lei de 1929 que possibilitava a de-sapropriação de imóveis insalubres e denesgas (sobras de terrenos).

O resultado desse programa (1923-1934) foi a construção de 64.000 mora-dias que abrigaram 200.000 moradores,num total de 2 milhões de habitantes, queera a população da cidade naquela épo-ca. Isto é, ao final do período, um emcada dez habitantes da cidade era mora-dor de um Gemeinbaut. Além do mais, apopulação beneficiada era efetivamentea necessitada, diferentemente do queacontecera em Londres ou em Frankfurt.O sistema financeiro funcionava de formaque o valor dos aluguéis não excedia umapequeníssima parcela do salário do mo-rador. O programa de produção de mora-dias era então um investimento a fundoperdido. A importância dessa experiênciadeve-se, de um lado, a esses resultadosquantitativos; além disso, a experiênciade Rot Wien (Viena Vermelha) transcendeem muito o campo da política habitacio-nal, constituindo uma referência de abor-dagem holística no campo da políticasocial. Do ponto de vista urbanístico, aimportância está principalmente ligada aoineditismo da abordagem de trabalharcom a cidade existente e não de acordocom os cânones do desadensamento,

25 Blau, 1999 e 2000.26 Id., 1999, p. 138-139.

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então hegemônicos. Cabe aqui a obser-vação de que essa opção teve um condi-cionante de âmbito político-institucional.Os limites geográficos da municipalidadetornavam politicamente muito difícil a ado-

ção do modelo rarefeito dos Siedlungen.Mas, ao que parece, esse não foi o únicofator a determinar o abandono desse pro-grama em proveito dos Gemeinbauten.

Siedlung am Wassertum, Viena, 1928 (fonte: Blau, 1999, p. 124).

Karl-Marx-Hof, Viena, 1931 (fonte: Blau, 1999, p. 325).

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ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusão

Efeitos do bombardeio do Karl-Marx-Hof em18/02/1934 (fonte: Blau, 1999, p. 5).

Cartaz de 1934 retratando a queda da “forta-leza vermelha”, isto é, da administração socia-lista de Viena (fonte: Blau, 1999, p. 5).

O resgate dessas experiências passadasnos faz perceber a perenidade de algumasdas questões que ainda hoje norteiam osdebates sobre as soluções e alternativasao problema da habitação popular. Pri-meiramente, o papel nevrálgico ocupadopela questão fundiária. Todas as experiên-cias relatadas só se tornaram possíveispela efetivação de medidas que assegura-ram a disponibilidade de terrenos ondeos projetos vieram a se implantar. Em

segundo lugar, mas diretamente ligado aessa primeira questão, está o fato de quenas experiências mais profícuas a questãohabitacional foi abordada a partir de umaperspectiva mais ampla, mais intimamen-te concebida com a questão financeira,e contava com instrumentos de gestãodo solo bastante eficazes, notadamenteno que diz respeito ao controle da espe-culação imobiliária. Quais foram essescasos? Viena foi um exemplo bastante

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115Luís Octávio da Silva

“conseqüente”. Em relação a ela, o Atode Controle dos Aluguéis (1922) foi uminstrumento muito mais completo eabrangente do que o descrito ao longodeste texto. Essa lei praticamente expro-priou os proprietários dos imóveis de loca-ção de seu direito de propriedade, sementretanto aboli-lo. A Holanda é um outrocaso “radical”. Só para relembrar: os pro-prietários constituem consórcios de desa-propriação, o Estado desapropria a terra,urbaniza-a e revende-a para o mesmoconsórcio. Houve a eliminação do capitalfundiário (o que ganha com venda de ter-renos). Só restou o imobiliário. A tal pontoque pode-se falar de um “capitalismo ho-landês” (naquela época), em que a pro-porção de capital ligado diretamente aosetor produtivo (não-especulativo) eramaior do que nos outros países.

Em todos os casos aqui abordados,exceto o norte-americano, os programas

que chegaram à produção em massa demoradias se concentraram no períodocompreendido entre as guerras. Em todoseles, foram as administrações locais queimplementaram os programas, cuja exis-tência recebia sempre o apoio, pode-sedizer, de uma lei maior, de âmbito nacio-nal. Só ocorreram programas municipaisquando o poder foi assumido por admi-nistrações engajadas em alterar o quadroexistente. Os resultados obtidos no âmbitodos programas de habitação social noperíodo por nós analisado permitem afir-mar que essas experiências constituíramantecipações do Estado de Bem-estarSocial que caracterizou o mundo desen-volvido a partir do segundo pós-guerra.Nesse sentido, pelo menos em relação àmaioria dos países aqui referidos, as reali-zações do segundo pós-guerra significammuito mais uma continuidade do que oinício de uma nova forma de atuação doEstado.

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ResumoResumoResumoResumoResumo Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract

O intuito deste trabalho consiste em apre-sentar a emergência de programas de pro-dução de habitação social empreendidosem alguns dos principais países da van-guarda do processo de desenvolvimentocapitalista. Pretende também abordar asconcepções urbanísticas que os nortea-ram. O período em pauta vai até a Segun-da Guerra Mundial, com uma atençãoespecial para o compreendido entre asguerras. A última parte do texto refere-seespecificamente à experiência dos progra-mas de habitação social da Rot Wien(Viena Vermelha). Trata-se do período po-lítico administrativo de 1919 a 1934, du-rante o qual esteve no poder municipalda Cidade de Viena o Partido Social De-mocrata, de orientação socialista. A expe-

The aim of this article is to present theemergence of subsidized housing programsin some of the foremost countries involvedin the rise of capitalism. The intention isalso to consider the urbanistic conceptson which these programs were based. Theperiod covered ends with the second worldwar, special attention being given to theperiod between the two wars which, aswe will see, was especially important incertain countries. The final part of the textconcerns specifically the case of the RotWien (Red Vienna) subsidized housing pro-gram. This was the political administrativeperiod, between 1919 and 1934, duringwhich the Vienna’s municipal governmentof city was in the hands of the Social Demo-crats, a party of socialist persuasion. The

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117Luís Octávio da Silva

riência da Viena Vermelha constitui ummarco na história dos programas de habi-tação social não só pelo número de uni-dades produzidas e pelos instrumentosinstitucionais e financeiros postos emprática, mas também pelo projeto de so-ciedade proposto e pelas concepções ur-banísticas adotadas. Essa experiência foiencerrada pelo golpe fascista (austríaco)que antecedeu a ocupação alemã ocorri-da em 1938.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: habitação social, urba-nismo-história, política urbana, políticasocial.

experience of the Red Vienna projectmakes for an excellent case study on thehistory of subsidized housing programs notonly because of the number of units it pro-duced but also because of the institutionaland financial tools implemented as wellas the social plan it proposed and the ur-banistic concepts adopted. This experiencecame to an abrupt end with the coup d’étatcarried out by Austrian fascist factionsgiving way to German occupation in 1938.

KeywordsKeywordsKeywordsKeywordsKeywords: subsidized housing programs,urban history, urban policies, social poli-cies.

Luís Octávio da SilvaLuís Octávio da SilvaLuís Octávio da SilvaLuís Octávio da SilvaLuís Octávio da Silva é urbanista, mestre em Administração Pública (FGV),doutorando em Estudos Urbanos (Université du Québec à Montréal - Canadá) eprofessor na Universidade São Judas Tadeu

Recebido para publicação em maio de 2001

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A espacialidade da riqueza: A espacialidade da riqueza: A espacialidade da riqueza: A espacialidade da riqueza: A espacialidade da riqueza: notasnotasnotasnotasnotasteóricas sobrteóricas sobrteóricas sobrteóricas sobrteóricas sobre as principais detere as principais detere as principais detere as principais detere as principais determinaçõesminaçõesminaçõesminaçõesminaçõesda dimensão espacial do desenvolvimentoda dimensão espacial do desenvolvimentoda dimensão espacial do desenvolvimentoda dimensão espacial do desenvolvimentoda dimensão espacial do desenvolvimentocapitalistacapitalistacapitalistacapitalistacapitalista

Carlos Antônio Brandão

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XV, No 1, 2001, p. 119-134

O presente texto procura estabelecer e dis-cutir o lugar teórico das principais determi-nações que explicariam o caráter desigualdo processo de desenvolvimento capitalistae busca demonstrar a necessidade deavançar na teorização e na hierarquizaçãodos determinantes que conformam a di-mensão espacial desse processo. Sugeri-mos que para a devida análise crítica daacumulação desigual de capital no espaçoseria imprescindível verificar articulada-mente os movimentos de homogeneização,de integração, de polarização e de hegemo-nia nos diversos recortes territoriais.

O desenvolvimento capitalista é intrin-secamente marcado por rupturas, con-flitos, desequilíbrios e assimetrias eapresenta uma peculiar espacialidade desua riqueza, sob a forma de mercadorias,que requer instrumentos analíticos e con-ceituais bastante precisos para o seu estu-do. Podemos dizer que todas as correntes

do pensamento social que procuraramabordar o desenvolvimento desigual dosespaços regionais apresentaram algumaproposição teórica acerca dessas quatrodimensões e forças. Entendemos que essesconceitos de homogeneização, de polariza-ção, de integração e de hegemonia hojeexigem reatualização, pois foram conce-bidos e utilizados em realidades bastantediversas da apresentada pelo novo mo-mento de mundialização do capital.

Cabe aqui, porém, um conjunto dealertas. É preciso ter cuidado para nãocair nem em “abstrações cientificistas”(Oliveira, 1985), ou seja, entender o espa-ço e o tempo de forma apartada da açãosocial de sujeitos concretos, nem em “his-toricismos”, que não avançam além dosmeros estudos caso a caso. Assim, deve-se esclarecer que esses quatro conceitos,mesmo retrabalhados, não possibilitamo estabelecimento de leis gerais de movi-

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mento, ou seja, o entendimento da dimen-são espacial do processo de desenvol-vimento não pode prescindir, em nenhummomento, da História. As categorias so-ciais possuem uma natureza intrínsecanão universalizável, posto que históricas.Marx (1982, p. 17) afirma, acerca do mé-todo da economia política, que “até ascategorias mais abstratas (...) são, con-tudo, na determinidade dessa abstração,igualmente produto de condições históri-cas, e não possuem plena validez senãopara essas condições e dentro dos limitesdestas”. Esse princípio é discutido porPacheco (1998, p. 32), quando este escla-rece que

“a discussão sobre regiões é desde logouma problemática afeita ao desenvol-vimento do capitalismo e à conforma-ção de padrões de divisão do trabalhoque se diferenciam espacialmente,com a conseqüente diferenciaçãoeconômica do espaço e, portanto,também dos sujeitos que habitam esteespaço. Mas se o entendimento desteprocesso exige uma formulação teó-rica, esta formulação não se con-funde com leis gerais. Trata-se de umprocesso eminentemente histórico-genético (...). Isto não significa obriga-toriamente ancorar-se numa propostahistoricista, mas significa reconhecerque a elaboração teórica sobre este

processo não tem como fugir da fixa-ção de suas condições históricas.”

Outro alerta importante é que aquelesquatro conceitos devem ser formulados emplanos teóricos distintos, fruto que são dedeterminações muito diversas. Estandoposicionados em âmbitos diferentes deanálise, não são deriváveis dos mesmoselementos, e a passagem de um para outroenvolve necessariamente inúmeras me-diações teóricas que estão por ser cons-truídas. Vários exemplos dos equívocoscometidos no estudo da relação entre taisconceitos podem ser encontrados em di-versas passagens dos especialistas da área.Assim, Boudeville (1973) afirma que “aausência de homogeneidade é a medidada ausência de integração”; Lipietz (1977,p.150) diz que “a homogeneidade é cons-titutiva da polarização (sem articulaçãonão há polarização) e reciprocamente semcampo de forças sociais não há senão uni-dade formal do espaço considerado”, eAydalot (1976), por sua vez, ensina que“o que define um espaço não pode ser umcritério de homogeneidade, senão pelocontrário, um critério de complexidade”.

Procuraremos demonstrar como osconceitos propostos neste ensaio pode-riam constituir-se em elemento fundantede uma perspectiva crítica que assumacomo constitutiva a dimensão espacialdos processos econômicos e sociais.

Reconceituando o processo de homogeneizaçãoReconceituando o processo de homogeneizaçãoReconceituando o processo de homogeneizaçãoReconceituando o processo de homogeneizaçãoReconceituando o processo de homogeneização

A abordagem aqui proposta se afastacompletamente da discussão de espaçohomogêneo da chamada Ciência Regio-nal. Ou seja, esse conceito deve ser iso-

lado de qualquer idéia de otimização, deconvergência ou de eqüipotência “espa-cial”, bem como de critérios de semelhan-ça e de contiguidade. Boudeville (1973),

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por exemplo, irá tratar a homogeneizaçãocomo “medida dos fatos (isto é, maiorou menor uniformidade)”, e já se tornouuma tradição dos estudos regionais a utili-zação desse conceito como critério paradelimitar fronteiras regionais. O sentidoaqui proposto procura mostrar que esseprocesso não delimita “regiões”, mas so-bretudo “desfaz” fronteiras territoriais,abrindo horizontes e dispondo espaçospara a valorização capitalista mais ampla.

Propomos que toda a ênfase da aná-lise espacial recaia no processo de ho-mogeneização de relações, isto é, deequalização, enquanto tendência, reque-rida pelo capital de relações de produ-ção mais apropriadas a seu movimentounificado de valorização, ou seja, de con-dições “mais igualitárias” para a sua re-produção ampliada. Certamente o capitalnão requer e não engendra qualquer igua-lação de níveis de desenvolvimento doconjunto das forças produtivas. Realizara separação de características comuns(topográficas, climáticas etc.) de umadeterminada porção territorial (para con-trapô-las a dessemelhanças extrafrontei-ra sob análise) pouco permite avançarna análise da dimensão espacial do pro-cesso de desenvolvimento. Focalizar iden-tidades regionais, buscando mostrar aharmonização e a coesão comunitáriase igualitárias de um espaço visto comocontínuo e forçando a construção de umapersonalidade própria e fundada emidiossincrasias localizadas, serve perfeita-mente para a construção de uma pautade reivindicações regionalistas, mas atra-palha a investigação crítica da dinâmicaconcreta de um determinado recorte ter-ritorial. Em outras palavras, a homoge-

neização não deve ser associada a ne-nhuma idéia de afinidades ou de solida-riedade de uma “comunidade” particular,mas ao movimento universalizante docapital, arrebatando mesmo os espaçosmais remotos a um único domínio. Ape-nas nesse sentido o capital é homogenei-zador e abarcador.

Esse processo homogeneizador deveser encarado através do vetor da acumu-lação capitalista de busca da valorizaçãounificada e da universalização da merca-doria. Ou seja, da própria definição decapitalismo como regime social que levaa mercantilização às últimas conseqüên-cias. O processo homogeneizador é ati-nente: à imposição pelo capital, emqualquer espaço, de seus pressupostosimanentes; à capacidade do mesmo emincorporar massas humanas à sua dinâ-mica; à atração de todos os entes à órbitade seu mercado; à subordinação a si detodas as unidades societárias; à buscade construção de um espaço uno de acu-mulação e à destruição de quaisquer bar-reiras espaciais e temporais que possamgerar atritos e fricções ao seu movimentogeral. A luta do capital por uma esferaunificada de valorização engendra a are-na e fixa os parâmetros (a igualdade dasregras) sob os quais se dará a luta concor-rencial. O capital busca a equivalênciade suas condições reprodutivas em todoe qualquer lugar, assim, são próprias doseu movimento a aniquilação do espaçopelo tempo, a força dissolvente de rela-ções arcaicas e a mobilidade e flexibi-lidade espaciais. É preciso muito cuidadono tratamento dessa dimensão “espacial”do capitalismo porque ela não tem nadade niveladora de desigualdades. Na ver-

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dade, esse processo homogeneizador (derelações mercantis) cria e recria estrutu-ras heterogêneas e desigualdades em seumovimento. Certamente o desenvolvi-mento capitalista não é uma dinâmicaevolutiva de “nivelamento” e de propaga-ção de progresso técnico por todas as por-ções do território. O que ele difunde é alógica da multiplicação do valor, de ummodo continuamente renovado em buscado enriquecimento absoluto, realizandorecorrentemente a ruptura do isolamento,atravessando todas as fronteiras, arrefe-cendo barreiras e proteções erguidas porrelações arcaicas 1. Sujeitando todos osrecortes do território que interessem à suadeterminação, o capital funde os espaçoscircunscritos, apropriando-se de terra,trabalho e dinheiro, transformando-os emmercadoria, segundo Polanyi (1980). Emsua trajetória de busca de riqueza abstra-ta, utiliza cegamente todos os entes emtodas as escalas, segundo esse objetivoúltimo de ganho privado, reproduzindo a

segregação, as assimetrias e as desconti-nuidades, acirrando a competição e apro-fundando a desigualdade entre pessoase lugares.

Essas estruturas heterogêneas criadase recriadas no bojo do movimento homo-geneizador serão enlaçadas e, crescente-mente, vinculadas a partir da dominânciade formas superiores de capital, presentesnas áreas onde o nível de desenvolvimen-to das forças produtivas tenha alcançadodimensão suficiente para requerer inexo-ravelmente uma divisão social do trabalhosupra-regional e, portanto, uma potentearticulação inter-regional. A homogenei-zação diz respeito, pois, a esse processode construção dos loci e das regras daslutas concorrenciais, que busca engen-drar um espaço unificado de valorizaçãodo capital e que define os espaços de mer-cado nos quais se desenvolverá a “coer-ção imposta” do processo de integração.

1 É no Manifesto Comunista que Marx e Engels realizam profunda análise do caráter disruptivodo capitalismo, da força propagadora (e “homogeneizadora”) que submete todostodostodostodostodos os seuselementos à lógica da mercantilização máxima.

Reconceituando o processo de integraçãoReconceituando o processo de integraçãoReconceituando o processo de integraçãoReconceituando o processo de integraçãoReconceituando o processo de integração

O âmbito da análise em que se procurareconceituar a integração deve abrangera dinâmica coercitiva da concorrênciacomo seletividade impositiva que irá ope-rar naqueles espaços e horizontes abertospela homogeneização. Após essa últimater “limpado o terreno”, ao “nivelar” ascondições reprodutivas ambientais e aoconstruir as arenas para a valorizaçãodesimpedida de obstáculos extra-econô-

micos (tarefas do processo homogeneiza-dor), a pugna entre as diversas unidadesde riqueza poderá ocorrer nos construtossociais denominados “mercados” (tarefarealizada via processo integrador). Ouseja, diversamente da concepção neolibe-ral presente, por exemplo, na concepçãovulgar de globalização, a integração é umprocesso de enfrentamentos em um am-biente nada idílico, determinada que é,

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em última instância, pela concorrência,necessariamente marcada por rupturas,transformações, conquistas e tentativasde preservação de espaços e horizontesrenovados para a reprodução ampliadado capital.

A integração é sempre um processocontínuo e de difícil reversão, que exerceinfluência complexa e contraditória sobreas regiões aderentes, que serão engolfa-das em adaptações recíprocas, comintensidades e naturezas diversas, des-tacando-se, evidentemente, a potência dovetor “centro dinâmico” => “periferia”,embora nunca possa ser encarada comounidirecional.

Dessa forma, ela recondiciona aseconomias aderentes, forçando-as à con-vergência e à reacomodação das es-truturas produtivas regionais. Quandoacelera-se o processo interativo, acirra-se a concorrência inter-regional. Os mer-cados regionais passam a ser expostos àpluralidade das formas superiores de ca-pitais forâneos. Na esteira da incorpora-ção, multiplicam-se as interdependênciase as complementaridades regionais, quepodem acarretar o aumento tanto das po-tencialidades quanto das vulnerabilidadesregionais. Metamorfoseia-se a densidadeeconômica de pontos seletivos no espaço:sua capacidade diferencial de multiplica-ção, de reprodução e de geração de valore riqueza; sua capacidade de articulaçãointer-regional; o grau e a natureza dasvinculações e a densidade dos circuitos“produtivos”. Mudam e diversificam-seos fluxos, o movimento de seus eixos decirculação e seu potencial produtivo.

Um autor clássico que apresenta umaboa percepção desse processo é Lênin(1982, p. 353), que diferencia o desenvol-vimento do capitalismo numa parte do paísdo desenvolvimento do capitalismo nas“novas terras”.

“No primeiro, o que temos são rela-ções capitalistas já estabelecidas quese desenvolvem; no segundo, a forma-ção de novas relações capitalistasnum novo território. O primeiro pro-cesso implica o desenvolvimento emprofundidade do capitalismo, o segun-do, o desenvolvimento em extensão”.

A integração visaria a uma maior pro-fundidade e extensão na acumulação decapital.

À medida que disseminam-se as vin-culações mercantis e que se acelera oconcerto de uma divisão inter-regional dotrabalho, torna-se cada vez mais evidenteo contraste com a fase pré-integração.Naquele momento pretérito, vigorava umaverdadeira constelação de núcleos isola-dos, com relações mercantis rarefeitas,compondo um verdadeiro mosaico de “re-giões” dispersas. Nesses espaços, dadaa precariedade das comunicações inter-regionais, os segredos – base de sustenta-ção do capital mercantil – são preservadose utilizados na constituição e na manuten-ção de canais especiais para a obtençãode privilégios e benesses no Poder Público.A ruptura do isolamento inter-regionalacelera as temporalidades dos diversosespaços integrados. Concordamos comFaria (2000), que assevera que

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“a maior circulação de mercadoriasnão só permitia romper com as limi-tações da duração do ciclo produtivolocal, como, pelo aumento concomi-tante do fluxo de informações, pro-porcionava uma maior velocidade aosprocessos sociais e políticos, acele-rando o próprio curso da história”.

Tornar os espaços conexos não é umatarefa que ocorre com naturalidade.

“Passar do mercado regional ao merca-do nacional costurando juntas eco-nomias de raio bastante curto, quaseautônomas e muitas vezes fortementeindividualizadas, não tem portantonada de espontâneo. O mercado na-cional foi uma coerência imposta aomesmo tempo pela vontade política,nem sempre eficaz na matéria, epelas tensões capitalistas do comér-cio externo e à longa distância.”(Braudel, 1979, p. 255, apud Faria)

Essa coerência imposta para construire articular socialmente os mercados encon-tra diversos obstáculos que se antepõemao avanço da concorrência intercapitaislocais/regionais e ao estabelecimento delaços de complementaridade inter-regio-nais. A ação das forças da integração ge-ralmente constitui um longo, contraditório,heterogêneo e conflituoso processo em queos espaços regionais circunscritos e capsu-lares vão sendo enredados a partir daque-le(s) espaço(s) onde prevalecem formassuperiores de acumulação e de reproduçãoeconômica.

Assim, constata-se que a dinâmicada acumulação de capital geralmente

logra, na longa duração, integrar a eco-nomia nacional, formando um único es-paço nacional de valorização, emboraesse processo pouco tenha a ver com adiminuição das especificidades intra einter-regionais. Muito pelo contrário, a in-tegração põe em toda sua inteireza aquestão do fosso no nível de desenvol-vimento das forças produtivas entre asregiões, impondo a conscientização da na-tureza desigual do processo de desenvol-vimento capitalista e explicitando uma“questão regional”, que ganha foros deproblemática concreta a ser enfrentadano/pelo Estado. Isso só acontece quandose consolida uma economia nacional in-tegrada, diversificada e complexa (quetenha estabelecido e cristalizado uma di-visão inter-regional do trabalho). Assim,a constituição, de modo irrecorrível, deum “mercado interno” não nega, antesreafirma e explicita, os descompassos,assimetrias e disritmias da dinâmica detransformação nos diferenciados espaçosregionais, expondo, de forma eloqüente,as heterogeneidades estruturais inter-regionais (“desequilíbrios regionais”), asforças desintegradoras, e criando umadensidade social para a reivindicação depolíticas compensatórias.

A partir da consolidação desse pro-cesso torna-se impossível qualquer expe-riência de engendrar-se, ao nível de umaúnica região, uma matriz produtiva densae integrada, isto é, regionalmente “com-pleta”. Inescapavelmente resta a cadaregião desprender-se de qualquer “inge-nuidade” de buscar autonomia econômi-ca (Cano, 1998) e, portanto, inserir-seespecializada e complementarmente emelos específicos das cadeias produtivas

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constitutivas da “matriz produtiva na-cional”, que se encontra espacializada portodo o território doméstico.

Note-se que a natureza daquele en-trelaçamento de espaços diferenciados ébastante distinta segundo o grau alcan-çado pelo desenvolvimento das forçasprodutivas, tanto no “centro” quanto nosdiversos espaços periféricos. Cada espa-ço constitutivo da diversidade regionalacaba sucumbindo, de forma singular, aoenquadramento e à hierarquização pro-venientes do espaço regional hegemôni-co. Todas as regiões encontraram seu locusde vinculação na equação produtiva na-cional, comprometendo, desse modo, suaautonomia econômica. A impactação in-tra-regional no momento do (e posterior-mente ao) engate de cada região no“quadro nacional” é (des)estruturante,uma vez que os “espaços internos” a cadaregião metabolizarão, de maneira distin-ta, esse processo (Brandão, 2001).

Consolidadas a formação e a integra-ção do mercado nacional, as economiasregionais periféricas são impedidas delevar adiante qualquer projeto de “repetiros passos” da região dominante. Comoafirma Cano (1998), as regiões periféricaspassam a ser “acionadas” a partir do co-mando da economia do centro. Resta,então, tão-somente integrar-se comple-

mentarmente à economia do pólo dinâ-mico da acumulação, submetendo-se eenquadrando-se a uma hierarquia coman-dada por aquele centro do processo dedecisões atinentes à acumulação de capi-tal, que passa a ditar o ritmo e a naturezada incorporação de cada região do rankingnacional, vetando o que não fosse aquela“articulação possível” em cada momentoe eventualmente gerando efeitos de des-truição nas regiões que ousassem enfren-tar os requerimentos emitidos pelo núcleoda acumulação de capital 2. Os diversoscapitais, enquanto unidades expansivas devalorização, se disseminam e se defron-tam em todo o território nacional (espaçoagora homogeneizado para o jogo concor-rencial), conformando uma estrutura pro-dutiva densa, integrada, complexa ediversificada, que se localiza em diferentesparcelas do espaço geográfico nacional.

Amplificam-se e adensam-se os fluxosentre as regiões, e a relação centro-peri-feria ganha nova dinâmica e natureza.Transformam-se, inclusive, as pautas decomercialização regional, com a implan-tação e a diversificação da indústria daperiferia, complementarmente ao pólo.Uma vez realizada a integração, a nature-za e a dinâmica da potência desse “núcleocentral da acumulação” devem ser analisa-das, e deve-se perquerir sobre seu papelpolarizador.

2 Wilson Cano (1998) discutiu em detalhe o caso brasileiro de integração do mercado nacional,inclusive alertando para o fato de que o processo integrador pode proporcionar tanto efeitos deestímulo quanto efeitos de inibição/bloqueio e destruição.

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Conceituando o processo de polarização capitalistaConceituando o processo de polarização capitalistaConceituando o processo de polarização capitalistaConceituando o processo de polarização capitalistaConceituando o processo de polarização capitalista

A terceira dimensão que deve estar pre-sente em qualquer abordagem que nãodescure dos aspectos espaciais da acu-mulação de capital é a da polarizaçãopolarizaçãopolarizaçãopolarizaçãopolarização.Esta deriva da própria natureza desiguale combinada do desenvolvimento capi-talista. O desenvolvimento das forças pro-dutivas gera polaridades, “campo deforças” desigualmente distribuídas no es-paço, ou seja, estruturas de dominaçãofundadas na assimetria e na irreversibili-dade, que ainda serão reforçadas pelainércia dos investimentos em capital fixoconcentrados naquela área central, mar-cada por forças aglomerativas. Apesar decontemplar a necessária interdependên-cia entre distintas áreas, essa atraçãopelos pontos nodais funda-se na hetero-geneidade e no exercício unilateral dopoder e da potência do “centro” sobrealgum tipo de “periferia”.

Os mais diversos estudiosos da te-mática urbano-regional apresentaramcontribuições pertinentes às forças polari-zadoras, ressaltando as características decumulatividade, de crescimento não-ba-lanceado e não-generalizado, ou seja, ocaráter de transmissão bloqueada própriado crescimento econômico. Boudeville(1973) fala da polarização como medidados processos (com maior ou menor in-terdependência e hierarquia). As idéiasclássicas associadas a esse conceito, taiscomo irradiação mercantil com satélitesgravitando em torno de alguns nós cen-trais, medida pela intensidade dos fluxos,sempre estiveram presentes no debate.Furió (1996, p. 79) expressa bem esse

conjunto de contribuições quando discuteque “os fluxos não se distribuem aleatoria-mente, nem com intensidades uniformes(...) os fluxos mais importantes tendema orientar-se na direção e desde algunscentros dominantes”.

Em um nível mais geral, a polarizaçãoderiva dos processos de concentração ecentralização do capital e de seus desdo-bramentos no espaço, embora entre ume outro inúmeras mediações sejam reque-ridas. Na verdade, ela é decorrente daheterogeneidade estrutural e da própriacumulatividade e das forças aglomerati-vas presentes no espaço geográfico capi-talista.

O capitalismo continuamente desenhae redesenha “novas geografias”, produ-zindo novas escalas, novos pontos nodais,rearranjando as forças da polarização, daheterogeneidade e da dominação regio-nais. Muda o padrão de articulação dadiversidade regional. Mudam os núcleosdinâmicos de comando que exercem dife-rentes espécies de atratividade e domi-nação e geram estratégicos pontos, eixose nós de maior ou menor potência repro-dutiva e capacidade de apropriação.

Atualmente, encontramos um novocaráter da influência exercida de algunspontos do espaço sobre outros: as rela-ções entre as regiões dominantes e as re-giões subordinadas têm se transformadorapidamente, na medida em que o siste-ma capitalista aperfeiçoou uma série deinstrumentos técnicos, organizacionais

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etc. que lhe permitiu avançar em sua se-letividade geográfica. Assim, a noção depolarização não precisa e não deve serassociada a conceitos do tipo indústriamotriz, efeitos de filtração etc. e nem estarsempre necessariamente vinculada, comoocorreu no passado, de alguma forma, àvariável distância. Crescentemente, apesquisa regional e urbana deve encerrarum mapeamento exaustivo e complexode localizações, de movimentos, de redes(direção e sentido), de fluxos (origens edestinos) e de nós (entrelaçamentos).Nesse sentido, a importante e cada vezmais freqüente pesquisa da matriz espa-cializada de investimentos ajuda a enten-der uma parte do processo, mas perde osentido e a natureza da dominância exer-cida pelos controlling cores das grandescorporações e das grandes fortunas sobre

o desempenho das áreas periféricas. Ouseja, é o poder de controle progressivodos headquarters do grande capital quepossibilita “ondas desconcentracionistas”a partir do centro. Em outras palavras,são a potência e a eficácia das forçascentrípetas que permitem a ação das for-ças centrífugas.

A discussão da gravitação, a partirde alguns poucos pontos focais, impõe adiscussão da capacidade e do poder dedecisão diferencial acerca do conjunto deelementos que dão sustentação à acumu-lação de capital. Em outras palavras, háque analisar, a partir do core do sistema,o grau de autonomia da reprodução desuas formas dominantes de valorização,para questionar o potencial de gestão eordenamento sobre o conjunto nacional.

O grande desafio da análise: a incorporação doO grande desafio da análise: a incorporação doO grande desafio da análise: a incorporação doO grande desafio da análise: a incorporação doO grande desafio da análise: a incorporação doprocesso de hegemoniaprocesso de hegemoniaprocesso de hegemoniaprocesso de hegemoniaprocesso de hegemonia

As profundas transformações que estãose operando nas temporalidades e espa-cialidades da riqueza capitalista em es-cala mundial neste momento apresentamuma série de desafios para a análise daexpressão espacial de densas e rápidasmudanças sociais.

Essas transformações verificadas noquadro mundial da atualidade e o con-seqüente redesenho da geografia econô-mica mundial impõem uma agenda amplae complexa de importantes questões que

devem fazer parte do debate acerca doestatuto, hoje, do recorte regional e dasmetamorfoses do movimento da acumu-lação de capital em sua dimensão espa-cial. O grande desafio é, então, procurarresponder à intrigante questão: diante daatual onda de “globalização”, que papela desempenhar resta às regiões?

As tentativas de resposta a essa difícilquestão depararam-se com uma insufi-ciência do quadro teórico da chamada“economia regional e urbana” 3. Basica-

3 Como não é nosso objetivo neste ensaio apresentar uma “história do pensamento” sobre adimensão espacial do processo de desenvolvimento, aí incluída a discussão teórica sobre região,remetemos o leitor para Coraggio (1988), Gottdiener (1985) e Furió (1996).

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mente, duas grandes correntes do pensa-mento social procuraram explicar a pro-blemática das diversidades regionais.Uma, amparada pelo positivismo, conhe-cida como Ciência Regional, que em seutratamento econômico de extração neo-clássica procurou pensar as causas daineficiência alocativa de recursos escassosno espaço, pesquisando “a diferenciaçãoe inter-relação de áreas num universo derecursos desigualmente distribuídos e im-perfeitamente móveis” (Dubey, 1977, p.26). Outra, de extração marxista, quebuscou examinar as diversidades entre asregiões, sob o prisma do movimento daacumulação de capital. Talvez se pudesseacrescentar uma “terceira via”, de corte“keynesiano”, que procurou analisar osmecanismos de determinação e mediçãodas rendas regionais e propor ações esta-tais de Planejamento Regional. Entretanto,tal perspectiva acabou por emaranhar-see esterilizar-se na primeira corrente listada,de base neoclássica.

Assim, uma ampla agenda de pes-quisas se abre na atualidade, impondouma espécie de “retematização” das diver-sidades regionais capitalistas. Em escalaglobal, a realidade do desenvolvimentodesigual dentro das diversas nações e dosblocos de nações vem sendo crescente-mente diagnosticado e submetido a inter-venções públicas compensatórias. Aceleridade e a dimensão das revitaliza-ções, das desindustrializações, das relo-calizações regionais é impressionante.Surgem novas interdependências setoriaise territoriais, que redefinem circuitos pro-dutivos regionais/locais e (re)criam novosusos das heterogeneidades espaciais pelocapital.

A crescente internacionalização doscircuitos econômicos, financeiros e tecno-lógicos do capital mundializado, de ummodo geral, debilita os centros nacionaisde decisão e comando sobre os destinosde qualquer espaço nacional. Uma dasprimeiras manifestações dessa descons-trução nacional se revela no esgarçamen-to do pacto federativo, que desorganizaas articulações entre o poder central e ospoderes locais/regionais. Nesse sentido,muitos proclamam que bastaria cumpriras “exigências” da globalização, destenovo imperialismo da “partilha dos luga-res eleitos”, ajustando-se, adaptando-see submetendo-se a esta “fatalidade”,para formar um espaço receptivo e con-quistador da confiança dos agenteseconômicos mais poderosos. Com a com-pleta negação da natureza das hierar-quias (impostas em variadas escalas) degeração e apropriação de riqueza, segun-do esse “pensamento único” que invadeo debate do desenvolvimento regional elocal na atualidade, teria ocorrido o fimdas escalas intermediárias (e das media-ções) entre o local e o global. Assim, “olocal pode tudo”, e, diante da crescente“sensibilidade do capital às variações dolugar”, bastaria que se mostrasse diferen-te e “especial”, propagandeando suasvantagens comparativas de competitivi-dade, para ter garantida sua inserção namodernidade. Exacerba-se, desse modo,uma luta entre os lugares para realizar amelhor “venda da região ou da cidade”,com a busca desenfreada de atratividadea novos investimentos, melhorando o“clima local dos negócios”.

Nesse novo contexto mundial, em queordena-se e impõe-se, em uma “escala

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geográfica condensatória”, a reproduçãomaterial e afirma-se a “totalidade empí-rica”, de que nos fala Milton Santos, con-trapondo o mundo e o local, é precisoreproblematizar a região:

“a crescente importância da escala pla-netária na organização da economia,das finanças, das redes de poder tem,paradoxalmente, reforçado a impor-tância das decisões nas escalas regio-nais e locais. O recrudescimento dosnacionalismos, regionalismos e loca-lismos obriga-nos a encarar novosproblemas e novos aparatos con-ceituais para a pesquisa regional.”(Castro, 1994, p. 158)

As mudanças tecnológicas e os imperati-vos da globalização têm apresentadonovos requisitos locacionais, reafirmam-se e negam-se externalidades locais eregionais, desconstroem-se regiões. Ten-dências e contratendências medem suasrespectivas forças. Muitas ainda não tive-ram o tempo e a circunstância adequa-dos para sua efetivação. Observadoresmenos atentos sugerem o fim das escalasintermediárias entre o local e o global.

O início do enfrentamento de tãocomplexas questões passa pelo levanta-mento mínimo das poderosas contradi-ções inculcadas nesse objeto, queencontra manifestação em vários movi-mentos paradoxais que, grosso modo,poderiam ser sintetizados naqueles apre-sentados por Harvey (1992): “quantomenos importantes as barreiras espaciais,tanto maior a sensibilidade do capital àsvariações do lugar dentro do espaço etanto maior o incentivo para que os lu-

gares se diferenciem de maneiras atrati-vas ao capital”. Mas listemos algumascontradições, que se exacerbam no mo-mento contemporâneo.

É inconteste que o movimento da acu-mulação de capital se processa, em suaexpressão espacial, de forma mutável,parcial, diversa, irregular e com alta sele-tividade. As manifestações no espaço davalorização e da riqueza são altamentediscriminatórias. Existe, assim, um pro-cesso de busca e seleção por pontos doespaço que ofereçam maior capacidadede apropriação privada de rendimentose onde “valorizar o valor” seja mais fácil.Cristalizam-se no espaço estruturas que“materializam-se” enquanto fluxos e fixosdiversos, reveladores de uma propagaçãonão-seqüencial, de uma intermitênciaespacial no processo de valorização docapital. Cabe notar que existe uma cumu-latividade estrutural inerente a esse pro-cesso que irá determinar uma fixidez doarranjo espacial da reprodução da vidasocial. O peso da experiência passada –“espaço construído” – afirma cicatrizes,sinais e vestígios que posicionam “rugo-sidades” (Santos, 1985) no (e do) espaço.Ou seja, heranças e resíduos nos pontosdo espaço que obstaculizam a fluidez e amobilidade, constituindo formas fixadasatravés do prolongamento do passado nopresente. Nesse contexto, não há sentidoem buscar qualquer desses fenômenos“fora da história”. O movimento da acu-mulação de capital, sobretudo em suaface homogeneizadora de relações, vaiprocurar suplantar essa durabilidade dasformas, das estruturas, das relações e dosprocessos preexistentes que soem limitare dirigir as transformações em curso

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requeridas por aquele movimento. Esseé um processo conflitivo e contraditórioque nunca se completa plenamente e “deuma vez por todas...”.

Isso porque, por um lado, o capitalbusca valorizar-se sem confinamentosregionais/espaciais. Generalizando suasrelações, procura impor e tornar comumsua lógica, circulando seus valores, sím-bolos e informações supra-regionalmente,gestando em seu cosmopolitismo um es-paço e um mercado uno. No ManifestoComunista, Marx e Engels (1982, p. 97)afirmam: “O capital necessita estabele-cer-se em toda parte, explorar em todaparte, criar vínculos em toda parte...”.Estas são determinações de natureza ge-nética do capital enquanto relação social,que encontram-se em uma fase superiorde mundialização no presente, em que“o capital flui e suas atividades induzidasde produção/gerenciamento/distribuiçãoespalham-se por redes interconectadasde geometria variável” (Castells, 1999).Seriam a desterritorialização e a dissolu-ção das regiões, a derrota das especifici-dades, até se confundirem com o “espaçototal”? Existiria a possibilidade concretade um momento superior de “suplantaçãodo espaço e invalidação do tempo”(Castells, 1999) ou de “aniquilação doespaço pelo tempo” (Harvey, 1992)?

Por outro lado, ao mesmo tempo, anatureza desigual da acumulação engen-dra um espaço múltiplo. “O capital nãosomente produz o espaço em geral, mastambém produz as reais escalas espaciaisque dão ao desenvolvimento desigual asua coerência” (Smith, 1988, p. 19). Asmanifestações dos processos de produ-

ção, de consumo, de distribuição, de troca(circulação) são marcadamente diferen-ciadas espacialmente. Castells (1999)apresenta a tese de que, crescentemente,o capital é global, mas o trabalho é local.Um aumenta sua coordenação global noespaço dos fluxos. O outro se individualizano espaço dos lugares.

À medida que as fronteiras territoriaissão redesenhadas (apagadas segundoalguns), várias hipóteses são levantadasprocurando dar resposta à contradiçãode que, mesmo com o capital universa-lizado, acentuam-se os particularismoslocalistas. A visão liberal-conservadora,representada por Ohmae (1993), discutea “disfuncionalidade” do Estado-naçãoem face do movimento globalizante eabarcador do capital. Considera que orecorte nacional conforma uma unidadenão-natural para o borderless world. Aescala eficiente – a regional – é a que vêconstantemente seus contornos seremratificados pelo mercado e que possui ca-pacidade de justificar infra-estrutura(redes de comunicações, transportes eserviços profissionais de qualidade), com-provando a eficiência das ações do queele denomina de Estados-Região.

Realmente, assiste-se atualmente aocrescente poder de veto, de bloqueio ede burla de grupos nitidamente demar-cados territorialmente, com numerososmovimentos exprimindo demandas comexpressões regionalistas, à propagação deondas de separatismos, fragilizando asações dos Estados nacionais e desinte-grando pactos federativos. Com o apro-fundamento da crise, diversos grupos depressão regionais procuram vocalizar

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suas demandas, e o regionalismo nadamais é que a expressão política dessesgrupos, que buscam construir sua identi-dade no recorte territorial, mobilizando-se para o enfrentamento com outrasunidades e escalas espaciais no Estado.A coesão é criada simbolicamente, coma elite local articulando o discurso “emprol dos interesses legítimos da região”.Os donos do poder local instrumentali-zam-se contra os valores universais e rea-cendem toda sorte de particularismos.

Deve-se ainda notar que, em seu es-forço ideológico irrealizável de negar apolítica (restringindo ao máximo o espa-ço do público e expandindo o espaço doprivado) e a utilidade de qualquer enteregulador externo ao mercado, os(neo)liberais apóiam toda e qualqueração que possa significar um solapamen-to das bases do Estado, fomentando todotipo de localismos.

Nesse contexto fragmentador, refor-çam-se as lógicas autônomas que crêemna força de seu potencial endógeno deenfrentamento, bastando cumprir a “agen-da estratégica com a qual possam asse-gurar a inserção competitiva” (Compans,2001). Assim, questiona-se: que lógicas“regionais” poderiam estar atravessandoou “passando por cima” e ao largo da“jurisdição” e da “alçada” dos Estados na-cionais ?

Para tratar adequadamente tais ques-tões complexas será preciso um novo es-forço teórico, que passa, a nosso juízo,pela reconstrução dos três conceitos bási-cos (homogeneização, integração e polari-zação) inerentes à expressão espacial do

desenvolvimento capitalista, pois entende-mos que essas são as três indissociáveisdimensões do processo de desenvolvi-mento desigual da acumulação de capitalno espaço.

Além disso, os estudos dos padrõesde desenvolvimento regional deveriamincorporar um quarto e último elementofundante das relações intra e entre espa-ços e escalas geográficas: a hegemoniahegemoniahegemoniahegemoniahegemonia.Inicialmente cabe uma advertência deque ele é o “objeto terminal” da econo-mia política da espacialidade capitalista.É nesse âmbito que se deve esclarecercomo a questão das diversidades regio-nais se apresenta inescapavelmente comouma questão de Estado, expressa comouma “Questão Regional”. A equação po-lítica e a correlação de forças presentesem determinada Nação revelam marcan-tes cortes regionais/locais.

Com esse conceito de inspiraçãogramsciana, queremos apreender os pro-cessos assimétricos em que um agenteprivilegiado detém o poder de ditar,(re)desenhar, delimitar e negar domíniode ação e raio de manobra de outrem.Assim, o poder hegemônico deverá terpoder de enquadramento e hierarqui-zação de relações, processos e estruturas,e ser o portador do novo (por exemplo, odomínio tecnológico). Deverá ter capa-cidade de iniciativa, de “endogenia dedesenvolvimento”, de regulação e de ad-ministração dos limites e possibilidadesde si e dos outros. Dada uma certa corre-lação de forças, considerada em determi-nado tempo-espaço, é preciso perscrutara força coercitiva, os níveis e graus de“consentimento” para o domínio e exercí-

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132 A espacialidade da riqueza

cio de direção que consolide um determi-nado “projeto de incorporação de todos”em sua órbita. Dessa forma, a afirmaçãoenquanto núcleo hegemônico pressupõealgum grau de autonomia reprodutiva, decapacidade inovativa (em contrapontoaos “outros” – os subordinados) e de dire-ção persuasiva cultural-ideológica sobreo “conjunto nacional”, exercida no interiorde uma determinada aliança. O ser hege-mônico necessita ser minimamente “donode seu próprio destino” para propor, arti-cular e sustentar uma determinada uni-dade e administrar e centralizar uma“coesão nacional imaginária”.

O avanço dos estudos regionais emum tal terreno permitiria iluminar questõescandentes como o esgarçamento dos pac-tos federativos, o uso de fundos públicosna reprodução das elites e fortunas regio-nais, a estrutura, as contradições e fissu-ras no bloco de poder, e trazer elementos

explicativos das dificuldades imensas emcimentar pactuações legitimadoras empaíses continentais e desiguais como oBrasil.

Por fim, caberia lembrar que o estudoregional crítico só tem sentido se indagaras causas da perpetuação das “estruturasde dominação: de renda, de propriedade,de controle político, de acesso ao Estadoetc.” (Cano, 1998, p. 310). Ou seja, ésomente a partir da inserção das questõesurbano-regionais no contexto da reprodu-ção social que se poderiam desvendar ascausas mais profundas das heteroge-neidades estruturais que se manifestamespacialmente na produção da riquezacapitalista. Nesse sentido, talvez os con-ceitos aqui abordados possam contribuirpara a melhor apreensão da naturezadesse processo de desenvolvimento desi-gual, excludente e segregador.

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134 A espacialidade da riqueza

O texto discute os elementos-chave paraa pesquisa da dimensão espacial do pro-cesso de desenvolvimento capitalista.Propõe que a devida análise crítica domovimento desigual da acumulação decapital no espaço requer a verificaçãoarticulada dos processos de homogenei-zação, de integração, de polarização ede hegemonia nos recortes territoriais.Entende que esses conceitos hoje preci-sam ser reatualizados, pois foram con-cebidos e utilizados em realidadesbastante diversas da apresentada pelonovo momento do processo de mundiali-zação do capital.

PPPPPalavras-Chavealavras-Chavealavras-Chavealavras-Chavealavras-Chave::::: Desenvolvimento; Es-paço; Globalização.

ResumoResumoResumoResumoResumo Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract

The present paper aims at discussing thekey elements for research focused on thespatial dimension of the capitalist devel-opment process. It proposes that as faras a proper critical analysis of unequalcapital accumulation is concerned, itwould request concentration on verifyingin a combined way the processes of ho-mogenization, integration, polarizationand hegemony of the territorial scales. Itsuggests that these concepts should bebrought up to date as long as they havebeen conceived and applied to rather di-verse realities as compared to the cur-rent one deriving from the process ofcapital globalization.

KeywordsKeywordsKeywordsKeywordsKeywords: : : : : Development; Space; Global-ization

Carlos Antônio BrandãoCarlos Antônio BrandãoCarlos Antônio BrandãoCarlos Antônio BrandãoCarlos Antônio Brandão é professor do Instituto de Economia da UNICAMP epesquisador do Núcleo de Economia Social, Urbana e Regiona - NESUR

Recebido para publicação em maio de 2001

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PPPPPesquisaesquisaesquisaesquisaesquisa

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Espaços de convergência e utopia:Espaços de convergência e utopia:Espaços de convergência e utopia:Espaços de convergência e utopia:Espaços de convergência e utopia:um diálogo entre as obras deum diálogo entre as obras deum diálogo entre as obras deum diálogo entre as obras deum diálogo entre as obras deMilton Santos e de Henri LefebvrMilton Santos e de Henri LefebvrMilton Santos e de Henri LefebvrMilton Santos e de Henri LefebvrMilton Santos e de Henri Lefebvreeeee *****

Cristovão Fernandes Duarte

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XV, No 1, 2001, p. 137-146

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

A centralidade assumida pela problemá-tica do urbano, com especial ênfase apartir dos anos 1970, tem produzido umaavalanche discursiva, envolvendo pes-quisadores dos mais diversos campos doconhecimento. Um desafio comum, no en-tanto, parece presidir e, ao mesmo tempo,justificar o renovado interesse pelo fenôme-no urbano: tentar compreender o que sepassa com as nossas cidades no momentomesmo em que se assiste ao processo deglobalização financeira e tecnológica docapitalismo.

O presente ensaio insere-se nessedebate, ao cotejar as idéias de dois pensa-dores do fenômeno urbano contemporâ-

neo – Henri Lefebvre e Milton Santos –,cujas contribuições teóricas vêm permitindouma promissora revisão dos conceitos tra-dicionalmente veiculados sobre o espaço.

Henri Lefebvre (1901-1991) deixou-nos uma vasta obra composta de 57 livros,dedicada sobretudo ao estudo do mundomoderno. Traduzida no mundo inteiro, elaignora as fronteiras entre as disciplinas es-pecializadas (parcelares), transitando comliberdade e rigor entre diferentes camposdo conhecimento, tais como a filosofia, asociologia, a história, a lingüística etc.Entre os temas recorrentes no pensamentodesse autor, destacam-se a crítica da vidacotidiana, o marxismo, o Estado, o espaço

* O presente ensaio deve ser em parte creditado aos companheiros e companheiras do Grupo deEstudos Lefebvrianos - GEL, com os quais vimos, na Cidade do Rio de Janeiro, discutindocoletivamente as contribuições de Henri Lefebvre sobre a problemática do espaço.

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138 Espaços de convergência e utopia

e o urbano. Pensar no limite, isto é, forçarsempre o entendimento para além do jápensado; não recuar diante do possível-impossível da utopia; recuperar, por meioda dialética entre a teoria e a prática,um mundo vivo, em transformação per-manente, tais foram os desafios enfren-tados por Lefebvre. Disso resultou, entreoutras contribuições, a proposição dométodo regressivo-progressivo (chave dedecifração de sua obra), método que per-mite compreender o objeto (virtual) daanálise como um campo de possibilidadesde futuro, que restabelece o compromissoentre a produção do conhecimento e aconstrução (simultânea) de uma estraté-gia para a transformação da realidade.

Milton Santos (1926-2001) foi pro-fessor emérito de Geografia Humana daUniversidade de São Paulo. Com maisde 30 livros publicados, este geógrafobrasileiro, recentemente falecido, tornou-se referência obrigatória para estudiososdo espaço no mundo inteiro. Tendo lecio-nado em diversas universidades da Eu-ropa, da África, da América do Norte,da América Central e da América do Sul,sua trajetória foi marcada pelo reconhe-cimento nacional e internacional de seutrabalho intelectual. Além do Prêmio In-ternacional de Geografia Vautrin Lud, em1994, recebeu o título de doutor honoriscausa da Universidade de Toulouse(1980), da Universidade de Buenos Ai-res (1992), da Universidade Compluten-se de Madri (1994) e da Universidade deBarcelona (1996), bem como de diver-sas universidades brasileiras. Comparti-lhando com Lefebvre o traço datransdisciplinaridade, Milton Santos re-velou-nos uma geografia nova, melhor

dizendo, uma metageografia dotada deum sistema descritivo-interpretativo ca-paz de engajar/explicar os processos es-paciais em curso no período atual.

O diálogo entre os autores anunciadono título deste ensaio não deve ser tomadoem sentido literal. Trata-se, na verdade,de uma conversa orquestrada e dirigidano sentido de demonstrar o parentescoconceitual entre o slogan lefebvriano do“direito à cidade” e a “força de respostado lugar” de Milton Santos. A nosso ver,os conteúdos utópicos subjacentes àque-las formulações partilhavam motivaçõesteóricas semelhantes, que decorreriam,basicamente, do resgate no campo teóricoe prático, empreendido por ambos os au-tores, da dimensão espacial do cotidianocomo reduto do valor de uso e fonte deprodução de contra-racionalidades diantedos efeitos da difusão, em escala planetá-ria, da racionalidade dominante.

Embora reconhecendo a autonomiae a singularidade do pensamento de ume de outro, é necessário identificar as con-vergências e simetrias aludidas, articu-lando pontualmente algumas das idéiasdesenvolvidas por Milton Santos e HenriLefebvre acerca da dimensão espacial daspráticas sociais.

Num plano secundário mas nãomenos importante, a “leitura cruzada”dos pensamentos de Milton Santos e deHenri Lefebvre, que se utiliza de um paracompreender o outro e vice-versa, reve-lará também o próprio método de estudoadotado: uma tentativa de apreensão dacomplexidade teórica contida nas obrasaqui focalizadas.

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Convergência e utopiaConvergência e utopiaConvergência e utopiaConvergência e utopiaConvergência e utopia

Tanto para Lefebvre como para MiltonSantos, o conhecimento do espaço temcomo ponto de partida a relação dialéticaestabelecida entre sociedade e espaço, en-tendendo o espaço como meio de produ-ção da realidade social (Lefebvre, 2000,p.102; Santos, 1999, p. 52 e 88). Essapremissa confere ao espaço uma centra-lidade poucas vezes igualada, obrigandoao pensamento uma revisão conceitualcom relação ao conhecimento produzidoa partir das ciências especializadas. ParaMilton Santos, o mundo (que é um só) évisto através do prisma de uma deter-minada disciplina, mas o conhecimentoproduzido por cada parcela autônomadeve ser reintegrado no saber geral. Porisso, continua o autor, “construir o objetode uma disciplina e construir sua meta-disciplina são operações simultâneas econjugadas” (Santos, 1999, p. 17). Emoutras palavras, o objeto teórico não podeser reduzido (subordinado) aos interessesespecíficos das disciplinas. Ao contrário,é o objeto teórico, assim construído, quedeve fornecer às disciplinas um horizontecomum (a totalidade), aberto de possibili-dades a serem alcançadas (através dosprocessos de totalização), permitindo-lhestranscender as verdades parciais.

Ao longo de sua obra, Lefebvre em-preende uma verdadeira demolição dosreducionismos (sempre instrumentaliza-dos ideologicamente) oriundos dos cam-pos da filosofia, da sociologia, da política,da economia, do urbanismo, da geografiaetc, postulando a necessidade de um pen-samento e de uma estratégia do conhe-

cimento capazes de restituir a totalidadedo espaço (Lefebvre, 1972, p. 149). Umatotalidade que, no entanto, sempre seráprovisória. Milton Santos credita a HenriLefebvre a formulação do conceito de to-talização ou totalizações, posteriormentedesenvolvido por Sartre (Santos, 1999,p. 95). A totalidade é o resultado dos pro-cessos de totalização dos quais se encar-rega o pensamento dialético e, como tal,não se deixa apreender. Visando apreen-dê-la, o pensamento recorre à abstraçãopara, através da análise, decupar, frag-mentar, cindir o todo. O movimento pros-segue então em sentido inverso, da partepara o todo (síntese), rearticulando emnovas bases o que havia sido repartido(Lefebvre, 1983, p. 117-21). O ponto dechegada não coincide com o ponto departida, do contrário não se poderia falarem produção de conhecimento sobre arealidade. No processo de totalização, nemmesmo o que foi momentaneamente sepa-rado pela análise pode permanecer inalte-rado. A cristalização aqui corresponderiaà paralisação do processo de produçãodo conhecimento: “cada nova totalizaçãocria novos indivíduos e dá às velhas coisasum novo conteúdo” (Santos, 1999, p. 96).É desse modo que se entende o caráterprovisório e dinâmico da totalidade: oponto de chegada (a totalidade) se trans-forma em novo ponto de partida, permitin-do ao pensamento retomar o movimento,para o qual a velha metáfora da espiraldialética ascendente continua adequada.

A démarche sobre o espaço inaugura-da por Lefebvre o leva a perceber anteci-

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140 Espaços de convergência e utopia

padamente (a primeira edição de O direi-to à cidade é de 1967) a nova escalaplanetária assumida pela problemática dourbano, bem como uma nova estratégiade dominação por ela implicada (Le-febvre, 1991, p. 25). O direito à cidadesurge, assim, como um manifesto; umabandeira de luta do pensamento críticocontra a consumação dessa nova formade dominação global, vislumbrada aindaem seu início. Entre as ameaças identifi-cadas pelo autor, destaca-se a imposiçãoda lógica do mundo da mercadoria sobreo espaço social urbano. Para Lefebvre, aforma urbana é a forma mental e socialda simultaneidade, da reunião, da conver-gência, dos encontros, da festa (id., 1972,p. 125-7). Constitui, portanto, um redutode resistência do valor de uso, isto é, dadiferença, da diversidade, da complexi-dade. A forma do valor de troca reduz ourbano à mercadoria, suprimindo umdireito até então intocado, no exato mo-mento em que o desenvolvimento da so-ciedade urbana poderia propiciar a suaampliação efetiva para toda a sociedade:o direito ao valor de uso do espaço e dotempo, implícito no direito à cidade (id.,1991, p. 81-2 e 104). Essa invasão doespaço corresponde, segundo o autor, ànova inspiração do capitalismo, quandoeste parecia já estar perdendo o fôlego.A produção global e total do espaço so-cial e o surgimento de um mercado deespaços em escala planetária cumpremassim os objetivos de uma completa reor-ganização da produção, subordinada aosnovos centros de informação e decisão(id., 1972, p. 160-1). Nos centros de deci-são do neocapitalismo, superpostos aoscentros de consumo da cidade capitalistaprecedente, não são mais as pessoas e

as coisas que se devem reunir, mas asinformações e os conhecimentos (id.,1991, p. 131).

Seguindo por outro caminho, com es-calas em diferentes paragens, MiltonSantos reencontra nas cidades, sobretudonas grandes metrópoles, assoladas pelaglobalização financeira e tecnológica dosdias atuais, fragmentadas pela verticali-dade dos fluxos hegemônicos e submeti-das à perversidade dos processos deexclusão social, a força de resposta dolugar. A resposta contra-hegemônica vemexatamente daqueles que, tudo perdendo,mantiveram-se ligados a uma sociabili-dade eminentemente urbana, inscrita nosinterstícios territoriais da própria exclusão,comandada agora (de fora para dentro)por uma ordem distante. Nessas áreasde sombra, resultantes de sucessivosarranjos espaciais sobre o território, develhas carcaças herdadas de um passadodistante (em alguns casos, como as peri-ferias e favelas, nem tão distante assim),protegidas por suas próprias fraquezas epela incapacidade de adaptação em facedos imperativos econômicos e tecnoló-gicos da globalização, pôde ser forjadauma outra lógica (Santos, 1999, p. 246e 261). Contribuem para isso, segundo oautor, as relações de proximidade, conti-güidade e reciprocidade, como vetores deprodução permanente de redes horizon-talizadas de solidariedade e de interaçãocomunicativa entre os participantes (co-presença e condição de vizinhança). Aintensificação dos conteúdos comunica-cionais produzida nos guetos urbanos fa-voreceria, assim, o fortalecimento davisão crítica de um cotidiano repetitivo eindesejável (no qual prevalece a explora-

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ção e a escassez) e a afirmação de umacultura popular (articulando o universale o particular) em contraposição à culturade massas (ibid., p. 256 e 260). A diver-sidade socioespacial produzida pela ur-banização acelerada das últimas décadase potencializada pela utilização das tec-nologias da informação atualmente dispo-níveis adquire um conteúdo explosivo,indicando a reemergência das massaspopulares e o surgimento de um novo pe-ríodo histórico (id., 2000, p. 143). De trin-cheiras de resistência, os guetos urbanospassam à condição de atores sociais, in-terpelando e desvelando, cotidianamente,o alcance real dos objetivos de uma racio-nalidade totalitária e excludente, cuja efi-cácia sistêmica não pode ali se realizarplenamente. Em meio à ideologia do con-sumo, os pobres descobrem a escassez edela tomam consciência (ibid., p. 128-34). A força, diz Milton Santos, está, pa-radoxalmente, com os homens lentos. Ea sua lentidão deriva também da resis-tência oferecida pelo “prático-inerte” sar-treano, representado pelas estruturasmateriais sedimentadas pelo tempo nacidade. Os lugares, funcionando como in-termediários entre o mundo e o indivíduo,assumem, portanto, uma posição centralna história (id., 1999, p. 251-2).

Estamos diante, pois, da redescoberta(ou reafirmação) da dimensão espacialdo cotidiano e da superação da forma

mercadoria, através da retomada do valorde uso do espaço (e do tempo).

Nas obras sobre o espaço que se se-guiram ao “Direito à cidade” 1, Lefebvreretoma e desenvolve os conceitos nelecontidos, reafirmando a idéia da cons-trução do projeto (utópico) de uma novasociedade: a sociedade urbana mundial.Desse engajamento político da sua pro-dução teórica, o próprio título do livro Arevolução urbana, publicado pela primei-ra vez em 1970, constitui uma clara evi-dência. Nele, reaparece a proposição daautogestão (urbana) generalizada, incluin-do e vinculando a autogestão industrial,como estratégia política para a implemen-tação do “direito à cidade (isto é, do di-reito de não ser excluído da centralidadee de seu movimento)” (Lefebvre, 1972,p. 155).

O livro La pensée marxiste et la ville,rebatizado na tradução brasileira de 1999como A cidade do capital 2, propõe umareflexão a partir das indicações sobre acidade e a problemática do urbano pre-sentes nos escritos de Marx e Engels.Trata-se de um esforço para “limpar ocaminho”, em meio ao dogmatismo eco-nomicista vigente, resgatando e inscre-vendo o urbano como objeto de análisedentro do quadro teórico do materialismohistórico.

1 Entre as quais destacamos de modo especial: La vie quotidienne dans le monde moderne(1968), La révolution urbaine (1970), La pensée marxiste et la ville (1972), Espace et politique(1973) e La production de l’espace (1974). (Nota: as referências bibliográficas inseridas nocorpo do texto indicam a data de edição das traduções consultadas, relacionadas no fim destetrabalho).

2 O título da edição brasileira, é preciso que se diga, revela uma visão editorial mais comprome-tida com o produto do que com a obra.

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142 Espaços de convergência e utopia

Diante dos objetivos deste ensaio, des-tacamos da obra supracitada a análiseque Lefebvre faz de A situação da classetrabalhadora na Inglaterra, escrito porEngels em 1845. A originalidade do pen-samento de Engels, então com vinte e trêsanos, revela-se na descrição pioneira dosmodos de funcionamento do capitalismo(na Inglaterra) e na clarividente percep-ção dos processos de urbanização eindustrialização nele imbricados. O para-lelismo entre a concentração demográficae a concentração do capital é apontadopor Engels como a dupla tendência cen-tralizadora do capitalismo. Essa premissaguiará a denúncia das péssimas condi-ções de vida dos trabalhadores britânicose as poderosas contradições da realidadeurbana. A imagem da cidade desvela-sepela simultaneidade dos opostos: a rique-za e a pobreza, a beleza e a fealdade, acivilização e a barbárie. A balbúrdia dasruas apinhadas, a mescla das classes so-ciais, a dissolução da identidade indivi-dual no anonimato da multidão, levaramEngels a introduzir os temas da “multidãosolitária” e da “atomização” (id., 1999,p. 15). Em nenhum momento, como notaLefebvre, Engels pretende associar essarealidade com uma doença do “organis-mo” social. Ao contrário, para o fundadordo materialismo histórico, as relações deprodução capitalistas engendram umaordem específica – a da produção indus-trial, que, por sua vez, gera uma desordemespecífica: a desordem urbana (ibid., p.19-20). A guerra de todos contra todos,na qual se inscreve a luta de classes, foi aexpressão encontrada para descrever aconcorrência e a violência generalizadas,intrínsecas à moderna sociedade burguesa(ibid., p. 25). De acordo com Engels,

“as grandes cidades são a sede domovimento operário; foi nelas que osoperários começaram a refletir nasua situação e na luta, foi aí que pelaprimeira vez se manifestou a oposiçãoentre o proletariado e a burguesia(...)” (apud ibid., p. 27).

Passados exatos cento e cinqüenta ecinco anos, as palavras de Engels aindarepercutem. Suas notáveis intuições sãoretomadas, repensadas e atualizadas nasformulações de Henri Lefebvre e de MiltonSantos. A metáfora da “guerra de todoscontra todos”, vislumbrada em 1845, setransforma, com a expansão planetáriados mercados, na “guerra dos lugares”(Santos, 1999, p. 198). A luta pela apro-priação do espaço-tempo assume o centroda cena, confrontando ricos e pobres, do-minantes e dominados. De um lado, aprodução do espaço como valor de troca,de outro, a produção do espaço comovalor de uso (Lefebvre, 1972, p. 25). Noprimeiro caso, “o reino da necessidade”:a ordem distante (informacional), os flu-xos hegemônicos, as verticalidades, aseparação, a segregação; no segundo, “oreino da liberdade”: a ordem próxima(comunicacional), a lentidão, as horizon-talidades, a co-presença, o acontecersolidário (Santos, 1999, p. 205-7). Opo-sições dialéticas, cuja superação se pro-cessará no e pelo espaço social urbano.

Em 1974, com A produção do espaço,o pensamento de Lefebvre é condensadona forma de um tratado sobre a proble-mática do espaço. Nesse tratado, antigasidéias assumem uma nova formalizaçãoe um novo grau de complexidade. O “ur-bano” dá lugar ao espaço social, conside-

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rado em escala planetária. No âmbito daabordagem aqui pretendida, interessa res-saltar, sobretudo, a tríade conceitual daspráticas sociais de produção/reproduçãodo espaço proposta pelo autor. Para ele,essas práticas podem ser analiticamentesubdividas em três dimensões: práticasespaciais, representações do espaço e es-paços de representação (Lefebvre, 2000,p. 42-3). Essas dimensões dizem respeito,respectivamente, ao físico, ao mental eao social, embora não se possa concebernenhuma delas independentemente dasdemais. Ao longo da exposição, o autorintroduzirá ainda os termos percebido,concebido e vivido, como traduções sinté-ticas dos três conceitos formulados (ibid.,p. 48-9).

A interdependência entre os conceitospropostos acarreta sérios problemas àtentativa de explicação isolada de cadaum deles, e tal procedimento implica umgrande esforço imaginativo. Talvez por issoo próprio Lefebvre evite definições claras,preferindo desenvolver ao longo do livrouma aproximação gradual a cada concei-to por comparação e contraste com osdemais, como corretamente percebeuShields3.

Em que pesem as dificuldades referi-das, faz-se necessário aqui uma apresen-tação sumária daqueles conceitos. Porpráticas espaciais (o percebido) entende-se a relação estabelecida entre as açõeshumanas e os suportes materiais dos es-paços configurados. Recorremos, “como

de costume”, ao auxílio de Milton Santos,quando afirma que a materialidade doespaço geográfico constitui, simultanea-mente, uma condição, uma estrutura decontrole, um limite e um convite à ação(Santos, 1999, p. 257). A ação não podeprescindir de seu suporte físico, emboraela não se esgote na relação com a mate-rialidade. A ação implica, ao mesmotempo, na produção do sentido (signifi-cado) e na produção da presença (corpo-reidade). A simples menção das palavras“sentido” e “presença” já insinua a imbri-cação do percebido com o concebido e ovivido.

Desse modo, a força de resposta dolugar, anteriormente mencionada, podeser entendida como tributária da “cumpli-cidade” estabelecida entre os homenslentos (porque excluídos) e a resistênciaoferecida pelo ambiente construído à mo-bilidade dos fluxos hegemônicos. De umlado, a restrição, mas também a possibi-lidade e o convite à ação, e de outro, aprodução de sentido e de presença, atra-vés da ação4. Nesse sentido, a formulaçãodo percebido cumpre a função de res-gatar, analiticamente, a consideração damaterialidade do espaço como uma com-ponente fundamental do cotidiano.

Por representações do espaço (o con-cebido) entendem-se os discursos pro-duzidos sobre o espaço. São formas deconceber e representar o espaço, taiscomo os planos urbanos, os mapas, asutopias, as leis, as teorias, os códigos, os

3 R. Shields. Lefebvre, love and struggle. London: Routledge, 1999.4 Sobre essa questão, ver também Ana Clara Torres Ribeiro. A natureza do poder: técnica e ação

social. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 4, n. 7, p. 13-24, 2000.

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144 Espaços de convergência e utopia

discursos ideológicos, o senso comum etc.As ações humanas necessitam de parâme-tros que as orientem e que as tornem es-pacialmente realizáveis num determinadomomento. Esses parâmetros decorrem decodificações e de normas instituídas cul-turalmente compartilhadas. As represen-tações do espaço ligam-se, portanto, aosconhecimentos disponíveis sobre o es-paço, sejam eles falsos ou verdadeiros.Mistos de conhecimentos (sempre rela-tivos e em processo de transformação) ede ideologias (manipulações), as repre-sentações do espaço engendram/propi-ciam, fundamentalmente, os espaçosdominantes. A supremacia do concebidosobre o percebido e o vivido (por intermé-dio da persuasão ou da violência) acarretaa instauração do espaço abstrato e uni-ficador do poder. Na cidade, repetindoLefebvre, a instauração do espaço abstra-to corresponderia à substituição da hete-rogeneidade da forma urbana (valor deuso) pela homogeneidade do espaço-mer-cadoria, da equivalência abstrata entreos diferentes (valor de troca). Ou, segun-do as palavras de Milton Santos, à impo-sição de uma racionalidade totalitária dosempre igual em detrimento da criativi-dade e da liberdade de uma práxis social,articulada local e globalmente e construí-da em meio à diversidade socioespacial(ibid., p. 245 e 257-9).

Por espaços de representação (o vivi-do) entendem-se as práticas pré-refle-xivas presentes no cotidiano. São osespaços dominados pelo interdito, pelostabus, pela proibição, em suma, pelas re-presentações do espaço (o concebido).Mesmo sob dominação, entretanto, ovivido insurge-se e subsiste, interagindodialeticamente com as demais dimensõesdo espaço. Por isso o vivido é também asede da transgressão, dos desejos (ainda)não realizados, da imaginação, da criati-vidade, da luta clandestina, da subversãoetc. Como exemplo de espaços de repre-sentação, Lefebvre aponta a apropriaçãopopular do espaço pelos moradores dasfavelas e guetos urbanos (apud Shields,op. cit.). Nessas áreas prevalecem formasde sociabilidade e códigos alternativos, adespeito das normas dominantes e dasregulamentações estatais vigentes. A con-vergência conceitual entre os autores aquifocalizados mais uma vez se acentua.Com base na descrição apresentada, oconceito lefebvriano do vivido e a formu-lação de Milton Santos (já referida an-teriormente) a respeito da produção decontra-racionalidades em meio à exclu-são, da qual decorreria, em última análi-se, o caráter insurrecional dos pobres nacidade, parecem validar-se mútua e reci-procamente.

O futuro comanda o presenteO futuro comanda o presenteO futuro comanda o presenteO futuro comanda o presenteO futuro comanda o presente

Henri Lefebvre e Milton Santos elegem oespaço como objeto teórico; ambos ins-crevem sua produção intelectual no âm-bito da teoria social crítica; além de terem

lido um ao outro, compartilham filiaçõesteóricas comuns, como indicam os casosde Sartre e Engels anteriormente referi-dos. Essas são considerações secundárias

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para os objetivos deste trabalho. O quepretendemos destacar é o projeto utópicoque preside e explica os constructos teó-ricos desses autores.

Assim como Lefebvre, Milton Santostrabalha com a idéia de um presente dinâ-mico, no qual já se encontram em jogo,como virtualidades, inúmeras possibili-dades de um futuro em construção. Essaidéia, aliás, compartilhada também comSartre (apud Santos, 1999, p. 101 e 265),permite aos dois autores articularem oscampos da teoria e da prática urbanasem torno de um projeto. E a construçãodesse projeto só pode ocorrer por meio

da política, entendida, nesse contexto,como uma práxis libertadora e inventiva,capaz de antecipar o lugar, possível-impossível, da utopia.

Do confronto entre as idéias deMilton Santos e de Henri Lefebvre re-sulta um imenso conjunto de possibili-dades, que estimula o prosseguimentodesta investigação. Por isso, a conclusãodeste ensaio será apenas e necessa-riamente um expediente provisório.Como nos lembra Umberto Eco, “oslivros se falam entre si (...); os livrosproduzem livros e multiplicam o saber” 5.

Referências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficas

ECO, Humberto. Reflexões sobre a escrita.Terceiro Mundo, n. 20, 1989.

LEFEBVRE, Henri. La revolución urbana.Madri: Alianza Editorial, 1972.

__________. Lógica formal. Lógica dialé-tica. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-leira, 1983.

__________. O direito à cidade. São Paulo:Ed. Moraes, 1991.

__________. A cidade do capital. Rio deJaneiro: DP&A, 1999.

__________. La production de l’espace.Paris: Ed. Anthropos, 2000.

5 Reflexões sobre a escrita. Terceiro Mundo, n. 20, 1989.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. A natureza dopoder: técnica e ação social. Interface –Comunicação, Saúde, Educação, v. 4, n.7, p. 13-24, 2000.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: es-paço e tempo: razão e emoção. SãoPaulo: Hucitec, 1999.

__________. Por uma outra globalização:do pensamento único à consciência uni-versal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SHIELDS. R. Lefebvre, love and struggle.London: Routledge, 1999.

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146 Espaços de convergência e utopia

ResumoResumoResumoResumoResumo Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract

Cristovão FCristovão FCristovão FCristovão FCristovão Fererererernandes Duarnandes Duarnandes Duarnandes Duarnandes Duartetetetete é professor da Universidade da Amazônia edoutorando do IPPUR-UFRJ

Recebido para publicação em julho de 2001

O presente ensaio pretende investigarpossíveis simetrias conceituais subjacen-tes ao slogan lefebvriano do “direito àcidade” e à “força da resposta do lugar”de Milton Santos, a partir de uma leituracruzada das principais contribuições teóri-cas desses dois autores acerca do espaçosocial urbano. Segundo o ponto de vistaaqui assumido, essas motivações decorre-riam, basicamente, do resgate no campoteórico e prático, empreendido por ambosos autores, da dimensão espacial do coti-diano como reduto do valor de uso e fon-te de produção de contra-racionalidadesdiante dos efeitos da difusão, em escalaplanetária, da racionalidade dominante.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: cidades, espaço, urba-nismo

The present work intends to investigatepossible subjacent conceptual symmetriesof those two slogans: “right to the city”(Henri Lefebvre) and “ the powerful re-sponse of the place” (Milton Santos)through the examining of the principal lit-erary contributions of those two authorsrelated to the concept of social urbanspace. According to my point of view,those motivations developed by the twoauthors were basically due to the idea ofthe spatial dimension of everyday life, likea place of use value and source produc-tion of counter-rationalities dealing withthe diffusion effects, in planetary scale,of the dominant rationality.

KeywordsKeywordsKeywordsKeywordsKeywords: cities, space, urbanism

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ResenhasResenhasResenhasResenhasResenhas

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LLLLLe Corbusier and the Continual Revolution ine Corbusier and the Continual Revolution ine Corbusier and the Continual Revolution ine Corbusier and the Continual Revolution ine Corbusier and the Continual Revolution inArchitectureArchitectureArchitectureArchitectureArchitectureCharles JencksNew York; The Monacelli Press2000, 382 p.

Roberto Segre

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XV, No 1, 2001, p. 149-150

En la dedicatoria de un libro a Leleta,esposa de Lucio Costa, Le Corbusier es-cribió en 1952: “la vie est sans pitié”. Estaes la única referencia a un arquitecto bra-sileño en el reciente volumen de Jencks,Le Corbusier and the Continual Revolutionin Architecture. Tampoco ningún latinoa-mericano es citado, pese al considerablenúmero de diseñadores, urbanistas, políti-cos, clientes y artistas, que mantuvieronestrechos vínculos con el Maestro dentroy fuera del Continente. Poco afortunadaresultó nuestra región en el panoramaecuménico de la arquitectura modernaque el autor inició en los setenta con suevolutionary tree: un sistema ameboidalen blanco y negro cuya voluble y cam-biante estructura, integraba personajes ymovimientos que definieron la contempo-raneidad. Niemeyer fue el protagonistalatinoamericano siempre en primera línea,acompañado luego por el Argentina Bank(sin citar ni la obra ni los autores), y actual-mente en el 2000, por Costa, Legorreta,

Villaneuva (quizás imaginó que Villanuevafuera un arquitecto francés?). Finalmente,también quedó incluída la omnipresenciade nuestra dura realidad:el 3rd. WorldGhetto.

Cuando a inicios de los años setenta,Jencks publicó Le Corbusier and the TragicView of Architecture, evidenció algunas fa-cetas personales del Maestro que no fueranseñaladas hasta entonces, y elaboró cier-tos análisis filosóficos, sociológicos y si-cológicos originales. Con posterioridad,ocurrió la avalancha de libros y ensayos araíz de celebrarse el centenario de su naci-miento (1987), profundizándose en temasaún ignorados de su trayectoria. Surgierontrabajos rigurosos realizados en Argentina,Brasil y Chile, que investigaron la significa-ción de sus visitas al Continente en 1929y 1936; tanto por la incidencia de AméricaLatina en su nueva visión urbana, comopor el impacto que ejercieron sus ideasentre los jóvenes profesionales de la región.

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Resulta entonces inadmisible que unensayo publicado en el año 2000, obvietotalmente el tema, al referirse a los facto-res que marcaron la obra del Maestro entre1928 y 1945: América Latina, o mejordicho sólo Río de Janeiro, es citada enfunción de las relaciones (amorosas o artís-ticas) sostenidas con Josephine Baker,otorgando gran importancia a la dinámica(o precariedad) sexual de Le Corbusier:su difícil matrimonio con Yvonne Gallis;el intento (fracasado) de seducción de laperiodista hindú Taya Zinkin; los vínculoscon Marguerite Tjader-Harris y Minette daSilva; su emoción por las teenagers delVassar College. Caracterización que poco,a nuestro criterio, incidió en su personali-dad creadora o en las etapas “estilísticas”de su vida: hasta ahora por sexo o erotis-mo, sólo pasaron a la historia Don Juan,Casanova y el Marqués de Sade.

Hoy, peca de ligereza y superficiali-dad desconocer el impacto ejercido sobreLe Corbusier por la visión de La Pampay la extensión infinita de Buenos Aires;los meandros de los ríos Paraná y Uru-guay o el inusitado paisaje de morros,mar, playa y bosques, que alberga laciudad de Río de Janeiro. El cambio pro-fundo de sus visiones urbanas – consi-deradas por Manfredo Tafuri como lasmás importantes del siglo XX –, ocurrie-ron en Río, al imaginar un edificio de apar-tamentos que se extendía por kilómetroscomo una cinta continua, fluyendo libre-mente entre los morros y la bahía de Gua-nabara. De esta primera concepción sematerializó luego en 1932, la secuenciasde proyectos del Plan Obús para la ciudadde Argel. Sus contactos con la culturapopular se intensificaron en las favelas

cariocas, quedando impresionado por lasensualidad y el erotismo de las mulatas,homólogas a la exuberancia del paisaje.Percepciones anteriores a las similaresexperimentadas con argelinas y españolasen el continente africano.

A su vez, Jencks enfatiza la influenciadel pensamiento de Nietzsche en Le Cor-busier, a través del libro Also SprachZarathustra, refiriéndose al vitalismo del“predicador” representado por el espíritucombativo del “superhombre”, volcado atransformar una realidad estática y obso-leta. ¿Donde se materializa la metáforadel Anticristo? Pues, en América Latina.El Maestro, frente a la pequeñez y lamediocridad de la Academia (los planes“clásicos” de las capitales locales), desdelas alturas de los morros o de los rasca-cielos cartesianos flotando en el Río de laPlata, realiza el gesto demiúrgico creandola ciudad del futuro. En Río, abandona laabstracción metafísica y realza la es-pontaneidad de la vida al proyectar –parfraseando a Tafuri –, “una inmensamáquina biomórfica”, síntesis entre ar-quitectura y naturaleza, entre hombre ypaisaje. Es entonces en Latinoaméricadonde – además de los cambios acaeci-dos en su producción pictórica al intere-sarse por la Naturaleza, los “objetos dereacción poética” y los cuerpos femeni-nos –, se inician los cambios radicales que,de las “cajas blancas”, culminarán enRonchamp y Chandigarh. Es una historiamarginada por Jencks y es deber de noso-tros esclarecerla y reafirmarla.

Roberto SegreRoberto SegreRoberto SegreRoberto SegreRoberto Segre é professor doPROURB / UFRJ

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FFFFFrom the ground up: environmental racism and therom the ground up: environmental racism and therom the ground up: environmental racism and therom the ground up: environmental racism and therom the ground up: environmental racism and therise of the environmental justice movementrise of the environmental justice movementrise of the environmental justice movementrise of the environmental justice movementrise of the environmental justice movementLuke Cole & Sheila FosterNew York; London: University Press2001, 244 p.

Cecília Campello do Amaral Mello

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XV, No 1, 2001, p. 151-153

O livro From the ground up conta a tra-jetória de diferentes experiências de lutaspolíticas nos EUA cujo eixo comum é aoposição à instalação de aterros de lixotóxico nos ambientes de vida de determi-nadas comunidades, a partir da percep-ção de que as atividades altamentepoluidoras do meio ambiente tendem aser alocadas em áreas cuja maioria dapopulação é pobre, negra, latina ou indí-gena; portanto, de que a alocação dessetipo de depósito obedece a critérios ra-cistas, donde advém a idéia de racismoambiental.

Construindo o texto sobre narrativasque valorizam as experiências propriamen-te ditas, os autores procuram combinarum olhar de dentro dos movimentos – oque permite um encontro com o instigantedesenrolar dos processos de luta, seus per-sonagens principais e secundários e enre-dos muitas vezes imprevisíveis – com um

olhar distanciado, a partir do qual procu-ram analisar as experiências buscando ele-mentos propícios para pensar as questõesestruturais do funcionamento da “econo-mia política da degradação ambiental” (p.11) e da máquina política norte-americanae seus efeitos sobre a (re)produção dascondições de vida dos imigrantes e dasminorias raciais nesse país.

Os autores oferecem uma gama di-versificada de estudos de caso, do pontode vista regional, racial e das táticas uti-lizadas pelos movimentos, visando a umarepresentatividade dos casos não por se-melhanças que poderiam ter entre si, maspor suas diferenças enquanto possibili-dade de articulação e ampliação do al-cance político das reivindicações porjustiça social em conflitos ambientais.

Se, por um lado, a opção por um eixoem torno dos estudos de caso é clara pela

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152 Resenha

forma como o livro foi organizado – o pre-fácio já traz um relato envolvente de umaluta bem-sucedida de uma comunidaderural de maioria latina na Califórnia –,por outro, há um considerável investimentodos autores em abordagens mais teóricas,em que procuram analisar as origens domovimento (capítulo 1), as disputas acadê-micas e políticas acerca do conceito deracismo ambiental (capítulo 3), assimcomo as tensões produzidas pelos meca-nismos legais e regulatórios que operamno sentido de conter a ação e as conquistasdos movimentos (capítulo 5).

O primeiro capítulo traz “uma histó-ria do movimento por justiça ambiental”,cujas raízes múltiplas se encontram con-solidadas muito antes do momento emque diferentes movimentos locais cons-truíram uma coalizão nacional em tornoda noção de justiça ambiental, em 1991.

Os autores optam por construir umahistória que privilegia os vários espaçosde articulação política de que a JustiçaAmbiental é tributária, a saber, o movi-mento por direitos civis, o movimentoantitóxico, as universidades, o movimen-to dos índios norte-americanos, os sindi-catos e o movimento ambientalista. Ohistórico destaca os diferentes pesos egraus de importância dessas dinâmicascoletivas na constituição da Justiça Am-biental e na definição de suas estratégiasde luta. Cabe destacar a contribuiçãocentral dos movimentos por direitos civisnos EUA, com suas experiências de orga-nização e ação direta, e a contribuiçãotardia e relativamente pouco significati-va do ambientalismo tradicional, em ra-zão das diferenças dos seus membros e

lideranças – em sua maioria homens bran-cos de classe média e alta –, em relaçãoàs minorias raciais representadas pelosmovimentos por direitos civis.

Os capítulos voltados para estudosde caso trazem exemplos de lutas travadaspor negros, latinos e índios contra grandescorporações da indústria do lixo tóxico.No primeiro caso analisado (capítulo 2),os autores desvendam a “economia políti-ca do racismo ambiental”, a partir da lutados moradores da pequena cidade deChester, na Pensilvânia, um enclave negrodo Estado de Delaware, de maioria bran-ca, contra as indústrias de processamentode lixo e esgoto nele alocadas. Aqui, osautores demonstram como a “racionali-dade econômica” defendida para a insta-lação de unidades altamente poluidorasem determinadas áreas é invocada parajustificar todo um complexo processo detomadas de decisão em que estão em jogorazões de ordem racial e política. Um cír-culo vicioso perverso é assim produzido:áreas de maioria negra em processo dedesindustrialização e o conseqüente au-mento do desemprego são os alvos predi-letos para a implantação de aterros delixo e de unidades poluidoras, o que nãosó estigmatiza esses locais como lhes atri-bui uma “vocação” para tal tipo de em-preendimento, atraindo cada vez maisatividades econômicas poluentes e afas-tando as que temem carregar consigoaquele estigma.

O segundo caso aborda as condiçõesde possibilidade da participação políticae as potencialidades e limites das bata-lhas jurídicas, a partir da experiência deButtonwillow, uma comunidade de maio-

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153Cecília Campello do Amaral Mello

ria latina do sudeste da Califórnia, quese vê ameaçada pela presença de um ater-ro de lixo tóxico altamente nocivo para asaúde dos seus moradores. O relato des-creve a luta dos habitantes por condiçõesequânimes de participação no processode decisão relativo à expansão do aterrode lixo tóxico, enfocando os obstáculosimpostos por uma língua inglesa e umalinguagem técnica desconhecidas por boaparte deles, assim como os limites da lutaquando esta sai do confronto direto eganha os tribunais, onde os recursos e oespectro da ação das grandes corpora-ções são substancialmente maiores doque os de que dispõem os movimentosdos moradores. Entre perdas e ganhos,destacam-se os efeitos de poder advin-dos da luta pela tradução da língua e dalinguagem e pela conseqüente inscriçãoda participação política de minorias lati-nas nas instâncias políticas locais.

O último caso analisa o processo deformação de uma Rede Ambiental Indí-gena (capítulo 6) que rompeu com o iso-lamento relativo entre os diferentes gruposindígenas norte-americanos, unindo-osem torno da defesa dos seus territórioscontra a invasão de incineradores de lixotóxico e outras formas de atividades po-luidoras, que atentam contra o meioambiente das reservas e contra as repre-sentações desses grupos sobre o corpo,a vida e a morte.

O último capítulo do livro – ao qualsegue-se um interessante apêndice con-tendo extensa bibliografia de estudos eartigos sobre a (in)justiça ambiental – trazuma reflexão sobre as transformaçõesque os movimentos por justiça ambientalgeraram nos planos macro e micropolí-ticos. A práxis política opera mudançasque vão além do plano mais visível da“vida comunitária”, produzindo efeitos nonível das subjetividades dos atores queassumem essas lutas, bem como das di-retrizes políticas nacionais, como provao fato de o movimento por justiça am-biental ter sido capaz de modificar a legis-lação ambiental norte-americana no anode 1994.

O livro de Cole & Foster é uma exce-lente porta de entrada para quem buscaelementos para compreender como serealiza a articulação de diferentes lutasem torno de eixos convergentes; paraquem deseja conhecer melhor a históriado movimento por justiça ambiental nosEUA e/ou simplesmente conectar-se comexemplos de lutas e conquistas que seestruturam “das bases para cima”.

Cecí l ia Campel lo do AmaralCecí l ia Campel lo do AmaralCecí l ia Campel lo do AmaralCecí l ia Campel lo do AmaralCecí l ia Campel lo do AmaralMelloMelloMelloMelloMello é mestranda do PPGAS-MN-UFRJ

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Ex.: Maciel, Alba Costa. Planejamento de biblio-tecas: o diagnóstico. 13. ed. Niterói: EdUFF,1993, 91 p.

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Ex.: Targino, Maria das Graças. Citações bibli-ográficas e notas de rodapé. Ciência e Cultura,São Paulo, v. 38, n. 12, p. 704-780, dez. 1986.

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