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Wilson Castro Ferreira
CALVINO:
EDIÇÃO DE “LUZ PARA O CAMINHO Campinas, São Paulo
EDIÇÃO DE “LUZ PARA O CAMINHO” Campinas, São Paulo
JoãoCalvino: Vida, Influência e Teologia Wilson Castro Ferreira
Direitos reservados por “Luz para o Caminho”C.P. 130 — 13100 — Campinas, SP
O texto bíblico utilizado neste livro é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da Sociedade Bíblica do Brasil, exceto quando outra versão é indicada.
l.a Edição -1985
“Luz para o Caminho” é a organização de radiodifusão internacional da Igreja Presbiteriana do Brasil e da Igreja Cristã Reformada dos Estados Unidos e Canadá.
À minha esposa, Maria;
a meus filhos, Wilson Júnior e Ricardo;
à minha nora, Márcia;
e a minhas netinhas, Inês, Leila é Marília.
ÍNDICE
Prefácio .................................................... 11Uma Palavra de Introdução .......................... 15Uma Oração de Calv ino............................... 22
I Parte - JOÂO CALVINO VIDA
Capftulo 1 — Um Homem Chamado João . . . . 25Capftulo 2 — Gérard Cauvin .......... . 31Capftulo 3 — A Educação de João Calvino .. . 36Capftulo 4 — Um Novo Rumo..................... 50Capftulo 5 — Peregrinações de Calvino . . . . . . 62Capftulo 6 — Calvino em Genebra................ 67Capftulo 7 — Estrasburgo .. ...................... 88Capftulo 8 — Genebra Novamente................ 101Capftulo 9 — Servetus............................... 114Capftulo 10 — Sebastião Castélio — Mas Um
Opositor....... ........................123Capftulo 11 — O Fim da Luta ....................... 127Capftulo 12 — Companheiros de Calvino.........131Capftulo 13 — A Obra Literária de Calvino . . . . 140Capftulo 14 — Cartas de Calvino................... 151Capftulo 15 — Os Sermões de Calvino . . . . . . . . 162Capftulo 16 — A Piedade de Calvino.............. 168Notas........................................... .......... 174
II Parte - JOÃO CALVINO INFLUÊNCIA
Capftulo 1 — Influência de Calvino naEducação-* A Sua Academia.......181
Capftulo 2 — Pensamento Polftico de Calvino.. 203 Capftulo 3 — Influência de Calvino no Processo
Social e Econômico ................217Notas........................................................234
III Parte - JOÃO CALVINO TEOLOGIA
Nota Explicativa à Terceira Parte...................239Introdução........................................ 240Capftulo 1 — O conhecimento de Deus ......... 244Capftulo 2 — Escrituras Sagradas................. 252Capftulo 3 — Criação — O Homem — Estado
em que Foi C riado................. 261Capftulo 4 — Conhecimento de Deus como
Redentor em C ris to ................265Capftulo 5 — Ofícios de Cristo — Profeta,
Sacerdote, Reis...................... 274Capftulo 6 — Cristo — O Mediador ..............278Capftulo 7 — Como Cristo Realizou o Oficio
de Redentor..........................284Capftulo 8 — Providência...........................289Capftulo 9 — Regeneração Pela Fé — Arrepen
dimento........................... 295Capftulo 10 — Justificação Pela Fé — Nome e
Realidade............................. 301Capftulo 11 — Como Obter a Graça de Cristo , . 306Capftulo 12 — Fé — Definição e Propriedades
Peculiares........................... . 311Capftulo 13 — A Trindade ..........................319Capftulo 1'4 — A Santa Igreja Católica — A Igreja
Verdadeira............................325Capftulo 15 — Indulgência e Purgatório.......... 339Capftulo 16 — A Eterna Eleição ...................344Capftulo 17 — Mestres e Ministros da Igreja . . . . 353Capftulo 18 — Sacramento .......... ............... 359Capftulo 19 — Santa Ceia ........................... 367Capftulo 20 — Reconciliação Entre as Promes
sas da Lei e do Evangelho.........373Capftulo 21 — A Ressurreição Final ..............378
Capftulo 22 — 0 Governo na Igreja Primitiva . . 384Capftulo 23 — Governo C iv il....................... 387Capftulo 24 — Oração, Perpétuo Exercício da
Fé ........................................ 393Capftulo 25 — Meditando na Vida Futura........ 403Capftulo 26 — A Vida do Cristão — Argumento
das Escrituras........................ 408Notas........................................................415BIBLIOGRAFIA ........................................416
PREFACIO
Guteriberg de Campos, luminar do púlpito em, nossa grei, sem ser ufanista, muito menos chauvinista, de justo empolgamento se inflamava ao referir-se à gloriosa herança protestante na vida nacional, mormente à peregrina contribuição de tantas figuras de escol que honram o passado da fé evangélica nos rincões pátrios. É de lamentar-se que tantos heróis da Causa, “findado o labor desta vida”, sejam esquecidos nas penumbras do pretérito, desconhecidos das novas gerações, ignorados nos anais da história.
A Igreja Presbiteriana do Brasil, sem favor nenhum, conta, em sua não longa trajetória, com um acervo assaz elevado de vultos de primeira grandeza, que merecem lembrados com admiração e respeito. Pena que os esforços de Júlio Andrade Ferreira em legar-nos galeria mais profusa de nomes memoráveis tenha sofrido solução de continuidade! Destarte, ao olvido se votam legiões de grandes servos do Senhor que tão bem serviram ao Evangelho e tanto fizeram pela Igreja e pela Pátria. Mesmo enquanto aqui mili- tam, quão poucos recebem o reconhecimento a que
fazem jus! Neste rol dever-se-ia incluir o autor deste livro, cuja carreira acompanho desde os tempos escolares, nada menos de cinco décadas!
De fato, é Wilson Castro Ferreira um dos mais nobres e dignos ministros de Cristo que a igreja Presbiteriana do Brasil conta em seus quadros. Caráter impoluto, inteligência vivida, coração generoso, fé não fingida, espírito despretensioso, modesto, singelo, não ávido de humanas honrarias, nem sequioso por posições de destaque. É bem verdade que, a despeito disso, foi por seus pares, sem politiquice nem malabarismos, guindado à posição de Secretário Executivo da Igreja, tecnicamente a mais importante da direção máxima, não chegando à Presidência, a honra suprema, tão cobiçada de muitos, porque se não prestava às manobras pouco lisonjeiras que o acesso a esse cargo passou a exigir. .
Em sua vida longa e abençoada, Wilson Castro Ferreira, hoje jubilado, tem sido o dedicado pastor, que serviu a muitas igrejas, o pregador vibrante, de mensagens incisivas, que ainda reboam nos programas radiofônicos que implantou no país e se estendem até pelo exterior, o educador eminente, que marcou época no Instituto José Manuel da Conceição, a que dirigiu com especial proficiência, o professor diligente, que no Seminário Presbiteriano de Campinas, com incomparável consagração, por largos anos lecionou a gerações de seminaristas, o poeta espontâneo, a cantar as coisas da fé e as coisas da vida, o escritor operoso, autor de livros e mensagens que edificam e inspiram, levando a tantas almas o testemunho de Cristo e a palavra de confiança, mais do que tudo, porém, o estudioso incansável, que. por vezes várias, buscou em instituições do exterior os conhecimentos que melhor o assistissem na tarefa bendita de bem expor a Palavra de Deus. Enfim, um ministro fiel em toda linha, de quem a Igreja se deve orgulhar.
Paralelos vários se podem, plutarquicamente, assinalar em nossa própria carreira. Juntos estivemos nos dias longínquos dos estudos pré-acadêmicos no então chamado Curso Universitário José Manuel da Concei
ção; fomos colegas, a seguir, no Seminário Presbiteriano de Campinas, depois, no Seminário de Princeton, nos Estados Unidos, e, mais tarde, exercemos, lado a lado, no Seminário em Campinas, a docência teológica. Contudo, paralelo não menos de destacar-se é o acen- drado interesse que ambos nutrimos pela pessoa, obra e teologia de João Calvino, e isto de longa data, mercê do qual compendia ele a presente obra e eu mourejo na laboriosa tarefa de faser o Reformador falar em português as INSTITUTAS por inteiro.
Isto posto, ver-se-á que o livro que estamos, com grande honra nossa, a prefaciar, representa, por um lado, o fruto dessa sublimada admiração do autor a enfocar o homem de Genebra com aquela empatia que, só, habilita a compreensão genuína, por outro lado, a resultante de demorados e exaustivos estudos de autores de todos os matizes, como o atestam a longa bibliografia e as multíplices referências e citações. É, pois, uma contribuição, de modo nenhum sobeja, a somar-se às obras de Vicente Temudo Lessa e Théa Van Halsema, para constituir-se uma tríade de livros referentes a Calvino em português, o que, na parsimô- nia de nossa literatura teológica, é cifra relevante. Fui aluno de Temudo Lessa e ouvi-o ler, nos cultos a seu cargo, no Instituto José Manuel da Conceição, os capítulos todos do seu livro. Do escrito de Van Halsema fui revisor da tradução para nossa língua e, ao depois, em 1973, vim a conhecer a autora, cujo esposo fora meu contemporâneo em Princeton. Destarte, os três livros estão-me intimamente associados. São bem diferentes. Pode-se dizer que em Temudo Lessa, o historiador profissional, falam os FATOS, em Van Halsema, a dama romântica, estampa-se a VIDA, ou, melhor, Calvino no cenário da sua vivência, em Castro Ferreira, o espírito prático, focaliza-se o HOMEM, a figura de Calvino como pessoa no viver, na influência exercida, nas idéias e princípios esposados e proclamados.
Obra de leitura fácil, cursória, natural, sem pruridos técnicos nem linguagem arrevesada, flui como que em ligeiras pinceladas ou uma série de flashes vividos
mas rápidos, que descortinam, o cenário todo num panorama de seqüência não espessas, nem pejadas. Logo, um livro que se lê com agrado e proveito, sem fatigar.
O autor divide a obra em três partes distintas. A primeira é propriamente biográfica. É Calvino visto no prisma de sua vida e carreira, em breves mas sugestivos capítulos. A segunda expõe-Uie a influência, destacados três níveis ou planos: educacional, ressaltada a incalculável contribuição de Calvino 'nessa área, desde a perspectiva pedagógica até o próprio cultural, a culminar na renomada ACADEMIA de Genebra; política, demonstrada a real visão de governo advogada pelo Mestre Picarão, embasada na justiça, nos direitos humanos e na ordem pública, em consonância com os ditames bíblicos, na realidade, a verdadeira formulação democrática hoje postulada, bem que se não sirva ele desse termo; e econômico-social, discutida a real direção de sua filosofia nesse setor, por sinal que tão mal interpretada por estudiosos prejudicados, que lhe inculcam os males atribuídos a um capitalismo desumano, quando Calvino, firmado na Bíblia, de um lado, apregoa as virtudes do trabalho, da economia, da diligência, mas, de outro, o imperativo da responsabilidade social, da benevolência, do altruísmo, logo, da filantropia; a terceira é um breve apanhado, em linhas gerais, do conteúdo das INSTITUTAS, a obra máxima do grande pensador, uma como que súmula de sua teologia, em termos de seus tópicos principais, pena que demasiado sumária e não tão sistematizada como conviria ao leitor não familiarizado com a matéria.■ Ao nobre colega, Rev. Wilson Castro Ferreira, só há que agradecer-lhe a contribuição feita e rogar que Deus lhe permita enriquecer-nos com outros escritos relevantes.
Campinas, 2 de janeiro de 1985
Waldyr Carvalho Luz
UMA PALA VRA DE INTRODUÇÃO
Por que mais um livro sobre João Calvino, quando há dezenas de obras sobre esse assunto, encarando os mais variados aspectos?
A pergunta tem a sua razão de ser. Todo livro tem uma explicação, deve ter. Pode ser que seja o produto de determinada decisão, tendo em vista atender a uma predileção pessoal, sem maiores justificativas.
Escrevem-se livros como se fazem poemas ou se produz música. O artista tem que fazer arte.
Nascem os livros quase sempre de uma necessidade imperativa, por vezes meramente circunstancial, indiferente, em certos casos, do papel que esse livro vai exercer no futuro ou da extensão da sua influência.
Um certo Teófilo, de quem nada sabemos, em torno do qual há somente conjecturas, sendo algumas até grotescas, quis informar-se um pouco mais a respeito de Jesus, de quem havia ouvido histórias interessantes, mas para ele duvidosas. Lucas, ou porque era amigo íntimo de Teófilo, ou porque fora informado das suas dúvidas e ansiedade, julgou-se no dever de dissipá-las e oferecer-lhe uma exposição demorada, solidamente
fundamentada, a respeito da vida de Jesus. E o fez com extrema dedicação, com grande habilidade, sob a inspiração do Espírito Santo de Deus.
Disso resultaram dois preciosos livros do Novo Testamento: — o terceiro Evangelho e o livro histórico dos Atos dos Apóstolos, os quais constituem um riquíssimo repositório de fatos, cujo conhecimento houve por bem o Espírito revelar-nos para nosso proveito e edificação nas coisas concernentes ao Eeino de Deus. E como seria bem mais pobre o registro das coisas referentes a Jesus e à Igreja primitiva sem esses dois volumes! •
Pouco saberíamos da infância de Jesus e nada saberíamos da obra missionária do apóstolo Paulo, de tal maneira que as suas epístolas se tornariam quase incompreensíveis .
Com respeito a Calvino, diríamos que, embora haja abundante material em outras línguas, não o há em português. Há mesmo falta, que precisa ser preenchida.
Presbiteriano de origem, alimentei desde cedo, o desejo de conhecer melhor a vida e os feitos de João Calvino, pois achei que me deveria informar das origens da denominação evangélica no meio da qual, pela providência divina, vim a nascer.
Fala-se muito em Lutero nos meios evangélicos, e não é sem razão, pois a ele cabe a glória de iniciar, por assim dizer, a grande reforma do século dezesseis. Não se fala muito em João Calvino, nem mesmo entre os presbiterianos. Parece haver um certo desinteresse com respeito à pessoa do Reformador, até mesmo entre aqueles que são seus descendentes espirituais diretos — os presbiterianos e reformados.
Como explicar isso? Mal informados a respeito, muitos preferem manter reserva sobre o assunto. Talvez fosse isso um estímulo a mais para que eu procurasse estudar a vida de João Calvino. Sempre gostei de investigar e saber a razão da minha herança espiritual.
Haveria alguma coisa em Calvino de que nos envergonhássemos?
Nos meus dias de estudante no seminário, julguei
que deveria desvendar o motivo da atitude reticente desse retraimento generalizado, até mesmo entre os alunos de teologia, com respeito à pessoa de João Calvino.
Li alguma coisa naquela época, mas havia tanto que ler obrigatoriamente em razão dos meus estudos, que não me sobrava muito tempo para ocupar-me em leituras que podiam ser adiadas. Lembro-me do entusiasmo do meu professor de Latim e Português, de saudosa memória, Reverendo Vicente Temudo Lessa: costumava ler para nós, no Instituto J.M.C., capítulos manuscritos de sua obra sobre Calvino, que ele escrevia na época. Essa obra deveria ser lida por todos os presbiterianos do Brasil.
Cheguei à conclusão, naqueles tempos, de que a difícil e, por isso mesmo, mal entendida e mal aceita doutrina da predestinação, era em grande parte responsável pela indiferença com que se tratava Calvino. A impressão foi confirmando-se cada vez mais no meu espírito através dos anos. Além disso, o tão explorado caso de Servetus (tão explorado pelos inimigos), tão mal conhecido nos seus pormenores, lançava uma sombra de desconfiança, quem sabe até desprezo, sobre a grande e insuperável figura de João Calvino, o Reformador.
Infelizmente, por uma razão qualquer, talvez por quererem parecer muito liberais, alguns presbiterianos expõem argumentos de adversários de Calvino, argumentos esses que sofrem, evidentemente, a força de preconceitos, para avaliar a sua pessoa. Por isso, alguém afirmou que os evangélicos às vezes rivalizam com os católicos nas críticas a Calvino.
Em 1971, recebi da Federação dos Homens Presbiterianos do Brasil, um convite para falar-lhes sobre Calvino e sua obra no seu Congresso Nacional em Recife. Aceite-o, alegrando-me por verificar que surgia no ambiente da Igreja Presbiteriana do Brasil, embora tardia e timidamente, um certo interesse em conhecer a vida do Reformador de Genebra. Estava eu, nesse tempo, envolvido com muitos afazeres, sobrecarregado com o número excessivo de aulas no Seminário, e
outros compromissos. No entanto, julguei que não deveria perder o ensejo que se me deparava para dedicar algumas horas em pesquisas sobre Joáo Calvino e, ao mesmo tempo, tomá-lo mais conhecido entre seus descendentes espirituais das terras brasileiras.
Como é de meu feitio, procurei desincumbir-me dessa tarefa da melhor maneira possível, dentro das minhas limitações. Atirei-me com afinco aos livros sobre o assunlo, roubei algumas horas de sono, li tudo o que poderia ler no pouco tempo de que dispunha, e fui descobrindo precioso material que, embora não tão abundante, enriquece a nossa biblioteca do Seminário do Sul, sobre esse importante assunto. Convém dizer que ali se encontram algumas obras de valor, ignoradas, quem sabe, por muitos que a freqüentam.
A tarefa se me apresentou cada vez maior, à medida que ia lendo monografias sobre Calvino, obras de sua autoria e parte das muitas mil cartas que escreveu no seu diversificado ministério.
Fui a Recife, com sacrifício, numa viagem de ônibus, interminável, que deixou lembranças, convicto de que ia cumprir uma parte importante no programa daquele conclave. Tive a impressão decepcionante, de que o Congresso de Homens ali reunido estava muito mais preocupado em questões políticas eclesiásticas e outros assuntos do momento, do que em conhecer alguma coisa sobre Calvino, sua obra, sua doutrina, e o legado espiritual que dele recebemos.
Senti-me, todavia, compensado pelo esforço feito, que não somente me tornara maior admirador de Cil- vino, como fizera renascer em mim, o desejo de, em havendo oportunidade, dedicar mais tempo ao estudo da obra fascinante do imortal Reformador de Genebra. Concorriam, para isso, as palavras de estímulo com que o Presidente do Supremo Concilio a mim se dirigiu no final das minhas palestras em Recife, com as quais me afirmava ter sido o meu trabalho uma das coisas mais sérias produzidas naquela reunião.
Posteriormente, recebi da Igreja Presbiteriana do
Brasil a incumbência de ampliar o meu sucinto trabalho, dando-lhe a forma de livro. Era mais um estímulo ao meu propósito. Os estudos feitos no Congresso foram depois publicados, sem revisão, contra a minha vontade, eivados de erros e supressões que seriamente comprometiam o sentido do texto em alguns períodos, o que me causou natural aborrecimento. Via-me constantemente na obrigação de explicar as circunstâncias em que os mesmos haviam sido publicados, praticamente â minha revelia.
Os planos de Deus, no entanto, nem sempre dis- cerníveis ao nosso entendimento, aguardam a plenitude dos tempos conforme o seu desígnio superior. O meu interesse por João Calvino continuava vivo, mas, as esperanças de fazer algo mais significativo para torná-lo mais conhecido, iam se emurchecendo. Não tinha tempo, nem lugar para uma pesquisa mais ampla sobre o assunto.
Posteriormente, em 1975, ia aos Estados Unidos para ministrar um curso sobre a obra missionária no Brasil, no Calvin Seminary da Igreja Reformada, uma oportunidade que surgiu inesperadamente em momento muito propício.
O Calvin Seminary tem uma ótima coleção de obras de Calvino, incluindo livros raros e documentos de grande valor histórico. Nada me pareceu mais oportuno do que aproveitar o tempo que me restava das atividades no seminário para ler sobre o assunto. Atirei-me com fúria â leitura, fui tomando notas, pensando em usá-las de alguma forma, se outra oportunidade me aparecesse.
Meu tempo nos Estados Unidos venceu e tive que voltar ao Brasil, agora com encargos maiores e, por isso, com menos tempo ainda, pois trazia comigo a incumbência de estabelecer o escritório da organização que se encarregava da transmissão de mensagens evangélicas através do rádio — Luz para o Caminho. Devia escrever mensagens, manter vasta correspondênca, atender a consultas de ouvintes, e tc ...
Uma nova oportunidade veio agora, quando por ocasião da minha aposentadoria, a organização “The
Back to God Hour” ofereceu-me, a título de prêmio, uma verba auxiliar para que pudesse dar prosseguimento às minhas pesquisas sobre João Calvino. Deo Gratias !
Creio, porém, que há um motivo mais urgente e imperioso para publicação desta obra do que a minha predileção pessoal por João Calvino. Penso mesmo que, acima de todas as circunstâncias que cercam este empreendimento, está um plano de Deus para que isto aconteça. Calvino é uma personalidade que de tempos em tempos ressurge para atender a reclamos de determinadas crises, às quais a sua obra se torna pertinente . É uma mina que não se esgota. Há uma necessidade por muitos sentida no mundo atual de uma re- descoberta de João Calvino.
Reyburn diz que João Calvino é “um dos homens mais odiados da história, no entanto, a animosidade é um tributo à sua força".1
Os problemas que afligem o mundo moderno, em particular a Igreja de Cristo, exigem essa redescober- ta, porque Calvino na opinião dos editores de suas cartas, em edição recente, 1972, “é o profundo Scholar e o teólogo exato, o estadista esclarecido, o eminente Reformador que exerceu uma influência na época em que viveu, a qual, ao invés de diminuir no lapso de três séculos, há de continuar crescendo, enquanto as grandes verdades que envolvem o presente e o futuro da humanidade, às quais ele tão lúcida e energicamente deu ênfase, forem incorporadas ao progresso da humanidade”.2
Numa excelente palestra pronunciada por John T. Mc Neill, em 1960 — grande estudioso da vida de João Calvino — afirma ele que, na primeira metade desse século, a imagem de Calvino tem alcançado no mundo intelectual uma estatura jamais atingida.3
Walker observa que, após a primeira guerra mundial, um novo interesse por Calvino fez surgir muitas obras a seu respeito. E diz perceber-se, então, estar em processo um reavivamento do calvinismo.4
Que essa voragem benfazeja, embora tardiamente, chegue a nós e que o Senhor seja servido utilizar este
modesto trabalho como uma contribuição a esse des- pertamento entre nós. E que seja tudo como Calvino mesmo desejava — Soli Dei Gloriae.
Cabe aqui uma palavra de agradecimento:Primeiramente, à minha esposa, que, além do
constante apoio de sempre, suportou comigo uma longa separação dos filhos e horas de solidão em nossa casa nos Estados Unidos, enquanto me entregava, dia após dia, ao trabalho de pesquisa. Agradecimento especial à “THE BACK TO GOD HOUR”, o departamento de rádio e televisão da Igreja Cristã Reformada dos EE.UU. e Canadá, que me proporcionou um período de quase seis meses nos Estados Unidos, exclusivamente para o preparo deste livro. Agradecimento à “Luz Para o Caminho” e seu diretor executivo, Rev. Celsino C. Gama, pela responsabilidade que assumiu na publicação da obra. Agradecimento ao meu velho colega e companheiro de tantas refregas Dr. Waldyr Carvalho Luz, que, com sua peculiar capacidade e zelo, aceitou a tarefa de rever e prefaciar esta obra.
Wilson Castro Ferreira
Junho de 1984
UMA ORAÇÃO DE CAL VINO'
Joel 2.32
“Sabemos, por esta passagem, que embora Deus possa afligir muito a sua igreja, ela será perpetuada neste mundo; pois não há de ser destruída, como não pode a verdade de Deus, que é eterna e imutável”.
“Permite, Deus Todo Poderoso, que assim como Tu, que não somente nos convidas constantemente a buscar-Te, pela voz do Teu Evangelho, mas, também, nos oferece Teu Pilho como nosso Mediador, pelo qual um acesso a Ti está aberto, permite que possamos encontrar-Te como Pai a nós propício. Oh!, permite que, confiados no Teu convite, nos exercitemos em vicüa na oração, de vez que muitos males nos perturbam de todos os lados e muitas necessidades nos acabrunham e nos deprimem; que sejamos mais prontos a buscar-Te com empenho e nunca desfalecer no exercício da oração, até que, tendo sido ouvidos por Ti durante toda a existência, possamos, afinal, ser recebidos no Teu Reino Eterno, onde gozaremos da Salvação que nos tem prometido e da qual Tu nos testificas diariamente pelo Teu Evangelho. E para sempre unidos ao Teu Pilho Unigénito, do qual somos agora membros, possamos ser participantes de todas as bênçãos que Ele nos alcançou por sua morte. Amém.”
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Biyvd i
Capítulo 1
UM HOMEM CHAMADO JOÃO
Plutarco, na sua obra imortal De Viribus Illus- tribus, ao tratar da vida de Péricles, nos informa que o grande general e estadista grego, era portador de uma deformação física que o enfeiava, fruto de um problema enfrentado por sua mãe durante o período de gestação. Tivera ela um sonho terrível com um leão, e a cabeça do filho nascituro tomou, em conseqüência, a forma da cabeça desse animal feroz. Péricles a tinha alongada demais.
Os poetas de Atenas, na época, não perdoavam essa deformidade e, daqui para ali, a estavam mencionando ou fazendo referências alusivas à anormalidade. Os inimigos de Péricles, de modo especial, se valiam dessa característica para ridicularizá-lo, emprestando-lhe alcunhas, chamando-o cabeça de cebola ou coisa semelhante. Os amigos e admiradores procuravam encobrir ou dissimular-lhe o defeito.
Artistas, e entre eles o grande Pidias, que era amigo particular de Péricles, cunhavam o seu busto com o capacete militar, disfarçando, desse modo, o alongamento irregular do crânio.
Há de ser sempre assim, não apenas com os grandes, mas também com os pequenos como nós. Aqueles que não nutrem por nós simpatia ou amizade, por esta ou aquela razão, fazem a nossa caricatura. Dão expressão exagerada às características pouco apreciáveis que nos distinguem. Se temos um nariz mais ou menos saliente, o caricaturista o fará parecido com o de um Pinóquio ou que tal. Os nossos amigos preferirão um retrato retocado que elimine a crueza fria e inexorável da câmara fotográfica, impiedosa mas fiel.
Nem tanto à terra nem tanto ao mar. João Calvino oferece exemplo significativo desse fenômeno. O vastíssimo material que se tem produzido no mundo ocidental a respeito dele, revela a importância desse homem excepcional que Deus, na sua providência, preparou para uma obra gigantesca no seu Reino.
Os inimigos de Calvino, ou sejam, os adversários dà causa que ele representa e pela qual se ofereceu em holocausto vivo, exageram as suas fraquezas, transformam o seu zelo em tirania, a sua firmeza em ditadura e obsessão; negam-lhe alguns aquilo que inimigos mais ferrenhos têm sido obrigados a confessar — o seu saber, a sua inteligência privilegiada, o seu absoluto desprendimento das coisas materiais, a sua firmeza de convicções.
Não lhe pouparam mal-versões, as mais descabidas. Dão interpretação maldosa às suas melhores intenções. Se Calvino busca resolver o problema dos refugiados e perseguidos que cada dia batem às portas de Genebra é porque pensa ganhar adeptos em maior número para a sua luta contra os libertinos. Se Calvino guarda silêncio sobre o paradeiro e a verdadeira identidade de Servetus, quando este se encontra foragido, e condenado pelo santo ofício, não é por tolerância, nem por paciência, nem por espírito cristão, mas é por sadismo e por sede de vingança,
esperando cevá-lo para a oportunidade de o destruir espetacularmente.
Os amigos nos oferecem dele o retrato de um estadista invulgar de uma cultura vasta e profunda, de uma inteligência brilhante e rara, um protótipo de apóstolo e santo.
Homens como E. Doumergue, por exemplo, o classificam como um dos servos mais prodigiosamente ativos que a humanidade já possuiu, uma das vontades mais tenazes, um dos trabalhadores mais laboriosos, de inteligência e de vida, que o mundo jamais conheceu.
Outros, como Servetus, feridos no seu amor-próprio, nos seus interesses pessoais, não vacilariam em chamá-lo “Simão Mago, criminoso matador, desgraçado, viu, e até ignorante, um cão a ladrar”.6
Faz coro com Servetus, Bolzec, expulso de Genebra, a apontar Calvino como vingativo, ignorante e até sodomita.
Admiradores e fiéis discípulos do Reformador, como Teodoro Beza, não encontram palavras suficientes para exaltar-lhe a grandeza moral e espiritual e a insigne cultura e inteligência do mestre e do profeta de Deus.
Os homens do Conselho de Genebra que com ele privaram na intimidade, e que muitas vezes dele discordaram, acabaram reconhecendo a legitimidade de sua luta e o seu esforço desprendido. São homens que o assistiram no fragor das mais violentas batalhas; que testemunharam os seus últimos momentos e que comentavam a sua morte com aquilo que bem poderia ser epitáfio de Calvino: “Deus lhe concedeu um caráter de grande majestade”. Essa majestade grandiosa do Reformador de Genebra se torna mais evidente nas palavras do próprio Calvino, que não alimenta nenhuma ilusão nem dúvida com respeito às suas limitações e fraquezas, reconhecendo que, se algo possui, é fruto imerecido da Graça do Senhor; Graça que ele, com tanto brilho, proclama e exalta na sua teologia e que reconhece no seu testemunho final: "Agradeço a Deus que não só tem mostrado rniseri-
córdia para comigo, sua pobre criatura, e me tem tolerado em todas as minhas fraquezas e pecados, mas, muito mais do que isso, me fez participante da Sua obra para serví-Lo no Seu trabalho; e não somente isso, mas com a mesma misericórdia e benignidade bondosa, graciosamente suportou-me com as minhas faltas pelas quais eu merecia ser exterminado por Ele; estendeu-me Ele a Sua clemência e benignidade e houve por bem usar da minha instrumentalida.de para divulgação da verdade do Seu Evangelho. . . Não tenho outra defesa ou refúgio para salvação, a não ser na Sua adoção gratuita da qual somente a minha salvar ção depende. . . Abraço a graça que me é oferecida em Jesus Cristo e aceito os méritos do Seu sofrimento e morte, através dos quais todos os meus pecados são sepultados”.6
Este livro não é o panegírico de um santo, já que não temos santos beatificados e canonizados nos esquadrões evangélicos; se nós os temos, hão de ser na acepção bíblica —- homens imperfeitos, pecadores, salvos por Jesus Cristo e que hão de ser libertados de todas as limitações, isentos de todas as falhas próprias de contingência humana. Homens que no outro lado do rio da morte irão se encontrar com Jesus, o Cordeiro de Deus, cujo sangue nos purifica de todo o pecado.
É fácil apontar imperfeições grandes, tanto em Calvino, como em Lutero, como no cordato Melanch- thon, ou no sábio e cordial Martin Bucer, que também teve os seus momentos de fraqueza e de abatimento. Nenhum deles se arrogava perfeição ou santidade; esta vam prontos a reconhecer as suas faltas e, muitas vezes, o fizeram. Todos eles sabiam o que o apóstolo São Paulo tão bem descobrira e proclamara, quando pensava nas suas realizações: — Não eu, mas a graça de Deus em mim.
De modo que é só pela graça e misericórdia de Deus que nos podemos atribuir as excelências que em nós houver. É essa preciosa graça que burila e digni* fica, dando utilidade justa aos dons naturais que venhamos a ter. Sem essa graça, sabemo-nos perdidos
e miseráveis, faltos de qualquer valor, sem qualquer esperança.
Difícil é, às vezes, entender que os homens imbuídos de uma grande visão e identificados com uma grande causa, encarnando uma vocação divina que se torna a única razão de suas atividades e lutas, sejam não raro impacientes, intempestivos, quando sentem ameaçados os projetos de suas vidas, aos quais, para a glória de Deus, votaram servir de todo o coração.
Nem sempre se aceita que o mesmo homem que escrevera em termos tão severos aos cristãos de Co- rinto e da Galácia, seja o mesmo terno pastor que, de alma aberta, se dirige em palavras ternas de agradecimento e afeição à Igreja de Filipos.
João Calvino era, indubitavelmente, um homem de excepcionais dons de inteligência e caráter, que nem mesmo alguns dos seus mais tenazes inimigos ousam negar. No entanto, a sua constituição física, já de si mesma frágil, foi dominada por enfermidades tantas e tão inquietantes, capazes de tirar a calma, o equilíbrio e a vontade de viver e trabalhar mesmo ao mais paciente dos mortais. Por outro lado, possuía a humildade necessária para lamentar diante de Deus e perante os amigos mais íntimos seus resvalos e fraquezas. A respeito dele poderíamos dizer, parodiando o apóstolo São Paulo: “Onde abundou a fraqueza, su- perabundou a graça”. Daí o nome que lhe foi dado por outras razões, mas que tão providencialmente se lhe assenta: João, que quer dizer, a graça de Deus. Um homem sim, chamado João, exemplificação autêntica da superabundante graça que supre as faltas da nossa fraqueza humana.
Daí, não é de admirar que os homens do Concilio de. Genebra o tivessem chamado: “A boca de Deus”.
Há, por vezes, uma sensibilidade vesga, que procura interpretar com disfarces a atitude de Jesus, quando expulsa os vendilhões do templo ou quando vergasta com palavras duras os fariseus, sacerdotes e es- cribas do Seu tempo. Há aqueles que só entendem Jesus afagando as criancinhas, perdoando a pecadora e dizendo: “Vinde a mim todos vós, que estais cansados
e oprimidos e eu vos aliviarei...”. Gostariam, quem sabe, que o Evangelho de João não registrasse o discurso em que Jesus se dirige aos judeus que se obstinavam em persegui-lo e em negar a Sua autoridade divina, contra todas as evidências: “Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos". (Jo 8.44).
Dir-se-ía que Jesus tinha autoridade divina para falar desse modo. Vale a pena ler Posdick, no seu velho mas sempre precioso livrinho “A Varonilidade do Mestre”, para compreender como o mesmo Jesus, compassivo, amoroso, cheio de humildade na Sua varonilidade completa e acabada, era capaz de, pelas mesmas razões que O fizeram abrir o coração com ternura aos infelizes carentes de misericórdia, indignar- se contra os que, satanicamente, se opunham à realização da Sua obra.
Quem já tem vivido uma boa parte da existência, no convívio dos homens em qualquer sociedade, se quis fazer algo construtivo, se se empenhou apaixonadamente por um ideal, há de ter experimentado o preço que isso exige e que nada mais é do que ver, em muitos casos, atacada a sua moral, acusado de perfídia, de insinceridade, quando, nas melhores intenções, procurava acima de tudo servir a Deus e ao próximo.
Capítulo 2
GÉRARD CAUVIN
Gérard Cauvin é um nome que passaria no anonimato, sem qualquer menção histórica, não fosse o filho ilustre que teve. Não se pode ignorar, contudo, que esse filho só pode ser o que foi pelo esforço do pai, que tudo fez para dar-lhe uma educação capaz de fazê-lo o melhor entre os melhores na sua carreira.
Encontramos Gerard Cauvin no princípio do século XVI, na cidade francesa de Noyon, na Picardia, bem casado, bem posto na vida, residindo numa das principais praças da cidade, participando ativamente da vida social, relacionado com as famílias graúdas do lugar e da região.
Procurador do capítulo da catedral, secretário do bispo, advogado, embora sem diploma, contudo influente e conceituado, G. Cauvin era dono de vasta clientela na região.
Casara-se com Jeanne de Lafranc, jovem de grande formosura e reconhecida piedade, filha de abastado hoteleiro aposentado de Cambrai, agora influente membro da sociedade de Noyon.
Gérard, por sua vez, provinha de troncos humildes: era de família rude. Seu pai fora barqueiro e acrescentara a essa profissão a de artífice em madeira; originário de Pont l’Évêque, cidadezinha a meia hora de viagem de Noyon, onde nascera Gérard Cauvin.
Pensa-se que o ambicioso jovem sentiu que sua terra natal era pequena demais para seus sonhos e ambições e, logo que pode, tratou de se situar em Noyon, pondo em jogo toda sua habilidade, de modo a cedo conquistar posição vantajosa. Gérard Cauvin era, sem dúvida, católico praticante, embora sem a piedade que distinguia a nobre esposa. Sonhava com um futuro brilhante para os filhos, especialmente para Jean, no qual adivinhava, desde cedo, uma inteligência privilegiada. Ao filho mais velho, Carlos, encaminhara para a escola dos capetos, assim chamada devido ao capuz que, à guisa de uniforme, os alunos usavam. Pois não era nessa escola que estudavam os meninós da família Montmor, sobrinhos do bispo? Não queria o notário menos para seus filhos. Os proventos que recebia e que não deviam ser tão pequenos, talvez fossem insuficientes para arcar com as despesas de educação dos filhos como sonhava. Mas o seu status social, que não queria perder, assim o requeria.
Gozava, no entanto, de prestígio para solicitar um benefício eclesiástico, primeiramente para o filho mais velho, Carlos, e, posteriormente, para Jean.
Em 1519, Carlos assumia os direitos da Capelania de La Gesine na Catedral de Noyon, que, no ano seguinte, trocaria por outro, na mesma catedral e, dois anos depois, transferia para o irmão menor, Jean, este, então, com doze anos incompletos.
Que é que isso significa para o menino Jean, em termos de dinheiro e serviço à Igreja? Significava que o adolescente, cuja única ligação com o sacerdócio era a tonsura que recebera, ao assumir o benefício, se via provido das rendas que aquela capelania propiciava.
Impossibilitado de exercer o sacerdócio pox muitas razões, inclusive pela pouca idade (uma vez que somente aos vinte e cinco anos poderia ser ordenado), conforme um costume muito em voga, um clérigo para isso combinado, realizava os atos eclesiásticos ati- nentes à capelania, recebendo uma parte da renda e entregando o restante ao titular do benefício.
Procuram alguns ver nisso uma semelhança às bolsas escolares fornecidas a estudantes que se destinam ao ministério evangélico, ou, diríamos, às verbas pres- biteriais destinadas aos candidatos ao ministério evangélico (na Igreja Presbiteriana)> pois que tais benefícios subentendiam que o beneficiado se destinava à carreira do sacerdócio.
Gerard Cauvin, segundo se sabe, pensava em fazer do filho um clérigo.
Uma parte considerável das rendas desse benefício se constituía em grãos, pagos pelos territórios adjacentes de Voienne e Espeville.
Quando mais tarde os estudos em Paris requereram maiores verbas, Jean Cauvin tornou-se também receptor das rendas do pastorado de Saint Martin de Marthe- ville (vinte e sete de setembro de 1527), que depois permutou pelo de Pont FÉvêque, terra de seus ancestrais paternos. Pensam alguns que razões afetivas o levaram a isso. Teodoro Bezá afirma que, embora não ordenado sacerdote, Calvino pregou vários sermões na terra natal de seu pai.
Muitos biógrafos de Calvino procuram elucidar a questão dos benefícios eclesiásticos, mostrando como era comum a prática naqueles tempos, embora estranha para nós, hoje.
Generalizado era, então, o costume, pois o próprio bispo de Noyon teria sido receptor de um benefício, quando ainda adolescente, de modo que tão arraigada prática, não causava espécie, nem provocava escândalo, pois gozrva da aceitação tácita comò algo perfeitamente normal e natural.
Carlos, irmão mais velho de Calvino, cedo entrara para a carreira eclesiástica, que também terminou cedo. Notabilizou-se por sua vida dissoluta e desregra
da, na prática de erros comuns naquele tempo, mas em frontal desrespeito às leis da Igreja. Rebelado, tornou-se passível de penalidades eclesiásticas, morreu excomungado e impenitente, recusando-se a receber antes da morte o sacramento da Igreja.
Pela passagem de uma carta de Calvino a um amigo, descobre-se que o irmão mais velho criara-lhe dificuldades financeiras, a ponto de ter que pedir dinheiro emprestado a um amigo.
A questão de alguns, de que as dificuldades entre o irmão Carlos e a Igreja fossem o resultado de sua adesão à Reforma, não parece aceitável. Entende-se que o desejo de Gérard Cauvin de encaminhar Calvino para a carreira eclesiástica não era fruto de uma preocupação religiosa especialmente, mas o desejo de vê-lo subir nessa carreira com as vantagens sociais, políticas e financeiras que então propiciava. Mais tarde, veria ele, não na Igreja, mas na advocacia, um futuro vantajoso para o filho e lhe daria ordens para mudar de estudos, seguindo nessa outra direção.
Convém notar que, a essa altura, as suas relações com o alto clero de Noyon já entrara em crise. Pode ser que os rumores da Reforma, que por lá já haviam chegado, criassem dúvidas no seu espírito quanto à conveniência de ter o filho no clero católico romano.
A filial obediência de Calvino às determinações de seu pai, o fariam deixar Paris e ir para Orleans, posteriormente para Bourges, em busca de um ensino mais apurado e mais atualizado do Direito.
Uma certa sombra de mistério paira sobre o final da vida de Gérard Cauvin, pois mesmo o filho Jéan, que lhe dera assistência nos últimos dias, interrompendo para isso os estudos, não nos oferece informações a respeito, o que não é estranho, dada a natural reserva de Calvino em assuntos de tal intimidade.
O fato é que o administrador de bens da Catedral não terminou bem o desempenho dessa função. Falhou mais de uma vez na pestação de contas em alguns casos e o conflito se exacerbou, ao ponto de ser ele excomungado. Teriam os desmandos financeiros de Car
los algo a ver com a situação desfavorável do pai? Não se sabe.
Não fosse a interferência de João Calvino» o pai teria sido sepultado fora dos terrenos sagrados.
Como haveria isso de aumentar os conflitos na alma de Calvino já nessa altura submersa em grandes lutas íntimas!
Capítulo 3
A EDUCAÇÃO DE JOÃO CALVINO
A providência prepara os seus instrumentos, embora para isso utilize meios puramente circunstanciais e aparentemente contrários aos seus desígnios. O apóstolo São Paulo não tem dúvida disso, pois afirma que Deus o escolheu desde o ventre de sua mãe para ser o apóstolo dos gentios. E utiliza as coisas que são para confundir a,s que não são.
Em Noyon, à sombra da Catedral, famosa por suas relíquias, na casa do notário da corte eclesiástica e secretário do bispo, havia de nascer um menino que teria papel de grande importância na consolidação da Reforma do século XVI, contra a qual o poder eclesiástico, ali tão bem representado, haveria de mover guerra feroz. Noyon estava fadada a ficar na história. Ali fora coroado Carlos Magno como rei dos francos, em 768. Ali Hugo Capetino, o primeiro soberano da linha dos Capetos, fora proclamado rei em 487. Isso
quanto ao aspecto político. Quanto ao religioso, lá es- tavam guardadas as relíquias de Santo Eloy.
O número de igrejas era grande para o tamanho da cidade e o movimento religioso mais ou menos intenso, com peregrinos que vinham visitar as relíquias. A fertilidade do solo ao redor dava importância agrícola e comercial à pequena comunidade de umas doze mil pessoas. Era a sede de um bispado, e o bispo residente, um dos doze “pares” da França, o que emprestava à sua autoridade espiritual um caráter também político. Os picárdios (e Noyon ficava na Picardia), se tornaram conhecidos por seu amor à polêmica nas lutas nacionais.
Nos tempos de Calvino, alguns filhos da terra eram figuras intelectuais de destaque em Paris, como Lefrè- ve, Olivetan e Vatable, todos de Noyon. Ao aspecto educacional, Noyon podia se orgulhar de seu Colégio dos Capetos, assim denominado por causa do capuz usado pelos alunos. Tratava-se de uma escola correspondente ao nível primário e secundário, onde estudavam alguns filhos de famílias graúdas e nobres, como eram os Montmors, colegas de Calvino.
Nessa escola, o futuro Reformador iniciaria os seus estudos, tomaria as primeiras lições de latim e preparar-se-ia para estudos mais elevados na Universidade, em Paris.
Em Noyon, enquanto a Europa começava a agitar-se com as questões religiosas levantadas por Lute- ro, ao pregar as suas 95 teses na porta da capela de Wittemberg, um menino franzino, moreno, de olhos castanhos e vivos, começava a preparar-se para ser, quem diria, o grande consolidador da Reforma, o autor da teologia dogmática, sólida, bíblica, postulador de uma ética e filosofia cristãs genuínas e de uma forma de governo democrático e viril.
Quem havia de pensar que Jeanne de La Franc, a meiga, silenciosa e quase mística filha do antigo hoteleiro de Cambrai, havia de dar à luz em Noyon, ao menino que mais tarde abalaria os alicerces daquela igreja a que tão devota e piamente procurava obedecer! E é Calvino que nos dá a entender que, levado pe
las mãos de sua mãe à igreja, se viu cercado, desde a infância, por um ambiente religioso que teria reflexos decisivos na sua carreira futura.
A sua crítica às relíquias, severa e até sarcástica, tinha uma origem longínqua; vinha do espírito de revolta que muito cedo começara a sentir contra tudo aquilo que lhe parecia estranho, superficial e até grotesco.
Aos vinte e sete minutos da tarde, ou às doze horas e vinte è sete minutos do dia 10 de julho de 1509, nascia João Calvino, filho de Gerard Cauvin e Jeanne de La Franc. Conforme alguns, seria o segundo filho, ou o terceiro, ou até o quarto na opinião de outros, se é que outros filhos morreram na infância.
Dentro de uma boa tradição católica, Calvino foi logo batizado, antes mesmo de completar um mês. Teve como padrinho um dos cônegos da catedral, Jean Vatine, de quem recebeu o primeiro nome. Mui cedo começaria Gerard Cauvin a descobrir no pequeno Jean as qualidades que o tomariam grande; desse modo, passou a alimentar o sonho de ter um filho famoso, alcançando o que ele não pudera alcançar em virtude das limitações que o cercaram no berço.
Gerard Cauvin valer-se-ía da amizade e confiança de que desfrutava da parte do bispo, não para suplicar favores desmedidos, mas a concessão de benefícios eclesiásticos que lhe permitisse educar os filhos na mesma escola em que estudavam os sobrinhos do clérigo. E os benefícios eclesiásticos foram concedidos, inicialmente, ao filho mais velho, Carlos, e, posteriormente, a João Calvino, quando ainda contava menos de doze anos.
Aos estudos na escola local juntou-se a influência que Calvino recebia dos bons amigos e colegas que nela adquirira. Passou a freqüentar a casa desses amigos e se tomou quase um membro da família de Adriano Hangest, parente do bispo, uma das famílias mais nobres da região. No convívio desse lar de gente da nobreza, Calvino aprenderia a etiqueta e as boas maneiras que regiam a alta sociedade, dando-lhe assim um toque de polimento e habilitando-o mais tarde, sem
constrangimento, a movimentar-se com desenvoltura nas altas rodas, tanto em Paris, como em outros lugares.
O tempo passaria muito depressa e logo a escola de Capeto não poderia oferecer nada mais ao filho de Gérard Cauvin e aos seus colegas da família de Han- gest. É possível que Gérard Cauvin consultasse os amigos sobre o futuro do filho e, evidentemente, Paris seria o lugar indicado para o prosseguimento dos seus estudos. A conveniência de sair, atendendo a essa finalidade, juntava-se a necessidade de fugir ao perigo da peste que começava a visitar de novo a cidade de Noyon, peste que, de tempos em tempos, assolava a província, ceifando implacavelmente muitas vidas.
Ainda aqui, as boas relações com o bispo influíram para que Calvino seguisse com destino à capital, em companhia de seus sobrinhos, sob a orientação de um mesmo tutor. Assim é que, nos seus verdes catorze anos, partia João Calvino para Paris. Inicialmente, residiria em casa de um tio, Jacó Calvino, um ferreiro, fabricante de chaves, de quem pouco ou nada se sabe.
Em Paris, a Providência lhe prepararia a oportunidade do encontro com um homem que teria importante papel na sua formação intelectual, logo de início: Marthurin Cordier, ou Marturinus Corderius, que, indubitavelmente, influenciaria na sua evolução religiosa. Cordier era um homem de grande valor, e da mais alta reputação da França, como professor da juventude. Mestre consumado do latim e do francês, elegante estilista e pedagogo. Embora professor de classes mais adiantadas, para o que não lhe faltava competência nem habilitação, preferia ter como alunos iniciantes jovens, de modo a oferecer-lhes base sólida no aprendizado da língua, antes que se viciassem em erros tão comuns do tempo. Queria vê-los falando e escrevendo um francê primoroso, isento de barbarismos e outros defeitos.
Adotara métodos modernos para o ensino da língua, pois usava o que hoje chamaríamos o método direto, em que os alunos aprendiam a língua falando,
conversando sobre coisas práticas, sobre assuntos da vida diária, versando sobre temas familiares. A ele se atribui a perfeição e elegância do francês que Calvino exibia. Na opinião de Abel Le Franc, professor do colégio de Paris, Cordier fez dele um clássico comparado a Rebelais. Dele diz Le Franc: “Maitre unique l’un des Grammaires les plus distingues de le epoque”.7
É ainda Marturin Cardier que fez de Calvino o latinista perfeito, igual aos clássicos dos tempos de Sêneca. Pois era conforme Le Fránc: “Par excellence un latinista consume”.8
Dele não se esqueceria o aluno aplicado, pois o levaria mais tarde para Genebra, onde depois de ensinar em Neuchatel, terminaria seus dias, na idade avançada de 85 anos, como professor da Academia que Calvino fundara.9
Foi pena que, por tão pouco tempo, estivesse Calvino sob a orientação pedagógica de Cordier, pois tivera que se transferir para outra escola. Do colégio de La Marche, Calvino foi para Montaigu, atendendo ao propósito de seu pai, que o destinara à carreira eclesiástica, pois ali se prepararia melhor para isso.
Pensam alguns que esta mudança de escola fora determinada pelo tutor de Calvino, levado por um capricho injustificável. No entanto parece que a situação de detentor de benefícios eclesiásticos, que custeavam as suas despesas o subtendiam sua destinação ao clero, tenha influído nessa mudança, pois convinha justificar a concessão desses benefícios feita a Calvino. É Calvinó mesmo que nos diz ser intenção do pai destiná-lo à carreira eclesiástica.
De La Marche para Montaigu havia uma diferença muito grande e a mudança foi chocante. Penning afirma que era um pulo no precipício. Cordier representava o progresso, a primavera, a delicadeza; Montaigu era o inverno, o velho método, o estreito conservadorismo, o chicote.10
Montaigu trazia o nome do bispo de Laose, Pier- re de Montaigu, que o reconstruíra 70 anos após a sua fundação. Ali estudou Erasmo, o grande humanista, antes de Calvino, e guardava sombrias lembranças do
ambiente insuportável, da disciplina cruel, da falta de higiene, da comida mal preparada, dos vermes dos quais Erasmo dizia ter recebido maior porção do que da teologia que impregnava as paredes. Os .quartos eram próximos das privadas fétidas e infecciosas; muitos estudantes ali adquiriram enfermidades graves e incuráveis, alguns morreram e havia casos de cegueira, e até de lepra.
Além disso, os castigos corporais eram praticados com severidade e as horas de estudos esticadas, com tempo limitado para as refeições. Calvino, no entanto, não se queixava dos rigores da escola, aliás, não o encontramos queixoso em nenhum lugar. Era estudante por vocação; era um filho obediente e aceitava com firmeza e paciência estóica as dificuldades que os estudos lhe impunham.
Dirigia a escola, no tempo de Calvino, o severc Noel Beda, intransigente na sua disciplina e rigoroso defensor da ortodoxia católica. Era um decidido inimigo da Reforma e de qualquer novidade teológica que fosse de encontro à sua concepção doutrinária medieval. Perseguira Jacques Lefrève. um grande intelec tual, um homem pacífico e moderado, somente porque via nele simpatias para com as idéias de Lutero. Lefrève, num estudo de um texto bíblico, dera-lhe interpretação diferente daquela então em voga, mos* trando que Maria de Betânia, Maria Madalena e a outra Maria que ungira os pés de Jesus, na casa do doutor da lei, eram personagens diferentes. Foi o bastante para que se visse na necessidade de sair de Paris a fim de evitar perseguição maior. A severidade que Beda imprimia à escola não poupara nem a irmã do rei, Margarida de Valois, que ali fora castigada com rigor. Não se pode negar, contudo, que Calvino ali adquirira uma bagagem de conhecimentos bem grande, que o fez versado na teologia de Tomás de Aquino, de Agostinho, de Jerônimo e outros grandes nomes do passado.
Ali também, possivelmente, adquirira a disposição para algumas das enfermidades que bem cedo se
lhe tomaram em verdadeiros flagelos, que, por fim, acabaram por vitimá-lo. O colégio de Montaigu gozava de grande reputação pelos seus métodos rigorosos, pela energia da sua disciplina, pela sua oposição ao humanismo; evidentemente, um lugar para se preparar clérigos na bitola em que Noel Beda os desejava ter. E não era para a carreira eclesiástica que o pai de Calvino o destinava? Então era ali o lugar onde devia passar uma boa parte dos seus tempos de estudante.
Talhado para o sofrimento, dotado de uma capacidade inata, quase incrível de suportar os incômodos de uma vida sem saúde, aplicado aos estudos, ávido de aprender, não perdia tempo em arengas e queixas e, com uma pertinacia heróica, foi adquirindo grande cabedal de conhecimentos, com rapidez e facilidade, que dentro em pouco o tornaram o melhor aluno da sua turma.11
Quando mais tarde, nas grandes polêmicas que enfrentou, Calvino revelou um conhecimento enorme dos pais da Igreja, era capaz de citar com facilidade e absoluta propriedade e precisão estes vultos do passado, bem como filósofos, surpreendendo amigos e adversários. É porque soube esquecer as pulgas e ratos de Montaigu para dedicar-se aos tesouros do conhecimen to que ali se lhe oferecia. O seu aproveitamento despertou a atenção dos professores e se fez logo notória entre os alunos a sua aplicação e capacidade de aprender.
Cadier, biógrafo de Calvino, nos conta que Luche- sius Smits descobriu 1700 citações de Santo Agostinho e mais 2400 referências a ele nos escritos de Calvino.12
Ali aprendeu Calvino a raciocinar e coordenar com maestria os argumentos e silogismos; ali consolidou a fama e o prestígio de bom estudante que vinha trazendo desde Noyon, e a admiração de antigos conterrâneos e colegas bem como outros que granjeara em Paris. A sua vantagem em relação aos outros colegas de classe, dado seu rápido desenvolvimento, valeu-lhe a promoção em pouco tempo para estudos mais
elevados das disciplinas de filosofia e dialética. Assim é que, em 1528, terminava o seu curso de artes que o qualificava a entrar para os estudos de Direito em Or- leans e Bourges.
Entende-se porque o mocinho tímido de aparências pouco atraentes, de modos discretos fosse capaz de impor-se à simpatia e admiração dos que o rodeavam, mestres e estudantes, onde quer que fosse, a ponto de formar em todo lugar um círculo notável de amizades entre intelectuais e gente do povo. Calvino possuía por instinto a arte dificílima de viver em meio a um ambiente até certo ponto hostil aos princípios éticos que adotara, sem ser odiado ou evitado.
Alguns afirmam que, em Montaigu, recebera ele o apelido de “Caso acusativo”, dada a severidade e a intransigência com que reprovava os erros dos colegas. Esta afirmação, contudo, parece sem fundamento e é contestada por Guizot, por Walker e por muitos outros.
Aos 19 anos de idade, Calvino deixa o colégio de Montaigu e deixa Paris, isso em 1528. Já não era mais nem o menino ingênuo, o adolescente tímido que saíra de Noyon cinco anos antes, nem era, tão pouco, em matéria de religião, o mesmo incondicional freqüentador da Igreja e das cerimônias religiosas. Longe estava ainda de ser o cristão evangélico, defensor intransigente das verdades bíblicas em oposição às inovações da Igreja., como se tornaria mais tarde. Contudo, e certo que levava consigo a semente dos ensinos da Reforma que recebera do seu parente Roberto Olivetan, com quem privara durante a permanência na capital. E não somente Roberto Olivetan, mas outros teriam também procurado abrir os seus olhos para a luz do Evangelho que já então começara a brilhar com fulgor nas terras da França.
Roberto Olivetan traduziu o Velho Testamento para o francês e era zeloso e assíduo estudante das Escrituras, descrente da Igreja Católica e aderente dos princípios defendidos por Lutero e outros Reformadores. Nessa altura, o pai de Calvino já havia mudado
de idáia com respeito à carreira futura do filho e desejava que ele seguisse estudos de direito, a seu ver, o caminho mais seguro para a conquista de posição, de riquezas, de honra, pelo que nos informa o próprio João Calvino. Discute-se a exata razão dessa mudança de posição por parte de Gerard Calvin.
Convém lembrar qúe não eram amistosas, nessa altura, as suas relações como o capítulo da catedral de Noyon. As razões todas não se sabe. Sabe-se que perdera a confiança dos homens da catedral e que, ao que tudo indica, deixara de ser o bom e correto administrador que antes tinha sido. Pode ser que a vida desregrada do filho mais velho lhe tivesse trazido dificuldades financeiras e lhe criasse complicações com os antigos patrões. Tudo isso poderia ter influído na decisão de indicar ao filho João as portas da escola de direito e não do seminário.
É Emanuel Stickelberger, notável escritor alemão que no seu estilo poético e pitoresco, assinala uma circunstância curiosa da vida de Calvino, nesta fase: “No princípio de 1528, quando o picárdio João Calvino, cuja cabeça de 19 anos de idade seria logo decorada com o barrete de doutor, e sairia do colégio de Montaigu de Paris; um flácido basco para ali entrava vestido de andrajos, como se fosse um mendigo, por escolha voluntária. Os seus olhos brilhavam com fanático êxtase, pois ele também desejava equipar-se com as ferramentas da ciência para o desempenho de tarefa que escolhera. Era ele Inigo Loyola. “Loyola entrava puxando um burrinho que trazia os seus livros, e ia a pé. “Inescrutável!” diz Stickelberger.13
A comparação entre Calvino e Loyola tem sido feita por escritores católicos, como Andre Favre Dor- saz.14 O paralelo é traçado colocando Calvino em posição desfavorável, tratando-o como se fosse um mórbido, perturbado emocionalmente, inteligente, mas fraco teólogo; ao mesmo tempo que exalta a grande elevação do fundador da Companhia de Jesus, evidentemente, uma posição preconcebida e vesga.
Em obediência uma vez mais aos desejos do pai,
Calvino se dirige para Orleans. A escola de direito de Paris não gozava da fama nem da notoriedade da de Orleans, agora enriquecida cota a presença de Pierre de LTEstoile — “O rei da jurisprudência”, como o chama Penning.
Pierre de LTSstoile era um homem de reconhecida capacidade intelectual e um grande mestre de direito. Católico, ortodoxo, tendo enviuvado, ordenou-se sacerdote, mas continuava lecionando. Orleans iria oferecer a João Calvino uma nova situação, inteiramente diferente daquela que deixara em Montaigu.
Para trás ficara a disciplina rígida de um ambiente de ferro. Agora era a liberdade, o descontraimento de um clima- intelectualmente arejado; uma mocidade brejeira, até frívola, embora preocupada com o saber, pois Orleans era nesse tempo, mais do que Paris, a capital intelectual da França.
A fama de L’Estoile atraía muitos alunos de vários lugares. Embora adversário da Reforma, era um homem de excepcional inteligência e de um espírito cordial e amigo. Quando Calvino foi para Orleans, a universidade contava com 3.000 a 4.000 estudantes agrupados em dez “nações” ou clubes, conforme a sua origem de países ou províncias. Calvino foi escolhido logo procurador da nação dos Picárdios, a sua província, naturalmente como resultado da confiança e da amizade que lhe devotaram os colegas conterrâneos, pois que nessa época tinha Calvino apenas vinte anos de idade.
O ambiente liberal não impedia que Calvino se impusesse uma rigorosa disciplina, a qual o obrigava a alimentar-se frugalmente, estudar até altas horas da noite, de manhã acordar cedo, e permanecer no leito recordando o que aprendera no dia anterior.
Em Orleans encontra Melchior Wolmar que, depois, iria também para Bourges e que seria ali seu professor de grego, além de amigo; dele Calvino receberia influências no que dizia respeito à Reforma, pois Wolmar era adepto de Lutero, um verdadeiro luterano. Há aqueles que atribuem uma profunda in
fluência de Wolmar sobre Calvino, neste sentido, fazendo-o quase totalmente responsável pela decisão religiosa definitiva do aluno de grego. Pensa-se até que tenha ele influído para que Calvino deixasse Orleans e fosse para Bourges.
A correspondência de Calvino com Wolmar, posteriormente, não oferece base para essa conclusão.
Nem mesmo o oferecimento que lhe faz Calvino de um de seus comentários. No oferecimento, embora manifeste apreciação pelo ensino do grande mestre, não se refere a qualquer influência religiosa, como era de se esperar, se fosse o caso.15
Mais uma vez Calvino se destaca pela inteligência, pelo aproveitamento rápido e admirável. Dentro em pouco é distinguido pelo mestre L’Estoile com o convite para substituí-lo nas aulas, quando' precisa se ausentar; e o fato se repete e Calvino o faz com tal proveito que muitos começam a ver nele um futuro substituto do grande professor.
Como em Paris, Calvino se vê em Orleans cercado de bons amigos, alguns colegas e mesmo professores. Entre os colegas se destaca Francisco Daniel, que mais tarde, seria advogado influente em Orleans e com o qual manteria correspondência cordial e amiga. Daniel era de Orleans, tinha outros irmãos e irmãs, e Calvino se tornou freqüentador assíduo e estimado do lar dessa família. Outro amigo é Duchemin, durante algum tempo companheiro de quarto de Calvino, a quem Calvino tem a liberdade de solicitar um empréstimo quando os desequilíbrios financeiros de seu irmão Carlos o deixavam em dificuldades e aperturas.
A amizade com Francisco Daniel se estende por muito tempo embora não se torne ele um cristão reformado, como Calvino desejaria. Mais tarde, em Genebra, um filho de Daniel se torna objeto dos cuidados de Calvino.
Calvino devia deixar Orleans antes de completar o seu curso, mas a Academia, por voto unânime, resolveu conferir-lhe o grau de doutor, livre de quaisquer despesas, considerando os serviços que ali prestara.
Divergem os autores sobre se Calvino teria aceitado ou não esse grau. Beza parece acreditar que sim.
A ida de Calvino para Bourges prendia-se ao interesse que vinha despertando nos estudantes de direito o novo professor italiano, Andre Alciati, tido como o maior advogado da época, insigne mestre de direito. Jovens de outras partes da Europa estavam indo para Bourges atraídos pela sua fama. Dizia-se que o rei da França o mandara vir da Itália, oferecendo-lhe o dobro do salário que alí recebia. Francisco Daniel também se transferira para Bourges, seguindo o exemplo de Calvino. Sabe-se que o pai estava em sérias dificuldades com as autoridades eclesiásticas em Noyon, tendo sido até excomungado e que, nessa situação morreu. Contudo, não se tratava de um problema religioso, tanto quanto se pode saber, mas de uma questão financeira; ou a falta de prestação de contas devida na administração dos bens da catedral.
A morte de Gerard Cauvin trouxe mudanças nos planos de João Calvino. Não continuaria os estudos t lei que encetara em obediência aos desejos do pai e que, com grande sucesso, conduzira tanto em Orleans como em Bourges.
Dirige-se agora a Paris. Vai dedicar-se aos estudos dos clássicos, ampliar os seus conhecimentos de grego sob a direção do grande professor dessa matéria, Danes; iniciar o aprendizado do hebraico com Vata- ble, ambos do colégio real fundado por Francisco I, indo residir no Colégio Fortet.
Ali se veria também cercado de um grupo de amigos, como Nicolas Cop e outros jovens juristas, intelectuais.
Saíra de Noyon. mas lá ficara o irmão Carlos, motivo de preocupações para Calvino, e que tão mal desempenhara o papel de seu representante no recebimento do dinheiro devido aos estudantes e no encaminhamento dos negócios da família. Foi, por isso, obrigado a tomar dinheiro emprestado do seu amigo e colega Duchemin. O irmão Carlos continuaria ser motivo de preocupação para ele. Começa então a prepa-
rar o livro da sua estréia como escritor, o seu comentário de Sêneca, ou Tratado de Clementia .
Não tinha Calvino 23 anos completos quando o livro foi publicado, em Abril de 1532. Calvino nunca deixou de estudar, de ler, investigar, mas parece que agora em Paris os seus estudos são menos acadêrr” cos. Começava a aflorar-se nele o grande intelectual, o escritor profundo, o crítico penetrante, o analista perspicaz, o filósofo meditativo e o teólogo exato, que havia de ser, insuperável na sua época.
A universidade era nova mas adquiria fama, pois com a proteção de Margarida de Angouleme vinha arrebatando professores de nome como Alciati. E Wolmar também deixara Orleans para integrar o corpo da nova universidade. Era um grande intelectual, professor de grego que se deleitava em ler os clássicos com os seus alunos.
A impressão que se tem, contudo, é que Calvino ficou um pouco desapontado com Alciati. O professo» italiano era um fluente palrador, dono de magnífica retórica, mas quem sabe sem a lógica serena do grande L’Estoile, muito ao sabor de Calvino — metódico e organizado. Wendel, na sua biografia de Calvino, chega a dizer que ele ficou descontente com os pomposos discursos de Alciati, os quais não lhe deixaram de ser úteis, pois que o encontro com esse mestre do direito por certo lhe instilou o gosto pela oratória bem cuidada, brilhante e cheia de enfeites. Uma polêmica parece ter surgido posteriormente entre os adeptos de L’Estoile e os admiradores de Alciati.
Duchemin, colega e amigo de Calvino. publica uma defesa de L’Estoile e pede a Calvino que a prefacie, o que ele faz. Julga-se seria esse o primeiro trabalho público da pena de Calvino de que se tem notícia (1529).16
Em Bourges, Calvino segue a mesma rotina de estudos dedicando-se afincamente aos livros. Passou a estudar grego com Wolmar, algo muito importante para a sua carreira futura. Tem que ir, no entanto, a Noyon, atendendo às notícias da enfermidade grave
de seu pai, a quem assiste até ao final. Há um verdadeiro silêncio sobre a atitude religiosa de Gérard Calvin na fase finaí de sua vida.
Parece difícil pensar que o filho, já nessa altura profundamente influenciado pelas idéias da Reforma, não o tivesse levado ao conhecimento das verdades bíblicas nos últimos dias da sua vida. Calvino, sempre reservado com respeito as coisas mais íntimas da sua vida particular, não nos dá nenhuma informação sobre o assunto.
Percorrendo os fatos da vida de João Calvino com a perspectiva que hoje temos de mais de quatro séculos, é fácil acompanhar os sábios caminhos da providência que, segundo os seus desígnios, vai traçando a rota do homem que, em tempo oportuno, havia de ser instrumento eficaz na realização de uma obra gigantesca, de conseqüências transcendentais.
Os planos, fossem eles de Gérard Cauvin, o pai, para atender suas ambições com respeito ao filho; fossem do próprio João Calvino, em obediência às suas inclinações naturais, eram, acima de tudo, planos de Deus na preparação do instrumento útil, designado pela sábia e soberana vontade do Senhor, para a execução da Sua obra.
Capítulo 4
UM NOVO RUMO
Discute-se a época e a maneira em que se deu a conversão de João Calvino ao Protestantismo.
Teodoro Beza atribui à influência de Pedro Roberto Olivetan, segundo alguns, primo de Calvino, natural de Noyon e tradutor do Velho Testamento do hebraico para o francês, o interesse inicial de Calvino pelas Escrituras Sagradas, as quais passou a ler e, em conseqüência, a sua aversão às superstições da Igreja e o seu afastamento das reuniões dos templos católicos.'7 Nesse caso, essa influência se iniciara muito cedo, pelo menos logo após a ida de Calvino para Paris, onde estaria em contacto direto com Olivetan.
A dificuldade que se encontra em obter maiores informações sobre esse assunto é oriunda da reserva e retraimento de Calvino, que se abstém de tratar de suas experiências intimas.
É ainda Teodoro Beza quem aponta Melchior Wolmar, alemão adepto das idéias de Lutero e entusiasta pela Reform^, professor de grego de Calvino em Bourges, como um outro elo na corrente de influências que o levaram a uma decisão de caráter espiritual. E Beza tem melhores condições de saber a esse respeito, pois não somente foi aluno de Wolmar, em cuja casa conheceu Calvino, como também foi o sucessor de Calvino em Genebra e com ele militou muitos anos. Aliás, Calvino mesmo reconhece essa influência e dedica mai,; tarde a Wolmar o seu comentário à Primeira Epístola aos Corintios, em sinal de gratidão.
Abel Le Franc, parente de Calvino pelo lado materno, professor do colégio de Paris e um estudioso da vida do Reformador, pensa que a sua conversão tenha sido, embora repentina, fruto de um processo demorado, que vinha desde os dias da sua infância no lar em Noyon.
Uma demanda que segundo Penning,18 durou duas gerações entre a catedral de Noyon e a Abadia de' Santo Eloy sobre os direitos das relíquias desse santo, na qual Gérard Cauvin deve ter atuado como procurador da catedral; demanda que transcorreu marcada de violentas agressões de parte a parte e que trouxe desmoralização ao clero, deve ter calado na alma do ingênuo adolescente, filho de Gérard Cauvin, que no entanto era bastante vivo para compreender que havia algo errado em isso tudo.
O seu tratamento do assunto num trabalho sobre relíquias, mostra com ironia e sarcasmo o ridículo delas, como quem conhece de perto o assunto por experiência pessoal. O fato é que desilusões iam-se acumulando através de uma série de ocorrências e, começando a inquietar seu espírito ainda jovem, por isso buscou inicialmente no humanismo a satisfação que desejava, mas estava longe de encontrar.
Sabe-se que Calvino muito cedo começou a estudar as Escrituras e apreciá-las, fazendo delas estudos bíblicos, sem se definir com respeito à posição que devia tomar em relação à Igreja Católica. É bem pos
sível que a sua aceitação intelectual dos princípios da Reforma antecipasse por algum tempo a crise que resultaria na sua posição definitiva. Como intelectual, poderia, à semelhança de Erasmo, a quem admirava, assumir para com as Escrituras Sagradas a atitude de um diletante; para com a Igreja e a religião de sua infância, uma posição de análise crítica, sem, contudo, sair da sua grei.
A obra do Espírito de Deus, conforme o ensino das Escrituras e a interpretação da teologia calvinista, é qüe realiza a conversão verdadeira do homem, embora pará isso utilize instrumentos humanos. Essa obra tem aspectos misteriosos por vezes não inteligíveis a nossa compreensão. Guizot afirma que a despeito da estima que Calvino manifesta por seus mestres e da influência que sobre ele exerceram, nem o direito, nem o saber, nem qualquer das ciências ensinadas pelos professores poderiam satisfazer Calvino. Ele precisava de um alicerce mais sólido, mais consistente sobre o qual assentasse a sua vida.
Numa passagem da Carta de Calvino ao cardeal Sadoleto, o Reformador parece entrar em minúcias com respeito à sua vida espiritual e refere-se à forte influência que sofreu das idéias reformadas, as quais apontavam os erros da Igreja; revela a resistência tenaz que manteve, temendo pela unidade da Igreja; sentindo-se, no entanto, cada vez mais perturbado, mais insatisfeito, mais inseguro. Sadoleto, na carta que dirigia à Igreja e ao Senado de Genebra, imaginou um católico e um protestante diante de Deus, apresentando cada um a sua posição religiosa. Calvino aproveita a deixa do Cardeal e, com muita astúcia, imagina um ministro protestante e um crente comum defendendo os princípios da Reforma, o que supõe que seja uma revelação da sua própria experiência. O ministro responde que fora acusado de dois crimes horríveis, a heresia e o cisma, e defende-se, dizendo que a heresia nesse caso se constituía nos protestos contra dogmas opostos à luz da Palavra de Deus; alega terem muitas coisas sido introduzidas na Igreja em substitui
ção à Palavra de Deus, frutos do cérebro humano. Via entre aqueles que se diziam líderes, falta de conhecimento das Escrituras e pouco interesse por elas, uma vez que tinham inventado muitas coisas inúteis como meios de buscar o favor divino. O discernimento para entender o erro dessa maneira de proceder, vinha da própria luz que o Espírito de Deus fizera brilhar na sua alma através da Palavra.
Com respeito à acusação de cisma, afirmava que a unidade da Igreja que desejava era aquela que começava em Deus e terminava em Deus, pois como Deus mesmo nos recomenda paz e concórdia, Ele mesmo nos mostra o único meio de preservá-la. Desejar, porém, a paz com aqueles que se gabam de ser os chefes da Igreja, colunas da fé, seria comprá-la com a negação da verdade de Deus; pois o Ungido de Deus havia declarado: “Passará o céu e a terra, porém, as minhas palavras não passarão” (Mt 24.35).
Uma outra declaração de Calvino que mais intimamente parece relacionar-se com a sua luta espiritual está no prefácio do Comentário de Salmos, publicado em 1557, portanto, muito depois da sua conversão .
Calvino se considera muito humilde para se comparar a Davi, mas, vê um paralelo entre a experiência da elevação do pastor de Belém à dignidade real e a ação providencial de Deus na sua vida; que o tirou de origens tão humildes para a honrosa posição de ministro e pregador do evangelho. Refere-se aos planos de seu pai para que se dedicasse ao sacerdócio e, posteriormente, estudo de leis, o que fez em obediência exclusiva à vontade dele e contra, ao que parece, à sua própria vontade, no que Deus, afinal, veio em seu socorro, orientando-o em outra direção, de acordo com a sua providência secreta.
Alude Calvino à sua obstinação em apegar-se “a superstições do papado” das quais lhe fora tão difícil sair, tal a profundeza do abismo em que se encon trava. Deus, porém, subjugou o seu coração, tornando-o dócil e dando-lhe gosto pelo conhecimento da
verdadeira piedade, de modo que lhe ardia um grande desejo de alcançar benefícios dela. Calvino estava disposto a abandonar a todos os seus estudos nesta situação, uma vez que não sentia mais interesse por eles. Narra, ainda, a surpresa que teve quando algumas pessoas, desejosas da pura doutrina, o procuravam para aprender dela quando era nisso apenas iniciante. Conta da sua predileção pelos estudos em lugar tranqüilo e quieto, e, no entanto, Deus o conduzia a várias experiências difíceis para que não tivesse repouso em lugar nenhum, conduzindo-o à luz e colocando-o em evidência.
Voltando agora à carta que escreveu ao cardeal Sadoleto, encontramos as palavras que Calvino põe na boca do cristão que passou pela experiência de conversão do catolicismo à fé reformada; experiência que parece ser a de Calvino mesmo: “Quando pareceu que eu tinha feito todas essas coisas, embora em alguns intervalos gozasse de quietude, eu estava longe da verdadeira paz de consciência...”. Continua descrevendo a sua resistência aos ensinos que lhe eram apresentados pelos dissidentes da Igreja até que: “a minha mente agora preparada para dar atenção, afinal percebi como se a luz tivesse caído sobre mim, mostrando-me em que tipo de erros eu tinha andado e quanta poluição e impureza eu tinha assim contraído. Excessivamente alarmado pela miséria em que caira, e muito mais por aquela que me ameaçava na visão da morte eterna, eu, no cumprimento do dever resolvi como primeiro empenho conduzir-me ao teu caminho, condenando a minha vida passada, não sem lágrimas ou sem gemidos, mas ao invés da defesa, suplica fervorosa de julgar-me segundo a deserção e abandono da Tua Palavra. . . ”19 Tudo parece indicar que Calvino está falando de si mesmo, e assim pensam muitos de seus biógrafos.
Sabe-se que Calvino é sempre muito reservado com respeito as suas experiências religiosas, longe de proclamar em linguagem patética o que ocorre no seu íntimo, retrai-se, refugia-se na sua teologia e através de
la expressa seus mais altos sentimentos. Faz-se por vezes a pergunta: como conciliar a reconhecida honestidade de Calvino e a posição inequívoca que ele foi sempre capaz de assumir em face da verdade, com a longa espera para uma decisão definitiva em relação ao seu desligamento da Igreja Católica e dos benefícios que lhe eram atribuídos e dos quais usufruía proventos?
Aliás, costuma-se lembrar que Calvino foi peremptório na condenação daqueles que ele mesmo chamou de “Nicodemitas” — homens como Duchemin e Roussel, os quais embora no íntimo aceitassem a causa da Reforma, permaneciam ligados à Igreja Católica. A Roussel especialmente, Calvino incrimina com severas palavras, dizendo: “Um velho amigo agora empreitado para aceitar o bispado em Oloron”.
Um exame detido dos fatos dará compreensão mais clara da atitude de Calvino, atitude que se observa em outros exemplos de conversão, nos quais, em virtude de certos fatores psicológicos, ela se processa através de uma longa demora até à decisão final. Por vezes, fruto da intervenção de acontecimentos excepcionais que o Espírito de Deus sabiamente utiliza; seria o caso do apóstolo São Paulo, que por tanto tempo resistiu ao aguilhão da consciência até ser tombado por terra pela luz divina no caminho de Damasco.
Como foi difícil ao rabino Saulo de Tarso admitir a verdade do cristianismo, mesmo quando vencido pela argumentação decisiva de Estêvão; mesmo depois de ter testemunhado com os próprios olhos a comovente cena da morte do primeiro mártir do cristianismo, com a serenidade de um santo, o rosto iluminado pela paz interior, preferindo palavras de perdão e de intercessão em favor <âos próprios algozes?! E Paulo afirma que, perseguindo os cristãos, arrastando homens e mulheres aos tribunais, o fazia na ignorância com sinceridade, julgando prestar um serviço a Deus.
Percebe-se que Calvino embora convencido dos erros em que laborava a Igreja — isso começou mui
to cedo — mantinha contudo uma extraordinária resistência ao que seria o rompimento com a sua religião da infância, do lar, da cidade de Noyon, de sua mãe de tão gratas memórias. Parece que a palavra cismático lhe produzia sentimentos de terror e jamais poderia se sentir em paz com a consciência se participasse de um movimento para dividir a suá Igreja. E isto está muito claro na sua carta a Sadoleto quando se refere ao profundo respeito, que sempre mantivera para com a unidade da Igreja: “Uma coisa em particular me fazia avesso aos novos mestres, a reverência para com a Igreja, mas, quando uma vez eu abri meus ouvidos e me permiti ser por eles ensinado, percebi que esse medo de depreciar a majestade da Igreja era sem base; pois eles me lembraram a grande diferença entre o cisma da Igreja e o estudo correto das faltas pelas quais a Igreja mesma estava contaminada”20 Aliás, foi essa sempre a agonia dos reformadores; todos eles mantinham um profundo respeito para com a Igreja e nem de leve lhes parecia possível uma separação dela. Foi exatamente isso que sentiu Lutero, pois o seu pensamento não era dividir a Igreja, mas reformá-la. E quanto esforço não fez nesse sentido! Escreveu Lutero ao Papa, lamentando as condições em que Roma se encontrava e apelando para que tentasse modificá-la.
Calvino sofre influência de muitos elementos, os quais, de uma maneira ou de outra, no todo ou era parte, aceitavam as idéias da Reforma, mas não esta- vam decididos a romper com a Igreja.
Homens como Luis de Tillet, que até chegou a se declarar do lado da Reforma por algum tempo, mas depois retrocedeu, com tristezas para Calvino, que alimentava por ele grande amizade. E Erasmo? Capaz de escrever o “Elogio da Loucura”, tão impiedoso na crítica ao clero; auxiliar indreito da Reforma com a publicação do Novo Testamento grego, entretanto comodista- incapaz de tomar posição clara e definida ao lado dos reformadores. Erasmo admirava Calvino e até chegou a prever nele o homem çfue ainda haveria de dar muito trabalho a Igreja. E Margarida de Valois, que fez da
sua corte um refúgio para os perseguidos cristãos evangélicos, que oferecera proteção a Lefèvre, tirando-os das garras da Sorbonne, para que não fosse levado à fogueira quente, porque defendia a salvação pela fé, a semelhança de Lutero. Margarida não queria jamais uma separação da Igreja.
Lefèvre, contudo, não pensa em se desligar da Igreja Católica, sente entusiasmo por Calvino, admira-lhe a inteligência e vê nele um futuro profeta da era evangélica. No peito, o velho Lefèvre alimentara a esperança de que um jovem como Calvino pudesse produzir o movimento de renovação espiritual a que ele mesmo não se abalançaria a realizar. Calvino para Lefèvre seria o profeta de uma nova ordem; e ser profeta é aquele que propõe pela sua palavra uma visão nova e espiritual, reformadora, e o jovem picárdio de Noyon havia de sê-lo. Lefèvre continuaria na sua man- suetude evangélica, irrepreensível, com o seu saber profundo e sua piedade não fingida, a orar e ajudar a muitos que haviam de ligar a sua vida à causa da Reforma com ardor indomável e coragem, como Farei e Vatable.
Margarida de Valois não mede esforços para salvar a vida dos fiéis adeptos da Reforma. Pessoalmer te dedica-se ao cultivo espiritual, escreve seus piedosos poemas místicos, e com isso provoca as suspeitas da Sorbonne e até mesmo as iras de Beda, que estaria pronto a encaminhá-la às fogueiras da Inquisição; e que só não o faz porque não pode romper com a oposição do irmão de Margarida, o rei Francisco I. Chega a condenar os seus versos como literatura herética porque advoga a salvação pela fé. Margarida, no entanto, não deseja separar-se da Igreja e' mostra-se reservada com respeito a Calvino, quando pensa que o jovem picárdio se encaminha para uma posição cis- mática.
Por pendor pessoal, inato, Calvino nunca seria um reformador no sentido em que o termo se entendia. Nada lhe agradaria mais do que afundar-se nos livros, estudar os problemas, buscar soluções e pro-
clamá-las através da sua pena ágil, dextra e escorrei- ta. O seu papel era iluminar a caminho para que outros mais vigorosos, com maiór disposição para a luta, com vocação para a refrega, empreendessem a caminhada. Não sente pendor e nem disposição física para jogar-se numa disputa encarniçada de vida ou morte. E não o faz até que, arrastado pelas circunstâncias, contrariando a sua vontade pessoal, e escolha, descobre que é debalde lutar contra a vontade de Deus.
Aqueles que têm vivido o romance da vocação ministerial, sabem entender bem isso, porque também lutaram premidos pela visão de sua própria capacidade apoucada e tentaram resistir a todas as forças que os conduziam rumo ao divino chamado, até que descobrissem não haver outra maneira de viver em paz consigo mesmo, e com Deus, se não aceitando o que tantas vezes tinham rejeitado, que, porém, então se revelava de maneira clara e inconfundível como determinação divina.
Mesmo depois da sua experiência de conversão, Calvino sonha estudar teologia, formular cuidadosamente à luz da Bíblia o credo dos novos cristãos, mas nunca assumir o papel de líder inconteste da Reforma na França ou na Suiça como lhe estava providen- cialmente reservado.
Ele era teólogo nato, o pensador, o intelectual por vocação; nada lhe dava mais prazer do que pesquisar cuidadosamente a revelação dos mistérios de Deus nas Escrituras e, no emprego da mais rigorosa exegese, à luz dos textos originais e em comparação com o pensamento de homens como Agostinho formular uma dogmática evangélica precisa e exata.
Calvino havia de fazer isso, mas não como pensava; a sua teologia não haveria de ser acadêmica, de gabinete, e que talvez a fizesse árida, sem valor permanente, sem aplicação prática. O gênio de teólogo iria se exercitar no fragor de uma luta de sangue, de lágrimas, de sofrimentos físicos, de pressões inimigas constantes, para que, assim, a teoria fosse
sustentada pela prática e a sua obra, por isso mesmo, resistisse a todas as vicissitudes do tempo.
Não é por sua escolha que vai para Genebra, se não pela violenta admoestação de Farei, de que estaria fugindo a uma ordem divina e que não O poderia fazer temerariamente. Sim, Farei, o homem que fora conduzido a sua conversão por Lefèvre, o tímido Lefèvre! Recorda-se que a ele, Farei, Lefèvre dissera um dia: “meu filho, somente pela graça”, — o bastante para acender no coração ardente do jovem impetuoso a luz verdadeira do evangelho. ,
Ninguém mais conteria Farei, movimenta-se em Paris, forma um núcleo de evangélicos; vai para Basiléia, percorre outros lugares e chega a Genebra, onde produz uma verdadeira revolução que Calvino jamais poderia realizar, mas que ele, Farei, não pode consolidar, e, para tanto, precisa do teólogo das Insti- tutas.
Quanto mais preferiria recolher-se ao silêncio de uma biblioteca e garimpar nas minas das Escrituras o profundo sentido do evangelho! Quando expulso de Genebra, embora humilhado e ferido, sente, no entanto, o alívio, pois agora pode fazer o que tanto desejava quando alí chegou.
A vista de tudo isto, torna-se mais fácil entender o processo demorado do rompimento definitivo de Calvino com a sua igreja de origem.
Retraído por temperamento, honesto para com Deus e para consigo mesmo, nutrindo um grande amor para com a Igreja do Senhor, não quer romper com ela, e só o faz na absoluta consciência de que segue indeclinável a orientação divina para a sua vida.
Há lampejos admiráveis nesta longa trajetória de Calvino que valem a pena lembrar.
De uma feita, em Poitiers, celebra a Santa Ceia em lugar escondido, uma caverna, segundo consta, com um grupo de evangélicos, com a mesma simplicidade bíblica de que a cerimônia se revestia na igreja primitiva: Lê uma passagem dos evangelhos alusiva ao sacramento e preside à cerimônia sem as for
malidades da missa, o pão é consagrado e exposta a doutrina da Ceia do Senhor. Haveria nesse ato qualquer incongruência inexplicável com a posição de Calvino até então? E Doumergue lança luz sobre o assunto, quando nos conta que Calvino num debate a respeito da Santa Ceia com Carlos Lesage, apontava para a Bíblia dizendo: “Aí está a minha missa e, descobrindo-se, erguia os olhos ao céu como numa angus- tiosa oração, clamando: Senhor, se no dia do julgamento Tu me reprovares por que eu não tenho estado presente à missa e eu a tenho abandonado, com justiça dizei: Senhor, Tu a não ordenaste; aqui está o Teu livro, aqui estão as Escrituras, que são as regras que Tu me tens dado, na qual não pude achar outro sacrifíció, senão aquele que foi ofertado na cruz”.21
É o gemido de um coração ansioso pela absoluta claridade, a qual vislumbra ainda em meio a nuvens de dúvida e confusão. É um homem absolutamente sincero, mas que não possui ainda a luz completa do dia perfeito.
Como bem aponta Walker, embora haja dificuldades de entender o processo de desenvolvimento religioso e conversão de Calvino, não há nenhuma dúvida quanto ao resultado final: “Nenhum líder religioso da era da Reforma se apresenta mais claramente definido do que ele, Calvino, em todos os aspectos de caráter espiritual, nos seus anos de maior maturidade. O processo, porém, pelo qual Calvino passou do status de um estudante sustentado por fundos de organizações eclesiásticas romanas e aceito como membro do clero romano, mesmo sem ordens clericais, àquela posição de líder do protestantismo, é difícil de seguir em minúcias, em parte por razões da reticência do próprio Calvino com respeito a tudo que concerne às suas experiências íntimas; parcialmente porque os seus primeiros biógrafos, não intencionalmente, distorceram os fatos da sua primeira vida religiosa, e, parcialmente também, em conseqüência das várias interpretações que modernos historia
dores têm dado às indicações escassas existentes do seu desenvolvimento espiritual.
Muito bem, os últimos momentos de Calvino atestam como também a espinhosa carreira em Genebra, com rastos de sangue, a sua mais completa entrega a Cristo Jesus, fruto duma conversão legítima, tenha- se ela dado mais cedo ou mais tarde em sua vida, não importa.
Dentrq dele, nos recônditos da sua alma aflita, r voz irresistível do Espírito ressoou com clareza inconfundível o chamado de Deus, e ele obedeceu com humildade esse chamado para entregar-se inteiramente ao seu Senhor, como ele mesmo expressou em uma de suas obras: “Cor meum tibi ddbo".
Capítulo 5
PEREGRINAÇÕES DE CAL VINO
Passemos, em retrocesso» uma vista nesse período tão incerto da vida de Calvino. De Bourges, interrompendo os seus estudos, Calvino tem que ir a Noyon, aonde a enfermidade de seu pai o chama e onde permanece até a morte de Gerard Cauvin. O desaparecimento do progenitor marca como que um novo capítulo na vida do filho.
Há, possivelmente, negócios que o detêm alí por um pouco de tempo mais. Gérard Cauvin não estava apenas enfermo, gravemente; estava em sérios conflitos com o capitulo da catedral, conflitos que resultaram na sua excomunhão. Se essa situação de caráter econômico e moral tinha qualquer coisa que ver com a sua enfermidade, não sabemos. Ainda aqui Cal-
vino é mais uma vez, como do seu feitio, absolutamente discreto.
É nesse período que escreve ao grande amigo Du- chemin e lhe dá conta, sem maiores minúcias, do agrar vamento da saúde do pai.
Não voltaria mais Calvino aos estudos de direito, pois estava livre do compromisso de satisfazer a vontade paterna, e podia agora dedicar-se à carreira de sua preferência. O seu pendor natural era para letras clássicas, seguindo a linha humanista da época. Vai para Paris, reinicia os estudos de grego, começa a estudar hebraico, prepara-se para estreiar no mundo das letras com o seu comentário de Seneca, “De Clemen- tia”. O interesse no hebraico que já vinha de algum tempo, tinha relação, por certo, com a preocupação de melhor entender a Bíblia no que diz respeito ao Velho Testamento “De Clementia”, como veremos mais tarde, era uma obra de teor humanístico, que no aspecto ético bem se enquadra ao sabor de Calvino, que encontra na filosofia do estóico latino algo que se afina com a sua inclinação natural para uma vida de sobriedade e cultivo de virtudes.
Até então, Calvino era um expositor bíblico sem maiores responsabilidades, a não ser o dever de consciência que o impelia a buscar, para si e para os outros, na palavra de Deus os ensinos de uma vida cristã verdadeira.
Começara com grandes sucessos essa missão em Orleans, continuara quando em Bourges numa pequena vila próxima, Laviere, e prossegue em Paris. Podíamos dizer que nessa altura era apenas um católico, que a semelhança de Lefèvre, tomara uma posição diferente, livre das peias da dogmática e cerimonialis- mo católicos.
Em Paris vai residir em casa de Etienne de La- forge, rico negociante, ardoroso adepto da Reforma, onde os perseguidos reformados costumavam se reunir, um tanto sigilosamente. Calvino passa, então, a ser o preletor dessas reuniões.
Étienne há de ser mais tarde vim dos mártires da cuasa do evangelho, pois morre queimado, vítima das
repressões violentas que de quando em quando se dirigiam contra os cristãos reformados.
Um novo incidente vem imprimir rumo diferente na vida de Calvino. O reitor da Universidade de Paris era então Nicolas Copp, filho de Guilherme Copp, um médico de grande talento, natural de Basiléia, que chegara mesmo ser o médico do rei da França. Calvino se tornara, desde os primeiros anos em Paris, amigo e freqüentador dessa família, especialmente de Nicolas. Essa amizade não haveria de se extinguir enquanto vivesse. Nicolas, mais velho do que Calvino quatro anos, brilhante intelectual, professor de filosofia na Universidade de Paris, encontrou em Calvino afinidades que os ligaram permanentemente.
A 1.° de novembro de 1533, dia de Todos os Santos, o reitor, cumprindo um costume de praxe, devia fazer um discurso. Pareceu-lhe ocasião própria para expor idéias que alimentava em dissonância com a rígida ortodoxia da Sorbonne. O discurso revela simpatias com o pensamento de Lutero. A Sorbonne o repele e toma providências imediatas, contra o “traidor”. O parlamento o convoca para que sé defenda. Avisado do perigo, Copp foge para Basiléia.
Calvino, tido como autor, ou co-autor do discurso, escapa, por pouco, à busca das autoridades que acabaram vasculhando o seu quarto e apreendendo seus livros. Oculto na casa de um vinhateiro, de lá sai disfarçado, com roupa de agricultor, uma enxada às costas. Dirige-se inicialmente para Angoulême. Luis Tillet, o cônego da catedral, concede-lhe refúgio e põe à sua disposição uma grande bbilioteca. Supõe-se que foi ali que Calvino começou a escrever a sua primeira edição das Institutas.
Dali vai para Nerac na Gascônia, refúgio de muitos protestantes que a rainha de Navarra acolhia, entre eles Lefèvre, vítima também das perseguições da Sorbonne, por causa de sua simpatia pelas idéias reformadas.
Durante esse período, visita Calvino a sua terra natal, Noyon, e, segundo alguns, é preso como resulta
do de um tumulto na Igreja da Trindade. Não se conhece a razão exata pela qual Calvino foi preso. Pensa-se, todavia, que as notícias de seu envolvimento com o movimento da Reforma fossem conhecidas já em Noyon e isso provocasse o motim e, consequentemente, a sua prisão.
A sua soltura deve-se talvez às amizades de que desfrutava ali e, especialmente, com alguns do clero. De Noyon voltou a Paris, ocasião em que marcou uma discussão com Servetus, à qual este não compareceu. Volta Calvino a Orleans, onde visita amigos. Vai posteriormente a Poitiers, onde por algum tempo se reúne com um grupo evangélico e faz exposições das Escrituras, e celebra com esse grupo a Santa Ceia à maneira dos cristãos primitivos, em uma caverna. As reuniões eram mais ou menos sigilosas para evitar perseguições.
A severa investida contra os “hereges” como resultado do aparecimento em Paris dos CARTAZES (18 de outubro de 1534), que atacaram de maneira sarcástica e insultuosa a missa, mostrou que a França estava se tornando cada vez mais difícil para os evangélicos.
Calvino foi para Estrasburgo, e daí para Basiléia (1535), onde estaria fora do alcance da Sorbonne. é aí que Calvino publica a sua primeira edição das Ins- titutas (1535-1536). Logo depois segue para Ferrara, onde os protestantes se abrigavam sob a proteção da Duquesa Renée de Ferrara, amiga dos reformados. Nesse tempo alí se encontravam muitos outros refugiados.
Sabe-se que Calvino esteve em Aosta, uma pequena cidade da Itália, de onde saiu perseguido. Um período de trégua na perseguição dos “hereges” na França permitiu-lhe uma rápida visita a Paris, onde tinha negócios a tratar e, daí, a Noyon, com a mesma finalidade, isso em junho de 1536.
Levando em sua companhia o irmão Antônio e a irmã Maria, Calvino saiu para fixar residência, possivelmente em Basiléia. A passagem forçada por Gene
bra mudou os seus planos» conforme veremos posteriormente, pois assim determinava a divina Providência.
Capítulo 6
CAL VINO EM GENEBRA
Torna-se difícil elucidar certos passos de Calvino quando os autores mais fidedignos não têm informações precisas, mesmo porque Calvino, sempre reticente e parcimonioso quando se trata de sua pessoa, — traço natural de sua personalidade, — nos deixa de fornecer a informação exata.
Procura-se conhecer um pouco mais de sua viagem a Ferrara, que parecia ser de seu desejo prolongar por algum tempo, mas, que acabou sendo curta, pois ele mesmo diz que entrou na Itália para sair logo depois. Guizot nos informa que era intenção de Calvino pregar a Reforma na Itália, a cidadela da Igreja aiitiga, sob a proteção de Renée, filha do rei da França.
A duquesa de Ferrara era filha de Luiz' XII, protetora dos reformadores, esposa do duque de Ferrara, Hercules D’Este, o qual, pelo menos aparentemente, tolerava por algum tempo essa situação. Renée era uma mulher culta, intelectual, afeita ao estudo de línguas, geometria, astronomia e filosofia. Menos mística do que Margarida, sua prima, acabou aceitando o protestantismo» depois de demorado exame. Ali Calvino encontrou outros refugiados protestantes.
A sua situação era muito delicada, por isto adotou um outro nome; costume embora estranho para nós hoje, mas perfeitamente comum e compreendido no tempo. Vários outros homens de importância usaram desse expediente para não cair nas garras da Inquisição. Mais tarde, a duquesa tendo ficado viúva, no seu castelo em Montangues, ocultou muitos calvinis- tas; alguns homens de alta posição.
Guizot nos afirma que o neto da duquesa, o duque de Guise, cercou o seu castelo e a intimou a entregar os refugiados (1562), ao que ela lhe mandou dizer: “Veja o que está fazendo. Saiba que a não sero rei, ninguém tem direito de me ditar ordens; se quiser pôr em ação sua ameaça, eu serei a primeira a entrar na brecha Quero ver se tem ousadia suficiente para matar a filha do rei, cuja morte os céus hão de vingar em você e seus descendentes, até as» crianças no seu berço” .22
Calvino nunca se mostrou indiferente à participação da duquesa na proteção dos reformadores e tornou-se seu conselheiro e pastor, por correspondêncir em momentos muito difíceis ria sua vida. É ainda Guizot que nos afirma que Calvino pregou em alguns lugares no interior da Itália, mas teve que sair sob a perseguição que quase o apanhou. Refere-se a Pied Monte na vizinhança de Aosta, onde Calvino pregava na casa de uma família de alta posição, de onde teve que escapar rapidamente, atravessando uma passagem perigosa nos Alpes, perseguido pelo Conde De Chalan que com uma espada na mão o buscava por toda a parte.
Cinco anos mais tarde (1541), uma cruz foi erguida na principal rua de Aosta, marcando o lugar de onde Calvino saiu perseguido, com a inscrição latina: “Hinc Calvini Fuga”. Outros lugares são marcados como pontos históricos da sua visita
Há um outro incidente da vida de Calvino que é também cercado de dúvidas e sobre o qual muitos autores preferem silenciar por falta de informações seguras. Afirma-se que Calvino foi preso em Noyon em 1534. Qual a razão? Querem alguns que ele tenha tentado pregar a Reforma na Catedral, o que provocou uma violenta reação contrária por parte do povo. Dou- mergue, sempre bem informado nesses assuntos, não aceita essa versão. Investigações nos arquivos de Noyon, não descobrem nenhuma acusação formal contra ele que o levasse a prisão. Deve-se lembrar que o irmão mais velho de Calvino fora acusado de heresia e excomungado pela Igreja. É difícil que nessa altura, já em Noyon, as inclinações de Calvino para a Reforma não fossem conhecidas. As notícias de heresia vinham de longe e acompanhavam ou precediam os envolvidos na Reforma onde quer que iam.
Parece que a sua permanência em Noyon se prendeu à enfermidade do pai e às necessidades depois da sua morte de cuidar de algumas questões materiais. A verdade é que Calvino foi para Paris e, certo de que a sua pátria não lhe oferecia segurança depois de se ter tornado conhecido como franco adepto das idéias reformadas, resolveu deixar Paris, viajando com seu irmão Antônio e sua irmã Maria.
Partiu Calvino sem muita certeza aonde iria fixar residência — como Abraão partiu sem saber para onde ia.
Obedecendo a uma inclinação natural, pensava buscar um cantinho sossegado onde pudesse, no silêncio tranqüilo das bibliotecas, longe das ameaças que recebia, estudar mais e continuar servindo à causa da Reforma; não como um franco atirador, ou um líder, mas com a sua pena, na formulação apurada da dou
trina, o que já iniciara com a primeira edição das Ins- titutas.
A terra natal, Noyon, ficava para trás. Seu irmão mais velho já morrera e fora sepultado, rebelado contra a Igreja e por ela abandonado, apesar de sacerdote, depois de uma vida que em nada honrava o nome da família. Seu pai lá ficara também sepultado, depois de conflitos sérios com a Igreja e excomungado. É bem possível que movido por um respeito filial que sempre demonstrava, embora não assumisse a defesa do progenitor, numa causa ingrata e pouco defensável, nas questões com a corte eclesiástica e a catedral, talvez se sentisse humilhado, envergonhado com o fim lúgubre a que chegara Gerard Cauvin, seu pai. Deviam ter sido dias de muita agonia e constrangimento para Calvino ali junto ao leito do pai, moribundo.
É fácil entender a posição incômoda, nesta situação, face aos amigos da infância, os Hangests. Cumprido o dever de sepultar o pai, ele e os irmãos sentiram que era preciso buscar outro lugar e esquecer Noyon. Estrasburgo ou Basiléia pareciam estar na mente do futuro reformador como possíveis lugares de morada fixa. Ambas ofereciam condições ideais para o seu plano de atividades intelectuais. Ambas as cidades eram então redutos de reformados foragidos; muitos deles intelectuais idealistas e ardorosos; estudantes e expositores das Escrituras.
Pensava aperfeiçoar as suas Institutas, ampliá-las como acabou fazendo posteriormente, dando aos cristãos refugiados um corpo de doutrina coerente, fundamentado nos ensinos bíblicos. Seria a sua contribuição à causa da Reforma.
Deus tinha outros planos para sua vida. Deus iria exigir dele muito mais do que Calvino estava pensando oferecer. O caminho mais curto para Estrasburgo estava naquela ocasião impedido.
Feriam-se batalhas entre os dois poderes em luta na época — o Imperador Carlos V e o Rei FranciscoI da França. Foi-lhe necessário passar por Genebra.
Uma necessidade aparentemente acidental, segundo pensava Calvino; mas urgente e irreversível nos desígnios de Deus. Alguns afirmam que Calvino hospedou- se em casa de Viret, então um dos ministros da cidade; mas a sua presença ali foi descoberta por Tillet. Outros crêem que ele estivesse hospedado em uma pensão onde Tillet o descobriu. Beza nos diz que Calvino foi visitar Tillet e Farei, como os homens fazem uns aos outros. Até então, de tudo que se sabe, Genebra não oferecia nenhuma atração especial a Calvino, pelo contrário, era o lugar menos indicado para uma vida de recolhimento e estudo. Acabava Genebra de se libertar do jugo discricionário do duque de Sabóia e da tutela de ferro do bispo, seu aliado. Uma luta de morte em que alguns patriotas deram o seu sangue, como Bertelhier. Não fora a ajuda de Berna e a batalha teria sido perdida. Berna, no entanto, auxiliara os genebrenses, não somente porque temesse o poder do bispo e do duque, mas também o fizera com segundas intenções, no desejo de assumir jurisdição política sobre a cidade. Genebra, todavia, outra coisa não almejava, senão a inteira autonomia.
Guilherme Farei, mais de uma vez arriscara a vida na pregação do evangelho ali, o que afinal acabou dando grande resultado. De uma feita, a armadilha engendrada pelo vigário geral (1532), tinha por fim tirar-lhe a vida; se amigos não o avisassem e o concilio não interferisse, a sua morte teria sido certa. De outra feita, quiseram lançá-lo no rio Ródano, uma das maneiras comuns de liquidar com os indesejáveis.
Estava ali Farei enfrentando o grande problema de estabelecer definitivamente a Igreja, mas sentindo- se insuficiente para tanto. Longe estava ele de ser o líder capaz de consolidar em termos positivos e permanentes o grande triunfo alcançado. Ele que enfrentara o ódio do clero, mas que acabara sendo levado pelo povo para pregar na Igreja de São Pedro, onde por tanto tempo os católicos pontificaram, fazendo do púlpito daquela igreja o seu trono, tinha agora, sobre os ombros a tremenda carga de estabelecer ali uma
Igreja, nos moldes evangélicos e bíblicos como concebia.
Uma extraordinária virtude possuia Farei para aquela situação,,, virtude que demonstrou mais uma vez — humildade para reconhecer suas próprias limitações e alegrar-se com o surgimento de alguém que pudesse fazer o trabalho, que por si só não poderia desempenhar. Calvino chegara na hora providencial, exata.
Farei vinha sentindo a necessidade de alguém que o pudesse ajudar naquela emergência. Viret não se dispunha a ficar, embora tivesse sido companheiro eficiente na sua grande luta inicial. Ao saber de Calvino, Farei foi imediatamente à sua procura.
É curioso notar que Tillet parece ter sido o portador da notícia de que Calvino estava na cidade; o mesmo Tillet que voltaria da sua posição de adepto da Reforma para a Igreja Católica.
Para Farei, a presença de Calvino ali era uma resposta às suas orações. Aquele homem que Stefan
Zweig descreve como “feio, barba vermelha, cabelo indomável” ,23 dirigiu-se imediatamente, a procura de Calvino com a resolução firme de não deixar escapar de suas mãos o elemento que, cria firmemente, haveria de realizar a obra para a qual se sentia pequeno demais Por isso afirma Wendel, não se pode subestimar, como se tem feito, o importante papel de Farei na reconstrução de Genebra. Menos dotado do que Calvino, menos metódico do que ele, mas ousado, valente, de grande decisão, teve o mérito de não só preparar o terreno com ingente sacrifício, mas também de agarrar o homem certo para consolidar a vitória que tinha alcançado, mas que não tinha condição de conservar.
É por demais conhecido o incidente do encontro daqueles dois homens — Guilherme Farei e Calvino. Insistia Calvino em dedicar-se aos estudos e em não aceitar de maneira alguma o convite do seu colega V para ficar em Genebra e com ele trabalhar na implantação definitiva da Reforma naquela cidade sui-
ça. Impaciente com as desculpas de Calvino, Farei íoi ao ponto de ameaçá-lo, dizendo que Deus o castigaria por essa fuga comodista à convocação divina. Tão incisivas foram as palavras de Farei que Calvino sentiu, como ele mesmo diz, parecer que Deus o agarrava com a mão para aquele trabalho.
Genebra nesta época contava com uns doze mil a quinze mil habitantes. Segundo Guizot, “dentro dos seus estreitos limites se encontravam todas as crises, todos os problemas grandes e pequenos que podem agitar uma sociedade” .24 Duas coisas chegavam ali ao mesmo tempo — o bafejo da reforma religiosa e a liberdade política; aliás, intimamente ligadas uma a outra. O poder que antes dominava Genebra era político e clerical, tirano, sem prestígio moral e sem idealismo. A tarefa de banir um foi tarefa de banir os dois.
Longe estava Calvino de entender as condições reais que o esperavam. Nem mesmo Genebra tinha, àquela altura, capacidade de conhecer o grande momento histórico que vivia, quando Calvino ali pôs os seus pés. Era ele inteiramente desconhecido. Não fora a insistência e a teimosia de Farei, e o conselho da cidade não teria abonado o seu convite ao desconhecido francês. Sim, tão desconhecido, que nem mesmo o nome de Calvino tinha qualquer sentido. O secretário das atas do concilio ao registrar a sua contratação não lhe lembrou o nome e apenas escreveu: “IUe gallus” — o francês.
Mackinnon afirma que até então nem mesmo Calvino tinha descoberto as qualidades de líder de homens que ele próprio possuía.25 Modesto e despre- tencioso, rejeitara a posição de pregador que lhe quiseram atribuir, aceitando apenas a de “Professor de Literatura Sagrada”. Como dizia mais tarde, sentia- se então como um aprendiz.
Não demorou muito, logo já participava ativa mente da pregação e da organização eclesiástica da Igreja de Genebra. As necessidades eram muitas. Havia urgência de um ministro qualificado para a evan-
gelização e cristianização da cidade, problemas que continuavam a preocupar Farei, mesmo depois da chegada de Calvino.
Em uma carta dirigida a Fable datada de 1536, Farei afirma que vinha recebendo encomendas de um ministro de todos os lados sem poder encontrá-lo. E lamenta que “os super delicados” não querem vir para essa terra; preferem ser enterrados no Egito a seguir a coluna no deserto.
Calvino conseguiu trazer para Genebra Courault, que antes trabalhara em Paris e então se encontrava em Basiléia. Courault era cego e já idoso; mas era eloqüente, persuasivo e bom evangelista.
O primeiro trabalho de Calvino, muito a seu feitio, foi redigir um manual de doutrina cristã para a Igreja de Genebra. Desse trabalho aproveitou, em parte, o que já tinha sido feito por Farei, em língua francesa. Uma idéia estava muito clara na mente de Calvino, desde que intentou escrever as Institutas — estabelecer os limites exatos que separavam os evangélicos da Igreja Católica, no que diz respeito à doutrina e à prática.
O Concilio de Trento, convocado especialmente para lançar uma investida oficial e dogmática contra a Reforma, iria mais tarde firmar sua posição, isto é, a posição do papado, de modo a responder aos desafios da Reforma, estabelecendo os seus próprios dogmas. Calvino se antecipara nisto, pois no seu entender era necessário não somente poupar os verdadeiros reformados das acusações indevidas que lhes eram assacadas e que se aplicavam a certos grupos dissidentes exaltados, fanáticos; como, ao mesmo tempo, fornecer aos verdadeiros evangélicos a razão da sua fé solidamente calcada na Escritura Sagrada. A Igreja devia saber o que cria e que a sua regra de fé infalível era a Palavra de Deus. A doutrina não era sua, mas da Bíblia; dela cuidadosamente extraída com os recursos da boa e legítima exegese; com o conhecimento das línguas originais; dentro dos princípios da boa hermenêutica e da lógica.
Logo depois de chegar a Genebra, Calvino participava de um encontro em Lausanne que o Concilio de Berna promovera para instrução dos ministros nos princípios da Reforma. O convite foi estendido a todos os padres naquele distrito e alguns dos mais hostis à Reforma tentaram uma emboscada no caminho para assassinar os protestantes; o que não ocorreu porque o plano foi descoberto antes. Esse encontro ofereceu a Calvino oportunidade de fazer uma exposição bíblica, convincente sobre a Santa Ceia, em que a transubstanciação foi combatida de modo claro e irretorquível.
A capacidade de Calvino para expor as Escrituras ia se tornando conhecida. O encontro de Calvino com Genebra haveria de produzir reações favoráveis e desfavoráveis dada a complexidade dos problemas em que se envolvia a cidade, fruto em grande parte da situação anterior Quando, em 1536, Calvino publica a sua pequena confissão de fé, a introduz com as seguintes explicações: “Neste estado confuso e dividido em que se encontra a cristandade, julguei útil houvesse o testemunho público pelo qual as igrejas, embora separadas pelo espaço, concordes na doutrina de Cristo, possam mutuamente reconhecer umas as outras”.
Quais foram as circunstâncias que tornaram a primeira tentativa de Calvino e Farei em Genebra num fracasso, senão total e permanente, pelo menos temporário e parcial? As razões eram muitas. Calvino pensava na igreja ideal, uma cidade de Deus, algo superior à “Utopia” de Thomas Moore ou à “República” de Platão. No entanto, qual era a situação real de Genebra quando ali chegou?
Através de uma longa e acirrada luta de três décadas contra a tirania do Duque de Sabóia — que apesar de ser autoridade secular se sujeitava quase a uma condição de vassalo do prepotente bispo que de fato governava — Genebra conseguira dele se libertar, de modo que a luta se desencadeara com fei
ções, não apenas política, mas religiosa, dado o envolvimento do bispo.
Em 1526, expulsas as forças do duque e do bispo, embora permanecessem na cidade esses dois tiranos, estavam com seus poderes tão limitados, que foi reorganizado o governo com o concilio de duzentos, à semelhança de Berna, mas agora coadjuvado por um concilio menor, e uma assembléia do povo. Nenhuma autoridade lhes restava.
Parei, que até então se encontrava em Berna após um ministério evangélico arrojado e bem sucedido em outros lugares, resolve visitar Genebra em companhia de outro pregador, Saumier, onde, Olivetan já vinha pregando com algum sucesso. Era muito difícil Parei permanecer quieto, sabendo de uma população como a de Genebra, onde ele bem sabia a pressão clerical e a desmoralização do clero preparavam o caminho do evangelho, onde gente da sua língua poderia ouvir dos seus lábios novas da salvação que ele encontrara para si mesmo. O seu método era agressivo. Não somente expunha a verdade do evangelho, mas, de acordo com as suas características pessoais, atacava com severidade o erro; castigava os vícios do clero; combatia o culto das imagens, de modo que o seu esforço inicial encontrou seria hostilidade por parte dü povo instigado pelo clero. Ameaçavam áfogá-lo no rio Ródano, e acabou expulso da cidade com Saumier e Olivetan.
Uma outra tentativa sua surtiu um melhor efeito, até que, com o surgimento de interessados na causa dà Reforma, sob a intervenção direta das autoridades de Berna, teve licença de continuar pregando em Genebra. O bispo e o duque não desistiam de lutar pela reabilitação de sua autoridade. Isso levou o concilio, sob a proteção de Berna, a convocar uma discussão pública, na qual explodiu a violência por parte da massa popular, que invadiu a catedral de São Pedro e praticou atos de iconoclastia e vandalismo. Afinal, os dois concílios, reunidos, resolveram adotar em 1536
a doutrina reformada. Triunfava desse modo, legalmente, a Reforma.
Farei era conhecido como o “azorrague dos padres” pela franqueza da sua pregação, pela sua coragem desmedida, capaz de arriscar a vida como de fato arriscou, em prol da Reforma.
Era um triunfo, sem dúvida, mas longe estava Genebra de ser uma cidade evangélica. O culto reformado, e um sistema educacional compulsório, agora sob a direção de Saumier, e um conjunto de regras adotadas, favoreciam o esforço da causa evangélica.
A assistência aos cultos se tornava obrigatória e medidas se tomavam para a moralização dos costumes da cidade. Deve se lembrar que, a despeito da insatisfação geral do povo com o cruel regime que por longos anos dominava a cidade, havia, no entanto, aqueles que, por uma razão ou outra, .continuavam fiéis ao duque e ao bispo. Lá dentro ficava parte do clero descontente com a perda de privilégios. Além disso, uma reforma de cunho político não produz efeitos morais e espirituais necessários, que somente a transformação individual de cada cidadão pela ação do Espírito de Deus pode trazer. Como afirma Walker: “Genebra estava longe ainda de ser protestante por condição doutrinária” .26
A grande imoralidade praticada pelo clero, que tão mau exemplo perpetrara na sociedade, tornava impossível uma transformação rápida, apenas por decisões de caráter governamental. O felicíssimo moto que a cidade escolhera em meio às efusivas manifestações de regozijo pela sua libertação, era menos uma realidade presente do que uma afirmação profética: “Post Tenebras Lux” — depois das trevas a luz. A luz conseguia apenas entrar por algumas frestas, esguia. As condições em que a cidade se rendera à reforma exigiam medidas certas, bem calculadas para a sua consolidação. Calvino sabia que uma decisão tomada em assembléia, no calor- de uma explosão festiva, por uma população que começava a sentir o alí
vio da libertação de um jugo pesado e desumano, não era bastante.
Beza nos conta que Calvino procurou logo obter uma reunião de todo o povo, na qual houvesse da parte da cidade inteira uma abjuração aberta do papado e um juramento público da aceitação da religião cristã, de sua disciplina, formulada sob alguns temas principais. Houve a reunião, mas não com a influência que Calvino desejava. Um grande número se recusou a isso, como era de se esperar de uma cidade que acabava de ser libertada da pressão do duque e do “Anti-Cristo”, onde tantas divisões havia.
Em 20 de julho de 1537, o Senado e o povo d< Genebra solenemente declararam sua aceitação das principais doutrinas e disciplinas da religião cristã.27 Restava agora que o catecismo e a confisssão de fé, que o povo em geral e o concilio tinham aprovado, fossem confirmados por uma subscrição individual. Alguns oficiais do governo foram destacados para visitação das casas, a fim de obterem a assinatura inr dividual dos documentos. O resultado foi de todo insatisfatório. Muitos se recusavam sob várias alegações. Promoveu-se uma reunião dos habitantes da cidade, por bairros, como escalonamento em dias diferentes. Essa medida também fracassou, pois o com- parecimento foi pequeno. Começou o concilio a pei- ceber o desacerto dessas medidas e resolveu afrouxaras exigências.
Posteriormente, o concilio chamou a si a jurisdição da comuna em assuntos morais e religiosos; contrariando dessa forma a posição de Calvino, que sempre julgou o poder civil incapaz de resolver assuntos morais e religiosos, os quais deviam caber à Igreja, por suas autoridades ou consistório, como mais tarde se veio a fazer.
Compreende-se que, segundo os padrões estabelecidos por Calvino e seus companheiros de ministério, havia em Genebra, como herança de tempos passados, costumes inconvenientes e práticas detestáveis, incompatíveis com a ética cristã. Havia bebedeira, dis
cussões, adultérios, etc. . . A prostituição era oficializada, sancionada pelas autoridades. Os prostíbulos eram supervisionados por uma mulher eleita pelo concilio, que recebeu do povo o nome de “rainha do bordel”. Além das bebedeiras.e dissoluções, jogos, a quebra do domingo, os casamentos e outras festividades celebradas com pouca discrição e muita pompa, fugiam ao recato e modéstia que os reformadores, segundo o seu entender, julgaram necessário estabelecer numa sociedade verdadeiramente evangélica.
Em Berna se fizera assim, a decisão pública foi conduzida pelo concilio e levada à aceitação geral em 1528. A doutrina reformada, contida em dez artigos, introduzia o culto evangélico à maneira reformada sob a orientação sábia de Haller.
Em Basiléia, já há muito que a reforma se firmara, debaixo para cima, pois fora o povo que exigira do concilio a adoção do culto reformado e outras medidas.
Em Genebra os pregadores se serviam do púlpito não somente para condenar os males alí existentes, mas também para censurar as autoridades que negligenciavam a repressão desses males de modo eficaz. O descontentamento foi crescendo contra Calvino e Farei da parte do povo, bem como do concilio que deles ia se afastando cada vez mais, tomando iniciativas de reprimi-los.
Nas eleições que se deram em 1538, a oposição a Calvino e a Farei obteve fácil vitória, aumentava no concilio o número dos elementos favoráveis a uma atitude mais liberal com respeito aos costumes. Alguns problemas vieram agravar a situação de Calvino e seus colegas de ministério. Uma delas foi a questão da Santa Ceia, que na opinião dele não devia ser ministrada a quem estivesse em estado de pecado notório. Incluía-se na lista destes pecados, o jogo de cartas, o excesso na maneira de vestir e nos penteados. O concilio no entanto, decidiu que só não participariam da Santa Ceia aqueles que, por sua decisão
própria, se afastasse, todavia não admoestava o povo contra a crítica que se vinha fazendo aos pregadores.
Calvino dizia que preferia morrer, a estender os elementos da Sagrada Comunhão a quem estivesse em pecado grave.
Uma outra questão veio agravar a posição, já pouco segura, de Calvino e seus companheiros. Ca- rolli, um homem que, tendo aderido à causa da Reforma, por mais de uma vez voltara a Igreja Católica, estabelecera-se por algum tempo em Genebra; agora, na qualidade de cristão reformado, onde a sua falsidade se tornou evidente, que lhe valeu a censura de Farei. Não somente o seu procedimento moral era reprovável, mas chegou a ser apanhado em apropriação indébita de fundos destinados aos pobres. Apesar disso, conseguiu, indo para Neuchatel, ser feito ministro da igreja, onde se casou. A sua duplicidade foi-se aos poucos revelando, mas com a ousadia e desenvoltura que lhe eram peculiares, conseguiu superar as suspeitas que contra ele começaram a surgir, e preparar um plano de vingança contra Farei e Víret, que o tinham reprovado pelo seu procedimento incorreto e desonesto. Nova acusação surgiu contra ele na assembléia, dessa vez, que vinha pregando oração pelos mortos, Viret trouxe-a por parte do consistório de Berna, Carolli viu-se obrigado a retratar. Embora Viret e Calvino, que estavam presentes, tivessem tratado com amor o seu caso, por ele intercedendo para que não sofresse castigos maiores, logo depois Carolli apresenta uma acusação contra Calvino perante a assembléia, de que não aceitava ele a doutrina da trindade.
Embora Calvino fosse surpreendido de improviso, explicou-se de maneira clara. Carolli voltou à carga mais tarde e não foi sem muitos aborrecimentos para Calvino que Carolli banido pelo concilio de Berna, depois de obrigado a confessar a inocência do seu acusado, voltou a reconciliar-se novamente com a Igreja Católica. Com a sua argumentação ardilosa, no
entanto, Carolli conseguiu abalar a confiança dos homens de Berna, na posição ortodoxa cte Calvino em relação a trindade, até que pudesse de modo irretor- quível mostrar a sua firmeza e solidez nesta doutrina. Desta batalha Calvino saiu profundamente abatido e desgastado.
Wendel acha que o episódio deixou marcas profundas no espírito de João Calvino e talvez tenha influído na sua atitude intransigente contra Servetus.28
Uma outra questão de menor importância, masde repetidos aborrecimentos, veio acrescentar aflição aos aflitos. Berna — e creio que isso pesou na posição do caso de Carolli —- mantinha desde o princípio certas práticas divergentes da igreja de Genebra. A Santa Ceia era celebrada com pão sem fermento. A Igreja usava em Berna a pia batismal. Celebravam-se ali algumas festas religiosas, como Natal, Ano Novo, Anunciação e Ascenção, além de outras pequenas diferenças. Calvino não dava muita importância a estas questões, julgando-as secundárias e do arbítrio de cada igreja; mas, ao que parece, por solidariedade a Parei, que era irredutível sobre esses assuntos, não as aceitavam na Igreja de Genebra. Os homens do concilio de Genebra, solícitos em obter as boas graças de Berna — uma aliada sempre indispensável à segurança de sua independência — resolveram adotar, a revelia de Calvino e dos outros pastores, as práticas litúrgicas da Igreja de Berna. Era, segundo pensavam, uma intromissão muito grave e muito séria do concilio em matérias de exclusiva competência da igreja — tratando-se de assuntos de doutrina e de liturgia. A situação se agravou ainda mais quando o velho Cour- rault, o pregador cego e idoso, nem por isso mais prudente, pediu para ser levado ao púlpito e pregou um sermão violento e insultuoso às autoridades de Genebra. O concilio o proibiu de pregar desta data em diante, mas ele desobedeceu e foi preso. No dia seguinte, Calvino e Parei compareceram ao concilio exigindo a soltura de Courrault. O concilio não somente rejeitou a exigência, como lhes deu ordens ex
plícitas para que se conformassem aos ritos de Ber na. Calvino e Farei não apenas recusaram a aceitar a imposição, como também declararam, perante o concilio, que não administrariam a comunhão do domingo da Páscoa, que estava próxima, alegando que não poderiam dar a Santa Ceia a uma cidade onde havia desordens e dissolução. De novo, o concilio se reuniu no dia seguinte e lhes ordenou não somente a celebração do sacramento, mas a fazê-lo com uso do pão sem fermento, de acordo com o costume de Berna. Ante a recusa em obedecer tal ordem, o concilio os proibiu de pregar. Apesar disso, tanto Farei como Calvino pregaram duas vezes naquele domingo. Os ânimos estavam muito agitados. Houve alvoroço na igreja; alguns chegaram a arrancar a espada contra Calvino, o que levou à intervenção de alguns para evitar derramamento de sangue. No dia seguinte, o concí lio se reuniu e determinou a expulsão de Calvino e Farei da cidade, dando-lhes o prazo de três dias para ) se retirarem. Courrault foi solto com a intimação de acompanhá-los no banimento. Ao receber a notícia respondeu Calvino: “Se eu fosse servo dos homens, teria então recebido uma triste recompensa, mas, bem que estou servindo aquele que nunca deixa de fazer aos seus o que lhe tenha prometido” .29
Os pastores de Genebra sairam em obediência à ordem do Concilio aprovada pela assembléia, dentro do prazo estipulado.
Para onde ir?Inicialmente para Berna, onde foram bem rece
bidos, a princípio, mas depois do Concilio de Zurique, onde Farei e Calvino tiveram oportunidade de expor o que acontecera, Berna mostrou-lhes certa frieza. Sabe-se que há diferença dos ritos do batismo e Santa Ceia e a questão dos dias de festas à moda de Berna fora usada contra os pregadores para ganhar as boas graças de Berna.
Apesar de tudo, Berna resolveu interceder pelos exilados e enviou embaixadores a Genebra, tentando convencer o concilio de uma reconsideração. No en
tanto, Calvino e Farei foram impedidos de voltar à cidade em companhia dos embaixadores, tiveram que permanecer fora dos limites do território de Genebra, o que evitou que fossem massacrados por uma emboscada que os esperava antes da entrada da cidade, as portas da qual se achavam guardadas por homens assassinos em número de 2 0 (vinte).
Todo o esforço dos embaixadores de Berna se provou inútil, pois os ânimos estavam exaltados e o concilio e a assembléia confirmaram unanimente o decreto de banição, enquanto alguns ameaçavam os pregadores a fio de espada.
Depois de curta permanência em Berna, Calvino e Farei se dirigiram para Basiléia. Estava, pois, terminada a dura peleja.
É fácil entender que apesar de tudo Calvino se sentia aliviado. Escolhera ele, por acaso, Genebra, pa* ra suas atividades? Não fora pela persuasão quase in- timidadora de Farei que cedera em ficar alí? Não fo ra o seu sentimento de que obedecia a uma ordem divina, que o levara a ceder às insistências de Farei?
Cumprira o seu papel, não dera certo, iria agora realizar o sonho, estudar tranqüilamente, longe de toda a confusão, para a qual o seu temperamento o tornava indisposto.
Caberiam aqui algumas considerações sobre o fracasso de Calvino e Farei nesta fase. Por que é que a situação se tomou tão crítica, a ponto de Calvino e Farei serem expulsos de maneira tão humilhante e tão drástica? Tentaremos explicar.
Primeiro. Não era possível esperar-se que uma transformação tão radical se operasse na sociedade genebrense de um momento para outro, somente po? um ato público formal de aceitação das doutrinas e princípios morais e religiosos reformados. Dir-se-ia que um longo período de preparação tinha antecipado esse momento: que a pregação do Evangelho ali por Farei e seus companheiros, o ardor sacrificial com que eles fizeram esse trabalho com sérios riscos de vida ganharam aos poucos a simpatia do povo pa
ra o lado da Reforma. Sim, mesmo levando em conta tudo isso, faltava na maioria dos habitantes da cidade aquele elemento indispensável a uma completa mudança, a verdadeira conversão, que é obra do Espírito de Deus. Era mais fácil àquela gente aderir aos atos de iconoclastia e sair em grupos, quebrando ídolos e derribando altares, do que abandonar certos hábitos pecaminosos e vícios arraigados. Era mais fácil gritar contra a imoralidade do clero e expulsar dos conventos freiras, que, sob a aparência de muita piedade, tinham, no entanto, passagens subterrâneas do seu convento de Saint Claire para o dos monges fran- ciscanos, conforme nos informa Dyer,30 do que viver uma vida cristã moralizada.
Bem sabiam disso Calvino e Farei, mas somos sempre apressados e não aguardamos o tempo de Deus com a suficiente paciência. Não demorou muito ) e o número dos descontentes começou a crescer e a se arregimentar, reunindo todos num só partido, “Irmãos em Cristo” .31 Os taberneiros prejudicados nos seus lucros, os jogadores privados de seus hábitos, os be- berrões proibidos do seu vício e todos que eram superficiais no seu interesse religioso, desejosos de prosseguir nas práticas consideradas inconvenientes e incompatíveis com a Profissão de Fé Cristã, segundo os novos padrões, todos estavam agora contra Calvl- no e Farei.
Convém lembrar que certas exigências severas com respeito a costumes não eram originalmente de Farei ou Calvino. Elas já existiam antes e poderiam até parecer comuns numa sociedade de hábitos rígidos, mas nunca foram impostas com a dureza de agora, e, em muitos casos, eram apenas formas exteriores, sem a seriedade prática com que os reformadores as queriam aplicar.
Segundo. Faltava a Calvino e ft Farei o amadurecimento necessário para a tarefa enorme a que se propuseram.
Ambos fiéis, ambos dotados de ardor a ponto de se sacrificarem pela causa, mas faltava-lhes a expe
riência, a perspectiva para compreender a situação de modo racional, prático. Como diz Dyer, "que tais vícios (referindo-se à situação de Genebra) e desordens exigiam uma reforma em grande medida, não se pode disputar. Não estava, contudo, na natureza humana, que hábitos confirmados por tão longe tempo, fossem extirpados de uma vez” .32
Terceiro. Para uma empresa tal, Farei e Calvino não pareciam uma boa combinação. Farei era um homem zeloso a ponto de se tornar fanático e, por isso mesmo, até irracional nas suas exigências. Mais de uma vez tinha exposto a sua vida pelo que considerava vital no reino de Deus. A sua voz era como o trovão, e a sua figura pouco simpática, de pequena estatura, barba rala e vermelha, mas a sua coragem era indomável. Os chefes inimigos se aproveitaram disso para amedrontar o povo ignorante e supersticioso. Diziam que Farei e Viret alimentavam o demônio, na forma de um enorme gato preto em sua mesa. Havia até quem afirmasse ter visto isso pela fresta da porta. Em cada fio de barba, diziam, Farei trazia um demônio.33
Calvino, muito mais tímido, mais reservado, mais moço vinte anos, era um gênio. No entanto, os dois se tornaram amigos pelo resto da vida. Se, por vezes, em razão da idade, Calvino dava a palma a Farei, este, por seu turno, levava em alta conta a sabedoria do colega mais moço, de modo que faziam um bom dueto, isto é, afinavam-se muito bem. O que não parece é que essa unidade de visitas tenha feito bem à Causa em Genebra. Parece que não. E segundo a opinião de alguns, Bucer, que era amigo de ambos, julgou melhor que se separassem, pois não estendeu a Farei o convite feito a Calvino, para ir para Estrasburgo. Pouco depois Farei recebe o chamado de Neu- chatel e para lá se dirige, onde permanece até o final de sua carreira.
Por outro lado, a volta de Calvino para Genebra, mais tarde, na qual Farei pôs todo o seu empenho, se fez sem que Farei fosse convidado. Parecia até na
tural que ambos fossem, num ato de reparação completa, o que se sabe, era desejo de Calvino, mas Genebra permaneceu em silêncio, daí se pensar que o concilio de Genebra estava convencido de que os dois juntos não dariam certo. E pesa em favor de Fare! o desprendimento com que se fez intercessor no caso, com insistência semelhante à da primeira vez, até que Calvino cedesse, aceitando o convite do concilio.
Quarto. Um outro fator teria também pesado na balança contra Calvino e Farei. A posição de Berna. Responsável até certo ponto pela libertação de Genebra do jugo escorchante do bispo e do duque de Sa- bóia, Berna desejou manter sua soberania sobre Genebra, fazendo-a parte de seus domínios. Calvino e Farei a queriam independente em consonância com o desejo geral dos genebrenses. Quando a situação se tornou tensa entre os ministros e o Concilio, este quis propiciar as boas graças de Berna e levantou a questão dos ritos, já mencionada, em que Calvino e Farei discordavam de Berna. Calvino, ao que parece, mais para ser solidário com Farei, pois que pessoalmenteo, assunto lhe parecia sem maior relevância. . .
É fácil de entender que a boa paz com Berna, da qual dependia ainda a segurança de Genebra contra as ameaças sempre presentes do Bispo e do Duque, era preferível. Daí porque o Concilio acabou aprovar* do o rito de Berna, em frontal discordância com os pastores e que foi a gota que transbordou.
Quinto. Nem se deve subestimar a importância dos saudosistas, adeptos do Bispo e do Duque, que lá dentro estavam prontos a criar 9 fermento da insurreição e do descontentamento.
Lá estavam padres inconformados com a perda de sua situação vantajosa. Os antigos senhores de Genebra estavam prontos a usar a primeira oportunidade, enviavam através de seus aliados promessas de melhoramentos, como a Universidade, etc. Basta lembrar a carta do Cardeal Sadoleto, dirigida ao Senado e ao povo de Genebra logo após a expulsão dos pastores, concitando-os carinhosamente a aceitar de no
vo, num ato de penitência, a tutela papal. O Concilio podia pensar em tudo, menos em voltar ao passado. Daí a indispensável aliança com Berna.
Em resumo, diríamos que faltou muito, e a história mesmo o vem demonstrar, de amadurecimento, tanto dos líderes, como do povo, para que triunfasse, pelo menos relativa e parcialmente, a tentativa de Calvino de fazer de Genebra uma cidade cristã. E não terio sido, perguntamos nós, esse fracasso inicial uma experiência amarga, mas necessária, de parte a parte, para se alcançar pelo menos o que mais tarde se alcançou? Na plenitude dos tempos..
Capítulo 7
ESTRASBURGO
Tempestades de todos os lados. Em Genebra a chuva de impropérios, de ameaças, de indignação. Fora chovia torrencialmente, e os dois pastores, Calvino e Farei iam a cavalo, em demanda de Basiléia. Assim era a jornada dos exilados em busca de um lugar de repouso, onde por pouco não chegavam.
A viagem não deixou de ser arriscada; os rios transbordavam e na travessia de uma corrente quase foram levados pelas águas abundantes. Tudo parecia conspirar contra a vida desses homens. Talvez tivessem feito em algum momento de maior abatimento a indagação do salmista: “Senhor, por que te conservas longe de mim... por que te afastas do meu bramido?”
Afinal chegaram a Basiléia. Descansavam à sombra amiga de tetos hospitaleiros e fraternais. As injúrias sofridas; as peripécias do caminho; as dificuldades do tempo iam sendo esquecidas até que pudessem com mais calma decidir sobre o rumo a 1»- tomar.
Ambos já tinham estado em Basiléia. Farei aU ficara refugiado em 1523, depois de ter sido expulso da França por causa das atividades evangelísticas. Calvino também ali passara algum tempo quando da publicação das suas Institutas. Ali Farei enfrentara a oposição de Erasmo, que não tolerava o seu fervor, nem a sua ousadia, às vezes levados a extremos iconoclastas, mas não lhe faltavam amigos em Basiléia. Calvino, ao que parece, não tinha dúvidas de que alí era o seu lugar. Não fosse a insistência de Farei em prendê-lo em Genebra, teria fixado residência em Estrasburgo, pois era para lá que se dirigia. Abatido pela amarga decepção sofrida, pensava dedicar-se a estudos, executar o plano que anteriormente alimentara.
Não demorou e Neuchatel enviara a Farei um convite para que pastoreasse alí a igreja, onde já es- tivera antes e trabalhara com tanto ardor. Acabou cedendo ao convite, embora preferisse estar ao lado de Calvino. Para lá se dirigiu e lá ficou até o final de sua carreira.
Ao mesmo tempo, Calvino era convidado por Bu- cer para assumir o pastorado dos refugiados franceses em Estrasburgo, o que inicialmente recusou. Estava bem em Basiléia onde, na tranqüilidade do ambiente amigo, de companheiros intelectuais, poderia continuar nos seus estudos como sempre desejava. Bucer insistia e Calvino, como sempre, aguardava indícios de que essa fosse a vontade de Deus, antes de responder positivamente, temendo, cauteloso, a repetição das decepções amargas que vinha de sofrer. Não queria passar por elas novamente, não se sentia preparado para conflitos dessa natureza. O sentimento de fracasso o afligia, mas Bucer foi quase tão veemen
te como Farei, quando este o prendeu em Genebra. Além de tudo, pesava contra a aceitação dos convites e, inicialmente, o fato de Farei não estar sendo incluído. Estiveram juntos, sofreram juntos as mesmas infâmias, de modo que não ia bem com a cons- ciênda de Calvino deixar sem mais nem menos o companheiro de exílio antes que o visse amparado. No entanto, a Bucer parecia que os dois homens, apesar do valor pessoal de cada um, não faziam uma boa dupla.
Tem-se a impressão de que era seu empenho separá-los, pensando, quem sabe, não fosse o caráter explosivo de Farei, as coisas não tivessem chegado ao ponto em que chegaram em Genebra. O convite de Neuchatel resolveu essa dificuldade.
Aguardavam-lhe em Neuchatel amargas experiências; por pouco sairia de lá expulso também, mas venceria a tempestade e lá terminaria seus dias, após um abençoado e longo ministério.
Pesava em favor da aceitação do convite por parte de Calvino o ambiente que iria encontrar em Estrasburgo, onde uma plêiade de intelectuais reformadores se reunia, sob a liderança de Martin Bucer, com o qual firmaria amizade sólida, com o conhecimento mútuo e apreciação recíproca, do que muito lucraria e, certamente, a causa do Evangelho.
Bucer era um grande intelectual, personalidade de alto porte, um teólogo, um espírito equilibrado, de disposição pacífica e moderada, dotado de uma capacidade diplomática muito útil naqueles tempos e possuído de uma franqueza cordial, que ajudava sem ofender; franqueza apreciada por Calvino. Mais tarde haviam de ter momentos de divergência em que com certa rudeza iriam discordar um do outro, sem que isso pudesse abalar a amizade profunda que entre eles existia, mesmo porque tudo era fruto de uma lealdade cristã sólida de parte a parte.
Alí em Estrasburgo Calvino teria oportunidade de conviver com outros' grandes reformadores de notável brilho intelectual, tais como Hédio, Niger, Capito
e Sturm. Estrasburgo acabaria sendo uma perfeita escola onde Calvino aprenderia a lidar com gente de todas as classes, desde algum humildes refugiados franceses até grandes mestres e teólogos.
Jean Sturm iniciara ali, por aquele tempo, um co- legiado e Calvino era convidado a ensinar teologia nessa escola. Sturm era de uma inteligência viva, de grande pendor político e ardoroso adepto da Reforma, o qual em cooperação com o seu homônimo, o outro Sturm, desenvolveria um plano educacional admirável, que por certo havia de ter influência nas idéias futuras de Calvino quando da organização da Academia.
Como era de seu feitio, Calvino estava dentro em pouco envolvido em muitas atividades. Lecionava, pregava em dois ou três pontos diferentes, organizava a igreja dos refugiados franceses para a qual formulou a ordem do culto, , abrangendo todas as cerimônias, tanto do culto público como da celebração da Santa Ceia, batizados, casamentos, etc. Cuidou com zêlo do cântico na igreja, para o que metrificou alguns salmos bem como o cântico de Simeão, o decálogo, adaptando aos seus cânticos muitas músicas do sal- tério usado por Bucer e utilizando outras compostas pelo organista de Estrasburgo, Matias Creiter.
Emprestava Calvino grande solenidade à celebração da Santa Ceia, excluindo da comunhão aqueles que dela não podiam participar. O seu código de disciplina foi alí posto em prática, bem como o ensino do catecismo obrigatório às crianças da igreja, como quisera fazer em Genebra. Nesse caso, pode-se ver que havendo boa vontade da parte do povo, não é difícil manter uma igreja disciplinada e bem instruída nas Escrituras.
Ainda, em Estrasburgo, acabou sendo o conselheiro de muitos, inclusive estudantes, que, vindo de outros lugares, se tornaram seus alunos. A casa de Calvino ali era uma colmeia, segundo o testemunho de Jean Cadier, aonde muitos vinham desejosos de
obter a sua orientação, tanto para problemas materiais como espirituais.
Um pastor de imigrantes estrangeiros tem que se multiplicar no desempenho de atividades diversas para atender às necessidades de suas ovelhas.
É fácil de ver como essas experiências haviam de ajudar Calvino mais tarde, quando se encontrasse em Genebra em situação semelhante, ainda em ponto muito maior.
Em Estrasburgo amadureceram suas idéias sobre a Santa Ceia do Senhor, pelo que publicou um tratar do sobre o assunto, alicerçando a sua doutrina do sacramento de maneira sólida nas Escrituras, em posição diferente à de Lutero, de um lado, e de Zwinglio, de outro.
Foi durante esse período que Calvino se tomou mais conhecido e adquiriu fama internacional, pois que participou de várias conferências e dietas, onde o seu espírito e a sua inteligência haviam de se pôr em evidência.
Carlos V estava interessado nessas conferências, pois convinha a seus fins políticos encontrar um acordo entre católicos e protestantes. A firmeza doutrinária de Calvino foi posta à prova quando estavam em jogo os interesses do evangelho, os quais defendia com absoluta fidelidade e com sólida argumentação, extraída da Palavra de Deus e da opinião dos teólogos antigos que ele, com tanta habilidade e uso de uma memória privilegiada, era capaz de citar Assim é que esteve presente a encontros dessa natureza em Hage» nau, em Worms, Regensburgo, Frankfurt, Ratisbona.
Numa dessas conferências ficou conhecendo Me- lanchthon, o qual se tomou admirador de Calvino, surpreendido com a sua cultura e erudição, com a sua profundidade teológica, pelo que passou a chamá-lo “O teólogo”. Tomaram-se bons amigos e continuaram assim, com grande proveito para a causa da Reforma.
Foi ainda em Estrasburgo que Calvino deu um passo muito importante em sua vida, passo que vinha
protelando por muito tempo, possivelmente em virtude da sua vida tão agitada e tão incerta. Tímido, temia que suas m uitas enfermidades se constituíssem em obstáculo a um casamento íeliz. Isso concorreu também para que demorasse a dar esse passo. Para ele, o casamento não era apenas uma necessidade premente» mas uma questão de coerência. Ele combatia tenazmente o celibato católico, não poderia ser um celibatário. Via os grandes males que a instituição do celibato causava à vida da igreja e insistia na sua falta absoluta de base bíblica. Sabia que os inimigos haviam de aproveitar-se da sua condição de solteiro para acusá-lo de contraditório. Entendia, no entanto, que a companheira de sua vida teria de se revestir de muita paciência para tolerá-lo com todos os males que o acompanhavam, e dele cuidar sem esmoreci- mento. Não era fácil achar uma candidata com esses requisitos. Daí, ter rejeitado algumas pretendentes.
Em 14 de agosto de 1540, Farei se abalava de Neuchatel para vir abençoar a união de Calvino com Idalete de Buren. Ninguém mais indicado para esta cerimônia, se não o sempre devotado amigo Farei, companheiro de tantas refregas. Idalete era viúva de um dos anabatistas que foram convertidos pela ins- trumentalidade de Calvino.
Martin Bucer, o sempre amigo, empenhou-se nessa união, como bom diplomata e casamenteiro que se provou também no caso de Capito.
É curioso lembrar que Calvino não pode retr, buir a cortesia do amigo Farei, quando esse mais tarde o convida para ir impetrar a bênção sobre o seu casamento. Farei era então já velho e resolveu casar- se com uma jovem adolescente e que praticamente fora criada em sua casa, pois era filha de uma refugiada que acolhera e que se tornava sua empregada. Calvino lhe escreve uma carta severa, mostrando-se descontente com o caso. O incidente, porém, não abalou a verdadeira amizade entre os dois, mesmo porque Calvino embora recusasse fazer o casamento e mostrasse a sua desaprovação, o aconselha a tomar pre
cauções para não ser vítima dos maledicentes. Aa mesmo tempo, escreve uma carta à igreja de Neuchatel, que também desaprova inteiramente o passo que o seu pastor iria dar. Nessa carta pede à igreja que perdoe a seu pastor a leviandade em consideração aos muitos serviços já prestados.
Quando voltava para Genebra, Calvino atrasa sua viagem para passar por Neuchatel e ajudar o amigo numa situação difícil, em que a igreja estava ao ponto de dispensá-lo. A diplomacia de Calvino valeu a Farei, ali continuou para sobreviver o amigo por alguns anos. Convinha lembrar ainda que, quando Calvino estava no seu leito de morte, Farei viaja para fazer- lhe a última visita, mesmo sob os protestos de Calvino, que não queria o sacrifício do amigo já idoso numa viagem tão longa. A despedida dos dois é algo comovente, que enobrece a ambos.
A vida matrimonial de Calvino teve duração curta. O único filho do casal morreria logo depois de nascer, com amargura para os pais. Foi, no entanto, uma vida matrimonial feliz, cheia de ternura, a despeito dos sofrimentos de ambos os lados. Longe de ser o homem sem afeições e sem sentimentos que alguns o pintam, mostrou-se afetuoso esposo, inconsolável viúvo, quando da perda da sua Idalete, nove anos depois.
Stauffer, na sua “humanidade de Calvino”, prova com citações repetidas de trechos das cartas do reformador, a dedicação de esposo e a sua estima imor- redoura pela companheira de tão pouco tempo.
Idalete, por sua vez, se provou a esposa ideal que Calvino tanto sonhava: dedicada, afetuosa, fiel. Calvino a chama: “Fiel companheira de minha vida, fiel ajudadora de meu ministério” .34
Em março de 1549, Idalete, vencida pela tuberculose que mais tarde haveria de levar também Calvino, terminava os seus dias em Genebra. A saúde, que perdera logo após o casamento, não recobrou nunca. Assumiu as responsabilidades pesadas de dirigir a casa movimentada de Calvino, de onde saíam e aonde
chegavam hóspedes constantemente; e onde estudantes franceses tomavam pensão. Mesmo enferma, Idalete prosseguiu no seu trabalho, vindo a sucumbir, finalmente, quando a tuberculose a apanhou.
Em Estrasburgo o trabalho ia muito bem. A sua estima crescera na cidade, onde gozava de alto conceito entre os colegas e de grande admiração por parte do povo em geral.
Na Europa o seu nome se projetava como um autêntico líder intelectual da Reforma. A pequena igreja de refugiados franceses crescera, arrolara uns quatrocentos a quinhentos membros e se tornara uma igreja disciplinada e bem organizada. Muitos vinham de outros lugares, fugindo às perseguições, ao mesmo tempo atraídos pela fama do pregador e pastor. O trabalho era cada vez maior. Cartas e mais cartas; revisão de livros para publicação; entrevistas com pessoas que vinham à sua procura; a pregação, várias vezes por semana; as aulas de teologia; a participação em conferências fora de Estrasburgo. Estava, no entanto, feliz; pois era assim que Calvino sabia viver, e iria viver, a sua curta existência, apesar de sempre doente — “Um homem inválido que fazia o trabalho de quatro a cinco diferentes profissões”, como queria Zweig.35
Começaram a chegar agora as cartas de Genebra, convidando-o a voltar. E começam amigos, como Parei, a insistir na sua volta. Parece-nos cometerem injustiça grave contra Calvino aqueles que o supõem com os olhos sempre postos em Genebra, aguardando a primeira oportunidade de voltar. Tal suposição é inteiramente errônea, se acreditarmos na sinceridade de Calvino, que nos conta da sua vaci- lação em aceder ao convite. Se Calvino é às vezes tempestivo e violento, como nos parece até mesmo irrazoá- vel com os que o ferem, observa-se nele, todavia, uma extraordinária capacidade de reconsiderar suas atitudes menos felizes e lamentá-las, principalmente quando se acha em jogo o interesse da Causa. Notável também é o espírito de Parei, que esquece todas as injú
rias sofridas para se tomar intercessor no caso em favor de Genebra, mesmo quando não é convidado, como Calvino, a voltar. Calvino saira de Genebra em con- diççes muito humilhantes.
De lá fora expulso, lá fora ridicularizado, saira sob ameaças de morte. O concilio e a assembléia rejeitaram a reconsideração proposta por Berna por uma volta. Não muito depois, surge a carta do cardeal Sadoleto, dirigida ao senado e ao povo de Genebra, procurando com sutilezas, adulações capciosas e expressões afáveis de afeto pastoral, trazer de novo ao redil de Roma o sofrido rebanho. A carta, sem mencionar nomes, faz referências claras e desairosas a Farei e Calvino, taxando-os de inescrupulosos, perturbadores, sediciosos, fraudulentos e malignos. Calvino assume a defesa da Igreja — pois à mercê de inimigo tão perigoso e sagaz. '
Sente que é seu dever, sem levar em conta qualquer agravo sofrido, pois se o não fizesse trairia a sua vocação.
. Aqueles que não experimentaram jamais essa consciência do dever sempre inarredável, não podem entender o que significa o chamado de Deus para um homem da sensibilidade de Calvino. A resposta a Sadoleto, embora um dos primeiros trabalhos literários de Calvino em Estrasburgo, quando ressentimentos de parte a parte estavam tão vivos, e as feridas ainda tão mal curadas, tiveram um extraordinário efeito na mudança de atitude de Genebra para com o homem que tão desumanamente expulsara dos seus limites.
Longe de se mostrar feroz, vingativo, implacável, como muitos o retratam, mostra-se nobre, colocando os interesses do Reino de Deus acima de quaisquer mágoas pessoais, ou caprichos e desejos de retaliação. Aliás, antes disso já tinha escrito à igreja, logo após sua expulsão, exortando-a a cultivar a paz com os pastores que agora os substituíam (a ele e a Farei) para que perseverassem na oração, suportanto os maus e preparando-se, desse modo, para a luz que oportunamente haveria de vir. 36 Aliás, tanto ele, co
mo Farei, tinham feito apelos aos que eram do seu lado para que. aceitassem e prestigiassem os pastores que os substituiriam.
Três anos de trabalho intensivo e grande produtividade, anos felizes, no ambiente de camaradagem e bom entendimento, com os pastores de Estrasburgo; anos em que Calvino muito amadurecera no seu pensamento, no seu caráter; anos em que adquirira prestígio e respeito entre os mais ilustres companheiros com os quais passara a conviver; período que na providência divina se fizera necessário, para adestrá-lo à grande obra imortal da sua vida.
Parece que foi Woodrow Wilson, estadista de projeção internacional, presbítero de uma igreja presbiteriana e filho de pastor presbiteriano, quem afirmou: O importante não é saber onde estamos, mas se estamos com Deus.
Genebra não era para Calvino, de maneira nenhuma, o lugar ideal, se consultasse às suas preferências pessoais. Tinha até pavor em pensar na possibilidade de voltar ao lugar de onde saira em condições tão ar- rasadoras. Segundo suas palavras, sabia que viver novamente em Genebra seria ter que morrer mil vezes ao dia — força de expressão — para dizer enfaticamente, que a cidade se lhe apresentava como um lugar de martírio constante. E quando resolve aceitar novamente, sob as insistências de Farei e de outros, o seu retorno se faz, como um sacrifício oferecido a Deus.
Jean Cadier afirma que, quando Calvino se pronuncia, dizendo: "Ofereço o meu coração a Deus, em sacrifício”, é Calvino inteiro que se encontra nessa frase; o homem a quem os inimigos, amda hoje, pintam como orgulhoso e cheio de ambição e sedento de poder.
A doutrina da vocação tem um papel muito importante no pensamento teológico de Calvino. E ele vive essa doutrina. Só tomara a decisão de voltar a Genebra por sentir que é um imperativo de Deus.
Calvino é um homem que se vê empurrado pela mão divina contra a sua vontade, contra a sua predile
ção, contra o seu. pendor natural e até mesmo contra suas possibilidades físicas — a sua saúde combalida. Por isso, vai fazer exatamente aquilo para o que se sente mal preparado, pouco dotado, pouco disposto, mas impelido por Deus.
A vida em Estrasburgo, embora cheia de vantagens, não tinha sido sem problemas inicialmente. Viveu em extrema pobreza, a princípio. Sabe-se pela correspondência com Parei, que estava em débito para com o amigo, sem esperança de solver os compromissos tão cedo. Fora logrado por um certo indivíduo e estava sentindo necessidades de vender livros para sobreviver. A situação melhorou após se casar. Em Genebra tudo evoluirá para uma posição insustentável, de modo que o concilio acabara concluindo que a única solução era a volta de Calvino.
Faltava a presença de homens capazes, com autoridade moral, com gabarito intelectual e com poderes espirituais para conduzir a Igreja.
Os inimigos de Calvino e Farei, jubilosos com a vitória alcançada, se tornaram arrogantes, ousados, de modo que a prática dos vícios e costumes condenados se tornou mais aberta, mais freqüentes, mais generalizada. Os pastores se viam sem qualquer meio de repri- mí-los e o concilio incapaz de tomar qualquer medida no caso. Genebra, pelo menos o senado e outras autoridades, aprendiam a dura lição, lição difícil de se ensinar — é mais fácü aplacar a agitação de uma multidão enfurecida e revoltada com a expulsão de alguns homens que, no cumprimento da ingrata missão de moralizar uma sociedade, mesmo com as melhores intenções, acabavam cometendo erros do que encontrar outros que os substituam e façam melhor do que eles.
Os problemas, longe de serem sanados, cresceram, de modo que tudo ia de mal a pior. Era a hora então de reconsiderar, voltar atrás e ir buscar o homem que expulsaram.
Conflitos entre as facções — os calvinistas e os adversários deles — resultaram em violência e mortes. Alguns dos síndicos que mais se opuseram a Calvino
e a Farei acabaram se envolvendo em escândalos condenáveis, obrigado um deles a fugir da cidade, enquanto outro era condenado pelo concilio.
A influência de Berna na vida de Genebra estava inquietando os chefes, que temiam uma subordinação completa a ela. Por outro lado, os antigos partidários do bispo, que se uniram aos detratores de Calvino em um partido só, não deixaram de constituir numa ameaça à volta do antigo regime, no que esses chefes nem gostariam de pensar.
Por parte dos reformados das cidades vizinhas havia receios de que a vitória alcançada com tantos sacrifícios, em Genebra, viesse a ser perdida pela incompetência de seus líderes.
Calvino sentia muita dificuldade em ceder a todas as pressões: “Não há lugar debaixo do céu que eu mais tema do que Genebra; não que eu dela desgoste, mas porque eu vejo tanta dificuldade no meu caminho que me sinto desqualificado para enfrentá-la. Quando me recordo do que alí passei, não sinto outra coisa senão um calafrio de pensar que serei obrigado a renovar as velhas disputas” .37
Por outro lado, Estrasburgo não estava disposta a abrir mão de Calvino facilmente e Calvino não desejava deixar a cidade assim sem mais ou menos, temendo criar problema para os bons e fiéis amigos que em tão boa hora o tinham acolhido; entre eles, evidentemente, o grande amigo Bucer, seu protetor inicial. Nessa altura, já tinha adquirido o título de cidadão de Estrasburgo. Por ironia, Farei era o homem que, expulso de Genebra com Calvino, e embora não fosse convidado a voltar, servia de intermediário e poderoso instrumento para convencê-lo da sua volta.
Quando o concilio de Genebra recebeu a carta do cardeal Sadoleto, embora não tivesse nenhuma intenção de aceitar a sua proposta, deu-lhe uma resposta delicada e curta. Essa atitude de complacência para com o cardeal gerou suspeitas no ânimo de alguns de que a posição do concilio começava a fraquejar,
faltando-lhes convicções firmes para resistir uma volta ao catolicismo. Isso enfraqueceu a posição do concilio, de modo que nem mesmo um grande esforço para mostrar sua fidelidade evangélica produziu muito resultado. Começavam aqueles homens a verificar que a causa de todas as dificuldades não residia na presença de Calvino e Farei alí. Não eram eles os únicos culpados da fermentação havida ou dos extremos na situação a que tinham chegado.
O concilio, pela sua inconsistência, tinha perdido a autoridade: e quando a uma autoridade no poder superior falta a confiança dos governados, o caminho para a sedição e desordem está aberto.
Resolveu-se num esforço maior, enviar um embaixador especial a Estrasburgo para trazer de volta Calvino.
Numa carta do concilio, enviada a Zurique, Basiléia e Berna, pedindo a interferência dessas cidades para o retorno de Calvino, há uma confissão muito humilde do erro cometido por parte do concilio de Genebra: “Desde a hora ém que foram banidos (referindo-se a Farei e Calvino) não temos tido senão dificuldades, inimizades, lutas, contendas, desordens, facções ehomicídios” .38
A intervenção de Zurique se fez sentir, numa carta dirigida a Calvino, por ele respondida em 31 de março, da cidade de Ratisbona, onde estava participando de uma conferência. Nessa resposta indica que teria de consultar Bucer e outros ministros de Estrasburgo, certo de que não se oporão, se isso for útil à restauração de Genebra.39
Afinal em setembro de 1541, voltava Calvino. Não prometia ficar senão alguns meses. Lá ficoü até o seu último dia, para alí ser sepultado. Havia festa, espírito de boa vontade, mas no íntimo Calvino se sentia um prisioneiro de Deus.
Capítulo 8
GENEBRA NOVAMENTE
Nada como um dia depois do outro — velho provérbio que meu pai gostava de citar. O homem que três anos antes saira de Genebra expulso; contra o qual se postaram vinte matadores,, à porta da cidade, para debatê-lo sem vida, caso tentasse voltar; o homem que fora banido como um criminoso de grande periculosidade retoma agora triunfante, com honras de estado, recebido com festas e flores. Como bem pondera Walker, Calvino indubitavelmente alimentava o sentimento de que tinha sido restaurado a Genebra pela mão de Deus.
Ele tratava seu banimento como uma mera interrupção, daí porque não disse uma palavra sequer no seu primeiro domingo em relação ao passado recente.
Encontrava-se naquele espírito preconizado pelas palavras do apóstolo São Paulo: “As coisas velhas são passadas”.
Entrava Calvino cautelosamente, embora firme; mesmo porque não quis prometer de início uma longa permanência alí. Pensava apenas pôr as coisas em ordem; organizar a igreja como fizera em Estrasburgo com os refugiados franceses; estabelecer a ordem e disciplina; instituir a liturgia, os estatutos e, quem sabe, ceder o lugar a outro que pudesse continuar a obra. Sentia-se bem mais à vontade pensando desse modo.
O concilio dirigia-lhe um apelo a que permanecesse com eles para sempre; dava-lhe de presente como sinal de honra e deferência especial um novo casaco. Esperava-o uma casa confortável, com jardim, na rua dos Cônegos, em ponto favorável às suas atividades, nas proximidades da igreja de São Pedro. O púlpito fora preparado para recebê-lo; um salário conveniente lhe fora votado pelo concilio e uma carruagem com três cavalos fora enviada a Estrasburgo para trazer-lhe a esposa e mudança. Uma euforia e uma disposição de tomar tudo a contento do pastor dominava a ação do Concilio, e de muitos.• De Estrasburgo saía deixando com pesar amigos,
admiradores e as ovelhas do seu rebanho, que com tanto carinho apascentara durante aqueles anos. Era agora cidadão da cidade e benfeitor. Pediu-lhe o governo de Estrasburgo que mantivesse a sua cidadania, conferindo-lhe as rendas de uma prebenda, renda essa que, segundo nos informa Beza, não quis receber.
Parece que agora, pela primeira vez em toda a sua vida, tem Calvino uma situação financeira regular, uma casa confortável para residir e condições de trabalho consentâneas com os encargos de que é incumbido.40 Tinha pressa em começar o seu trabalho, mas julgou que devia passar por Neuchatel antes de chegar a Genebra, pois o velho amigo Farei atravessava dias de dificuldades, a ponto de ser ameaçado de banimento por sua igreja. E foi muito bom, pois, a
intervenção de Calvino abortou a situação e tudo voltou à calma.
A 13 de setembro de 1541 chegava Calvino novamente a Genebra. No mesmo dia apresenta-se ao conselho, justifica a sua demora, manifesta o desejo de que a ordem e a paz sejam restauradas à Igreja. Pede a formação de uma comissão de pastores e membros do Conselho para traçar as bases de uma constituição para a Igreja. Sua solicitação é atendida, meou-se uma comissão de quatro membros, para cà ele e os outros pastores elaborar a constituição a submetida aos Concílios e a Assembléia GeraK^
O esbôço da constituição após sofrer alterações (e que não contentou a Çalytóòo^y tudo), foi aprovado, três meses após a sra^tóhégada, pelos concílios e Assembléia. Essa corí|mmç|<3^^evia quatro ofícios na igreja: pastor, mésraeJ\S&u doutor, presbítero e diácono. O V /
Ao pastor cabia a 'pffeàácãty da Palavra, ministra- ção dos sacramentos, a staíjervisão da comunidade com a ajuda dos presbítérôs, «: m assumiria o múnuspastoral, sem<^uçvÍ9 sse devidamente chamado, se submetesse a- ihrÇ ôXame, fosse consagrado e ordenado pelos mi^swô^yApós o exame o candidato apresen- tar-se-ia^\«queno concilio, que, uma vez satisfeito com as quáim Wçòes exigidas pelo candidato, lhe dava per-
issáo) jsara pregar perante a congregação a fim de essa recebido. A imposição das mãos na orde-
i foi abolida, para evitar superstição, embora Calvino preferisse conservá-la. O pastor ordenado ju
raria liueiiuctut; a iJt;us uu Hisiauu e nu seu uiiuiu. u m avez por mês os ministros se reuniriam, tanto os da cidade como os dos bairros, para estudo das Escrituras. Os pontos divergentes que não pudessem ser resolvidos, com o auxílio dos presbíteros, seriam levados ao concilio para decisão final. Os ministros se reuniriam de 3 em 3 meses, no que se convencionou chamar “A Venerável Companhia”, para 'exortação uns aos outros e assuntos especiais.
Os doutores ou mestres tinham como função en
sinar a santa doutrina. Deviam ser homens preparados em línguas e ciências, daí a necessidade de um sistema educacional competente na Igreja. Deviam esses doutores ser examinados pelos ministros e por eles aprovados embora não fossem ordenados.
O ofício de presbítero consistia na supervisão da vida individual dos membros da Igreja, admoestando-os de maneira amiga em faltas; não havendo correção, relatando ao conselho para as medidas cabíveis. .
Em consulta com os ministros, o Concilio elegia 1 2 homens de piedade comprovada dentre seus membros para participar do Conselho dos 200, os quais exerceriam o seu mandato por um ano, findo o qual poderiam ser reconduzidos ao cargo e continuar.
Os diáconos, escolhidos do mesmo modo que os presbíteros, deveriam cuidar do atendimento aos pobres e enfermos e da administração do hospital da cidade, no qual haveria lugar para os inválidos, viuvas e órfãos. Era proibido pedir esmolas à porta das casas.
O consistório se compunha dos ministros e presbíteros, os quais se reuniam uma vez por semana para tratar de assuntos de desordens na igreja e o remédio para isso, ficando porém o concilio com a autoridade judicial de decisão. Calvino conseguiu, à custa de muito esforço que ao consistório fosse dado o direito de excomunhão. Gostaria que houvesse uma separação bém definida entre a autoridade do Estado e a eclesiástica, ficando a cargo da igreja, isto é, do consistório, a matéria de doutrina e disciplina.
Mesmo num estado como o de Genebra onde a relação estado-igreja é tão íntima e a cooperação tão estreita, a Igreja áeve gozar de autonomia no que concerne a matéria exclusivamente espiritual.
O que Calvino obteve não era ideal, mas uma acomodação à circunstância do lugar e do tempo. Em carta a Miconius (15 de março de 1541),41 relata que, embora o que conseguira não fosse perfeitoí contudo, não £oi sem dificuldade que mesmo isso pudera alcançar.
O concilio não queria abrir mão do direito de excomunhão, dando ao consistório apenas a função de admoestar, e foi após uma luta seguida de mais de quinze anos que, em 1555, com a definitiva derrota dos libertinos, o consistório obteve o poder de excomunhão.
Queria, ainda, Calvino tornar o clero independente do Estado no que dizia respeito a seus honorários, bem como à criação de síriodos, aos quais subissem em última instância os assuntos em matéria de fé.
Queria, ainda, que a escolha dos presbíteros fôsse feita não apenas de entre os membros dos concílios, mas extensiva a todos ós membros da congregação. Calvino entendia que o sistema que convinha a Genebra podia não ser o ideal para um estado e igreja em diferentes circunstâncias, daí pensarem alguns que advogara um sistema semi-episcopal para a Polônia, (carta em 9 de dezembro de 1554) e que aprovara o governo episcopal vigente na Inglaterra quando de sua carta a Somerset.
Caberia, ainda, a Calvino, com o auxílio de dois outros juristas, a elaboração do código civil de Genebra, no que a sua condição de advogado, ex-aluno de dois grandes mestres do direito — Estoile de Stable e Alciati, o fazia perfeitamente qualificado, e nisso se provou um perfeito aluno dos mestres que teve, desempenhando com zêlo e acuidade a sua tarefa.
Um outro aspecto da obra inicial de Calvino, após chegar a Genebra, foi a elaboração da liturgia. É jús- to pensar que Calvino recebera, durante a sua permanência em Estrasburgo, influência de Bucer no que diz respeito à ordem do culto. Diz-se mèsmo que, em grande parte, era a liturgia adotada pelo pastor de Estrasburgo que trazia para Genebra, no entanto, deve-se lembrar que na sua própria igreja — a igreja de refugidos franceses ali, Calvino elaborara a sua liturgia, com cânticos de salmos que ele mesmos metrificara, sendo a música de alguns composta pelo organista da mesma igreja.
Calvino não era um homem refratário a sugestões,
muito pelo contrário, admira se nele a frequência com que se deixa influênciar por outros, em assuntos em que ele não tem sua opinião ainda formada. Seja como fôr, o que desejava Calvino é que o culto público fosse inteligível e edificante, livre das orações mecânicas e sem sentido, como o eram as orações em latim.
O mesmo acontece com os sacramentos, os quais embora revestidos de toda a solenidade, não devem ter caráter enigmático ou simulações de magia esotéricas, mas claros e inteligíveis, com a participação condigna e consciente do povo, em que o louvor tem o seu lugar próprio e sejam relacionados com o todo do culto. Os salmos devem ser cantados, sem acompanhamentos musicais (entende Calvino), pois isso lhe cheira a invenção papal sem exemplo na Igreja Primitiva. Inicia-se o culto com exortação e oração, seguida de confissão, cântico de salmo, oração para iluminação do Espírito na pregação da Palavra, a qual fica à discrição do ministro, segue-se a absolvição pro- nuncida pelo ministro, cântico dos mandamentos. Oração relacionada com os mesmos. Depois do sermão, longa oração intercessória, terminando com a bênção apostólica. Ocasiões especiais requerem orações especiais, tais como batizados, casamentos e celebração da Ceia do Senhor.
Caracteriza-se o culto pela simplicidade, pela reverência, espírito de adoração, edificação e participação. A liturgia de Calvino deixa ao ministro muita liberdade, de modo a introduzir o que no seu entender contribui para o bom andamento e eficácia do culto.
Como antes fizera em Genebra e posteriormente em Estrasburgo, Calvino insiste na instrução dos filhos da Igreja. Agora, pelas ordenanças, os pais se tornavam obrigados a mandar os filhos, aos domingos, à igreja para receberem instrução religiosa, aprender certos pontos básicos da fé cristã; o catecismo, para recitá-lo em ocasião solene perante a igreja como uma profissão de fé, pela qual eram admitidos à comunhão.
Beza atesta que o catecismo de Calvino foi traduzido em muitas línguas, tais como alemão, italiano, es
panhol, inglês, flamengo, grego e até no hebraico, por um judeu convertido.
Calvino entregou-se de corpo e alma à tarefa de que fora incumbido; fazer de Genebra uma cidade e uma igreja, tanto quanto possível, de acordo com o seu ideal, como diz Wendel,42 ou a “Civitas Dei” do seu sonho.
Se considerarmos a multiplicidade de problemas que Calvino tinha que enfrentar diariamente com refugiados que a todo dia chegavam e precisavam ser atendidos, instalados, arranjar empregos, a sua constante preocupação com a Causa da Reforma em outros países, como: Inglaterra, França, Polônia, Escócia, etc., o seu zêlo pastoral para com os oprimidos, muitos deles em prisões, como na França, e as pregações e estudos diariamente, a sua participação, embora informal, na administração da cidade, parece um milagre que um homem doente e fraco pudesse produzir tanto. As cartas que escreveu e que chegaram a mais de 2 mil, os livros e comentários, tratados e sermões de Calvino reunidos formam uma coleção de11 volumes avantajados.
Beza nos informa do programa que Calvino desempenhava semanalmente: pregava em dias alternados e lecionava cada terceiro dia; na quinta-feira reunia-se com os presbíteros; na sexta-feira participava da reunião chamada “A Congregação” em que, com outros ministros, trocava idéias sobre textos das Escrituras. A casa de Calvino era constantemente visitada por gente que vinha de longe para ouvir sua palavra de conselho, para pedir orientação sobre algum problema, além disso, estava constantemente revisando o seu livro “As Institutas”, aperfeiçoando-o para as edições sucessivas que havia de ter.43
Debilitado em sua saúde, vítima constante de crises reumáticas, sofrendo de uma dor de cabeça que o acompanhava por vinte anos, cada dia, alimentando-se parcimoniosamente, às vezes com uma refeição diária apenas, por causa de seus males, trabalhavá sem parar e até parecia encontrar algum alívio para
suas dores no entretenimento do trabalho.Como afirma Mackinnon, “um homem que por
natureza era tímido e vítima de freqüentes enfermidades, não conhecia, nem medo, nem hesitação, quando o que estava em jogo era, segundo o seu entender, a Causa de Deus” .44
Os inimigos de Calvino, que nunca deixaram de existir ali em Genebra, mesmo nos dias em que estavam em minoria, trabalhavam sem cessar, para levá- lo ao descrédito e ao fracasso, embora secretamente. Formaram um partido, que se denominava os libertinos, que não tinham nenhuma relação com um partido religioso do mesmo nome, em outros lugares; não aceitavam o rigor da disciplina imposta na cidade pelo novo regime, com respeito a moral e costumes. Aliás, convém lembrar que esse regime não era invenção de Calvino, e que mesmo quando Calvino, expulso da cidade, se achava ausente, o concilio manteve as mesmas exigências sobre o assunto, contudo, sem conseguir executá-las a rigor. Recorde-se que em Estrasburgo, num regime francamente democrata, medidas semelhantes foram tomadas.
Uma das armas freqüentemente usavam era a do ridículo. Calvino era objeto de grotescas pilhérias. Faziam-se trocadilhos com o seu nome e chamavam-no “Qaim”. Alguns davam aos cães o nome do reformador, cantavam-se canções alusivas a sua pessoa com galhofas e sarcasmo, era um não acabar de insultos cada dia.
O fato de Calvino ser um estrangeiro e, igualmente, muitos dos seus auxiliares que para Genebra vieram, fugindo da perseguição, aumentava a indisposição contra ele, ou pelo menos servia de desculpas para a antipatia que muitos lhe votavam. Por algum tempo após a sua volta houve calmaria, pois, as amargas experiências sofridas com a sua ausência e que propiciaram o seu regresso ainda estavam bem vivas na mente de todos.
Um dos pontos nevrálgicos da administração era o choque de autoridade entre o Consistório e o Con-
cflio. Para Calvino, não restava dúvida de que a coisa certa era a separação de igreja do estado, de modo que, em matéria doutrinária religiosa, o Consistório, composto dos presbíteros e ministros, era o tribunal competente para julgar e decidir, excluir da comunhão ou restaurar.
O concilio, talvez por julgar necessário supervisionar a vida da comunidade, que, no caso, se confundia com a própria igreja, nunca quis abrir mão de tais direitos.
Calvino conseguira, com muita dificuldade, a aprovação das ordenanças, pelas quais a autoridade para decretar a excomunhão ficasse com o Consis- tório.
Em maio de 1543, o pequeno concilio propunha chamar a si esse direito. Calvino se opôs terminan- temente a isso, e chegou ao ponto de declarar que estava disposto a morrer ou sofrer novamente o exílio antes de aceitar tal usurpação. A situação foi se agravando.
Dois anos depois, um membro do concilio, Pierre Ameaux, numa das reuniões, dirige-se de maneira insultuosa a Calvino, chamando-o de perverso picárdio (naturalmente, referindo-se a sua origem estrangeira), pregador de falsas doutrinas, ambicioso e intrigante. Pierre foi preso, julgado pelo concilio, que resolveu referir o seu caso ao concilio dos 200. A pena imposta pelo concilio maior foi branda, apenas exigiu que pedisse perdão a Deus e a Calvino e aos magistrados. Calvino levou o caso ao consistório, que exigiu a punição do culpado, recusando-se Calvino a pregar até que o culpado fosse punido com merecido castigo. O pequeno concilio modificou a pena exigindo dele uma apresentação pública de joelhos, levando uma tocha acesa, pedindo perdão a Deus, aos magistrados e pagando as despesas do processo.
A prisão de alguns elementos, que numa festa de casamento se entregaram a danças, então proibidas pelo concilio, entre eles um dos síndicos, Amin Per- rin e sua mulher, aumentou a tensão e, mais uma vez
é a Calvino que se dirigem as injúrias e insultos, pois, o consistório resolveu punir os infratores.
Francisca Favre, esposa de Perrin, também foi punida, se constituiu em permanente inimiga de Calvino, contra ele atiçando outros membros de sua família. O conflito entre concilio e consistório prosseguia e se agravava toda vez que algum caso de disciplina ocorria e o concilio se inclinava a passar por cima do Consistório e aplicar pena mais leve, ou ignorar a pena imposta pelo consistório. Tal situação favorecia a desordem e açulava os revoltados a proceder de maneira acintosa para com o consistório. Tal foi o caso da esposa de Perrin, que continuou a participar de danças e a falar leviana e injuriosamente contra o consistório e os ministros. O concilio ordenou a sua prisão na ausência do esposo, que se encontrava de viagem a Paris. Francisca Favre fugiu da prisão para casa de seu pai, que então já não residia na cidade.
O número dos descontentes ia crescendo e nas eleições de fevereiro de 1547, e posteriormente em 1553, aumentaram seus elementos dentro do concilio, de modo mesmo a contar agora com larga maioria. Pensavam agora os dissidentes que o momento chegava de dar um golpe decisivo na autoridade dos ministros e, especialmente, de Calvino e do consistório.
Berthelier, um dos mais fanáticos inimigos de Calvino, embora não se recomendasse pela vida licen- ciosa que levava, de conhecimento geral, era, no entanto, filho de um dos heróis da libertação de Genebra, que dera a sua vida como mártir da libertação. Entendeu Berthelier de solicitar ao concilio permissão para participar da Santa Ceia de que estava excluído, num acinte claro a Calvino, que não somente insistia na autoridade exclusiva do consistório para tratar de assunto dessa natureza, como se negara a servir o sacramento da Santa Ceia a indivíduos de reputação duvidosa.
Calvino foi consultado pelo concilio e, terminan- temente, se opôs ao pedido, alegando que ao concilio faltava autoridade para tratar do assunto. No sua au
sência, todavia, a permissão foi concedida, embora deixasse o concilio a Berthelier julgar da conveniência de participar ou não. Sabe-se que, particularmente, Berthelier foi aconselhado a não comparecer à cerimônia, até mesmo proibido por alguns.
Calvino ficou revoltado e condenou, perante os outros ministros, aquilo que lhe pareceu, não apenas uma usurpação de direitos, mas um desacato acintoso ao consistório e, particularmente, a ele, da parte do concilio. Por outro lado, lamentou que tal licença fosse dada a pessoa tão indigna de participar da Santa Ceia. O Concilio não se abalou.
No domingo, dia da celebração do sacramento, Calvino declarou do púlpito: “Hoje celebramos a Ceia do Senhor, se qualquer um a quem o acesso tenha sido proibido pelo consistório, julgar forçar o seu caminho à mesa do Senhor, eu aqui testifico que cumprirei o meu dever mesmo com risco de minha vida” .45
Sem dúvida, a coragem de Calvino, mais do que o conselho dos homens do concilio, intimidou Berthelier e ele não se atreveu a ir. Ganhava Calvino uma vitória difícil e arriscada. Não poucas vezes tivera oportunidade de mostrar, “que não tinha a sua vida por preciosa, conquanto que cumprisse o ministério que recebera do Senhor”. Pouco tempo antes, quando numa reunião do concilio, agitadíssimo, os membros dos dois partidos, Calvinistas e Perrinistas — estavam a ponto de praticarem uma verdadeira chacina e as espadas já reluziam nas mãos dos mais arrogantes e violentos, Calvino entrou no recinto à frente dos ministros, em meio a gritos e. insultos, com pa- laviras enérgicas, mas calmas, conseguiu amainar a tempestade e produzir uma conciliação embora provisória, mas salvadora para o momento.
Calvino ia, no entanto, ficando cada dia mais desgastado, com a saúde sempre precária. Não se abaixava aos desmandos do concilio e ós reprovava, como também os outros pastores, do púlpito. O concilio, desarmado na sua autoridade, se limitava a fa
zer-lhes exortações para que moderassem a lingua gem e pregassem a Palavra de Deus.
Na rua, Calvino era vítima de constantes insultos. Contra ele atiçavam os cães, batiam à sua porta para inquietá-lo. A perda da esposa, após longa e sofrida enfermidade em 1549, em meio a tantas lutas, veio aumentar aflição ao aflito. Cartas de Calvino a amigos, como Parei, dão conta das tristezas e saudades que angustiaram o seu coração de esposo com a perda da companheira tão útil e tão fiel.
Um ano depois, um escândalo, debaixo de seu próprio teto, vinha lançar um estigma sobre o seu lar e aumentaria as amarguras de sua cruz tão pesa- d.a Viu-se obrigado a denunciar perante o consistório a própria cunhada, esposa de seu irmão Antônio, que adulterara com um de seus criados. Calvino já estava pronto a deixar o seu posto e aguardava uma expulsão, como de outra vez, a qualquer momento.
Escrevera a Viret em 1548, dizendo-lhe que não sabia o que fazer, mas estava a ponto de não suportar mais, mas “desejaria que o Senhor me liberassè de meu posto. . .”. Pregou, tomando as palavras do apóstolo Paulo aos presbíteros de Éfeso, no livro de Atos, capítulo, 20 lamentando que as autoridades tentassem fazer aquilo que não lhe parecia certo, nem conforme a Palavra de Deus, que ele tinha pregado. Exortou os fiéis, que fossem obedientes à Palavra de Deus e terminou, “encomendo-vos, pois, irmãos, à Palavra da sua Graça” .46
Beza e outros autores acham que esse sermão de Calvino modificou a situação e uma nova aragem começou a assoprar. O concilio resolveu examinar a questão de novo, e o concilio dos 2 0 0 , posteriormente, tomou posição contrária à resolução anterior do pequeno concilio. Consulta foi feita às igrejas de Zurique, Schaffhause, Basiléia e Berna, que muito embora as opiniões fossem divididas, se colocaram em maioria ao lado de Genebra. Nesta altura, Berthelier tinha caído em desagrado.
Em 1554 uma reconciliação dos dois grupos se fez, com um compromisso por ambas as partes de
obedecer a Deus e Sua Palavra.Houve uma reunião cordial e uma refeição em
conjunto. Em 1555 conseguia Calvino que os dois concílios e a assembléia reconhecessem o direito do consistório de aplicar a excomunhão, conforme determinavam as ordenanças.
Referindo-se ao fato, Beza diz: “O ano seguinte (1555), pela maravilhosa bondade de Deus, pôs fim às lutas domésticas e deu à República e à Igreja de Genebra o repouso desejado” .47
Os facciosos se arruinaram por suas próprias armas. Uma terrível conspiração foi descoberta pela petulância de alguns conspiradores, quando em estado de embriaguez. Alguns tiveram pena capital e outros foram exilados.48 Perrin e alguns de seus partidários fugiram.
Outros fatores concorreram para essa vitória: a perseverança invencível de Calvino, a sua firmeza, a sua coerência (apesar das suas faltas) produziram um novo espírito. Por outro lado, nova geração vinha assumindo posição de liderança em Genebra, moços que foram criados sob a disciplina e orientação de Calvino. Além disso, muitos refugiados que cada dia vinham reforçar as fileiras dos seguidores de Calvino, era gente sofrida por causa do evangelho, fugida das perseguições e por isso, apreciava o zêlo do reformador. Essa gente, em muitos casos, era gente culta que ajudava a formar uma poderosa classe intelectual respeitável.
As eleições dos concílios foram, naturalmente, selecionando os seus membros e expurgando aqueles que se opunham à nova ordem. Assim como afirmava Stickelberg, “embora o mundo convulsionado continuasse em luta, Lutero já estivesse morto e os países católicos empenhados em desfazer a obra da Reforma, em Genebra o poder de Deus ia-se consolidando”, por isso o mesmo Stickelberg chama os nove últimos anos da vida de Calvino, “anos de triunfo”.
Genebra se torna identificada com o grande lutador de sua causa e passa a ser conhecido por muitos como cidade calvinista.
Capítulo 9
SER VETUS
É impossível separar o caso Servetus da grande luta que Calvino enfrentou com os libertinos. Mesmo porque, ao que tudo indica, aquilo que fora arranjado para dar um golpe final definitivo no grande reformador, acabou por estranho que pareça, constituindo-se na sua grande vitória.
Jovem de vinte anos de idade, mais ou menos, Servetus aparece em Estrasburgo, grande centro de líderes da reforma, afetando ares de polemista e teólogo. Pouco se sabe de sua infância. Sabe-se que era filho de um advogado de Videla, para onde se transferira de Villa Nueva de Aragão, onde nascera.
Estudou Servetus em Saragoça, com vistas à ad
vocacia e, posteriormente, em Tolosa. Em Estrasburgo começou a levantar questões sobre o Homem Jesus e o Verbo Divino, em que a divindade de Jesus era posta em dúvida. Publicou a seguir trabalhos sobre a trindade — De Trinitatis Erroribus — e também, Diálogo sobre a Trindade.
Dado o caráter heterodoxo da sua tese, recebe a imediata repulsa das autoridades de Estrasburgo e o seu livro tem a venda proibida. Percebendo que a situação não lhe era muito cômoda, tratou de sair de Estrasburgo, mesmo porque Martin Bucer, que com ele manteve discussões sobre a sua tese, procurando convencê-lo do seu erro, achou que seria prudente que se retirasse da cidade, de vez que se tomava muito séria contra ele a oposição.
Encontramo-lo mais tarde estudando medicina em Paris, quando Calvino de passagem por lá o procurou e marcou com ele um encontro a fim de que discutissem o assunto da trindade. Servetus não compareceu ao encontro marcado.
Dependendo da posição que cada um toma no caso, divergem os biógrafos de Calvino, ou de Servetus, sobre a razão desse não comparecimento ao encontro aprazado.
Calvino não tinha então a projeção que mais tarde adquiriu, daí alguns pensarem que Servetus simplesmente não deu importância ao caso, pois se sentia muito superior a Calvino e não estava para perder tempo com um obscuro contendor. Pensam outros que a prudência aconselhou-o a não se expor assim tão claramente às barbas dos doutos mestres da Sorbonne, que por aquele tempo, sob a orientação de Beda, estavam à cata de hereges para os exterminar, se possível, da face da terra. Para Calvino, também um sério risco, de vez que já se tinha afastado anteriormente dali para não ser preso, quando do discurso de Nicolas Cop em que se vira envolvido.
Servetus era dono de uma inteligência privilegiada, brilhante, muito jovem, já dispunha de conhecimentos mais ou menos vastos em diversos campos do
saber. Conhecia bem a História Eclesiástica, o grego, hebraico, o latim e o árabe. Discursava sobre teologia e gostava de apresentar as suas idéias contrárias ao ensino aos doutores da igreja e também dos reformadores, pois em questão de Trindade não havia entre eles divergência maior.
Bucer e Oecolampádio com ele discutiram e mostraram-lhe o êrro em que laborava, mas não o convenceram. Lutero leu o trabalho de Servetus e o condenou, julgando-o terrível heresia. A fama de sua he- terodoxia chegou até Roma e a inquisição espanhola, ao que parece, quis atraí-lo, levando-o de volta a sua terra para executá-lo. Convém lembrar que as suas idéias sobre a Trindade não eram de todo novidade. Nas polêmicas do terceiro século sobre o assunto, tiveram como adeptos Monarquianos, Sabelianos e Paulo de Samossata.
Servetus entendia que a Reforma, embora tivesse feito progresso na reabilitação de algumas doutrinas, deixara intactos erros graves tais como a doutrina da trindade, que o Concilio de Nicéia havia formulado, sem apoio nas Escrituras.
Encontramo-lo posteriormente em Lyon, fazendo revisões para a imprensa e editando uma Geografia de Ptolomeu, assunto sobre o qual em Paris fizera uma série de conferências e entrara em polêmica com os doutores, aos quais chamou de ignorantes, recebendo dêles em troca o mesmo epíteto.
Forma-se em medicina, em Paris. Em 1540, sob o nome de Villanueva, que já vinha adotando desde algum tempo, está em Viena, perto de Paris, e pratica medicina sob a proteção do bispo que o tem como seu médico, e que faz vistas largas aos comentários de Servetus sobre a Bíblia, condenados pelas autoridades eclesiásticas de Lyon, Roma e Madrid. Publica, então, um tratado sobre a circulação do sangue nos pulmões, uma descoberta de grande valor científico. Inicia uma correspondência com Calvino, na qual, além das suas idéias anteriores sobre a Trindade, ata
ca também outras doutrinas, e o faz com superioridade pretensiosa e sarcasmo.
Sabendo, pois» do seu paradeiro, Calvino nunca fez qualquer coisa para o denunciar. Enviou-lhe uma cópia das suas Institutas, mostrando-lhe assim como encarava a doutrina da Trindade. Servetus a devolveu com muitas correções e tratando Calvino em tom insultuoso.
Guilherme de Trie, cidadão de Lyon que se refugiara em Genebra por causa de sua fé evangélica, recebeu cartas de um seu parente que o censurava pelas suas idéias religiosas consideradas hèréticas. Em resposta, alegou ele ao parente, faltava-lhe autoridade para falar de heresias, de vez que em Lyon residia sem ser molestado um herege como Servetus.49 O parente tomou a si o caso e levou-o ao conhecimento das autoridades eclesiásticas. Investigações levadas a efeito revelaram que o indivíduo em questão era nada menos do que o doutor Villanueva. Servetus negou a sua identidade. Uma busca nos seus livros e na editora que os publicara, chegou tarde demais, não achou nada. O parente de Trie volta à carga e agora deseja ter provas da acusação de Villanueva, pois ambos — ele e Trie estão na posição de falsos acusadores, sujeitos até mesmo a um processo legal. Trie recorre a Calvino para que lhe forneça as provas. Calvino reluta em fornecê-las, segundo o testemunho de Trie, dizendo que não era sua função combater hereges com espada, mas refutá-los. Por outro lado, como afirmou, era-lhe repugnante oferecer informações à Inquisição, que vinha perseguindo seus próprios irmãos na França. Não tinha nenhuma comunhão com estes satélites do Papa, com os quais havia tão pouco em comum como Cristo com Belial. Trie apela a Calvino para que não deixe agora em falsa posição.50
Afinal de contas, as cartas de Servetus a Calvino não eram de caráter reservado, pois foram incluídas no livro que ele mesmo mandaria a Calvino. Aqueles que se colocam incondicionalmente contra o reformador, duvidam da informação de Trie e o fazem an
sioso por incriminar Servetus. Stefan Zweig, por exemplo, se situa neste grupo, julga Calvino um fanático que, quando tratava de defender sua causa, punha de lado á honestidade e a verdade dos fatos. Se Calvino quisesse denunciar Servetus, poderia ter feito muito tempo antes, pois, durante alguns anos era um dos poucos que sabiam do seu paradeiro e da sua verdadeira identidade, que, então, estavam ocultos sob um falso nome.51
Perante as autoridades do Santo Ofício, Servetus negou a autoria dos livros seus. Quanto às iniciais que, ao invés da assinatura, esses livros traziam, e que coincidiam com as do seu próprio nome, negou-as que fossem suas. Quando, porém, a cópia da correspondência mantida com Calvino, com a assinatura de Servetus, foi apresentada, afirmou que se tratava apenas de um epíteto que assumira por sí na discussão com Calvino.
Preso, fugiu da prisão, ao que se supõe com o auxílio de algum amigo, quem sabe a mando de seu protetor, o bispo. Foi, no entanto, queimado em efígie, juntamente com seus livros.
Tempos depois, aparece em Genebra e é reconhecido, denunciado por Calvino e preso.
Stickelberg põe em dúvida a afirmação feita por muitos de que Servetus foi preso logo que chegou a Genebra, e inclina-se com outros a crer que estivesse lá algum tempo, oculto na casa de amigos. E pondera: ao ser preso, Servetus afirmou que estava alí de passagem para a Itália. Ora, Genebra não era o caminho mais perto para a Itália; por que essa volta cansativa.52
Em Genebra morava um dos impressores dos livros de Servetus, que era libertino, e que, por certo, o trazia a par da situação alí, que na ocasião era inteiramente desfavorável a Calvino, com a maioria dò concilio contra ele. No correr do processo, Servetus exigiu que Calvino fosse preso e ambos fossem julgados e que, provada a culpa do falso acusador, se lhe aplicasse “poena Talionis”, e que, provada a sua ino
cência, fossem as propriedades de Calvino transferidas a ele — Servetus — como indenização.
Daí concluir-se que o homem que, em Viena, negara perante as autoridades eclesiásticas a sua identidade e a autoria dos seus livros e que, em Genebra, afirmava sem temor uma e outra, alimentava esperanças de derrotar Calvino e tomar o seu lugar na liderança da cidade.
O tribunal eclesiástico de Viena pediu a extradição de Servetus, uma vez que lá fora condenado à fogueira. Servetus pediu de joelhos que não lhe dessem. Uma consulta foi feita às cidades de Berna, Basiléia, Schaffhausen e Zurique sobre a condenação de Servetus e a resposta unânime foi pela condenação.
No longo processo, Calvino, chamado a testemunhar, manteve longas e calorosas discussões com Servetus, sendo muitas vezes por ele insultado. Os inimigos de Calvino no concilio tratavam de por todos os meios livrar Servetus, o que seria uma maneira de condenar Calvino, incrimínando-o como falso acusai- dor. Amin Perrin, numa última cartada, propôs que a matéria subisse ao Concilio maior dos 200, sem resultado.
Contra a expectativa de Servetus e de seus amigos, e de Calvino, o conselho decretou-lhe a pena de morte, para ser queimado vivo. Era a pena de hereges. Calvino tentou com os outros pastores conseguir que a pena fosse comutada para uma morte menos terrível, o que não conseguiram. Calvino visitou Servetus antes da execução, tentando levá-lo ao arrependimento, sem o conseguir. .
Tem-se procurado encarnecer a participação de Calvino nessa dolorosa e terrível tragédia, participação que só se tem que lamentar. Alguns fatos devem ser lembrados:
1. A sentença foi dada por um tribunal do qual Calvino não fazia parte e onde os seus inimigos estavam em maioria. Corria Calvino naquela época o risco de uma outra expulsão ou mesmo de
ser morto, pois» planos para tirar-lhe a vida não faltaram, só que não vingaram;2. O tribunal que condenou Servetus era um tribunal secular de uma nação (pois Genebra era cidade livre, com governo próprio), onde a pena de morte era aplicada aos hereges com morte em fogueira.Os que desejam dar maior dimensão à participa
ção de Calvino nesse episódio procuram negar-lhe as boas intenções em salvar Servetus da pena máxima, duvidam de que ele não tivesse procurado denunciar Servetus perante a Inquisição — contra todas as evidências — agarram-se a uma expressão de Calvino em uma de suas cartas em que dizia que se aquele here- ge aparecesse em Genebra não o deixaria sair vivo. Essa expressão foi escrita muito tempo antes e não parece senão uma força de expressão como indica.
Esquecem-se de que tal era o espírito da época. Melanchthon, tido como pacífico e magnânimo, não só aprovou a condenação de Servetus, mas felicitou Calvino e Genebra por isso .54
Naqueles dias, muitos estavam sendo mortos em fogueiras como hereges. Não tivesse Servetus fugido da prisão, teria sido queimado em Viena, como fora a sua efigie e os seus livros. Não tivesse Calvino deixado a França e teria possivelmente sido devorado pelas chamas acesas pelos doutores de Sorbonne como foram muitos, entre eles o seu grande amigo, Etienne de La Forge.
Calvino não assistiu à execução de Servetus e Sti ckelberg afirma que ele ficara orando, ele que se esforçara para evitar essa condenação tão extrema. Calvino tem sido censurado duramente, tanto por amigos como por inimigos, pela sua participação na morte de Servetus. Infelizmente, o que se tem feito é o que Wendel condena, quando diz a respeito do caso de Servetus e a participação de Calvino nela: “É contrário a uma concepção sólida da História tentar aplicar a nossa maneira de julgar e os nossos critérios imorais ao passado” .55
Creio que nenhum calvinista honesto e sereno no seu julgamento dos fatos tentaria inocentar Calvino pela sua infeliz participação nesse episódio negro e deprimente da história de Genebra. E creio que é o legado que dele recebemos que nos permite ver com isenção esse doloroso capítulo da nossa História. Por que ninguém que aceita a doutrina calvinista poderá alimentar ilusões com respeito à natureza humana e suas fraquezas. É com Calvino que aprendemos além da doutrina o exemplo de humildade que do seu leito de morte através dos séculos nos envia, quando declara aos homens do concilio de Genebra: “Penso, senhores, que vós tendes suportado com paciência a minha veemência, e meus defeitos, que eu detesto: Deus me tem sustentado". E aos pastores companheiros de trabalho: “Vós tendes suportado muitas das minhas enfermidades: tudo que eu fiz nada vale. O ímpio agarrará essas palavras, mas eu as repito; tudo que eu tenho feito nada vale. Eu sou miserável criatura. Posso dizer, contudo, que tive boas intenções e que meus defeitos sempre me atormentaram. O temor de Deus está no meu coração: vós podeis dizer que meus desejos têm sido bons. Peço perdão pelos meus pecados e, se houver algum bem, espero que vos conformeis a ele e o sigais”.
Com Calvino, aprendemos que nenhum bem há em nós e que “a graça não me pertence, não a possuo de mim mesmo: se eu a tenho, devo louvar a Deus por ma ter dado” .56
Lamentamos profundamente o envolvimento de Calvino na morte de Servetus, mas não nos envergonhamos da herança espiritual que nos legou. Em Genebra, fui ver a Igreja de S. Pedro onde Calvino tantas vezes pregou, fui ver o auditório onde pronunciou as suas lições bíblicas memoráveis, mas fui também conhecer o monumento de reconciliação ou penitência que os descendentes espirituais de Calvino fizeram erguer, sob a inspiração de um dos mais devotados e ilustres calvinistas deste século — Émile Doumergue •— autor da inscrição que lá está e expressa o senti
mento real de todos nós: “Como reverentes e agradecidos filhos espirituais de Calvino, o grande reformador, repudiamos o seu erro, que era o erro da sua época, e, de acordo com os verdadeiros princípios da Reforma e do Evangelho, apegamo-nos com firmeza à liberdade de consciência e erigimos esse monumento de reconciliação”. “Em XXVII de Outubro de MCMIII".
Todo verdadeiro calvinista sabe reconhecer as limitações da humana natureza, que só tem valor mediante a Graça de Deus. O Monumento de Reconciliação se afina perfeitamente com o ensino de Calvino sobre a nossa miséria, e com o espírito de contrição e humildade que se espelha no seu testamento, por isso mesmo, é único na história e aponta para aquela bem-aventurança dos humildes de espírito que a Teologia de Calvino propõe e é capaz de produzir.
Capftulo 10
SEBASTIÃO CASTÊUO MAIS UM OPOSITOR
Um outro grande opositor de Calvino é seu patrício, Sebastião Castélio, francês de Dauphins, perto da divisa com a Suiça. Castélio estudou em Lyon e tomou-se muito competente em Grego, Hebraico, Latim e posteriormente Alemão.
Falava com fluência francês, sua língua mãe, tão bem como o italiano. Durante os estudos em Lyon, teve oportunidade de assistir à queima de “hereges” e ficou profundamente abalado nas suas convicções religiosas, acabando por aderir ao protestantismo, indo, então, para Estrasburgo, neste tempo uma das cidadelas dos reformados.
Por sugestão de Farei, foi ele convidado para lecionar na Escola em Genebra, onde se tornou também
diretor. Revelou-se não somente bom professor, como excelente pedagogo, tomando-se conhecido e divulgado o seu livrinho preparado para os alunos de francês e latim “Colloques”. Logo depois, Castélio, que já vinha pregando num dos bairros de Genebra, candidatou-se ao ministério. O concilio estava pronto a recomendar a sua ordenação, mas Calvino que conhecia as idéias teológicas de Castélio, errbora o admirasse como professor, opôs-se à ordenação dele, pois, sabia que não aceitava o caráter canônico do livro de Cânticos e tinha interpretação, para ele, errada de certas passagens do credo apostólico, além da sua rejeição da doutrina da predestinação.
Castélio havia insistido para que Calvino aprovasse a publicação de uma tradução sua do Novo Testamento, mas Calvino julgava haver certas falhas na tradução de alguns textos.
Em tudo, porém, Calvino mostrava simpatia para com Castélio, inclusive propusera o aumento de seu salário, achado insuficiente. Castélio se irritou por não ter sido aceito no ministério e resolveu deixar Genebra. Pediu, então, um documento que atestasse o seu bom caráter e desempenho no trabalho; documento que lhe foi dado, redigido por Calvino e por ele assinado com os outros pastores.
Castélio foi para Basiléia, onde lutou com as maiores dificuldades para se manter, até que conseguiu um lugar na Universidade, tornando-se, então, um professor de nome. De Basiléia começou a escrever, combatendo indiretamente a Calvino e alguma de suas idéias.
Após a morte de Servetus, tendo Calvino escrito o tratado sobre Heresia, Castélio saiu a campo e diretamente atacou Calvino com extrema severidade. Calvino, pessoalmente, não tratou do caso, mas o concilio da cidade de Genebra, que também foi indiretamente atingido, dirigiu-se ao concilio de Basiléia e à Universidade, pedindo reparação do caso. Nesta altura, Castélio gozava de grande prestígio alí, mas a cidade de Basiléia resolveu impedir a publicação do
livro em que os ataques dirigidos a Calvino se continham.
Logo depois surgiu um panfleto de autoria duvidosa, mas atribuída a Castélio, em que novas investidas eram feitas contra Calvino. Calvino saiu a campo e o atacou com extrema severidade e muita dureza.
A cidade de Basiléia tomou as dores do seu ilustre hóspede e grande professor e cancelou a proibição anterior. Foi, então, que Castélio lhe dirigiu o mais violento e desaforado ataque, recheado de insultos e proclamando a sua própria integridade e inocência, invocando o testemunho divino em seu favor e ex- conjurando Calvino. Não demorou, contudo, e vieram à tona revelações das relações sigilosas que Castélio vinha mantendo com dois indivíduos declaradamente hereges e inimigos da causa evangélica. Um deles, Oc- chino, ex-geral da ordem dos franciscanos, que, por um tempo, se fizera convertido ao protestantismo, mas que escrevia obras contrárias à doutrina evangélica. Descobriu-se, então, que Castélio traduzira uma obra herética de Occhino para o italiano. Caía por terra, portanto, toda a lisura, toda a integridade e toda a pureza de intenções que Castélio se arrogara, com tanta verbosidade, na polêmica e no seu ataque desa- brido a Calvino.
A morte repentina de Castélio evitou que providências fossem tomadas pela universidade e pela cidade contra ele. O Sínodo Geral das Igrejas Reformadas, em 1563, o condenou por heresia e falsidade.
É pena que um escritor do quilate de Stefan Zweig escreve um livro que intitula “The Right to Heresy”, no qual cuida mais de condenar Calvino do que de defender Castélio, e o faz com extrema parcialidade, como se Calvino se recusasse a autorizar a publicação do Novo Testamento traduzido por Castélio, julgando a tradução imperfeita, por despeito e por medo de competição. Quando Calvino mostra benevolência para com Castélio e lhe dá uma carta de recomendação honrosa, é nada mais do que uma jogada manhosa para parecer magnânimo. Se Calvino se recusa a tomar qualquer ação contra Castélio e o con-
cílio de Genebra é que exige de Basiléia e da Universidade uma solução, é Calvino quem habilmente puxa os cordões. De modo que Zweig, obrigado a reconhecer a capacidade intelectual de Calvino, a sua inteligência, o seu dinamismo, a sua devoção ao trabalho e à causa a que se dedicou, passa por cima de todas as evidências de sinceridade, de zelo incondicional pela fé evangélica, de sua heróica resistência a toda ameaça de deturpação da doutrina e do seu empenho paciente por uma reconciliação de todos os grupos reformados, para considerar a luta de Calvino o pulo de irntó cega e fanática ambição ditadorial. Afirma: “nada estava mais longe de Calvino do que reconciliação. . . ele nunca entendeu o significado da via média”.57
E vai mais longe ainda, quando diz contra todas as evidências: “ele nunca retrocedeu um passo: nunca fez um movimento no sentido de condescender com o adversário. Aqueles que têm que lidar com um homem assim ou hão de quebrá-lo ou ser quebrados por ele".58
—■ Para Zweig, Calvino era um zelote fanático, desonesto, que “não tinha escrúpulos de alterar nem mesmo o texto sagrado quando essa alteração era ne- cèssária para levar a melhor contra o. adversário”.59
Que pena? Preconceitos não têm lógica, mas existem e são capazes de turbar a mente e o julgamento do mais lúcido, mais brilhante mestre da lógica. Que pena. . .
Capftulo 11
0 FIM DA LUTA
Stickelberg intitula o período na vida de Calvino de 1550-1556 “Anos de Triunfo”. A posição que, por anos seguidos, tinha trazido Calvino nas agonias de uma possível expulsão com ameaças de morte, diminuía agora apds a execução de Servetus.
Parece mesmo que um esforço supremo tinha sido feito para liquidar com Calvino e que a presença de Servetus em Genebra era parte deste plano. Amin Perrin, que se tornara em cabeça do movimento anti- calvinista, fora um poderoso instrumento nas decisões do concilio, com vista a diminuir a força de Calvino. Numa investida desesperada, com outros elementos, planejara uma insurreição que, descoberta a tempo, fracassou, resultando na condenação de alguns che
fes e na fuga de outros, inclusive o próprio Perrin. Vandele e Berthelier foram decapitados. Calvino não estava presente e não tomou parte nisso, conforme carta a Bullinger. Depois de um longo período de pressões que por pouco não o destruíam de vez, Calvino começa agora a colher os frutos de seu esforço.
Não possuía nenhuma autoridade formal, nem mesmo o título de cidadão de Genebra, mas agora era indiscutível a sua força moral e espiritual. Genebra, e toda Europa protestante, ouvia a sua palavra com respeito. A fama da cidade como uma comunidade próspera, progressista e moralizada *ia longe e muitos vinham visitá-la para conhecer de perto o que alí se passava. O Duque de Sabóia, que nunca perdera as esperanças de voltar ao domínio de Genebra, sabia agora que seria debalde tentar. J. Knox em 1556, dizia que Genebra era a mais perfeita escola de Cristo, desde os dias dos apóstolos.
Tinha agora Calvino oportunidade de realizar o seu grande sonho — estabelecer alí a sua Academia— um centro educacional para a Igreja e pela Igreja, de modo a preparar ministros e cidadãos capazes, sob a orientação de uma Teologia Cristã verdadeira.
Desde que para alí chegara, na primeira vez, tentaria organizar a cidade em bases sólidas e para isso planejara uma obra educacional.60 Iniciara as aulas de retórica e preparava-se para o ensino de francês, latim, grego e hebraico. A sua expulsão interrompera o plano.
Logo após a sua volta, começou a insistir no dever da igreja de educar os seus filhos. Isso está claro nas suas “ordenanças”. As lutas que se sucederam e os problemas agudos que se acumularam tiveram prioridade, pois, era uma batalha de vida ou morte que se travava. Até que a paz veio a reinar.
A 5 de março de 1559 abria Calvino a sua Academia. Os prédios ainda por terminar sem vidraças; tá buas toscas servindo de bancos e carteiras, mas o número de alunos já na abertura atestava o entusiasmo do povo, previa o futuro da escola. No primeiro ano
já contava com 900 alunos. A abertura foi na igreja de S. Pedro, com a palavra de oração por Calvino. O pregador foi o reitor escolhido, Teodoro Beza, que pronunciou a sua oração em latim, discorrendo sobre educação através dos tempos. Alunos e professores assinaram o Catecismo e a Confissão de Pé. Calvino se incumbiu de escolher os professores e trouxe de Paris e de Lausanne os melhores entre os melhores que pode encontrar.
Stickelberg nos diz que Calvino não se contentava com professores que fossem apenas bons, queria os melhores. Ele mesmo se incumbiu de redigir os estatutos da Academia.
Houve muita dificuldade financeira, mas uma campanha de ofertas voluntárias levou gente de todas as classes a contribuir, alguns com mais do que as suas posses pareciam permitir. Resolveu-se que as multas resultantes de processos nos tribunais fossem revertidas em benefício da Escola. Jean Boche pagou 100 coroas, porque fora multado por não respeitar os direitos autorais das “Institutas”, que pertenciam a Antônio Calvino, irmão do reformador.
Sugeriu Calvino aos advogados que, ao redigir testamentos, aconselhassem os seus clientes a legar parte dos bens à Academia, o que deu bom resultado, pois, em pouco tempo uma quantia considerável pro- vinda de 12 testamentos se destinava à Escola.
Estudantes afluíram de todas as partes da Europa e a Academia se tornou famosa. Da Itália, da França, Holanda, Escócia, Inglaterra vinham moços que, mais tarde, haviam de levar para suas terras a fama da Escola de Genebra. Calvino adotou um programa de ensino unificado — primário, secundário e universitário .
Quando morreu, a Academia contava com 1200 alunos no curso superior, além de 300 nos cursos inferiores. Calvino tinha como ideal preparar líderes para a igreja, para a sociedade e para o governo civil.
Era uma Escola da Igreja, pela Igreja e para a Igreja. Mais tarde, a educação do tipo de Genebra se implantava na França, Holanda, Escócia e, até mesmo, na Alemanha. Parece que o jesuíta Aquaviva, ao
formular o sistema educacional da ordem, utilizou idéias de Calvino no seu Ratio Studiorum.
Um presente de Natal. Em 25 de dezembro de 1559, Calvino foi convidado a comparecer ao concilio para tomar conhecimento de que lhe era conferido, então, o título de cidadão da cidade. Agradeceu, comovido, e afirmou que não procurava antes esse título para si, pois temia ser mal entendido. Genebra afinal tomava-se identificada com o grande lutadoi de sua causa e passava a ser conhecida por muitos como a cidade de Calvino.61
Capftulo 12
COMPANHEIROS DE CAL VINO
Alguns nomes estão indissoluvelmente ligados à vida e obra de Calvino, de modo que, até para melhor se entenderem certos aspectos da sua carreira, é preciso que se fale deles — situando-os no grande contexto histórico da Reforma em Genebra. Falamos de Farei, Viret e Beza. Cada um desses homens ocupa um' papel diferente no enredo dessa notável epopéia, pois, cada um deles possui qualidades próprias, peculiares; em alguns casos até opostas às dos outros.
Falemos pela ordem que nos parece cronológica, por isso mesmo mais lógica, primeiramente de Wil- liam Farei.
A) FARELQuase todos os historiadores que tratam da vida
desse curioso personagem da história da Reforma Sui- ça, julgam necessário oferecer alguns traços físicos, além dos morais, intelectuais e espirituais deste ho- menzinho impertinente, por vezes importuno, para alguns.
Era de pequena estatura, barba avermelhada e em desalinho; magro, porte macilento, de aspecto doentio e tez pálida. Atrás, porém, desta figura pouco ins- piradora, pouco convincente, um dínamo de energia, de vontade; homem de perseverança e intrepidez irredutíveis: sempre ativo, sempre em movimento, sempre ardoroso.
Fora católico inflamado de grande zelo e fanático; uma vez convertido à causa da Reforma, mais ardoroso se tornou ainda, possuidor de um zelo quase obsessivo pela renovação espiritual do povo, pela formação de uma igreja evangélica, já que não cria na possibilidade de reabilitação da Igreja de Roma. O Papa era o anti-Cristo e o papado caminhava para um destino irreversível de completa destruição. Possuía, em grande medida, muito mais da ousadia de Lutero e era capaz de assumir atitudes muito mais drásticas do que o reformador alemão.
Longe de ter a cultura e erudição de Calvino, sobrepujava-o na audácia com que combatia o erro e na capacidade de convencer pela oratória patética e inflamada os seus ouvintes. Cria com grande entusiasmo na justificação pela fé e fazia dessa doutrina um tema constante de suas mensagens. Muitas vezes se tornava negativo na sua faina de denunciar a idolatria, o celibato clerical e as inovações doutrinárias. Não via obstáculo à sua atividade evangelística e pregava por toda a parte onde ia. Segundo Schaff, era o Elias da Reforma Francesa, e, segundo outros, o azor- rague dos sacerdotes. A sua violência era nas palavras. Nunca levantou a mão contra alguém e nunca se utilizou de armas, nem para se defender quando atacado, o que muitas vezes ocorreu.
Schaff acha que Farei era um destruidor mais do que um construtor; um conquistador mais do que um
organizador; homem de ação, não de letras. Parece- nos um tanto exagerada a apreciação de Schaff, mesmo porque não se pode negar a extraordinária obra construtiva que Farei desempenhou como evangelisr ta, sob as ordens de Berna, conquistando para a causa da Reforma, não somente Neuchatel, mas outras cidades pequenas naquela região. E nem se pode negar o seu mérito extraordinário na introdução da Reforma em Genebra. Nem há de se pensar que Farei seja um homem destituído de cultura geral ou teológica. Ainda jovem, foi para Paris e teve como mestre o grande Jacques Lefèvre d’Étaples, que lançou no seu coração a semente do evangelho reformado. Alí estudou com afinco hebraico, filosofia e teologia. A sua formação religiosa reformada se completou no contato com os valdenses de Pie de Mont, dos quais possivelmente herdou o fervor religioso e a fé inquebran- tável. Não pode ficar em Paris por causa da perseguição religiosa e, por isso, seguiu seu mestre, Lefèvre, o qual acusado de heresia pela Sorbonne buscava abrigo nos domínios de Margarida Valois, a protetora dos reformados.
William Briconnet, o bispo favorável à Reforma, mas sem qualquer desejo de abandonar a Igreja Romana, deu permissão a Farei de pregar na sua diocese em Meaux, mas logo teve que despedí-lo, dado o seu ímpeto inquietante. Depois de algumas viagens, dirigiu-se para Basiléia, onde Oecolampádio o recebeu. Alí resolveu discutir treze teses nas quais assegurava a verdade das Escrituras Sagradas, salvação pela fé, combatia o celibato clerical, idolatria, etc. . . Oecolampádio se surpreende com a temeridade e ousadia de Farei e chega a dizer que ele é um bom par para a Sorbonne. Erasmo, que alí residia, sentiu-se incomodado com a intolerância iconoclástica de Farei e o censurou severamente. Farei o chamou de covarde e Balaão. Erasmo não perdoou a ofensa e valeu-se do prestígio que possuia perante o concilio da cidade para obter a expulsão de Farei. Então, vai para a região de Berna e recebe a incumbência de evangelizar
os territórios subordinados àquela cidade.Em 1532, em companhia de Saumier, vinha a Ge
nebra, onde Olivetan já vinha realizando algum trabalho. Acabou saindo dali sobre a proteção dos síndicos da cidade para evitar que fosse liquidado pelos padres e monges, os quais armados o feriram, cuspiram e ameaçavam lançá-lo no Ródano. Volta mais tarde a Genebra sob a proteção de Berna. Discute com um monge dominicano, doutor da Sorbonne, que viera especialmente para combater o protestantismo. Farei alcança uma sensível vitória sobre o monge Furby e alí continua pregando, agora em companhia de Fro- ment e Viret. Disso resulta a adesão oficial da cidade à causa do protestantismo. É nessa altura que Calvino aparece em Genebra com intenções de apenas pernoitar ali e seguir viagem para Estrasburgo.
Mas, quem seria capaz de resistir aos apelos de Farei e a sua argumentação, quando esse homem queria alguma coisa de que estava convencido ser a vontade do Senhor? Farei foi ao ponto de ameaçar Calvino com o castigo de Deus, caso insistisse em dedi- càr-se aos estudos, rejeitando o convite para ficar em Genebra. Foi então que começou a grande amizade entre Farei e Calvino que havia de sustentar ambos na luta. Mais tarde é Farei quem vai insistir novamente com Calvino a voltar à cidade de onde foi expulso.
Em Neuchatel fica até o final da sua carreira. Embora de longe, a correspondência entre os dois reformadores era constante e um recurso de mútuo apoio durante longos anos até à morte de Calvino.
Abala-se Farei, indo a Estrasburgo para realizar o casamento de Calvino com Idalete de Buren. Calvino não pode corresponder à gentileza, pois que, quando Farei acha tempo para pensar em casamento, já está com 69 anos e escolhe uma adolescente, que, por sinal, fora criada em sua casa, filha de uma refugiada a quem acolhera, que se tornara sua empregada. Calvino não somente se recusa a celebrar a união, mas envia-lhe uma carta de exortações um tanto severas, reprovando-o, ao mesmo tempo, dirige-se ao conselho de Neuchatel, que ao que parece estava dis
posto a despedir o pastor, intercedendo para que agisse com benignidade, tolerando a leviandade do velho pastor que tão grandes e altos serviços tinha prestado à Causa naquela cidade e naquela região. O apelo de Calvino foi atendido.
Várias vezes Farei vai a Genebra, em ocasiões especiais, emprestar apoio ao amigo, amizade que nunca se arrefeceu, teve um epílogo sublime, digno da grandeza de caráter desses dois homens.
Pressentindo a morte que se avizinhava, Calvino escreve a Farei que não o venha visitar, sabendo-o doente e velho; e faz uma despedida comovente por meio dessa carta. Farei, no entanto, com grande sacrifício, vai a Genebra dar pessoalmente o seu último adeus a Calvino.
As palavras da carta que Calvino escrevera a Farei merecem ser repetidas: “Adeus, meu melhor e mais verdadeiro irmão. Desde que é a vontade de Deus que permaneça depois de mim neste mundo, vivo lembrando a nossa amizade, que foi útil à Igreja de Deus, de modo que os seus frutos nos aguardam nos céus. Peço-lhe que não se fatigue por minha causa. Tenho dificuldade em respirar e a qualquer momento darei o meu último suspiro. É bastante que eu viva e morra em Cristo, que é a compensação dos seus seguidores, tanto na vida, como na morte. De novo, adeus, com os nossos irmãos”.
Farei morria não muito depois de Calvino na mesma igreja de Neuchatel a qual tanto serviço prestara. Uma estátua marca alí na cidade o seu grande ministério.
B) PIERRE VIRETPierre Viret é o único suiço entre os reformado
res de Genebra, Calvino, Farei e Viret.O campo da sua atuação depois que deixou Ge
nebra foi em grande parte Lausanne. Nascera em Or- be em 1511, fora educado para o sacerdócio em Paris. Era dotado de grande cultura clássica e teológica, embora não seja tão conhecido nesse aspecto. Passou pela mesma grande crise espiritual por que passou Lutero, quando começou a perceber os erros em
que a Igreja militava, em face do conhecimento da Bíblia.
Particiou dos trabalhos de Farei e Froment em Genebra logo no princípio. Alí foi envenenado pela comida, e embora não viesse a morrer com isso, teve arruinada a sua saúde. Por vinte e dois anos foi pastor e professor em Lausanne. Casou-se duas vezes. Era também um grande amgio de Calvino, com o qual manteve grande correspondência portadora de mútuo conforto e de confidências íntimas em momentos difíceis na vida de ambos.
Quando Idalete, após o nascimento prematuro do filho, se vê grandemente enferma, é para a casa de Viret que deve ir a fim de cuidar da saúde e recuperá- la. E quando Viret passa pelo doloroso golpe de perder a esposa, Calvino imediatamente o convida a vir a Genebra, descansar em sua casa e refazer-se da grande provação.
Foi Viret quem conduziu Beza a Lausanne, a fim de que ele se tornasse professor na Academia, onde o talento de Beza se tornou evidente e apreciado. Mais tarde, Viret foi deposto pelo concilio e vai, então, para Genebra, onde é nomeado pregador da Cidade em 1559.
Trabalhou ali com grande êxito e admirável sucesso na qualidade de evangelista, resultando seu trabalho nas igrejas de Nimes Montellier e Lyons. Presidiu o quàrto sínodo dos Huguenotes em 1566.
A convite de Jeanne d’Albert, foi para a Academia de Bear que ela fundara em Orthez e Bear. Lá morreu em 1571, o último dos três fundadores da Igreja reformada na suiça francesa.
Era de baixa estatura, doente, magro, mas de um espírito ardoroso e incansável. Grande autor, fami. liarizado com as letras clássicas e teológicas. Deixou comentários do Credo Apostólico, dos dez mandamentos e da oração dominical. As suas obras são muito raras hoje. Sem o brilho de Calvino ou Beza, sem a audácia de Farei, era, no entanto, um extraordinário
pregador, capaz de prender o seu auditório. Foi um grande e fiel servo do Senhor.
C) THEODORO BEZASe Farei foi o antecessor de Calvino em Genebra,
que, de certo modo, preparou o caminho para a obra do reformador. Theodoro Beza é o sucessor e con- tinuador da obra, que com brilho e dedicação levou à frente a tarefa iniciada. Já vinha ele trabalhando com Calvino, tinha sido escolhido diretor da Academia e, quando Calvino morreu, não havia dúvida nc espírito dos homens responsáveis pela causa da Reforma em Genebra de que o seu sucessor natural seria Theodoro Beza.
Era Beza natural de Vezelay, uma pequena cidade no ducado de Burgúndia. Era de família nobre, seu pai Pierre Beza possuia alí um castelo, onde possivelmente Beza nasceu. Sua mãe, Maria Bourdalou, da nobreza parisiense, era mulher inteligente e caridosa.Faleceu quando Beza tinha menos de três anos. Nessa altura Beza já morava com o tio, Nicola Beza, grande jurista em Paris e membro do parlamento. O tio alimentava especial afeição pelo sobrinho e cuidou de criá-lo e educá-lo na melhor maneira possível.
Aos nove anos colocou-o sob os cuidados de Mel- chior Volmar, que, então, era professor de grego na Universidade de Orleans, famoso pelo seu saber e adepto das idéias de Lutero. De Orleans Beza foi para Bourges, acompanhando seu tutor, que para lá se transferia. Foi na casa de Volmar que Beza, ainda adolescente, encontrou Calvino pela primeira vez.
Em 11 de agosto de 1539, licenciava-se em leis, com honra. Vai, então, para Paris e, contra a vontade do pai, mas com o consentimento do tio, dedica- se ao. estudo de letras. Vive no ambiente da alta sociedade parisiense, participa das altas rodas, não lhe falta dinheiro, nem nome, nem mesmo um físico invejável. Recebia rendas de um polpudo benefício eclesiástico, o que subentendia o seu ingresso na carreira eclesiástica, que não iria nunca acontecer. Além disso, a morte de um irmão trouxe-lhe um legado valio
so aumentando assim as suas possibilidades financeiras.
Casa-se secretamente por contrato com Caludine Benosse, pois a sua condição de detentor de benefício eclesiástico normalmente não lhe permitiria isso. Durante a sua temporada em Paris, em 1548, escreveu um livro de poemas, intitulado Juvenilia, que se tornou muito apreciado nas rodas literárias, pondo em evidência o nome do autor.
Acometido de uma enfermidade grave, teve a oportunidade de pensar na posição falsa que estava assumindo, sendo beneficiado por renda eclesiástica, quando nessa altura já não concordava com as doutrinas da Igreja. Por outro lado, pareceu-lhe impossível manter oculta a sua nova fé e propôs declarar-se abertamente do lado da Reforma.
Não lhe seria possível permanecer na França, a não ser com riscos muito sérios. Resolveu fugir para Genebra, levando consigo Caludine para tentar alí a vida. Deixou para trás tudo o que possuía, mesmo porque seus bens foram confiscados pelo Estado.
Em Genebra, a primeira coisa que fez foi casar- se legalmente na Igreja, cumprindo a promessa que fizera a Caludine, quatro anos antes. Pensava em associar-se a um dos amigos que fora testemunha do seu casamento numa empresa tipográfica em Genebra. Viret, no entanto, arranja-lhe um convite para ir ensinar grego em Lausanne, na nova academia, e para lá se dirige onde permanece nove anos.
Ficou conhecido em pouco tempo e famoso como professor e pregador, atraindo para a academia muitos alunos de outros lugares. Dificuldades surgidas na academia de Lausanne, que obrigaram Viret e Beza a renunciar suas cadeiras, tornaram possível a ida de Beza para Genebra, onde, além de trabalho pastoral, lecionava na Academia, da qual se tornou também diretor.
Beza foi muitas vezes convocado à França quando a causa dos huguenotes estava em jogo e exigia a voz competente e autorizada de um çrador e de um
teólogo.Enfrentou homens, como o cardèal de Lorraine.
em disputa pública, levando a melhor. Serviu de conselheiro, de capelão ao príncipe Conde e ao almirante Coligny durante a luta que se travara entre hugueno- tes e católicos.
Estava Beza em Genebra quando se deu a terrível chacina da noite de São Bartolomeu. e muitos hu- guenotes que conseguiram escapar à matança chegaram a Genebra feridos, cansados, com fome. O seu apelo à cidade para acolher estes refugiados e sustentá-los teve um efeito extraordinário.
Após a morte de Calvino, Beza tornou-se a grande figura em Genebra, um pouco menos teólogo do que Calvino e bem maior orador do que ele. Homem de fé, compassivo, perseverante, dedicado a seu trabalho, Beza consolidou a obra de Calvino mesmo em meio à crise por que passavam a Igreja e a Academia. De Genebra partiam seus ex-alunos, levando a influência calvinista por toda a Europa.
Deixou algumas obras teológicas, embora não tenham a mesma divulgação, nem o mesmo prestígio das obras de Calvino. São, no entanto, de reconhecido valor e, com justa razão, figuram em meio à preciosa literatura daquele período significativo da Reforma.
Coube a Beza, por sua própria iniciativa, escrever a primeira biografia de Calvino, que tem servido como fonte de informações indispensável aos que estudam a vida do reformador e a sua obra em Genebra.
A OBRA LITERÁRIA DE CALVINO
Calvino nascera para escrever, escreveu desde mocinho, escreveu doente, escreveu em meio às mais acirradas lutas, escreveu no leito, ditando aos seus secretários, escreveu até altas horas da noite, mesmo enfermo e, segundo testemunho do seu primeiro biógrafo, Theodoro Beza, escreveu até oito horas antes da sua morte.
Como diz Warfield: “O que vemos em Calvino fundamentalmente é o homem de letras, como santo: Ele nunca visava para si nada, ele nunca desejava para si em toda a sua vida, ele nunca aderiu inteiramente a qualquer outra vocação. Ele era por natureza, por dons, por educação — por inata predileção, por qualidades adquiridas igualmente — um homem
de letras. E ele fervorosamente — podemos dizer — aproximadamente, como tal, desejou dedicar-se a Deus”.62
A enorme tarefa de reformador, que tão brilhantemente e de modo tão acabado desempenhou em vários aspectos, não poderia ter sido realizada na sua grandeza e variedade sem medida, não fora a dextre- za da sua pena fecunda servida de invulgar inteligência, raciocínio lógico, um domínio absoluto e elegante das duas línguas que utilizou na arte de escrever, o francês e o latim, nas quais pode se considerar clássico. Sabe-se que nos dias da sua incipiente atividade evangélica, quando não tinha tomado decisão definitiva com respeito à religião, nos tempos de estudante ainda, ministrava cursos bíblicos e os escrevia. Muitos desses estudos foram lidos por gente que às ocultas se reunia para o culto divino. Já então, revelava aquela sua capacidade tão peculiar de atingir os sábios e a gente simples do povo.
Começaria, no entanto, a carreira de escritor aos 22 anos de idade com a publicação do seu comentário de Sêneca, o “De Clementia”. O livro, que se enquadra perfeitamente na linha de obras humanísticas tão em voga no tempo, vai buscar entre os escritores latinos da antiguidade clássica o seu motivo e seu assunto. É abundante em citações de Cícero, um dos autores da sua preferência.
Segundo Walker, o comentário de Sêneca mostra que até então a Bíblia é ainda um livro fechado para Calvino. Calvino não alimentava nessa época interesse por questões religiosas, a sua publicação de um livro visava o interesse literário mais do que apolo- gético, ético mais do que religioso.83 Revela essa obra erudição fora do comum, com abundância de citações dos clássicos latinos e gregos, que indica bem os rumos a que até então o autor se dirigia.
Na situação religiosa da época, o humanismo tinha se tomado o refúgio para os intelectuais que, discordando da ortodoxia escolástica da Igreja, mantinham-se numa posição de distância, às vezes a meio
caminho da Reforma. Alguns, como Erasmo, preferiam nunca sair dessa posição cômoda, sem os compromissos e os riscos a que estavam sujeitos os reformados.
Cadier acredita que o livro “De Clementia” se constitui um desapontamento para o autor e até em sacrifícios financeiros não compensados, um evidente fracasso, portanto,64 É ainda Cadier que julga o insucesso do “De Clementia” haver se tornado num desses caminhos que a Providência utiliza para aniquilar o humanista que começava a repontar em Calvino e dele fazer o teólogo consumado que havia de ser, nas “Institutas”. Diríamos, no entanto, que foi na escola do humanismo que a pena adestrada do escritor futuro começaria a burilar o seu estilo, aparar as arestas e tornar-se mais fluente e mais escor- reita.
Seria “De Clementia” um livro isolado completamente das obras posteriores de Calvino? Jean Cadier pensa que, se Calvino não se tivesse tornado o reformador que foi, o comentário de Sêneca seria um livro completamente esquecido. Guizot e outros escritores que se ocupam das obras de Calvino não entendem assim, acham um esforço mais tímido, mais incipiente da mesma direção em que viria depois a sua obra imortal — As Institutas. E seria defesa mais tímida, menos arrojada, mais sutil e disfarçada dos filhos da Reforma tremendamente perseguidos na França daqueles dias. E o advogado está estreitando e utilizando os conhecimentos de direito que adquiriu na defesa de clientes que não conhece, que não o contrataram para tanto e dos quais não vai receber pagamento nenhum. Aliás, é notável verificar que este é um feitio de Calvino, colocar-se em defesa do que lhe parece certo, sem preocupação de recompensa material e sem que seja solicitado para tanto. E Erwin não tem qualquer dúvida em afirmar que os apelos de Sêneca. dirigidos a Nero, para que exercesse clemência e assim pudesse ganhar o amor de seu povo, como se encontra na obra de Calvino, são dirigidos a Francisco I, em relação aos reformadores.
É possível: a inexperiência do escritor debutante e a sua incerteza, a essa altura, com respeito a sua fé, talvez o hajam feito mais cauteloso. Para Alberto Hy- ma,65 Calvino nesta fase de sua vida ainda está longe de ser um convertido e o seu livro é puramente humanista.
O livro “De Clementia” é dedicado a Claude de Hangest da nobre família Monmors de Noyon, seu antigo colega desde os tempos de criança, agora abade de Saint Élois. A dedicatória do livro revela a grande intimidade de que Calvino desfrutava na casa dos colegas nobres e que lhe conferira quase o grau de membro da família: “Aceita este primeiro dos meus frutos: ele pertence de direito a ti, pois eu devo a ambos (referindo-se também ao irmão), o que eu tenho, pois fui criado como em tua casa em criança ainda”.
O abade pertencia à ala liberal da Igreja, .possivelmente pela influência que recebera em Paris, no contacto com homens como Cordier, daí pensar-se que Calvino, ao oferecer-lhe o fruto das suas primícias, não somente manifestar-lhe a gratidão pelos benefícios recebidos da família do amigo prelado, mas também propiciava a aquisição de um defensor da sua causa., membro relativamente influente do clero, na luta contra a ferrenha ortodoxia de Roma, que nesse tempo tinha como seu grande baluarte a Sorbonne, a inimiga do humanismo e caçadora de hereges ou supostos hereges.
Se a própria irmã do rei, Margarida de Valois, sofrerá a condenação de seu livro de poemas espirituais, porque Beda (Noel) farejara nele heresias luteranas, era preciso cautela para não incorrer logo de início nas iras da Faculdade de Teologia de Paris. Um exemplar do livro foi enviado por Calvino a Erasmo, humanista liberal, a quem Calvino tinha em alta conta, embora dele discordasse em alguns pontos no seu Comentário. Erasmo, ao que parece, se manteve em silêncio com respeito à obra de Calvino. Seria o livro
uma tentativa de imitá-lo? Seria um empenho em superá-lo? Estaria Calvino, ao enviar-lhe o livro, propiciando a sua crítica? Não se sabe. Sabe-se que pouco tempo dépois Erasmo apontava Calvino como um azorrague a castigar a Igreja.66
Como já dissemos, Calvino assumira a responsabilidade financeira do seu livro, que não deixou de lhe trazer algumas aperturas. Era o seu filho primogênito, o seu “debut” no mundo das letras e Calvino estaria ansioso por ouvir a crítica de quem tivesse conhecimento e capacidade para tal.
Em 1534 aparece um pequeno tratado da pena de Calvino. Desta vez uma obra de caráter apologéti- co em que rebate os erros dos anabatistas, os quais afirmavam que a alma dos mortos ficava dormindo até o julgamento final. O livro se intitula Psychopa- nychia.
Os anabatistas deram sempre muito trabalho a Calvino, posteriormente. Eta Estrasburgo alguns foram convertidos por sua instrumentalídade. Curiosamente, é com a viúva de um deles, Idalete De Buren, que Calvino vai se casar. Literalmente, Calvino vai caminhando do humanismo para a teologia por passos, lentamente.
Há uma certa ligação entre essa segunda obra de Calvino e as Institutas que viriam na sua forma inicial logo depois, em 1536. Na carta introdutória às Institutas que Calvino dirigiu ao rei Francisco I há um empenho em separar os verdadeiros evangélicos dos perturbadores da ordem, fanáticos e agitadores, quais ofereciam razões para a violenta repressão que então se ordenava contra os dissidentes de Roma. Esses fanáticos, segundo a sua afirmação, são invenções de Satanás para confundir, produzir controvérsias e dis- senções, a fim de obscurecer a verdade e finalmente destruí-la. É como o inimigo que semeia, no meio do trigo, joio, para sufocar a boa semente. As Institutas são, na opinião da grande maioria dos críticos, não somente a obra mais importante de Calvino, mas uma das grandes obras universais, notadamente no campo da teologia.
Na forma em que fr>i inicialmente publicada, ena1536, é um resumo apenas, mas contém na essência tudo que se encontra nas edições seguintes, até à última em 1559. O valor das Institutas na sua edição francesa é exaltado pelos mestres da língua como uma obra literária de valor excepcional quanto ao estilo e perfeição da linguagem. Stefan Zweig, impiedoso crítico de Calvino, diz nc entanto, que as Institutas são um dos dez ou vinte livros no mundo dos quais se pode dizer sem exagero, determinaram o curso da história e mudaram a fase da Europa. É o mais importante feito da Reforma, depois da tradução da Bíblia de Lutebo.57
Decorridos quatro anos e meio após a publicação de “De Clementia”, Calvino, que não colhera os resultados com que talvez sonhasse com o seu esforço ilterário, não se desanimara, contudo, mesmo porque agora seus olhos estão voltados para assuntos de mais alta importância e o seu pensamento se dirige às questões teológicas.
Já nos referimos ao discurso de Nicolas Cop na Sorbonne que o obrigara a fugir de Paris e também a Calvino, que se vira envolvido, com ou sem razão, nos acontecimentos. É ponto polêmico se Calvino teria sido o autor total ou parcial do tumultuoso discurso de Nicolas Cop. Somos inclinados a crer que sim, como muitos outros. De qualquer modo, o seu nome estava agora na lista negra dos homens da Sorbonne, era preciso ter cuidado para não se tornar uma das vítimas das fogueiras que queimavam hereges em Paris a cada dia.
Conseguiu voltar à capital cautelosamente, mas assentaria por algum tempo em Angoulême, a convite de Luiz De Tillet, cônego da catedral, onde, para seu deleite, Calvino ia encontrar uma vasta bibliote ca, que lhe dava oportunidade de estudar um pouco mais, como era de sua predileção.
É em Basiléia, no entanto, que dá forma final as suas Institutas, já esboçadas em Angoulême. Algo, porém, veio apressar a publicação do livro, o que talvez em parte explicasse a forma tão resumida em que saiu.
a sua primeira edição. Afirma Warfield que não era mais do que um manual catequético ampliado.
Em 17 de outubro de 1534, alguns escritos violentos atacando a missa, o papa, o clero, etc., foram espalhados à noite em Paris. Eram em forma de cartazes que se pregavam em muros e portas e um deles foi encontrado à porta do quarto do rei Francisco I em Amboise.
O autor, segundp se conta, era Antoine Marcout, natural de Lyon e pastor em Neuchatel. O título dizia: “verdadeiros artigos sobre os horríveis, grandes, intoleráveis abusos da missa papal, inventada diretamente contra a Santa Ceia do Nosso Senhor, o único Mediador, o único Salvador, Jesus Cristo”.68
A provocação desses cartazes exacerbou a ira do rei, que preferia manter-se tanto quanto possível tolerante para com os reformados, mas que, ao mesmo tempo, não queria perder a amizade e a cooperação de tão útil aliado como o Vaticano. Francisco I estava longe de ser um fervoroso católico, além disso, desejava não se colocar contra a irmã, Margarida de Navarra, a protetora dos perseguidos por causa da Reforma. Margarida tinha tendências acentua- damente luteranas e grande pendor religioso. Margarida, no entanto, já estava na mira da Sorbonne, suspeita de heresia. O seu livro de poemas espirituais — Le Miroir de 1’âme pécheresse — O Espelho de uma Alma Pecadora, tinha sido condenado pela Sorbonne, a qual, no entanto, teve que voltar atrás sob furiosa pressão do rei Francisco I.
Os cartazes eram fruto de uma grande imprudência e acabaram provocando uma atitude drástica por parte das autoridades e mais derramamento de sangue. O rei se sentiu pessoalmente ofendido, insultado na sua autoridade. Julgou que não podia, sem prejuízo do seu prestígio perante Roma, deixar de castigar com severidade a ousadia dos hereges, quis dar uma demonstração pública da sua revolta num ato de desagravo que não deixasse dúvidas sobre a sua desaprpvação dos cartazes. Apresentou-se com os filhos numa procissão de penitência, cabeça descoberta,
levando na sua mão um facho de luz, seguido por príncipes e nobres, acompanhado do bispo, cardeais e monges. A procissão foi seguida de um banquete no palácio episcopal do bispo, Jean Bellay, após o qual o rei fez um discurso veemente contra os hereges, declarando que não teria misericórdia para com nenhum deles, nem mesmo para com o seus próprios filhos, se um deles fosse descoberto como tal.
Naquela mesma tarde, seis reformadores foram queimados na presença do rei com extrema crueldade: primeiro eram estrangulados e depois atirados ao fogo. O estrangulamento, no entanto, foi omitido para os últimos, para que as vítimas agonizassem nas chamas. Além disso, eram colocados em redes as quais eram abaixadas lentamente às chamas e levantadas de novo, várias vezes, até que a corda se partisse e fosse a vítima deixada cair com vida nas labaredas.
Dessa maneira tornava-se muito arriscada a presença em Paris de qualquer pessoa suspeita de idéias reformadas ou mesmo de simpatias para com a Reforma. Entre as vítimas estava Étienne de La Forge, rico negociante, fervoroso adepto da Reforma, amigo íntimo de Calvino e seu hospedeiro durante algum tempo em Paris.
Por um dever de consciência e solidariedade, Calvino se sentiu na obrigação de publicar logo as suas Institutas e estabelecer perante as autoridades a distinção entre os verdadeiros evangélicos e alguns agitadores extremistas, ao mesmo tempo que pudesse apresentar com clareza a doutrina bíblica aceita pelos evangélicos verdadeiros, atraindo assim a simpatia de outros povos que viessem em apoio dos indefesos perseguidos. Explica-se também a razão da car-. ta dirigida ao rei, prefaciando o livro, a qual nunca foi lida, segundo Beza, pelo destinatário. Era preciso que a suprema autoridade do país, homem esclarecido e liberal, fosse inteirado dos fundamentos bíblicos da Reforma e não confundisse os seus verdadeiros seguidores com grupos dissidentes da Igreja, mal orientados e fanáticos. É ponto controvertido se Cal-
vino teria publicado as Institutas primeiramente em Latim ou Francês.
Erwin se escuda no testemunho de Jules Bonnet e Doumergue para afirmar com Walker que não resta dúvida ter sido em Latim. Guizot, como muitos outros autores franceses, afirma peremptóriamente que a primeira edição saiu em Francês, aduzindo aos seus argumentos o de que foi escrito inicialmente para os franceses, e lembra que a carta de apelo ao rei Francisco I só poderia ser em Francês.69
A grande importância das Institutas está menos na língua inicialmente utilizada do que na universalidade inconteste que adquiriu e que a mantém suprema entre os livros da sua espécie até hoje. Calvino tinha consciência de que fazia algo muito sério, de valor permanente, por isso, deu-se ao trabalho de aperfeiçoar no espaço de vinte cinco anos seguidos, até tomá-la na forma em que a publicou em 1559.
Naturalmente, para os franceses, do ponto de vista literário, o livro de Calvino adquiriu importância especial pela linguagem, estilo e forma. Nesse aspecto vale a pena ouvir a palavra de Abel Le Franc, professor do colégio de Paris, diretor adjunto da Escola Prática de Elstudos Superiores da França, parente distante de Calvino pelo lado materno, crítico literário de renome: “Depois de decorridos quatro séculos, a voz unânime da posteridade tem consagrado o texto francês da Instituição Cristã, como um dos mais nobres, uma das mais perfeitas peças da nossa literatura. O livro de Calvino permanece, como aqueles de Rabelais, um monumento incomparável da língua nacional até a primeira parte do século XVI”.70
E continua La Franc para afirmar que não há produção que se lhe possa comparar, pois só na metade do século XVII com Pascal e Bousset é que se vai encontrar uma prosa literária tão ampla, tão grave, de uma armadura fortemente ordenada e lógica. La Franc aqui não exalta apenas a perfeição literária das Institutas, mas também a sua forma lógica
bem estruturada. Adianta, mais ainda, que a filosofia cional até a primeira parte do século XVI”.70 capítulos da edição das Institutas em 1541.
Como Guizot, La Franc encontra nas Institutas em germe tudo mais que Calvino produziu e até mesmo traços marcantes de sua personalidade “Et sa personalité même, son caractère, la font de sa pèn- seé ne se revèlent point avec plus d’évidence que dans ce livre capitale”. La Franc chama Calvino “Homo unius libri””.
Warfield, no seu livro “Calvino e Agostinho”, afirma que as Institutas podem se chamar “o trabalho de sua vida”.71
Os comentários da Bíblia feitos por Calvino vêm em segundo lugar. É uma obra monumental, cobre quase todos os livros do Velho e do Novo Testamento. Esses comentários são produto de anos e anos seguidos, estão em grande parte ligados à tarefa de Calvino como mestre das Escrituras, resultaram das aulas bíblicas que ele ministrava. Calvino é um exegeta nato, um extraordinário argumentador, ou é o príncipe dos exegetas como quer Cardier.72 A sua obra inteira, que em algumas edições atinge 59 volumes, é surpreendente, considerada a seriedade de todo o trabalho realizado, a qualidade indiscutível desse trabalho, a variedade dos assuntos, a forma literária que vai do “discurso veemente até a sátira mordaz, sempre com aquele toque de iluminação que costumamos chamar de gênio”.73
É como escritor que Calvino se projeta e perpetua numa dimensão cada vez maior; resposta silenciosa mas decisiva aos que procuram diminuí-lo, lançando a sua memória injúrias e difamações, taxando-o de fanático e ignorante.
A árvore produz o fruto segundo a sua espécie! As Instituições que Calvino inicialmente implantou em Genebra sofreram os reveses do tempo e empalideceram no seu brilho sob a influência de fatores adversos que em muitos casos as contaminaram e perverteram. Pode ser. No entanto, o seu vigor se reabilita toda vez que é reestudada a doutrina e a
filosofia em que foi estruturada encontra artífice que se incumba de dar-lhe o mesmo espírito e o mesmo sentido com que foi inicialmente concebida no insano labor de dias penosos de enfermidade e aflição de espírito.
A obra literária de Calvino, mormente as suas Institutas, deram ao mundo uma nova teoria de vida, arrancada do ensino das Escrituras, cuidadosamente estudadas e interpretadas, com a habilidade de um profissional acabado, com a devoção de um apóstolo que aos pés do Senhor colocou definitivamente todos os seus dons, Soli Deo Glória.
Com que brilho de inteligência, com que destreza de escritor nato, com que firmeza de lógica incomparável, não escreve a sua carta a Sadoleto; carta que não tem resposta, porque só tem uma, que Sadoleto não quis e não podia dar, a não ser que aceitasse o desafio de Calvino mesmo: “Que o Senhor permita, Sadoleto, que tu e todos os do teu partido possam afinal perceber que o único e verdadeiro elo de uma unidade eclesiástica existiria, se Cristo Senhor, que nos tem reconciliado com Deus o Pai, nos reunisse todos da presente dispersão na comunhão do seu corpo, que, assim, através da sua palavra e do seu espírito, nos pudéssemos unir juntos com um só coração e uma só alma”.74
Capítulo 14
CARTAS DE CAL VINO
As cartas são o espelho da alma de quem as escreve, quando nascem de uma necessidade existencial e se inserem em nossa vida sem intenção literária estereotipada, mas em atendimento a um dever de comunicação de algo a alguém. Cartas do apóstolo São Paulo, por exemplo, uma feliz, inspirada extensão do seu grande trabalho missionário na qualidade de apóstolo dos gentios, cartas que transmitiam a doutrina e a prática da vida cristã. Cartas diferentes das célebres epístolas de Plínio, o Moço, belas e amenas, mas artificiais, porque lhes faltam “o toque pessoal vivido”, porque foram escritas como disse alguém “com os olhos na publicação””. Diferem das cartas de Cícero a quem Plínio quis imitar, porque são as do
grande tribuno romano, documento humano, espontâneo, frutos do imperativo da ocasião.
João Calvino, que era tão versado no Latim e admirador de Cícero, e dele conhecedor profundo, como revela na sua “De Clementia", não teria imitado nem um nem outro. Não tinha as condições de Plínio, rico e tranqüilo, mas era mais como Cícero, dinâmico e ocupado. Foi movido pela ingente necessidade de atender problemas agudos, que escreveu as suas cartas e acabou, pela beleza de seu estilo natural, fluência, linguagem, clareza, do pensamento, fazendo ao mesmo tempo história e literatura, daí a preciosidade das cartas que escreveu e em tão grande quantidade.
Lutero escreveu cartas admiráveis com as quais fez história, nas quais deixou também pedaços da sua alma, do seu coração afetuoso. Escreveu cartas a administradores e a príncipes, intercedendo pelos cristãos perseguidos e afligidos de muitas maneiras. Escreveu cartas pastorais também, confortando corações feridos. Escreveu cartas a amigos, e a muitos deles com fraternal afeição, e escreveu também cartas a seu pai, na mais delicada expressão de amor filial.
As de Calvino superam em beleza, em variedade, em número, às magníficas cartas de Lutero. As cartas de Calvino, que atingem a mais de duas mil, ou quatro mil segundo alguns, são expressão viva do seu amplo e diversificado ministério, que não se continha nos limites da sua turbulenta Genebra, mas que se estendia a oucros lugares, onde quer que os interesses do reino de Deus estivessem em jogo, levando a palavra do amigo, do conselheiro, do estadista, do teólogo.
Fez muito bem Ricardo Stauffer, pastor suiço, professor de teologia e mestre da Sorbonne quando escreveu um livro de menos de cem páginas, mas recheado de verdades em cada linha, com o propósito, que ele mesmo expressou, de refutar as acusações tantas vezes repetidas por inimigos, mas ultimamente no seu tempo, abonadas por um seu colega e patrício, que não era senão o pastor da Igreja de São
Pedro (Jean Schorer), a igreja de Calvino. Um fato que Stauffer julga de si mesmo lamentável.
Jean Schorer se propôs defender Stefan Zweig, que, tendo escrito uma obra injuriosa e infeliz no tratamento de Calvino, o caracterizou como ditador. Calvino, ditador? É uma lenda que Stauffer julga necessário desmascarar. “Calvino não é um satânico vilão do seu século” como querem muitos de seus inimigos; longe de ser o indivíduo sem qualquer simpatia, desumano e anti-humano, é o amigo afetuoso e solícito dos muitos amigos que teve e que o estimavam. Calvino é pastor zeloso e incansável no seu esforço em favor de suas muitas ovelhas, sofridas e angustiadas por males de toda a sorte.
Calvino é o esposo encantado com as virtudes da esposa e inconsolável com a sua morte prematura. Calvino é o pai de um filho que morreu ao nascer, mas que deixa conforme as suas próprias palavras unia ferida profunda e dolorosa no coração do pai.75 É a fonte onde Stauffer vai se suprir para nos oferecer este retrato humano de Calvino, que ele rebuscou com paciência para provar a sua tese76 — são as cartas, as muitas cartas que escreveu Calvino durante quase 30 anos.
Beza nos conta que Calvino, num dos últimos dias de sua vida, entregou a seus cuidados o arquivo das cartas que escrevera manifestando o desejo de que essa correspondência fosse preservada como um legado às igrejas reformadas. As circunstâncias adversas que vieram logo após a morte de Calvino, inclusive a peste que assolou uma vez mais a cidade, fazendo muitas vítimas, impediu o cumprimento do desejo expresso pelo Reformador, que, no entanto, não foi esquecido. Coube, afinal, ao Dr. Jules Bonnet a pesada tarefa da busca e reunião das muitas cartas encontradas em vários lugares da Europa, tarefa essa que lhe custou 5 anos de incansável labor e que acabaram integrando quatro grossos volumes das epístolas de João Calvino.
Essas cartas por sí só exigiriam um estudo de grandes proporções e muita profundidade que não
comportam os limites do nosso trabalho. Não nos parece» todavia, justo deixar de oferecer ao leitor ao menos uma pista geral desta importante faceta da obra de Calvino.
Como muito bem afirma Jules Bonnet, essa correspondência, além do seu grande valor histórico, dada a influência de Calvino nas igrejas reformadas nascentes, tem ainda uma importância literária, pois Calvino, sem o querer, fazia literatura, usando o seu estilo primoroso, tanto no francês como no latim, ambas as línguas em que era mestre acabado. O seu estilo deu características novas e serviu de modelo a escritores que vieram depois dele no século XVII.
Jules Bonnet afirma que o seu propósito, e dos muitos amigos que com ele cooperaram era publicar as cartas de Calvino, foi fazer um trabalho que exprimisse a verdade que essas cartas continham sobre sua pessoa e sua vida. “Guiados somente pelo amor à verdade, não nos abstendo de qualquer revelação que fosse garantida por documentos autênticos, não rejeitamos qualquer fonte de informação, nem omitimos qualquer evidência. Nossa ambição ioi fazer Calvino viver de novo em suas cartas, mostrando como ele era — um servo austero e de convicções inflexíveis, que, no entanto, estava longe de ser intolerante com amigos, na liberdade do círculo doméstico com aquele alto sacrifício rigoroso de sua vida aos deveres, o que por si explica a sua força e justifica os seus erros; com as falhas, que eram herança de seu tempo, e aquelas que lhe eram peculiares.
É história argüida dos documentos originais, não é panegírico; não atira um véu sobre as imperfeições de seus heróis, mas lembra que eles são homens, e tira lições tanto das suas fraquezas como das suas grandezas.77
CARTAS AOS AMIGOSMuito longe de ser o homem que “nunca amou e
a quem ninguém jamais amou também”, como quis J. M. Audim,78 Calvino era um amigo dos seus muitos amigos e fez das amizades um grandes apoio de
sua vida, por isso, as cultivou com solicitude e grande afeição.
Apenas para dar uma amostra deste aspecto humano da vida do reformador, valemo-nos das cartas que João Calvino a eles escreveu.
As amizades, ele as teve desde a infância, e as conservou com carinho. Os colegas da escola dos Cape- tos em Noyon continuaram seus amigos em Paris, e a um deles Calvino dedicou a sua primeira obra literária. Dois amigos, no entanto, ocupam um lugar de destaque na correspondência do grande reformador, correspondência essa que começa por volta de 1537 e vai até aos dias últimos da sua vida em 1564. Esses dois homens são Viret e Parei.
As cartas enviadas a esses dois homens superam em número aquelas dirigidas a qualquer outra pessoa. A Viret escreveu ele mais de 60 cartas e a Parei 90 e tantas. Trataremos primeiramente de Parei. Companheiro de Calvino nos dias aflitivos de Genebra, que com ele sofreu a mais dura oposição e acabou sendo expulso da cidade. Ambos alí estiveram muitas vezes em sério risco de vida.
Embora a diferença de idade, pois Calvino era mais moço do que Parei (25 anos) e apesar da diferença de talentos, de inteligência, de cultura, em que Calvino era muito superior, a amizade que uniu esses dois homens atravessou todas as calamidades e permaneceu firme, mais aprofundada ainda até ao final da vida de Calvino, o primeiro deles a morrer.
A Parei escreve Calvino, tratando dos mais variados assuntos e dos mais íntimos, como se faz a um confidente amigo e leal. Dúvidas, alegrias, tristezas, desesperanças, ansiedades, desapontamentos, amarguras e também vitórias e esperanças, encontram-se nessas cartas, além dos problemas que interessem a ambos com respeito ao reino de Deus. Estiveram juntos em Genebra na primeira fase, e não fossem as circunstâncias, teriam permanecido juntos, como era desejo de ambos. E é Parei que empenha todo o esforço, mais tarde, para a volta de Calvino a Genebra. É a Parei que Calvino confia suas aperturas financeiras do co
meço difícil em Estrasburgo e o incumbe de vender os seus livros para desafogar a sua penosa situação. É a Farei que Calvino se sente com a liberdade de tratar em carta com severidade, sem pedir desculpa “Pois eu sei que está acostumado às minhas rude- zas".79
Viret se distingue como um dos grandes amigos de Calvino. Como já dissemos, mais de 60 cartas foram a ele dirigidas pelo reformador, muitas delas portadoras de mensagens íntimas, que só mesmo a um amigo se confiam. É a Viret que Calvino procura atrair para Genebra quando lhe pareceu que Farei estava a ponto de se deixar vencer pela tarefa. “Eu o considero indispensável, a menos que queiramos perder Farei, que se encontra exausto e com grande ansiedade, como eu nunca pensei de um homem da constituição e disposição de ferro que ele é”.80
E a ele, Viret, Calvino confia a sua repugnância à idéia de voltar para Genebra quando os apelos insistentes lhe vinham para que o fizesse, aliados à pressão de Farei mesmo para que aceitasse o convite. É a Viret que Calvino escreve, angustiado, para dar notícia de que a sua esposa Idalete deu à luz prematuramente a um filho e está em risco de vida: “Minha mulher deu à luz prematuramente, não sem extremo perigo. Que o Senhor tenha cuidado de nós”.81
Calvino vai realizar o casamento de Viret com Eli- sabeth Laharpe, impetrar a bênção sobre os noivos. Aliás, sobre o assunto Calvino vinha aconselhando Viret desde há algum tempo.82
O amigo das núpcias é também o amigo do dia de luto e Calvino convida Viret, mais tarde, a vir passar uns dias em Genebra, consolando-se da morte da esposa.83
E quanto aos outros amigos? Alguns também muito íntimos, que, como Beza, o considerava “o mais excelente irmão e pai”. Calvino mantém laços de amizade com pequenos e grandes. Com cristãos humildes, perseguidos, despojados de seus bens, a quem ele procura consolar e em favor dos quais escreve a outros solicitando apoio.
É notável a sua amizade com o senhor De Fallais, amizade que infelizmente Bolsec conseguiu destruir completamente. Calvino mantém uma correspondência grande com o senhor De Fallais, interessado em ajudá-lo na solução de problemas, depois que, por causa da sua fé reformada, abandonou vantagens grandes na corte da França, onde era um nobre, para localizar-se junto de Genebra. É notável o interesse por ele manifesto da parte de Calvino e o apoio moral e espiritual que empresta a Sra. De Fallais, quando o esposo se vê acometido de enfermidade grave. A ruptura dessa amizade foi muito dolorosa e se deu com muita amargura para Calvino, conforme se vê de sua última cárta escrita ao Sr. De Fallais a qual termina: “Se eu tenho sido tão ríspido e tão amargo, perdoe-me. Vossa Senhoria me obrigou a isso. E para que saiba que não alimento nem raiva, nem má disposição para com V. S., escrevo a presente carta como um que está se preparando para se apresentar diante de Deus, que agora me aflige com um mal que é como um espelho da morte diante de meus olhos”.84
Calvino sentia-se aproximar da morte, que, no entanto, levaria dois anos ainda a chegar. Calvino, como estadista e diplomata, se envolveu em assuntos de grande importância para a causa da Reforma, deles tratando por carta com soberanos e senhores nobres. Em alguns casos, mesmo nessa função, as suas cartas não deixam de ser pastorais, porque em muitos casos são portadoras de conselhos e admoestações que visam o bem espiritual de seus destinatários.
Vamos considerar as cartas dirigidas a alguns soberanos e nobres com respeito à Reforma. Nesse sentido, Lutero também desempenhou papel importante, embora mais limitado, conforme se vê da sua correspondência. Cartas de diplomata nós diríamos.
Afirma Jules Bonnet: “o mesmo homem desgastado por vigílias e enfermidades, mas erguendo-se, pela energia de sua alma, acima da fraqueza do corpo, derriba o partido dos libertinos, lança as bases da grandeza de Genebra, estabelece igrejas no estrangei
ro, fortalece os mártires, dita aos príncipes protestantes os conselhos mais sábios e mais perspicazes: negocia, argúi, ensina, ora, e, com o seu último alento, pronuncia palavra de poder que a posteridade recebeu como testamento religioso e político de um homem”.85
Calvino foi providencialmente preparado para ser o embaixador da Reforma aos grandes da terra. A ele se aplicariam as palavras de Jesus, dirigidas a Ana- nias com respeito ao apóstolo São Paulo: Este é para mim um instrumento escolhido, para levar o meu nome perante os gentios e reis... Atos 9:17.
As Institutas, na sua primeira edição, traziam como parte introdutória a carta importante de Calvino dirigida ao Rei Francisco I da França. A carta era um documento diplomático, defendendo os reformadores das acusações improcedentes que contra eles eram veiculadas, ao mesmo tempo uma apresentação do documento de fé por eles professado. Embora essa carta nunca tenha sido lida pelo destinatário, como afirma Teodoro Beza, é um destes esforços de diplomacia que Calvino havia de empreender com a sua pena de exímio escritor de epístolas muitas vezes no seu ministério.
Anos depois, o rei da França, Carlos IX, se queixava em carta ao concilio de Genebra de pastores que, indo de lá para a França, estavam provocando agitação e criando desordens. O concilio tem de responder à carta do rei e é Calvino quem a vai redigir, negando as acusações e mostrando que, pelo contrário, os pastores referidos eram apaziguadores e se ofereciam para provar a sua inocência onde quer que se lhes exigissem.
Ao rei da Inglaterra, Henrique VIII, escreve Calvino uma carta severa, condenando a ação sanguinária daquele rei na sua sanha de substituir na Inglaterra o poder de Roma. Diz Calvino: “É grande coisa ser rei, principalmente deste país, mas é melhor ser cristão; é um privilégio inestimável que Deus lhe tem dado, senhor, ser um rei cristão e serví-lo como o seu
lugar tenente para manter o reino de Jesus Cristo na Inglaterra".
Escreve Calvino, ainda, a Eduardo VI da Inglaterra, jovem inteligente, de coração nobre e de grande esperança, e que aderira às idéias da Reforma. Calvino lhe dedica dois de seus comentários, o de Isaías e o das Epístolas Canônicas: “Enquanto servindo a Jesus Cristo, meu Mestre, posso oferecer também reverência e singular afeição a Vossa Majestade”.86 Infelizmente, o jovem rei morreu aos 16 anos.
Escreve ainda Calvino ao Duque de Somerset, con- citando-o a dar avanço à Reforma, de modo a tomá- la permanente e corrigir abusos.87
Escreve, também, Calvino ao rei da Polônia, que, nessa altura, mostrava certo interesse pela Reforma e, no entanto, permanecia vacilante, inclinado a ouvir sempre o papa, embora a Reforma já tivesse feito entrada no seu país e alcançado alguns nobres; Calvino o exorta a realizar a Reforma, desde que a religião verdadeira na Polônia já tinha começado a espancar as trevas do papado: “eu, a quem o Rei dos reis tem nomeado pregador do evangelho e ministro da sua igreja, invoco a vossa majestade em seu nome para dar a esse trabalho vosso cuidado especial acima de todos os outros”.88
Muitas outras cartas escreveu Calvino a soberanos e nobres, visando à extensão do reino de Deusnos seus domínios. Em alguns casos eram cartas pastorais, não abrindo Calvino mão da sua condição de embaixador do reino dos céus.
As preocupações de Calvino eram com o reinode Deus. Embora reconhecesse os instrumentos de Deus na consolidação do seu reino nestas pessoas gradas, nos altos postos administrativos, não nos é possível a tentação de continuar o cotejo da correspondência de Calvino, na qual tanto se encontra revelada a sua vida, a sua pessoa, a sua personalidade de homem, de estadista, de teólogo, de pastor e de cristão.
Seria uma tarefa por si mesmo de não pequenas proporções um estudo aprofundado da pessoa e da
obra de Calvino, como se revelam nas suas cartas. Deixamos a tarefa a outro, o que nos cumpria fazer era dar uma visão geral da grandeza desse homem infatigável, arrastando a cada dia o fardo incômodo e pesado de suas muitas enfermidades, mas sem tempo para gemer, porque está absorvido no seu grande afã de cumprir a vocação divina que recebeu.
Chega ele mesmo a dizer que não pode parar, pois sente que o seu tempo é curto e há muito que fazer. O veneno da maldade da heresia exige ação persistente e enérgica. O mal se apresenta em muitas formas, em muitas partes; é preciso acudir à'guerra em todas as frentes de batalha. Por isso, Calvino não descansa a sua pena, a grande arma da sua luta ingente.
Jean Daniel Bénoit, no seu ensaio: “Calvino escritor de Cartas”,89 procura salientar algumas facetas de Calvino que se revelam através de uma correspondência que ele chama “um mundo em si mesmo”. Realça que embora não aponte Calvino como teólogo nesse seu ensaio, pois esse assunto deve ser tratado em relação aos trabalhos doutrinários do reformador, reconhece, todavia, que a teologia permeia toda a sua obra, inspira tudo que ele faz, está presente no seu pensamento mais simples e o dirige nas tarefas mais humildes. Está, portanto, nas suas cartas.
Salienta Bénoit que um homem carregado de enfermidades, às vezes intratável, às vezes compassivo, sempre sincero, às vezes franco demais, Calvino é o pastor, é o confortador, é o conselheiro, é o orientador, é o diretor espiritual que leva os seus correspondentes a confiar na divina misericórdia, aceitando com resignação e com paciência qualquer que seja a sua vontade soberana. Pois Deus está no centro de tudo e as cartas de Calvino revelam essa verdade surpreendente.
“Lendo as suas Institutas, aquele grande tratado de doutrina, vê-se o pensamento profundo e vigoroso do teólogo e o cuidado pastoral pelas consciências atribuladas. Se lemos os seus sermões, podemos visualizar o seu pregador... é nas suas cartas que ele se dá livremente na claridade da sua mente, mas também com todo o calor de seu coração, especialmente quan
do escreve àqueles prisioneiros chamados para ser mártires da fé . . . os seus outros livros foram escritos com pena e com tinta; neles vemos a sua mente clara, lógica e às vezes ríspida, mas nunca saindo do domínio do intelecto. As suas cartas, contudo, são escritas com o coração, às vezes com lágrimas de simpatia, humilhação e desolação, lágrimas de sangue. . . e é aqui que todas as caricaturas que se têm feito, tão danosas à sua memória, se empalidecem e desvanecem, e Calvino surge na sua estatura completa — um homem, um homem real, um grande homem”.
OS SERMÕES DE CAL VINO
Os sermões se constituem numa das facetas do ministério de Calvino talvez menos explorada pelos estudiosos e críticos, nem por isso menos rica em significado; não apenas pela pureza da doutrina; pela propriedade dos assuntos tratados, mas também pela exegese cuidadosa, tanto quanto possível fiel ao sentido do texto.
Calvino é, reconhecidamente, um grande exegeta, tido por alguns como o pai de uma exegese moderna da Bíblia. Além disso, Calvino, pregou muito; pregava várias vezes por semana; produziu um volume enorme de sermões. Verifica-se nos sermões de Calvino uma combinação admirável do teólogo, exegeta e pastor; pois que as suas mensagem, calcadas na boa doutrina, têm sempre uma aplicação prática às necessidades de seus ouvintes.
Da importância dada ao sermão se entende o lugar que ele ocupa na liturgia calvinista — o lugar central. Isso não significa que Calvino tenha dado uma importância exagerada ao pregador; significa apenas que, para ele, o sermão tem que ser nada mais, nada menos do que a fiel interpretação da verdade revelada nas Escrituras, dirigida aos problemas do momento.
Leroy Nixon90 salienta que Calvino não tinha qualquer preocupação em acompanhar o ano eclesiástico na escolha dos assuntos da sua pregação. Entende-se isso, pois que o ano eclesiástico estava intimamente ligado às festividades da Igreja Católica, em que atos de idolatria se praticavam contra os quais Calvino e outros reformadores se insurgiram com justa razão.
P. Vollimer91 salienta que Calvino quebrou o costume da época de seguir o periscópio do ano eclesiástico. Lembremo-nos de que, pela influência de Calvino e de Farei, Genebra rejeitou inicialmente, a adoção do costume de Berna, que mantinha ainda algumas festas religiosas no seu calendário — Natal, Páscoa, Ascen- ção e Pentecostes.
Parece que a intenção de Calvino era afastar a idéia de dias santificados além do domingo; pois que mais tarde adotou em Genebra o costume de se celebrar o Natal no domingo próximo seguinte à data, para que não houvesse um outro dia de festividades religiosas além do dia do Senhor.
Calvino é reconhecidamente um estilista entre os críticos literários franceses, segundo alguns muito influenciado por Cícero, embora livre dos exageros cice- ronianos92 muito comuns entre os outros escritores renascentistas.
Os seus sermões, segundo a voz de críticos abalizados, não são uma abundante prova da beleza e correção de estilo, por duas razões: Primeiro — Calvino era um pregador extemporâneo; e nem podia deixar de ser, tendo que pregar quase diariamente. A pregação extemporânea é uma herança calvinista, deixada aos seus filhos espirituais. Segundo — Calvino tinha
um profundo respeito para com a Palavra de Deus, a ponto de pensar que o estilo rebuscado e floreado pudesse prejudicar a clareza da mensagem. Pensa-se que a pregação extemporânea de Calvino era também uma reação ao costume do tempo, quando os sermões eram lidos e se tornavam frios, sem naturalidade e sem poder.
Graham, em seu livro The Constructive Revolutio- nary, lembra que, não raro, o púlpito de São Pedro nos tempos de Calvino, brandia a espada dá justiça contra os exploradores do povo, que retinham o grão, quando havia escassez dele, para alcançar melhores preços. Os vícios da cidade eram castigados com severidade nas pregações de domingo. Isso mostra aquilo que já dissemos, o caráter prático e pastoral dos sermões de Calvino. Não seria possível descobrir nos sermões de Calvino o arranjo homilético, segundo as normas mais modernas, adotadas pelo púlpito, com aperfeiçoamento da arte de pregar. Isso não significa que não houvesse uma ordem e um arranjo lógico e um desenvolvimento natural e progressivo nas suas mensagens.
Em muitos casos, Calvino é um perfeito pregador expositivo, pois toma o texto e vai analisando e aplicando consecutivamente. Alguns dos seus sermões seriam um modelo de pregação expositiva.
Beza cria que se fosse possível juntar o ardor de Farei, a beleza comovente de Viret, e as qualidades de Calvino, teríamos o perfeito pregador. “Farei excedia- se em certa sublimidade de mente; de modo que não se poderia ouvir a seus trovões sem tremer. . . Viret possuía uma eloqüência tão atraente que os seus ouvintes se prendiam nos seus lábios; Calvino nunca falava sem encher as mentes dos ouvintes com o mais profundo sentido. Tenho mutias vezes pensado que o pregador composto dos três seria absolutamente perfeito”.93
Havia sem dúvida uma grande diferença entre Calvino e Lutero como pregadores — diferença natural dada a diferença de temperamento, cultura e situa
ções. A eloqüência arrebatadora de Lutero, muito ao sabor das massas populares, não era virtude calvinista. Em Calvino se verifica “Evidente em seus sermões, a riqueza do pensamento, a propriedade dos juízos e a oportunidade das idéias”.94
James Orr,95 apoiando afirmações de Reuss, diz que Calvino é “O maior exegeta do século XVI”; e exalta os dons de Calvino de mente e de coração presentes nas exposições das Escrituras.
Evidentemente que a grande força da pregação de Calvino estava na sua base sólida e firmemente assentada nas Escrituras Sagradas. Para ele, a Palavra de Deus nunca deve ser afastada do culto, mesmo na cerimônia da Santa Ceia é tão importante, que é essa Palavra que põe sêlo de validade na celebração do sacramento.
Stickelberger afirma que “Calvino era o incansável pregador da Palavra... mais de dois mil de seus sermões foram preservados. . . versículo por versículo, conforme o seu costume, ele ia através de um profeta, de um salmo, de um evangelho, ou de uma epístola. Não havia uma palavra de discordância com as Escrituras; nem uma inferência depreciativa; nem uma evasão de dificuldades; ele renunciava tudo que pudesse trazer-lhe glória pessoal e colocava o seu gênio, sua cultura, sua retórica, inteiramente a serviço do Evangelho — essa inflexibilidade consigo mesmo era a grande expressão da sua proclamação”.98 Aqueles que se empregam na arte difícil da pregação da Palavra e a empreendem com a consciência do dever e a responsabilidade de um profeta de Deus, podem avaliar melhor a grandeza de Calvino como pregador; alguém sugeriu que Calvino não deve ser lido em silêncio, mas em alta voz, para que não se perca algo do seu vigor e da sua essência. Pregar várias vezes por semana, duas vezes aos domingos, como ele fazia; manter o ritmo acelerado do seu trabalho intelectual— escrevendo comentários e atendendo a sua vasta correspondência — isso tudo em meio a problemas pastorais de cada dia, numa cidade tão cheia de pro
blemas como Genebra; lutando com uma saúde sempre precária, é tarefa excepcional. E excepcional foi Calvino em vários aspectos na sua geração.
James Mackinnon97 junta-se a muitos outros na admiração da excelência homilética de Calvino, no tratamento da Palavra de Deus e na aplicação aos ouvintes — tratamento esse que é a doutrina trazida à exigência da vida cotidiana para uma aplicação existencial. Calvino acreditava no valor da Palavra de Deus e na pregação como instrumento eficaz escolhido pela providência divina para acomodar a sua mensagem ao entendimento limitado do homem. Por isso, Deus não concedeu aos anjos esse ministério, mas entregou aos homens para que fossem mensageiros da verdade de Deus.
C. Kromminga afirma que Calvino viveu e trabalhou como se estivesse na presença de Deus. Por isso, diz o Dr. Kromminga que o empenho de Calvino era trazer os homens à presença de Deus: Isto é ainda mais pervasivamente manifesto nos sermões de Calvino. Os sermões de Calvino são sempre sermões cruciais, pesados e decisivos”.98 Nota o Dr. Kromminga que nem sempre Calvino usa ilustrações, e quando as usa raramente são de fora da Bíblia. No entanto, aponta exemplos da maneira prática como Calvino estabelece comparação com um quadro da vida diária para tornar bem accessível ao seu ouvinte a mensagem da Palavra de Deus. Aponta o Dr. Kromminga, com muita propriedade, as metáforas, as exclamações, recursos da oratória de Calvino que contribuíram para tornar efetiva a sua mensagem. O centro, porém, da sua atenção, diz o Dr. Kromminga, era a vontade de Deus, era a revelação da face de Deus e o empenho em trazer o ouvinte à presença do Senhor. Fosse na pregação da mais profunda doutrina, ou em assunto da vida prática, Calvino convocava os seus ouvintes à face de Deus. Não será disso que nós estamos precisando? Porventura, não é de uma revitalização da men
sagem ao estilo de Calvino, de modo a trazer o auditório face a face com Deus de que estamos precisando hoje?
A PIEDADE DE CAL VINO
A piedade de Calvino tornou-se em tempos mais recentes um tema repetido e necessário. O estudo dessa piedade era um dever que se impunha como medida de justiça à memória do reformador suiço, tantas vezes deformada, reduzida por alguns ao espectro de um fantasma, terrível; um sádico maníaco; um estranho masoquista; um homem sem coração e sem alma. Creio que essa necessidade sentiu o Dr. J. Kromminga, Reitor do Calvin Seminary e autor do livro: Thine is my heart — Leituras devocionais dos escritos de Calvino (Zondervan P. House, Grand Rapids, 1958). Trata-se de uma cuidadosa pesquisa feita nos sermões, comentários, textos das Institutas, correspondência; pesquisa que resultou na seleção de significativo ma-
terial comprobatório da verdadeira imagem de Calvino — imagem que muito bem se ajusta ao homem que se entregou ao Senhor em holocausto, de uma vida inteiramente dedicada a Deus; como muito bem exprime o seu moto: “Meu coração ofereço a ti, Senhor”. Daí a expressão de fé e confiança em Deus, como a que se encontra na passagem do seu comentário de Zacarias 12.4.
A experiência de Calvino com o sofrimento, fruto das enfermidades que carregava constantemente; a pressão dos inimigos que ferozmente investiam contra ele, o levaram à certeza da imutabilidade infalível da graça de Deus, que, embora pareça lutar do outro lado, está conosco invisível, mas poderosa, e nunca nos abandona à sanha do inimigo.
Assim diz ele: “Aprendamos a exercer a nossa fé, quando Deus nos parece jogar aos dentes do lobo: pois, quando nenhum auxílio visível se nos oferece, todavia, por amor oculto, com que não atinamos, Ele sabe nos livrar; pois o seu propósito é provar a nossa fé e a nossa paciência”.99
Do abatimento e paciente aflição, Calvino se transporta às vezes à grande exuberância do reconhecimento de que a magnífica expressão providencial do amor de Deus, a cada dia, nos cerca e sustenta. Fala Calvino com exuberante fé e regozijo: “Estamos rodeados, por onde quer que voltemos os nossos olhos, de tais e tantos milagres da sua mão que nunca nos faltarão motivos para louvar e agradecer a Deus”.100
Por outro lado, a luta incessante de Calvino com o pastoreio da igreja e o reconhecimento da própria natureza que ele tão repetidamente revela e que o leva a considerações, como a que faz sobre o livro de Jó (Jó 32.20): “Odiamos o mal onde quer que ele seja encontrado, mesmo que seja na nossa própria pessoa”. 101
Um outro livro de textos escolhidos das orações, dos Salmos metrificados por Calvino para fins litúr- gicos, etc., classificados conforme os assuntos, traz exatamente esse título: A Piedade de João Calvino. Se
gundo afirma o próprio autor, Ford Lewis Battles,102 o livro é uma antologia ilustrativa da espiritualidade do reformador e traz de início a definição de piedade do próprio Calvino. Que é piedade verdadeira no conceito de Calvino? E o autor transcreve a definição que consta do catecismo publicado em língua francesa em1537, e dois anos depois em Latim, da autoria de Calvino.
A piedade é palavra latina que no português adquiriu dois sentidos distintos, um, o sentido religioso, que designa a atitude do homem para com Deus — reverência, temor, cultivo da vida cristã e devocional. O outro sentido é o de compaixão e misericórdia.
É no primeiro sentido que Calvino a tomou. É porque muita coisa havia entre os cristãos não reformados, que podia ser contada erroneamente como piedade. O reformador começa a abrir os olhos do povo para uma religião de acesso a Deus, com temor, mas não com medo: com reverência real e não com ritos exteriores apenas; uma religião do espírito, mais do que de cerimônias. Calvino sente, de início, a necessidade de dizer o que não é piedade, para depois definir o que é a legítima piedade cristã, daí a sua definição: A verdadeira piedade não consiste no medo, que voluntariamente foge ao julgamento de Deus; de vez que, não podendo escapar, se vê terrorizado. A verdadeira piedade consiste mais no sentimento legítimo que ama a Deus como Pai, tanto quanto teme e o reverencia como o Senhor. Abraça a sua justiça; aborrece ofendê-lo mais do que à morte; e quem quer que possua essa piedade não ousa formar uma idéia de Deus por si mesmo, antes, busca com Ele o conhecimento do verdadeiro Deus, e o concebe justamente como Ele se mostra e declara ser.
É ainda Battles quem logo nos oferece uma definição abreviada e sucinta da piedade conforme Calvino: Piedade é reverência aliada ao amor, a que o conhecimento dos seus benefícios nos induz.103
O que muita gente não chega a entender muito bem é a figura do teólogo aliada à do crente, que se
mostra tão completa como nele se vê. A sua piedade não descamba para o emocionalismo desassisado de um pietismo extravagante, que pode conduzir ao ridículo e à insensatez, nem é fruto de uma crendice mal informada e supersticiosa, que não faz sentido com uma fé sólida É assim a busca natural de Deus, por parte de quem aprendeu, no conhecimento dEle, como Ele se revela na sua Palavra; a grandeza da sua misericórdia; a longanimidade do seu perdão; a riqueza infinita da sua graça multiforme, é accessível a nós em Cristo Jesus. É atitude religiosa que nasce do conhecimento, sem quaisquer ilusões, da nossa fraqueza e demérito; mas que, aborrecendo o pecado, que tão servilmente nos quer subjugar e arrastar-nos às misérias da vida, aprendeu a amar a Deus, e amá-lo com alma agradecida e devota. É a piedade embalada na certeza consoladora do amor de Deus, que não se cansa, mas perdoa na busca amorável do pecador, levando à penitência e confissão. É o reconhecimento do amor de Deus que excede à nossa compreensão limitada e humana; amor cuja largura, altura e profundidade esgotam os recursos da nossa capacidade de comparar ou medir. É a fé inteligente que produz a piedade com reverência, sem os espasmos e convulsões de irrazoáveis temores e mal concebida idéia da justiça divina. Piedade salutar, alegre, embora contrita; piedade em paz, ainda que vigilante contra o mal; segura, mas não de si mesma, na sua fraqueza, mas, na graça misericordiosa do Senhor. Essa é a piedade de João Calvino — o teólogo profundo, o crente humilde.
E as orações de João Calvino?Charles E. Edwards104 nota que alguns comentá
rios de Calvino — Jeremias, Daniel, Ezequiel, os quais originalmente foram apresentados em forma de palestras, são acompanhados de uma oração apropriada ao assunto. As orações de Calvino revelam como ele era um homem de oração.
Edwards afirma: “João Calvino era um homem de Deus, ele tem sido, com justiça, admirado como teó
logo da Reforma; como príncipe dos comentadores das Sagradas Escrituras; o Pai da Exegese científica; fundador virtual das escolas mixtas. Ele era também grande em oração. O sistema de doutrina cristã que traz o seu nome tem sido sempre a mãe da devoção. Esse sistema pode ser conhecido pelos seus frutos; tem ele preparado um nobre exército de mártires, reformadores, missionários e evangelistas. Tem produzido notáveis reavivamentos religiosos; e vive através de hinários populares em toda a cristandade. Oração é o seu hábito de vida, é o ar renovador do calvinis- mo”.105
Voltando ao livro de Battles, observamos que os Salmos que mais se enquadram na definição de piedade como experiência da vida cristã devocional, são exatamente alguns que Calvino escolheu para metri- ficação e uso na liturgia da igreja. É, por exemplo, o Salmo 25; “A ti Senhor elevo a minha alma, Deus meu em ti confio, não seja eu envergonhado. . . ”. E o Salmo 36, onde se encontra a jóia preciosa do versículo 9: “Em ti está o manancial da vida, na tua luz veremos a luz”. Ou então o Salmo 46: “Deus é o nosso refúgio, fortaleza, socorro bem presente na angústia". Ou ainda o Salmo 113, que agora é um cântico de louvor e aleluias, muito em sintonia com o seu sentimento de louvor e gratidão, que Calvino sempre manifesta para com Deus: “Aleluia! Louvai, servos do Senhor, louvai o nome do Senhor. . . ”.
E a piedade de Calvino se reflete nos hinos que escreveu como louvor a Deus: “Tu és a dextra de minha alma, ó Deus. . . ”.
O hino da criação, em que canta louvores ao grande Artífice: “Grande é o Artífice que mostra em milagres o seu poder, sua bondade e sabedoria nas coisas que criou, grandes e pequenas”.
É o hino do fé? “Não em nós a nossa fé, pois nada somos. Não, no coração de Deus realmente estamos, nele só nós confiamos a vida além”.
É o hino de comunhão: “Autor de toda a justiça . .. médico de todos os males, cura a nossa doença.
Nesta Ceia a tua morte declarada está, vem fazer de todos nós irmãos vivendo em paz”.
Um aspecto da pieda de de Calvino, que Émile Doumergue aponta, encontra-se na sua meditação com respeito à vida futura, certo desprezo para com a vida presente: “A terra deve ser desprezada para que não nos escravizemos por amor intemperado para com ela".
Nessa mesma ordem de pensamento, Calvino tem o cuidado de prevenir contra a atitude imprópria de um pessimismo negativista; pois que, odiando a vida presente, nos mostraremos ingratos para com Deus que a povoa de tantas bênçãos.106
Talvez nada melhor para terminar esta série de considerações sobre a piedade de Calvino do que aquele trecho tão conhecido e tão citado das Institutas, quando trata da vida cristã. Com singeleza, humildade e beleza assim se expressa: “Nós não somos de nós mesmos; portanto, não façamos nosso alvo a busca daquelas coisas que nos sejam agradáveis; nós não somos de nós mesmos: portanto, até onde nos é possível, esqueçamo-nos, e as coisas que são nossas. Por outro lado, somos de Deus: portanto, que a sua sabedoria e vontade presidam sobre tudo que é nosso. Nós somos de Deus: a Ele, como único legítimo alvo, sejam dirigidas nossas vidas em todos os seus aspecto".107 ,
NOTAS DA I PARTE
1. John Calvin, H is Life, Letters and Works, p.3332 . Letters of John Calvin, Vol. I — B urt Franklin Reprinted,
New York, 1973 — Prelim inary Observation, p.33. John T. McNeill, p.34. W. Walker, John Calvin Schocken Book, New York, 1969.5. Devotions and Prayers of John Calvin, compiled by Charles
Edw ards; Baker Book House, escand Rapids, 1954, p,13e 14.6. Apud, Stickelberger, pp.120-1217. Abel Lefranc, LTSloquence Française, p.138. M arturin Cardier, L’Eloquence Française, p. 14.8. M arturin Cordier, LTSloquence Française, p.149. Penning, Genius de Geneva, E erdm ans Publ. Co., 1954, p.24
10. Idem, pp.21-2512. Cadier, The Man That God M aster, Eerdm ans Publ. Co.,
1961, G rand Rapids, p.2213. Calvin, Uma Vida, p.1514. Calvin et Loyola deux R eform ateurs, Paris, 195215. Cadier, The Man That God M aster, Eerdm ans Publ. Co., 196116. Walker, John Calvin J. Putnam ’s Sons, New York, N.Y.
1909, p5217. Tracts and Treatises, Introduction, p. LX18. Penning, Life and Times of Calvin19. Tracts, Vol. I p.6420. Tracts, Vol. I p.62-6321. Naissance p. 906, Dourtiergue, Vol. I 460, apud Walker, p.12222. Guizot, p.20423. Zweig, p .1824. Guizot, p.21025. Mackinnon, p.5426. Walker, p.17227. Beza, Vol. I, T racts and Treatises, p.48-4928. Wendel, p.2829. Beza, Vol. I Tracts, LXXI30. Dyer, Life of Calvin, 1850, p.5831. Dyer, p.7832. Dyer, p.7733. Firchhofen, Vida de Farei, 1.68, Dyer, p.7834. Carta a Viret, opus 13, 330.35. Zweig, p.42
36. Beza, Tract, Vol. I, LXXIII37. C arta a Viret, opus 2538. Dyer, Life of Calvin, London, 3. Murray, 1850, p.14439. Dyer, idem, p. 120, 12140. Dyer, p.12541. Miconius, Cartas, 5442. Wendel, p.8143. Beza, Tracts, LXXVII44. Mackinnon, p.9345. Rayburn, John Calvin, Lisboa, 1914, p.16446. Beza, Tracts, Cl47. Beza, Vol. I Tracts, CVI48. Beza, Tracts, p. Cl49. Wendel, p.9550. Wendel, p.13951. Opera V III, 879, Defensio Orthodoxae fidei, De Sacra
Trinitate, 155452. Stickelberg, p.11953. Stickelberg, p.12554. Opus 15, 26855. Wendel, p.9756. Serm ão sobre Jo. 7:857. Stefan Zweig, p.3358. Idem , p.2359. Idem , p.8060. Reyburn, Calvin, His Life and Work, p.28161. Stickelberg, p.12562. Warfield, Calvin and Augustine, Baker Book House
D istributer Grand Rapids, 1956, p.563. Walker, p. 86, 9464. Cadier, p .31-3265. Alberto Hyma, Life of J. Calvin, Wro. Eerdm ans P. Co.,
Grand Rapids, 194366. Guizot, p.16367. Stefan Zweig, The Right of Heresy New York, The Viking
Press, 1936, p.2268. Texto publicado na história dos m ártires em 1885 em
Toulouse, Vol. I p.298, segundo Cadier, p.5869. Guizot, p.17770. Guizot, Prefácio p.l71. Warfield, Calvino e Agostinho, p.8
72. Cadier, p.16973. Warfield, p.774. Tracts and Treatises, p.68 Vol. I Eerdm ans P. Co., Grand
Rapids, 195875. L’Hum anité de Calvin, 196476. Edição Americana, 1971, Abingdon Press, Nashville.77. Jules Bonnet, prefácio, p.12178. J.M. Audin, H istoire de la vie, des ouvrages et des doctrines
de Calvin, Vol. II, Paris, 1841, p.34079. Carta 38, p.137, Vol. I80. Cartas, Vol. I p.53, carta 1481. Carta 87, p.33582. Carta 170, Vol. II, p.6783. Carta 177, Vol. I I p. 3784. Carta 306, Vol. II, p.38385. Introdução, Jules de Bonnet, p.986. Carta 274, Vol. I p.22987. Carta 281, Vol. II, p.31688. Carta 325, Vol. III , p.24589. G.E. Duffield, João Calvino, Wm. B. Eerdm ans P. Co.,
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Grand Rapids, 1950, p.891. Life of John Calvin, Presbyterian Board of Publication
Philadelphia, 190992. Francês M. Highman, The Style of John Calvin, Oxford
University Press, 1967, p.293. Tracts and Treatises, Introduction, LXXVIII94. Volmer, p.12395. Calvin’s Attitude Toward and Exegesis of the Scriptures,
Calvin Memorial Addresses, Presbyterian Committee of Publication, Richmond, Virginia, 1909
96. Stickelberg, p.9597. Jam es Mackinnon, Calvin and Reformation, Longmans
Green ad Co., London, 1936, p.28598. C. Kromminga, Man before God’s face in Calvin’s preaching,
Calvin Theological Seminary, 1961, p.599. J. Kromminga, Thine is My H eart, Grand Rapids Zon-
dervan Publ. House, 1958, p . 188100. Institu tas, Livro III , capítulos XX e X X III101. Idem , idem, p .155102. Battles, Ford Rewis, John Calvin’s Piety, p . 13103. Idem, Ibidem104. Devotional Prayers of John Calvin, Baker Book House,
Grand Rapids, 1954105. Idem , p.3106. Calvin and Reform ation; chapter Calvin Epigony or
Creator, Flemming H. Revell Co. New York, 1909107. Institu tas, Livro III , Cap. V II, p.7
VIDN3D UNIo n ia iv d ovor
3±yVd II
Capítulo 1
INFLUÊNCIA DE CAL VINO NA EDUCAÇÃO - A SUA ACADEMIA
É vim domingo de céu azul e sol brilhante a derramar filigranas de ouro sobre os campos umedecidos na serenidade bucólica de uma paisagem mineira de cerrados e espigões, terra vermelha-alaranjada. Numa pequena igreja de roça, que parece menor ainda pela quantidade de gente que acomoda, se apinham homens, mulheres e crianças, que de quilômetros e léguas acorrem ao culto divino, atendendo à visita periódica do pastor que vem de longe.
Essa visita só se torna possível nos períodos de estiagem, pois os córregos e rios que, na distância de nove léguas medidas a casco de cavalo devem ser transpostos a vau, no lombo de animais, não dão passagem nos meses de chuvas e enchentes.
Quando chega outubro, o pastor faz a sua última visita anual, recomenda aos fiéis constância na fé e no testemunho do evangelho e deles se despede até abril do ano seguinte. Há expressões de pesar, há lágrimas nos olhos de alguns, há lenços que se agitam num adeus cheio de emoção e, à em medida que o cavaj- lheiro se afasta, vai para os ares o cântico que sai espontâneo: “Deus vos guarde pelo seu poder”. . . “Até nos encontrarmos outra vez".
E vêm as chuvas copiosas e com elas muito trabalho na lavoura, o plantio do milho, do arroz, as capinas.
E crianças nascem nesse intervalo. O tempo passou depressa.
Nesse domingo ensolarado há batizados na Igreja. Os pais apresentam os filhos ao batismo.
— “Prometeis”, pergunta o pastor, “Que se Deus for servido conservar a vida desse vosso filho haveis de criá-lo na doutrina e admoestação do Senhor?”
— Prometemos.— “Prometeis que haveis de ensinar ou mandar
ensinar a ler esse vosso filho, para que possa por si mesmo examinar as Escrituras Sagradas, inteirar-se das verdades nela contidas?”
— Prometemos!— “A Igreja promete dar a estes pais o apoio e
simpatia para que possam cumprir os votos que acabam de fazer?”
A dextra erguida pelos fiéis responde tacitamente— “prometemos”.
Presbiterianos dos sertões da nossa pátria, herdeiros espirituais de Calvino, começavam a aprender o que esse grande homem de Deus do passado, com sólido fundamento nas Escrituras preconizava: os de- veres que as respostas acima, tanto do crente individualmente, como da igreja como comunidade, reconheciam.
Ao apresentar o seu catecismo formulado para a igreja de Genebra, afirmava Calvino que o ensino do catecismo era um meio de voltar ao costume primi
tivo, que, pela ação de Satanás, tinha sido abolido. Era preciso cuidar que as crianças fossem devidamente instruídas na religião cristã. Para que isso fosse feito mais convenientemente, era preciso ter não somente escolas abertas como no passado, e indivíduos empenhados no ensino de sua família, mas era também preciso adotar como costume público e prática a interrogação das crianças na igreja, sobre temas mais comuns e bem conhecidos dos cristãos. Por isso, explicava ele, escrevera o seu catecismo e as Institutas.
Evidente é por essa passagem, e por muitas outras paralelas, a verdade afrmiada por aqueles que de perto estudam a obra de Calvino sob o ponto de vista educacional: Calvino acreditava na religião inteligente, fruto do intelecto, tão bem como das emoções. Dizia ele que um dos mais tenazes inimigos da verdadeira religião é a ignorância.1
Calvino insiste que a ignorância é a mãe da heresia2
Dillistone afirma que para Calvino a Igreja é a escola da doutrina, o lugar onde os homens aprendem o verdadeiro conhecimento e são instruídos no caminho do Senhor.3
“Calvino desenvolveu uma perspectiva de vida que reconhecia os valores da razão e da inteligência humana”.4
“No sentido profundo e total, o propósito da Ci- vitas Dei — o Reino de Deus — é Educação, e atende a todas as atividades do cidadão, mesmo que seja velho, na sua maneira de pensar, de agir por meio de seus atos. O cidadão está sendo educado na mais fecunda glorificação de Deus; o seu professor é Deus pela Sua Palavra”.5
Creio que poderíamos multiplicar com abundância as citações para demonstrar que não se pode ver a obra de Calvino atentamente sem se perceber que não somente Educação está no âmago de seu programa e do seu grande sonho, a Igreja de Cristo, mas, que também era parte integrante, inerente e indispensável, segundo o seu entender, da economia do Reino de Deus
entre os homens, com vistas ao mais alto propósito — A glorificação do seu Criador.
A Igreja é mais do que uma comunidade de fé e adoração a Deus, é uma escola onde se aprende e onde o Espírito de Deus mesmo é o Mestre dos Mestres, no sentido real e prático. Nãcj há, para Calvino, uma separação entre o ensino, quer seja de ciência, língua e história, é o ensino religioso, porque todo o ensino visa o aperfeiçoamento do homem para a sua vocação, e essa vocação ou chamado divino tem por fim o cumprimento de um papel na sociedade na qual o indivíduo se realiza, pois, além das bênçãos que recebe para si na vida cotidiana, atinge o mais alto propósito da existência humana — a Glória de Deus.
O nosso homem da roça que vinha trazer o filho ao batismo e prometia mandá-lo à escola para aprender a ler; e a Igreja que com ele prometia cooperar nesse sentido, estavam vivendo a teologia de Calvino, que tanta ênfase dá a educação dos filhos, fruto, aliás, de uma convicção inabalável, de que se tratava de uma ordem bíblica, à qual não se podia fugir: Deute- ronômio 6:6-9.
Voltemos à nossa história daquele dia de sol.A preocupação dos membros da pequena congre
gação com respeito ao cumprimento dos votos feitos no ato do batismo de um infante não lhes deixava a consciência em paz; pois, não havia ali uma escola e não tinham recursos para mandar os filhos ao estudo em outro lugar.
Relegados ao esquecimento pelos poderes, tanto municipais, como estaduais, não foram agraciados até então, nem mesmo com uma modesta escolinha rural de duas salas e um professor vindo de longe para ensinar todas as classes ao mesmo tempo. Nem isso.
O pastor se solidarizava com as ovelhas na preocupação de educar as crianças daquela comunidade, de modo que não demorou muito, para alegria de todos, chegava a professora, aliviando assim a/ consciência dos pais e trazendo esperança ao coração dos filhos.
A igrejinha se tornou também em sala de aula, feliz combinação, igreja e escola, bem ao sabor dos ensinos de Calvino.
Muitos anos depois o pastor, que fora transferido posteriormente para um campo distante, esperava no aeroporto de uma das cidades maiores daquela região a aeronave que o devia conduzir à capital da república. Dele se aproximou uma jovem que falava com desenvoltura e correção, vestia-se com modéstia e bom gosto. Formara-se enfermeira e, no pleno exercício de sua profissão trabalhava naquela cidade. Era uma das meninas de pés descalços que não sabia ler até que a professora chegasse para fundar a escoli- nha presbiteriana daquela congregação da roça.
Era assim que Calvino queria, Igreja e Escola de mãos dadas no grande propósito de bem servir o homem e glorificar a Deus.
Walker, um dos biógrafos de Calvino, diz que ele pertencia à segunda geração dos reformadores e se conta mais entre os herdeiros do que entre os inicia- dores da Reforma. Não poderia ter feito o seu trabalho, se antes dele não tivessem vindo Lutero, Zwín- glio. No entanto, não fora apenas um construtor sobre o alicerce de outros.6
Doumergue corrige a idéia de que Calvino seja apenas um epígono, pois ele é o organizador e conso- lidador do grande movimento da Reforma.
Entre Calvino e Lutero há de se observar que, tratando-se de homens que vieram de situações diferentes, viveram um momento histórico diverso e tinham temperamento e cultura diferentes, haverá semelhanças e contrastes. No que se refere especialmente à educação, podia-se apontar o seguinte: Não há dúvida qualquer tanto no espírito de Lutero como de Calvino sobre a importância da educação na vida religiosa e o dever que o cristão tem de buscar para sí e para os seus filhos a melhor instrução e fazer também dela um direito para todos. Lutero se destaca na história da educação por dois documentos principais sobre o assunto: a carta aos prefeitos e maiorais de to
das as cidades da Germânia em favor das escolas cristãs. Porque as escolas eram fruto da situação criada pela idade média, um movimento iconoclasta levado a efeito por grupos exaltados destruiu mosteiros e as escolas que neles se encontravam. Era preciso acabar com o pensamento errado de que escolas não eram necessárias, como criam alguns exaltados membros desse movimento.
Carlstad, na ausência de Lutero, pregava que convinha fechar as escolas e mandar os que nelas trabalhavam para ocupação na lavoura, etc. . .
Os anabatistas preconizavam uma revelação direta de Deus além da Bíblia e não davam à educação maior importância. Lutero e Calvino advogavam uma religião em que o intelecto é membro importante.
Melanchthon, o ilustre companheiro de Lutero, professor da Universidade de Wittemberg, dava real importância a educação, tanto secundária como primária. O bem estar, segurança e força de uma cidade se encontram em cidadãos capazes, instruídos, sábios e justos, dizia Lutero. Mais tarde pregou ele um sermão sobre a Educação das crianças, no qual dizia que as autoridades civis estão no dever de obrigar o povo a mandar seus filhos à escola.
Verifica-se, no entanto, que tendo Lutero, nesta altura, o apoio dos poderes do Estado, julgou ser do Estado a obrigação de manter escolas — um sistema escolar mantido pelo poder civil sob a orientação da igreja.
O conde de Mansfield, atendendo ao apelo de Lutero, pediu aos protestantes que fundassem uma escola na cidade natal do reformador alemão, obedecendo às teorias e métodos preconizados por ele. Essa escola foi fundada sob a orientação de Melanchthon, o qual recebeu essa incumbência do eleitor da Saxônia mesmo.
O plano de Melanchthon foi seguido sem maiores modificações e a sua atuação como educador gran- jeou-lhe fama entre os reformadores. Verifica-se nesse caso que o Estado é que se serviu da orientação do
reformador na criação de um sistema educacional. Evidentemente, o Protestantismo, defendendo o livre exame das Escrituras, estabelecendo como fizeram os reformadores — tanto Lutero como Calvino — o ensino do catecismo às crianças, adotando uma liturgia em que o povo tinha participação ativa; preconizando o dever do cidadão de desempenhar funções civis, com a maior eficácia possível, havia consequentemente de dar ênfase especialíssima à eduôação. E João Calvino o fez, prosseguindo com vantagem o caminho trilhado por Lutero.
O reformador suiço tinha pessoalmente uma experiência escolar que lhe fornecia cabedal excelente para isso. Em criança, estudara na melhor escola de sua terra natal; escola onde se matriculavam os filhos da gente rica e nobre da região Posteriormente vai para o colégio de Lamarche e em seguida para o de Montaigu, em Paris. Seguia mais tarde para Orleans e Bourges em busca de seu diploma de direito Nessa variedade de escolas sob a orientação de alguns dos melhores mestres de seu tempo, o espírito crítico de Calvino havia de se despertar para o exame das falhas e vantagens que em todos esses lugares tivera oportunidade de observar.
Quando seus olhos se abriram para as verdades que a Reforma proclamava, começou a perceber a necessidade não apenas da restauração do Cristianismo à sua forma apostólica, mas a conveniência de dar à Igreja o instrumento também renovador que a libertasse das crendices e superstições que tanto concorreram para a sua degradação moral e religiosa. Era preciso criar uma igreja capaz de discernir a verdadeira doutrina evangélica, expurgando-a de todas as inovações prejudiciais. Lutero é o iniciador, sem dúvida, Calvino é o continuador.
Ambos preconizam a urgência e a necessidade de escola popular gratuita, não como privilégio de uns poucos, mas como um direito de todos.
Lutero vê no Estado um instrumento para alcançar o seu alvo. Era o Estado que devia criar e man
ter as escolas sob a orientação da Igreja e com o apoio dela.
Calvino vê no Estado um cooperador com a igreja, para que a educação colocada*sob os auspícios da igreja sirva aos propósitos do reino de Deus e para sua glória.
Na Alemanha de Lutero, nós o encontramos alertando o Estado para a necessidade urgente da educação. Lutero afirma que é preciso haver escolas em todos os lugares, para meninos e meninas, pois, para se manter a ordem e o bem das famílias é necessário que haja homens e mulheres preparados.
Calvino, no entanto, vê a escola num plano mais elevado ainda. Não se trata apenas de um instrumento para aperfeiçoamento da sociedade, como um fim em si mesmo, mas de um meio para alcançar a mais alta finalidade da vocação humana, a glória de Deus Por isso, cuida com carinho da educação nos seus diferentes graus, de modo que pudesse aqui na terra preparar para uma vocação que transcende às finalidades puramente terrenas.
Afirma Edwin Walthout7 que Calvino pensava ser o bom príncipe uma testemunha da divina providência na manutenção da salvação.
CALVINO E LOYOLA: Dois grandes educadores.No estudo da História da Educaçãq, não se pode
ignorar estes dois grandes nomes: Calvino e Loyola. Há algumas coincidências curiosas na vida e na carreira desses dois homens. Ambos são presa de um intenso ardor religioso, aos limites do sacrifício. Ambos donos de privilegiada inteligência e rara capacidade organizadora. Ambos destinados a um lugar de excepcional importância na história.
Calvino é mais moço, uns dezoito anos, mas ambos estudaram no famoso colégio de Montaigu, em Paris, e há aqueles que afirmam que, embora por um período curto, lá estiveram juntos. Outros escritores pensam que cruzaram um pelo outro nas ruas de Paris — enquanto um entrava, outro saia.
Em 1534, quando Loyola fundava a sua Sociedade
de Jesus, Calvino publicava o seu livro Psychopanny- chia. A data da volta de Calvino a Genebra, em 1541, coincide com o ano da aprovação pelo Papa, dessa sociedade fundada por Loyola. Ambos vão oferecer uma contribuição de valor inestimável à causa da educação — cada um à sua maneira, com vista ao alvo que tem em mira.
Calvino quis fazer da educação um instrumento hábil para produzir indivíduos capazes de servir na vida pública ou qualquer outra função, com a consciência do dever e sentido de vocação, tudo para a mais alta finalidade a glória de Deus.
Loyola, por seu turno, estabelece como meta suprema de sua ordem, Omnia in majorem Dei Gloriam. Inicialmente, não pensava Inácio de Loyola em fundar escolas. Seu plano visava uma grande ofensiva missionária que pudesse conquistar o mundo não cristão, reaver para Roma os territórios perdidos com a Reforma Protestante; ao mesmo tempo, assegurar para a Igreja Católica o domínio absoluto dos povos pagãos— nas colônias de Portugal e Espanha. Percebeu, no entanto, que essas finalidades só poderiam ser alcançadas com o eficiente e poderoso instrumento da educação. Daí tornar-se a Companhia de Jesus uma das ordens religiosas mais bem educadas e mais eficientes na implantação de escolas. Não faltaram aos jesuítas homens de cultura, pertinácia quase obsessiva e irremissa paciência para buscar o melhor segundo os seus padrões. . .
Tanto Jesuítas como Calvinistas deram ao mundo nomes de sólida cultura nos vários ramos do saber. Em 1599, tinha Cláudio Aquaviva, o geral da ordem, pronto o seu Ratio Studiorum — aquela parte de Ra- tio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu, que trata da educação. Era o fruto acumulado do acervo de experiências em algumas décadas, no que diz respeito à educação em seus variados aspectos. A opinião insuspeita, até mesmo de alguns autores católicos como Kampschulte, é de que Aquaviva acolheu influência calvinista, na formulação final do seu Ratio Stu-
diorum, uma tese, sem dúvida, para ser estudada com profundidade.
CALVINO E ROUSSEAUApenas de passagem, convém lembrar ainda a re
lação que há entre Calvino e outro nome significativo da História da Educação: J . J . Rousseau. Calvino não é suiço, nem genebrino, mas francês, contudo, viveu em Genebra e foi aí que encontrou o grande palco de suas atividades.
J. J. Rousseau é suiço. É de Genebra, foi batizado na Igreja de S. Pedro onde Calvino, como pastorda comunidade que ali se reunia, pregou e batizou crianças tantas vezes e por tantos anos.
O pai de J. J. Rousseau era relojoeiro, a mãe filha de um pastor. Cedo começou Rousseau a se impressionar com educação. Parte da sua obra literária revela isso.
Émile é o modelo do menino que vive em liberdade, sem sofrer as influências de artificialismo da so ciedade que acaba deseducando ao invés de educar.
Rousseau parte do princípio de que o homem é naturalmente bom; a sociedade é que o perverte; daí a necessidade de se criar o menino livre das regras e imposições às quais a sociedade e a família organizada o obrigam.
A posição de Calvino é bem outra, e resulta da sua teologia: o homem é mau e traz consigo ao nascer uma natureza depravada e a educação por si só não poderá regenerá-lo. É a graça de Deus que o regenera e lhe dá, através de uma educação sadia, orientada em princípios cristãos, condições de se tornar um instrumento para a glória de Deus.
As teorias de Rousseau, evidentemente exageradas e fora da realidade, despertaram, todavia, os educadores para a necessidade de se oferecer ao educando liberdade de expressão e contato com a natureza, para um desenvolvimento mais livre da personalidade. De modo que a sua influência foi decisiva na maneira de pensar sobre educação, preconizando estágios
diferentes na educação da criança; metas nessa educação e preparação do educando para uma vida eficiente na sociedade.
Calvino é diferente de Rousseau, na postulação de outros métodos; na maneira de encarar o aluno; no estabelecimento das metas de educação, que não se restringem puramente ao terreno, mas visam algo transcendental, e é na Academia que o pensamento de Calvino sobre educação e as finalidades dela vão ter oportunidade de expressão; é através dela que a sua influência há de se fazer sentir poderosamente, expandindo-se pelo mundo inteiro.
O estudo da influência de Calvino na Educação sugere-nos a indagação: onde recebera ele o lastro de conhecimentos específicos neste ramo que o habilitassem à obra que desenvolveu neste sentido?
Além das escolas que freqüentou e dos mestres insignes que teve, o que permitiu ao seu espírito atilado e sua mente organizada absorver muito dos métodos e prática de ensino, adaptando-os posteriormente ao seu plano educacional. Calvino aprendeu muito, neste sentido, na vivência com homens especialistas na arte de ensinar, em seu tempo, entre eles o grande amigo, Martin Bucer.
Crê-se que os três anos vividos em Estrasburgo, após a sua expulsão de Genebra, lhe foram muito úteis a esse aspecto. A cidade livre alsaciana era então um reduto de teólogos e mestres reformados. Martin Bucer era um daqueles homens excepcionais do clero romano, que a Reforma atraira para si e que se tornaram em grandes luzeiros do movimento. Fora agostiniano, como Lutero, e foi por influência deste que se decidiu a abandonar a vida monástica, casar- se com uma freira, como fizera Lutero, e arrostar com as perseguições naturais dessa situação. Recebido em Estrasburgo com certa reserva (pois fora expulso de Wisenburgo onde estivera pregando), tornou- se em pouco tempo uma das figuras mais destacadas da cidade e verdadeiro líder da comunidade. Com ele Calvino manteve uma amizade capaz de sobreviver a
todas as vicissitudes. Possuía uma qualidade rara — a capacidade de reconhecer e apreciar a grandeza de outros.
Bücer era professor e educador, mas o seu grande mérito se revelou no empenho de descobrir e atrair para Estrasburgo homens capazes que, com brilho, puseram em execução um excelente plano educacional. Dentre esses se destacam Jacques Sturm, um jovem de família nobre, educador de raras qualidades. Fora expulso de Solestadt causa das suas simpatias pela Reforma e logo depois recebido em Estrasburgo; posteriormente presidente da comissão permanente di3 educação.
Um outro grande nome é João Sturm, notável pedagogo, autor de um livro que se tornou em obra clássica de pedagogia; “De Literam Ludis Recte Aperien- dis” no qual propõe métodos e metas de educação. Advoga a divisão da educação em três departamentos: O Kindergarten para as crianças abaixo de seis anos; o Gymnasium, um curso de nove anos para as crianças de seis anos; a Hochschule, um curso de cinco anos para os que terminassem o Gymnasium. Dava grande ênfase à moral e à religião. A sua capacidade nesse aspecto impressionou de tal modo as autoridades que acabou sendo o Diretor Geral de todo o ensino.
De modo que em Estrasburgo, Calvino recebera influência não de um homem apenas, mas de uma plêiade de grandes educadores.
Indiretamente, foram eles, até certo ponto, instrumentos usados por Deus na preparação do reformador para a sua tarefa educacional, especialmente a fundação da sua sonhada Academia.
Samuel Cornet,8 falando da Academia de Genebra, assim se expressa: Cette École fuit l’âme de l’hé- roique défense de Genève contre le duc Savoie, le prin- cipale foyer.9 Parece que uma das promessas com que o duque procurara trazer de volta a si o domínio de Genebra era a da fundação de uma universidade. Essa promessa havia de incentivar ainda mais os sonhos
de Calvino de doar à cidade e ao mundo uma nova escola com nova filosofia de educação. “A academia foi o passo final para a realização do seu ideal, de uma comunidade cristã”.10 Minucioso nos seus planos, guiado pela natural capacidade organizadora, Calvino levava a efeito o seu desejo, observando as me- nomes minúcias, por isso, foi exigente até na escolha do local —r uma vinha com vistas para o lago, lugar bem arejado.11
Renato Freschi, numa obra premiada pela Academia de Milão em 1934, diz: “O Estado novo fundado por Calvino é a conseqüência lógica de sua teologia e a Academia faz parte da estrutura deste estado”.12
O ar livre que iriam respirar os alunos da nova escola era o símbolo do novo sentido de educação que iam receber, muito diferente da orientação escolásti- ca medieval da Sorbonne, muito diverso do que haveria de ser a prometida Universidade do Duque de Sa- bóia.
Lutero afirmava “a necessidade de escolas livres, lembrando que os monges aprisionavam os jovens como aves em gaiolas, por isso, era necessário que se lhes permitisse ouvir, ver e aprender de tudo, conquanto que o fizessem dentro das linhas de um homem” .
A criação e estabelecimento da Academia não foi tarefa de modo nenhum fácil. Aqueles que iam ser imediatamente beneficiados com a escola (nem todos, pelo menos), supõe-se, foram capazes de entender o valor da iniciativa. O concilio da cidade mesmo não tinha a visão real da importância da obra, por isso, deixou, às vezes, de atender com a devida e necessária prontidão aos apelos de Calvino em favor da Academia. Faltava dinheiro e Calvino chegou a sair de casa em casa solicitando auxílio para a escola.
A abertura se deu na época aprazada, 5 de março de 1559 (segundo alguns em 7 de junho). O prédio não estava concluído ainda; não havia carteiras nem bancos, mas fez-se a improvisação necessária, utilizando-se tábuas e pranchões de madeira. O entusiasmo era
grande por parte de Calvino, dos pastores e muitos outros, de modo que aos poucos tudo foi caindo nos eixos. Uma cerimônia pública de grande repercussão assinalou o acontecimento. O comércio fechou suas portas, os sinos tocaram em sinal de regozijo e na catedral de S. Pedro se deu a abertura com uma solenidade religiosa, como convinha à ocasião. Iniciou-se com oração por Calvino, o discurso foi do reitor Teo- doro Beza.
Como já se afirmou, a Academia de Genebra era uma instituição da Igreja, sob a supervisão da Igreja para servir a Igreja. Os ministros era virtualmente o corpo administrativo da escola.13 A Igreja e os magistrados estavam juntos para a fundação da Academia que tinha como objetivo preparar ministros e cidadãos para o governo civil.14
Calvino só poderia compreender um Estado sólido e bem dirigido, cumprindo a sua tarefa de zelar pelo bem estar dos cidadãos, em todos os sentidos, sob a direção de homens que, no exercício de suas funções, dotados do melhor preparo possível, fossem possuídos de um senso de missão a eles confiada por Deus.
A Igreja tinha que ensinar os seus filhos como viver neste mundo dentro da vocação que de Deus receberam; ensinar as Escrituras, a regra de fé, o catecismo, mas também e, ao mesmo tempo, prepará- los para atuar na sociedade no pleno exercício de seu chamado divino. Entre as funções que Calvino postulava para os que servem à Igreja de Cristo estava o mestre. “E quando falava do mestre, estava falando do mestre-escola, pois, para o reformador, educação nunca era ‘secular’ como o termo é geralmente entendido hoje. Todo ensino tem como seu arcabouço primário a referência à glória de Deus e só tinha significado, em última análise, se contribuía para a salvação e o adiantamento da igreja. Calvino ponderava que da mesma sala de aula vinha o ministro, o servidor civil e o leigo”.15
Calvino não quis ser o diretor da escola; foi o
seu fundador e professor de Teologia. Embora enfermo, cuidou das construções e procurou dotar a Academia do melhor corpo docente que pode encontrar. Aproveitou alguns que tiveram de abandonar o seu posto em Lausanne, acolheu aqueles bons professores que eram perseguidos por causa da Reforma. Mar thurin Cordier, seu antigo professor de Latim e Francês em Lamarche, integrou o corpo docente. Outros nomes notáveis foram convocados, como Casaubon, Hortman, Francisco Turrentino, Alphonsus Turrenti- no, Leclerc, Pictet, Saussure, Bonnet e outros. Ho mens sábios, tementes a Deus e dextros na arte de ensinar.
Assim convinha à filosofia de educação que Calvino postulava; pois não tinha sentido escola sem evangelho. Uma escola puramente secular, com professores embora capazes, sem temor de Deus, nunca ocuparia o tempo e pensamento de Calvino. Por isso, “o catecismo estava no coração do programa educacional da cidade”.16
Dividiu Calvino o programa da sua Academia em dois cursos. A Schola Privata, baseada essencialmente na gramática, lógica e retórica, além de história e de escritores latinos e gregos. A ênfase da Schola Privata era na leitura corrente, na fala com fluência, na escrita com elegância.17 Não havia preocupação com a matemática, nem com a geometria, ou estudo de música, como no antigo quadrivium. Os Salmos eram cantados como única parte da música. Depois vinha a Schola Publica, em que a ênfase era na oratória e retórica. Os discursos de Cícero, com o De Oratore, Filosofia Moral, Poesia. O Latim e o Francês deviam ser sabidos corretamente pelos alunos.
Calvino prometeu no início que a sua Academia teria uma faculdade de Medicina e uma de Direito. A Medicina veio antes do seu falecimento, Direito só depois de sua morte.
O trabalho na Academia começava bem cedo: às 6 da manhã, no tempo do verão, e às 7 nos dias de inverno, com uma hora inteira dedicada aos exerci-
cios devocionais. Depois da hora devocional nas segundas, terças e quartas feiras, o trabalho de classe continuava até às 10 horas, quando era interrompido para as refeições. Às quartas e sextas não havia classes. Às quartas, os professores deviam estar presentes ao culto público. Às sextas deviam participar da “Venerável Companhia”.
Alguém afirmou que o amor é engenhoso e fértil na criação de meios para salvar e proteger o ser amado. Foi isso que fez Jacobede inventar a cesta de vime para colocar o filho Moisés às margens do Nilo, onde a filha de Faraó ia se banhar. A Academia continuava a ter dificuldades financeiras e Calvino, que vivia noite e dia os problemas de sua escola, sugeriu aos advogados que, ao elaborar o testamento de seus clientes, os aconselhassem a legar parte de seu espólio à Academia. Esse plano deu resultado, de modo que dentro de pouco tempo nada menos do que dois legados tinham sido feitos no valor de 1.074 florins. Conseguiu, ainda, que multas por infrações da lei se destinassem à Academia, o que também resultou em proveitosa renda. Assim é que Jean Broche pagou uma multa de 100 coroas por ter usado indevidamente os direitos autorais das “Institutas”, que pertenciam a Antônio Calvino, irmão do reformador.
Outros expedientes foram utilizados, tais como ofertas voluntárias, que encontraram boa aceitação por parte de muita gente do povo. Um estudante deu cinco coroas e a esposa de um padeiro deu 5 sous. Alguns estrangeiros, e até soberanos de outros países, contribuíram para a Academia, que aos poucos ia ganhando interesse e a simpatia de todo o mundo evangélico.
Quando a Academia foi fundada, tinha 600 alunos; cinco anos depois, quando Calvino morreu em 1564, havia 1.200 alunos nos cursos superiores mais 300 nos inferiores. Gente da França, da Itália, da Holanda, da Alemanha, da Escócia, da Inglaterra vinha estudar ali.
Inicialmente, só 4 alunos eram de Genebra, isto é, nascidos em Genebra, a maioria era da França. Den
tro de pouco tempo, a fama da Academia se espalhava pela Európa inteira. Dizia-se que um aluno de Genebra era capaz de superar um doutor de Sorbonne na exposição de sua fé cristã. Daí entender-se que a influência educacional de Calvino se espalhasse, levada pelos próprios alunos que acabavam sendo, alguns deles, grandes luminares nos seus próprios países.
Aliás, a reforma que Calvino se propôs realizar em Genebra não era um plano restrito à pequena cidade de Leman, mas algo que devesse ser levado a todas as partes. A Academia se tornou um instrumento hábil e indispensável à infra estrutura deste movimento colossal. Warfield, no seu “Calvino e Agostinho”, afirma: “Chamamo-lo o Reformador de Genebra, mas reformando Genebra pôs ele em exercício forças que estão ativas e operantes até o dia de hoje”.18 E, dentre estas forças, podemos destacar uma nova filosofia de educação aliada a uma nova filosofia d 3 vida, ambas centralizadas na doutrina da educação e vocação cristã e que foram transmitidas pela escola através das lideranças que essa escola espalhou pelo mundo inteiro.
Samuel Cornet escreve sobre a Academia de Calvino19 e se refere ao que ele intitula a obra triplice de Calvino — Uma teologia, uma Igreja, uma República — tríplice na sua manifestação de um só e mesmo pensamento. . . este vasto organismo tinha necessidade de um centro intelectual. . . de modo que. . . (conclui a respeito da Academia): “Esta escola deve ser considerada como coroamento da sua obra”.20 Esse coroamento tão necessário seria o ponto de partida para o avanço da obra de Calvino atingindo a muitos e muitos outros lugares. Convém observar a influência educacional de Calvino em outros países, ainda que ligeiramente.
Ao tratar deste tópico, ocorre-nos inicialmente a lembrança da Escócia, onde João Knox tornou-se a voz retumbante da Reforma, em todos os seus aspectos. Knox foi um dos alunos da Academia, um ardoroso adepto da Reforma, um admirador de Calvino,
um entusiasta do processo de renovação que se verificou em Genebra como resultado do esforço de Calvino. Levou Knox para a Escócia a idéia de educação para todos, ricos e pobres, e educação gratuita patrocinada pela igreja, herança de Calvino. Daí as escolas que se espalharam por toda a Escócia sob a influência de João Knox, que entendia dever cada paróquia ter um mestre escola para oferecer ensino gratuito aos alunos. O ministro nas igrejas rurais devia ser também professor. Por sua influência surgiram escolas gratuitas sob o patrocínio das igrejas, livres da tutela do feudalismo e do domínio eclesiástico. Essas escolas ensinaram a ler e escrever e utili-, zavam o texto bíblico para o ensino da leitura, além do ensino da religião. Tornaram-se um poderoso elemento na elevação intelectual e moral da Escócia. Daí acontecer que, pela influência de João Knox, “a Escócia em matéria de educação elementar gratuita antecipou a Inglaterra em mais de dois séculos”.21
Na França verificou-se extraordinária influência da educação calvinista entre os Huguenotes. Os hugue- notes eram adeptos da teologia calvinista e, por algum tempo, tiveram liberdade de ação, embora com algumas limitações, e floresceram admiravelmente. As academias apareceram por toda a parte na França onde os huguenotes tinham influência e, por isso, eles. se tornaram a gente mais bem educada da França.22
Se na França eram os huguenotes os portadores da influência de Calvino, na Inglaterra foram os puritanos, defensores zelosos das idéias de Calvino e das reformas de Genebra e seguidores dos métodos de educação de lá trazidos.
João Milton é universalmente conhecido pelo seu poema imortal, O Paraiso Perdido, obra clássica da literatura inglesa, contudo, foi também educador. Na sua mocidade dirigiu um internato e, como resultado de sua experiência, observação, estudos, escreveu um tratado sobre educação, no qual dá uma definição de educação em termos bem calvinistas. “Eu chamo educação completa aquela que prepara o homem para rea
lizar, com retidão, com habilidade e magnanimidade todos os ofícios privados ou públicos na paz e na guerra”.
João Milton propõe a fundação de academias para oferecer educação secundária e superior, à semelhança da Academia de João Calvino. O modelo da escola que João Milton desejava para a Inglaterra veio, no entanto, a florescer nos Estados Unidos, para onde os puritanos do May Plower a transportaram e se tornou, por algum tempo, o tipo representativo de escola secundária norte americana, segundo testemunho de Graves.23 A idéia partiu de Benjamin Franklin, que, em 1743, sugeria a instituição de academias que preparassem os jovens para a vida. Indiretamente, Calvino teria influenciado nesse movimento, pois Benjamin Franklin era filho de puritanos.
Convém lembrar que as universidades de Oxford e Cambridge foram universidades dominadas pelo pensamento calvinista. A influência de Calvino na Alemanha, no que diz respeito a escolas secundárias, foi indireta, através dos pietistas, que absorveram dos puritanos muitas de suas idéias, inclusive em matéria de educação.
Francke, uma das figuras mais notáveis do pietis- mo no centro da Europa, tornou-se grande educador* e fundador de escolas para crianças, e principalmente para órfãos. A sua filosofia de educação era muito semelhante à de Calvino: “Somente o homem temente a Deus pode ser um bom membro da sociedade. Sem uma piedade sincera, todo o conhecimento, toda a força, toda a cultura com respeito às coisas do mundo é mais prejudicial do que útil e nunca estará livre de ser somente má”.24 Que é isto senão um comentário lúcido da afirmação bíblica de que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria, ou de que todo o conhecimento científico e literário, qualquer que seja, poderá levar o homem a sua própria desgraça, e a dos seus semelhantes, se não for sustentado por uma religião sadia de temor a Deus e a sua palavra? For isso é que Aiken Taylor chega à conclusão de que
Calvino, quando fala do professor, está falando do mestre-escola, pois, para o reformador, a educação nunca é secular, como o termo é geralmente entendido.
Todo ensino tem como o seu escopo primário a referência à Glória de Deus, e será, em últimas conseqüências, de grande significação, porque contribui para a salvação e provê o avanço da Igreja.25 Na Holanda, onde o pensamento calvinista lançou raízes bem profundas desde o princípio, a influência educacional de Genebra se fez sentir especialmente na Universidade de Leyden, que foi fundada por prcfessores cal- vinistas e sob o modelo de Calvino.26
Após ganhar a batalhá contra a Espanha, Guilherme de Orange ofereceu ao povo de Leyden em recompensa pela resistência desesperada que a cidade tinha oferecido aos espanhóis, isenção de impostos por alguns anos ou uma universidade, 27 O povo escolheu uma universidade e, assim, foi fundada a Universidade de Leyden, uma das mais famosas, embora numa cidade relativamente pequena, pacata e até provinciana. Ali floresceram talentos grandes, como Scalinger, he- lenista de fama, professor de hebraico e outras línguas orientais, que, por muito tempo, ocupou a cadeira de belas letras; Grotius, que entrou para a universidade aos 11 anos de idade e seis anos mais tarde era apresentado por Henrique IV da França, em Versailles, a sua irmã, com as seguintes palavras: eis aí o milagre da Holanda; Espinoza e Descartes ali ensinaram e exerceram sua influência; Arminius, que, em matéria de teologia, discordava de Calvino, em educação era calvinista e tornou notável o nome da escola.
A escola de medicina da Universidade de Leyden chegou a ser uma das mais famosas da Europa, com a presença ali do grande Boerhaave (Hermann), o extraordinário diagnoticista.
Os princípios sobre os quais se assentava a academia de Calvino em Genebra, diz Twing, eram lógica e pedagogicamente sólidos e os seus métodos de admi
nistração eficiente.28 Daí a razão porque, onde quer que se implantou a educação calvinista, surgiu a qualidade excelente de ensino.
Na Alemanha de Lutero e Melanchthon havia de se dizer que a pedagogia de Calvino não teria lugar, no entanto, não lhe faltou uma oportunidade de ali se implantar com grande êxito, na Universidade de Heidelberg, a qual chegou a ser um forte reduto da influência calvinista, com notáveis representantes do seu pensamento, que trouxeram para a América o plano educacional de Calvino. Alguns deles viveram, antes de partir para o continente americano, perto da Universidade de Leyden.
George Bancroft, segundo testemunho de Twing, dizia que Calvino foi o pai da educação popular e o inventor do sistema de escola gratuita... os peregrinos de Plymouth eram calvinistas; a melhor influência na Carolina do Sul veio de calvinistas da França; William Penn era discípulo de Huguenotes; o navio da Holanda, que trouxe os primeiros colonizadores a Manhattan, estava cheio de calvinistas.29
Quem lê a história de fundação da universidade de Harvard fica sabendo que foi fundada por elementos calvinistas convictos e com o mesmo propósito com que Calvino fundou a sua Academia.
John Harvard, de quem a Universidade tomou o nome, era ministro puritano, que legou a uma incipiente escola, ainda sem organização, 780 libras e 400 dos seus livros, com o propósito de educar ministros para a Igreja, como também para o avanço da boa literatura, das artes e das ciências. Cuidava, ainda, a escola da educação dos jovens indígenas no conhecimento e na piedade.
Depois viria Yale, e viria Princeton Embora essas universidades hoje, em certos aspectos, possam ser consideradas inteiramente opostas ao pensamento de Calvino, não se pode negar que devem a sua grandeza e o seu nome às bases sólidas com que foram fundadas.
Dos Estados Unidos levaram os missionários a
outras terras a educação calvinista e realizaram uma obra de incomensurável grandeza no campo da educação, mormente porque introduziram novos métodos, difundiram a idéia da educação para todos, pobres, ricos, meninos e meninas, influíram poderosamente na substituição dos métodos medievais por uma nova pedagogia educacional, liberal.
Podemos particularizar exemplos do Brasil, onde se verificou o surgimento de escolas, como a escola americana em São Paulo, que se transformou na Universidade Mackenzie, como o Instituto Gammon em Lavras, ambas fundadas por elementos calvinistas convictos e orientadas pela filosofia de educação de Calvino.
PENSAMENTO POLÍTICO DE CALVINO
Em tempos mais modernos, de maneira mais acentuada, tem se preocupado em pesquisar o pensamento de Calvino, ao seu aspecto social e político; uma vez que, agora mais do que nunca, estas duas idéias se encontram intimamente ligadas. Os sistemas políticos hoje se caracterizam por tendências sociais; é impossível separar os movimentos sociais dos programas políticos. Nota-se que na Polônia, recentemente, a luta dos sindicatos “Solidariedade”, em virtude da situação peculiar do país, tem procurado evitar que a sua luta em favor dos trabalhadores seja caracterizada por uma tomada de posição política contrária ao estado socialista aí em vigência. Percebe-se, no entanto, a dificuldade desta separação.
Na Inglaterra, hoje assolada por uma crise financeira, que embora mundial, tem ali suas feições peculiares, como peculiar, até certo ponto, é o seu sistema político, percebe-se como entram em debate temas diretamente políticos, quando se trata de encontrar soluções para os problemas sociais.
O governo que não propiciar condições econômicas e sociais aceitáveis, ou pelo menos razoáveis, estará sempre em perigo. E qual deles não está hoje? Basta olhar para os países socialistas fechados.
Calvino se viu na curiosa posição de um homem que, empenhado numa reforma religiosa, dentro de um pequeno estado livre, como era a cidade de Genebra, onde mais do que em outros lugares, a organização eclesiástica e o governo civil se confundiam em certas áreas; embora não fosse ele um chefe de Estado, nem um mero eleitor, durante a maior parte do seu tempo ali, acabou, sem intenção de fazê-lo, formulando idéias políticas. O que Calvino realmente fazia era formular o seu sistema teológico, procurando torná-lo pertinente à sociedade cristã que ali queria implantar.
Quando se lembra que Genebra se tornou abrigo preferido para um número enorme de refugiados, que, por suas convicções religiosas, para alí se dirigiam e onde cada dia chegava, com necessidade de se instalar permanentemente e ganhar a vida, éntende-se melhor como Igreja e Estado, no intuito de. acolher com simpatia e caridade esses recém vindos, teriam que muitas vezes se confundir. Quem havia de cuidar dessa população, o Estado ou a Igreja?
É bem possível que essa situação tornasse difícil a aplicação da teoria de Calvino, de um Estado inteiramente separado da Igreja.
W. F. Graham30 mantém que essa separação da Igreja do Estado existiu para Calvino, mais em teoria do que na prática. É evidente que quando estivesse em jogo o interesse daqueles que precisavam dos seus cuidados pastorais, daqueles refugiados em busca de uma condição de vida livre da tirania de onde
vieram, Calvino não hesitaria em exercer a sua autoridade moral e informal em favor deles. Nota-se que alguns de seus sermões castigavam com severidade e coragem a ganância daqueles que prendiam o trigo, procurando preços mais altos, quando os que ali chegavam precisavam comer. Assim, em Genebra, a Igreja e o Estado necessariamente se confundiam em muitas áreas.
Os homens do concilio eram homens da Igreja, empenhados na implantação dela, e tão de perto com ela relacionados, que expulsaram da cidade os pastores, quando julgaram que a atuação deles ali seria prejudicial à paz da cidade. É esse mesmo concilio que vai buscar de volta, com humilhação até, com insistência, Calvino, quando achou que só assim poderia alcançar a estabilidade social, religiosa e política da cidade. Convém lembrar ainda que Genebra vivera, em tempos anteriores, esse dualismo político e religioso, de Igreja e Estado; de poder eclesiástico e político, de um bispo e de um duque, e que dificilmente entenderia outro regime onde os dois poderes estivessem totalmente separados. Nessa situação a vida da Igreja e sua influência dependiam da cooperação estreita do Estado, a ponto de Calvino ter sido contratado, não pela Igreja mas pelo concilio. Aliás, a resistência em abrir mão do poder de exercer a excomunhão de membros da Igreja, que Calvino julgava direito exclusivo do consistório, e a pertinácia de Calvino e dos pastores em manter livre do Estado essa prerrogativa, é uma amostra clara de como Estado e Igreja se tornavam ali inseparáveis.
Uma outra prova curiosa disso é que o concilio, por razões evidentemente políticas, resolveu adotar os ritos de Berna, sob os protestos inúteis dos pastores, especialmente de Calvino e Farei, o que se tornou a causa imediata da expulsão deles em 1538.
É claro que em assuntos dessa natureza, diretamente ligados a Igreja, ao culto e à sua doutrina, faltava ao concilio competência para julgar; e a palavra autorizada que devia ser ouvida era dos pastores. De
modo que não me parece a melhor maneira de extrair o pensamento político de Calvino, proceder à busca em relatos dos acontecimentos que se desenvolveram em Genebra durante a sua atuação ali. Era um período de experiência, de uma experiência inédita, em uma situação complexa em que fatores de toda sorte, por vezes, obrigaram a uma acomodação; de concessões que de modo nenhum representavam um sonho ideal.
W. F. Graham atribui a Calvino uma boa medida de pragmatismo na busca do bem comum da sociedade, chegando mesmo a dizer que o que era capaz de promover a felicidade do homem na sociedade era bom para Calvino; e tudo que prejudicava a existência do homem era para ele um mal.
Uma análise muito simplista e superficial e, por isso, pouco justa, da posição de Calvino nesse assunto. No entanto, está certo Graham em encontrar em Calvino um admirável senso prático revelado na sua teologia, em que pese a muitos dos seus críticos impiedosos.
Que é que desejava Calvino fazer de Genebra? Não era uma cidade de Deus? Por que o empenho em exigir que todos os habitantes subscrevessem o catecismo e a confissão de fé? É que cidadão de Genebra devia ser cristão, não apenas de nome, mas de fato. Daí a grande dificuldade em extrair a doutrina política de Calvino da sua vida pastoral.
Afirmamos, sem medo de errar, que Calvino não se preocupava em estabelecer uma doutrina política à parte da sua teologia. Como ele era teólogo, e teólogo consumado, e o seu sistema teológico é abrangente, nele inevitavelmente se encontra a preocupação em estabelecer a doutrina em relação a todas as atividades do homem, inclusive a política. É como teólogo que Calvino deve ser encarado antes de ser analisado sob qualquer outro aspecto. É fácil acontecer, porém, que aqueles que não são teólogos, ou não são somente teólogos, se percam na análise do seu pensamento.
Convém insistir que Calvino nunca quis ser outra coisa depois de amadurecido o seu pensamento. Mestre das Escrituras Sagradas, fiel intérprete da verdade revelada na palavra de Deus; pesquisador incansável e metódico, e escrupuloso da doutrina bíblica, esse era o seu grande empenho.
É evidente que numa teologia do calibre da de Calvino, pela qual se tornou famoso, nenhuma atividade humana fica excluida de tratamento, ainda que implicitamente. Daí, porque em face de novos movimentos, Calvino tem sido convocado a pronunciar-se, e em muitos casos, para surpresa daqueles que foram em busca dele, com extraordinária atualidade e pertinência. . .
Émile Doumergue se aborrece, e não sem razão, com Ritschl. o qual. movido pelo que Doumergue intitula “Chauvinismo teológico germânico” — uma espécie de nacionalismo luterano — reduz a figura de Calvino, numa comparação infeliz e parcial dos dois reformadores — Lutero e Calvino — ao nível de um mero “Cabo militar prussiano”.31
Ritschl é apenas um dos muitos exemplos da apreciação negativa de Calvino em vários aspectos. E é o próprio Doumergue que prossegue para citar um doutor Hall, o qual conclui que a teocracia de Calvino era algo semelhante a de Gregório, o Grande; apenas com um ministério divino em lugar do Papa.32 Xríamos longe, buscando entre os oponentes de Calvino conceitos dessa natureza, que deformam o pensamento e a intenção do reformador.
Nessa linha se insere Stefan Zweig,33 o notável escritor que terminou sua carreira no Brasil, tirando a própria vida, angustiado e desesperançado, quando os rumos da segunda guerra mundial pareciam apontar para uma vitória irreversível do totalitarismo que tão cruelmente eliminara milhões da sua raça. á pena que Zweig emprestasse o brilho da sua pena invulgar a um livro de teses preconcebidas, de modo a não ver em Calvino senão um fanático cego, trabalhador incansável, embora enfermo; uma espécie de maníaco;
com idéias de profeta carismático — um ditador sem alma e sem afeição, que, em se tratando de atingir o seu alvo, usava de todos os meios lícitos ou ilícitos, tornando-se nesse afã insincero e desleal.
Creio que é uma injustiça, mais de uma vez feita a Calvino, e que continua a se perpetrar, da parte de escritores que ignoram inteiramente a situação peculiar em que Calvino se encontrava no contexto histórico e cultural, a geração à qual pertencia.
Tomar uma declaração de Calvino sobre Estado e Igreja, quando escrevia suas Institutas, e depois comparar com uma atitude por ele tomada em situação existencial, não ideal, em Genebra, para julgá-lo insincero e hipócrita, é violentar as leis da história e tripudiar sobre as evidências acumuladas através do tempo, com relação ao comportamento humano. Tomar Calvino em Genebra, a Genebra conturbada por conflitos em que ele mesmo se tornava alvo das mais severas críticas e acusações; lidando com um concilio de homens fracos, oportunistas, açulados pelo sabor de pequenas conveniências do momento, e exigir de Calvino a aplicação ao pé da letra em tais circunstâncias dos seus preceitos teológicos — é querer demais; é esperar o impossível, é ser irrazoável, injusto. -
William Stanford Reid34 encontra nos sermões de Calvino a aplicação ao pé da letra, em tais circuns- preocupação” com questões de ordem política, e atribui isso a sua formação intelectual, que não foi adquirida no seminário, mas na Escola de Belas Letras de Paris e nas Faculdades de Direito de Orleans e Bour- ges.
O seu primeiro livro é, por isso mesmo, “De Clementia”, e tem o sabor da ciência política renascentista. Reid não tem dúvida em afirmar que, a despeito da variada gama de interpretações das idéias políticas de Calvino por escritores de correntes diversas — algumas severas, impiedosas, outras de fervorosos adeptos e admiradores — apesar da mudança que se tem operado neste difícil e controvertido cam
po de idéias, muitas das ideologias políticas modernas tiveram sua origem em Calvino.
Frank T. Glasgow em 1909, numa conferência pronunciada por ocasião do quarto centenário do nascimento de Calvino, discorre sobre a influência política do reformador e inicia sua fala dizendo: “Ele deixou atrás de si apenas 170 dólares em dinheiro; e uma fortuna incalculável de influências enormes nas suas conseqüências”.35 E prossegue Glasgow, para fundamentar sua tese, dizendo que a influência política de Calvino é resultante da sua doutrina da soberania de Deus que abrange toda a criação, em todos os reinos do visível e do invisível; soberania na natureza; no Estado; na Igreja e no indivíduo. E cita James Stephen, professor da Universidade de Cambridge e jurista, que apontava quatro grandes princípios daquilo que ele chama a República Espiritual de Calvino e seus discípulos em Genebra. São eles:
Primeiro, que a vontade do povo era a fonte do legislativo; segundo, que o poder era, de maneira mais própria, delegado pelo povo aos seus governantes; ter- eeiro, que num governo eclesiástico, o clérigo e o leigo têm autoridade igual e coordenada; quarta, que entre a Igreja e o Estado nenhuma aliança ou dependência mútua, ou outra relação definida, necessariamente ou propriamente existe.
Desse modo dizia ele, o Calvinismo defende um sistema de governo popular, de acordo com as leis— governo cuja autoridade verdadeira repousa, humanamente falando, no consentimento dos governados.
Como conseqüência da sua concepção do pecado, resultava: devemos receber a instituição do Estado com gratidão a Deus, como uma dádiva de suas mãos; e mantermo-nos em vigilância, para que a nossa fraqueza não se imponha ao poder do Estado.36
Os tempos passam; o mundo se contorna nos espasmos resultantes de duas grandes conflagrações mundiais, que deixaram feridas insanáveis, e cicatrizes que nos desapontam e abalam a fé na bondade natural do homem; na sua vontade de viver em paz e
ordeiramente. Um mundo de suor, lama e lágrimas, fruto de uma hecatombe sem precedentes; que põe por terra as estruturas sociais e, também, a sua maneira de ver as coisas; que destrói princípios e concepções; que desafia os padrões da ética e planta em nós o pessimismo e, até um certo ponto, o cinismo em relação aos valores do Estado e da Religião. Esse mundo exige soluções imediatas, radicais, definitivas,
Na guerra parece que tudo se perdeu, até mesmo a consciência da dignidade humana. Que fazer? de buscar a resposta? Onde achar a verdade?
A verdade não morre, é eterna, dos eso y das cinzas do vulcão, ainda quentes, começa a esperança. Pois o homem é um eterno enele a capacidade de aspirar algo r jlhtíÍYxKpcilmen- te se extingue inteiramente. E é à /^ !re ja \iu e ainda vem recorrer; pois, foi ela que, nók C í , soubefalar a palavra da concórdia, a^esà^òdas suas limitações e da sua incapacidade^arayabortar o mal. È para eia que se voltam ^í) <oíh^s daqueles que, embora sofridos, não perderam^>íe. Dos rescaldos da miséria surgem sinais^te que é possível pensar ainda num mundo iMye,(hi)ma era nova.
“CalvinismoAem tempo de crise” é uma resenha de teses na terceira conferência calvinistaamericaija,\i^knida em Grand Rapids, Michigan, em ago^tj£Me^&J46 — no ano seguinte ao término da se-
gkerra mundial. São homens de convicção cal- ta que se reunem de três continentes — Euro-
Àmérica e África — para tentar extrair do pensa- snto de Calvino, da sua doutrina, da sua concepção
su ore a igreja e u a s ia a o , a viaau para urn rnuuuu que suspira pela oportunidade de sair de uma grande crise.
Desse modo se faz ouvir a palavra de G. Charles Aalders, da Universidade de Amsterdam, para di zer: "O Calvinismo é, fora de dúvida, o poderoso carn peão da liberdade espiritual. Julgo um dever do Cal vinismo proclamar a liberdade espiritual neste mun do de após-guerra, exatamente como nossos pais fi
zeram em dias passados; pois o movimento do mundo presente, mesmo depois que a ditadura foi derrotada, exige a nossa vigilância absoluta".
Percebe-se como a liberdade espiritual está intimamente ligada, no pensamento de Aalders, aos sistemas políticos. Daí, a necessidade de buscar no conceito calvinista dessa liberdade uma visão para os governos do mundo.
Vem depois o professor S. ou Du Toit, da África do Sul, para afirmar: “O Calvinismo é a salvaguarda constitucional", e advoga um esforço amplo dos calvinistas para em conjunto combater os males da sociedade de então.
Da Hungria ouve-se a voz de Bella Vassady, que vem expressar não somente o agradecimento em nome da sua pátria pelo apoio que ele tem recebido da comissão de ação calvinista, mas dizer do seu desejo de que não demore muito tempo, quando uma reunião da natureza da que está se realizando então, possa ter lugar na sua terra.
Verifica-se que a influência do Calvinismo se constitui numa esperança para uma ordem política social, mesmo quando tudo parece destruído pela tirania de outros poderes. Onde iremos, pois, buscar essa influência de Calvino?
Ele não escreveu tratado de sociologia política; nem podia escrever no seu tempo. A sua preocupação com os governos, que se verifica na sua obra teológica, prende-se à grande preocupação com a implantação do reino de Deus na terra — O Reino do Rei dos Reis.
André Bieler37 procura resumir a pensamento social e político de Calvino. Aliás, Bieler, é uma voz autorizada e nova que vem oferecer uma perspectiva diferente sobre Calvino nesse aspecto. Afirma Bieler que Calvino, mais do que qualquer teólogo cristão, estabelece o dever e o direito da resistência ao Estado em qualquer regime político; evidentemente, quando esse se opõe à vontade de Deus. Este direito tipi?
camente calvinista não contradiz o dever imperioso de se submeter à autoridade.38
Segue-se no ensino de Calvino, segundo Bieler, que o cristão não pode ser revolucionário radical, que procure drasticamente mudar a ordem social em que vive. Tão pouco pode ser um conservador integral.2® Essa posição equilibrada, sem dúvida justa, que Bieler assume, na interpretação do pensamento de Calvino ao aspecto político social, merece ser atentamente estudada à luz da teologia do reformador suiço.
Temos a impressão de que não haverá outra saída senão essa que Bieler foi capaz de discernir em Calvino.
William F. Graham, professor da Universidade de Michigan, que peregrinou por Genebra durante cinco meses para escrever uma obra sobre Calvino, procura assumir uma posição menos comedida do que Bieler. Essa obra, “Constructive Revolutionary” — John Calvin Socio-Economic Impact”, pelo título, denuncia a tese; tem o sabor do pensamento corrente, que pode variar entre um Cristianismo Social moderado — uma espécie de reavivamento de Walter Rauschenbusch — até a teologia de libertação avançada.
Graham prefere ver Calvino colocado mais perto de Martin Luther King do que de Malcolm X .. Escolheu Graham colocar Calvino entre os revolucionários construtivos e explica porque: “Na prática Calvino não permitiu nenhuma rebelião; nunca aconselhou quem quer que fosse a levantar a espada contra o monarca— daí, porque eu chamo Calvino um revolucionário— mas um que não deseja desfazer a contextura da sociedade”.40
Por outro lado, observa Graham que: “Calvino claramente se opõe a todos os que queriam colocar a Igreja sob o controle do Estado”.41 Graham reconhece como poucos que a relação da Igreja e do Estado em Genebra é de tal proximidade a ponto de impedir uma absoluta separação. Entende ele que Calvino estabelece uma série de deveres da Igreja em relação ao Estado; afirma no entanto, que “para Calvino havia
uma separação inegável entre os dois poderes. Desde, porém, que ambos estavam sob o senhorio de Cristo, a tarefa da Igreja era sempre ativa com respeito ao Estado”.42
D’Aubigné, na sua História da Reforma, diz que Calvino fundou a maior república do mundo — referindo-se, naturalmente, aos Estados Unidos — lembrando que os pais peregrinos que alí se estabeleceram na Nova Inglaterra eram descendentes espirituais de Calvino. Essa afirmação de D’Aubigné tem sido acei ta tática ou explicitamente por muitos, com certa razão.
Já dissemos anteriormente que Calvino não escreveu um tratado político; nem postulou diretamente qualquer teoria do Estado. O que fez foi teologia. E uma teologia que tem entre outros, dois polos bem distintos — um homem pecador e Cristo Redentor,
Com muita naturalidade, pois, julga Calvino incluir nas suas Institutas o tratamento do Estado civil, por que, afinal de contas, crê que é parte da sua teologia. Aí afirma que há duas espécies de governo a que o homem está sujeito: Um situado na alma, no homem interior — relacionado com as coisas eternas. Outro, com a justiça civil e as regras da conduta exterior .
Aqueles que em nome da libertação cristã desejam a eliminação dos tribunais, das leis, dos magistrados por julgar que estas coisas são nocivas à referida liberdade, não sabem distinguir entre o corpo e a alma, entre esta vida presente, transitória, e a futura, eterna. Não há dificuldade para Calvino de entender que o Reino Espiritual de Cristo e o Governo Civil são coisas diferentes e separadas uma da outra.43 Esta separação, contudo, não quer dizer que o cristão nada tenha a ver com o sistema civil de governo; pois, o governo civil é designado por Deus para acatar e apontar o culto exterior de Deus; preservar a pura doutrina da religião; regular a nossa vida, conforme as regras da sociedade civil; promover a concórdia entre
os homens, estabelecer a paz e a tranqüilidade geral necessária a todos nós.
É da vontade de Deus que, enquanto aguardarmos a nossa verdadeira pátria, sejamos peregrinos aqui na terra.
Depois de estabelecer os componentes do Estado Civil —• o magistrado; as leis; o povo, passa Calvino a examinar as funções do magistrado sobre as quais o Senhor testificou a sua graça e aceitação, aos quais recomenda a honra e o respeito.
Calvino insistentemente repete que a autoridade civil é instituída por Deus e, como tal, merece a nossa obediência, nosso respeito e acatamento. Baseia suas afirmações, contudo, na Palavra de Deus: Romanos 12.8; 1 Coríntios 12.21, etc. “É um insulto a Deus mesmo declarar esse sagrado ministério incompatível com a piedade e religião”. A essa autoridade estabelecida por Deus, que representa até mesmo uma dádiva divina, as Escrituras nos mandam obedecer, acatar e respeitar.
Menciona Calvino três tipos de Governo: Monarquia, Aristocracia e Democracia.
Manifesta preferência pela aristocracia, que, na sua definição, é nada mais do que o governo democrata representativo, com delegação de poderes do povo a um grupo menor de indivíduos. Para Calvino, embora não condene os outros dois tipos, que podem ser necessários em circunstâncias diferentes, a aristocracia» assim chamada, tem a vantagem de estabelecer o equilíbrio, evitando perigo dos extremos.
Na monarquia pode haver o abuso da autoridade de um homem só.
Na chamada democracia, corre-se o risco de descambar para a anarquia, daí, portanto, a possibilidade menor de erro, quando um grupo de homens capazes, formando um colegiado, assume o governo.
Discerne o poder da autoridade para punir, com pena capital, embora o mandamento de não matar; pois, o magistrado tem a força da lei do seu lado para punir devidamente o homicida.
Por igual modo, declara o direito do Estado de mover guerra para defesa de seus súditos. Mostra errada a interpretação daqueles que entendem que o apóstolo Paulo proibiu as ações judiciais ou demandas, mostrando que Paulo condenava a ação de irmão contra irmão, que produzia escândalo e descrédito a Igreja. No entanto, reconhecia o legítimo direito, de cada um defender sua propriedade, dentro da lei e com a lei. Reconhece o dever do cidadão cristão de pagar impostos e taxas e, para isso, cita Romanos 13.1,9; Tito 3.1; 1 Pedro 2.13,14; etc..
O magistrado deve ser obedecido, ainda que não seja fiel aos seus deveres e nem de bom caráter; não por causa dele, mas da autoridade de que está investido. E cita Daniel, que, embora reconhecesse a soberania de Deus, no entanto, dá honra e obediência ao Rei. Quando se lhe oferecia ocasião, apontava com dignidade e respeito os erros do seu soberano (Dn 2.21 e 4.7).
Uma grande e significativa ressalva faz Calvino no que diz respeito à obediência e deveres para com a autoridade civil.
O Senhor é o Rei dos reis, e quando Ele abre a sua boca, só a Ele se deve ouvir.
Se o magistrado nos ordenar alguma coisa contra Ele, o Senhor, não devemos dar nenhuma atenção à sua ordem, pois é com o poder de Deus que ele deve servir, Foi assim com Daniel, que desatendeu o rei, quando este, excedendo o limite do seu ofício, não somente fez mal aos homens, mas levantou-se contra Deus e sua autoridade. Daniel negou que, tendo procedido assim, tivesse cometido uma falta com “o soberano”; “Porque mais importa obedecer a Deus do que aos homens”.
Quanto ao cidadão, Calvino é peremptório na aplicação da doutrina vocação. O cristão exerce sua função secular ou civil com o sentido de vocação divina. Por isso mesmo, deve proceder com lealdade, com justiça, com verdade, pois é ao Senhor Deus que está servindo.
É fácil compreender porque as nações que receberam a influência do pensamento de Calvino nos seus governos acabaram sendo vanguardeiras da liberdade, da justiça e do direito.
Quem sabe, o que está faltando aos nossos governos hoje é a aplicação desses princípios na vida das nações!?
Quem sabe, o que está faltando aos nossos cidadãos cristãos de hoje é um pouco mais de Calvino na concepção dos seus deveres morais e civis?!
INFLUÊNCIA DE CAL VINO NO PROCESSO SOCIAL E ECONÔMICO
Algumas semanas após a morte de João Calvino, Theodoro Beza, seu amigo íntimo, seu colaborado^ por 16 anos e sucessor no pastorado de Genebra, publicava uma biografia do reformador suiço. Era um trabalho nascido do coração, da alma de um admirador incondicional do biografado. Desde então uma avalanche de obras de vários matizes se tem escrito sobre João Calvino. O próprio Beza dizia que era mais fácil caluniar Calvino do que o imitar.
No entanto, imitadores e inimigos se têm preocupado com os feitos e com a doutrina desse homem cuja influência resiste inabalável à ação do tempo e das mudanças e, em cada época, se. apresenta sob um
aspecto novo, diferente, continuando a fascinar os homens de saber e a incomodar aqueles que, sem poder explicar a sua força estranha, procuram diminuí-lo, como se isso fosse possível.
No princípio deste século, iniciou-se uma nova fase de despertamento para com o estudo de Calvino e do Calvinismo.
Foi em 1902 que Werner Sombart, sociólogo e economista alemão, ex-aluno da Universidade de Pisa e, posteriormente, da de Berlim, onde se graduou, professor de economia social em Breslau e, afinal, na sua própria alma mater, onde se aposentou em 1931, após uma brilhante carreira, com o título de professor emérito, escreveu: Der Modem Kapitalismus, no qual levantou a idéia de que o Calvinismo seria a fonte do espírito do capitalismo moderno.
Max Weber, colega e amigo de Sombart, professor de economia primeiramente em Freiburgo (1894), depois em Heidelberg (1897), Viena e, finalmente, Berlim, era nesse tempo co-editor com Sombart da prestigiosa revista de Ciências Sociais, que ambos, com a Colaboração de Edgar Jaffe, tinham reorganizado. Essa revista se tornara a mais influente publicação do gênero no seu tempo — Archiv Fur Sozialwissenschaff und Sozialpolitik.
Alguns anos após a publicação de Sombart, nas páginas da revista que ambos editavam, Max Weber inseriu um ensaio: Die Protestantische Ethik und Der Geist Der Kapitalismus,44 seguido um ano depois de outro ensaio: Die Protestantische Sekten und Der Geist Der Kapitalismus (As Seitas Protestantes e o .Espírito do Capitalismo).
Parece que Max Weber, despertado pela idéia que Sombart suscitara, dedicou-se ao estudo do assunto para escrever seus ensaios. Esses ensaios, publicados novamente, formam mais tarde, em 1920, parte de uma série de estudos interrompidos com a morte prematura de Max Weber logo depois. Em 1911, Sombart publicada o seu livro mais controvertido, mas sólido na sua argumentação e muito bem documentado: Os
judeus e o capitalismo moderno (Der jude und das Wirtschaftsleben). Esse livro, que apareceu numa época muito crítica para os judeus, principalmente na Alemanha de antes da I Guerra, foi muito mal recebido pelos antissemitas, que o julgaram um defensor dos judeus, e pelos judeus, que o consideraram prejudicial a eles, expondo-os a crítica e perseguição no momento em que estavam sendo terrivelmente oprimidos. O livro, por estranho que possa parecer, combatia a tese de Max Weber que Sombart mesmo despertara anos antes.
Max Weber era filho de mãe calvinista, que se casara com um político da direita, não calvinista, arbitrário e brutal. O filho se colocava em defesa da mãe contra as atitudes do pai e, como resultado dos conflitos em casa, adquiriu traumas que influíram negativamente na sua vida, a ponto de fazer o seu matrimônio um desastre, e talvez ter concorrido para o período de quase invalidez que precedeu a sua morte prematura com 56 anos.
Defende Max Weber a tese de que o Protestantismo, e muito especialmente o Calvinismo e o Purita- nismo (que é a expressão do Calvinismo na Inglaterra e na Escócia), desempenhou um papel muito importante na criação do Ethos ou o Espírito do capitalismo moderno.
Note-se que Max Weber tem o cuidado de qualificar o capitalismo de que fala — chamando moderno e, como tal, o que ele aponta com muita ênfase, Capitalismo organizado e racional. “Em tempos modernos” diz ele, “o ocidente desenvolveu uma forma diferente de capitalismo, que não aparece em parte nenhuma anteriormente”, “A organização capitalista racional do trabalho livre”, da qual somente sugestões se encontram em outros lugares”.45 Parece que a palavra racional, freqüentemente repetida por Weber, distingue o capitalismo a que se refere, no qual a contabilidade ocupa um lugar importante.
A idéia principal da teoria de Max Weber se situa na palavra “vocação ou chamado”, sem dúvida, um
ponto muito significativo da teologia e da ética calvinista.46
Calvino sustenta que vocação é um sério e fiel co- metimento escolhido pelo indivíduo com o senso de responsabilidade religiosa.47 Aponta, ainda, Max Weber, que as virtudes preconizadas na ética calvinista, tais como a diligência, a poupança, a sobriedade, são passaportes para a prosperidade comercial mais segura.48
“O trabalho não é meramente um meio econômico, é uma finalidade espiritual”.49 Põe também em ênfase Max Weber o tipo de trabalho na ética calvinista. Para Calvino, conforme alguns dos seus biógrafos, o mandamento que requer o descanso de um dia é tão importante na parte que ordena esse descanso, como na outra parte que ordena: “trabalharás seis dias”. É no Calvinismo, especialmente, que parece verificar-se a combinação de um extraordinário senso de capitalismo com a mais intensa forma de piedade.50 Max Weber vem buscar em Benjamin Franklin, nas suas curiosas máximas, a amostra da ética puritana. Embora reconheça que Benjamin Franklin não é um ortodoxo puritano, mas um “deísta descolorido”, é, todavia, descendente de puritanos e a sua filosofia de trabalho e de economia é fruto da influência que recebera de seu pai: “Depois da indústria e frugalidade, nada mais contribui tanto para erguer um jovem na vida do que a pontualidade e a retidão nos seus atos.51 “O som do seu martelo às cinco da manhã e às oito da noite, ouvido por um credor, fá-lo complacente por mais seis meses; mas se ele o vê na mesa de bilhar, ou ouve a sua voz na taberna, quando você devia estar trabalhando, mandará buscar o dinheiro no dia seguinte”.52
Franklin citava a Bíblia, e principalmente os livros dos Provérbios, como base das suas afirmações. Provérbios 22 e 29 era a passagem da Bíblia que o seu pai, um ortodoxo calvinista, fazia retumbar nos seus ouvidos.53 Max Weber procura, por outro lado, mostrar que os países onde o Calvinismo não teve influên
cia, onde as virtudes cultivadas pelos seguidores da ética calvinista não tiveram lugar, são exatamente o oposto do que se verifica onde eles se implantaram e dominaram: O reino da absoluta falta de escrúpulo na busca de interesse pessoal, por fazer dinheiro, tem sido uma característica específica precisamente daqueles países onde o desenvolvimento do capitalismo burguês, avaliado pelos padrões ocidentais, tem permanecido atrasado.
“A falta de consciência da dignidade do trabalho em países, tais, por exemplo, a Itália, comparada com a Alemanha, tem sido e ainda é, até certo ponto, um dos principais obstáculos ao seu desenvolvimento capitalista”.54
Reconhece ainda Max Weber que o interesse por adquirir a ambição do dinheiro são velhos como a própria humanidade, sem afeição moderna do capitalismo próspero e organizado. Não é apanágio dos povos que receberam a influência da ética calvinista a “auri sacra fames”; é tão antiga como a história do homem, mas o moderno impulso do capitalismo não provam aqueles que o buscaram com um impulso não controlado”.55
Uma outra idéia esposada por alguns escritores modernos, que Stauffer e outros têm combatido, é de que Calvino era um homem severo, frio, que não fazia amizades e não sentiu o calor das afeições, presa dos deveres e das obrigações da vida quotidiana intensa.
Stefan Zweig chega a dizer que Calvino nunca soube o que é gozar a juventude, ele já nasceu adulto. “Calvino”, diz Zweig, “era de uma total falta de sensualidade”.56
Esta infeliz caricatura da seriedade e moderação de Calvino. do seu apego ao trabalho, que, de um certo modo, se perpetuou nas gerações que o sucederam, tem que ser corrigida, e nisto se empenham alguns dos grandes estudiosos do assunto, entre eles Boumer gue (La maison de Calvin). Escolhe Max Weber o pu
ritano inglês Richard Baxter para ilustrar as suas afirmações .
Para Weber, o livro de Baxter “Christian Directo- ry” é o mais completo compêndio de ética puritana.57 Preceitua ela o trabalho duro, tanto intelectual e corporal, como necessidade. Para Max Weber, o espírito de capitalismo se confunde com o espírito de ascetismo cristão. Embora não inteiramente averso aos esportes e lazer, o puritano não os tolerava quando interferia com o trabalho, evidentemente com o exercício fiel do seu chamado ou vocação; ou quando significasse excessivo dispêndio de dinheiro, do qual temos que dar conta a Deus.
“Riquezas, por amor às riquezas, eram repreensíveis, mas como resultado do trabalho exercido dentro da vocação se constituíam em bênçãos”. O espírito do capitalismo é o espírito do ascetismo cristão. O puritanismo era o ascetismo trazido da cela para a vida de cada dia. Daí, o exercício da vocação, desves- tido da sua ética religiosa, tornava-se uma paixão puramente mundana.
Temos citado profusamente RÍax Weber porque, só assim, se pode extrair realmente a súmula de sua teoria, que se resumiria desse modo: O espírito do capitalismo é fruto do espírito calvinista, com a sua idéia de vocação divina para o exercício de uma profissão secular, a qual deve ser realizada com o propósito de atingir o mais alto fim, a glória de Deus. Daí, as virtudes da moderação, da frugalidade, da poupança, da seriedade no trabalho, da mordomia fiel do tempo e do dinheiro, que transformaram o ascetismo das celas em um ascetismo da vida na sociedade. Disso resultou necessariamente a acumulação de bens e, conseqüentemente, o capitalismo moderno com a sua racionalização do trabalho, sua organização industrial e a criação de uma economia sólida onde a ética calvinista foi implantada.
Naturalmente, Max Weber, que procura de antemão abortar possibilidade de crítica a sua tese, reconhece que muito do capitalismo criado pelo Calvinis-
mo perdeu a sua filosofia inicial e tendeu mais para uma paixão puramente material e humana como nos Estados Unidos.58
Por estranho que pareça, a tese de Max Weber teve como maior crítico e opositor Werner Sombart, seu amigo e colega, e seu colaborador na conceituada revista “Arquiv”.
Verificou-se que Weber, quando morreu, vinha fazendo extensivas notas dos trabalhos de Sombart e, em muitos casos, com críticas severas e duras.
Em 1911, Sombart publicara o seu livro “Der Ju- de und das Wirtschaftsleben” — O judeu e o capitalismo moderno. Que é esse livro senão uma refutação da tese de Max Weber? Aliás, confessa Sombart, que foram as pesquisas de Max Weber responsáveis por seu livro. E levanta a questão: “Se tudo que Max Weber diz com respeito ao Puritanismo não poderia, com muito mais justiça, atribuir-se ao judaísmo em maior medida!”59
As idéias dominantes do puritanismo que se mostraram tão poderosas no desenvolvimento do capitalismo foram desenvolvidas no judaísmo e eram inicialmente de data muito anterior. Aliás, esta sua observação última, da procedência do judaísmo, é a grande força do seu argumento, pois prossegue observando como os puritanos tiraram muito das suas idéias do Velho Testamento. Em ambos, afirma, se sente a preponderância do elemento religioso, a idéia de castigo e recompensa divinas, o ascetismo dentro do mundo e a íntima relação entre religião e negócios e a concepção (aritmética?) do pecado, e acima de tudo, a racionalização da vida. Assim prossegue nesse teor Sombart, procurando mostrar ao longo da história como a presença dos judeus, onde quer que foram, trouxe o capitalismo tanto na Europa, nas grandes cidades, co mo nas Américas.
Associa a presença dos holandeses no Brasil e o progresso dos engenhos de açúcar, bem como, posteriormente, o comércio de diamantes, com o capital e habilidade inventiva dos judeus, judeus que estavam
presentes na companhia das Índias Ocidentais entre os holandeses, judeus que eram fortes negociantes em Recife, judeus que vinham em grandes levas fugindo de Portugal, um navio por ano carregado de cristãos novos. Atribui Sombart o sucesso do primeiro governador do Brasil, Tomé de Souza, a sua origem judaica, assim como atribui a descoberta da América ao sangue judeu que corria nas veias de Colombo, filho de uma judia. Depois passa para os Estados Unidos a fim de mostrar que a guerra da Independência Americana alcançou sucesso com o auxílio de armas fornecidas pelos judeus e que o surgimento de grandes bancos e instituições financeiras de crédito, companhias de ações, sistemas de letras de câmbio, etc., eram frutos da presença e da ação dos judeus que vieram para a América em grande número.
Curioso é verificar que, embora Weber e Sombart pareçam irreconciliáveis nas suas divergências, há uma proximidade admirável nas suas teses.
Philip Siegelman, na sua introdução do livro de Sombart “Luxury and Capitalism”,60 aponta essa aproximação" Sombart e Weber erram com a sua insistência em descobrir o papel principal da religião na formação do capitalismo ocidental. Ambos estão interessados em rebater a interpretação marxista do determinismo materialístico da história. Para ambos, a explicação alternativa levou a uma ênfase na descoberta de fatores — a atitude, o Ethos, o espírito que infundiu o novo e elevado comercialismo da Europa Ocidental (XIV — XV). Poderíamos dizer que, de um lado, Max Weber aceitou, não que os judeus tivessem desempenhado um papel essencial, mas apenas secundário no espírito do Capitalismo. Weber no entanto, diz Siegelman, distingue o Capitalismo judeu do puritano: “O Capitalismo judeu era um Capitalismo especulativo, pária, enquanto que o puritano era uma organização burguesa de trabalho”. Sielgelman diz que Sombart é levado à conclusão de que puritanismo é judaísmo. Iríamos longe, se prosseguíssemos no cotejo infindável de opiniões contrárias e favoráveis à
tese de Max Weber, o que, sem dúvida, como já dissemos anteriormente, fugiria ao plano limitado desse trabalho.
Robert W. Green nos oferece uma síntese rápida, mas preciosa, daquilo que ele mesmo denominou ■— “The Weber Thesis and its Critics”, edição de D.C. Heath and Co., Boston, 1959. É evidente que, depois disso, muita coisa mais já foi dita e escrita, pois que a polêmica continua e não terá fim tão cedo.
Ernesto Troeltsch, teólogo, professor em Bonn e Heidelberg, amigo tanto de Sombart como de Weber, coloca-se ao lado deste no que diz respeito ao papel do Protestantismo no surgimento do Capitalismo.# Critica Sombart, julgando que a sua ênfase com
respeito à função do judaísmo é valorizada demasiadamente; ao mesmo tempo, julga errada a identificação da ética puritana com o judaísmo. Diríamos, pois, que Troeltsch está muito mais do lado de Weber do que de Sombart.
Um outro nome apontado por Green é H. R. Ro- bertson, professor da Universidade de Cape Town. Ro- bertson conclui que Weber foi unilateral no seu estudo, pois tanto Protestantismo ou Puritanismo, como o Catolicismo, dir-se-ía tanto Calvino, como Tomás de Aquino, concorreram com a sua ética para a produção do Capitalismo.
Amintori Fanfani, economista, professor da Universidade Católica de Milão e de Roma, cadeira de Economia, político italiano, conhecido defensor da ética católica, crê que o espírito do Capitalismo é tão católico como protestante, existiu muito antes da Reforma. Respeita a idéia de vocação como geradora do Capitalismo. Kemper Fullerton, professor do Velho Testamento, da Escola Superior de Teologia de Ober- lin, concorda com a tese de Weber, todavia, acha que o Capitalismo adotou a doutrina da vocação, retirando-lhe o sentido transcendental, fazendo-a apenas uma teoria para obrigações terrenas.
R. H. Tawney, formado em Oxford, professor em Glasgow, economista, líder do partido trabalhista in
glês, escreveu, em 1926, um trabalho — “Religion And the Rise of Capitalism (Hancourt Brace Jovanovich, Incorporated; London) no qual adianta a idéia de que os ensinos de Calvino tenham sofrido uma perversão por parte daqueles mesmos que se dizem calvinistas. Daí, o que se verifica no desenvolvimento do Capitalismo não é bem idéia de Calvino.
Curt Samuelsonn, professor da Universidade de Estocolmo, ém seu trabalho “Religious and Economic Ac- tion”, traduzido por Jeffer Prench, em 1952, afirma que as virtudes apontadas como calvinistas, segvmdo Weber, que resultaram no Capitalismo, não são privativas nem do Catolicismo nem do Protestantismo.
Nils Hansen, professor de Economia da Universidade de Austin, Texas, no seu “On the Sources of Economic Rationality”, 1964, critica Samuelsonn e sua investida contra Weber, e mostra que a Rússia Soviética é o único país que alcançou a industrialização num sistema não capitalista, e aponta uma semelhança meramente acidental entre a ética protestante e a soviética.
H. Stuart Hughes, na sua obra “Weber’s Search for Rationality in Western Society” (from Conscious- ness and Society, New York, 1968, Editora A. Knapf Inc. and Mac Gibbon and Kee Ltd.), procura associar a teoria de Max Weber com sua vida tão complicada em lances afetivos que acabaram destruindo sua vida conjugal. Crê que Max Weber atingiu uma solução parcial na sua primeira fase quando trata da ética protestante como força do Capitalismo.
Albert Hyma, professor da Universidade de Michi- gan holandês de nascimento, grande estudioso do Calvinismo, que muito tem escrito sobre a atividade comercial dos holandeses no período colonial, no seu livro, “Renaissance and Reformation” (Eerdmans Pu- blishing Company, Grand Rapids, 1955), acha que nem Max Weber, nem Sombart, atinaram muito bem com os fatores religiosos envolvidos no surgimento do Capitalismo. Discorda da ênfase dada à diferença entre católicos e protestantes nesse aspecto e encara os pro
blemas políticos e econômicos, observando que o que houve foi uma distorção do Calvinismo, de modo que muitos que se diziam calvinistas e puritanos se renderam ao culto de Mamóm. Albert Hyma deseja que verdadeiros calvinistas apareçam para escrever livros e tratados, de modo a colocar o Calvinismo no seu devido lugar, lugar que foi tomado por mamonistas.
Ephraim Fischoff, nascido e educado em Nova York, PhD da Nova Escola de Pesquisa Social, crê que Weber não tinha nenhuma intenção de estabelecer uma teoria do Capitalismo, ou uma teoria social da religião, ou mesmo dar um tratamento completo à relação entre a religião e o Capitalismo; reconhece erros na tese de Max Weber, mas elogia, no entanto, o seu esforço em encontrar uma solução sob o prisma da sociologia e da religião; acha que foi uma tentativa iluminante de um grande problema, e que o esforço de Weber merece melhor sorte do que tem tido realmente .
André Bieler escreveu — O humanismo de Calvino —, tradução espanhola editada pela Editorial Es- caton de Buenos Ayres, 1977. O livro se empenha em apresentar a influência de Calvino evidentemente relacionada com o aspecto social da questão. Afirma Bieler que, para Calvino, tanto a riqueza como a pobreza são meios pelos quais Deus pode pôr à prova a nossa fé. Calvino não é um adepto da pobreza voluntária tão defendida na época medieval. O rico tem uma missão econômica, providencial, — o encargo de transmitir uma parte da sua riqueza ao que é mais pobre do que ele.
Não haveria limites, como já dissemos, se quiséssemos continuar neste cotejo, já um tanto enfadonho, desta polêmica levantada por Max Weber e Sombart, polêmica que tanto interesse tem despertado no mundo intelectual do ocidente no que diz respeito ao pensamento social e econômico de Calvino. A pergunta que muitos levantam é: teríamos nós entendido bem o pensamento de Max Weber? Pensamento que não chegou ao seu completo amadurecimento, pois Max
Weber morreu cedo, aos 56 anos de idade, quando o seu gênio começava a aflorar com todo o vigor! Há aqueles que afirmam que nem mesmo Sombart, que tão de perto privava com Weber e com ele lidava ao mesmo tempo no escorregadio terreno das teorias econômicas e sociais, não foi capaz de entendê-lo.
B. P. Hozelitz, numa introdução ao livro de Sombart, publicação americana (Free Press, Gleucoe 1951), faz uma observação muito pertinente: “O fato de Sombart não conhecer o hebraico, nem ter estudos de teologia, prejudicou o seu trabalho sobre os judeus, pois tinha de se apoiar em traduções, sem poder verificar a exatidão delas” (XVIII, introdução). Talvez se pudesse dizer também de Max Weber que algumas das suas observações sobre Calvino padecem da falta de conhecimentos teológicos mais profundos. Seria impossível analisar o pensamento de Calvino, que escreve teologia, sem o lastro teológico necessário e sem se colocar na situação histórica e teológica em que viveu. Calvino nunca sonhou com apresentação de uma teoria econômico-social, fosse com finalidade puramente terrena ou mesmo transcendental. Todavia, o homem que tomou a si a árdua tarefa de fazer da atribulada e confusa Genebra uma cidade cristã e, por isso mesmo, justa e humana; uma Genebra que carregava na sua bagagem histórica um passado de . lutas contra a tirania déspota de um poder civil jugulado ao poder eclesiástico, sem autoridade moral, sem calor humano e sem decência; uma Genebra que se tornava refúgio de perseguidos que para lá se dirigiam de várias partes da Europa em busca de liberdade de crença; havia de sever face a face, a cada hora, com problemas que desafiavam soluções, não apenas temporárias e locais, mas algo que pudesse ser aplicado às comunidades cristãs evangélicas que se implantavam em toda a parte da Europa.
A qualidade de vida que Calvino teve de viver o colocou diariamente em confronto com situações empíricas, reais, ao mesmo tempo em que se empenhava no grande labor intelectual de dar ao mundo uma fi
losofia e uma teologia de vida cristã. Enquanto pacientemente buscava no texto bíblico a melhor exege: se para dele extrair a doutrina pura, Calvino tinha diante de si o desafio de uma cidade envolvida com problemas urgentes que exigiam solução imediata. Como resolver esses problemas em consonância com os ensinos do evangelho? Qual a fórmula bíblica que a palavra de Deus ditava para o tratamento dos males que assolavam Genebra e que deviam ser combatidos com o mesmo remédio universal em toda a parte onde surgisse? Não era somente Genebra, mas toda a Europa continental, e as ilhas britânicas, que estavam na mira de Calvino quando tratava de criar a sua teoria de uma sociedade cristã evangélica.
Não é sem significado o fato de que, durante 25 anos, Calvino foi burilando as suas Institutas e que das suas aulas bíblicas diárias resultaram comentários de quase toda a Bíblia, em que a exegese do texto foi quase sempre acompanhada de uma aplicação às necessidades práticas existenciais. Observe-se, por exemplo, que a doutrina de vocação, que tem sido objeto da observação, não só de Max Weber, mas de muitos outros, é parte importante do sistema teológico calvinista. No volume III, cap. 10, parágrafo 6, das Institutas, tratando do uso correto da vida presente diz: em último lugar deve-se observar que o Senhor ordena a cada um de nós em todos os atos da vida levar em conta a sua v o c a ç ã o . Para que ninguém de- savisadamente transgrida os limites prescritos, Ele (o Senhor) tem estabelecido nas esferas da vida vocações ou chamados. . . para cada indivíduo e. como se fosse um posto a ele designado pelo Senhor, para que não fique vagueando na incerteza todos os dias”. E continua, para afirmar que “é suficiente que saibamos que o fundamento da conduta certa em cada caso é a vocação do Senhor, e que aquele que a desrespeita nunca conservará a rota direta nos deveres da sua ocupação. Pode ser que, às vezes, alcance algo aparentemente louvável, mas o que seja assim aos olhos dos homens, será rejeitado no trono de Deus, além do que
não haveria coerência entre as várias partes de sua vida”. A teologia calvinista vai buscar cuidadosa e pacientemente nas Escrituras os conceitos que convém à sua ética.
O homem é, à primeira vista, a mais desgraçada das criaturas, pois, como afirma em outro lugar, deveríamos contemplar a nossa condição miserável desde a queda de Adão, o sentido da qual tende a destruir toda a nossa vanglória e confiança, para nos cobrir de vergonha e nos levar a real humildade®1
Não alimenta Calvino qualquer ilusão com respeito ao homem caído, vítima da corrupção que por natureza herdou dos seus primeiros pais e que nesse estado de miséria só irá de mal a pior, destinado a completa destruição. No entanto, crê, como o apóstolo São Paulo, que “onde abundou o pecado, supe- rabundou a graça”. De modo que o homem perdido, a quem em Cristo veio salvar, é agora servo do Senhor para fazer a sua vontade é“nós não somos de nós mesmos, portanto, nem a nossa razão, nem a nossa vontade, devem predominar nas nossas deliberações e ações; nós não somos de nós mesmos, portanto, não nos proponhamos como nosso alvo buscar o que possa ser útil a nós conforme a carne... nós somos de Deus, portanto a sua sabedoria e vontade presidem sobre as nossas ações todas”.®2
Nessas circunstâncias, entende que o cristão é, por divina designação, incumbindo de uma missão terrena da qual não é aos homens que tem de prestar conta em primeiro lugar, mas a sua própria consciência e a Deus, a cujo trono, a mera aparência de uma vida correta que aos homens satisfaz não é aceita. No desempenho de suas funções seculares, está o cristão num posto que lhe foi designado pelo Senhor, por isso, não deve agir com displicência, nem má vontade, nem com ociosidade. Com respeito ao uso correto das dádivas de Deus diz Calvino: “Ele as criou para o nosso benefício, não para nossa injúria”. Exemplifica, dizendo que se Deus “dotou as flores com beleza, para que assim se apresentem aos nossos olhos,
e com a doçura do seu perfume, para nos impressionar o sentido do olfato, será por acaso ilícito aos nossos olhos serem atraídos pela sua beleza ou os nossos nervos do olfato com o odor agradável? Pois que, não fez Ele tal distinção de cores de modo a tornar algumas mais agradáveis. . . não fez Ele muitas coisas dignas da nossa estima, independente da necessidade de seu uso?”®3
Evidentemente, Calvino postula não uma vida ascética de absoluta ausência de prazeres, mas, uma vida de obediência à vontade de Deus, na qual há muito lugar para apreciar aquilo que é lícito, e desfrutar das bênçãos que nos são concedidas, com a reverência de quem as recebe das mãos providenciais do Senhor e as usa com discrição e temperança. No tratamento do imoderado desejo de riquezas, lembra que somos mordomos de Deus, que todas as coisas nos são dadas pela bondade divina para nosso benefício, são confiadas aos nossos cuidados, e delas de» vemos dar conta um dia”.64
Dentro desta ética calvinista, cristã, o que se requer sempre acima de tudo é moderação, honestidade, vigilância contra as ambições desregradas e desmedidas, a paciência, a perseverança e, acima de tudo, a consciência de que somos servos de Deus, e nes» sa qualidade estamos a Seu serviço onde quer que nos encontrarmos. Naturalmente, uma comunidade que se governe por uma filosofia de vida assim acabará sendo laboriosa, metódica e produzirá riqueza, progresso e indústria.
De modo que, aqui, a tese de Max Weber é, pelo menos parcialmente, certa, quando atribui o progresso material à orientação dada pela ética e pela teologia de Calvino. Estranha, no entanto, é a qualificação de ascetismo dada por ele à maneira de viver que Calvino preconizava. Não foi o Calvinismo, como quer Max Weber, que transportou o ascetismo da cela para a vida ou dos conventos para a sociedade. Não, foi um modelo de vida oposto ao negativismo dos mosteiros da mortificação do corpo, da supressão dos pra-
zeres lícitos como empecilhos à vida espiritual. Não, o Calvinismo criou, baseado na ética do evangelho, uma sociedade laboriosa, alegre, prudente, capaz de apreciar, agradecer e desfrutar das bênçãos materiais, que reconhece provindas de Deus.
Erasmo, o grande intelectual, humanista, que não teve coragem de aderir à Reforma que ele tanto ajudou a surgir, com a sua crítica aos erros do clero e a sua edição do Novo Testamento, condenava severamente a quebra das imagens como se fosse um
OlVOi p a ia c * oua xiuv v u vauour ua uu^u iuau^
que ameaça destruir a nossa civilização. Nem foram as riquezas por eles criadas com a racionalização do trabalho organizado que produziram os males que hoje lamentamos, mas foi exatamente o abandono das virtudes e a falta da aplicação delas à condição presente que nos trouxe o caós que estamos vivendo hoje. Seria preciso uma volta aos princípios sadios que
tanto progresso nos trouxeram, com o mesmo sentido de vocação e de serviço a Deus para a Sua honra e glória, afim de que pudéssemos retomar o caminho perdido. É curioso notar que um tremendo desequilíbrio econômico e financeiro, em maior ou menor medida, afeta hoje todas as nações, tanto do mundo capitalista como socialista. Mesmo as nações mais ricas estão sentindo a crise financeira, o problema do desemprego, a inflação e os desequilíbrios orçamentários. Uma boa dose das virtudes calvinistas, que, por certo, não entram nos cálculos computadorizados dos tecnocratas, ajudar-nos-ia, quem sabe, a atinar com o caminho para fora desse beco sem saída em que nos encontramos.
Sombart, no seu livro "A Quintessência do Capitalismo”, afirma: “O Protestantismo tem sido ao longo de toda a história um inimigo do Capitalismo e, muito especialmente, da expressão do Capitalismo econômico. Como poderia ser de outra maneira? Capitalismo é algo mundano, coisa para essa vida terrena... por essa mesma razão será odiado e condenado por todos os que consideram a nossa vida aqui uma preparação para a vida depois”.65 Essa citação contraria a tese de Max Weber que deixa de ser verdadeira.
É preciso fazer uma diferença entre Capitalismo em si e Capitalismo como nós o conhecemos na grande maioria dos casos hoje: O Capitalismo de virtudes éticas que o Calvinismo postulou, é de consciência de vocação divina no desempenho das funções seculares, produziria, pela transformação da sociedade, uma nova era que surgiria para o progresso das nações. Seria isso possível?
Como religião universal, o Cristianismo implantado em todos os lugares, criando e educando homens para o desempenho de todas as funções com o sentido de vocação divina e em obediência à ética do evangelho, mudou a face da terra.
NOTAS DA II PARTE
1. A. Taylor, 522. Idem3. The S tructure of Divine Society, p.1264. Griswold, p.395. Whetellema, Calvinism and High Education, p. 226. Walker, p.l7. Research for H istory of M odem Education, Boston College,
1973, p.1038. L’Académie de Calvine, E xtrato da Grande Revista, 19 de
Fevereiro de 1902, Genebra.9. L’alma M ater de la réform e française, p.14
10. Cornet, J. Calvino, p.36711. H unt R. N. p.25112. Giovanni Calvino A. Costicelli, Milão, 193413. Edwin W althout, Research Papers fo r the H istory of Modem
Education, Chestnut Hill p.9114. Edwin, idem, 10315. Aiken Taylor, p.17116. A. Taylor, p.15317. Edwin, 1973, p.10418. Warfield, Calvino e Agostinho, E ditora S. Craig, 1956, p.1419. L’Académie de Calvin. Genève, H. Georg E t Co. Librairie de
La Université, 1 Fevrier, 190220. Idem, p.l21. Graves — H istory of Education, New York, Macmillan Co.,
1919, p . 19322. Idem , p .19323. Idem24. Graves, p.7125. Taylor, p.17126. Taylor, p.17127. Universities of the World. Charles S. Twing. Macmillan Co.
N. York, 1911.28. Twing, p.9129. Idem, p.9030. W.F. Graham, The Constructive Revolutionary, — John Cal
vin, His Socio-Economic Im pact, John Knox Press Richmond, Virginia, 1971, p.159
31. Émile Doumergue, John Calvin: Eplgony o r Creator, p.82,8332. Idem , p.?33. Stefan Zweig, The right to heresy, The Vicking Press, New
York, 193634. Calvin and the Political order, in the book John Calvin
Contem porary Prophet, E dited by Jacob Hoogstra, Baker Book House. G rand Rapids, 1959, p. 243
35. Calvin’s influence upon the Politic Development of the World, from the book Calvin M emory addresses; Presbyterian Committee of Publication, Richmond Virginia, 1909, p.175
38. Idem, p.17537. E l hum anism o social de Calvino, tradução publicada pela
E ditorial E scaton Buenos Ayres, Argentina, 197338. Idem , p.2139. Idem, p.2640. Graham, p.6141. Idem , p . 6142. Idem, p.61-6443. Livro das Institu tas IV cap. XX, p. 63344. A Ética do Protestantism o e o E spírito do Capitalismo,
vol. 20, 190445. Max Weber, p.2146. Ver distinção feita por Weber sobre vocação entre Lutero
e Calvino47. Max Weber, p.248. Idem , p.349. Idem50. Idem , p.4351. Idem, p.4952. Idero53. Idem, p.5754. Idem55. Idem56. Zweig, p.4657. Weber, p.15658. Idem, p.18259. Idem, 191 e 19260. Tradução de Wrdittixnar, University of Michigan Press, Ann
H arbour, 196761. Institu tas, Vol. III , cap. 8
62. Idem63. Vol. rn eap. 19, parag. % Institutas64. Vol. XXI eap. 1, parag. §1, institutas te Sombart, eap. XDE
III PARTE JOÃO CAL VINO
TEOLOGIA
NOTA EXPLICATIVA À TERCEIRA PARTE
Pareceu-nos indispensável aos propósitos desta obra, a apresentação de uma síntese da doutrina de Calvino, conforme se encontra nas “Institutas”. E é disso que se ocupa esta III parte.
Procuramos, tanto quanto possível, resumir, sem prejudicar a clareza, embora, em muitos casos essa clareza exija repetições que elucidam o pensamento que noutro contexto poderia ter ficado menos evidente. Procuramos deixar de lado o aspecto polêmico de que se revestem algumas partes; pertinente, sem dúvida nos dias de Calvino, hoje, no entanto, dispensável.
Esperamos que o esforço empregado nessa tarefa resulte em benefício daqueles que desejam conhecer melhor a doutrina de Calvino, mas, sem tempo suficiente para a leitura cuidadosa dos grossos volumes de seu monumento teológico; ou sem acesso a esses volumes.
Deixamos de fazer nesta parte a indicação de porções citadas, por se tratar de um resumo das Institutas em que às vezes convém à brevidade a citação livre, e, em outros casos, as palavras mesmas de Calvino. No entanto, será sempre fácil ao leitor atento, distinguir quando estamos falando, de quando fala Calvino.
Outrossim, será fácil conferir, quando necessário, a exatidão da porção citada ou mencionada pelo mero cotejo das Institutas sobre o assuntos em questão.
Se nos parece injustificável qualquer estudo de Calvino nos dias presentes sem ao menos apresentar as opiniões com respeito a sua influência em assuntos econômicos, levando em conta o interesse despertado pela tese de Max Weber, menos compreensível seria ignorar o pensamento teológico do reformador suiço.
Calvino é, antes de mais nada, um teólogo, ou como Melanchthon gostava de chamá-lo — “o teólogo” —- pois ninguém, na sua época, foi capaz de excedê-lo nesse aspecto. E é como teólogo que tem despertado o interesse de gerações e gerações e feito surgir, em épocas diferentes, estudiosos da sua vida, da sua obra. Mesmo porque, tudo que se possa dizer de Calvino, seja no aspecto educacional, econômico, político e social, há de partir do seu pensamento teoló* gico, que orienta inteiramente a sua grande e inco- mensurável realização.
Max Weber, ao querer jungir o espírito do Capitalismo à influência de Calvino, foi buscar para isso razão na sua teologia da vocação; aí é que encontrou, segundo pensa, o tipo de cidadão que o Calvinismo produziu com as virtudes que lhe eram inerentes, as quais, por sua vez, resultaram na criação de riquezas, base do Capitalismo. E essa doutrina da vocação, como todas as doutrinas de Calvino, resulta de sua teologia, da qual uma das vigas centrais é a soberania de Deus. E não é só isso que acontece exatamente com respeito à sua pedagogia?
O sistema educacional que Calvino implantou com a sua Academia era parte integrante de seu pensamento com respeito à vocação do homem, cujo grande alvo é a glória de Deus. A escola que devia ser a melhor, com os melhores professores, com programa de trabalho rígido severo, honesto e eficiente, era apenas um instrumento ou uma peça indispensável no estabelecimento do Reino de Deus, que, afinal de contas, não se restringia aos alvos puramente terrenos,
mas tinha um sentido transcendental, de acordo com a lógica da sua teoria. O cidadão da Civitas que deve ser o melhor, o mais consciencioso, o mais pontual no desempenho do seu dever; o mais fiel mordomo do seu tempo e do seu talento, é acima de tudo, um cidadão da Civitas Dei.
Calvino não tem nenhuma intenção de ocultar seu pensamento, e não tem nenhum temor de dedicar-se com sacrifício, em meio a perseguições e mal entendidos, a essa grande tarefa. Não é nessa sua vocação que recebeu de Deus um chamado para realizar essa tarefa? Seria pois, uma traição às suas próprias convicções e, acima de tudo, à Palavra de Deus, que zelosamente procurava interpretar. É o seu monumento teológico tão sólido, tão lógico, tão coerente, que não se estuda a doutrina de Calvino apenas nas Institutas — o grande trabalho dogmático da sua pena —■ mas estuda-se também nos seus tratados, nos seus sermões, nas suas orações, na sua liturgia e nas suas muitas cartas, além dos comentários que escreveu de quase toda a Bíblia.
É curioso observar que, ao se dirigir aos companheiros de trabalho, na sua correspondência, ou mesmo aos opositores e críticos em outros lugares, a argumentação das cartas é impregnada de verdades doutrinárias que ele naturalmente insere ao correr da pena, conforme lhe parece aplicar-se ao caso. Por isso, iremos passar em revista, ainda com a brevidade que convém a esse trabalho, o pensamento doutrinário de Calvino. O estudo do pensamento e da obra do reformador suiço que tem sido desenvolvido em certas áreas nem sempre se preocupa com o tratamento de sua teologia, especificamente. Não se pode, contudo, deixar de lado a sua doutrina, pois como já dissemos, de qualquer lado que se encare a vida e os escritos desse homem, ter-se-á necessariamente de tocar na sua teologia. Por isso mesmo, em cada nova época, com o surgimento de novos problemas e ques tões que afligem a humanidade, Calvino tem sido chamado a opinar.
Observa-se que, ao publicar sua primeira edição das Institutas, em 1536, Calvino “reproduziu o plano seguido por Lutero no seu catecismo e no seu pequeno livro de orações — A Lei, o espelho do nosso pecado; a Fé, adesão confiante do coração à Graça de Deus a imputar ao culpado a perfeita justiça de Jesus Cristo preparando-o para o perdão e a salvação; a Oração, os Sacramentos e a Liberdade Cristã”.1 O mesmo escritor da citação acima, todavia, estabeleceu uma comparação entre Calvino e Lutero, mostrando as diferenças de formação intelectual, de temperamento, de condições de vida, que respondem pela diferença de tratamento que cada um deu à sua tarefa de reformador e, conseqüentemente, à sua doutrina, não em aspectos essenciais, evidentemente, mas secundários. “Lutero é o camponês cheio de uma energia impulsiva, desordenada... desempenha o papel de insurgente do iniciador, revolucionário .. encontra-se mais tarde numa condição de ‘bon vivant’, exibindo humor que não redunda na trivialidade”.
". . . Ao lado de Calvino, o latino, espírito ordenado e disciplinado, metódico no seu trabalho de sábio, como no seu esforço prático no comando da igreja — enfermiço, velho aos 30 anos, dominando as suas enfermidades pela tenacidade incrível da sua vontade. Lutero é o gênio explosivo. . . , Calvino é, depois dele, o sistematizador da Reforma, em que se encontra o espírito formado na escola de Belas Letras e de Direito”. “Austero, severo, Calvino impõe-se às vezes à admiração”. “As igrejas reformadas não têm guardado o mesmo respeito para com o seu iniciador que os protestantes votam a Lutero”. “Nem Calvino nem Lutero foram santos, no sentido evangélico do termo. A violência de Lutero contra os camponeses insurre- tos, o endurecimento de sua posição no final da sua carreira e, anteriormente, contra os suiços a propósito da Santa Ceia, denuncia nele um elemento de fanatismo que se emparelha ao autoritarismo de Calvino na perseguição de hereges”.
Essas observações aqui citadas à guisa de intro
dução ao tratamento das idéias teológicas de Calvino têm como propósito abrir os olhos do leitor para alguns aspectos que caracterizam o seu sistema teológico — a sua exatidão, a sua lógica. Alguém chamou Calvino o teólogo exato. A sua irredutibilidade quando se tratade pontos de fé que lhe pareçam essenciais, como é o caso da Santa Ceia e da Trindade; da separação do Estado e Igreja, a inexpugnabilidade do monumento teológico que criou e que não perde a atualidade, antes surge a cada época com um novo des- pertamento e uma nova contribuição, fá-lo excepcional no campo da teologia.
Karl Barth dizia que Paulo é um homem que, evidentemente, ouve e vê algo que está acima de qualquer coisa além da sua capacidade de observação, da medida do seupensamento.2 Às vezes tem-se a impressão de que Calvino é assim para nós, como Paulo é para Barth. É que ele, Calvino, tão de perto aus- cultou Paulo, que é capaz de dizer coisas que outros não dizem ou, pelo menos, não disseram com a clareza com que ele diz.
Há várias maneiras pelas quais poderíamos proceder a um estudo rápido do pensamento teológico de Calvino. Muitos o têm tentado de uma forma ou de outra.
Os chamados cinco pontos do Calvinismo, por exemplo, é a rota preferida por alguns. Parece-nos, contudo, natural o esquema traçado por Calvino mesmo nas suas Institutas para esta ligeira incursão no vasto campo da sua teologia. Assim trataremos do que se encontra nos próprios volumes das Institutas.
Como se sabe, Calvino faz um tratamento um pouco diferente nas últimas edições. Os Dez Mandamentos, o Credo e a Oração Dominical, o roteiro seguido por Lutero, é, no entanto, o que prevalece como base do seu trabalho. Cumpre notar que Calvino não foi buscar propriamente em Lutero, mas em Santo Agostinho no “Enchiridion”, as bases do seu estudo. No prefácio da sua edição de 1559 afirma que não estava satisfeito, até que arranjou o seu trabalho na for ma em que agora vai ser publicado”.3
O CONHECIMENTO DE DEUS
Inicia Calvino o seu estudo, tratando do conhecimento de Deus. A sabedoria verdadeira e substancial, diz ele, consiste de duas partes principais: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. No entanto, nem se trata de dois conhecimentos inteiramente separados um do outro, mas intimamente ligados, pois nenhum homem pode ter uma visão geral de si mesmo sem imediatamente voltar-se à contemplação de Deus, em quem ele vive e se move.
“Desde que é evidente que os dons que possuímos não são de nós mesmos e que a nossa existência nada mais é do que uma sub-existência de Deus — todas as suas mercês, destilando em nós como gotas dos céus, formam como se fossem muitas correntes
que nos conduzem à fonte principal, que é Deus mesmo. A nossa pobreza nos dirige a uma manifestação mais clara da plenitude infinita de Deus”. Neste ponto, Karl Barth se coloca naquele vai e vem da sua teologia com o sim e com o não, o não e o sim. É possível o homem conhecer a Deus? Sim e não.
Calvino está dizendo que sim, é possível, mas esse sim está dependendo de alguma coisa mais, sem a qual se torna em não. Parece, então, que a nossa capacidade de conhecer por nós mesmos, ou a nossa incapacidade, a falta de dons para conhecer, é que dá lugar a manifestação de Deus mais clara e mais evidente. É preciso que o homem se desperte para a realidade de sua miséria e incapacidade, afim de que se torne sensível à revelação de Deus. Cada indivíduo, portanto, deve se tornar consciente da sua infelicidade para chegar a algum conhecimento de Deus, quanto mais for o reconhecimento da condição de nossa natureza espoliada do seu divino aparato, que produz em nós a nostalgia de Deus. Em outras palavras, é compreensão de nossa falta absoluta de merecimentos de qualquer natureza, a nossa pobreza, enfermidade, depravação, corrupção, que nos impele a perceber que em Deus, e somente nele, se encontra a verdadeira sabedoria, a sólida fortaleza, a perfeita bondade e a retidão sem mácula; e pela nossa imperfeição somos levados a consideração da perfeição de Deus. Nem podemos nós, realmente, ter aspirações de Deus, até que tenhamos começado a sentir descontentamento de nós mesmos.
Parece que Calvino estabelece aqui esta tensão natural do homem decaído: pela sua depravação torna-se orgulhoso, egoísta, e busca em primeiro lugar a si mesmo, o que não lhe dá nem conhecimento e nem o prazer que almeja. Se o conhecimento se alcança pelo processo de comparação — de modo que é somente sabendo o que é bom que podemos julgar da bondade de alguma coisa e buscá-la, então, enquanto o homem não atingir ao menos um conhecimento
parcial da bondade e perfeição de Deus, não há nele qualquer estímulo para buscar esse bem.
Há como que um ir e vir nesse conhecimento Pois que Calvino afirma que nenhum homem pode chegar ao verdadeiro conhecimento de si mesmo sem ter primeiro contemplado o caráter divino. Sim, porque o nosso orgulho natural nos leva a julgar que somos retos, inocentes, sábios, santos, até que sejamos convencidos do contrário. E é o conhecimento do verdadeiro padrão de perfeição que há em Deus que nos leva ao reconhecimento da nossa miséria e imperfeição “Os olhos acostumados a ver somente preto julgam de grande brancura aquilo que é apenas esbranquecido”. Assim também acontece com os nossos dotes espirituais; enquanto a nossa vista está voltada para nós mesmos, ficamos contentes com a nossa retidão, sabedoria, força, e satisfeitos nos adulamos a nós mesmos e julgamos que somos pouco menos do que semi-deuses. Se, no entanto, elevamos o nosso pensamento a Deus e consideramos a sua natureza e a consumada perfeição da sua justiça, sabedoria, força, com as quais nos devemos confortar, o que antes nos encantava em nós mesmos, sob o falso pretexto da nossa justiça, será logo considerado grande iniqüidade. Aquilo que estranhamente nos enganava sob o título de sabedoria será desprezado como extrema tolice: o que se vestia de aparência de força, provar-se-á a mais desgraçada fraqueza.
Chegamos, pois, à conclusão de que todas essas considerações e ilustrações de que, embora o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos estejam intimamente ligados, a ordem própria do conhecimento mesmo requer que nós inicialmente tratemos do primeiro, isto é, do conhecimento de Deus e, depois, procedamos ao estudo do último, do conhecimento de nós mesmos. . .
Estabelecida por João Calvino a necessidade do conhecimento de Deus para que nos conheçamos, o que, no entanto, começa com a desilusão, ao menos, da nossa pobreza e imperfeição, pois que é isso que nos
dirige para Deus, a fim de que o conheçamos, a medida que em formos olhando para Deus, que é tudo, vamos convencendo-nos de que somos nada.
Uma outra tese estabelece Calvino: é a importância do que ele chama religião ou piedade para chegar ao conhecimento de Deus:
— “Não podemos, com propriedade, dizer que há qualquer conhecimento de Deus onde falta piedade ou religião”. Daí passa Calvino a tratar daquilo que geralmente se conhece por revelação natural, isto é, o que se pode conhecer de Deus na criação, no mundo, como afirma o apóstolo São Paulo em Romanos. Deus é manifesto primeiramente, tanto na estrutura do mundo (é a revelação natural) como no teor geral das Escrituras.
Esta revelação é inicialmente a revelação do Criador. Daí, a afirmação no princípio do Credo Apostólico: Creio em Deus Pai, Criador do Céu e da Terra. Depois se revela na pessoa de Cristo como Redentor.
Calvino se propõe tratar primeiro do conhecimento de Deus, que derivamos das duas revelações primeiras. Para esclarecer a sua afirmação de que não há conhecimento de Deus sem religião ou piedade, passa a explicar o que é piedade e religião: “Por pie> dade eu quero dizer a reverência e amor a Deus que vem do conhecimento de seus benefícios”. Karl Barth, nesse ponto, segue a trilha de Calvino, mas, deixando de lado a revelação natural da qual ele, Barth, não trata, no entanto, aceita a possibilidade do homem conhecer a Deus, que é, sem dúvida, um conhecimento diferente do que Deus tem de si mesmo, que é imediato, ao passo que o conhecimento de Deus que o homem alcança é mediato, na base da sua revelação.
E com respeito ao conhecimento de si mesmo em relação ao conhecimento de Deus Barth afirma: “O homem não pode e não deve conhecer a si mesmo à parte de Deus, mas justamente com Deus como um seu oposto”.
É, naturalmente, aquilo que Barth chama “íntei-
ramente o outro" — conhecimento de Deus não somente em relação ao homem mas distinto dele. E aqui afirma, mais uma vez, Barth: “Na sua palavra vem a nós, como o objeto, perante o homem, o sujeito” (naturalmente objeto de conhecimento) . 4
Nessa mesma linha segue Louis Berkhof, para afirmar que “o homem não pode descobrir Deus, nem as profundezas de Deus; pode, indubitavelmente, aprender alguma coisa de Deus pelo estudo da natureza e na história, mas isso somente em virtude da revelação geral de Deus na natureza —- Deus manifesta o seu eterno poder e divindade no mundo e, portanto, o homem pode obter conhecimento dessas coisas pelo cuidadoso estudo das obras da criação” .5
Calvino considera frívola a especulação dos que se ocupam na indagação da essência de Deus, quando seria muito mais interessante a nós conhecer o seu caráter e saber o que é agradável à sua natureza. Conhecimento puramente especulativo não tem nenhum valor, afirmava Calvino. O conhecimento de Deus que nos convém é o que nos ensinaria, primeiro, temor e reverência. Segundo, a buscar todo o bem de suas mãos e render-Lhe louvor por tudo que recebemos.
Não entende Calvino que possamos alimentar o pensamento de Deus, sem logo refletir que, sendo criaturas de sua formação, devemos por direito de criação nos submeter a Sua autoridade. E aqui vem uma afirmação que se prende a outra doutrina calvt nista, a doutrina da vocação. A Ele devemos a vida e todas as nossas ações devem ser praticadas com relação a Ele.
O pensamento de Calvino gira sempre em torno da doutrina de Paulo, “Nele vivemos, nos movemos e existimos”. Percebe-se até aqui que Calvino tratou mais daquela piedade que, sendo uma aspiração por Deus, nos leva ao conhecimento dEle, Agora, porém, vem definir o que é uma verdadeira religião ou a natureza da genuina religião, ". . . consiste em fé unida a um sério temor de Deus, que compreende uma re
verência voluntária capaz de produzir um culto agradável...”. Calvino deixa bem claro que os homens geralmente oferecem a Deus um culto formal, sem a verdadeira reverência, com cerimônias pomposas, mas com pouca sinceridade de coração.
Barth afirma que “Deus é objeto do nosso conhecimento, mas também deve ser do nosso amor acima de todas as coisas, por isso mesmo, aquele a quem devemos temer mais do que qualquer outro” .6 Isso, por sua vez, nos leva à obediência. J. I. Parker7 faz uma distinção entre os dois conhecimentos de Deus mencionados por Calvino como sendo: O conhecimento que é religião e o que é conhecido de Deus ou a respeito de Deus, que é teologia. Ele (Calvino) aponta uma apreensão de Deus não apenas como um ser existente, mas como Aquele que é, para nós, graça, e, da nossa parte para com Ele, adoração e servi*- ço.8
Calvino passa a demonstrar que o conhecimento de Deus no homem está obscurecido, pois que a mente humana, por natural instinto ou intuição, possui algum senso da divindade. De modo que, para que nenhum homem possa alegar o pretexto de ignorância, Deus deu a todos alguma apreensão da sua existência.
Quanto a esse conhecimento universal e geral de Deus, cita ele Cícero, que afirma não haver raça de homens por mais bárbara e mais selvagem, que não tenha persuasão da existência de Deus. Corrige ainda Calvino a pretensão absurda daqueles que fazem da religião uma invenção de alguns homens sutis com propósitos políticos para dominar as massas, quando os próprios inventores estão longe de crer que Deus existe. Calvino não nega que muitas coisas foram introduzidas na religião para produzir temor no povo e dominá-lo; todavia, nunca isso poderia ter sido feito, se já não houvesse no homem a firme persuasão da existência de Deus.
Infere-se, segundo Calvino, que é inata na natureza do homem, inseparável da sua constituição, a
idéia de Deus, uma vez que não é aprendida nas escolas» mas vem com o homem no seu nascimento, mantém-se-lhe radicada no seu coração. Dé modo que o culto a Deus é uma das coisas que separa o homem dos animais e aqui Calvino perfilha a afirmação do apóstolo São Paulo aos Romanos, na grande epístola que tanto o impressonou pela sua magntiude doutrinária, como também impressionou a Lutero e, posteriormente, a Barth. No entanto, há coisas que obs- curecem o conhecimento de Deus por parte dos homens.
Embora a experiência testifique que a semente da religião foi por Deus lançada no coração do homem, dificilmente encontramos um entre cem que dê valor ao que recebeu, e em nenhum a semente atinge a sua maturidade ou produz fruto na estação própria. De fato, nenhuma piedade genuína resta no mundo. Alguns se tornaram vãos nas suas superstições, além de se revoltarem contra Deus por maldade intencional; alguns se tomaram empedernidos pelo hábito da trans gressão. A semente que é impossível de todo erradicar-se, ainda permanece, mas tão corrompida, porém, que só produz mau fruto.
Em momentos de tranqüilidade o homem zomba de Deus, nega sua existência e o seu poder; se vem a desolação, faz uma oração concisa, o que prova que não está de todo ignorando Deus, mas, o que devia aparecer antes, foi seguido pela obstinação. Percebe- se aqui, no tratamento de Calvino referente ao conhecimento de Deus, que faltam aos homens os requisitos da verdadeira religião, e, consequentemente, do conhecimento de Deus, pois que a sua natureza está pervertida e o temor de Deus não existe no seu corar ção. Daí, o senso da divindade fica aniquilado e só se manifesta quando o homem se vê premido por dificuldades .
O ENSINO E DIREÇÃO DAS ESCRITURAS
A revelação de Deus na natureza, que se apresenta aos nossos olhos, tanto nos céus como na terra, seria mais do que suficiente para eliminar qualquer desculpa do homem com respeito ao conhecimento de Deus. No entanto, Ele acrescentou a essa revelação a luz da sua Palavra para fazer-se conhecido e mostrar a salvação; tendo honrado com este privilégio aqueles que desejou unir em uma relação mais íntima e familiar com Ele mesmo.
“As Escrituras dissipam as trevas da nossa mente tornando claras as noções confusas da divindade e dando-nos uma visão clara de Deus. E é um favor singular que Deus na instrução da Igreja usa não apenas mestres, mas abre também a sua boca sagrada... não somente ensina aos seus eleitos a elevar os olhos para a divindade, mas também se manifesta como objeto desta contemplação; devemos, pois, aprender das Escrituras o que Deus revelou aos patriarcas... É fora de dúvida que a esses patriarcas Deus se revelou numa persuasão, de modo que estavam convencidos de que a revelação que receberam veio de Deus. Para que os oráculos dos profetas servissem de instfru- ções a todas as eras, Deus ordenou que fossem guardados e, assim, também a lei promulgada fosse reunida e os profetas fossem os seu intérpretes”.
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ESC RI TURAS & 4 GRADAS
Warfield acha por bem definir logo dâ princípio que é que Calvino entende por Escrituras. Calvino estabelece com clareza a sua doutrina do Canon das Escrituras Sagradas. O que ele chama de Escrituras são os livros do Velho Testamento a nós transmitidos pelos judeus, com exclusão dos Apócrifos, e o Novo Testamento, conforme o Cânon aceito pelas igrejas cristãs.
Embora julgue que os Apócrifos sejam bons e úteis para leitura, não são, contudo, “Ad fidem dogmatum faciendam” (não são para afirmar dogma). No seu tratado sobre atas do concilio de Trento, como antídoto, claramente diz que os acréscimos que aquele con-
cílio fez na regra de fé, não são parte das Escrituras Sagradas.
Na polêmica que manteve com Sebastião Castélio, em que este negava a canonicidade de Cânticos dos Cânticos, Calvino, mais uma vez, se firma na sua posição com respeito ao Cânon das Escrituras, como acima dissçmos. O fato de Calvino não ter escrito comentários do livro de Apocalipse leva alguns a inferir qué ele não o considerava canônico ou alimentava alguma dúvida quando à sua canonicidade. Esse pensamento deve ser abolido, pois nós o encontramos, não raro, citando Apocalipse no mesmo pé de igualdade dos livros canônicos das Escrituras. Dúvida semelhante tem surgido com respeito às duas epístolas menores de João, a segunda e a terceira, pois que também não as comenta Calvino. A dúvida é reforçada pela expressão que a respeito da Primeira Epístola de João, Calvino a utiliza quando a ela se refere dizendo: "João, na sua epístola canônica...”. Tal argumento, embora pareça ter alguma força, cai por terra quando en- coní,rr*tnos Calvino, freqüentemente, afirmando aceitação do Cânon sem exclusão desses livros.
O incidente com Castélio, a quem os ministros de Genebra negaram a ordenação para o ministério, prendia-se exatamente à sua não aceitação do Cânon total das Escrituras, e Calvino foi o relator do caso, e o relatório traz a sua assinatura.
No seu Tratado sobre o Concilio de Trento, condena a não aceitação do Cânon como nós o entendemos. Inicia Calvino as suas considerações sobre Escritura Sagrada afirmando a suficiência da revelação natural à luz da Sua palavra, a qual nos leva a conhecê-Lo para a salvação. Esse privilégio ele concede àqueles que ele quis unir a Si, numa relação mais íntima e familiar.
É fácil entender porque Calvino julga que ao ho mem pecador faz-se necessária a revelação especial das Escrituras, não apenas como Criador, mas Provedor da nossa salvação em Cristo Jesus.
“A revelação de Deus dada aos judeus» aos quais
Ele escolheu para o seu rebanho peculiar, separando- os de outras nações, Ele também nô-la concede”.
As Escrituras reunem em nossa mente as noções da divindade, as quais, de outro modo, seriam corífu- sas, esclarecendo-as e dando-nos uma visão nítida do verdadeiro Deus. Assim, por um favor singular, Deus, na instrução da sua igreja, não somente usa os mestres mudos, mas também abre a sua boca. Não somente ensina que algum deus deve ser adorado, mas proclama-se como aquele ser a quem o culto é devido, distinguindo-se das divindades fictícias. Foi desse modo que ensinou a Adão, Noé, Abraão e os outros patriarcas, aos quais distinguiu com esse conhecimento.
“Além do conhecimento de Deus como Criador» outro conhecimento lhes foi dado anteriormente, o qual viveu amortecido na alma, e que os faz reconhecer a Deus não apenas como Criador e governador do mundo, como autor e árbitro de todos os acontecimentos, mas também como Redentor na pessoa do Mediador” .
Com respeito ao modo de que Deus se serviu para transmití-lo aos patriarcas, não importa, para Calvino, se o foi por oráculos, visões, sugestões ou por meio do ministério de homens que deviam transmitir essa revelação às posteridades. O fato, porém, fora de qualquer dúvida, é que nas suas mentes se imprimia a firme certeza de que a doutrina ou informação que lhes estava sendo transmitida vinha de Deus mesmo. “Deus sempre assegurou para si e para a Sua Palavra um crédito indubitável, superior à opinião humana”. E Calvino continua, para mostrar como a Palavra de Deus foi preservada até que chegasse a nós em forma escrita. Deus providenciou para que a verdade pudesse permanecer no mundo através do curso contínuo de instrução a todas as idades, O mesmo oráculo que Ele tinha entregado aos patriarcas foi confiado ao registro público. Com esse propósito a lei foi promulgada, à qual os profetas ou as profecias foram posteriormente anexadas, com a sua interpretação.
A intenção de Moisés e de todos os profetas era
ensinar ao povo o modo de reconciliação entre Deus e o homem; é o que o apóstolo Paulo chama Cristo e a Lei.
“As Escrituras distinguem o único e verdadeiro Deus por certo caracteres e títulos — Criador, Governador do Universo, para que Ele não possa ser confundido com a multidão de deuses falsos". O endurecimento daqueles que nascem nas trevas e aumentam em estupidez resulta de não atentarem para a Palavra de Deus com docilidade e se exaltar com vaidades vãs”.
Estabelece, então, Calvino o princípio: “Ninguémtem o mínimo conhecimento da verdadeira e sã dour trina, se não for discípulo das Sagradas Escrituras; o verdadeiro conhecimento provém da aceitação daquilo que Deus quis revelar a respeito de Si mesmo. A obediência é a verdadeira fonte, não só da fé perfeita e completa, mas de todo reto conhecimento de Deus; Deus tem buscado o interesse da humanidade neste sentido pela sua providência". A necessidade do registro da revelação se entende, para que não fosse esquecida e perdida, desaparecesse nos erros ou fosse corrompida pelo homem.
Se desejamos uma contemplação de Deus, certa, é preciso que usemos os meios que Ele nos forneceu, a saber, a Sua Palavra, que contém a exata descrição de Deus como Ele se revela nas suas obras, e essas obras não são julgadas segundo o nosso critério depravado, mas pelas regras da verdade eterna que Ele nos desvendou para que não nos desviemos do alvo a ser alcançado.
O erro não pode ser erradicado do coração humano até que o verdadeiro conhecimento de Deus seja nele implantado. Daí o Salnrista, tendo proclamado: Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos, — prossegue para dizer que: “A lei do Senhor é perfeita e converte a alma; o testemunho do Senhor é seguro e faz o simples sábio; o mandamento do Senhor é puro e ali> mia os olhos..." . Embora ele compreenda o uso da lei como certo, sugere, no entanto, que, em geral, Deus
convida todas as nações a Ele pela visão dos céus e / da terra, que não produz o efeito verdadeiro até que chegue a essa escola peculiar dos filhos de Deus, as Escrituras. Daí também procede a observação de Jesus Cristo feita à mulher samaritana, que a sua nação, e todas as outras, cultivavam o que não sabiam, mas que os judeus eram os adoradores do verdadeiro Deus.
Desde que a mente humana, na sua ignorância, é incapaz de conhecer a Deus sem a assistência da Sua Palavra Sagrada, (exceto os judeus que possuiam essa palavra) deve necessariamente estar vagando no escuro.
INSPIRAÇÃO DAS ESCRITURASDiscute-se, por vezes, se Calvino aceitava a ins
piração literal da Bíblia ou a plenária. Evidentemente, esses termos assim cunhados são de tempos posteriores .
Guizot gasta um capítulo de seu livro sobre Calvino para afirmar que o reformador cria na inspiração plenária da Bíblia. Mas, quando ele passa a descrever a posição de Calvino a esse respeito é que se entende que é que Guizot toma por inspiração plenária.
Warfield prefere colocar a questão em outros termos, mesmo porque é discutível o uso que a palavra empregada por Calvino com respeito às Escrituras possa ter. Nem sempre o significado moderno e tecnicamente empregado pode lhe ser atribuído, quando se trata de teologia ou de inspiração.
A palavra “ditar” por ele usada quando se refere às Escrituras, dizendo que elas são o registro público, e que o homem nesse caso é um notário, poderá dar a impressão de que Calvino aceita um tipo de inspiração em que o elemento humano é apenas um autômato. Warfield, no entanto, diz que essa linguagem é figurativa e que Calvino tinha em mente, não insistir que a inspiração fosse um “ditado”, mas que o resultado da inspiração era como se fosse um dita
do. A reprodução era a Palavra de Deus livre de mistura humana.9 A palavra “ditado” estava sendo usada naquela ocasião para expressar o efeito, mais do que o modo da inspiração, reafirma Warfield.
Haverá sempre dificuldades em encaixar os homens da Reforma, em questões como essas nas teorias posteriormente cunhadas, em que as palavras se restringem a significados modernamente adquiridos. Se lermos atentamente toda a exposição de Calvino, veremos que ele aceita exatamente a doutrina da inspiração plenária da Bíblia, em que Deus pelo seu Espírito utilizou o instrumento humano para revelar a sua verdade infalível, sem eliminar, contudo, as características pessoais do escritor que Ele utilizou.
O TESTEMUNHO DO ESPÍRITOEntende Calvino que o testemunho do Espírito
Santo é necessário para confirmar as Escrituras, a fim de estabelecer a sua completa autoridade. Combate energicamente o erro, que julga pernicioso, e muito em voga, de que as Escrituras têm valor somente na medida em que esse valor lhes é atribuído pelo sufrágio da Igreja, como se a verdade inviolável de Deus dependesse da vontade arbitrária do homem, o que, para Calvino, é uma grande ofensa ao Espírito Santo.
Indaga-se: Quem pode assegurar-nos que Deus é o autor das Escrituras? Quem nos pode persuadir de que esse livro deve ser recebido com reverência, e ser colocado no número dos sagrados, a menos que seja regulado por decisão da Igreja? Nesse caso depende da Igreja a inclusão do livro no Canon.
Respondendo essa alegação e a citação de Agostinho fora do contexto, para aboná-la, Calvino combate aqueles que esperam evidências da verdade por meio de argumentos racionais, dizendo: “O testemunho do Espírito é superior a toda a razão; pois, só Deus é suficiente para atestar de Si mesmo e da Sua própria palavra. Por isso, toda a palavra não ganhará crédito no coração do homem até que seja confirmada pelo testemunho interior do Espírito. É neces
sário, pois, que o mesmo Espírito que falou pela bo- / ca dos profetas penetre os nossos corações para convencer-nos de que eles, fielmente, entregaram os oráculos diretamente confiados a eles. Essa revelação se expressa de maneira muito simples: “O meu Espírito está sobre ti e a palavra que eu pus na tua boca, na boca da tua semente e na boca da semente da tua semente para sempre”.
“Alguns bons homens ficam perturbados quando não estão preparados para responder aos ímpios, que se opõem a Palavra de Deus impunemente, como se o Espírito não fosse denominado 'Selo' ou 'penhor' para confirmação da fé dos piedosos; pois, até que Ele ilumine, as suas mentes estarão flutuando na multidão de dúvidas. Portanto, sendo iluminados por ele, pelo Eíspírito, cremos na origem divina das Escrituras não pelo nosso julgamento ou pelo julgamento de outros, mas pela certeza que recebemos da boca de Deus mesmo pelo ministério dos homens.
Isaías predisse que todos os filhos da Igreja seriam ensinados por Deus. Discute-se aqui o privilégio especial dos seus eleitos, aos quais Ele os distingue do resto da humanidade, porque o começo do verdadeiro aprendizado terá como fruto a alacridade de ouvir a voz de Deus, da Sua sabedoria. “Se Deus nos dotou desse tesouro reservado para os seus filhos, não é nenhum absurdo surpreendente que vejamos tanta ignorância e estupidez entre os homens comuns; e não nos devemos admirar do número pequeno daqueles que têm apreensão dos mistérios de Deus’ .
Warfield lembra a famosa doutrina de Calvino, segundo ele, da persuasão do Espírito,10 que na verdade não é de Calvino, senão do apóstolo São Paulo, que tão claramente a afirma em suas epístolas. Calvino passa a referir-se às provas racionais quanto às Escrituras Sagradas. Inicialmente, afirma que sem o testemunho do Espírito, superior em tudo a qualquer julgamento humano, em vão tentaríamos defender a autoridade das Escrituras, estabelecida pelo consenso da Igreja ou por outra forma qualquer, a menos que
seja lançada a base permanente para a sua sustentação. Porque não é a beleza da linguagem, mas a dignidade do assunto que se firma na nossa consciência.
Podemos ler Demóstenes, Cícero, Platão, Aristóteles e nos encantarmos com os seus escritos, mas depois se voltarmos para a palavra de Deus, quer queiramos, quer não, ela nos influenciará de tal modo que a beleza dos retóricos desaparecerá. Há algo divino nas Escrituras Sagradas que excede ao mais alto ornamento que a capacidade humana pode criar”.
Examinemos os profetas e veremos que eles superam a toda a habilidade humana. Há algo de extraordinário nas Escrituras, apesar da sua simplicidade. Além de tudo, há o milagre da efetividade das Escrituras e as predições cumpridas de profetas, como Isaías.
Quanto ao Novo Testamento, o testemunho dos evangelhos e das epístolas, o efeito dessas Escrituras na vida dos que as aceitam é algo importante para o testemunho da sua validade. Calvino afirma que demonstrar que as Escrituras são a Palavra de Deus a infiéis e incrédulos é uma tolice, pois elas só podem ser conhecidas com o auxílio da fé. E cita Agostinho: “Piedade e paz da mente devem preceder, afim de que o homem possa entender algo desse grande assunto”. Calvino combate, aqui, aqueles que desprezam as Escrituras sob pretexto de revelação imediata. Esse assunto foi motivo de polêmica de Calvino com alguns grupos dissidentes os quais supunham receber diretamente revelações de Deus. Os antigos receberam essas revelações, não desprezaram as Escrituras, mas as trataram com grande reverência. Lembra a passagem do apóstolo São Paulo a Timóteo quando afirma que toda a escritura é proveitosa. “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino...” (2 Tm 3.16).
Pedro recomenda aos que são estudiosos que observem a doutrina dos profetas. Paulo, aos Tessaloni- censes, exorta-nos a que não apaguemos o Espírito. Jesus explica aos dois homens de Emaús as Escrituras.
Os apóstolos e todos os verdadeiros cristãos deram valor às Escrituras. O Espírito Santo ministra a palavra escrita à mente do crente. Satanás tem que ser repelido com a palavra escrita.
Quando o apóstolo Paulo afirma que a letra mata e o Etepírito vivifica, está mostrando que o espírito e a palavra estão indissoluvelmente ligados e não, como alguns entendem, anulando a palavra escrita em favor duma revelação direta do Espírito.
Concluímos que nada deve ser aceito pela igreja de Cristo como palavra de Deus, a não ser o que se contém na lei, nos profetas, nos escritos dos apóstolos; e que não há outro meio de se ensinar e instruir a igreja, senão de acordo com o padrão dessa Palavra.
Nossos pastores foram investidos com a autoridade para o uso dessa Palavra e tudo fazerem, para constranger toda a sabedoria, poderes, majestades do mundo, à obediência à Palavra. Sustentados por essa palavra, possam eles governar toda a humanidade, desde os mais altos aos menores; alimentar as ovelhas, afastando-as dos lobos; instruindo e exortando os dóceis; reprovando os obstinados e rebeldes; soltar e ligar; e, se necessário, despedir os seus relâmpagos e trovões, mas tudo conforme a Palavra de Deus.
Os apóstolos foram os recipientes da Palavra de Deus; os ministros, seus sucessores, não têm outro ofício, enão ensinar o que está revelado e registrado nas Sagradas Escrituras. Não lhes foi deixada a incumbência de formular novas doutrinas, cabendo-lhes simplesmente, sem exceção, a doutrina a que Deus a todos sujeitou.
Firma-se desse modo a inabalável segurança com que João Calvino se escuda na Palavra de Deus como a única verdade revelada, com exclusão da tradição, dos apócrifos, dos atos e decisões dos concílios ou de qualquer outra autoridade que não seja a da infalível Palavra de Deus.
CRIAÇÃO - 0 HOMEM - ESTADO EM QUE FOI CRIADO
Mui cuidadosamente Calvino procura sempre estabelecer um elo de ligação entre o assunto de que vai tratar, tanto com o imediato anterior, como com os outros seguintes. É assim que justifica o tema do capítulo presente — O homem no estado em que foi criado, etc., alegando ser ele a mais admirável expressão da justiça, sabedoria e bondade de Deus e, ainda, porque, como disse no início, não podemos conhecer Deus devidamente, com clareza, a menos que a esse conhecimento se acrescente o conhecimento de nós mesmos.
Calvino divide esse conhecimento em duas partes distintas, a saber: A condição em que fomos cria
dos e a nossa condição tal como é, a partir da queda de Adão. Pouco nos valeria saber como fomos criados, ignorando a corrupção e degradação resultante da queda e assim atribuir ao Criador os males da natureza humana decaída.
Calvino é dicotomista, estabelece logo de início que o homem consiste de corpo e alma. A alma é uma essência imortal, embora criada — a mais no bre parte do homem, às vezes chamada espírito; quão- do, porém, se usam as duas palavras, alma e espMÈo» num só contexto, podem diferir em significado.
Naturalmente, Calvino fala em termos não de psicologia, ciência que veio posteriormente ao seu tempo, mas fala em termos empregados pela filosofia, conforme o uso corrente em sua época, com que ele está sempre em dia. Em resumo, estabelece que o homem possui um corpo material e uma alma espiritual, imortal, que habita esse corpo.
O homem foi criado à imagem de Deus. Em que sentido? Que quer dizer imagem de Deus?
Calvino aceita que a aparência exterior do homem possa de um certo modo refletir a glória divina, contudo, a imagem de Deus que se manifesta na aparência exterior é espiritual. Crê que a imagem de Deus se estende a toda a natureza humana naquilo em que essa natureza supera os outros animais.
O assento primário da imagem de Deus estava na mente e no coração, ou na alma e seus poderes; contudo, não há parte do corpo em que algo da glória de Deus não brilhe. Para tomar mais completa a definição de imagem de Deus, Calvino lembra que, quando Adão caiu, alienou-se de Deus e embora não perdesse de todo aquela imagem, no entanto, ela se corrompeu de tal modo que ficou terrivelmente deformada. Daí, a nossa libertação se inicia com uma renovação que obtemos em Cristo, o segundo Adão, assim chamado, porque restaura em nós a verdadeira e substancial integridade; conforme Paulo nos mostra na sua comparação em 1 Corintios 15.45. “O primeiro Adão foi feito alma vivente; o último Adão,
porém, é espírito vivificante”.O propósito da regeneração é formar em nós, de
novo, a imagem de Deus, Colossenses 3.1-11; Efésios4.24. Paulo se refere ao homem criado à semelhança de Deus e menciona a nossa renovação, primeiro em conhecimento, depois em justiça e santidade. Daí inferir-se que, no princípio, a imagem de Deus foi manifesta pela luz intelectual, retidão de coração e solidez perfeita de cada parte.
Vemos que Cristo é a mais perfeita imagem de Deus, no qual somos renovados para que possamos exibir essa verdadeira imagem em conhecimento, pu reza, justiça e verdadeira santidade.
Embora a substância da alma seja incorpórea, conforme as Escrituras, no entanto, habita um corpo, animando-o em todas as suas partes, regulando as forças dos órgãos, mas, acima de tudo, a conduta do homem no que diz respeito à sua vida terrena e também a seu serviço a Deus.
Prossegue Calvino para afirmar que Deus dotou o homem de intelecto, pelo qual pode discernir o bem do mal, o justo do injusto, sabendo o que aceitar e rejeitar pela luz da razão. No estado de justiça em que o homem foi criado, possuía a liberdade de vontade pela qual, se tivesse escolhido, teria a vida eterna. Adão poderia ter permanecido se assim escolhesse, desde que foi somente por sua vontade que veio a cair, mas, porque a sua vontade estava propensa a outra direção, não recebeu a constância para perse- verar. Tinha livre escolha entre o bem e o mal, e todas as suas partes e órgãos devidamente estruturadas para a obediência até que corrompeu suas boas qualidades e se destruiu.
Quanto à pergunta: Por que é que Deus não sustentou o homem pela virtude da perseverança? É algo oculto no seu conselho secreto e a nós compete manter-nos no limite da nossa discrição. Nenhuma ne- o^sidade se impunha a Deus para que desse ao ho* mem mais do que aquela vontade intermediária e transitória, para que da queda do homem Deus pu
desse obter razão a sua própria glória.Convém observar o que diz John Leith sobre a
doutrina da vontade nas Institutas.11 Leith trata da doutrina da vontade nas Institutas da Religião Cristã e a sua tese é de que Calvino, em sua doutrina sobre a vontade, faz uma análise profunda da experiência cristã de hoje. Pondera, no entanto, Leith que, para se entender o tratamento que Calvino faz da vontade, tem que se considerar o seu contexto cultural e religioso e não se pode interpretá-lo sem estar consciente da linguagem contemporânea e da experiência religiosa.12 “A discussão de Calvino sobre a vontade é complicada e às vezes difusa, no contexto de vários interesses teológicos”. De modo que a maneira de se obter um entendimento mais claro de Calvino com respeito à vontade é pelo isolamento das várias doutrinas que ele formulou em função da vontade.13
Sugere ainda Leith, que é preciso, para entender Calvino com respeito à vontade, ter em vista três qualidades peculiares de sua teologia que contribuem para inteligibilidade da fé, na sua situação peculiar, tanto religiosa como cultural: Primeiro, o caráter doxo- lógico da sua teologia, a glória de Deus; Segundo, o seu grande temor de uma falsa e perigosa confiança nas obras; Terceiro, a modéstia e deslumbramento do homem na presença da majestade indevassável de Deus.14
Sempre se há de ter em mente que Calvino é muito firme nas suas idéias e muito organizado no seu esquema, de modo a ir atando as peças do seu arcabouço teológico a ponto de reuni-las numa grande unidade.
CONHECIMENTO DE DEUS COMO REDENTOR EM CRISTO
Mais uma vez, aqui, Calvino liga o conhecimento de Deus ao conhecimento de nós mesmos, como vem fazendo desde o princípio. E esse conhecimento de nós mesmos, a ser tratado agora, é, de modo especial, relacionado à queda e suas conseqüências em toda a raça humana. Pois, somente conhecendo-nos na irremediável situação a que o pecado original nos condenou, e conhecendo a nossa própria natureza depravada, é que estaremos em condições de entender e apreciar o conhecimento de Deus na qualidade de Redentor em Cristo Jesus.
Com razão, o provérbio antigo recomenda ao homem o conhecimento de si mesmo, pois, examinan
do-nos é que somes levados à busca da verdade divina, e nessa busca descobrimos as nossas falhas e necessidades. A Adão Deus prometeu a vida eterna, se permanecesse em obediência. A prova dada a Adão tinha como finalidade exercitar a sua fé. Adão, no entanto, provocou a ira de Deus com a queda. Agostinho afirma que o início da queda foi o orgulho; o orgulho o elevou acima do que devia. No entanto, está claro que o pecado original foi desobediência. É a infidelidade a razão da revolta contra Deus, da qual nasceu a ambição, a ambição gerou a rebelião pela qual o homem lançou fora o temor de Deus e deu largas a sua concupiscência. Com isso, Adão, que perverteu toda a ordem natural no céu e na terra, deteriorou a sua raça (Rm 8.20,21).
Agostinho mostra que somos corrompidos, não uma corrupção adquirida, mas inata, que trazemos desde o ventre — transmitida de pai a filho.
Em Adão todos pecaram (1 Co 15.22,25). Somos por natureza filhos da ira, diz Paulo em Efésios 2:3. O pecado original pode ser definido como uma corrupção e depravação hereditária da nossa natureza, estendendo-se a todas as partes da alma, e que inicialmente nos faz sujeitos à ira de Deus, depois produz em nós o que a Bíblia chama de obras da carne; São Paulo repetidamente dá a isso o nome de pecado (G1 5.19).
A causa da nossa ruína reside na nossa camali- dade e não em Deus, e a sua causa única é a nossa degenerescência da condição original. Cumpre agora indagar se os descendentes de Adão, em virtude do pecado original, são privados da sua inteira liberdade.
Estabelece Calvino que a livre vontade do homem não o habilita a praticar boas obras, a menos que seja assistido pela graça. Na verdade, a graça especial, que somente os eleitos recebem pela regeneração. O homem tem vontade livre, não porque tenha a livre escolha entre o bem e o mal, mas porque age voluntariamente, não por compulsão. Daí, aqueles que se sentem mais abatidos e alarmados pela consciência da
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sua desgraça, nudez, pobreza, miséria, é que se fazem mais propícios ao conhecimento de si mesmos. Calvino afirma que o primeiro, o segundo e o terceiro preceito da religião cristã é humildade. É preciso humildade para reconhecer a nossa falta de merecimento. *
A natureza não possui nenhum dos dons que os eleitos recebem do Pai Celestial através do espírito de regeneração. De modo que ninguém pode entrar no reino dos céus, a não ser que a sua mente tenha sido renovada pela iluminação do Santo Espírito. Ê isso que São Paulo afirma em 1 Coríntios 2.14 ■— “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”, confirmando o que antes disse no versículo 9 do mesmo capítulo: “As coisas que o olho não viu e nem o ouvido não ouviu, nem jamais penetraram no coração do homem, são as que Deus tem preparado para aqueles que o amam".
Diz ainda São Paulo que Deus é que nos dá o espírito de sabedoria (Ef 1.17). De modo que nenhum homem deve deixar de reconhecer que só se torna capaz de entender os mistérios de Deus iluminado pela Sua graça.
Convém que nos guardemos contra os erros de Platão, que atribui todo o pecado à ignorância; como também daqueles que mantêm que o pecado provém de uma preconcebida depravação e malícia. Devemos rejeitar também a doutrina ensinada por filósofos, e geralmente aceita, de que o homem quase sempre deseja o que é bom, posto que ainda que o deseje, no entanto, não o segue.
São Paulo afirma: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7.20). Essa é a luta do regenerado pelo espírito de Deus que, no entanto, traz consigo resto da carne.
Dizia Santo Agostinho “Tudo de bom que temos vem de Deus e todo o mal de nós mesmos”. No car pítulo III, Calvino vem provar que tudo que procede
da natureza corrompida do homem é mau. As Escrituras ensinam, com muita força, esta verdade. Em João 3.6, Jesus mesmo diz: “O que é nascido da carne é carne e o que é nascido do espírito é espírito”. Em Romanos 8 .8 , São Paulo afirma que os que estão na carne não podem agradar a Deus. E ainda, em Efé- sios 4.23, exorta São Paulo aos cristãos a que sejam renovados no espírito.
Jeremias afirma que o coração do homem é enganoso acima de todas as coisas e desesperadamente mau. Alguns alegam que em todas as gerações tem havido homens de vida virtuosa e correta. Tais fatos vêm atestar que a nossa natureza não está de todo viciada e que há ainda lugagr para que a graça divina nos impeça de fazer todo o mal. A verdade é que o homem pecador é escravo do pecado e não pode fazer movimento em direção ao bem, muito menos buscá-lo com perseverança. Esta afirmação conta com o apoio de Agostinho, que diz que a graça precede a toda a boa obra.
Por outro lado, deve-se considerar a dádiva da perseverança que Deus nos concede gratuitamente, sem merecimento da nossa parte, e não como alguns querem que seja concedida a cada um segundo os seus merecimentos, pois isso atribuiria a nós o direito de receber ou rejeitar a graça oferecida por Deus. O1 que se pode aceitar é que quanto melhor usò fizermos das bênçãos de Deus, maior porção poderemos esperar no futuro, cabendo a Deus nos dar ou não.
Calvino cita Agostinho, que diz: Sabemos que a divina graça é dada a todos os homens, e que àqueles aos quais é dada não o é de acordo com o merecimento de suas obras, ou por causa de suas virtudes, mas pela livre graça; com respeito àqueles aos quais não é dada, sabemos que, não lhes dando, Deus age com justiça, segundo o seu julgamento.
Prossegue ainda Calvino, mostrando que o homem escravizado pelo pecado não pode por sua própria natureza desejar o bem e nem efetivamente buscá-lo. Volta Calvino a afirmar que, quando Satanás age através
dos homens maus, Deus utiliza isso para o "bem. É o caso de Jó, referido anteriormente, em que os caldeus saquearam sua propriedade e seus rebanhos. Jó reconhece nisso a mão de Deus — "O Senhor o tirou”. O propósito de Satanás foi levar Jó ao desespero. O propósito dos caldeus foi fazer uso ilícito do saque. C propósito de Deus foi exercitar o seu servo através da adversidade.
Calvino apresenta a alegação em favor da vontade livre do homem e refuta os argumentos com passagens das Escrituras, terminando por dizer que a Par lavra de Deus nos mostra que, sem a graça divina, a vida e a felicidade do homem estão inteiramente perdidas. O homem tem uma mente capaz de entender, no entanto, não é capaz de por si mesmo atingir a sabedoria celeste espiritual; ele tem algum discernimento do que é justo; ele tem algum senso de divindade; não obstante, não pode atingir o verdadeiro conhecimento de Deus.
De que é que isso vale, então?Agostinho e a opinião universal dos doutores é
de que após a queda, a dádiva gratuita da qual a salvação depende foi retirada e os dons naturais corrompidos e contaminados. . . o coração está inteiramente envenenado pelo pecado, de modo que não pode nada desejar, senão a corrupção e a podridão. Se çtl- gum homem ocasionalmente manifesta alguma bondade em sua mente, essa está permeada com hipocrisia e engano e inteiramente presa da iniqüidade.
Herman Bavinck, num ensaio15, diz: “Como Agostinho, Calvino é naturalmente temeroso do orgulho pelo qual o homem se exalta acima de Deus. A sua constante insistência com respeito à incapacidade do homem e à escravidão da vontade não tem como propósito lançar o homem no desespero, mas levantá-lo da letargia, acordá-lo para dizer-lhe o que lhe falta; fazê-lo renunciar toda a glória própria e toda a- auto-confiança, para pôr sua confiança somente em Deus. Calvino despoja o homem de todas as coisas, para res
taurar-lhe todas as coisas em Deus”. É isso que Calvino vai fazer em seguida.
Em virtude da queda, todo o conhecimento de Deus de que já se tem falado será sem valor, a não ser que seja acompanhado pela fé em Deus como Pai em Cristo Jesus. Toda a fábrica do mundo deve ser uma escola para que o homem aprenda a piedade e dela passe para a vida eterna e perfeita felicidade.
Deus nunca se mostrou propício na antiguidade aos homens, sem que lhes concedesse esperança e graça sem medida. Os sacrifícios da lei ensinavam claramente que a salvação seria pela expiação completa do sacrifício de Cristo. Embora Deus inclua Abraão e a sua posteridade no pacto, Paulo nos mostra que Cristo é a verdadeira semente de Abraão, por meio da qual todas as famílias da terra seriam abençoadas ■— “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente. Não diz: E aos descendentes, como falando de muitos, porém de um só: E ao teu descendente, que é Cristo” (G1 3.16).
Deus quis que uma imagem de Cristo fosse vista em Davi e sua posteridade. Quando o seu reino foi dividido pela revolta das dez tribos, o pacto feito por Deus com Davi e seus sucessores permaneceu de pé, como declara o profeta: “Porém não tomarei da sua mão o reino todo; pelo contrário, fá-lo-ei príncipe por todos os dias da sua vida, por amor de Davi, meu servo, a quem elegi, porque guardou os meus mandamentos e meus estatutos” (1 Rs 11.34). A súmula é que Davi, excluindo todos os outros, foi escolhido para ser a pessoa em quem o bom prazer do Senhor habitaria. Claro está que Deus não podendo ser propício à raça humana sem o Mediador, Cristo, este era sempre apresentado aos santos pais quando estavam debaixo da lei, como objeto de fé. Assim, nos dias de aflição o conforto prometido, especialmente, quando se tratava do livramènto da igreja, era Cristo. Haba- cuque 3.13 afirma: “Tu saíste para a salvação do teu povo, para salvar o teu ungido”. Todos os profetas procuravam mostrar que Deus era complacente; apresen
tavam o rei Davi como aquele de quem a salvação é redenção eterna dependia; familiarizando, assim, os judeus com as profecias, tendo em vista ensinar-lhes que, na busca do livramento, os seus olhos deviam estar voltados para Cristo. Quando o apóstolo São Paulo, em Colossenses 1.15, chama a Jesus a imagem do Deus invisível, é para nos lembrar que se queremos ter conhecimento da nossa salvação, devemos olhar para Deus em Cristo.
Todo o sistema da religião dada por Moisés apontava para Cristo, em muitos aspectos, os repetidos sar crifícios e abluções, as cerimônias exemplificavam isso. A lei nos declara inescusáveis, a fim de nos impelir à busca do perdão; transcendendo à nossa capacidade de cumprí-la, leva-nos a olhar para as promessas distantes.
Se, de um lado, produz em nós confusão e desânimo, ao mesmo tempo, aponta para as bênçãos reservadas aos que a obedecem. De um lado, exibindo a justiça de Deus, de cutro lado, condenando e impelindo o homem a confessar a sua fraqueza e impiedade. A lei, nesse caso, era como espelho, onde se descobria a mancha do nosso rosto —■ a nossa incapacidade, iniqüidade e, finalmente, condenação.
Agostinho, em muitos pontos, nos mostra a utilidade da lei para nos levar à busca da assistência divina. São Paulo diz que a lei foi um pedagogo para nos conduzir a Cristo (G1 3.24). Assim a lei tinha como principal utilidade, no que diz respeito ao crente, avançar-nos no conhecimento de Deus e informar-nos nesse conhecimento.
Quando o apóstolo São Paulo fala da obrigação da lei, issto aplica-se não à lei em si mesma, mas, ao seu poder para constranger a consciência; porque a lei não somente ensina, mas exige obediência. Çristo, para nos redimir da maldição da lei, fez-se maldição por nós, como está escrito: "Porque o que foi pendurado no madeiro é maldito de Deus” (Dt 21.23). Essa passagem deve ser comparada com Gálatas 3.13 e Gálatas 4.4,5, em que o apóstolo São Paulo declara que
Cristo se colocou debaixo da lei para redimir os que antes do advento de Cristo, que, ainda que abolisse o seu uso, selou a sua força e efeito com a própria morte.
Os país antigos viram debaixo da lei o dia de Cristo, obscuramente, pois a perfeita luz só veio com o evangelho, conforme o testemunho de Cristo e dos apóstolos. O termo evangelho significa não somente a visão, pois a fé é apenas a visão que nós como peregrinos temos; por isso, concluímos que a fé é uma prova da misericórdia de Deus concedida aos pais, aos patriarcas, mas propriamente significa promulgação da graça, manifesta em Jesus Cristo, o Deus-Homem. Nele possuímos todas as perfeições da vida celestial em bora os ritos legais cessem de ser obervados, eles servem para mostrar claramente a sua grande utilidade pois, Cristo, pela sua vinda, pôs fim a esse uso. Em- foi abolido, não no efeito, mas no seu uso somente, estão debaixo da lei.
Com respeito ao aspecto cerimonial da lei, este previsão —■ "Temos, portanto, sempre bom ânimo, sabendo que, enquanto estamos no corpo, estamos ausentes do Senhor; vistoq ue andamos por fé e não por visão”, (2 Co 6.7).
A epístola aos Hebreus, capítulo 11, versículo 1, nos diz que a fé é a prova das coisas que não vemos. Os evangelhos apontam com o dedo a lei, quando esta ensinava em sombra, por tipos. Quando Jesus disse que a lei e os profetas duram até João, não está condenando os patriarcas como escravos da lei, da qual não podiam escapar; mas está dizendo que eles estavam apenas imbuídos dos rudimentos da lei, num nível inferior à doutrina do evangelho.
João Batista permanece entre a lei e o evangelho, exercendo um ofício intermediário entre ambos; pois, embora nos dê um sincero evangelho quando anuncia Cristo, dizendo: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, todavia, como ele não pode desvendar o poder incomparável e a glória da ressurrei
ção, Jesus disse que ele não era igual aos apóstolos. “Entre os nascidos de mulher não há nenhum maior do que João Batista, mas o menor do reino dos céus é maior do que ele (Lc 7.28).
OFÍCIOS DE CRISTO - PROFETA, SACERDOTE, RE!
Os ofícios do Redentor que Cristo recebeu do Pai consistem de três partes: Profeta, Sacerdote e Rei. Observe-se que o nome Cristo se refere a esses ofícios.
Sabemos que, segundo a lei, os profetas, reis e sacerdotes eram ungidos com óleo santo. Daí o nome Messias, dado ao Redentor. Isaías menciona claramente a unção de Cristo: “O espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu, para pregar boas novas aos quebrantados..." (Is 61.1). Ele foi ungido pelo Espírito, para ser testemunha e mensageiro da graça do seu Pai; não de maneira comum, mas distinta dos outros mestres que tiveram o mesmo ofício.
A unção que recebeu foi para o seu corpo todo, não para si mesmo, para que a correspondente eficácia do Espírito acompanhasse a pregação do evangelho. Pela perfeição da doutrina que Ele trouxe pôs fim a toda profecia.
O propósito da dignidade profética de Cristo é en- todas as suas partes.- A afirmação de Paulo em 1 Co- ríntios 1.30 é que Ele se tomou da parte de Deus sabedoria, justiça, santificação e redenção. E, ainda mais, que nEle estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento, dando a entender, que fora dEle, não há nada digno de se saber e que aqueles que pela fé apreenderam o seu verdadeiro caráter possuem ilimitada medida das bênçãos celestiais; por isso mesmo também diz: “Resolvi não saber nenhuma coisa mais a não ser Jesus, e este crucificado”, (1 Co 2.2 ).
Rei. Com respeito ao ofício de Rei, é de natureza espiritual, sua eficácia e os benefícios que confere, e o seu poder interno, é de eternidade em eternidade, os quais o anjo, em Daniel, atribui a Cristo — Daniel 2.44 “Mas o Deus dos céus suscitará um reino que não será jamais destruído”. Em Lucas 1.33 o anjo afirma a Maria “que Ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó e o seu reino não terá fim”. Isso garante a per- petuidade da Igreja, porque se assenta nos céus e repele os assaltos que contra ela venham — Salmo 2.2-4 e Salmo 110.1. Daí, Satanás, com todo o seu poder, não poderá destruir a Igreja, que se funda sobre o trono de Cristo.
Para sustentar a nossa esperança, Ele declara que o seu reino não é deste mundo, e, assim, alimenta-nos a esperança de uma vida melhor. Desse modo, a felicidade que nos é prometida no reino celestial não é de coisas materiais, mas celestes. E, para orientar aqueles que são inclinados às coisas da terra, Ele mesmo diz: “O reino de Deus é. justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Assim, Ele nos confere uma esperança na vida eterna, para que vivamos pia
mente na presente vida em meio aos trabalhos; firmes» sem desesperar, sabendo que as dificuldades se constituem na certeza de que nosso rei não nos abandonará, mas suprirá tudo o de que precisamos, até que termine a nossa luta e sejamos convocados ao triunfo.
A unção de Cristo não é com óleo e perfume, mas, como Ele é chamado o ungido de Deus, o Espírito do Senhor está sobre Ele, que é espírito de sabedoria e entendimento. Daí dizer-se que o reino de Deus consiste em espírito.
Um símbolo visível da graça se fez presente no batismo de Jesus quando o Espírito sobre Ele repousou em forma de uma pomba. Deus concedeu-lhe a unção do Espírito.
Somos chamados cristãos, porque permanecemos invencíveis na força de nosso rei e nas suas riquezas espirituais, que sobre nós abundam e pelas quais o Espírito nos dá vigor e força. Com razão, Jesus é chamado Senhor, Juiz e Legislador em Isaías 33.22, “Porque o Senhor é nosso juiz; o Senhor é nosso legislador; o Senhor é nosso rei; Ele nos salvará”. Devemos, pois, com alegria a Ele obedecer.
Sacerdote. Com respeito ao sacerdote, dizemos: Desde que o Mediador deve ser livre de toda mancha, para buscar por nós o favor de Deus por sua própria santidade, os sacerdotes antigos precisavam apresentar sacrifícios por si mesmos. Segundo a lei, o sacerdote era proibido de entrar no santuário, sem expia- ção de pecados. A epístola aos Hebreus, a partir do capítulo 7 até o capítulo 10, trata longamente do assunto.
O sacerdote, purificado da sua impureza, santifi- ca-nos e obtém-nos o favor que a impureza das nossas vidas e corações não nos permite ter. O começo dessa intercessão foi com sua morte. Ele é o nosso perfeito intercessor, pelo qual temos confiança de apresentar a nossa oração a Deus, pois que Ele, somente Ele, nos reconcilia com Deus e torna o Pai propício a nós, admitindo-nos na mais honrosa aliança. Daí o erro do sa
crifício diário da missa que representa a morte diá*> ria de Cristo.
No seu tratado dirigido à Faculdade de Teologia de Paris, Calvino trata do sacramento da Ceia do Senhor e diz que no sistema papal Cristo é roubado da honra do seu sacerdócio, quando o direito de oferecer é transferido a outro. Ninguém deve assumir essa honra com que Jesus foi chamado por Deus o Ungido par ra testificar. Não lemos de ninguém que tenha sido chamado por Cristo para isso.16
CRISTO - O MEDIADOR
O Mediador devia ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem; não por uma necessidade simples ou absoluta, mas de acordo com o decreto divino, do qual a salvação do homem depende. O que era melhor para nós Nosso Pai misericordioso determinou. As nossas iniqüidades se colocavam como uma nuvem entre nós e Ele, alienando-nos do reino dos céus; de modo que o Mediador, para restaurar a nossa paz com Ele (Deus), devia ser uma pessoa capaz de se aproximar dEle. Nenhum filho de Adão poderia fazer isso, uma vez que todos estavam encobertos da vista de Deus. Nem mesmo os anjos, pois era necessário que fosse um cabeça, aos homens ligado inteira e inseparavel- mente. A condição do homem era, portanto, desespe-
radora, não tivesse Deus descido até nós, já que nós nunca poderíamos subir a Ele.
O Filho de Deus se dispôs a tornar-se Emanuel — Deus conosco — e, desse modo, unir a sua divindade à nossa natureza para ser nosso representantes. Mesmo que o homem tivesse permanecido livre de qual» quer mancha, na sua condição era por demais humilde para apresentar-se a Deus, sem um Mediador. Não é sem razão que o apóstolo declara distintamente: “Só há um Mediador entre Deus e o Homem, Jesus Cristo — o Homem” (1 Tm 2.5).
Paulo não deixa de chamá-lo de Deus e nem de chamá-lo de Homem. Em Hebreus 4.14, 15, o Espírito ainda indica que ele é um sumo sacerdote, que não só passou pelos sofrimentos da nossa enfermidade, mas que em tudo foi tentado como nós, sem pecado. Isso se torna mais claro ainda, se pensarmos que o Mediador não apenas divia restaurar a nós o favor divino, mas mudar a nossa condição de filhos do homem para filhos de Deus. Daí aquela santa fraternidade que Ele mesmo nos atribui, quando afirma: “Eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo 20.17). Temos aí a certeza da nossa herança no reino dos céus, pois um único herdeiro, o único Filho de Deus, nos adotou como irmãos; se somos irmãos, somos participantes com Ele na herança. Romanos 8.17: “Ora se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo”. Daí percebemos a necessidade de que o Mediador fosse verdadeiramente Deus e homem.
Quem poderia tragar a morte senão a vida? Quem poderia vencer o pecado, senão a própria justiça?
Um outro aspecto da nossa reconciliação com Deus é que o homem, que se perdeu pela desobediência, repara a sua falta pela obediência, satisfazendo a justiça, pagando a pena. Como Deus somente, Jesus não poderia sofrer. Como homem somente, não poderia vencer a morte; unido a natureza humana à divina, Ele se sujeitou à fraqueza de uma para a morte
e expiação do pecado; pelo poder da outra, sustentou a luta com a morte para ganhar a vitória.
O Redentor devia ser filho de Abraão e de Davi, conforme Deus prometera na sua lei e nos profetas. De modo que esta condição foi satisfeita perfeitamente por Cristo, como se pode verificar, traçando a sua origem até Davi e Abraão.
Desde a antigüidade, mesmo antes da lei ser promulgada, o Mediador prometido devia intervir com sangue; pois que Deus, no seu eterno conselho, determinou que a impureza do homem fosse purificada com o derramamento de sangue, símbolo da expiação. Assim também os profetas anunciaram o Mediador entre Deus e os homens, como Isaías 53.4,5: “Certamente Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; nós o reputávamos por aflito e ferido de Deus. Mas Ele foi traspassado pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniqui- dades; o castigo que nos traz a paz estava sobre Ele e pelas suas pisaduras fomos sarados”.
João, antes de ensinar que o verbo se fez carne, fala da queda do homem (Jo 1.9). Ouçamos Nosso Senhor mesmo, quando fala do seu ofício: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Uni- gênito para que todo que nele crê, não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). E ainda mais: “o Pilho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido” (Mt 18.11) E o apóstolo nos conduz a essa fonte, Hebreus 5.1 e 2 Coríntios 5.19 — “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o m undo...”. E, ainda, em Romanos 8.3: “Portanto, o que foi impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus, enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; com efeito, condenou Deus na carne, o pecado”. Na epístola a Ti- to (2.11) diz: "A graça de Deus se manifestou, trazendo salvação a todos os homens". Em Efésios 1.4-7 falao apóstolo do mesmo assunto, dizendo: “No qual temos a redenção pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça” Em Gálatas
4.4,5 afirma: “Vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, afim de que recebêssemos a adoção de filhos”.
Refuta Calvino os maniqueístas e marcionitas, trazendo prova da perfeita humanidade de Cristo. Os ma- niqueistas afirmavam que Jesus fora revestido de uma carne celestial. Os marcionitas diziam que a aparência material de Jesus era um fantasma e não uma realidade. Cita Calvino, com abundância, as passagens qüe tratam do assunto e que estabelecem a perfeita humanidade de Cristo, combatendo tanto uma como a outra idéia.
Agostinho disse, nesse particular, que a bênção prometida a Abraão não foi de uma semente celestial com a máscara de homem, mas semente de Abraão e de Jacó. Nem foi prometido um homem do espaço, um ser especial, mas um filho de Davi, saído dos seus lombos.
São Paulo afirma, em Romanos 9.5 e em Gálatas 4.4, que Cristo é descendente dos patriarcas, segundo a carne, e que ele é nascido de mulher, sob a lei. Em Hebreus 2.14-17, claramente se fala da natureza humana de Jesus, dizendo que convinha que Ele fosse semelhante aos irmãos para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus.
As duas naturezas constituem a pessoa do Mediador. Quando se diz que o Verbo se fez carne, não se deve entender que Ele se tivesse mudado para carne, ou confusamente se misturasse com a carne, mas que Ele escolhe o ventre da Virgem Maria como templo que Ele pudesse habitar. Aquele que era o Filho de Deus se fez Filho do Homem, não por confusão de substância, mas por unidade de pessoa.
A divindade e a humanidade e as propriedades de cada natureza se mantiveram intactas, contudo, as duas naturezas constituíram um só Cristo. Oferece Calvino a analogia da alma e corpo, os quais, possuindo natureza própria, se unem para formar uma só pessoa, embora as propriedades de ambas sejam limita
das uma pela outra, no entanto, formam um só homem.
As Escrituras, às vezes, se referem à qualidade que se atribuem à humanidade de Cristo especialmente; ou a sua divindade em outras ocasiões; em outros casos as qualidades que envolvem ambas as naturezas. Esta combinação de duas naturezas em Cristo é expressa tão cuidadosamente que, às vezes, se comunicam uma a outra, o que os antigos denomi* navam, comunicação de propriedades. São as passagens das Escrituras, em grande número, sobre esse assunto que dão validade à explicação acima inserida. Jesus mesmo disse: “Antes de Abraão eu sou” (Jo 13.50). Pualo a Ele se refere como primogênito de toda a criação (Cl 1.15,17). Há uma comunicação de propriedades a que o apóstolo São Paulo se refere, quando declara: “A Igreja que Deus comprou com o seu próprio sangue” (At 20.28). E, ainda: “Jesus crucificado, Senhor da Glória” ( 1 Co 2 .8 ) e João, na sua primeira epístola (3.16), diz: “Deus deu a sua própria vida”. Et ainda, no Evangelho de São João (3.13), Jesus mesmo diz que ninguém subiu ao céu senão o Filho do Homem.
Acima de tudo, a verdadeira substância de Cristo se encontra mais claramente expressa em passagens que compreendem ambas as naturezas no Evangelho de João. Jesus declara que recebeu poder do Pai para perdoar pecados. Nesse mesmo sentido entende-se1 Coríntios 15.24, quando se diz que Cristo entregará o Reino a Deus e Pai, quando tiver destruído toda a potestade e poder. Em Filipenses 2.8, o apóstolo São Paulo fala que Ele, Jesus, pôs todas as insígnias da sua majestade de lado, tornando-se obediente ao Pai e depois foi exaltado e coroado de glória pelo mesmo Pai.
Combate Calvino a heresia de Nestorius, que procura dissecar, por assim dizer, as duas naturezas de Cristo, criando, como disse Calvino, um duplo Cris> to. Por outro lado» combate Servetus, porquanto, segundo a sua teoria, o Filho de Deus foi substituído por algo composto da essência de Deus, Espírito» car
ne, e três elementos não criados. Nega que Cristo seja o Filho de Deus, pela simples razão de ter sido gerado pelo Espírito Santo no ventre da virgem Maria.
Sustenta Calvino a doutrina da Igreja, pela qual o Mediador, nascido de uma virgem, é realmente o Filho de Deus por uma união hipostática (termo usado pelos escritores antigos para expressar a união pela qual as duas naturezas constituem uma só pessoa).
Com respeito à filiação, Cristo é chamado Filho na sua natureza humana, não como os crentes, os quais o são por mera e gratuita adoção. Ele, porém, o é, por natureza, veraadeiro e único Filho. O nome do Primogênito pertence a Cristo somente, mas ele é filho em meio à multidão de irmãos, Ele o é por natureza o que adquirimos por dádiva.
Conclui Calvino, dizendo que o Verdadeiro Redentor que temos é aquele que, sendo gerado da semente de Abraão e Davi, segundo a carne, se tornou verdadeiro homem.
Vale a pena ver como Calvino prega a doutrina que formulou nas suas Institutas. É assim que, no seu sermão sobre a Paixão de Cristo, referindo-se à cena em que Jesus está diante de Pilatos, !diz: “Desde que Ele ali se pôs de pé, saibamos que suportou a nossa condenação e foi julgado para justificar não a si mesmo, sabendo bem que devia ser condenado, na verdade, em nossa pessoa. Pois, embora sem mácula, nem culpa, Ele levou sobre si todo o nosso pecado. Não nos admiremos de que Ele aí se pusesse de pé como se tivesse sido condenado, pois, doutro modo, não poderia ter cumprido o ofício de Mediador; aceitando a sentença, confessou que por nossa pessoa Ele merecia ser condenado. . . É isso que o silêncio de Nosso Senhor subentende — para que hoje possamos clamar a Deus com todas as forças da nossa voz» pedindo que todos os nossos vícios e ofensas sejam perdoados” .17
COMO CRISTO REALIZOU 0 OFÍCIO DE REDENTOR
Uma vez que estamos condenados à morte e per- didoà, temos que procurar em Cristo a nossa justiça. Pedro diz em Atos 4.12: “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo dos céus não existe nenhum outro nome dado entre os homens pelo qual sejamos salvos”. O nome Jesus lhe foi dado não por acaso, ou fortuitamente, ou por vontade de homens, mas foi-lhe trazido dos céus, pelo anjo, o mensageiro do decreto supremo; a razão também sendo apresentada: “E lhe porás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos pecados deles” (Mt 1.21).
A Ele foi dado o ofício de Redentor, para que pudesse ser o nosso Salvador. Deus era nosso inimigo, até que foi reconciliado conosco por Cristo. A Bí
blia utiliza modo de expressar, condicionando a nossa capacidade, para que possamos entender melhor os mistérios de Cristo. Em Romanos 5.10, encontramos: “Porque se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus, mediante a morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida”. Deus era nosso inimigo até que Cristo com Ele nos reconciliasse. Em Gálatas 3.10-13 encontramos: “Todos quantos, pois, são das obras da lei, estão debaixo de maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para praticá-las”, e também; “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição em nosso lugar, porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro”.
Como é que Cristo aboliu o pecado e desfez a inimizade entre Deus e nós, e cumpriu por nós a justú- ça, de modo a fazê-lo favorável a nós? Pelo inteiro curso da sua obediência. Paulo isso mesmo declara em Romanos 5.19 e Gálatas 4.4,5. Ele mesmo deu a sua vida em resgate de muitos, Mateus 20.28. Cristo não poderia devidamente propiciar a Deus sem abrir mão de seus próprios sentimentos e sujeitar-se à vontade do Pai, Hebreus 10.5 e Gálatas 6.7. O resgate tinha que ser feito com um certo tipo de morte, apresentado diante de um tribunal que ouvia testemunhas e o condenava como um que cometeu transgressões, Isaías 53.10. De modo que Ele suportou, não como inocente, mas como culpado, Mateus 27.24-26, Pilatos o condenou como criminoso, no entanto, declarou que Ele era inocente. A culpa que nos fez passíveis de condenação caiu sobre Ele — sobre a cabeça do Filho. A morte foi a morte de cruz, pois a cruz era maldita, não somente na opinião dos homens, mas por declaração da lei divina. Ele pôs a sua alma por expiação, diz a Bíblia:' “Aquele que não conheceu pecado fez-se pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 co 5.21). O Filho de Deus, não obstante, puro e sem mancha, tomou sobre si as
nossas iniqüidades e nos revestiu de pureza — “Con
denando o pecado na carne” (Em 8.3).Paulo exalta o triunfo da cruz, como se aquilo
que era tido como maldição se transformasse em glória.
“Foi morto e sepultado” diz o Credo — para que pela morte pudesse destruir aquele que tinha o poder da morte, a saber, o diabo; e livrar aqueles que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à escravidão, Hebreus 2.14,15. A expressão “desceu ao inferno” encontrada no Credo Apostólico tem várias interpretações. Calvino rejeita a interpretação de que “desceu ao inferno” seja o mesmo que “foi sepultado”, o que seria uma tautologia inútil. Outros pensam que Ele foi anunciar a sua obra aos patriarcas que morreram sob o domínio da lei e tirá-los da prisão — “Umbus”, uma invenção inadmissível. Admite Calvino que Cristo possa ter ido mostrar a eles a graça para a qual não tiveram percepção, pois não tinha sido ainda manifesta. Aí talvez se aplique a passagem de Pedro, quando diz que “foi e pregou aos espíritos em prisão”, 1 Pedro 3.11. A finalidade do contexto é afirmar que aqueles que morreram antes desse tempo eram, contudo, pela fé participantes da mesma graça de que nós somos.
Nada impede, pensa Calvino, que Jesus pudesse ter descido ao inferno e experimentasse bem de perto os podres do inferno e os horrores da morte eterna, já que Ele passou por tão grandes castigos em nosso lugar: “O castigo que nos traz a paz estava sobre Ele”.
Tratando da ressurreição de Cristo, Pedro afirma que Deus ressuscitou a Jesus Cristo, tendo soltas as peias da morte, porque não era possível que fosse retido por ela, Atos 2.24. Embora na sua morte tenha ele efetuado uma completa salvação, porque por ela fomos reconciliados com Deus — Satisfação dada à sua justiça, e maldição removida, a pena paga, contudo, não é pela morte, mas pela ressurreição, pois que se diz que fomos gerados de novo para a vida eterna —• 1 Pedro 1.3. Ressuscitando, tornou-se ven
cedor da morte, assim, a vitória da nossa fé consiste na ressurreição.
Paulo afirma: “Jesus, nosso Senhor, o qual foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa jutificação” (Em 4.25). A nossa salvação é assim dividida entre a morte e a ressurreição — Pela primeira, o pecado foi abolido e a morte conquistada; pela última, a justiça foi restaurada, a vida revivida e o poder e a eficácia da primeira concedida a nós pela segunda, 2 Coríntios 13.4.
A ressurreição de Jesus é seguida pela ascenção, o que nos concita a uma novidade de vida, Colossen- ses 3.1. Pela sua ascenção começa o seu reino, Efé- sios 4.10. Ele retirou o seu corpo da nossa vista, não para cessar de estar conosco, que somos peregrinos na terra, mas para que possa governar mais diretamente os céus e a terra pelo seu poder. O Credo diz: “Assentou-se à mão direita de Deus”. É uma figura tirada dos príncipes, os quais têm assessores e con- fereni-lhes o ofício de governar, dando as suas ordens. Os apóstolos se referem a isto, dizendo que Ele está à mão direita de Deus. Dessa doutrina a fé deriva muitas bênçãos: primeiro, percebe que o Filho abriu a porta que Adão tinha fechado nos céus; pois. Ele mesmo ali entrou na nossa carne; segundo, tendo entrado no templo não feito por mãos, Ele é o nosso advogado, intercessor perante o Pai; terceiro, discerne o seu poder do qual depende a nossa força, os nossos recursos e o nosso triunfo sobre o inferno. “De onde há de vir julgar os vivos e os mortos”.
É objeto da mais alta consolação saber que o julgamento está na mão daquele que já nos destinou a nossa parte com Ele na hora desse julgamento, Mateus 9.28. Cristo, o intercessor, não nos condenará, Romanos 8.33. Aquele que no evangelho nos prometeu eterna bemaventurança como juiz a ratificará. Em Cristo é que estão todas as bênçãos: A salvação, os dons do espírito, a força, a pureza e a indulgência. Encontramos força no seu governo; pureza na sua concepção; indulgência na sua natividade; redenção
na sua paixão; livramento na sua condenação; remissão na maldição da cruz; satisfação no seu sacrifício; purificação no seu sangue; imortalidade na sua ressurreição.
Cristo não é apenas ministro, mas o autor e príncipe da nossa salvação, João 3.16. Cristo, pela sua obediência, comprou e mereceu graça para nós com o Pai, conforme as Escrituras. Temos purificação pelo seu sangue na sua morte expiatória. O seu sangue nos purifica de todo o pecado, João 1.7. Os apóstolos claramente afirmam que Ele pagou o preço do nosso resgate por nós, pela morte na cruz, Romanos 3.24,25 e Pedro 1.18,19. Paulo nos diz que fomos comprados por preço, Timóteo 2.5,6, temos redenção através do seu sangue. Ele completou perfeitamente o que o profeta Isaías disse, em figura, da parte de Deus: “Defenderei essa cidade para salvá-la por amor de meu próprio nome”, Isaías 37.35. E o apóstolo testemunha: “Por amor do seu nome os nossos pecados foram perdoados” (1 João 2.12), como também diz Paulo em Filipenses 1.29: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo, não somente crer nele".
PROVIDÊNCIA
Rejeita Calvino a idéia daqueles que, embora aceitando Deus como criador do Universo, entendem que ele é quanto muito uma agência geral que responde pela sustentação do mundo, infundindo nesse universo uma energia inicial apenas. Diríamos que Calvino rejeita a tese deísta, de um criador que, tendo feito o mundo, o deixasse só no desempenho do seu papel. O crente, diz Calvino, vai mais além, sabendo que Deus é o Criador e também o Governador e Preser- vador de tudo; Ele mesmo fez, sustenta, superintende todas as coisas e por elas se interessa — até mesmo as coisas mínimas como um pardal. Cita Davi, no Salmo 33.6, quando diz: "Os céus por sua palavra se fizeram e pelo sopro da sua boca o exército deles”.
A providência divina, conforme as Escrituras nos ensinam, se opõe “à sorte”, ou a causas fortuitas, uma idéia que se tem perpetrado em todos os tempos de que tudo acontece por acaso. Essa idéia obscurece a verdadeira doutrina da providência. Aponta exemplos de acontecimentos que afetam a vida do homem, os quais têm sido atribuídos à sorte ou acaso. Se alguém se vê entre ladrões ou feras, ou se um vento inesperado e violento causa naufrágio de um barco no mar, »3 U alguém é vítima de uma casa ou uma árvore que cai, ou, andando- perdido pelo deserto, encontra livramento, ou, depois de batido pelas ondas, chega ao porto, escapando da morte como por um fio' de cabelo —- tudo isso se atribui à sorte ou à fortuna.--Aquele, porém, que aprendeu da boca de Cristo que todos os cabelos da sua cabeça estão contados (Mt 10.30), buscará outra causa e sustentará que todos os acontecimentos são governados pelo secreto conselho de Deus.
Com respeito aos objetos inanimados, são meros instrumentos de Deus aos quais Deus infunde energia para atender aos propósitos da sua vontade. Lembra as estações do ano e outros fenômenos da natureza nesse contexto. Assim, Deus não é um Deus inerte, como querem os epicuristas.
Outros pensam que Deus governa as regiões superiores, deixando as inferiores ao acaso, o que também é errado. Hebreus 1.3 afirma que todas as coisas são sustentadas pela palavra do seu poder e Paula em Atos 17.28 afirma a respeito de Deus: “Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos”. De modo que Calvino não crê apefaas numa providência geral, contínua, na ordem da natureza, extensiva a todas as criaturas, mas crê também que Deus pelo seu conselho maravilhoso, adapta as coisas aos seus propósitos especiais.
Calvino rejeita a sorte ou o fado, e, como São Paulo declara em 1 Timóteo 6.20, prefere evitar falatórios inúteis e profanos e as contradições do falso saber e aceitar a verdade de Deus. Devemos submeter-nos a
sua autoridade, considerando a vontade de Deus a única regra de justiça e a mais perfeita causa de todas as coisas. Não aquela vontade absoluta que separa a justiça do seu poder, mas a providência no governo geral e universal, da qual nada provém que não seja certo, embora as suas razões possam ser ocultas a nós. ao invés de aceitar o fatalismo dos pagãos, que acham que Deus quis e deve ser feito, o crente procura saber a vontade de Deus, inquirindo das Escrituras, e pela direção do Espírito buscará alcançá- la. Observa-se o lugar da oração nesse contexto, opondo-se à idéia dos que negam o seu valor, alegando que tudo já está determinado. Salomão reconhecia a providência divina, juntamente com a deliberação humana, quando disse em Provérbios 16.9 — “O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos”. Deus dotou o homem com a capacidade de deliberação, de precaução, para que as possa empregar em obediência a sua providência e na preservação da vida. Pergunta-se: São os ladrões, assassinos, malfeitores, instrumentos da providência divina? Responde-se: Deus pode executar os seus julgamentos, utilizando-os para inflingir castigo noutros, mas isso de modo nenhum os excusa pelos seus maus atos.
A providência especial vigia pela salvação dos crentes e os alenta com inumeráveis promessas: “Lança a tua carga sobre o Senhor e Ele te susterá”, e ainda: “Lançando sobre Ele toda a vossa solicitude, pois Ele tem cuidado de vós", ainda mais: “Pode uma mulher esquecer-se do filho que amamenta a ponto de não se compadecer dele, do filho do seu ventre? Ainda que ela se esquecesse, eu não esquecerei de ti”. “Aquele que te tocar toca na menina dos meus olhos". Daí, o propósito principal dos livros históricos da Bíblia é mostrar que os caminhos dos seus santos são guardados pelo Senhor. Deus não somente deu favor ao seu povo aos olhos dos egípcios (Ex 2.21), mas também derrota a malícia dos inimigos.
Para o bem e segurança dos seus filhos, Ele go
verna todas as criaturas, até mesmo o diabo, que não ousou nada contra Jó, além daquilo que Deus lhe permitiu. Daí, tudo aquilo que nos faz prosperar devemos atribuir a Deus inteiramente. Se algo adverso nos acontece, devemos levantar nossas mãos para Deus para que Ele nos dê paciência e serena moderação .
Com respeito ao arrependimento atribuído a Deus, conforme a linguagem bíblica, Calvino explica que é uma maneira figurativa empregada para se acomodar ao nosso entendimento limitado. Deus é imutável e a sua constância é atestada até pelos inimigos. A profecia de Jonas sobre Nínive, e o arrependimento da cidade, explica-se em que a profecia foi feita exatamente com o propósito de levar a cidade ao arrependimento .
INSTRUMENTALIDADE DOS ÍMPIOSUTILIZADA POR DEUSO fato de Deus utilizar o ímpio para exercer sua
justiça, como vimos atrás, não macula a sua santidade, desde que Deus subordina os reprovados, e até mesmo Satanás, segundo os seus objetivos.
Lembra Calvino a distinção feita entre jazer e permitir com respeito à ação do homem mau no mundo e Satanás. Jó compreendeu que a ação de Deus estava presente quando foi afligido por Satanás através de homens maus que lançaram mão de suas propriedades: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou, bendito seja o nome do Senhor”.
Deus foi o autor da aflição na qual aqueles homens maus foram instrumento. De modo que, qualquer coisa que Satanás ou os homens ímpios propõem fazer, Deus levanta o seu cetro e faz com que o re sultado contribua para o seu julgamento Pilatos e os soldados romanos foram subservientes à fúria dos judeus para destruir Jesus, todavia, os discípulos confessaram em oração solene que os ímpios nada mais fizeram do que aquilo que a mão e o conselho de Deus tinha decretado, Atos 4.28 — “Para fazerem tudo que
a tua mão e o teu propósito determinaram”; ainda em Atos 3.18 — "Mas Deus assim cumpriu o que dantes anunciara por boca dos profetas que o seu Cristo havia de padecer”.
Resume Calvino, dizendo: “Desde que a vontade de Deus é a causa de todas as coisas, todos os conselhos e ações dos homens devem ser governados pela sua providência, de modo que Ele não só exerce seu poder sobre os eleitos, os quais são guiados pelo Espírito Santo, mas também faz com que os reprovados cumpram o seu serviço”.
Pergunta-se: Se os ímpios fazem a vontade de Deus, não são eles condenados injustamente? Aqui Calvino faz uma outra distinção entre vontade e preceito, que muitos confundem. Quando Absalão profanou o leito do seu pai, praticando incesto, embora Deus quisesse castigar o adultério de Davi, não ordenou a seu filho mau que praticasse incesto. Deus realizou a sua vontade, castigando Davi, mas não deu preceito a Absalão para que praticasse o ato de incesto .
Veja-se o caso de Simei, que amaldiçoou Davi; este mesmo confessa que Simei agiu segundo a vontade de Deus, contudo, Deus não ordenou a Simei o fazer.
Enquanto por meio dos ímpios Deus realiza o que secretamente decretou, não são eles escusados, como se estivessem obedecendo ao seu preceito, pois que na verdade estavam quebrando a sua lei.
Procura Calvino mostrar como um mesmo ato que trai o homem culpado evidencia a justiça divina. Cita Agostinho, quando se refere ao caso da traição de Judas, e assim se expressa: Desde que o Pai entregou o filho, e Cristo o seu próprio corpo, e Judas o seu Mestre, como em tal caso Deus é justo e o homem é culpado num ato único, pois as razões pelas quais agiram eram diferentes.
Calvino tem sempre uma nota de humildade quando trata de um assunto tão difícil como esse: “Se não fosse útil, não teria Deus ordenado aos apóstolos e
profetas que a ensinassem (essa matéria). A nossa Verdadeira sabedoria consiste em abraçar, com huí- müdade e sem reserva, o que as Escrituras nos têm revelado”.
REGENERAÇÃO PELA FÉ ARREPENDIMENTO
A súmula do evangelho consiste no arrependimento e perdão dos pecados. Onde estes dois títulos forem omitidos qualquer discussão com respeito a fé será fraca, defeituosa, na verdade, quase inútil. Primeiro, Cristo e João Batista exortaram o povo ao arrependimento e, depois, acrescentaram — “Porque o reino dos céus está próximo”, Mateus 3.2 e 4.17. Não queriam eles dizer com isso que o arrependimento é conseqüência da graça e promessa da salvação?
Alguns homens do passado aceitavam que o arrependimento consistia de duas partes — Mortificação e Vivificação. Por mortificação queriam dizer a angústia da alma, e o terror produzido pela convicção
do pecado, e o julgamento divirto — O homem passava a odiar o seu pecado, confessava a sua condição de peciador e desejava ser diferente. Essa primeira parte chamava-se — Contrição.
Por Vivificação queriam dizer do conforto que a fé produz; depois de perturbado pela consciência do pecado, arrasado pelo temor do castigo, o homem contempla a bondade e misericórdia, graça e salvação, para ele obtida por Cristo, e começa uma nova vida. Discorda Calvino apenas do uso do termo vivificação como é empregado aqui, pois deve significar, antes, o desejo de uma vida piedosa e santa, resultado do novo nascimento — o homem morre para si e passa a viver para Deus.
Outros propõem a idéia de duas formas de arrependimento: arrependimento legal e evangélico. O legal é aquele pelo qual o pecador, tocado pelo senso do pecado, dominado pelo temor da ira divina, permanece no estado de perturbação, incapaz de se livrar dele. São exemplos disso Caim, Saul e Judas. O evangélico é aquele pelo qual o pecador abatido em si mesmo, olha para Cristo e vê nele a cura de sua ferida, o esconderijo da sua miséria. Exemplos do arrependimento evangélico são: Ezequías, quando recebeu a mensagem sobre a sua morte; Ninive, aterrorizada pelo temor da destruição. Acrescenta-se a esses o caso de Davi, que confessou o seu pecado de numerar o povo, mas pediu: “Agora suplico, Senhor, perdoa a iniqüidade do teu servo”. Ou, quando reprovado pèlo profeta Natan, reconhece o seu adultério, e humilha- se diante do Senhor, e busca perdão. Ou o caso da multidão tocada pela pregação de Pedro, todavia, confiando na bondade de Deus, para perguntar: “Varões ,i,rmãos, que faremos?”. Semelhantemente é o caso de Pedro mesmo — Que chorou amargamente, mar não deixou de esperar.
Embora tudo isso que foi ditó seja verdadeiro, o termo arrependimento, tanto quanto se vê pelas Escrituras, deve ser tomado de modo diferente. Não se pode separar fé de arrependimento, pois Paulo diz em
Atos: “Testifico tanto a judeus como a gregos, arrependimento para com Deus e fé em nosso Senhor Jesus Cristo”, Atos 20.21. Paulo menciona, aqui, fé e arrependimento como duas coisas diferentes? Pode verdadeiro arrependimento existir sem fé? De modo nenhum, embora não possam ser separados devem ser distinguidos. Como não há fé sem esperança, embora fé e esperança sejam diferentes, assim arrependimento e fé, não obstante ligados constantemente, o são somente para estar unidos e não confundidos.
Uma definição de arrependimento aceitável seria: Uma conversão real da nossa vida a Deus; procedendo de um sincero e sério temor de Deus; consistindo da mortificação da hossa carne e do velho homem, e vivificação do espírito. Esse arrependimento se aplica a todos aqueles a quem os profetas e apóstolos exortavam — o povo do seu tempo.
Há três coisas no arrependimento: Conversão de vida a Deus; uma renovação não apenas exterior, mas interior; e um sincero temor de Deus, Ezequiel 18.3. Paulo afirma em 2 Coríntios 7.10 “Que a tristeza segundo Deus produz arrependimento para salvação, a qual a ninguém traz pesar”. É que a razão dessa tristeza é o temor de Deus, que produz o verdadeiro arrependimento. A terceira parte da definição afirma que o arrependimento consiste de mortificação da carne e vivificação do espírito.
Os profetas, numa acomodação ao entendimento do povo carnal, diziam: “Aparta-te do mal e faze o bem” (SI 34.14), e tc ... O primeiro passo para a obediência da lei de Deus está na renúncia da nossa própria natureza. A renovação vem depois como fruto dela — o abandono do homem velho e renovação do nosso entendimento. Ambos obtemos por Cristo. Romanos 6.5,6 “Se fomos unidos com Ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição; sabendo isto, que foi crucificado com Ele o nosso velho homem, para que seja destruído o corpo do pecado, a fim de não servirmos mais ao pecado”. Essa renovação não se realiza
num dia, nem num ato, mas é ininterrupta, até o final, pelo arrependimento com o qual continuaremos ã nossa carreira até o final da vida.
Deus purifica a sua Igreja, para torná-la sem mácula, Efésios 5.26,27 •— “...Cristo amou a Igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para que a santifi- casse, tendo-a purificado por meio da lavagem da água, pela palavra”. Deus a libertou do domínio do pecado pela agência do seu Espírito.
^Quanto mais o homem procura firmar a sua vida na palavra divina, mais visíveis sinais de arrependimento nele se observam. Aponta Calvino o perigo que pode resultar do excesso em nos engolfarmos no sentimento de culpa, em virtude de pecados passados, o que nos conduzirá ao desespero, poderá nos levar ao abismo da tristeza, do qual jamais nos escapemos. O temor que acaba na humildade, sem abandonar a esperança do perdão, não deve ser excessivo. São Bernardo aconselha: “Tristeza pelo pecado é necessária, mas não deve ser perpétua. Enquanto pensardes humildemente de vós mesmos, pensai também na bondade de Deus”. Há aqueles que frequentemente mencionam “O saco e cinza, jejuns e lágrimas”, especialmente referidos em Joel 2.12: “Convertei-vos a mim de todo o vosso coração; e isso com jejuns, com choro e com pranto”. Saco e cinza estavam de acordo com o costume daquele tempo, no entanto, o pranto e jejum são mais apropriados ao nosso tempo, quando o Senhor nos ameaça com derrotas e calamidades.
Parece-nos que o mais apropriado, em nossos dias,é aquilo que o profeta ordenava: “Rasgai os vossos corações, e não os vossos vestidos, e convertei-vos ao Senhor vosso Deus” (J1 2.13). Jejum, especialmente, destinado a ocasiões de calamidades. . . Em Mateus 9.15, o Senhor liberou os apóstolos da necessidade dele, até que, privados da sua presença, fossem tomados de tristeza. Referimo-nos ao jejum formal, porque a vida do cristão deve ser temperada de frugalidade e sobriedade, de modo que o seu curso inteiro seja como uma espécie de jejum.
Distingue-se o arrependimento em duas formas: o arrependimento comum, que devemos cultivar em todo o curso da nossa vida; segundo, o arrependimento especial, quando apanhados nos laços do diabo nos afastamos do temor de Deus.
Passa Calvino a considerar “O pecado que não será perdoado”.
Agostinho define-o como obstinada perversidade que descrê do perdão e continua até à morte — o que dificilmente se ajusta à palavra de Cristo: “Não será perdoado neste mundo. . . ”. Pois» ou essas palavras de Jesus seriam vãs ou se trata de algo a cargo desse mundo. Se a definição de Agostinho é correta, ò pecado não é cometido, a menos que persista até à morte.
Dizem outros que o pecado contra o Espírito Santo consiste em invejar a graça conferida a um irmão. Calvino disse que não sabe em que isso se fundamenta .
A definição verdadeira, segundo Calvino é: Pecado contra o Espírito Santo é daquele que, não podendo alegar ignorância, deliberadamente resiste (o Espírito), apenas pelo prazer de resistir.
Jesus diz em Mateus 12.31, “Todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada”. Como pode alguém insultar o Filho e, 3 0 mesmo tempo, não ofender o Espírito? Aquele que na ignorância atacar a verdade de Deus desconhecida e ainda assim estiver disposto, de tal modo que não deseje distinguir a verdade de Deus quando Ele a manifesta, ou pronuncie uma palavra contra aquele que sabe ser o Ungido do Senhor, peca contra o Pai e o Filho, peca contra o Espírito Santo, por tentar contra a iluminação, que é obra desse Espírito. Exemplos disso são alguns dos iudeus em Atos 6.10; os fariseus em Mateus 9 3,4 e12.24.
Espírito de blasfêmia é do homem que audaciosamente e por determinação insulta o nome divino.
São Paulo dizia: Obtive misericórdia, porque eu o fiz na ignorância.
Não há perdão quando a incredulidade, está aliada ao conhecimento. Não é estranho que o Senhor seja implacável com aqueles a quem João declara, em sua epistola, que sairam do nosso meio porque não eram nossos, porque, se tivessem Sido nossos, teriam permanecido conosco. Pode parecer às vezes em desacordo com a misericórdia divina que Deus negue perdão a quem leve perante Ele os seus pecados. Lembre-se, no entanto, que em nenhum lugar se diz que Deus negue perdão ao arrependido que se volte para Ele, arrependido verdadeiramente. O apóstolo declara que Deus não se contenta com o arrependimento fingido. Às vezes, o hipócrita é poupado por algum tempo, não por causa dele mesmo, mas para exemplo público. Deus às vezes estendeu a sua mão aos Israelitas, livrando-os de calamidade, embora o seu clamor fosse fingido, pois voltavam logo depois ao seu caminho anterior. Deus o fez para levá-los ao arrependimento ou deixá-los sem desculpa. Pode acontecer que Deus trate com extrema severidade o hipócrita e dobre o seu castigo, para mostrar como odeia a hipocrisia, mas mostra-se inclinado a perdoar, par ra que os piedosos sejam estimulados a emendar suas vidas.
JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ NOME E REALIDADE
Cristo, pela bondade de Deus, nos é dado eapreendido pela fé, através da qual obtemos dois benefícios especiais, primeiro a justificação — Deus se torna Pai, complacente ao invés de juiz; reconciliados que somos pela justiça de Cristo. Segundo, regeneração e pureza de vida já anteriormente discutida.
Justificação. O homem se diz justificado à vistade Deus quando, no julgamento divino, é tido ou aceito como justo por causa dessa justificação — desde que a iniqüidade é abominável a Deus, não pode o pecador achar graça diante dele enquanto for considerado pecador. Justificado, ele não é mais considerado pecador, mas justo, livre, portanto, diante do tribunal
de Deus, onde todo pecador é condenado. Ele é assim, digamos, retirado do catálogo dos pecadores.
Justificação pelas obras. A justificação pelas obras significa que pela perfeição da sua vida o homem satisfaz plenamente a justiça divina.
Justificação pela fé. Nesse caso, justificação pelas obras é excluída e o pecador se agarra pela fé à justiça de Cristo. Daí a justificação é aceitação do favor divino como se nós fôssemos justos — é o perdão dos pecados pelos méritos de Cristo. Gálatas 3.8; Romanos 3.26; Romanos 8.33,34. Todas essas passagens se referem à justificação pela fé.
Que é que a justificação oferece? Aceitação, Efé- sios 1.5,6; Imputação — Romanos 4.6-8, pela obediência de Cristo, Romanos 5:19 “Pela desobediência de mu só homem muitos se tornaram pecadores, assim por meio da obediência de um só muitos se tornaram justos”.
Combate Calvino o erro dos que dizem que o homem é justificado pela fé, tanto quanto pelas obras. Combate também aqueles que, como Lombardo, consideram que o Espírito Santo nos dirige às boas obras; a morte de Cristo nos concita ao amor e, por meio dele, o pecado é extinguido; o diabo é preso e não pode buscar a nossa condenação. Pensa ele que o principal ofício da graça divina é dirigir-nos pelo Espírito Santo às boas obras. Combate também Agostinho, que confunde regeneração com santificação. As passagens de Romanos 5.6,9 e Gálatas 3.11, Hebreus 2.8 atestam que a justificação é pela fé somente.
Erram, pois, aqueles que afirmam que somos justificados, mas não só pela fé. O axioma que serve de ponto de partida é: a ira de Deus repousa sobre todo homem que continua no pecado e a remissão do pecador é que o liberta — Romanos 5.8-10; 2 Coríntios 5.19-21. É, pois, pela intervenção de Cristo, pela sua justiça, que obtemos a justificação diante de Deus. A obediência de Cristo nos é imputada como se fosse nossa.
Contemplando o julgamento de Deus para se con
vencer da doutrina da justificação gratuita. Em atitude de temor e humildade é que os padrões da justiça divina são contemplados por nós e não os pobres padrões humanos. É em humildade que buscamos asilo na graça de Deus.
Agostinho disse que todo homem, gemendo sob a carga da sua carne corruptível, enfermidades dessa vida, busca JesuS, o único mediador, o justo. Diz ainda Agostinho: “Esquecendo os nossos méritos, buscamos a graça das dádivas de Cristo, porque, se procurássemos méritos em nós, não obteríamos a graça de Cristo”.
Duas coisas devem ser observadas na justificação gratuita: Não é obtida pela dádiva da regeneração que é sempre imperfeita no estado presente. Segundo, devemos recorrer ao remédio — a única esperança do crente, com respeito a herança dos céus — sendo enxertados no corpo de Cristo e, assim, gratuitamente justificados.
Em que sentido a justificação é progressiva? Dividimos os homens em quatro classes, conforme a justiça durante o curso da vida. Primeiro: Os idólatras, que não conhecem a Deus, vazios de justiça, cheioh de injustiça, portanto à vista de Deus inteiramente desgraçados. Segunda e terceira classes de homens compreendendo os hipócritas e os cristãos somente de nome, os quais pelas suas ações merecem ser condenados. Os hipócritas ocultam a impureza dos seus corações com fingimento. A outra classe, os nominais, confessam a Deus com seus lábios, mas vivem vidas impuras.
Os crentes não têm confiança nas obras para atribuir-lhes qualquer mérito, desde que eles as consideram como dádivas divinas nas quais reconhecem e discernem os sinais da sua vocação e eleição. Tal confiança não deprecia a livre justiça de Cristo, desde que sem ela não pode subsistir.
Agostinho diz: “Eu não digo ao Senhor — não desprezes as obras das minhas mãos; eu tenho procurado o Senhor com minhas mãos e não tenho sido de
cepcionado, mas eu não atribuo valor às obras das minhas mãos, porque eu temo que, quando tu as examinares, achrrás mais falta do que mérito. Isso somente eu digo, isso eu peço, isso eu desejo, não desprezes as obras das minhas mãos. Vê em mim tuas obras e não as minhas. Se vês as minhas, tu me condenas, se vês as tuas, tu me coroas, qualquer boa obra que eu tenha vem de ti”. Agostinho du duas razões para não se aventurar em gloriar-se das suas próprias obras diante de Deus: Primeiro — porque ele não tem boas obras e, ainda mais, ele não vê nelas nada de seu. Segundo — porque essas obras são superadas por uma multidão de pecados. De modo que, a consciência deriva delas mais medo e alarme do que segurança. Só há uma maneira pela qual ele deseja que Deus para elas olhe, é para que possa ver a graça da sua vocação e a obra perfeita que Ele já começou.
A causa eficiente da nossa salvação se encontra no amor de Deus, o Pai; a causa material na obediência do Filho; a causa instrumental na iluminação do espírito, isto é, na fé; e a causa final no louvor da bondade divina. Isso, pois, não há nada que impeça o Senhor de envolver as obras como causas inferiores. Mas, como? Desta maneira aqueles a quem, na sua misericórdia, Ele destinou para a herança da vida eterna, na sua administração ordinária lhes dá entrada na possessão dela, por meio de boas obras. Por essa razão, muitas vezes Ele far a vida eterna conseqüência das obras, não porque seja atribuída a elas, mas porque aqueles a quem Ele elegeu justifica, para que possam afinal glorificar. Romanos 8.30: “Aos que predestinou, a estes também chamou; aos que chamou, a estes também justificou, aos que justificou, a estes também glorificou”. Ele faz a graça primeira ser uma espécie de causa, porque é um tipo de degrau para o que vai seguir. Mas quando a verdadeira causa deve ser designada, Ele nos concita a não buscar refúgio nas obras, mas manter o nosso densamento inteiramente fixo na misericórdia de Deus, “porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna” (Rm 6.23).
O Senhor, acrescentando graça a graça, toma oca- isão da primeira para adicionar a subseqüente, de modo a não omitir nenhum meio de enriquecer seus servos; ainda de acordo com a sua liberalidade, Ele deseja que olhemos sempre para a eleição gratuita como a sua fonte e começo, pois, não obstante, Ele aprecia as dádivas que diariamente nos concede, desde que elas procedem daquela fonte; é ainda nosso dever fir- marmo-nos na aceitação gratuita, único apoio das nossas almas, e, assim, relacionar a dádiva do espírito que Ele posteriormente nos concedeu como a causa primária dessas bênçãos.
COMO OBTER A GRAÇA DE CRISTO
Enquanto estivermos sem Cristo, separados dEle, nenhum benefício nos advirá das coisas que Ele sofreu e fez para a humanidade. A fim de nos comunicar as bênçãos que recebeu do Pai, Ele tem de se tornar possessão nossa e habitar em nós. Por isso mesmo, Ele se chama Cabeça, Primogênito entre muitos irmãos.
Por outro lado, diz-se a nosso respeito que somos enxertados nEle, revestidos dEle. Nada do que Ele possui, no entanto, será nosso até que nos tomemos um com Ele. Nem todos, indiscriminadamente, aceitam a oferta de Cristo que os evangelhos fazem.
Embora obtenhamos os benefícios que provêm de Cristo, pela fé, convém inquirir com respeito à secreta eficácia do Espírito, pela qual desfrutamos de Cristo
em todas as suas bênçãos.Cristo veio por água e por sangue, conforme a seu
respeito testifica o Espírito, para que não percamos os benefícios da salvação que nos comprou.
Assim como se diz que são três os que testificam nos céus — o Pai, a Palavra e o Espírito — assim também são três que testificam na terra — a água, o sna- gue e o Espírito. Em 1 Pedro 1.2 nos diz ele: “. . . em santificação do Espírito, para obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo”.
Com essas palavras lembra-nos que o derramamento do sangue sagrado não nos foi em vão — nessas a lmas devem ser levadas nele pela secreta purificação do Santo Espírito, por cuja razão Paulo, falando da purificação ,diz: “Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, fostes santificados, e fostes justificados, em nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus” (1 Coríntios 6.11).
Em resumo, o Espírito Santo é o elo pelo qual Cristo, eficazmente, nos une a Ele mesmo. Lembremo-nos de que Cristo veio, possuído do Espírito de maneira peculiar, para nos separar do mundo e unir-nos na esperança da herança eterna.
Por isso, o Espírito é chamado Espírito de santificação, pcrqde Ele nos aviva e nos estimula; não pela energia comum dos homens ou dos outros animais, mas porque Ele é a semente e a raiz da vida espiritual em nós.
Uma das mais altas apreciações dadas pelos profetas ao reino de Cristo se constitui na proclamação de que Ele derramará, com a mais rica abundância, o seu espírito sobre nós. Em Joel 2.28 assim encontramos: “Acontecerá que derramarei o meu espírito sobre toda a carne. . Embora o profeta pareça limitar a dádiva do Espírito ao dom da profecia, declara em figura que Deus, pela iluminação do seu espírito, pro- ver-se-á com discípulos, os quais antes ignoravam completamente a doutrina dos céus. E é por causa do Seu Fiuho que Deus concede o seu espírito a nós, e o tem colocado em toda a sua plenitude aos filhos, para
que sejam dispenseiros da Sua liberalidade; assim ele é chamado uma vez espírito do Pai, e outra vez espírito do Filho. Romanos 8.9: “Vós, porém, não estais na carne, mas no espírito, se de fato o espírito de Deus habita em. vós. É, se alguém não tem o espírito de Cristo, esse tal não é dEle. Por isso mesmo, Ele nos encoraja a aguardar a nossa completa renovação: “Se o espírito daquele que ressuscitou dos mortos a Jesus habita em nós, esse mesmo que ressuscitou Jesus Cristo
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pos mortais, por meio do Seu Espírito que em <?\ habita (Rm 8.11). ’ (2-^
Não há a menor inconsistência em atribuir /áS^ggp rias dessas dádivas ao Pai, desde que Ele é o<&u|ó£7de- las e as conferiu a Cristo, com quem pe\\.5jVuarda para dar ao Seu povo. Efésios 4.7: “E) aí^ístçàrToi concedida a cada um de nós, segunda do domde Cristo”. O Espírito, pois, é_/^Mmaáo<: Espírito de Cristo, não somente porque eJjefe@Lxmido ao Verbo e ao Pai, mas também em^á^ãôuro seu ofício de Mediador, pois, se Ele nãó^çss&vna virtude do espírito, a sua vinda a nós teria sidôveiii vão. Por isso, Ele é chamado o último Adao espírito vivificador, mandado dos céus. 1 Córífítitiã_ í5.45: “Pois assim está escrito: O primeiro AdãXxN^feito alma vivente. O último Adão, porém, vivificante”.
diz que o amor de Deus é derramado ar ara^o^corações pelo Espírito Santo que nos foi dádV^CKm 5.5).
w A V\j0onvém ainda observar os títulos que são dados VatK Espírito nas Escrituras. Primeiro, Espírito de ado
ção, porque ele testemunha a nós o favor gratuito de Deus e Pai que nos abraça no Seu Filho amado, tornando-se nosso Pai; dando-nos ousadia de acesso ao Pai para que clamemos: Aba, Pai.
Daí dizer que ele nos selou no espírito e nos deu o penhor do espírito no nosso coração.
Segundo, o Espírito que se chama Vida por causa da justiça. Como por secreta irrigação, Ele nos faz produzir frutos, e é também descrito como água —
Isaías assim diz: “Vós que tendes sede, vinde às águas”, ".. . Eu derramarei água sobre o sedento”.
Correspondem essas palavras ao ensino de Jesus: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba”.
Como aqueles que são aspergidos com o Espírito são revigorados, as palavras óleo e unção a ele se referem.
Terceiro, por outro lado, o Espírito recebe o nome de fogo, uma vez que, empregado pra subjugar e destruir os vícios da nossa concupiscência, inflama-nos com o amor de Deus.
Ainda é chamado a fonte de onde jorram sobre nós todas as riquezas celestiais; ou a mão pela qual Deus exerce o seu poder e não nos deixa agir por nós mesmos.
No entanto, o espírito de nada serve, senão àqueles aos quais Ele ligou ao cabeça e primogênito entre muitos irmãos, revestidos dele.
Com respeito a nós, Ele não nos veio em vão.A nossa união com Ele se refere como sagrado ma
trimônio, pelo qual nos tornamos osso dos seus ossos, carne da sua carne, um com Ele. Efésios 5.30: “Porque somos membros do seu corpo”.
Como, porém, a fé é a sua principal operação, todas as passagens que se referem à sua ação e ao seu poder, também se referem em grande medida à fé.
Pois, diz-se que os que crêem têm o privilégio de ser chamados filhos de Deus — “os que crêem no seu nome; os quais não são nascidos do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus”.
Em Mateus 16.17, o Senhor diz a Pedro: “A carne e o sangue não te revelaram, mas meu Pai que está nos céus”.
São Paulo, em Efésios 1.13, afirma que somos selados pelo espírito da promessa.
Ainda em 2 Tessalonicenses declara: “Por isso que Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela santificação do espírito e fé da verdade”.
E, mais claramente, explica: “Sabemos que nós
habitamos nele e Ele em nós, porque nos tem dado o seu espírito.
E para fazer seus discípulos capazes com a sabedoria celestial, Cristo prometeu-lhes o espírito de verdade que o mundo não pode receber, João 14.17.
Paulo altamente proclama o ministério do espírito em 1 Coríntios 3.6.
Em resumo, a salvação é perfeita na pessoa de Cristo.
Para nos fazer participantes dela, Ele nos batizou com o Santo Espírito e com fogo — Lucas 3.16; iluminando-nos na fé de seu evangelho, regenerando-nos, fazendo-nos novas criaturas. Assim, limpos de toda a poluição, Ele nos consagra para templos do Senhor.
Verifica-se, desse modo, a solidez dessa doutrina do Santo Espírito, como espírito da graça que Calvino tão firmemente alicerça nas Escrituras e com clareza discerne através da interpretação serena, judiciosa, e cautelosa do texto; conjugando, em perfeita harmonia, todas as partes, de modo a oferecer até mesmo aos menos instruídos uma compreensão razoável dessa obra eficaz e misteriosa, que o Espírito de Deus realiza na operação dos dons de Cristo Jesus em favor dos crentes verdadeiros.
Como devia ser enfática a exposição da doutrina da livre graça de Deus num ambiente em que a busca dessa graça se tinha tomado numa comercialização ri' dícula e profana!
Lutero, Calvino e outros reformadores procuraram dar ênfase a esta verdade da livre graça de Deus,
FÉ - DEFINIÇÃO E PROPRIEDADES PECULIARES
Relembra Calvino considerações anteriores sobre a condição miserável do homem caído e a solução para essa condição irremediável, até que Cristo aparece.
Deus, misericordiosamente, houve por bem socorrer-nos.
As bênçãos de Cristo, no entanto, só podem ser alcançadas pela fé, que tem toda a sua firmeza em Cristo Jesus e Deus.
Combate Calvino a chamada fé implícita, doutrina que obscurece a pessoa de Cristo, quase anulando a fé verdadeira com esta fé inventada, para engano do povo e, conseqüentemente, a sua perdição, destruindo a fé e sepultando-a.
Essa fé implícita é ditada pela igreja, à qual igreja deixamos a prerrogativa de tudo impor e tudo deter
minar, no que diz respeito à salvação.A nossa entrada no reino dos céus nos é concedi
da quando reconhecemos Deus como nosso Pai, benevolente, pela reconciliação que Cristo fez por nós e nos é oferecida para justificação e vida.
Quando o apóstolo nos diz que com o coração se crê para a justiça e com a boca se faz confissão para a salvação, está nos afirmando que não é bastante crer, implicitamente, sem entender ou inquirir (Romanos 10).
O que se exige é um reconhecimento explícito da bondade divida da qual provém a nossa justiça.
Reconhece Calvino que há muitas coisas envolvidas em mistério e para nós assim ficarão até nos despirmos da nossa carne, na presença de Deus.
Nesse caso, o melhor é suspender o nosso julgamento e manter a unidade da Igreja.
Apelidar estas coisas de fé é exaltar a ignorância» temperando-a com humildade, o que é absurdo.
Fé consiste no conhecimento de Deus em Cristo Jesus, João 17.3 “E a vida eterna é essa: Que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”.
Fé não é reverência à Igreja.Exemplo dessa fé implícita se encontra nos discí
pulos antes que fossem plenamente iluminados, embora cressem em Jesus.
Ele lhes falara da sua ressurreição, mas não puderam crer na palavra das mulheres que foram ao sepulcro e diziam que Ele ressuscitou, o que parecia um sonho das mulheres. As próprias mulheres que prepararam o aroma para ungir o corpo do Senhor não esperavam a ressurreição, embora dessem crédito à palavra de Jesus. A ignorância que ainda envolvia a sua fé em trevas as levou a estupefação.
Elas tinham uma fé verdadeira, implícita, no verdadeiro Mestre, mas falharam naquela questão, embora o aceitassem como Salvador e Cristo.
Este é um exemplo de fé misturado com incredu- ildade. Por outro lado, fé implícita pode ser uma preparação para a fé verdadeira.
É o caso do homem que creu na palavra de Jesus, que lhe dizia que seu filtío estava curado e voltou para casa. Diz o evangelista, “ ...tendo ele cri- do. . (Jo 4.50).
Há uma relação inseparável entre a fé e a Palavra, como raio de luz e o sol.
Isaías diz “Ouvi, e a vossa alma viverá” Isaías 55.3.
E João indica a mesma fonte, quando declara que o que está escrito foi “para que creiais” (Jo 20.31).
Por essa razão» as palavras discípulo e crente são pelos evangelistas freqüentemente tratadas como sinô- inmo; em Atos 9.36, uma mulher é chamada de discípula.
Paulo recomenda aos Filipenses a obediência da fé, Filipenses 2.17.
Não é suficiente crer que Deus é verdadeiro e não pode mentir ou enganar, a menos que sejamos persuadidos firmemente de que toda a palavra que procede da sua boca é sagrada e inviolável verdade.
Calvino julga bom dar uma definição de fé e, assim, diz: “Fé é o firme e seguro conhecimento do favor divino para conosco, fundado na verdade de uma promessa gratuita, em Cristo, e revelada a nossa mente, selada em nosso coração pelo Santo Espírito.
Refuta Calvino a distinção que fazem os doutores entre fé formada e não formada, pela qual imaginam que o indivíduo, mesmo sem o temor de Deus no coração, sem nenhum senso de piedade, possa crer tudo que é necessário para a salvação; como se o Espírito Santo não fosse testemunha da nossa adoção.
O apóstolo São Paulo diz: “Com o coração se crê para a justiça e com a boca se faz confissão para a salvação” (Rm 10.10). Ainda em Romanos 1.5 refere-se à “obediência da fé”.
Desde que a fé recebe lCristo como Ele nos é oferecido pelo Pai, e Ele não nos é oferecido apenas para justificação, para perdão de^ecados e paz, mas também para santificação, como rente de água da vida, é certo que ninguém pode conhecê-lo de modo real sem receber a santificação do espírito.
Fé consiste em conhecer a Cristo e Cristo não pode ser conhecido sem a santificação do espírito.
Portanto, fé não pode existir separada de santa afeição.
Quando o apóstolo São Paulo fala de fé sem amor, ele nos mostra a nulidade dessa fé. Embora a fé verdadeira seja a dos eleitos de Deus observa-se que f© é às vezes atribuída a alguns dos reprovados. Explica-se que eles possuem uma fé temporária, mas não rceeberam o verdadeiro poder espiritual da graça e verdadeira luz da fé.
O Senhor, para não deixá-los sem escusas, insti- lou na sua mente tal senso de sua bondade, que pode ser sentido sem o espírito de adoção.
Nos eleitos somente Ele planta a raiz viva da fé para que perseverem até o fim.
A vontade de Deus é imutável, a sua verdade é sempre consistente consigo mesma; de modo que, embora fraca e tênue, a fé dos eleitos dada pelo espírito de Deus, é para eles como penhor e selo da sua adoção.
Saul, por algum tempo, manteve uma disposição afetiva para com Deus, atraído pelo cuidado paternal de Deus; como, porém, o reprovado não tem convicção arraigada do amor paternal de Deus, assim não possui o verdadeiro amor de filho e é levado por interesse mercenário.
Paulo declara que a fé é um privilégio peculiar dos eleitos, de modo que muitos, não estando enraizados permanentemente, caíram — Tt 1.1.
Afirma o Senhor: “Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada” (Mt 15.13).
Deve se notar que, às vezes, a palavra fé é utilizada para significar doutrina, como em Colossenses 1.23.
Em outros lugares, fé se aplica a um objeto particular, como em Mateus 9.2.
A fé ó certeza de algo futuro, São Paulo diz em 2 Coríntios 5.6,7 “Temos, portanto, sempre bom ânimo, sabendo que, enquanto no corpo, estamos ausei
tes do Senhor; visto que andamos por fé e não pelo que vemos”.
Às vezes, o termo fé é utilizado no sentido de confiança, Efésios 3. 12: “Pelo que temos ousadia e acesso com confiança, mediante a fé nele”.
Embora digamos que a fé é segurança, não quer isso dizer que essa fé não possa ser afetada por dú- ivdas, ou assaltada por ansiedades; pelo contrário, o cristão terá sempre lutas com a sua própria fé.
Longe está de possuir uma consciência plácida incessantemente imperturbável. No entanto, qualquer que seja a luta, o crente não abandona a confiança, firme na misericórdia de Deus.
Em meio às comoções, a fé sustenta o seu coração, como a palmeira que suporta o peso que sobre ela repousa e se levanta acima dele. Aquele que luta com as suas próprias enfermidades tem na fé recursos e é muitas vezes vitorioso em grande medida. Salmo 27.14 — “Espera pelo Senhor, tem bom ânimo, e fortifique-se o teu coração; espera, pois, no Senhor”. Isaías 7.4 — “Acautela-te e aquieta-se; não temas, nem se desanime o teu coração.. . ”
Tão logo a fé é instilada em nossa mente, começamos a ver a face de Deus serena e propícia a nós — longe, mas, sem dúvida distintamente — a assegurar- nos de que nela não há ilusão.
A mente, inicialmente iluminada pelo conhecimento de Deus, está ainda envolvida em muita ignorância — ignorância que, contudo, será gradualmente removida.
Não obstante os assaltos a. que está sujeita, a fé se arma e se fortifica na Palavra de tíeiis.
Quando a tentação sugere que Deus é inimigo, porque nos aflige, a fé responde pelo espírito que aflição é um ato de misericórdia e o seu castigo provém mais do amor do que da ira.
Jó declara: “Ainda que Ele me mate, eu confiarei nele” (Jó 13.15).
Não se diz que o crente é vitorioso em alguns combates ou em um só, mas que é vitorioso sobre to
do o mundo. João 5.4 — “Essa é a vitória que vence o mundo, a nossa fé”.
Embora seja assaltado em milhares de vezes, o cristão vence o mundo pela fé.
Quando Deus nos ordena a operar a nossa própria salvação em temor e tremor, está exigindo que nos acostumemos a pensar da nossa força com humildade e confiar na força do Senhor.
Quando lemos que o temor do Senhor que é atribuído a todos os santos, em uma passagem é o princípio da sabedoria e, em outra passagem, que é Ele mesmo a sabedoria, temes duas coisas: Deus merece a nossa reverência como Pai e Senhor. Assim aquele que deseja verdadeiramente cultuá-lo procede como filho obediente e como servo ao mesmo tempo. “O filho honra o pai, e o servo a seu senhor”. Observe-se que em João 4.18, o apóstolo afirma que onde há temor não há amor, todavia, não se refere ao temor do crente, muito diferente do temor do incrédulo.
A fé não é decisiva até que atinja a livre promessa de Cristo, pela qual nos reconcilia com Deus.
Mais uma vez convém dizer que a fé precisa da Palavra, como o fruto de uma árvore depende das raízes. Salmo 9.10 e Salmo 119.67, diz o salmista: “Espero na tua Palavra”.
A fé, às vezes, vai além do limite da palavra: é o caso de Rebeca, que aguarda o cumprimento da palavra a respeito do seu filho Jacó e busca-lhe a bênção por Aieio de um estratagema iníquo e reprovável, mas não vazio de fé.
A agência do Espírito Santo é a única força que nos assiste, pois o nosso discernimento é defeituoso e prejudicado — Romanos 11.33-36 e 1 Coríntios 2.14.
Em resumo: quando Cristo produz em nós a fé pela agência do seu espírito, ao mesmo tempo nos enxerta no seu corpo, para que sejamos participantes das suas bênçãos.
O espírito sela em nossos corações a promessa e a certeza do que imprimiu em nossa mente — Efésios 1.13,14; 2 Coríntios 1.22: “Porque também nos selou e nos deu o penhor do Espírito em nossos corações”
Combate Calvino a idéia daqueles que alegam ser presunção e vaidade nossa dizer que temos um conhe- icmento indubitável de Deus. Responde que, quando São Paulo afirma que não recebemos o espírito do mundo, mas o espírito que é de Deus, diz que é para que saibamos que são concedidas gratuitamente a nós por Deus — Romanos 8.14-17. Não se pode duvidar disso sem insultar o espírito de Deus. Nós sabemos que Ele habita em nós pelo espírito que nos foi dado. Àquele que afirma que a certeza da perseverança da fé permanece em suspenso, dizemos que a fé não se limita ao tempo; os crentes, iluminados pelo Espírito, desfrutam da perspectiva da vida celeste pela fé.
Fé ê a segura certeza e possessão das coisas prometidas a nós por Deus.
Onde quer que exista a fé, deve haver esperança da vida eterna, como companheira inseparável.
A fé crê que Deus é verdadeiro; a esperança aguarda que em tempo devido Ele manifestará a sua verdade.
A fé crê que Ele é Pai; a esperança aguarda que Ele aja sempre como Pai para conosco. A fé crê que a vida eterna nos foi dada; a esperança aguarda que um dia ela nos seja revelada.
A fé é o alicerce no qual a esperança repousa.A esperança alimenta e sustenta a fé, por isso,
São Paulo afirma que nós somos salvos pela esperança— Romanos 8.24; porque a esperança silenciosamente aguarda pelo Senhor e segura a fé contra a pressa e a precipitação demasiada.
A esperança afirma, quando ela vacila em relabão às promessas de Deus ou começa a duvidar da verdaa^_^
Estende a sua vista para o alvo final para evitar que abandone a carreira no meio ou logo à saída.
O ofício da esperança é realizar aquilo que o profeta recomenda: “Embora Ele retarde espera” (Hc 2.3).
Aos que clamam perguntando pela sua vinda, São Pedro responde em sua segunda carta, capítulo 3, versículo 4.
Às vezes, a afinidade da esperança e da fé faz com
que as Escrituras usem o termo fé quando se trata de esperança.
Pois, quando Pedro diz que nós somos guardados pelo poder de Deus através da fé até a salvação pres- ets a ser revelada, 1 Pedro 1.5, atribui à fé o que pertence mais à esperança.
Às vezes, elas vêm juntas na mesma epístola: “Que a vossa fé e esperança estejam em Deus” (1 Pe 1 . 21 ) .
Paulo, ainda, na epístola de Filipenses, fala da espe- amça e diz expectação (1.20).
O assunto poderá ser bem entendido do capítulo 11 da Epístola aos Hebreus.
Diz o apóstolo São Paulo em Gálatas 5.5: . .quenós pelo Espírito esperamos a justiça que vem pela fé".
Confiemos, pois, naquele que diz: “Seja feito segundo a vossa fé" (Mt 9.28) .
A TRINDADE
Deve Calvino tratar aqui de uma doutrina que lhe trouxe muitas preocupações, pois foi motivo de azedas polêmicas e a respeito da qual chegou mesmo a ser taxado de herege por Sebastião Castélio e por Servetus, que julgavam o tratamento do assunto como aparecia nas Institutas uma doutrina errônea, que os reformadores não expurgaram de sua corrupção anterior— a Doutrina da Trindade.
Inicialmente, Calvino fala nos ídolos, pois anteriormente, ao apresentar a doutrina do Deus verdadeiro, referiu-se aos falsos deuses, vindicando a exclusividade do culto que lhe pertence.
Recorda o ensino das Escrituras com respeito à unidade de Deus, unidade que não é apenas de nome, mas também de essência.
Recrimina a distinção que tem sido feita entre Dulia e Latria — Dulia, que se refere aos santos, e La- tria, que se oferece somente a Deus. A palavra Dulia significa serviço e Latria, culto e adoração.
Para Calvino, a distinção é capciosa e infeliz, porque servir acaba sendo mais elevado do que cultuar. Nós não servimos a quem não rendemos reverência.
Embora alguns padres antigos tivessem feito essa distinção, observa Calvino a sua impropriedade, porque, segundo ele, dá-se mais aos santos do que a Deus.
Mostra que Paulo, escrevendo aos gálatas, lembra-lhes que antes que viessem ao conhecimento de Deus — “eles serviam aos que por natureza não eram deuses” (G1 4.8). Porque Paulo usa Dulia, e não Latria, para a superstição praticada pelos gálatas, é esta escusável? Paulo condena a essa superstição, que lhe dá o nome de Dulia, tanto quanto o que chama Latria.
 resposta de Cristo a Satanás, repelindo a sua proposta de adoração, é: “Está escrito: Ao Senhor teu Deus adorará e só a Ele servirás” (Mt 8.10). Não se trata de Latria, pois que tudo que Satanás pedia era obediência,
De igual modo, João, quando foi repreendido pelo anjo ao cair de joelhos, Apocalipse 19.10; 22.8.
Qualquer que, exercendo ato de piedade, dirigir-se a algo que não seja Deus, somente pratica um ato de natureza sacrílega.
A inclinação do homem para esse ato o leva a praticar o culto a heróis do passado e a outros espíritos, contra o ensino da Palavra de Deus.
TrindadeAs Escrituras nos ensinam, com respeito à essên
cia de Deus, que é imensa, espiritual, repelindo, assim, a idolatria e a tola sabedoria que se manifesta entre maniqueistas e antropomorfistas.
A imensidade de Deus deve-nos impedir de tentar medí-lo pelos nossos sentidos. A sua natureza espiri tural proibe-nos especulações carnais e terrenas a seu- respeito,
Embora se fale do céu como lugar de habitação de Deus, como Deus é incompreensível, Ele enche a terra e todo o mundo.
Erram, pois os maniqueistas, que adotam dois princípios iniciais e fazem o demônio ser igual a Deus, o que restringe a sua unidade e destrói a sua imensidade. Por outro lado, erram os antropomorfistas que atribuem um corpo a Deus porque as Escrituras falam da boca, dos ouvidos, dos olhos, das mãos e dos pés de Deus, expressões que somente são usadas para acomodar o conhecimento de Deus à nossa limitação.
A fim de nos oferecer um conhecimento mais íntimo de sua natureza, é que Deus proclama a sua unidade distintamente, colocando diante de nós a sua existência em três pessoas.
Cuidadosamente, Calvino estabelece a diferença entre essência e subsistência.
Quando o apóstolo afirma que o filho de Deus é a expressa imagem da sua pessoa, Hebreus 1.3, evidentemente atribui ao Pai alguma subsistência em que Ele difere do Pilho. A essência de Deus é simples, indivisível, contida inteira nele mesmo, em absoluta perfeição, sem partição ou diminuição.
Quando se fala de pessoa (palavra a que muitos objetam), Calvino afirma que não se trata de um Deus tríplice ou que essa essência simples seja dividida pelas três pessoas.
A palavra pessoa, latina — persona, corresponde à palavra grega hipóstasis. Daí o uso de subsistência, que parece melhor para distinguir cada um.
Cada uma das pessoas da Trindade é Deus, perfeita, mas não há pluralidade de Deus., A alegação de alguns de que a palavra pessoa é estranha às Escrituras, Calvino responde que, se por “estranho” se quer dizer algo inventado, sem cuidado e depois defendido supersticiosamente — algo que tende para a dissenção e não para edificação, algo que é usado fora de qualquer ligação do assunto ou sem qualquer benefício, algo que ofende os ouvidos pios pela sua grosseria e nos desvia da simplicidade da palavra de Deus, Calvino de todo o coração concorda com a alegação.
Todavia, se por “estranho” se entende aquilo que não está nas Escrituras com todas as sílabas, e só por isso; então, toda a interpretação bíblica torna-se difícil, quando se usam palavras que não estão nas Escrituras.
Temos que usar meios para expressar o pensamento das Escrituras com fidelidade.
Combate Arius. que confessava que Cristo era Deus e Filho de Deus, mas, porque não podia ver isso com clareza nas passagens das Escrituras, afirmava que Cristo tivera um princípio, como outras criaturas.
Para evitar tal erro, a Igreja antiga declarou que Cristo era eterno e consubstanciai com o Pai.
Posteriormente, Sabelius, que rejeitara as palavras Paí, Filho, Espírito Santo, como significado de pessoas» declarava que era apenas atributo de Deus.
Daí a necesidade que tiveram os doutores da Igreja de afirmar que a Trindade é de pessoas subsistindo em um só Deus, que é um mesmo na sua unidade.
Daí Calvino declarar: “Por pessoa quero dizer a subsistência na divina essência; uma subsistência que, relacionada com as outras duas, delas se distingue por propriedades incomunicáveis.
Por subsistência quero dizer algo mais do que substância. Onde quer que o Pai é comparado com o Filho, as propriedades particulares de cada um os distinguem um do outro.
Com respeito ao Filho, chamado Palavra ou Verbo, Pedro afirma que os profetas falavam pelo espírito de Cristo, Pedro 1.11, tão bem como os apóstolos, os quais eram todos ministros da doutrina dos céus.
Como, porém, Cristo não era ainda manifesto, necessariamente entendemos que a Palavra foi gerada por Deus, antes de todos os tempos. Claramente indica Moisés isso, quando na narrativa da criação coloca a Palavra como intermediário.
Dir-se-ía que a Palavra foi usada aqui no sentido de ordem ou comando; mas os apóstolos afirmam que os mundos foram criados pela Palavra, que Ele sustenta tudo pela Palavra de seu poder, Hebreus 1.2.
Palavra aqui é usada como comando do Filho, que é Ele mesmo a Palavra eterna e essencial do Pai.
Jesus afirma em João 5.17, . .meu Pai trabalhaaté agora e eu trabalho também”.
Como toda a revelação dos céus é designada com razão pelo título Palavra de Deus, assim o lugar mais elevado se reserva à palavra substancial, fonte de toda a inspiração, que não sofre variação alguma e permanece para sempre, um com Deus e Deus.
Alguns, porém, aceitam a divindade de Jesus, mas negam a sua eternidade, alegando que a Palavra só vem à existência na criação, é isso absurdo, pois seria admitir mudança na essência de Deus.
Tiago diz, capítulo 1, versículo 17, que em Deus não há sombra de variação alguma.
Quando Deus abriu a sua boca, a energia da Palavra se fez sentir, porque ela já existia muito antes.
A palavra de Jesus mesmo diz, no Evangelho de São João, capítulo 17, versículo 5, “Glorifica-me agora, ó Pai, com aquela glória que eu tinha contigo, antes da fundação do mundo”.
João, o evangelista, declara: “No princípio era o Verbo. . . e o Verbo era Deus”.
Daí concluímos que o Verbo foi eternamente gerado por Deus e com ele existiu desde a eternidade”.
Passa Calvino a tratar das profecias do Velho Testamento para mostrar a judeus a divindade de Cristo, Isaíias 11.6; Jeremias 23.6; Isaías 4.8; Ezequiel 48.35, indicando, também que a palavra Jeová muitas vezes usada no Velho Testamento quando Jeová aparece na forma de anjo do Senhor, é nada mais do que a manifestação de Cristo antes da sua encarnação.
No Novo Testamento são inúmeras as passagens nas quais os apóstolos falam do Mediador encarnado.
Paulo em Filipenses 2.6; 1 Coríntios 8.5-6; João 20.28. A divindade de Cristo também se comprova pelos seus milagres e por afirmações do próprio Cristo — “Se credes em mim, credes também em Deus” (Jo 14.1).
As mesmas provas oferecidas para provar a divin
dade do espírito são usadas para Cristo; todos os atributos peculiares à divindade são atribuídos a ele, 1 Coríntios 12.1.
Paulo fala do testemunho do espírito de Deus que habita em nós, 1 Coríntios 3.16; 4.19; 2 Coríntios 6.16.
A divindade se tornou mais clara com o advento de Jesus Cristo. Jesus ordenou que os verdadeiros cristãos fossem batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Mateus 28.19. Por outro lado, as Escrituras mostram que há uma distinção entre o Pai, o Verbo e o Espírito.
Calvino cita Gregório Nazianzeno, quando diz: “Eu não posso pensar de unidade, sem que seja de* monstrada pela Trindade; eu não me posso referir à Trindade, sem que seja conduzido à unidade”.
Termina Calvino provando que há uma unidade geral entre os doutores antigos da Igreja sobre a doutrina, embora nem sempre se expressem de modo claro.
Agostinho, que muitos têm procurado taxar de herege sobre esse assunto, abraça reverentemente a doutrina dos antigos doutores.
Compreende Calvino a sutileza do assunto e as dificuldades que ele oferece e faz votos a que os pios e tementes a Deus possam encontrar na sua exposição a demolição dos erros sobre o assunto, pelo qual Satanás tem procurado perverter muitos, desviando-os da fé. Julga que a substância da doutrina exposta deve satisfazer àqueles que não são possuidores de excessiva curiosidade, procurando saber mais do que devem saber.
Percebe-se que Calvino chega ao fim do seu trabalho sem, contudo, se dar por satisfeito.
A lembrança amarga que o tratamento dessa doutrina lhe trouxe está sempre presente em sua mente e, embora ele a trate com a clareza e profundidade que o assunto requer, e como é do seu feitio curvar-se humildemente ante a enormidade da tarefa, sente-se pequenino em face do mistério que envolve essa grande doutrina. Por isso, a sua última afirmação: “Desde a eternidade há três pessoas num só Deus”.
A SANTA IGREJA CATÓLICA A IGREJA VERDADEIRA
Vamos falar da Igreja no seio da qual aprouve Deus reunir seus filhos; não somente para que pelo seu auxílio e ministérios sejam alimentados enquanto infantes, mas também conduzidos por ela até à idade adulta, e possa matingir a perfeição da fé. Àqueles a quem. ele é Pai, ela é a mãe.
Quando dizemos creio, no Credo, não devemos dizer creio na igreja, mas creio a igreja, uma expressão usada por Santo Agostinho e outros antigos. Nós declaramos que cremos em Deus, porque nele a nossa mente se reclina e a nossa confiança é plenamente sa- itsfeita. Não podemos dizer o mesmo da Igreja, como não podemos dizer o mesmo do perdão dos pecados e da ressurreição do corpo.
A Igreja é chamada Católica ou Universal, pois não há duas ou três, a menos que dividamos Cristo, o que é impossível.
Os eleitos de Deus devem estar reunidos em Cristo, do qual dependem, porque é a cabeça, formando eles ura corpo, no mesmo espírito de Deus, na mesma fé, na mesma esperança, na mesma caridade. Esse artigo do Credo se relaciona, de algum modo, com a Igreja externa, pois devemos manter os laços de fraternidade com todos os filhos de Deus, obedecendo à autoridade da Igreja e vivendo como ovelhas do mesmo rebanho.
Daí a expressão “comunhão dos santos”. Essa comunhão dos santos não é incompatível com a diversidade de dons que o espírito distribui; nem é incompatível com a ordem civil, a qual é necessária para preservação da paz entre os homens e seus direitos.
Lucas afirma, descrevendo a Igreja em Jerusalém: “A multidão dos que criam era um coração e uma alma” (At 4.32).
Se Deus é o pai comum de todos e Cristo a cabeça comum, devem estar unidos em amor fraternal e partilhar uns com os outros as bênçãos.
Quando cremos a Igreja, fazemo-lo de modo a nor tomar persuadidos de que somos seus membros, A nossa salvação, pois, repousa em base firme e segura, de modo que, ainda que o mundo inteiro desapareça, ela não será destruída. Ela está de pé com a eleição de Deus, não pode falhar, como não falha a sua eterna providência; isto está ligado à estabilidade de Cristo, que mantém assim unidos os seus fiéis e não permitirá que seus membros sejam separados.
Enquanto continuarmos no seio da Igreja, a verdade estará conosco. Devemos confiar em promessas, tais como: “No Monte Sião em Jerusalém, haverá livramento” (J1 2.32), e, ainda: “Deus está no meio dela, não será abalada” (SI 46.5).
Pelo poder do Espírito Santo temo-nos tornado participantes com Cristo, e, separados como posessão peculiar de Deus e como membros dela, participantes da sua graça.
A Igreja é nossa mãe, dizemos que ela nos concebeu no seu ventre, deu-nos à luz, alimenta-nos no seu seio, guarda-nos sob o seu cuidado e governo, até que, despidos da carne mortal, nos tornemos como os anjos» Mateus 22.30.
Além do pálio da Igreja não há perdão de pecados, nem salvação se pode esperar, como testifica Isaías e Joel. Isaías 37.32 e Joel 2.32.
Paulo diz que nosso Salvador subiu aos céus para que possa cumprir todas as coisas e deu alguns para apóstolos; alguns para profetas; alguns para evangelistas; alguns para pastores e mestres; para o aperfeiçoamento dos santos; para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo: “Até que todos cheguemos à unidade da fé, ao conhecimento do Filho de Deus, a Varão perfeito, segundo a medida da estatura plena de Cristo” (Ef 4.10-13).
Para conduzir seus filhos à maioridade, Deus os educa pela Igreja. A pregação da doutrina celeste ó entregue aos pastores.
Isaías, anteriormente, deu as características do reino de Cristo, desta maneira: “Meu espírito está sobre ti, e a minha palavra que pus na tua boca, não se afastará da tua boca e nem da boca da tua semente, diz o Senhor, desde agora e para sempre” (Is 59.21).
Paulo nos lembra: “Que a fé vem pelo ouvir” (Era 10.17).
Para nos ensinar que os tesouros oferecidos a nós em vaso de barro são de valor inestimável, Deus mesmo parece, como autor dessa ordenança, reconhecer a sua própria instituição; proibindo embora o seu povo de dar ouvido a espíritos familiares e feiticeiros e outras superstições, Levítico 19.30,21, acrescenta que não nos deixará sem profetas.
Como no passado, Ele nos escolhe mestres que nos dêem assistência. Há duas vantagens niso, levar-nos à obediência, quando ouvirmos os ministros, como se ouvíssemos Ele mesmo e, atendendo à nossa fraqueza, dirigir-nos de maneira entendível, atraindo-nos a si em vez de nos assustar.
Deus dotou a raça humana de um dos mais notár
veis dons — a Palavra — pela qual Ele faz sua voa ouvida.
Davi se queixa da tirania dos homens que o impedem de entrar no tabernáculo de Deus. Salmos 84.
Deus somente consagra os templos pelo uso legítimo da sua palavra E Deus, pelo seu espírito, ao qual Ele liga a pregaçao da Palavra, torna-a de resultados benéficos para o seu povo.
O ofício do segundo Elias, conforme Malaquias declara, é tornar o coração dos pais aos filhos, e dos filhos aos pais. Malaquias 4.6. Cristo declara que enviou os apóstolos para produzir frutos. João 15.16. E que frutos são esses, Pedro declara, quando afirma que nós somos gerados de novo de semente incorruptível, 1 Pedro 1.23 Paulo se gloria de que por meio do evangelho, ele gerou os coríntios, 1 Coríntios 4 15. Ele também afirmr que os gálatas receberam o espírito pela palavra da fé. Gálatas 3.2.
Portanto, Deus se agrada desse método de ensinar e, por isso colocou sobre os crentes esse jugo.
As Escrituras falam da Igreja de. duas maneiras: Às vezes, é a Igreja como ela é realmente diante de Deus, na qual só são admitidos os que receberam a adoção de filho pela santificação do Espírito e são, assim, membros de Cristo. Nesse caso compreende todos os santos que existiram desde o começo do mundo.
Outras vezes, o nome Igreja se aplica ao corpo inteiro daqueles que adoram a Deus em Cristo ou professam adorar; que foram, pelo batismo, iniciados na fé; participam da Ceia do Senhor; professam estar unidos à verdadeira doutrina e à caridade; aceitam a Palavra de Deus e o ministério da pregação.
Nessa igreja ná uma grande mistura de hipócritas, qúe nada têm de Cristo, a não ser a aparência exterior. O Senhor os distingue por certas marcas, como se fossem símbolos, pois é prerrogativa de Deus conhecer os que são seus, 2 Timóteo 2.19.
Para conhecer o seu corpo, conforme sabia que
seria necessário, Ele nos faz conhecido por algumas marcas.
Onde quer que nós vemos a Palavra de Deus sinceramente pregada e ouvida; onde quer que vemos os sacramentos ministrados de acordo com a instituição de Cristo, aí não temos dúvida de que a Igreja de Deus existe de alguma maneira, uma vez que Ele prometeu e não pode falhar: “Onde dois ou três se reúnem em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18.20).
A Igreja Universal é a multidão dos que foram reunidos de todas as nações, os quais, embora dispersos, distantes uns dos outros, aceitam uma só e verdadeira doutrina e etão ligados pelo laço comum da religião.
Isso compreende Igrejas isoladas nas cidades e vilas, e também compreende indivíduos que pertencem a tais igrejas; embora alienados, mas não cortados por uma pública decisão.
A comunhão da Igreja é de tal importância para o Senhor, que aqueles que obstinadamente dela se afastam são tidos como desertores da religião.
A designação dada à Igreja de casa de Deus coluna e fundamento da verdade, 1 Timóteo 3.15, indica que a Igreja é a fiel guardiã da verdade para que essa verdade não pereça no mundo.
Daí se segue que revoltar-se contra a Igreja é negar a Deus e a Cristo.
Mesmo na ministração da Palavra podem entrar erros que, todavia, não nos devem alienar da sua comunhão .
Algumas verdades devem ser mantidas, por exemplo: que Deus é um, que Cristo é Deus e Filho de Deus, que a nossa salvação depende da misericórdia de Daus, e coisas semelhantes.
O que convém dizer é que não devemos, por pequenas diferenças, abandonar a Igreja, uma vez que ela mantenha firme a doutrina em que consiste a piedade e mantém os sacramentos instituídos por Nosso Senhor.
Pensar que não há Igreja onde não há completa pureza e integridade de conduta, alegando que a Igreja de Deus é santa, é ignorar o ensino do Senhor a es
se respeito.O bem e o mal podem estar misturados na Igreja,
conforme a Palavra do Senhor, na qual Ele compara a peixes, que, porém, não são separados até que sejam trazidos à praia, zidos à praia.
Convém lembrar também que a Igreja é comparada ao campo onde a boa semente foi plantada, mas onde o inimigo fraudulentamente ministrou o joio, os quais só serão separados na colheita.
Entre os coríntios não foram poucos os que erraram; e não havia lá apenas uma espécie de pecado; e nem se tratava de erros triviais; mas alguns crimes execráveis. E não havia apenas corrupção nos costumes, mas na doutrina.
Que é que fez o apóstolo? Procurou a separação deles?
Expulsou-os do reino de Cristo?Feriu-os com anátemas finais?Não, não fez nenhuma dessas coisas, mas reco
nheceu-a como Igreja de Cristo e sociedade dos santos.
Não obstante a Igreja falhe em seu dever, não quer dizer que indivíduos decidam a questão de separação por si mesmos.
Quando Paulo nos exorta à pura e santa comunhão, não diz que dexemos examinar os outros, ou que cada um devia examinar a Igreja inteira, mas apenas que cada um devia examinar a si mesmo, 1 Corin- tios 11.28,29.
Pensamos que ninguém tem direito de passar julgamento sobre os atos dos outros, considerando que, às vezes, os mais santos podem cometer sérias quedas.
A Igreja deve fazer progresso constante em obediência às ordens do Senhor, mas a sua santidade não é ainda perfeita, não alcançou ainda o alvo.
Vamos lembrar que em nenhum período da história do mundo o Senhor ficou sem sua Igreja, e não ficará até a consumação dos séculos. Ainda que o joio e os vasos impuros sejam vistos na Igreja, não é isso
razão para que nos retiremos dela, dizia Cipriano. O que nós devemos é trabalhar afim de que sejamos o trigo, o que devemos buscar é ser vasos de ouro e de prata.
Parece, então, claro o seguinte: primeiro — não há excusas para o abandono espontâneo da comunhão da Igreja, onde a Palavra de Deus é pregada e os sacramentos administrados.
Segundo — não obstante a falta de poucos, ou de muitos, nada nos deve impedir de professar devidamente a nossa fé nas ordenanças instituídas por Deus, pois uma consciência pura não é prejudicada pela indignidade de outro; seja o pastor ou um simples indivíduo; os sagrados ritos não são menos puros, nem menos salutares, para aquele que é santo e justo, embora tomados ao mesmo tempo por mãos impuras.
Não pode haver igrejas sem primeiro haver perdão de pecados, pois Deus não prometeu a sua misericórdia a não ser à comunhão dos santos; de modo que a entrada na Igreja e no reino de Deus é pelo perdão dos pecados, sem o que não temos pacto nem união com Deus. Pela remissão dos pecados, o Senhor não somente nos admite na Igreja, mas nos preserva e defende nela. Uma vez que ainda levamos conosco restos dos nossos pecados, nós só podemos continuar na Igreja pela ininterrupta graça perdoadora de Deus.
Quando Cristo deu ordem aos apóstolos, conferindo-lhes o poder de perdoar pecados, Ele não apenas quis que eles libertassem os pecadores da impiedade pela fé em Cristo, mas também que eles pudessem perpetuamente exercer esse ofício entre os crentes.
Paulo nos ensina que a embaixada da reconciliação foi entregue aos ministros da igreja, para que possam em nome de Cristo exortar os homens à reconciliação com Deus, 2 Coríntios 2.20.
De modo que na comunhão dos santos, os nossos pecados são constantemente perdoados pelo ministério da Igreja toda vez que um bispo ou presbítero, a quem o ofício foi entregue, confirma as consciências
pias na esperança do perdão, pelas promessas do evangelho, tanto em público, como em particular, conforme o caso requer. Há três coisas que devem ser observadas: primeiro — qualquer que seja o grau de santidade dos filhos de Deus, enquanto habitarem esse corpo mortal, não poderão permanecer diante de Deus sem perdão de pecados.
Segundo — esse benefício é tão peculiar à Igreja, que não podemos dele desfrutar fora da comunhão dela.
Terceiro — esse benefício é dispensado a nós pelos ministros e pastores da Igreja, na pregação do evangelho e na mínistração dos sacramentos; é aí pois que se manifesta o poder das chaves que o Senhor entregou à companhia dos fiéis.
Há aqueles que pretendem que no batismo o povo de Deus seja regenerado para uma vida pura e angélica, que não pode ser poluída pela contaminação carnal.
Se o homem peca depois do batismo, nada lhe resta, a não ser o implacável julgamento de Deus.
Em resumo, ao pecador que escorregou depois de receber a graça não é dada a esperança do perdão, uma vez que o perdão só é concedido aos que são regenerados .
Em primeiro lugar, o Senhor ordena repetir diariamente a oração: “Perdoa as nossas dívidas”. Essa petição não é feita em vão; do contrário, o Senhor não nos teria ordenado pedir.
O Senhor requer dos seus santos confissão de pecados durante toda a sua vida; e sem cessar promete- lhes perdão.
Portanto, perdão não é para uma só vez, ou duas somente, mas tantas quantas nos sentirmos alarmados pelo senso das nossas faltas e clamarmos por perdão. .
Os livros proféticos estão cheios de ofertas de misericórdia para um povo coberto de inúmeras transgressões .
Será que a vinda de Cristo privou os cristãos desse privilégio de pedir perdão para os seus pecados?
Pedro tinha ouvido Nosso Salvador declarar que aqueles que não confessassem o seu nome diante dos homens seriam negados diante dos anjos de Deus; ele negou Jesus três vezes numa noite e não sem execração; todavia, não lhe foi negado o perdão.
Às vezes, uma igreja inteira pode ser implicada nos mais negros pecados e ainda Paulo, invés de entregá-la à destruição, misericordiosamente a exorta.
A defecção dos gálatas não foi uma falta trivial; os coríntios não foram menos excusáveis; no entanto, não foram excluídos da misericórdia de Deus.
Notemos que, com o Credo, somos lembrados de que o perdão dos pecados sempre reside na igreja de Cristo, pois, uma vez constituída, lhe foi entregue o perdão dos pecados.
A Palavra de Deus, que deve ser a nossa única regra, ensina-nos a ponderação; e que o rigor da disciplina não deve ser exercido com tanta força a ponto de agravar a situação daqueles a quem os benefícios dela deviam ser designados.
A IGREJA FALSA E A VERDADEIRAOnde a mentira e a falsidade prevalecem não exis
te igreja. A falsidade está onde a doutrina de Cristo não está em vigor, portanto, o papado não é igreja.
É difícil dizer quanto de igreja ainda subsiste no papado. Pois, ali, invés do ministério da palavra, prevalece um governo pervertido, composto de mentiras; um governo que parcialmente extingue, parcialmente suprime a pura luz.
Em lugar da ceia do Senhor está o mais estulto sacrilégio; o culto de Deus é deformado por um amontoado de superstições intoleráveis; a doutrina está inteiramente enterrada; as assembléias públicas são escola de idolatria e impiedade.
Nessa situação, participar dessa igreja é correr o risco de ser separado da verdadeira Igreja de Cristo.
Que é que alegam para defender a autenticidade dessa igreja?
Que argumentos apresentam para provar que estão de posse da verdadeira igreja?
Apelam para os registros antigos que outrora existiram na Itália, França e Espanha, pretendendo derivar a sua origem daqueles homens santos, que pela doutrina, fundaram e levantaram igrejas: baseados na doutrina e com sacrifício de seu sangue.
Apresentam a importância de homens, como Iri- neu, Tertuliano, Orígenes, Agostinho e outros, que fazem parte dessa sucessão apostólica. Pergunto-lhes: por que é que não citam África, Egito e toda a Ársia; naturalmente que naquelas regiões se interrompeu a sagrada sucessão pela qual se gabam de ser a continuação da Igreja.
Alegam ser a verdadeira Igreja porque, desde o princípio, nunca lhe faltaram bispos que se sucedessem numa série ininterrupta.
Mais uma vez eu lhes pergunto por que não mencionam a Grécia? Por que é que dizem que a Igreja pereceu entre os gregos, onde nunca houve interrupção na sucessão de bispos?
Por que é que chamam os gregos cismáticos?Porque eles se revoltaram contra a Sé Apostólica,
perderam seus privilégios.Por que é que aqueles que se revoltaram contra
Cristo não mereceram perdê-la muito mais?A pretensa sucessão apostólica é sem nenhum va
lor, se a posteridade não retiver a verdade de Cristo a ela transmitida pelos seus pais, e sem corrupção contínua.
Podíamos comparar a pretensão dos romanistas a aquela dos judeus, quando os profetas do Senhor os acusaram de cegueira, impiedade e idolatria.
Gabavam-se de seus templos, de suas cerimônias e de seus sacerdotes, pelos quais aferiam a Igreja
Jeremias opôs-se à tolice dessa confiança dos judeus, dizendo: “Não confieis nas palavras mentirosas, dizendo: Templo do Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor são estes” (Jr. 7.4).
O Senhor não reconhece nada como seu, quando a sua palavra não é ouvida, nem observada.
Agostinho diz a respeito da Igreja: “Às vezes, ela
é obscurecida por uma multidão de escândalos; às vezes, surge livre; às vezes, é coberta e batida pelas ondas da tribulação e da provação”.
Ele menciona que as mais fortes colunas da Igreja muitas vezes suportaram o exílio por causa da sua fé, ou se encontraram escondidos através do mundo.
Assim os romantistas atacam nos dias presentes aqueles que estão mal preparados, atribuindo a si própria o nome de igreja, quando eles são adversários de Cristo.
Enquanto eles exibem templos, sacerdotes e outras coisas semelhantes, o brilho vazio com que ofuscam os olhos dos mais simples não nos levará a admitir que haja igreja onde a Palavra de Deus não aparece.
O Senhor ofereceu-nos uma prova infalível, quando disse: “Aquele que é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18.37). E ainda mais: “Eu sou o bom pastor, conheço as minhas ovelhas e delas sou conhecido”; “Minhas ovelhas ouvem a minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10.14, 4 e 5).
Acusam-nos de cisma, porque pregamos uma doutrina diferente; não nos submetemos às suas leis, reu- nimc-nos para oração, batismo, a Ceia e outros ritos separados deles.
Uma acusação séria, mas a que não nos damos ao trabalho de responder.
A nossa união no amor depende da unidade dafé.
Faulo nos exorta a manter como princípio fundamental que: “Há um só Deus, uma só fé, um só batismo” (Ef 4.5).
De modo que, quando ele nos recomenda ter uma só mente, um só coração, acrescenta logo: “Que haja em vós o que houve em Cristo Jesus” (Ep 2.2,5). O que quer dizer: onde não está a Palavra do Senhor, não há união, mas há facção e impiedade.
Com respeito aos judeus, enquanto eles persistiram nas leis do pacto, uma verdadeira Igreja existia entre eles; pela bondade de Deus, gozavam dos benefícios de uma igreja. A verdadeira doutrina se continha na lei e o ministério era desempenhado pelos profetas e sacerdotes.
Eles eram iniciados na religião pelo sinal da circuncisão e por outros sacramentos eram exercitados e confirmados na fé.
Depois eles abandonaram a lei do Senhor e se entregaram à idolatria e superstição, perdendo, parcialmente, o privilégio.
Sim, parcialmente, porque ainda conservavam a pregação da Palavra e a observação dos seus mistérios .
Perguntar-se-ia: Nada ficou de igreja, quando os judeus se entregaram à idolatria?
Em primeiro lugar, deve-se considerar que a queda dos judeus foi gradual. Entre Judá e Israel houve uma diferença de tempo. Jeroboão corrompeu a religião inteiramente. No caso de Reboão, embora tivessem adotado muitas cerimônias erradas, ainda a lei e o sacerdote, como a doutrina e os ritos instituídos por Deus, continuaram em Jerusalém, de modo que os piedosos tinham ainda a sua igreja numa situação aceitável.
Em Israel, principalmente depois de Acabe, a situação foi de mal a pior. Em Judá, alguns reis eram corruptos, outros tentavam alguma reforma, até que o sacerdócio foi corrompido, o templo profanado e os ritos se tornaram abomináveis. Com os papistas, embora queiram negar, a situação é comparada ao reino ed Israel no tempo de Jeroboão —■ a mais grosseira idolatria, a doutrina inteiramente impura e eles são, talvez, mais impuros ainda.
Quando desejam forçar a nossa comunhão com a sua igreja, fazem duas exigências: Primeiro, que nós participemos de suas orações, seus sacrifícios, de todas as cerimônias. Segundo, que a honra, poder, jurisdição que Cristo deu à sua Igreja lhes sejam atri
buídas.Com respeito à primeira, admitimos que os profe
tas que estavam em Jerusalém quando tudo estava corrompido não se separaram para sacrifícios ou orações; pois eles tinham a ordem de Deus para se reunirem no templo e o sacerdócio, por mais indigno que fosse, tinha esse título a ele conferido e o direito de mantê- lo . Êxodo 29.9. No entanto, os profetas não eram obrigados a participar de cultos supersticiosos ou idólatras.
Nenhum profeta verdadeiro pode ser apontado oferecendo sacrifícios em Betei.
Portanto, eu afirmo que a comunhão com a Igreja não é obrigatória àqueles que são fiéis, quando esta igreja tem se degenerado.
Quanto à segunda parte, a nossa objeção é ainda maior: embora os profetas dos judeus e israelitas nos seus dias, em semelhante condição, denunciassem as reuniões da sua igreja como profanas, delas não lhes era lícito participar mais, a menos que abjurassem o seu Deus. Isaías 1.14. De modo que, se aquilo era igreja, Elias, Miquéias e outros de Israel; Isaías, Jeremias, Oséas e outros semelhantes em Judá, a quem os profetas, sacerdotes e o povo de seus dias execravam e odiavam, mais do que os incircuncisos, estavam alienados da Igreja de Deus.
Pois se aquilo era igreja, não era ela mais a coluna da verdade, mas da falsidade; não era o taber- náculo do Deus vivo, mas o receptáculo dos ídolos, por isso eles sentiram necessidade de se negar a participarem das suas reuniões, desde que isso seria nada mais de que uma conspiração contra Deus.
Por essa razão, nos dias presentes, quando a igreja está contaminada pela idolatria, superstição e doutrina ímpia, participar da comunhão dela é concordar com ela e é um grande erro.
Onde há igreja está o poder das chaves, mas o poder das chaves é inseparável da palavra que eles aboliram. Se eles são igreja, eles podem ar rogar-se a promessa de Cristo: “O que quer que ligardes..
Ao contrário eles separam da comunhão todos os que protestam servir a Cristo. Portanto, ou a promessa de Cristo é vã ou eles não são igreja.
Embora estejamos dispostos a conceder que o nome de igreja possa ser dado a algumas de suas igrejas, a questão que levantamos relaciona-se à legítima constituição da Igreja, que implica na comunhão, nos ritos sagrados, que são sinais da profissão, e especialmente da doutrina
Daniel e Paulo predisseram que o anti-Cristo se assentaria no templo de Deus; e nós consideramos o pontífice romano como chefe e porta-estandarte daquele reino abominável e ímpio. Daniel 9.27 e 2 Tes- salonicenses 2.4.
Em uma palavra, consideramos igrejas aquelas que o Senhor miraculosamente preserva como rema nescente do seu povo; não obstante partidas e espalhadas, desde que com elas alguns símbolos da igreja ainda permanecem — especialmente, cuja eficácia nem as artimanhas do diabo, nem a depravação humana podem destruir.
INDULGÊNCIA EPURGATÓRIO
O dogma da satisfação produziu as indulgências, pelas quais se supôs que, faltando em nós a capacidade, essa pode ser suprida com a dispensação de Cristo, dos apóstolos e dos mártires, que o Papa concede mediante a publicação das suas bulas.
A salvação ficava, assim, sujeita a um trágico lucrativo, que foi tabelado por peças de dinheiro — nada concedido gratuitamente. E nesse caso servia para custear muita luxúria do pecado.
A essas indulgências deu-se o nome de "Tesouro da Igreja” e o depósito desse cabedal foi entregue ao bispo de Roma; tornou-se ele, nesse caso, dispenseiro das grandes bênçãos.
De tal maneira lhe pertencem esses tesouros que
os pode exercer por si mesmo ou delegar poderes a outros para tanto.
Assim o Papa oferece indulgências plenárias em certas ocasiões e em outras por alguns anos. O cardeal oferece por cem dias, o bispo por quarenta dias.
Isso é uma profanação do sangue de Cristo; ilusão de Satanás, pela qual o povo cristão foi conduzido para longe da graça de Deus, da vida de Cristo, desviado do verdadeiro caminho da salvação.
Como poderia o sangue de Cristo ser profanado de maneira mais vergonhosa, do que por negar-lhe suficiência para remissão de pecados, reconciliação e satisfação, como se, por um defeito qualquer, ele se secasse, esgotasse e tivesse de ser suplementado?!
Pedro, em Atos 10.43, afirma: “Dele todos os profetas dão testemunho de que, por meio de seu nome, todo aquele que nele crê recebe remissão de pecados” .
As indulgências, porém, atribuem a Pedro e Paulo, e também, aos mártires a remissão de pecados.
E João nos diz: “Que o sangue de Jesus Cristo nos purifica de todo pecado” (1 Jo 1.7).
A indulgência fez o sangue dos mártires ablução pelo pecado — em 1 Coríntios 1.13, encontramos: “Acaso Cristo está dividido? Poi Paulo crucificado em favor de vós?”
Que é que fazem as indulgências, senão transformar Jesus Cristo em um vulgar san:i)ho, que mal pode aparecer em meio à muidão?!
A interpretação tortuosa da passagem de Paulo em que ele diz completar no seu corpo o sofrimento de Cristo, em Gálatas 1.24, é que se aplica às indulgências; essa passagem não se refere à santificação ou expiação, mas aos sofrimentos da vida como membros do corpo de Cristo que somos nós.
E quando São Paulo diz, em 2 Timóteo 2.10, “Tudo sofro por amor dos escolhidos”, ou quando escreve, 2 Coríntios 1.6, “Se somos afligidos é para a vossa salvação”, explica, no entanto, que era ministro da Igreja e não autor da redenção, conforme a dispensa- ção que recebera para pregar o evangelho.
E Pedro testemunha, em Atos 15.11: “Cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus”.
Paulo, ainda, em Romanos 5.10: “porque se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando reconciliar dos, seremos salvos pela sua vida”.
Quanto ao purgatório, é um insulto intolerável à misericórdia divina, que torna vã a cruz de Cristo e corrói a fé.
O purgatório é a satisfação oferecida depois da morte. Alegam, no entanto, que, quando Jesus diz que os pecados contra o Espírito Santo não serão perdoados nem neste mundo, nem no futuro, está admitindo que há remissão dos pecados depois dessa vida.
Que é que isso tem que ver com o purgatório? (Ainda que essa alegação fosse verdadeira).
Uma vez que eles mesmos admitem que o pecado daqueles que vão para o purgatório será redimido na presente vida?
O que Jesus está afirmando ê que não serão livres, nem do julgamento da consciência, na vida presente, nem do julgamento publicamente na ressurreição dos mortos.
Outra passagem levantada para defesa do purgatório é, Mateus 5.25.26: “Em verdade vos digo, que não sairá dali até que pague o último ceitil”.
Calvino diz que, se nessa passagem o juiz é Deus, o adversário o Diabo, o oficial o amigo, a prisão o purgatório, pode se aceitar. Mas, o que Cristo quer mostrar são os riscos a que se expõem todos os que obstinadamente insistem na sua perfeição, ao invés de se contentarem com o que é justo e razoável, exortando-os à concórdia. Não há aqui nenhum purgatório.
Procura-se argumento para o purgatório na passagem de Paulo, quando se refere aos joelhos que se hão de dobrar a Cristo, em Filipenses 2.10, tomando- se as coisas debaixo da terra como se fossem as almas do purgatório.
O que o apóstolo está querendo dizer é que Cristo recebeu domínio de todas as criaturas, as quais estão sujeitas a Ele.
Paulo, do mesmo modo, interpreta a profecia, quando diz: “Como está escrito: Por minha vida, diz o Senhor, diante de mim se dobrará todo o joelho, e toda a língua dará louvores a Deus”. “Assim, pois, cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus” (Rm 14.11.12).
Quanto à passagem tomada do livro de Macabeus, Calvino se recusa a tratar, pois não está incluida nos livros canônicos.
Em 1 Coríntios 3.12-15, São Paulo fala de ser salvo pelo fogo, daí a interpretação como se fosse fogo do purgatório.
Todavia, a grande maioria dos padres da Igreja dão uma interpretação diferente — a tribulação é um meio pelo qual o Senhor prova o seu povo para que não se acomode às impurezas da carne — isto é muito mais provável do que fogo do purgatório, embora Calvino tenha uma outra interpretação.
São Paulo não diz que são as obras de algumas pessoas que são provadas, mas de todas, como pensa Agostinho.
O apóstolo usa de uma metáfora, quando utiliza a figura de madeira, do feno, da palha.
Pois a madeira é consumida pelo fogo e destruída, de modo que nenhum será capaz de resistir à provação, feita pelo Espírito de Deus.
A prata, o ouro, quanto mais perto do fogo mais claramente provam a sua genuinidade e pureza.
Assim é a verdade do Senhor, quanto mais submetida ao exame, mais bem firmada a sua autoridade.
A madeira, o ferro, o feno são invenções dos homens, não a Palavra de Deus, e não podem suportar o exame do Espírito Santo, porque é doutrina espúria.
São Paulo usa a expressão dia do Senhor, comum nas Escrituras quando toda a verdade será manifesta.
Alguns alegam que a observância da doutrina do purgatório é de grande utilidade na Igreja.
São Paulo, incluindo a sua própria época, que ninguém pode pôr outro fundamento, senão o que já foi posto, Jesus Cristo.
Isso quer dizer que as falsas doutrinas são antigas, pois já existiam no tempo de Paulo.
Não há passagem na. Escritura que abone oração pelos santos, nem exemplos de santos que lemos e que falam disso.
Mesmo aqueles que, no passado, oraram pelos mortos afirmavam que não tinham apoio nas Escrituras.
Os crentes não devem se empenhar na prática daquilo de que não tenham firme convicção, como São Paulo nos exorta, em Romanos 14.22-23: “Bem aventurado é aquele que não se condena naquilo que aprova.. . tudo que não provém de fé é pecado”.
O grande conforto que se encontra nas Escrituras está em Apocalipse 14.13: “Bem aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas fadigas”.
A ETERNA ELEIÇÃO
Como resultado da vontade divina, a salvação é oferecida gratuitamente a alguns e outros são impedidos de alcançá-la.
Esse assunto levanta questões muito importantes e difíceis de responder.
O pacto da vida não é pregado igualmente a todos e não tem a mesma recepção entre aqueles a quem é pregado.
Nunca estaremos convencidos suficientemente de que a nossa salvação provém da livre graça de Deus até que entendamos que resulta duma eterna eleição, pela qual Deus não confere promiscuamente a esperança da salvação, mas a dá a alguns e a recusa a outros.
A ignorância desse princípio detrata a glória de
Deus, impede a verdadeira humildade. Paulo declara que nada pode ser conhecido, a não ser que Deus colocou de lado as obras inteiramente fora de questão e elege aqueles que predestinou, não pelas obras, mas pela graça. Romanos 11.6 — “Se é pela graça não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça”.
Paulo afirma, pois, que somente quando a salvação é atribuída à eleição gratuita, chega-nos ao conhecimento que Deus salva a quem Ele quer, segundo o seu único prazer, e não paga um débito, que nunca foi devido. João 10.28 — “Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão eternamente, e ninguém as arrebatará das minhas mãos”.
Duas observações sobre o assunto. Primeiro: dada a dificuldade do assunto da predestinação, é perigoso que a curiosidade do homem não se restrinja àquilo que podem saber e vagueie por caminhos proibidos a nós, buscando os segredos de Deus. Segundo: quando inquirimos de predestinação, estamos penetrando no recesso da divina sabedoria; e, ao invés de satisfazermo-nos, entramos num labirinto inescap ivel que o Senhor houve por bem ocultar dentro de si mesmo.
Não é justo que o homem, sem impunidade, esteja espiando as coisas que Deus houve por bem ocultar em si mesmo, ou penetrar a sabedoria eterna e sublime que não quis que nós aprendêssemos, mas adorássemos .
Esses segredos são revelados na sua Palavra, até onde Ele julga condizente com o nosso interesse e bem estar.
No momento em que saímos dos limites de sua Palavra desviamo-nos e tropeçamos.
Não devemos ter vergonha de ser ignorantes, em matéria em que a ignorância é sabedoria.
Alguns preferem omitir essa doutrina por não entendê-la .
As Escrituras, no entanto, são a escola do Espírito Santo, em que nada que é útil ou necessário ao nosso conhecimento foi omitido. Daí, não devemos
querer ocultar o que está revelado nas escrituras sobre predestinação, pois, assim, estaremos privando de bênçãos os crentes ou pareçamos reprovados, ou censurando o Espírito Santo por ter publicado aquilo que convém suprimir.
Quando atribuímos presciência a Deus, dizemos que todas as coisas sempre foram e sempre continuam perante seus olhos, para os quais o conhecimento não tem passado, nem futuro, pois que todas as coisas estão presentes a sua imediata observação.
Essa presciência se estende ao mundo interior e a todas as criaturas.
Por predestinação queremos dizer o decreto eterno de Deus pelo qual determinou consigo mesmo o que Ele deseja que aconteça com respeito a todo homem— todos são criados em igual termo, mas alguns são preordenados para vida eterna e outros para perdição eterna.
Exemplos disto são Abraão, Jacó, Esaú, — Mala- quias 1/2,3 — Romanos 9.13.
O dom de Deus pelo qual escolhe alguns está baseado na livre misericórdia de Deus, sem qualquer respeito humano.
Não obstante o Evangelho se dirija a todos os homens em geral, o dom da fé é concedido a poucos.
Deus sela os seus eleitos, chamando-os, justificando-os e, assim, excluindo os reprovados do conhecimento do seu nome e da santificação do Espírito.
Refutação às objeções da doutrina da eleição injustamente atacada.
A mente humana ao ouvir essa doutrina deve reprimir a sua petulância.
Alguns professam defender a divindade, admitindo a doutrina da eleição, mas negando que alguns se>- jam reprovados.
Essa posição é pueril, pois não pode haver eleição sem reprovação.
Não se pode tolerar a petulância dos homens que não se limitam ao ensino da Palavra de Deus em relação ao seu conselho incompreensível, que os anjos adoram.
Paulo não assume essa atitude, acha que não é lícito à criatura contender com o Criador.
A palavra de Jesus afirma: “Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada” (Mt 15.13)
Paulo, na epístola aos Romanos, Capítulo 9, versículos 22 e 23, assim afirma, “Que diremos, pois, se Deus querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou, com muita longanimidade, os vasos de ira, preparados para perdição, afim de que tam bém desse a conhecer as riquezas da sua glória, em vasos de misericórdia, que para a glória preparou de antemão?”.
A suprema lei da justiça é a vontade de Deus, de modo que tudo que Ele deseja tem que ser aceito como justo, pelo simples fato de seu querer, porque Deus desde o princípio predestinou alguns para a morte, os quais nem ainda tinham nascido; como podem merecer a sentença de morte? Perguntam!
Respondemos, perguntando: que é que pensamque Deus deve ao homem?
— Se todos que Ele condena já são, pela sua própria natureza sujeitos a isso!
Assim, quando perecerem na sua corrupção, estão apenas sofrendo o castigo pela culpa que têm, desde que, quando Adão caiu, arrastou consigo toda a sua posteridade.
A resposta vem da Palavra do apóstolo Paulo: “Quem és tu, ó homem, que contendes com o teu Deus?” (Rm 9.20).
Paulo não está evadindo, apenas declarando, queo procedimento da justiça divina é alto demais para ser escrutinizado pela medida humana, ou compreendido pela fraqueza do nosso intelecto.
Para Paulo, nenhuma conta disso deve ser dada; porque a sua magnitude excede ao nosso 'entendimento.
A imensidade do julgamento divino é conhecida pela nossa experiência.
Olhar para a estreiteza de sua própria mente e
dizer que não entende os decretos de Deus será o melhor.
Vemos no livro de Jó e nos livros proféticos a in- compreensibilidade da sabedoria e do poder tremendo de Deus.
Convém ouvir o conselho de Agostinho: “Tu ó homem! Esperas uma resposta de mim? Eu também sou homem”.
Uma outra objeção procura justificar o pecador: Por que Deus culpa o homem por coisas que ele pratica por necessidade: por ser predestinado, que é que ele poderia fazer?
Salomão diz que Deus faz todas as coisas para o seu próprio fim, até o ímpio para o dia do mal. Provérbios 16,14: “O Senhor fez todas as coisas para determinados fins, até o perverso para o dia do mal”.
Agostinho dizia: “Confessemos, com maior benefício, o que cremos como maior verdade que Deus o Senhor de todas as coisas tudo fez muito bom. Tanto previu que o mal havia de surgir do bem e sabia que pertencia a sua onipotente bondade trazer o bem do mal, ao invés de não permitir o mal; assim ordena a vida dos anjos e dos homens, para mostrar: Primeiro: — o que a vontade livre pode fazer; Segundo — o que os benefícios da sua graça e seu julgamento justo podem fazer”.
Há uma outra terceira objeção que levantam os adversários da predestinação; parte da afirmação de Pedro, em Atos 1034; Paulo em Romanos 2.10, Efésios 6.9, Gálatas 3.27, e em Tiago 2.5. Declaram que Deus não faz acepção de pessoas, no entanto, na eleição adota um e deixa outro; Por que isto? Se não há diferença de mérito? Quando Deus assim procede, segundo a sua misericórdia o faz conforme é do seu agrado.
Ainda um outro argumento empregado para derrubar a predestinação não há estímulo para a prática do bem, uma vez que tudo já está decidido. A resposta quem dá é Paulo, em Efésios 1.4-6: “Assim como nos escolheu nele, antes da fundação do mundo, para ser
mos santos e irrepreensíveis perante Ele; e em amor nos predestinou para Ele, para adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade, para louvor e glória da sua graça, que nos concedeu gratuitamente no amado”.
Paulo, com fervor, exorta à vida de piedade e declara que fomos criados em Cristo para boas obras, as quais Deus tem preparado para os que nela andam.1 Tessalonicenses 4.4-7.
A piedade deve ser prezada, para que Deus seja devidamente adorado, e a predestinação deve ser pregada para aqueles que tem ouvidos para ouvir; com respeito à àgraça divina, gloriem-se não em si mesmo, mas no Senhor.
Porque Ele nos lembra que as coisas que são verdadeiras devem ser propriamente ditas.
Agostinho afirma: “Porque não sabemos quempertence ao número dos predestinados ou quem nãc pertence. Daí, o nosso desejo é de que todos sejam Salve'S e a todos os que encontramos desejamos que sejam participantes conosco da paz; mas a nossa paz repousa sobre os filhos da paz... a Deus cabe fazêla ao alcance dos que Ele antes conheceu e predestinou”.
Eleição confirmada pela vocação de Deus A eleição é secreta, mas é manifesta por um cha
mado eficaz, ou vocação eficaz. Ambas têm a sua fonte na misericórdia de Deus. Romanos 8.29,30.
Pela vocação, Deus admite os eleitos na sua família e os une a si mesmo, para que possam ser um com Ele. O apóstolo São Paulo e os profetas proclamam a vocação livre de Deus.
A dispensação da vocação consiste não somente na pregação da Palavra, mas também na iluminação do espírito. '
Dois erros devem ser evitados. Primeiro, pensar que o homem como cooperador de Deus ratifica a sua eleição — assim a vontade do homem fica sendo superior ao conselho de Deus.
Outros fazem a eleição depender da fé — com respeito a nossa parte, sim, mas ela já existia no se-
ereto conselho de Deus, que é então exposto, ratificado e selado.
Que prova tem uma pessoa de que é eleita, uma vez que a salvação é pura obra de Deus?
É perigoso tentar penetrar no eterno conselho de Deus; pois, saber se é eleito é uma indagação que começa e termina com a vontade de Deus conforme as Escrituras declaram em Romanos 8.32, João 3.16, e João 5.24.
De modo que quem tem a Palavra de Deus deve descansar nas declarações das Escrituras.
Aqueles a quem Deus chamou entregou aos cuidados do grande Pastor. Ele declara que as suas ovelhas ouvem a sua voz, João 10.3-11.
Pergunta-se: e os que se desviam depois de ter seguido por algum tempo? João nos afirma, 1 João 2.19, “Eles sairam do nosso meio, entretanto, não eram dos nossos; porque se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles era dos nossos”. Não se nega que tinham sinais, como se fossem verdadeiros chamados; mas eles não tinham as raízes profundas.
Embora os hipócritas finjam piedade, como se fossem verdadeiros cultuadores de Deus, Cristo declara que tais serão lançados fora.
E Judas? Jesus disse que nenhum se perderia, senão o filho da perdição. João 17.12,
Judas foi eleito para o cargo, mas não para a salvação .
A oferta da salvação não é proclamada a todos? Sim, mas a vocação eficaz só é dada àqueles a quem Ele iluminou; e Ele iluminou aqueles que são predestinados para a salvação.
A misericórdia de Deus é oferecida a todos pelo Evangelho e a fé distingue entre o que é de Deus e o que não é.
De modo que um experimenta a eficácia do Evangelho, mas o outro dela não deriva nenhum benefício. Se Deus não odeia nada que Ele fez, como explicar que alguns são condenados? A resposta é que os que
são reprovados são realmente odiados por Deus, com muita justiça, pois são destituídos do seu espírito e naua fazem senão para merecer sua condenação
Finalmente, tudo que se disse de um lado ou de outro nos conduz ao grande mistério que surpreendeu Paulo e que o fez exclamar às línguas petulantes o que nós devemos fazer também oom ele: “ó homem, quem és tu que réplicas a Deus?” Como Agostinho bem afirma, é um ato mau medir a justiça de Deus pelos padrões da justiça humana.
Verifica-se que a doutrina da predestinação, ou eleição, é algo que realmente excede os limites da compreensão humana.
Ninguém mais do que Calvino entendeu isso e deixou bem claro que não entendia a doutrina que, no entanto, estava clara na Bíblia.
A cada passo na sua exposição está ele advertindo-nos de que há mistério, reservado ao secreto conselho de Deus; que não nos compete especular ou ten tar descobrir, a menos que nos queiramos perder num labirinto sem saída: “Tenhamos em mente que desejar qualquer outro conhecimento da predestinação, a não ser aquele que está desenvolvido na Palavra de Deus... seria como desejar andar em caminhos im- passáveis, ou ver no escuro. Não nos envergonhemos de ser ignorantes de algumas coisas em relação a um assunto no qual a ignorância é uma espécie de sabedoria”.
Aliás, perguntaríamos: É a doutrina da predestinação a única doutrina que envolve mistério? Que dizermos da doutrina da Trindade, ou do grande mistério da encarnação? Que dizermos nós da humilhação de Cristo, pela qual, sendo Deus, se sujeitou às fraquezas e contingências da nossa natureza humana? É aí que entra a fé, esse sexto sentido, que nos permite ver o que não podemos ver, aceitar o que não podemos aceitar.
É lamentável que até alguns descendentes espirituais de Calvino o mantenham em certa reserva e desconfiança, qusm sabe até desprezo, por causa dessa doutrina.
Já se observou que Calvino não trata de predes
tinação no seu livro antes que chegue o momento em que, pela ordem natural dos assuntos, o tenha de incluir na sua exposição.
De modo que seria exagero querer tomá-la a doutrina máxima de Calvino.
Por outro lado, é fácil verificar que Calvino não inventou a doutrina da predestinação, nem usou de artifícios de hermenêutica para formulá-la.
Agostinho é tão predestinacionista quanto Calvino.
É Paulo a fonte em que ambos vão buscar a sua doutrina: suas epístolas aos Gálatas, e aos Efésios e, principalmente, aos Romanos, apresentam essa doutrina, que ele também declara insondável à compreensão humana.
Se interpelássemos Paulo a respeito da predestinação, estou certo de que ele nos diria que não a inventara, mas recebera por revelação do espírito de Deus.
O que acontece com Calvino é que a Palavra de Deus lhe inspira um tal respeito, que não lhe permite fugir da verdade que ela nos revela, ainda que essa verdade seja à nossa maneira de entender inexplicável e aparentemente terrível.
Mas, Calvino não tem dúvida daquilo que as Escrituras afirmam: “O que foi escrito, para o nosso en sino foi escrito”.
E previne-nos contra dois perigos: ou de parecer que estamos querendo corrigir o Espírito Santo, retendo aquilo que ele houve por bem publicar, cu que procuremos penetrar naquelas coisas que o Senhor ocultou. Corremos o risco de ser condenados por curiosidade excessiva, de um lado, ou por ingratidão, do outro lado.
Calvino tinha a preocupação de lidar com a Palavra de Deus com reverência, e absoluta honestidade, por isso mesmo, podia dizer nos últimos momentos de sua vida que nunca torceu um texto da Palavra de Deus, à espessura de um fio de cabelo, para defender sua posição.
MESTRES E MINISTROS DA IGREJA
Já mencionamos as razões porque Deus, no governo da Igreja, usa o ministério dos homens.
Essas razões são encontradas nas Escrituras.O ministro é o mais útil cargo em toda a Igreja.As Escrituras falam dos apóstolos, profetas, evan
gelistas, pastores e mestres. Efésios 4.11.Desses, somente os dois últimos têm ofício ordi
nário na Igreja. O Senhor levantou os outros no começo do seu reino, conforme a necessidade.
Pastores e Mestres, dos quais a Igreja nunca pode abrir mão: e entre os quais, pensamos, não há diferença; os mestres não presidem sobre a disciplina, mi- nistração do sacramento ou admoestações, ou exortações, mas na interpretação das Escrituras somente, para que a pura e sã doutrina seja mantida entre os crentes. O ofício pastoral abrange tudo isso.
Entendemos que os oficiais do governo da Igreja eram temporários, que os ofícios, porém, são de perpétua duração.
Se colocarmos os evangelistas com os apóstolos, teremos dois ofícios de um certo modo correspondendo um ao outro.
A mesma semelhança que os nossos mestres têm com os. antigos profetas, os pastores têm com os apóstolos .
O ofício profético era mais excelente, em virtude do dom da revelação especial que o acompanhava; mas o ofício de mestre é quase da mesma natureza e com a mesma finalidade.
Semelhantemente os doze que o Senhor escolheu para a pregação do Evangelho no mundo, Lucas 6.13, excedem aos outros em classe e dignidade.
Pois, não obstante a natureza do caso, e a etimologia da palavra, todos os oficiais eclesiásticos podem ser chamados apostolos, pois são enviados pelo Senhor e são seus mensageiros.
Como era de grande importância que uma prova segura fosse dada da missão daqueles que entregavam uma nova e extraordinária mensagem, convinha que os doze (aos quais São Paulo foi depois acrescentado) devessem ser distinguidos dos outros por um título peculiar. O nome é dado por Paulo a Andronico e Jú- nia, dos quais diz ele: “Notáveis entre os apóstolos” (Rm 16.7), todavia, quando fala com propriedade, confina o termo àquela primeira ordem. Isso é uso comum nas Escrituras.
Ainda os pastores, mesmo quando designados para uma Igreja particular, têm funções de apóstolosr.
Quando nosso Senhor enviou os apóstolos, deu- lhes a comissão de pregar o Evangelho e batizar os que cressem para remissão de pecados.
Já os tinha ele, anteriormente, incumbido de distribuir o simbolo do seu corpo e do seu sangue, conforme o seu exemplo. Mateus 28.19 e Lucas 22.19.
Tal é a lei sagrada, inviolável e perpétua, ligada àqueles que tomaram o lugar dos apóstolos — pregar o evangelho e administrar os sacramentos.
E que dizer dos pastores? São Paulo, falando não somente de si mesmo, mas de todos os pastores, diz: "Que os homens nos considerem como ministros de Cristo, dispenseiros dos mistérios de Deus” (1 Co 4.1).
Em outra passagem, ele descreve o bispo como aquele que mantém firme, fiel, a palavra que lhe tem sido ensinada, para que possa ensinar a sã doutrina, exortar e convencer os contradizentes.
Dessa, e de outras passagens semelhantes, inferimos que as duas principais funções do pastor são pregar o evangelho e administrar os sacramentos.
O ensino, contudo, não consiste apenas na pregação pública, mas também na admoestação particular.
Lembrai-vos de que, por espaço de três anos, não cessei de vos exortar dia e noite com lágrimas” (At 20.20,31).
Quando o pastor é destinado a uma igreja, pode dar assistência a outras igrejas, se algo ocorrer que requeira a sua presença, seu conselho ou a solução de alguma dúvida. Contudo, para manutenção da paz e da ordem da igreja, cada um há de ter o seu dever designado para evitar desordem e outros males.
Isso não é uma invenção humana, mas é uma ordenação de Deus.
Lemos que Paulo e Barnabé nomeavam presbíteros em cada Igreja: em Listra, Antioquia e Icônio, Atos 14.23. E Paulo mandava a Tito que ordenasse presbíteros em cada cidade, Tito 1.5.
Menciona bispo de Filipos, Archipo, o bispo de Colossos.
“Ao dar os nomes de bispos, bresbíteros e pastores, indiscriminadamente, aos que governam a igreja, faço com autoridade das Escrituras, que usam essas palavras como sinônimas”.
Todos os que desempenham o ministério da Palavra recebem o nome de bispo.
Em Atos, os presbíteros de Éfeso são designados bispo, Atos 20.17.
O cuidado dos pobres era entregue aos diáconos, dos. quais Paulo menciona duas classes.
Romanos 12.8 “O que exorta, faça com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; o que exerce misericórdia, com alegria”. Entende que a primeira classe são os diáconos que administram as esmolas.
Os últimos aqueles que se dedicam ao cuidado dos pobres e dos enfermos: tais como as viúvas mencionadas em 1 Timóteo 5.10.
A origem, instituição e ofícios são descritos por Lucas, em Atos 6.3.
Para que alguém seja um verdadeiro ministro da Igfeja, é preciso que ele seja primeiramente chamado; e que ele responda ao chamado, isto é, execute o ofício que lhe foi designado.
Quem deve nomear os ministros? E qual a cerimônia? Ou o rito inicial? Estamos referindo-nos ao chamado extedno, não àquele chamado íntimo do qual todo ministro deve estar consciente diante de Deus; isto é, aquele testemunho do nosso coração, de que não buscamos o ofício por ambição, nem por avareza, nem por qualquer outro sentimento egoístico, mas com um sincero temor de Deus e desejo de servir à Igreja, o que é indispensável para sermos aprovados diante de Deus.
Àqueles a quem Deus separou para esse ofício antecipadamente, fornece as armas para desempenhá-lo. Quem deve ser eleito Bispo? Tito 1.7 e 1 Timóteo 3.1. Ninguém deve ser escolhido senão aquele que é são na doutrina, tem uma vida santa e não é notório por qualquer defeito que prejudique a sua autoridade e o seu ministério.
A descrição do diácono e do presbítero é muito semelhante. Convém ter cuidado para não colocar sobre eles uma carga para a qual não estão preparados.
Que é que se deve observar para a eleição dos presbíteros? Atos 14.23, Lucas narra como isto era feito: “Promovendo em cada igreja a eleição de presbíteros, depois de orar com jejuns.. . ”
Entendendo a seriedade do assunto, eles o tratavam com grande reverência e solicitude e, acima de
tudo, com oração, pedindo a Deus espírito de sabedoria e discernimento.
Por que, quem eram os ministros escolhidos? Os apóstolos foram escolhidos de um modo diferente, não por eleição dos homens, mas somente pela ordem de Deus e Cristo. O apóstolo São Paulo dizia que ele não foi feito apóstolo, nem dos homens, nem por homem algum, mas por Jesus Cristo e Deus o Pai. Gálatas 1.1.
No entanto, a maneira regular hoje é que os bispos sejam designados por homens, pelo que várias passagens das Escrituras assim o declaram.
Com respeito à pergunta, se o ministro deve ser escolhido pela Igreja inteira ou somente por alguns colegas e presbíteros encarregados para isso: ou se eles devem ser nomeados por uma autoridade; responde-se — Aqueles que atribuem esse direito a uma pessoa, citam Paulo em Tito 1.5, 1 Timóteo 5.22.
Enganam-se, porém, supondo que Timóteo tinha essa autoridade em Éfeso e Tito em Creta para dispor das coisas ao seu bel prazer.
Eles somente presidiram, mas não faziam só; Lu cas relata que Barnabé e Paulo ordenavam presbíteros nas Igrejas, mas as palavras usadas significavam que cies selecionvam dois ou mais era o corpo todo ou assembléia em eleições que declarava, levantando as mãos, qual dos dois desejava ter.
Os ministros são vocacionados de acordo com a palavra de Deus e são eleitos com o consenso e aprovação do povo, presidido por um ou mais pastores.
Cem respeito à ordenação, quando os apóstolos eram esclhidos, usavam a cerimônia da imposição das mãos, um costume que cremos ter sido dos judeus, quando se desejava impetrar a bênção. Esta era s. forma regular, sempre que alguém era consagrado ao ministério.
Os ministros são vocacionados de acordo com a palavra de Deus e são eleitos com o consenso e aprovação do povo, presidido por um ou mais pastores.
Com respeito à ordenação, quando os apóstolos
eram escolhidos, usavam a cerimônia da imposição das mãos, um costume que cremos ter sido dos judeus, quando se desejava impetrar a bênção.
Esta era a forma regular, sempre que alguém era consagrado ao ministério.
Em um outro lugar, Paulo menciona que ele mesmo, sem outras pessoas, impõe suas mãos sobre Timóteo, 2 Timóteo 1.6.
Embora fale na Primeira Epístola da imposição das mãos do presbitério, não penso que Paulo estivesse falando de colégio de presbíteros.
SACRAMENTO
Aliado à pregação do evangelho, temos um outro auxílio à nossa fé nos sacramentos, a respeito dos quais convém que a pura doutrina nos informe da finalidade com que foram instituídos e seu uso presente.
Primeiramente, convém definir quê é sacramento. ‘ÍÉ um sinal exterior pelo qual o Senhor sela em nossa consciência as suas promesas de boa vontade para conosco, sustentando a fraqueza da nossa fé, para que de nossa parte testifiquemos a nossa piedade para com Ele, diante dele, diante dos anjos e diante dos homens”, "Um testemunho do favor divino para conosco, confirmado por um sinai exterior correspondente à afirmação da nossa fé para com Ele” Agostinho diz: "Sacramento é um sinal visível de uma coisa sagrada; ou a forma visível de uma graça invisível”.
Calvino julga que essa forma última obscurece o
sentido e pode levar os mais ignorantes ao erro, prefere a forma mais extensa, por amor à clareza.
A palavra freqüentemente usada no grego é Mys- térion, em Efésios 1.9, 3.2; Colossenses 1.26.
No latim, a palavra é sacramentum, 1 Timóteo 3.16.
Daí o termo ser aplicado àqueles que representam coisas espirituais e sublimes.
Não há sacramento sem promessa antecedente; e eles são dados para sustentar a nossa fé, ajudando a nossa ignorância e fraqueza. Costuma-se dizer que o sacramento compreende: palavra e sinal. A palavra pregada, nada de mágicas ou ditos de encantamento.
Em Romanos 10.8, São Paulo diz da palavra da fé que pregamos.
Em 1 Pedro 3.21, diz a palavra da fé que pregamos e cita o exemplo da circuncisão, que Paulo diz era o selo.
Os sacramentos são a confirmação para o aumento da fé; mas isso não quer dizer que possuam virtude perpétua e inerente e eficaz para o avanço e confirmação da fé, apenas que foram instituídos pelo Senhor com o propósito expresso de promover o seu estabelecimento em aumento.
São, no entanto, eficazes, quando acompanhados pelo Espírito, o eterno mestre, mercê de cuja energia somente nossos corações são quebrantados e nossa afeição movida; só assim o sacramento tem entrada em nossa alma.
Se ele está ausente, o sacramento não produz nenhum efeito, mais do que a luz do sol para o cego.
Os sacramentos são meros instrumentos: a energia é do Espírito.
A função do sacramento é, pois, precisamente igual à da palavra de Deus; apresentar Cristo a nós e nele os tesouros da sua graça.
Nenhum proveito haverá, no entanto, se não forem recebidos por fé.
Os sacramentos variam conforme o período e dis- pensação em que Deus houve por bem se manifestar.
Para Abraão e sua posteridade é a circuncisão, a qual Moisés depois acrescentou a ablução, sacrifícios e outros ritos — esses eram sacramentos dos judeus até a vinda de Cristo, os quais foram com a sua vinda substituídos por outros, a saber, o Batismo e a Santa Ceia.
A diferença é que aqueles prefiguravam Cristo prometido e ainda esperado; estes Cristo já vindo e manifesto.
O batismo testifica a nossa purificação e lavagem.
O BATISMOO Batismo é um sinal de iniciação pelo qual so
mos admitidos na sociedade da igreja, afim de ser mos incorporados a Cristo e sermos contados entre os filhos de Deus.
O Batismo tem como finalidade promover a fé em Deus e testificar a nossa confissão perante Ele.
Há três coisas no Batismo: primeiro — atestar o perdão dos pecados. O perdão não somente dos pecados passados, mas também dos futuros, o que não deve ser nenhum encorajamento para continuação no pecado. Segundo — o batismo nos ensina que fomos enxertados em Cristo, para a nossa mortificação e novidade de vida. Terceiro — o Batismo nos ensina que estamos unidos a Cristo e somos participantes de todas as suas bênçãos.
João Batista, e os apóstolos depois dele, batizaram para arrependimento e remissão de pecados, ficando entendido pelo termo arrependimento, regeneração, e pela remissão de pecados, a lavagem.
É erro e falsa doutrina dizer que o Batismo nos isenta do pecado original, da corrupção de Adão, transmitida à sua posteridade .
Esta maneira de ver resulta do não entendimento do que realmente significa pecado original, bem como da graça do batismo.
Os crentes recebem pelo batismo a afirmação de que os seus pecados foram redimidos, tanto da culpa que lhes foi imputada, como da penalidade em que
incorreram pela culpa; isso tudo pelos méritos de Cristo.
O apóstolo São Paulo nos expõe, claramente, nos capítulos 6 e 7 da carta aos Romanos, o que significa o Batismo.
Ele fala da justificação gratuita e depois exorta os crentes a não permitir que o pecado reine em seus membros. Afirma que fomos aceitos por Deus, não por merecimento nosso, mas, porque fomos revestidos da justiça de Cristo e, regenerados pelo Espírito, recebemos o penhor disso no Batismo.
Refere-se à constante luta que permanece em nossa carne, pela qual ele clama: “miserável homem que sou, quem me livrará do corpo dessa morte?” (Rm 7.24).
Para a nossa consolação, ele acrescenta: “Agora não há nenhuma condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus”.
O Batismo nos dá a oportunidade de confessar diante dos homens, ao mesmo tempo de declarar abertamente, que desejamos fazer parte do povo de Deus e participar com todos os cristãos do culto a Deus; publicamente declaramos a nossa fé, para que com a nossa língua confessemos o que vai no nosso coração .
O valor do sacramento não está nas mãos daquele que administra, pois ele é recebido das mãos de Deus: e, nesse caso, não é prejudicado, nem beneficiado, pela dignidade ou não do ministrador.
O batismo é ministrado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, portanto não é um batismo dos homens mas de Deus, não importa quem seja o ministrante.
• Quanto à forma do batismo, se a pessoa é imersa uma ou três vezes, ou se ela é apenas aspergida com água, não há diferença. As igrejas devem ter liberdade de adotar uma ou outra, de acordo com a diversidade do clima, não obstante o termo batismo signifique imersão e esta fosse a forma usada pela igreja primitiva. «
Como a Santa Ceia» a ministração do batismo pertence ao ministro, pois Cristo não ordenou qualquer homem ou mulher batizar, mas aqueles que escolher para apóstolos. A prática usada por muito tempo, desde o começo, do batismo por leigos em perigo de morte quando o ministro não estava presente, não tem base suficiente.
Quando não podemos receber o sacramento da igreja, a graça de Deus não é inseparavelmente ligada a ele, de modo que a podemos receber pela fé, segundo a sua palavra.
O BATISMO DA CRIANÇAO argumento contra o batismo de crianças é de
que não se trata de uma instituição divina; foi introduzido somente por vaidade humana, é uma curiosidade depravada e recebida na prática, posteriormente.
As Escrituras nos mostram que o batismo aponta para a purificação de pecados, que obtivemos pelo sangue de Cristo, e pela mortificação da carne, que consiste na participação da sua morte e regeneração para uma nova vida.
Antes da instituição do batismo, o povo de Deus tinha em seu lugar a circuncisão.
Vejamos a semelhança e diferença destes dois sinais. Na circuncisão havia uma promessa espiritual dada aos pais, semelhantes àquela dada pelo batismo, pois que figurava para ambos perdão de pecados e mortificação da carne.
Deus prometeu a Abraão bênção para ele e nele às nações; e, para selar essa graça, deu-lhe o sinal da circuncisão.
Daí, não é difícil ver em que esses dois sinais são semelhantes e em que é que eles diferem.
A promessa a que nos temos referido acompanha ambos. Isto é, promessa do favor paternal de Deus, do perdão de pecados e da vida eterna. A coisa figurada é a mesma — regeneração. A base da qual essas coisas dependem é de ambos; assim, quanto ao significado interior não há diferença.
A única diferença é na cerimônia exterior, isto é, a parte menos importante. Daí concluímos que tudo que se aplica à circuncisão se aplica ao batismo, exceto na cerimônia visível. A circuncisão assegurava ao judeu a sua adoção na família de Deus, a sua entrada na Igreja e a sua aliança com Deus, o que se aplica perfeitamente ao batismo.
Como o Senhor antigamente concedeu a circuncisão às crianças, fazendo-as participantes de tudo o que ela significava, o mesmo acontece no batismo com as crianças.
A circuncisão era o selo da promessa do pacto e esse pacto se estende às crianças cristãs.
Após o Senhor fazer o pacto com Abraão, ordenou-lhe que esse pacto fosse selado nos infantis pelo sacramento exterior, o que se aplica às crianças cristãs de hoje.
Nosso Senhor Jesus Cristo tomou os pequeninos no seu braço e repreendeu os seus discípulos, que tentavam impedir que as crianças viessem a Ele. Mateus 19.13. E Ele mesmo afirmou: “Dos tais é o Reino dos céus”. Ele as abraçou e, com oração e bênção, entregou-as aos cuidados do Pai. Se é certo trazer as crianças a Cristo, por que não admití-las ao batismo, símbolo da nossa comunhão com Ele?
Se o reino dos céus lhes pertence, por que negar-lhes o sinal pelo qual nele se tem acesso?
Alega-se que nenhuma criança foi batizada pelos apóstolos.
No entanto, embora não expressamente dito pelos evangelistas, não são também expressamente excluídas, quando se mencionam famílias batizadas, como em Atos 16.15-32.
Se tal argumento é válido, então deveríamos excluir as mulheres da Santa Ceia, uma vez que elas também não são mencionadas como participantes dela nos dias dos apóstolos.
Com respeito à alegação de que o batismo de criança foi introduzido muito depois da ressurreição de Cristo, não é verdade, pois que não há nenhum es
critor a,ntigo que não trace a sua origem aos dias dos apóstolos.
Esse símbolo aplicado às crianças confirma a promessa dada aos pais crentes pela qual o Senhor declara que será Deus dele e de sua semente.
O batismo é um estímulo aos pais para que sejam mais afeiçoados aos seus filhos e os concita ao dever de consagrá-los à Igreja, anima,ndo-os a uma confiança maior nas promessas de Deus; as crianças são beneficiadas com o batismo, porque se tornam parte do corpo da igreja e objeto maior de interesse por parte dos membros. Quando adultas, são estimuladas a servir a Deus, que as recebeu como filhos pelo símbolo de adoção, antes que elas pudessem reconhecê-Lo como Pai.
Quanto à alegação de que as mulheres não deviam ser batizadas, se o batismo é o substituto da circuncisão, responde-se que, embora o rito não pudesse ser aplicado às mulheres, elas no entanto, eram participantes das bênçãos por associação.
Alegam que as crianças não têm idade para entender os mistérios com que são selados.
Se elas são descendentes de Adão, nada podem receber de Adão, senão a morte, mas se são ligadas a Cristo, Ele é a vida, porque em Adão todos morreram e a esperança da vida está em Cristo.
Perguntam eles: são as crianças regeneradas sem o conhecimento do bem e do mal? Deus opera por meios além da nossa capacidade, de maneira eficaz, portanto, as crianças são salvas, até que idade não temos certeza, mas, sem dúvida, previamente regeneradas pelo Senhor.
Mesmo porque Jesus disse que, a não ser que o homem nasça de novo, não pode ver o reino dos céus. João 3.3.
Lucas nos diz que João Batista foi santificado desde o ventre de sua mãe, uma prova de que pode fazer isso em outros.
As crianças são batizadas para uma fé e um arrependimento futuro, a semente dos quais está nelas pela operação secreta do espírito.
Procuremos criar as crianças, educá-las na piedade e temor do Senhor, na observância de sua lei, lembrando que, desde o seu nascimento, elas são consideradas e reconhecidas por Deus como seus filhos. Apresentemos os nossos infantes a Deus pelo batismo, pois Ele lhes tem designado um lugar entre os seus amigos e a sua família, isto é, os membros da Igreja.
SANTA CEIA
Já que Deus nos recebeu na sua família, não nos trata como servo, mas como filho, agindo para conosco como um Pai bondoso e solícito, provendo o necessário para as nossas necessidades no cúrso da vida; mais do que isso, Ele nos assegura sua constante liberalidade; por isso nos deu Ele, pelas mãos de seu filho, a festa espiritual na qual Cristo testifica que Ele mesmo é o Pão da Vida, da qual as nossas almas se alimentam para uma bem-aventurada importalidade.
Os sinais são o pão e o vinho, que representam o alimento invisível, o qual nós recebemos do corpo e sangue de Cristo. Deus nos regenerou pelo batismo e nos enxertou na comunhão da Igreja, através da sua adoção.
Esse mistério da união secreta de Cristo com os crentes é incompreensível, mas apresentado em figura visível, adaptado à nossa capacidade e Ele o faz, como se os nossos próprios olhos pudessem ver.
Daí entendemos a finalidade que esta união mística tem para assegurar-nos que o corpo de Cristo, que uma vez foi sacrificado por nós, nos é dado como alimento, de modo que dele nos alimentamos, sentimos essa eficácia do seu sacrifício único.
Às almas piedosas derivam grande alegria e confiança desse sacramento pela certeza de que formam um corpo com Cristo e são participantes com Ele da sua riqueza. Tendo se tornado um como nós, o Filho do Homem nos fez um como Ele é, filho de Deus.
Essas coisas nos asseguram esse sacramento, que nos é apresentado como se Cristo, pela sua presença corporal, estivesse diante de nós e fosse tomado pelas nossas mãos. Pois essas são as palavras que não podem mentir nem enganar: “Tomai e comei, e bebei, isso é meu corpo, que é quebrado por vós; isso é meu sangue, que é derramado para remissão de pecados”.
Ordenando tomar, Ele nos afirma que é nosso; ordenando-nos comer, Ele nos afirma que se torna uma substância conosco; afirmando que o seu corpo foi quebrado e seu sangue foi derramado por nós, Ele mostra que ambos não eram tanto seus como nossos, porque Ele ofertou a ambos em nosso favor, para a nossa salvação.
Quando o pão é dado como símbolo do corpo de Cristo, devemos pensar imediatamente nessa semelhança: como o pão alimenta, sustenta e protege a nossa vida corporal, do mesmo modo o corpo de Cristo é o alimento único, que revigora e mantém viva a nossa alma.
Quando olhamos para o vinho como símbolo do seu sangue, pensamos que, do mesmo modo com que o vinho serve nosso corpo, o mesmo nos faz o sangue de Cristo, para nos fortificar, fortalecer, refrigerar e alegrar.
A carne e o sangue de Cristo alimentam as nos
sas almas, como o pão e o vinho mantém e sustentam a nossa vida corporal. Aquilo que a nossa mente não compreende, a nossa fé concebe, isto é, que o Espírito Santo une as coisas separadas pelo espaço, que a sagrada comunhão da carne e do sangue de Cristo transfunde a sua vida em nós, como es fosse pela penetração dos nossos ossos e medulas. De modo que, apresentando sinais, exerce a eficácia do espírito cum prindo o que prometeu; de modo que a coisa significada se transforma numa festa espiritual, que recebemos com fé e coração agradecido.
Por isto é que o apóstolo diz: “O cálice de bênçãos que abençoamos não é comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão do corpo de Cristo?” (ICo 10.16).
Nesse caso, a coisa exibida está presente pelo símbolo.
A Ceia consiste de duas coisas — os sinais cor- póreos, apresentados aos olhos, que representam coisas invisíveis, adaptados à nossa capacidade limitada; e a verdade espiritual, que é manifesta por estes sinais .
Há três coisas: a primeira coisa a significada, a matéria de que ela depende e a eficácia e virtude de ambas.
A coisa significada consiste das promessas que são, de certa maneira, incluídas nos sinais.
Por matéria ou substância quer-se dizer, Cristo, a sua morte e ressurreição.
Pelo efeito entende-se: Redenção, Justificação, Vida Eterna, e outros benefícios a nós concedidos por Cristo.
No mistério da Ceia, pelo símbolo do pão e do vinho, o corpo e o sangue de Cristo são, realmente, apresentados a nós. Nele se cumpriu toda a obediência para que pudesse fazer-nos um corpo com Ele; para que fôssemos participantes da sua substância e pudéssemos sentir os resultados disso, como participantes de todas as bênçãos.
A transubstanciação é um erro misturado com su
perstições, uma perversão inútil, além de errada — a afirmação de que o corpo de Cristo está localmente presente na Santa Ceia, para ser tomado em nossas mãos, mastigado e engolido; o que é inteiramente desnecessário à nossa participação com ele, desde que o Senhor pelo seu espírito concede-nos a bênção de ser um com Ele em corpo e espírito.
O laço que a Ele nos liga é espiritual; é o espírito de Cristo que a Ele nos une; é como um canal pelo qual tudo que Cristo tem é encaminhado a nós.
A transubstanciação é um erro que tem produzido muitas lutas e muitos males.
Há dois erros que devem ser evitados na Santa Ceia.
Primeiro — desvalorizar os sinais, separando-os de todos os mistérios com os quais estão ligados.
Segundo — exaltá-los demasiadamente, obscure- cendo a glória dos próprios mistérios. Enganam-se aqueles que pensam não ser possível conceber a presença do corpo de Cristo na Ceia, a não ser presa ao pão, pois desse modo, não deixam lugar à operação secreta do espírito, pela qual nos une a Cristo.
Nem é necessário que Cristo desça corporalmente dos céus para estar presente, unido a nós.
Na Santa Ceia Ele nos ordena tomar, e comer, e beber, seu corpo e seu sangue, debaixo do símbolo do pão e do vinhn.
Não duvidamos que Ele verdadeiramente esteja presente e que o recebamos — a presença do corpo de Cristo é tal como o sacramento requer,
Com respeito à cerimônia exterior — se os cren tes tomam o pão na sua mão, se dividem entre eles; se cada indivíduo toma o que lhe é dado; se devolve o cálice aos diáconos ou passa à pessoa próxima; se o pão deve ser levedado ou não, se o vinho é vermelho ou branco, nada disso tem a mínima importância e deve ser deixado à liberdade da Igreja conforme as circunstâncias.
Quantas vezes a Santa Ceia deve ser celebrada?Verifica-se que. no princípio, a celebração da San
ta Ceia era muito freqüente. Parece que todas as vezes que a igreja se reunia era celebrado o sacramento.
Conforme a época e o lugar e à vista de circunstâncias variadas, a freqüência maior ou menor da celebração da Santa Ceia se verificou.
É perigosa a negligência com respeito à celebração da Santa Ceia, de modo que, em alguns casos, uma vez por semana pareceu uma regra conveniente.
Convém lembrar que a Santa Ceia não deve ser separada da Palavra, da Palavra de Deus.
De modo que a Santa Ceia deve estar ligada ao serviço do culto.
Pode se começar com uma oração pública, depois o sermão; o Pão e o Vinho colocados sobre a mesa; a recitação pelo ministro, do texto da instituição da Ceia; esclarecimento das promessas que são nele contidas; declarados excluídos os que foram, por proibição do Senhor, separados. Depois, orar para que o Senhor com a sua bondade com que Ele nos tem concedido esse sacramento, Ele mesmo nos prepare para recebê-lo com fé e gratidão; e, como somos indignos, que Ele nos faça dignos pela sua misericórdia.
Então, o Salmo poderá ser cantado; ou alguma coisa lida, enquanto os fiéis em ordem participam do sagrado banquete; o ministro parte o pão e dá ao povo, e distribui o vinho.
A Ceia deve ser terminada com uma exortação à sinceridade da fé, à confissão da fé, à caridade para que as vidas se tornem cada vez mais cristãs.
Finalmente, ações de graças são oferecidas e louvores cantados ao Senhor. Isso feito, a Igreja será despedida em paz.
Tem-se observado, com razão, que a doutrina de Calvino sobre a Santa Ceia deve ser entendida à luz da controvérsia que ele manteve sobre o assunto, não apenas com a Igreja Católica, contra a qual ele freqüentemente se levanta, mas também com outros reformadores, como Lutero e Zwínglio, ou os seguidores deles.
Procura Calvino combater com veemência a tran-
substanciação católica, mostrando pela Bíblia e pela História o absurdo de tal doutrina.
No outro extremo fica Zwínglio, com a sua idéia de Santa Ceia como mero memorial simbólico come morativo da morte de Cristo.
A consubstanciação Luterana lhe parece também intolerável.
Nem sempre os termos foram bem definidos, de modo que presença real de Cristo na Santa Ceia mantida por Lutero e por Melanchthon, na verdade, significa algo bem diferente da presença real que Calvino defende.
Um grande esforço foi feito para que essas diferenças pudessem ser eliminadas. Calvino deu um grande passo, mas não foi possível o acordo, mesmo porque Lutero se obstinava na sua posição e Melanchthon que devia ser o intermediário, ou por acomodação, temendo o choque entre os dois grandes reformadores, ou por negligência, deixou de fazer a aproximação tão necessária entre eles, antes que enfermidade e a morte de Lutero pusessem termo à oportunidade do encontro.
McDonnell (John Calvin, the Church and Eucha- rist; Kilian, Princeton University Press, Princeton, N.J. 1967) salienta algumas características da doutrina de Calvino sobre a Eucaristia. Primeiro — a sua ênfase na Palavra, isto é, na Palavra de Deus, como parte do sacramento. Segundo — a ênfase da eucaristia como um ato público da Igreja. Terceiro — a sua reação contra o sacramentalismo, defendendo a união com Cristo em o espírito.
Longe está a doutrina de Calvino sobre a Santa Ceia de ser uma expressão de racionalismo, fruto da influência dos filósofos, pois, a sua ênfase constante na presença espiritual de Cristo no sacramento, e da nossa participação no corpo místico de Cristo, é profundamente espiritual. É uma afirmação incisiva do mistério e uma exigência à fé verdadeira na Palavra de Deus e no caráter sobrenatural da união e comunhão do crente com Cristo.
RECONCILIAÇÃO ENTRE AS PROMESSAS DA LEI E DO
EVANGELHO
Há aqueles que apelam para as promessas da lei, ou para observação dessa lei, e indagam qual a validade dela.
Alegam a eficácia das obras e dizem que a justificação não é só pela fé.
Já notamos, anteriormente, que o Senhor não aceita nada e nada promete a não ser que haja uma perfeita observância da lei; e que não há ninguém, em nenhuma parte, que foi assim encontrado, capaz dessa observância perfeita.
A libertação da sujeição da lei nos alegra, quando pela fé apreendemos a misericórdia de Deus era Cristo, pela qual nos é assegurada a remissão dòs pecados
Todas as promessas da lei serão sem efeito e vazias, se não forem assistidas pela bondade de Deus no Evangelho. Deus nos socorreu, apontando Jesus Cristo para nos suprir a nossa retidão.
Admitimos, não que haja apenas uma parcial retidão nas obras como mantém os adversários, mas que elas serão aprovadas por Deus, se forem absolutamente perfeitas.
Se lembrarmos em que base isso repousa, veremos que toda dificuldade será resolvida.
A primeira vez que uma obra tem aceitação inicial é recebida com perdão.
Somente porque Deus olha para nós e tudo que nos pertence como em Jesus Cristo. Portanto, uma vez que somos enxertados em Cristo, aparecemos justos diante de Deus, pois, os nossos pecados são cobertos pela sua inocência; as coisas defeituosas que existem em nós são sepultadas na pureza de Cristo e não nos são imputadas. De modo que. dessa maneira, não somente nós, mas as nossas obras são justificadas pela fé somente. Paulo prova que a nossa bem- aventurança não provém das nossas obras, mas da misericórdia de Deus nas palavras de Davi: “Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada, cujo pecado é coberto; bem-aventurado aquele a quem o Senhor não imputa iniqüidade”. Costuma-se alegar o exemplo de Cornélio, que praticava boas obras e foi aceito por Deus.
Calvino responde, fazendo distinção entre duas aceitações, pois, Cornélio foi aceito livremente, antes que as suas obras pudessem ser aceitas. Devemos lembrar-nos de que a única maneira pela qual os homens são aceitos por Deus em relação às suas boas obras é que, tendo Deus mesmo conferido boas obras a quem Ele admite a seu favor, por uma liberalidade maior, nos honra com a sua aceitação.
Com respeito à aparente divergência entre o após tolo Paulo e Tiago, observa-se que um apóstolo não pode ser oposto ao outro. Em Tiago, a fé não justifica, porque é uma opinião vazia; em Paulo, ela é um
instrumento pelo qual nós recebemos Cristo com nossa justiça.
Paulo fala da causa, Tiago do efeito da justificação.
Paulo, em Romanos 2.13, afirma que os que ouvem a lei somente não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados.
Paulo está, pois, referindo-se à obra da lei.Em muitas passagens, os crentes, com certa ousa
dia, apresentam a sua justiça perante o julgamento de Deus e desejam ser julgados de acordo com ela: “Julgam-me, Senhor, segundo a minha justiça e de acordo com a minha integridade que está em mim” (SI 7.8) e, ainda mais: “Tu me provaste, e não achas- te nada”. Paulo também indulge às vezes em se gabar: “Nós nos regozijamos nisto, o testemunho da nossa consciência, que, em simplicidade e sinceridade, não com sabedoria carnal, mas pela graça de Deus, temos tido a nossa conversação no mundo, e mais abundantemente, para eonvosco” (1 Co 1.12).
Esses são casos em que o cristão não está vindi- cando a sua justiça com respeito à salvação, mas a sua inocência e retidão, em determinadas circunstâncias .
Não neguemos que haja integridade parcial, relativa, nos filhos de Deus, o que é, a despeito de sua imperfeição, degraus para a imortalidade.
Assim, Deus aqueles que Ele incluiu no pacto da graça aceita com paterna indulgência e aprova as suas boas obras. Estas boas obras, inchadas pelas outras transgressões, não têm nenhum valor para salvação, mas o Senhor indulgentemente as recebe com misericórdia .
Não há perfeição nos santos.Agostinho afirma que o alvo a que devemos aspi
rar é apresentar-nos diante de Deus sem mancha e sem culpa; mas, com respeito à presente vida, nós nunca poderemos alcançar esse alvo até que ponhamos de lado o corpo do pecádo e sejamos completamente unidos ao Senhor,
E acrescenta, ainda, Agostinho: quando falamos da perfeita virtude dos santos, parte dessa perfeição consiste no reconhecimento da nossa imperfeição, tanto ehi verdade como em humildade.
Os que se gabam de obras meritórias subvertem a glória de Deus e a certeza da salvação
Qualquer coisa louvável em nossas obras procede da graça de Deus e não podemos atribuir-nos força ou mérito.
Se considerarmos bem isso, toda a nossa confiança em nossos merecimentos se desvanece.
As boas obras são agradáveis a Deus e não sem proveito para quem as pratica.
Deus as recompensa amplamente; não porque nelas mesmas haja mérito, mas porque a bondade divina lhes atribui recompensa.
A doutrina da justificação gratuita encontra oposição daqueles que indagam se, por acaso, as nossas boas obras não propiciam favor de Deus.
Calvino faz objeção ao emprego da palavra mérito» nesse caso.
Agostinho diz que os méritos humanos pereceram com Adão e que nos devemos caiar e deixar a graça de Deus reinar em Cristo.
Crisóstomo diz que as nossas obras se tornam em débitos, mas as dádivas de Deus são graça, benevolência e grande liberalidade.
Ezequiel 36.22 diz: “assim diz o Senhor Deus: não é por amor de vós que eu faço isso, ó casa de Israel, mas pelo meu sano nome, que profanaste entre as nações para onde foste”.
Em Efésios encontramos: “Porque nós somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais ordenou de antemão que nela andássemos” (Et 2.10).
Desde então, que nenhum bem procede de nós, a menos que sejamos regenerados — e a nossa regeneração é sem exceção inteiramente de Deus — não há nenhuma razão para atribuirmos a nós mesmos um iota de boas obras; finalmente, enquanto se nos en«=í-
na constantemente a prática das boas obras, ao mesmo tempo se exercita a nossa c nsciência, para que não se arrisque a confiar que tais obras nos façam propícios e favoráveis diante de Deus.
Pelo contrário, sem mencionar qualquer mérito, devemos ensinar aos crentes que as suas boas obras são agradáveis e aceitáveis diante de Deus. Portanto, não nos desviemos desse caminho a espessura de uma unha.
Os eleitos de Deus são vasos de misericórdia, escolhidos para honra, para purificação e santificação, a fim de serem usados pelo Mestre e preparados para toda boa obra.
Cristo assim descreve seus discípulos: “Se alguém vier após mim, negue a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me”.
O exemplo de Cristo nos estimula à piedade e santidade.
Ele foi obediente ao Pai até à morte; toda a sua vida foi gasta fazendo o bem, as obras de Deus; Ele entregou a sua vida pelos seus irmãos, fez bem aos seus inimigos e orou por eles.
As palavras seguintes nos oferecem um admirável conforto: “Em tudo somos atribulados, porém, não angustiados, perplexos, porém, não desanimados, perseguidos, porém, não desamparados abatidos, porém, não destruídos; trazendo, por toda a parte, no corpo a mortificação de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo”.
Verificamos que os homens não são justificados diante de Deus por suas obras, mas todos os que são de Deus, são regenerados e feitos novas criaturas, para que passem do reino do pecado para o reino da justiça: assim, eles confirmam a sua vocação e, como árvores, são julgados pelos seus frutos.
A RESSURREIÇÃO FINAL
Para que seja a nossa perseverança na vocação incapaz de ser batida, convém que sejamos animados com a bem-aventurada esperança do advento final de Nosso Salvador.
Estamos mortos e a nossa vida está escondida com Cristo em Deus, disse Paulo. Quando Cristo se manifestar, então, apareceremos com Ele em glória.
Em tempos antigos, os filósofos discursaram, debatendo uns com os outros com respeito ao Sumo Bem.
Nenhum deles, a não ser Platão, reconheceu que esse sumo bem consiste na união com Deus.
Ele não poderia, contudo, formam nem mesmo uma pálida idéia do que seria a verdadeira natureza
dessa união. Nós, contudo, em nossa peregrinação terrena, sabemos em que consiste a nossa perfeita felicidade, a qual nos inflama o coração e nos anima até que a alcancemos na sua completa fruição.
Ninguém participa dos benefícios de Cristo, senão aqueles que têm suas mentes postas na ressurreição.
É isso mesmo que Paulo coloca diante dos crentes, quando diz, em Filipenses 3.8: .perdi todas as coisas e as considero como refugo para ganhar a Cristo”.
A importância desse assunte deve estimular o nosso ardor e entusiasmo.
Paulo diz que, se Cristo não ressuscitou, todo o evangelho é ilusivo e vão. 1 Coríntios 15,13-17.
Jesus é colocado diante de nós pelo Espírito Santo como exemplo de ressurreição,
É difícil crer que nossos corpos, depois de serem consumidos, ainda levantarão em tempo aprazado.
A fé, no entanto, nos habilita a superar a grande dificuldade, e as Escrituras nos fornecem duas provas auxiliares: uma é a semelhança da ressurreição de Cristo e a outra é a onipotência de Deus.
Na miséria em que nós somos colocados, diz São Paulo em 2 Coríntios 4.10: "Levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo”.
Paulo distintamente afirma que o nosso corpo será feito à semelhança do seu corpo glorioso. Filipenses 3.20
Cristo ressuscitou para que possamos ser participantes da vida futura.
Ele é o cabeça da Igreja, da qual Ele se não pode separar. Ele ressuscitou, porque Ele é a ressurreição e a vida. O apóstolo São Paulo diz que Cristo é as primícias da ressurreição. 1 Coríntios 15.23.
Temos muitas provas da ressurreição de Cristo, ressurreição na qual está fundada a nossa ressurreição.
Há aqueles que perguntam: por que é que os apóstolos não apresentaram Jesus ressuscitado no templo ou no fórum? Por que é que Ele não se apresentou a Pilatos, para derribá-lo de terror? Por que é que Ele
não se apresentou aos sacerdotes em Jerusalém?O sepulcro de Jesus foi selado e guardado por sen
tinelas e, ao terceiro dia, o seu corpo ali não se encontrou .
Os soldados foram comprados para espalhar a notícia de que seu corpo tinha sido roubado; como se eles (os apóstolos) tivessem meios de forçar a um bando de soldados, ou possuíssem armas e treinamento suficientes para fazer tal tentativa.
Supondo que eles tivessem meios de o fazer, e os soldados não tivessem coragem suficiente para repeli-los, por que é que não os prenderam com a ajuda do povo?
Pilatos o que fez foi pôr o seu sinete na ressurreição e os guardas colocados junto ao sepulcro acabaram sendo os mensageiros da ressurreição.
A voz do anjo se fez ouvir: “Ele não está aqui, mas ressuscitou” (Lc 24.6).
Se alguma outra dúvida ainda restasse, Jesus a removeu.
Os discípulos o viram freqüentemente; eles até tocaram nas suas mãos e pé. Ele subiu aos céus depois de ter estado na presença de mais de quinhentos irmãos. 1 Coríntios 15.6.
Mandando o Santo Espírito, Ele deu prova não somente da sua vida, mas também do seu poder supremo, como tinha predito: “Convém que eu vá, porque se eu não for o confortador não virá a vós (Jo16.7).
Paulo não foi atirado no caminho de Damasio pelo poder de um homem morto; a Estêvão Ele apareceu, para que pudesse vencer o medo da morte pela certeza da vida.
Paulo nos ensina a respeito do poder de Deus, quando diz que o Senhor Jesus “transformará o nosso corpo abatido, para que ele possa ser semelhante ao seu corpo glorioso, segundo o seu poder, pelo qual é capaz de sujeitar a si todas as coisas” (Fp 3.21).
Ninguém é verdadeiramente persuadido da futu
ra ressurreição, senão aqueles que, com admiração, dão glória a Deus pela ressurreição de Cristo.
Jó, quando estava mais morto do que vivo, confiando no poder de Deus, não hesitava em, como em pleno vigor, dizer: “Eu sei que o meu Redentor vive e que Ele estará de pé no último dia sobre a terra; e, ainda revestido esse meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus” (Jó 19.25-27).
Em meio aos nossos conflitos, exultemos à semelhança do apóstolo Paulo, sabendo que aquele que nos prometeu a vida futura é capaz de guardar-nos o que foi entregue a Ele. 2 Timóteo 1.12 e 2 Timóteo 4.8.
Os quiliastas limitaram o reino de Cristo a mil anos, utilizando-se das palavras de Apocalipse 2.4. No entanto, as Escrituras inteiras proclamam que a felicidade da Igreja não terá fim, que os eleitos serão felizes e os reprovados punidos para sempre.
Há aqueles que afirmam que a alma ressuscitou com outro corpo; enquanto outros, admitindo que o espírito é imortal, dizem que ele será revestido com um novo corpo, desse modo negando a ressurreição da carne.
Afirma que nada em nós, no presente, se constituirá em obstáculo à ressurreição.
Paulo ordena aos crentes que se limpem de toda impureza da carne e do espírito. 2 Coríntios 7.1. E ainda diz ele em 1 Tessalonicenses 5.23 — "Peço a Deus que todo o vosso espírito, alma e corpo sejam preservados sem culpa até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Note-se que diz: tanto corpo, como espírito e alma; pois, não é de se admirar, seria um absurdo que os corpos que Deus dedicou a si como templos caíssem na corrupção, sem a esperança da ressurreição. Pois, não são eles também membros de Cristo?
Sobre nenhum assunto as Escrituras são tão claras como a ressurreição da nossa carne.
São Paulo diz que “O corruptível se transformará em incorruptível e o mortal em imortalidade” (1 C 15.53).
Pelo ensino do apóstolo São Paulo sabemos que o corpo com o qual ressuscitaremos será o mesmo do presente no que diz respeito à substância, mas diferente quanto à qualidade, como o corpo de Cristo depois de ressuscitado.
Há uma distinção que deve ser feita entre aqueles que morreram muito antes e aqueles que se encontrarem vivos na ressurreição; pois Paulo declara: “Nós não dormiremos, mas seremos transformados” (1 Co 15.51).
Pergunta-se como é que a ressurreição, que significa uma bênção especial de Cristo, se aplique também aos ímpios, que estão sob a maldição de Deus.
Sabemos que em Adão todos morreram. Cristo veio para ser a ressurreição e a vida.
É certo que, no entanto, haverá uma ressurreição para julgamento e outra para a vida e que Cristo virá separar os bodes das ovelhas. Mateus 25.32.
Alguém objetaria que a ressurreição não é comparada devidamente ao emurchecimento das bênçãos terrenas.
A resposta é a seguinte: quando os demônios foram inicialmente alienados da fonte da vida, que é Deus, mereciam ser totalmente destruídos; todavia, pelo admirável conselho de Deus, um estado intermediário lhes foi preparado, onde, sem vida, eles possam viver em morte.
Parece haver a uma semelhança, com respeito à ressurreição dos ímpios, os quais, contra a sua vontade, serão arrastados perante o tribunal de Cristo, a quem Eles agora recusam receber como seu mestre e senhor. Ser aniquilados pela morte seria uma punição muito leve.
O apóstolo São Paulo diz, perante Félix: “Haverá uma ressurreição dos mortos, tanto justos como injustos” (At 24.15).
Portanto, o credo menciona a vida eterna, somente, porque, para falar de um modo certo, Cristo não veio para destruição, mas para a salvação do mundo.
Quando o apóstolo São Paulo nos diz que iremos
de glória em glória — 2 Tessalonicenses 2.19 — está- -se referindo, naturalmente, às riquezas espirituais, que são dons de Deus a nós neste mundo, e que nos adornarão na glória celestial.
Daniel diz: “Aqueles que são sábios brilharão como estrelas no firmamento” (Dn 12.3).
Diríamos, então, que Cristo, pela variedade dos seus dons, começa a nos glorificar nesse mundo, gradualmente, até completar nos céus.
A completa fruição pura e a libertação de todos os defeitos é o ponto final dessa felicidade.
A linguagem bíblica descreve a severidade do castigo divino aos que são reprovados; as suas dores e tormentos são figurados por coisas corpóreas, tais como as trevas e ranger dos dentes, fogo inextinguí- vel, etc . ..
Deus nos concita a que carreguemos a nossa cruz e caminhemos para a frente, até que cheguemos a Ele, que é tudo em todos.
O GOVERNO NA IGREJA PRIMITIVA
O modo de governar a Igreja Primitiva não era em todos os aspectos regido pela palavra de Deus. Havia três ordens dos ministros. Primeiro, o Bispo: com o fim de preservar a ordem, presidia sobre presbíteros e pastores.
Cada província tinha um arcebispo entre os bispos. Essa prática, contudo, não era comum e a razão pela qual foi instituída resultava da conveniência de resolver problemas que surgissem nas igrejas, referindo-se a um concilio provincial.
Se o problema era muito grande, valiam-se dos patriarcas, com os sínodos, e, no caso de apelo, o assunto ia a um concilio geral.
A este tipo de governo deu-se o nome de hierarquia, um nome impróprio e não usado nas Escrituras,
porque o Espírito Santo não conferia primazia de domínio a ninguém no governo da Igreja. Aliás, parece que não havia a intenção de estabelecer esse governo entre os bispos antigos.
Ao chamar aqueles que presidem sobre as Igrejas pelos nomes de bispos, presbíteros, pastores e ministros» sem qualquer distinção, estamos apenas seguindo as Escrituras que os aplica pelos nomes indiferentemente..
Parece que, com o correr do tempo, pessoas de mais idade foram escolhidas para participar com os bispos no exercício da disciplina e admoestação.
O Senado, ou o concilio dos mais velhos, composto de homens santos, graves e piedosos, os quais eram encarregados da correção dos vícios, foi um costume da Igreja Primitiva.
Com respeito aos diáconos podemos dizer que a eles foi entregue o cuidado dos pobres.
A Epístola aos Romanos parece mencionar duas funções distintas, Romanos 12.8, quando diz: “Aquele que dá, que o faça com simplicidade, e o que semeia misericórdia, com. alegria”.
Parece-nos que São Paulo separa aqui aqueles que cuidavam dos pobres e os que se encarregavam das viúvas, Timóteo 5.10.
Na igreja de Deus, tudo deve ser feito com decência e ordem, isso deve se observar no governo da Igreja, por causa do perigo da desordem, nesse caso maisdo que em outros.
O ministro deve ser devidamente vocacionado, escolhido conforme as cerimônias próprias ao ofício, como a ordenação pública pela igreja, levando-se em conta o chamado íntimo de que cada um deve estar consciente.
Paulo estabelece em duas passagens distintas, 1 Timóteo 3.1 e seguintes; e Tito 1.7 — etc. . as qualidades do bispo, que são: a sã doutrina, a vida santa e o bom conceito, para que a sua autoridade não seja prejudicada e nem a dignidade de seu ministério.
A maneira pela qual eles devem ser escolhidos in
clui jejum e oração, o que se observa ter sido praticado, segundo Atos 14.23.
Da importância das suas funções, estes homens devem ser zelosos na oração, na súplica diante de Deus, buscando prudência e sabedoria.
Discute-se se o ministro deve ser escolhido somente pela igreja inteira, ou somente por outros ministros e presbíteros que presidem sobre o governo da igreja, ou, ainda, se devem ser nomeados por uma autoridade superior.
De acordo com as Escrituras, aqueles que se mostram capazes para o cargo devem ser nomeados com consentimento e aprovação do povo, presidido por pastores, de modo a manter a ordem e evitar confusão.
Com respeito à ordenação pela imposição das mãos, embora não haja nenhuma determinação expressa, parece ter sido uso constante entre os apóstolos, de modo que sancionado pelo costume, deve ser mantido, uma vez que se trata de uma cerimônia que condiz com a dignidade do ministério. Neste caso, tem o valor de não somente chamar a atenção do povo para essa dignidade, como também mostrar à pessoa ordenada a sua submissão ao Senhor.
GOVERNO CIVIL
Há dois governos no homem. Um que se coloca na alma, no íntimo do homem e se relaciona com a vida eterna.
Outro que pertence às instituições civis e rege os assuntos exteriores.
Quem quer que saiba distinguir entre corpo e alma, entre a vida presente, fugaz, e a futura e eterna, não terá dificuldades em entender o que é reino espiritual de Cristo e governo civil — duas coisas inteiramente separadas. De modo que, não importa nossa condição, nem sob que lei vivemos, porque o reino de Cristo não consiste dos reinos das coisas deste mundo.
Contudo, não pensemos que o governo civis é al-
go tão contaminado com o qual o cristão não tem nada que ver.
O governo civil é necessário e o cristão dele deve participar, no cumprimento da sua vocação. Há três coisas no direito civil: Primeiro — o magistrado, o guardião da lei. Segundo — a lei com a qual o magistrado governa. Terceiro — o povo, governado pela lei e obediente ao magistrado.
Os magistrados são instituídos por Deus, investidos de autoridade divina; representam a pessoa de Deus, em cujo nome agem, já que a providência e o santo decreto de Deus houveram por bem governar os negócios dos hpmens — por meio dos homens.
Portanto, nenhum homem deve duvidar que a autoridade civil é, à vista de Deus, não somente sagrada e legal, mas a mais sagrada na esfera da vida mortal. 1 Timóteo 2.1-3: “Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática de súplica, orações, intercessões, ações de graça, em favor de todos os homens, em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autoridade, para que vivamos vida tranqüila e mansa, com toda a piedade e respeito. Isso é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador”.
Nenhum governador pode ser bem sucedido e ter estabilidade, a menos que o seu primeiro cuidado seja piedade. Toda lei é absurda, desde que não respeite os direitos de Deus e consulte somente os direitos dos homens.
Os magistrados são ordenados por Deus para vin- dicar os direitos públicos dos inocentes, manter a honra, a tranqüilidade, a sobriedade e promover a paz e a segurança.
Jeremias 21.12 e 22,3, ordena os reis e outros governadores executarem a justiça e retidão, cuidar dos inocentes, defendendo-os, vingando a sua causa e pondo-os em liberdade.
Cabe, portanto, ao poder civil garantir o culto a Deus, defender a religião e a constituição da Igreja e regular as nossas vidas na sociedade com justiça, paz e tranqüilidade.
O governo civil é tão necessário à humanidade, como o pão e a água, a luz e o ar.
E, mais excelente ainda, pois, não somente busca assegurar a acomodação (te todas as coisas, para que o homem possa respirar, comer, beber, sustentar-se, evitando ofender a Deus com idolatrias, blasfêmias e outras ofensas contra a religião, as quais devem ser reprimidas, para que não sejam disseminadas abertamente.
São Paulo afirma que não há autoridade, senão de Deus, e Pedro ordena honrar ao rei.
Quanto à forma de governo, é ocioso discutir qual a melhor.
Há três formas de governo — a monarquia, o governo de uma só pessoa, um rei, um duque, etc . ..
Aristocracia, o governo dos principais homens de posição.
Terceiro — a democracia, o governo popular.Quanto ao primeiro, há o perigo de pender para
a tirania.Quanto ao terceiro, é perigoso descambar na anar
quia. Calvino parece, preferir o que ele chama aristocracia, uma forma modificada de governo popular, representativa. Não raro, um rei se descuida do que é reto e justo. É raro haver reis possuídos de tanta agudeza de espírito e prudência, de modo a ver tudo corretamente.
Dados os vícios e defeitos do homem, é melhor que muitos governem, para que possam assistir-se mutuamente e mutuamente se admoestar.
O magistrado deve se guardar contra os extremos, nem severidade excessiva, nem indulgência demasiada.
Cita Calvino o que se dizia a respeito de Nerva: “Na verdade, é coisa má viver sob o domínio de um príncipe para o qual nada é lícito, mas é muito pior viver sob o domínio de um para quem todas as coisas'são lícitas”.
Com respeito à guerra, às vezes é necessário ao rei e ao estado tomar armas para executar a vingança pública.
Dependendo das razões, a guerra é um meio aceitável e legal, pois, como lhe é necessário manter a tranqüilidade dos seus súditos, reprimir as sedições, cabe-lhe utilizar-se das armas para defender a tranqüilidade do indivíduo, como da comunidade.
O príncipe, no entanto, deve se armar não somente para reprimir os crimes por meios judiciais, mas também guardar os seus cidadãos dos assaltos hostis de outros povos.
Mais do que os pagãos, devemos experimentar todos os recursos antes de recorrer às armas.
O interesse público é que pode exigir a guerra e não o nosso particular.
TAXAS E IMPOSTOSAs taxas e impostos são rendas legítimas dos prín
cipes e devem ser principalmente empregadas para manter as responsabilidades do seu ofício. Delas pode utilizar-se para manter as suas propriedades domésticas condizentes com a dignidade de seu exercício .
As rendas públicas não devem ser desperdiçadas nem dilapidadas •— Romanos 13.6, 7.
Devem os príncipes considerar que as suas rendas, tributos e taxas, são meros subsídios às necessidades públicas e que é tirania e rapacidade oprimir o povo com elas, sem devida causa. Nem deve o povo estigmatizar os príncipes pelos seus gastos, a menos que excedam os limites naturais com respeito às leis, as leis são os nervos do governo. Cícero e Platão as chamavam a alma do governo, sem a qual a autoridade não se pode exercer. As leis não terão nenhum efeito sem os magistrados.
As leis são o magistrado mudo; e o magistrado é a lei viva.
A lei de Moisés se dividia em lei moral, lei cerimonial e lei judicial.
Cada uma delas merece atenção na sua parte, tanto quanto elas nos dizem respeito.
A lei moral nos leva a adorar a Deus com fé e piedade, a envolver os homens com afeição sincera,
eterna regra da justiça que agrada a Deus em todos os tempos e nações.
A lei cerimonial pertencia aos judeus para a sua tutelagem.
A lei judicial, dada a eles como uma espécie de norma, derivava de certas formas de justiça, pelas quais eles deviam viver juntos em paz e pureza.
Cada nação tem o direito de promulgar suas leis, conforme o interesse do seu povo, mas essas leis devem ser testadas pela regra do amor; podem variar na forma, mas devem obedecer ao mesmo princípio— o princípio da eqüidade.
Devemos observar a lei moral que Deus nos oferece em a natureza e na consciência para nosso testemunho.
A eqüidade Deus gravou na mente do homem.Qual é a utilidade que uma sociedade cristã de
riva da lei, dos processos judiciais e dos magistrados?
Essa pergunta está relacionada com outra questão: qual a deferência que os indivíduos em particular devem manter para com o magistrado e até onde procede a obediência a eles?
O cristão deve se valer das leis e autoridades para preservar os seus próprios direitos, sem ódio para com o inimigo, para manter o interesse público e exigir a primazia das leis morais, as quais não se modificam senão pela morte.
Com respeito à passagem de 1 Coríntios 6.6, citada por alguns, para dizer que Paulo condenou qualquer demanda judicial, Calvino explica.
São Paulo está aqui tratando do litígio legal entre os irmãos, o qual podia ser resolvido pela igreja.
Condenava a facilidade com que alguns iam aos tribunais contra seu irmão, sem mais nem menos, quando, às vezes, seria melhor abrir mão de algum direito para o bem da igreja, evitando escândalo.
A regra no entanto, é: “O melhor conselheiro de todo homem é a caridade”.
Às autoridades devemos a obediência que elas requerem.
Um mau rei pode ser sinal de juízo de Deus para puniír a nação pelos seus pecados — 1 Samuel 24.9-11.
Davi assim se expressa: “Não estenderei a mão contra o meu Senhor, porque é ungido de Deus”.
O sentimento de reverência, e até mesmo de piedade, é devido aos que nos governam, qualquer que seja o seu caráter.
Nesse caso, não consideramos os indivíduos em si mesmos, mas a autoridade de que estão investidos.
A obediência não se deve apenas ao magistrado justo. Há uma exceção muito importante com respeito a obediência que o cristão deve aos governadores. Essa obediência não pode ser incompatível com a obediência àquele a cuja vontade o desejo de todos o? reis devia estar sujeitos. Como seria impróprio que, agradando aos homens, incorrêssemos na ofensa daquele por cuja causa obedecemos aos homens.
Convém lembrar o exemplo de Daniel, que embora fiel e obediente ao rei, deixou de obedecer o seu decreto, quando este o impedia de invocar o seu Deus. Por isso, Daniel dizia: “Também coiitrà a ti, ó Rei» não cometi delito algum”. “Importa mais obedecer a Deus do que aos homens” (At 5.29). Estaremos obedecendo ao Senhor, quando suportarmos tudo, para não jogarmos fora a nossa piedade. 1 Coríntios 7:23— “Fostes comprados por preço, não vos torneis escravos dos homens”.
ORAÇÃO, PERPÉTUO EXERCÍCIO DA FÉ
Já verificamos, anteriormente, que o homem é destituído de todos os meios hábeis para a busca da sua própria salvação; daí, a necessidade de buscar socorro em outra fonte.
O conhecer de Deus como soberano dispenseiro de todos os bens nos convida a apresehtar a Ele os nossos pedidos.
O espírito de adoção, que sela o testemunho do evangelho nos nossos corações, nos anima a apresentar nossos pedidos a Deus, e pedir com gemidos inexprimíveis, clamando: Aba, Pai.
Por meio da oração, podemos penetrar diante de Deus na busca das riquezas que Ele tem entesourado para nós, como nosso Pai Celestial.
É do nosso interesse, portanto, suplicar a Deus aquilo que precisamos: em primeiro lugar, que o nosso coração possa estar sempre inflamado de um verdadeiro desejo de buscá-lo, amá-lo, serví-lo, à medida em que nos acostumamos a recorrer a Ele para todas as nossas necessidades; segundo: que nenhum desejo ou aspiração de que nos envergonhemos entre em nossa mente, à medida que colocamos diante dele os anseios de nosso coração; terceiro, e último: que sejamos preparados para receber todos os seus benefícios com verdadeira gratidão e ações de graça, de vr que as nossas orações nos lembrem que tudo procede das suas mãos.
A Bíblia nos assegura que, embora Deus saiba todas as coisas, tem prazer, contudo, que nós lho peça- mos. Salmos 34:15: “Os olhos do Senhor estão sobre os justos e os seus ouvidos atentos ao seu clamor”.
E ainda mais: “Aquele que guarda Israel não dorme” (SI 31.3).
A primeira regra da oração deve ser: manter o coração e a mente preparados convenientemente, como quem vai apresentar-se diante de Deus e com Ele conversar. Isso significa que devemos pôr de lado os nossos pensamentos e cuidados carnais que possam, de algum modo, interferir com a nossa contemplação de Deus. Todas as preocupações estranhas devem ser banidas da nossa mente, para que não fiquemos vagueando aqui na terra, em vez de voltar para os céus.
Nada é mais prejudicial à verdadeira reverência que devemos a Deus do que a leviandade que nos afasta do verdadeiro temor de Deus.
A segunda regra com respeito à oração é que devemos pedir de acordo com a vontade de Deus. Salmo 52.8: “Quanto a mim, porém, sou como a oliveira verde jante na casa de Deus; confio na misericórdia de Deus para todo o sempre”. Embora Deus mesmo nos ordene a apresentar-lhe o nosso coração, derramando-o em súplica diante dele, Deus não nos concede indiscriminadamente o que pedimos levamos pela nossa insensatez e afeições depravadas.
Deus não se submete aos nossos caprichos, embora seja indulgente para conosco; devemos observar o que diz 1 João 5.14: “Essa é a confiança que temos para com ele, que, se pedirmos alguma coisa segundo a sua vontade, Ele nos ouve”.
Deus nos dá a direção do Espírito nas nossas orações, para nos ditar o que é direito, regular nossas afeições, para que não peçamos o que não devemos: “O Espírito faz intercessão por nós com gemidos inexprimíveis" (Rm 8.26).
Com razão, Paulo chama de gemidos aquilo que não pode ser dito em oração, que os crentes fazem sob a direção do Espírito, pois, aqueles que são exercitados na prática de oração sabem que as nossas ansiedades nos impedem de dizer aquilo que convém.
Orar de maneira certa é, pois, uma dádiva especial.
De modo que, cansados da nossa imperfeição e fraqueza, desejamos e aguardamos o auxílio do espírito. Paulo nos aconselha a orar no espírito e, ao mesmo tempo, não cessa de nos exortar à vigilância, pois, embora a inspiração do Espírito seja necessária à formação da oração, ela não impede a nossa iniciativa e esforço. 1 Coríntios 14.15. Uma outra regra com respeito à oração é que devemos sempre desejar seriamente aquilo que pedimos; as nossas orações devem ser acompanhadas de um desejo sincero de que elas sejam ouvidas.
Os crentes devem ter cuidado de sempre se apresentar diante de Deus com pedidos acompanhados de desejo sério de alcançá-los.
Quando, por exemplo, pedimos a Deus: Santificado seja o teu nome, deve haver em nós um desejo correspondente, ou uma fome e sede de que isso aconteça.
Admite-se que nem sempre as nossas orações são movidas do mesmo desejo ardente.
Tiago diz: “Está entre vós alguém aflito, ore. Está alguém alegre, cante salmos” (Tg 5.13).
De modo que o nosso bom senso nos dirige, para
que oremos a Deus com insistência, quando a ocasião requer.
Davi chama isso o tempo aceitável, quando Deus pode ser encontrado.
Por outro lado, o apóstolo Paulo, em Efésios 6.18, nos manda “orar em todo o tempo no espírito”.
Um homem pode ter abundância de trigo e de vinho, mas ele não pode utilizar-se de um pedaço de pão, a menos que a constante abundância de Deus o supra de tudo, daí, a razão de orar pelo pão diário.
Um dos requisitos da verdadeira oração é arrependimento. As Escrituras nos dizem que Deus não ouve a pecadores; que as suas orações e seus sacrifícios são abomináveis a Ele.
Por isso é que aqueles que, por sua dureza de coração provocam a Deus, o encontrarão inflexível: “Quando fazeis as vossas orações, eu não ouço; as vossas mãos estão cheias de sangue” (Is 1.15). Igualmente, Jeremias diz da parte de Deus: “Ainda que eles clamem a mim, eu não os ouvirei” (Jr 11.7,8,11).
Uma admoestação que se encontra em João convém observar: “Qualquer coisa que dele pedimos recebemos, porque guardamos os seus mandamentos, e fazemos diante dele o que lhe é agradável” (1 Jo 3.22).
Uma terceira regra com respeito à oração é que quem se apresenta diante de Deus deve fazê-lo despido de toda vangloria, pondo de lado qualquer idéia de merecimento, humildemente dando a Deus toda a glória, para que não aconteça que, por sua arrogância, Deus afaste dele a sua face. Assim, Daniel, a quem Deus atribuiu tão alta consideração, orava: “Não apresentamos nossas súplicas diante de ti, por nossa justiça, mas pela tua grande misericórdia. Oh Senhor, ouve, oh Senhor, perdoa, oh Senhor, ouve e faze; atende, por amor de ti mesmo, não retardes, oh meu Deus” (Dn 9.18-20).
Em resumo, o pedido de perdão, com humilde confissão de culpa, é uma preparação e começo próprio para a oração.
Deus é propício àqueles a quem Ele perdoa.
Davi, fazendo um pedido sobre um assunto diferente, dizia, no entanto: “Não te lembres dos pecados de minha mocidade, nem das minhas transgressões, de acordo com a tua misericórdia, lembra-te de mim, pela tua bondade, salva-me, Senhor” (SI 25.7).
Às vezes, os servos de Deus, ao fazerem suas súplicas, parecem apelar pela sua própria justiça, como Davi: “Guarda a minha alma, porque eu sou santo” (SI 86.2).
Também Ezequias: “Lembra-te agora, Senhor, rogo-te, como eu tenho andado diante de ti em verdade, e com coração perfeito, e tenho feito o que é bom diante de seus olhos (ls 38.3).
Estas expressões significam que tais pessoas se declaram entre os servos de Deus e filho a quem Deus assim os declarou, pela regeneração, e os coloca sob o seu favor.
Por outro lado, o que eles estão declarando é a justiça da causa que eles representam.
Quando se comparam com os inimigos de cuja injustiça desejam ser libertados, não é de se admirar que tragam perante o Senhor a sua integridade e singeleza de coração, para que Deus venha em seu auxílio.
Uma quarta regra para oração é que, com humildade, sejamos, contudo, animados pela esperança de sermos atendidos. Arrependimento e fé, de mãos dadas, unidos por um elo indissolúvel, se um causa terror, outro alegria, de modo que, na oração, ambos devem estar presentes.
Davi assim se expressa: “Quanto a mim, eu virei à tua casa na multidão das tuas misericórdias, e no teu temor eu te oferecerei culto no teu templo” (SI5.7). .
O melhor estímulo que os crentes têm para orar, quando em grande inquietação e movidos pelo desespero, é a fé de que Deus está pronto a estender-lhes •i mão para ajudá-los. A este respeito se aplicam as palavras de Jesus: “Portanto eu vos digo, qualquer coisa que desejardes, quando orardes, crendo que recebe- reis, vos serão dadas” (Mc 11.24 e Mt 21.22).
De acordo com essas palavras, afirma Tiago: “Se alguém tem falta de sabedoria, peça a Deus, que a todos dó liberalmente e nada lhe impropera, e ser-lhe-á concedida".
Em resumo, é a fé que obtém o que a oração nos dá.
Os nossos muitos pecados devem-nos impelir à oração.
O salmista nos dá um exemplo: “Cura a minha alma, porque eu pequei contra Ti” (SI 41.4).
Deus mesmo nos concita a orar e nos recrimina, se não obedecemos a essa injunção: “Clama-me no dia da angústia" (SI 1.15). “Pedi e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á” (Mt 7.7).
As passagens que nos ordenam a orar nas Escrituras nos inspiram a confiança em fazê-lo. Deus mesmo abre caminho a nós pela sua Palavra: “Eu direi, é meu povo, e eles dirão o Senhor é meu Deus" (Zc 13.9).
Lembremo-nos especialmente das palavras do salmista: "Oh, tu que ouves a oração, a ti virá toda a carne" (SI 65.2).
Deus se dirige a todos, dizendo: “Clama-me no dia da angústia: Eu te livrarei, e tu me glorificarás" (SI 50.15).
Joel, depois de predizer o terrível desastre que estava para acontecer, acrescenta a seguinte sentença memorável: “E acontecerá que qualquer que clamar pelo nome do Senhor será salvo”. E também Isaías exclama. "E acontecerá que, antes que eles clamem, eu responderei, enquanto eles estiverem falando, eu ouvirei".
Essa honra Ele confere à sua igreja inteira, a todos os membros de Cristo: “Ele clamará a mim e eu lhe responderei, estarei com Ele na sua angústia, eu o livrarei, e ele me glorificará" (SI 91,15).
As bênçãos dessas orações virão sobre os que clamam a Deus com confiança, pois que Ele mesmo nos estimula a fazer.
Quando não há uma promessa certa, os nossos pe
didos a Deus devem ser condicionados. Assim, Davi ora: "Desperta-te em meu favor, conforme o juízo que designaste” (SI 7.6).
As orações prejudicadas pelas faltas dos que oram merecem ser rejeitadas, a menos que os crentes lamentem, façam a correção e busquem o perdão de Deus.
Com respeito à petição de perdão, Davi assim diz: "Os sacrifícios para Deus são um coração quebranta- do, a um coração quebrantado e contrito tu não des- prezarás» ó Deus (SI 51.17).
Cristo promete que obteremos resposta das orações que fizermos em seu nome: “Tudo que pedir des em meu nome eu o farei; até agora não tendes pedido em meu nome, pedi e recebereis, para que o vosso gozo se cumpra” (Jo 14.13 e Jo 16.24).
Convém notar que Cristo ordena aos seus discípulos recorrer à sua intercessão, depois que Ele tiver subido aos céus: “Naquele dia pedireis em meu nome” .
Desde o princípio, todas as orações foram ouvidas por meio do Mediador. As orações feitas a Deus, desde o princípio, pelo seu povo foram recebidas pela intercessão de Cristo. No entanto, depois de subir aos céus, Jesus tornou-se mais do que nunca o advogado da sua Igreja.
Isaías proclama a singular misericórdia, dizendo: “Cantai ao Senhor um novo cântico” e também: “Abre, Senhor, os meus lábios e a minha boca entoará o teu louvor".
Toda vez que o crente pede a Deus alguma coisa, pede por amor do seu próprio nome.
Paulo nos exorta, dizendo: “Orai sem cessar, em tudo dai graças” (1 Ts 5.17,18).
Deseja ele que sejamos constantes em todo o tempo» em todos os lugares, em todas as coisas, em qualquer circunstância, nas nossas orações a Deus.
Esta constância na oração, embora se dirija especialmente às orações individuais, estende-se também às Igrejas. O Templo foi chamado pelo Senhor de casa
de oração, Isaías 56.7, mostrando que uma das partes principais do culto é a oração. E uma grande promessa foi acrescentada: “O louvor te espera, Senhor, em Sião e a Ti os votos que serão formulados" (SI 65.1).
Com essas palavras, o salmista nos lembra que.,as orações da igreja não são em vão, porque Deus sempre oferece ao seu povo razões para cantos de alegria. O templo representava para os judeus o lugar da presença de Deus, no entanto, o valor da oração está em que ela provém de lábios e de coração que realmente honram o Senhor.
O uso dos cânticos nas Igrejas não é apenas antigo, mas foi usado pelos apóstolos, conforme a palavra de São Paulo: “Eu cantarei com o Espírito, e cantarei também com entendimento” (1 Cl 14.15) e ainda diz ele aos Colossenses: “Ensinando e admoestando uns aos outros com salmos e hinos e cânticos espirituais, cantando com graça em vossos corações ao Senhor” (Cl 3.16).
De modo que o único caminho de acesso a Deus e ao trono da sua graça é por meio de Jesus Cristo. “Cristo, portanto, é o único Mediador, por intermédio do qual o Pai é propiciado” (1 Tm 2.5).
Erram aqueles que alegam que Jesus é o Mediador da redenção, mas que os crentes são mediadores da intercessão, como se Cristo tivesse realizado uma mediação temporária apenas e tivesse deixado a mediação eterna e imperecível a seus servos.
Mui diferente é a linguagem da Escritura, pois que João diz: “Se alguém pecar, temos um advogado com o Pai, Jesus Cristo, o justo" (1 Jo 2.1).
Com respeito à intercessão dos santos, condena-a Calvino pela absoluta falta de apoio bíblico e alega: Que eles não podem ser invocados sem que isso não ofenda a Deus, pois rouba a Deus a sua glória, anula a intercessão de Cristo, contraria a Palavra de Deus e é oposta ao verdadeiro método de oração.
Com respeito à forma de oração, embora pareça confinada aos votos de súplicas, há uma ligação mui
to íntima entre petição e ação de graça. Em Timóteo 2:1, Paulo diz: "Exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graça, em favor de todos os homens”.
Uma vez que tudo o que temos e tudo que recebemos através das orações são dádivas de Deus, de quem procede todo o bem, devemos não somente pedir, mas agradecer.
Expressar constantemente as nossas ações de graças pelos seus favores. Será uma ingratidão nossa receber suas bênçãos e não lhe render louvores. Contemplar as suas bênçãos e não lhe dar graças.
É claro que as orações públicas não devem ser em grego entre os latinos, nem em latim entre os franceses ou ingleses, como tem sido praticado até agora, em toda a parte; mas na língua vulgar, para que todos os presentes possam entender, para edificação de toda a Igreja.
O apóstolo São Paulo condena a oração que não é intelegível: "Quando tu abençoares com o espírito, como é que o que ocupa o lugar do não instruído dirá Amém à tua ação de graça, desde que não entende o pedido?” (1 Co 14:16).
Toda oração, pública ou particular, em que houver palavras sem entendimento será desagradável a Deus.
Por outro lado, não é necessário haver palavras na oração particular, desde que o sentimento íntimo substitua as expressões da língua. Assim era a oração de Ana, em 1 Samuel 1.13.
Olhemos, agora, a forma da oração que o nosso Pai celestial nos entregou por meio de seu Filho amado e que se encontra em Mateus 6.9-15 e Lucas 11.2-4.
Nesse modelo de oração, atendendo a nossa ignorância, o Senhor nos ensina que devemos pedir de acordo com o nosso interesse e o que é necessário às nossas necessidades, evitando aquilo que não convém e não é agradável a Ele.
Essa forma de oração contém seis petições, o primeiro lugar é designado à glória de Deus e mui espe
cialmente as três primeiras petições. As restantes são dedicadas ao nosso interesse e àquelas coisas que nos é lícito pedir. Quando pedimos que o nome de Deus seja santificado, Deus deseja provar se o amamos e servimos livremente, ou se pela esperança da recompensa não estamos pensando somente no nosso interesse.
Devemos colocar a sua glória diante de nossos olhos e colocar nela todo o nosso intento.
Nas outras petições, esta é também a maneira que nos devemos dirigir.
É verdade que o nosso próprio interesse é grandemente promovido, porque se o nome de Deus é santificado na maneira em que nós pedimos, resulta também na nossa santificação. De outro modo, quando pedimos o pão de cada dia, não obstante desejemos aquilo que é para o nosso próprio bem, devemos esr pecialmente buscar a glória de Deus, pois nada devemos pedir que não redunde em sua glória.
MEDITANDO NA VIDA FUTURA
Qualquer que seja a tribulação com que formos afligidos, devemos considerá-la como uma oportunidade para que nos habituemos a desprezar a vida presente e aspirar à vida futura.
Tiraremos o devido proveito da disciplina da Cruz, quando aprendemos que a vida, em si mesma, é sem repouso, atribulada, afligitiva de muitas maneiras, e nada feliz.
Aprenderemos a dedicar nossos desejos e esperanças ao futuro e aprenderemos a desprezar o presente .
Não há meio termo — a terra deve ser considerada sem valor em nossa avaliação ou nós nos manteremos escravizados por amor dela.
Se temos qualquer consideração para com a eternidade devemos libertar-nos das algemas do presente.
Todavia, o nosso desprendimento da vida terrena não deve ser uma espécie de ódio ou de ingratidão para com Deus; pois, apesar de todos os males, a vida é povoada de bênçãos divinas, que não devem ser desprezadas .
Se, pois, reconhecemos nela a bondade de Deus, não deve ser pequena a nossa gratidão a Ele pela vida que temos. Antes de nos mostrar com mais clareza a herança da glória celeste, aprouve a Deus manifes- tar-se-nos como Pai, em demonstrações menores, por exemplo, as bênçãos diárias com que Ele nos agracia.
À medida , que o nosso apego à vida presente diminuir, deve aumentar em nós o deSejo de uma vida melhor.
Todos aspiram a uma situação permanente, por isso devemos buscar a imortalidade.
Se o céu é a nossa Pátria, que poderá ser a terra, senão o nosso exílio?
Se a vida futura é que é a verdadeira vida, este mundo é um sepulcro.
Se nos libertarmos do corpo, ganhamos a liberdade, e esse corpo presente não é mais do que uma prisão.
Contudo, devemos estar dispostos a continuar aqui, se Deus nos tem dado na terra um papèl a desempenhar,* até que Ele mesmo nos convoque para fora daqui.
Sê nos convém viver e morrer para o Senhor, deixemos o período da nossa vida e a nossâ morte à disposição dele. Muitos cristãos têm medo de ouvir falar da morte.
Até certo ponto é racional esse medo. Mas, a luz da piedade deve oferecer poder em Cristo para vencer esse temor . A Igreja — ò corpo dá fé — tem que viver neste mundo como ovelhas para o matadouro, para se conformar com Cristo, o seu cabeça.
A cruz de Cristo somente triunfa ho coração do cristão contra o diabo, a carne ê o pecado, quando seus
olhos se fixam diretamente no poder da ressurreição. Romanos 8.36.
Como usar a vida presenteSe somos passageiros nessa vida, então, devemos
usar das bênçãos que ela nos oferece, somente no limite em que elas assistam ao nosso progresso e não o retarde.
Deus não consulta apenas a nossa necessidade, mas também o nosso prazer e o nosso gozo, ao dar-nos as coisas desta vida.
As dádivas de Deus são para o bem e não para a nossa destruição.
Ele não nos dá as coisas desnecessariamente. O Senhor nos ordena a cada um de nós a nossa atividade nesta vida, por isso, devemos respeitar a nossa vocação .
A luxúria é a causa de grandes cuidados e os cuidados a causa dos descuidos da virtude.
Para que as coisas não sejam atiradas em confusão, Deus determinou a cada um de nós deveres distintos, de acordo com o nosso modo de vida.
Cada um, na sua maneira de viver, ocupa uma posição a ele determinada por Deus, para que não esteja sempre ao léu da sorte.
De modo que o Senhor nos ordena a cada um em todas as atividades da vida levar em conta a nossa vo* cação.
Essa é uma admirável consolação: saber que, segundo o chamado de Deus, nenhum trabalho será tão baixo ou sórdido que não tenha brilho ou valor diante do Senhor.
Carregando a crus — uma parte darenúncia do cristãoAqueles a quem o Senhor escolheu, a quem honrou
com o seu chamado para uma vida superior, devem estar preparados para enfrentar toda espécie de males, pois, começam com Cristo e continuam com Ele.
Como seriamos isentos do que Cristo mesmo sofreu? A única razão para que Cristo tomasse a Cruz é a prova da obediência ao Pai.
Nós somos aflitos quando condescendemos à confiança da carne Salmos 30.6,7: “Quanto a mim, dizia eu na minha prosperidade: Jamais serei abalado. Tu, Senhor, por teu favor fizeste permanecer forte a minha montanha; apenas voltasse o rosto, fiquei logo conturbado” .
Quando somos exortados por Deus nos toriwnos humildes.
São Paulo nos ensina que a tribulação produz paciência; e a paciência a experiência — experiência de que Deus nos oferece ajuda.
Deus nos prova a paciência, e nos exercita em obediência. Pedro nos diz que a nossa fé é provada como o ouro no fogo. Abraão foi provado e tentado — Gênesis 21.1-12. .
Para evitar que nos tornemos ousados pela supe- rabundância das riquezas; ou enfatuados com orgulho por outras vantagens do corpo, da mente e da fortuna, e nos tornemos insolentes, Deus interfere por meio da cruz para subjugar a nossa arrogância, de várias maneiras .
Deus não trata a todos do mesmo modo, uns com mais brandura, outros com mais dureza, mas para prover cura a todos. Ninguém fica isento, porque Ele conhece a todos.
Devemos reconhecer a bondade do Senhor em todas as tribulações. Provérbios 3.11,12 “Filho meu, não rejeites a disciplina do Senhor, nem te enfades da sua repreensão. Porque o Senhor repreende a quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem”.
Perseguidos por causa da justiça — por causa do evangelho, concede-nos uma consolação especial.
Pobreza, considerada em si mesma, é miséria; assim, o exílio, a prisão, a ignomínia, mas a última de todas as calamidades é a morte.
Mortos, entramos na vida eterna.Se Jesus Cristo sofreu o suor e lágrimas até de
sangue, quê devemos nós sofrer?O filósofo diz: tem que ser — em face da calamida
de, mas nós não devemos aceitar o sofrimento como
fatalidade inevitável. Nós obedecemos a Deus, não somente porque é necessário e inevitável, mas, se a tribulação é salutar, por que não recebê-la como calma e gratidão?
Suportando-a pacientemente, nós estamos-nos submetendo não à necessidade, mas procurando o nosso próprio bem. Daí vem a gratidão, que é fruto da alegria.
Assim, temperamos as amarguras da cruz com a alegria espiritual.
A VIDA DO CRISTÃO - ARGUMENTO DAS ESCRITURAS
O objetivo da regeneração é trazer a vida do crente a uma, situação de acordo e harmonia com a justiça de Deus e, assim, confirmar a adoção, pela qual são recebidos por Deus como filhos.
As Escrituras se propõem estes dois objetivos principais na santificação.
O primeiro é que o amor à justiça, a que somos por natureza pouco inclinados, seja implantado em nós.
O segundo é prescrever normas que nos livrem, de, na busca da justiça, nos desviarmos do Caminho.
As Escrituras têm muitos e admiráveis meios de recomendar à justiça e à retidão.
Lembram-nos que devemos ser santos, porque Deus é santo.
Levítico 19.1 “Santos sereis, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” e I Pedro 1.16” “Porque escrito está: sede santos, porque eu sou santo".
Pois, nós nos encontrávamos como ovelhas tresmalhadas nos labirintos deste mundo, quando Ele nos trouxe de volta ao seu redil.
Santidade é o elo da nossa união com Deus.“ us, por causa " sua g" ' ia, ~ 1 cor “o
com a maldade e impureza. <\ \Por isso, Ele nos diz que esta é a finalidad^&gQ
nossa vocação, a qual devemos respeitar, se qirájçèirS» corresponder a esta vocação — “Quem habitáM.^jp? ta- bernáculo teu, Senhor? O que vive c i.<iiitegrtdade e pratica a justiça, e, de coração, fala (à. v@ w le. Quem subirá ao monte do Senhor? Q u e ^ ^ üe^èrm anecer no seu santo lugar? O que é limpbkx^m s e puro de coração, que não entrega a suar^mna^à falsidade e nem jura dolosamente” (SI 2 ^ \3 U ^)
E melhor ainda: par\nqsjefguer a Deus, o Pai, que, tendo nos reconciliadoxconàigo mesmo no Ungido, imprimiu em nó&aimlgieVn que Ele quer-nos confirmar.
Diferent<OT\ C:eNç3õs filósofos, que pensam que podemos exe c ^ r v irtu d e , recomendando-nos viver conforme a /n t\^ e z a , a Palavra de Deus acrescenta que Cri to r^^w es de quem fomos restaurados ao favor de Bçi í 0i\e<5ioca diante de nós, como modelo, a imagem
r\dCKmfâí devemos expressar.\V O Que mais poderíamos desejar?
^ Se Deus se revela a nós como Pai, seremos extremamente ingratos se nao nos mostrarmos a ü,ie com o filhos.
Se Cristo nos purificou com o seu sangue e nos restaurou com o batismo, é incompreensível que nós nos poluíssemos.
Uma vez que o Espírito Santo nos dedicou como templo do Senhor, devemo-nos esforçar, de todo o coração, para manifestar a glória de Deus e nos guardar mo$ de ser profanados e manchados pelo pecado.
Já que nosso corpo e alma se destinam aos céus, devemos esforçar-nos para mantê-los incorruptíveis até o dia do Senhor.
Aqui é o lugar de se dirigir um apelo aos que são cristãos de nomes e de sinais apenas, quanto a como usar esse nome.
Os evangelhos nos dizem que ninguém aprendeu a Cristo realmente, sem abandonar o velho homem que é corrupto.
Efésios 4.22: “Quanto ao trato passado, que vos despojeis do velho homem que se corrompe segundo as concupiscências do engano”.
Doutrina não é uma questão de palavras, mas de vida; não é aprendida pelo intelecto e memória somente, como outro ramo do conhecimento, mas é recebida somente quando possui a alma e encontra assento no mais íntimo do coração.
Cessemos, pois, de insultar a Deus !A vida cristã nos conduz ao verdadeiro evangelho
que se deve buscar e desejar.Não insiste Calvino na estrita perfeição evangéli
ca, a ponto de não reconhecer como cristãos aqueles que ainda não a têm atingido, pois, assim, todos seriamos excluídos da Igreja, uma vez que ainda estamos longe dela.
Somos todos limitados por muitas imperfeições, mas aquele que não faz nenhum progresso, cada dia vai mal.
Façamos as coisas que concorrem para esse progresso, não nos deixemos vencer pelo desânimo.
O que convém é uma mei te singela, sem duplicidade, sem auto engrandecimento, evitando os vícios, num constante esforço para melhor
Se assim o fizermos, quando no final libertados das enfermidades da carne, seremos admitidos à plena comunhão com Deus.
Aspectos NegativosEmbora a lei do Senhor contenha as regras per
feitas e admiráveis para a nossa maneira de viver or
denada, pareceu bem ao divino Mestre acrescentar ao seu povo um método mais apurado.
O princípio supremo é que o crente deve apresentar o seu corpo como sacrifício vivo, santo e aceitável a Deus, que é o seu culto racional. Romanos 12.1.
Daí a exortação: “Não vos conformeis com este mundo, mas transiormaivos. . . ” (Rm 12.2).
A grande questão é: somos consagrados a Deus, então, não devemos pensar, falar, planejar ou agir sem ter em vista a sua glória.
O que Ele consagrou, não pode, sem que signifique um insulto a Ele, ser dedicado ao uso profano.
Nós não somos de nós mesmos -— portanto, quanto for possível, esqueçamo-nos das coisas que são nossas.
Somos de Deus, vivamos e morramos para Ele.Romanos 14.8 “Porque se vivemos, para o Senhor
vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor”.
De modo que o primeiro passo é abndonarmo-nos e nos dedicarmos, com toda a energia da nossa mente, ao serviço de Deus.
Por serviço, não queremos dizer somente a obedien- cia verbal, mas aquilo que a mente, despida de seus sentimentos carnais, implicitamente obedece segundo o chamado do Espírito de Deus.
A transformação que ò apóstolo São Paulo chama de renúncia da mente — Romanos 12.2 e Efésios 4.23.
É isso a completa submissão ao Espírito Santo, de modo que o homem não vive mais para si, mas Cristo vive, reina nele. Gálatas 2.20 “Logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” .
Dai vem um outro princípio — que não procuremos a nossa própria vontade, mas a do Senhor, e tu do façamos com vistas primeiro a sua glória.
Uma vez que Cristo toma posse da mente cio cristão, não há lugar para orgulho, exibição, ostentação, desejos da carne, nem. luxúrias, nem efeminação, ou outros vícios resultantes do amor a si mesmo.
O velho ditado afirma: há um mundo de iniqüida-
des entesourado na alma humana. E não há outro remédio senão negar-se a si mesmo.
Renunciar a tua razão e dirigir a tua mente em busca das coisas que Deus requer de ti — somente porque só isso lhe agrada.
Numa outra passagem, Paulo dá uma breve, mas distinta apresentação de cada parte da vida cristã bem ordenada.
Tito 2.11-14 “A graça de Deus se manifestou para a salvação de todos os homens, educando-nos para que, renegadas as impiedades e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente, aguardando a bendita esperança e manifestação da glória de nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo”.
Depois de dizer que a graça de Deus nos anima e aplaina o caminho para o verdadeiro culto a Ele — remove dois grandes obstáculos, a impiedade e as con- cupisciências mundanas — então, nos leva a ambas as tábuas da lei. A nossa mente renuncia qualquer coisa que a razão não dita: sobriedade, castidade, temperança e frugalidade no uso dos bens temporais.
Justiça compreende todos os deveres da eqüidade; e piedade nos livra da poluição do mundo e nos une a Deus.
Paulo nos diz que somos peregrinos neste mundo e, para que possamos obter herança celestial, é preciso que tenhamos humildade de coração, que só se adquire com uma opinião humilde a nosso respeito.
Ê difícil buscar o bem do nosso próximo, por isso, é de mister a nulificação do nosso eu, a fim de que realizemos a divina caridade, pois o dever da caridade é muitas vezes cumprido por mera formalidade, com orgulho e desprezo.
Coloquemo-nos no lugar do que necessita assistência.
Não devemos desejar a prosperidade, à parte das bênçãos de Deus, pois, nada vale a prosperidade que o Senhor não nos dá. A prosperidade verdadeira vem do Senhor, mas a bênção do Senhor não pode estar onde há fraude e rapina.
Como é que podemos aspirar que Deus nos ajude a adquirir as coisas contra a sua lei?
Se o nosso sucesso não corresponder às nossas expectativas, não nos devemos tornar impacientes, nem murmurar contra Deus.
Todo aquele que o Senhor escolheu e honrou com a admissão na sociedade dos santos deve se preparar para uma vida dura, laboriosa, inquieta e cheia de várias calamidades.
Quem deseja a bênção do Senhor não usa meios -ilícitos.
Se a sua colheita foi arruinada com geada e saraiva, e vê, por isso, a fome perto, mantenha a confiança em Deus, sem murmurar contra Ele.
“Quanto a nós, teu povo e ovelhas do teu pasto para scempre, te daremos graça, de geração em geração proclamaremos os teus louvores" (SI 79.3).
Se aflito com enfermidades, as dores não o vencerão, fazendo tornar-se contra Deus, mas, reconhecendo a justiça e a razoabilidade da correção, pacientemente se sujeitará.
O que quer que aconteça, sabendo que provém do Senhor, receberá com paciência, com serenidade e gratidão.
O cristão não deve, como os pagãos, imputar os males à má sorte, cega, que fere o bom e o mau.
A regra da piedade é que o Senhor é o árbitro da fortuna de todos, que não age com violência cega, mas dispensa o bem e o mal com perfeita regularidade.
A liberdade cristãA liberdade cristã, segundo Calvino, parece con
sistir de três partes. Em primeiro lugar, a consciência dos crentes na busca da certeza da sua justificação diante de Deus, tem que se colocar acima da lei e não pensar em ser justificado por ela.
A questão não é como podemos ser justos, mas como, apesar de injustos e indignos, podemos ser tra tados como justos. Essa primeira parte se encontra exposta com clareza na epístola aos Gálatas.
A segunda parte da liberdade cristã é que a consciência livre do jugo da lei obedecerá a Deus, o que não poderia ser feito enquanto estivesse debaixo da lei.
Livres das imposições severas da lei, estaremos em condições de, com alegria, voluntariamente responder ao chamado de Deus.
A terceira parte da liberdade consiste no uso livre das coisas secundárias. O conhecimento dessa parte nos liberta da superstição e remove a nossa perturbação.
A epístola aos Romanos trata dessa parte.Com respeito à liberdade cristã, naquelas coisas
que são essenciais, não nos devemos omitir com medo e ofender ao próximo, ofendendo a Deus.
Com respeito às coisas secundárias devemos agir com tolerância e simpatia para com os fracos, para a paz, e não para dissensão.
Parece-nos, então, que a regra certa é aquela dada pelo apóstolo PauloTodas as coisas são lícitas» mas nem todas as coisas convém; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam. Ninguém busque o seu próprio interesse mas o que é de outrem” (1 Co 10.23,24).
Nada parece mais claro do que esta regra de qu« não usemos da nossa liberdade, se não for para edificação do nosso próximo, se não for para o bem dele.
NOTAS DA III PARTE
1. Les Cahiers de Foi et Calvin et Luther, Angelo Lemaitre Genève, 1950.
2. The W ord of God and The W ord of Man, p .34
3. Prefácio, 1559, pg. 171
4. Church Dogmatics, vol. 2. Edim burg: T .T . Clark, 1957
5. Louis Berkhof, Systematic Theology, Wn B. Eerdm ans Pu- blishing Co., pg. 15
6. Church Dogmatics, vol. 2.
7. Calvin Theologian, Essay Inserted in The Book by Duffild
— John Calvin, Wm. Eerdm ans Publishing Co., Grand Rapids, 1968.
8. Op. cit. pg. 155.
9. W arfield — Calvin and Calvinism, Oxford University Press, New York: 1931.
10. W arfield — Calvin and Calvinism, Oxford University Press, New York: 1931.
11. Ensaio Incerto no livro Reform atio Perennis, editado por B.A. Genish, em colaboração com Roberto B ernadetto, The Pickwick Press, Pittsburgh, Penn, 1981.
12. Leith, pg. 51
13. Leith pg. 52
14. Leith, pg. 52
15. H erm an Bavinck, Calvin and Reformation, Fleming and
Revel, Co. New York, pg. 121.
16. Tracts and Treatises, pg. 86, VI 1.
17. Calvin’s Sermon, The Deity of Christ and O ther Sermons, transla ted from the French and Latin by Leroy Nixon —
William Eerdm ans P. Co. Grand Rapids, 1950.
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10 — BIELER, André, Le Pense le Economique et Sociale DeCalvin, Libraire de L’Université George et Cie. SA, 1961A L’Université de Génève à 1’occasion de adm iration à son fondateur, Jean Calvin.
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20 — CALET, A., Philibert Berthelier, Fundateur de la Rt-pu-blic de Génève, Bourg, 1891
21 — Calvin Home D’Église, Geneva Committee for theFourth Centenary of Calvin, Génève, 1936.
22 — CALVIN, J., Institu tes — Translation by Allen the Presbyterian Board of Education, In troduction of B. Warfield, Philadelphia, 1909.
23 — CALVIN, John, Com m entaries on the Epistles of Paulto the Galatians and Ephesians, translated by W. Prin- gle, W. Eerdm ans, G rand Rapids, 1955.
24 — CALVIN, John, Commentaries, Philadelphia and London,1958.
25 — CALVIN, John, Commentary of The Epistle of Paul the Apostle to the Romans, T radutor John Owen W.D., Eerdm ans P. Co., Grand Rapids MI, 1955.Dedicado a Simon Grynaeus, um homem digno de toda a honra (um convertido alemão de grande cultura, que sofreu prisão por causa de sua fé).
26 — CALVIN, John, Commentary of the Book of Psalms, Vol.IV, traduzido por Jam es Anderson, W .D. Eerdm ans P. Co., Grand Rapids MI, 1949.
27 — CALVIN, John, Commentary of the Cospel according toJohn, T radutor W. Pringle, W .D. Eerdm ans P. Co., Grand Rapids MI, 1956. Comentário dedicado aos sín-- dicos e ao concilio de Genebra que ■em tempos tão difíceis, têm recebido e protegido os banidos de outros países pela m aldade cruel e tirânica do anti-cristo.
28 — CALVIN, John, Commentary on the Epistles to Timothy,Titus and Philemon, translated by W. Pringle, W. Eerdmans, Grand Rapids, 1948.
29 — CALVIN, John, Commentary on Seneca’s de Clementia,translato r Ford L. Battles, Brill Leiden J., 1969.
30 — CALVIN, John, Commentary of a Harm ony of the Evan-gelists, Matthew, M ark and Luke, Vol. 1, T ranslated by William Pringle, W.D. Eerdm ans P. Co., Grand Rapids MI, 1949.Dedicado ao Burgom estre e ao concilio da nobre cidade de F rankfurt, com agradecim entos especiais pelo acolhimento de refugiados e perseguidos franceses.
31 — CALVIN, John, Conceming The Scandals, translated byJohn Frazer, Wm. Eerdm ans P. Co., G. Rapids MI, 1978. Uma exposição dos escândalos e seus perigos na vida da Igreja. Oferecido ao grande amigo Laurent de Nor- mandis, Prefeito de Noyon, perseguido e sofredor.
32 — CALVIN, John, Conteúdo do II Volume de Tratados deCalvino, Publicação de Calvin Translation Society, Edin- burg, 1849 e reeditado em 1950, Wm. Eerdm ans P. Co., Grand Rapids MI, com prefácio de T. Torrance.a) Catechism of the Church of Geneva.b) Several Godly Prayersc) Form of prayers for the Church.d) Form and m anners of celebrating marriagee) Visitation to the sickf) Brief form of confession of faithg) Confession of faith in name of the Reformed Church
of Franceh) Short Treatise on the Supper of Our Lordi) Mutual consent in regard to the Sacram entj ) Second Defense of the Faith Conceming the Sa
cram ent1) Last admonition to Joachim Westphalm) The True partaking of the Flesh and Blood of Christn) The Best Method of Obtaining Concord
33 — CALVIN, John, E ditor Henry Van Andei, The GoldenBooklet of the Christian Life, a modern Translation from the Fhench, and Latin, Edited by Henry Van Andei, Baker Book House, Grand Rapids MI, 1952.Uma preciosa e bem cuidada separata de um a das partes das Institu tas que tem sido utilizada na Holanda e outrop países da Europa. Aparece nas três últim as edições das In stitu tas com o título de Vita Christiana — sobre a vida cristã.
34 — CALVIN, John, Prefácio à Antropologia de Nicolas Du-Chemim, Paris, 1531.
35 —; CALVIN, John, Tracts and Treatises — Translated fromthe original Latin by Hebry Veveridge, Vol. I, Eerdm ans P.C .a) Carta do Cardeal Sadoleto ao Senado e ao povo de
GenebraResposta de Calvino à carta de Sadoleto
b) Artigos aceitos pela Faculdade da Sagrada Teologia de Paris com Antidoto
c) A necessidade de reform ar a Igrejad) Carta do Papa Paulo II I ao Im perador Carlos V.
Anotações na carta do Papa Paulo IIIe) Admoestações com respeito às relíquias
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