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Reportagem de Camila Kehl para a revista Primeira Impressão.
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3 percepções para uma trilogia As diferentes relações de fãs com a saga familiar O Poderoso Chefão
Ato I
O sujeito não precisa ter sangue italiano correndo nas veias ou ser entendido de
cinema, nem mesmo precisa ter assistido toda a trilogia. Bastam as primeiras notas do
famoso tema de Nino Rota para identificar: “Essa não é a música de O Poderoso
Chefão?”.
A obra virou referência na cultura pop, inspirou games, resultou em diversas
compilações de extras, álbuns de fotos e todo tipo de memorabilia, até foi citado em
seriados de TV, como A Família Soprano e Os Simpsons. Sucesso de crítica e de
público, a sequência entrou para a seleta lista de clássicos cinematográficos
incorporados ao imaginário popular. Que pistas que O Poderoso Chefão pode nos dar
para entender o alcance dessa obra ganhadora de três Oscars?
A trilogia O Poderoso Chefão é uma adaptação do romance do escritor Mario
Puzo e foi dirigida por Francis Ford Coppola. O diretor conta a saga da família siciliana
(e mafiosa) Corleone, chefiada pelo patriarca Don Vito, que divide com outras
“famiglias” o controle do crime organizado e de negócios ilegais em Nova York. No
primeiro filme, Don Vito se vê às voltas com a sucessão do seu legado entre os filhos. O
mais novo, Michael, acaba por herdar o seu império. Na segunda parte, Coppola conta
duas histórias paralelas: a ascensão de Michael ao posto de Don, assumindo os negócios
da família, e a chegada do jovem Vito Corleone à América. Por fim, no terceiro e último
filme, um Michael Corleone amargurado pensa em sua sucessão, retorna à Sicília de
seus pais e tem um final melancólico e trágico. Achou o roteiro meio dramático? Pois
saiba que o caráter fatídico das trilogias não é receita nova e remonta à Grécia Antiga.
Ato II
Ésquilo, primeiro dramaturgo grego, conhecido como “o pai da tragédia”, foi
pioneiro nesta jogada. Escreveu a trilogia chamada A Orestéia, conjunto das três
tragédias Agamêmnon, As Coéforas e As Eumênides. “As trilogias eram poemas
dramáticos compostos por três tragédias, que apresentavam uma temática em comum,
com temas interligados, em que as personagens evoluíam dramaticamente dentro das
narrativas”, explica a professora do curso de Letras da Unisinos Maria Helena Campos
de Bairros. De acordo com Maria Helena, as trilogias remetem à ideia de começo, meio
e fim, mas essa dinâmica não impede que as histórias possam também ser lidas
isoladamente.
Ainda seguindo na tradição grega, talvez a mais conhecida tragédia tenha sido a
trilogia tebana formada por Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Quem não ouviu
falar pelo menos uma vez da clássica tragédia do filho Édipo que mata seu pai e casa
com sua mãe? O pai da psicanálise Sigmund Freud foi um que bebeu da fonte da
mitologia grega para construir o conceito de Complexo de Édipo.
Dando um pulo gigante na linha do tempo, podemos encontrar na literatura
brasileira algumas incursões no universo das trilogias. A referencial saga familiar O
Tempo e o Vento é um bom exemplo deste tipo de obra. Dividido entre O Continente, O
Retrato e O Arquipélago, o romance tem como pano de fundo a formação do Estado do
Rio Grande do Sul através da trajetória das famílias Terra e Cambará. Pelo visto, saga
familiar é um tema caro para trilogias em qualquer época e apaixona fãs através das
gerações. Felipe, Lucas e Eduardo estão aí para provar isso.
Ato III
Felipe Nabinger é um exemplo de fã tardio de O Poderoso Chefão. No caso
desse jornalista de 28 anos, o interesse pela história não foi precoce. Ao contrário de
outros admiradores da sequência, a vontade de conhecer os Corleone não foi fruto de
uma consciência que muitas vezes bate à porta de certos adolescentes que decidem que
precisam assistir aos clássicos fundamentais do cinema antes de se tornarem adultos.
Nessa época, Felipe não queria apreciar uma obra-prima. Ele estava jogando bola com a
gurizada, formando uma banda de post-grunge para conquistar meninas, aprimorando a
habilidade em lutas no game Street Figther. Depois que o “Lipe” chegou a 1,90m de
altura e perdeu alguns cabelos, resolveu ler o romance de Puzo e aí foi fisgado ao ponto
de recorrer à filmografia.
Felipe não é dado a discursos engajados, nunca gostou muito nem de diretório
acadêmico, mas acredita que existe no O Poderoso Chefão I – o seu favorito da trilogia
– certo teor ideológico. “Antes de ser uma história sobre máfia, temos ali uma história
sobre família, responsabilidades, lealdade e, por que não, uma crítica ao sistema político
vigente”, acredita. Felipe defende que a condição social da época retratada na obra
obrigou os ítalo-americanos a criarem um poder paralelo que os amparasse da falta de
oportunidades. Para o leitor que quer começar a assistir O Poderoso Chefão, indico
Felipe Nabinger para um primeiro bate-papo sobre o assunto.
No entanto, se você já é um fã da saga e está em um patamar de exigência maior
para discussões, então recomendo que converse com Lucas Furtado. Aos 19 anos, esse
estudante do curso de Realização Audiovisual da Unisinos curte analisar a trilogia
pensando na complexidade das narrativas e nos planos parados de Coppola. Quando
Lucas fala que O Poderoso Chefão II é o seu preferido entre os três, justifica a escolha
apontando o roteiro como o grande destaque. Explica que a narrativa do longa-
metragem foge do padrão mais convencional e estabelece uma quebra na ordem
cronológica ao contar de forma paralela duas histórias, a de Michael no presente e a de
Don Vito no passado.
Essa atenção especial de Lucas com a estrutura das narrativas tem explicação.
Ele gosta de escrever. “Sou mais ligado em roteiros”, foi uma das primeiras frases que
ele disse quando o contatei por telefone. Talvez por isso que o cuidado com a linguagem
cinematográfica chame tanto sua atenção.
Lucas não é o tipo de fã espalhafatoso. Ele é um admirador da trilogia mais à
moda Tom Hagen, o consigliere dos Corleone: discreto, mas preciso e eficiente nas
observações. Com aquele jeito paciente para ouvir, tal qual o braço direito de Don Vito,
Lucas atende com educação às perguntas curiosas sobre a tatuagem que tem no
antebraço do clássico logotipo da mão manipulando uma estrutura de marionete que
estampa os pôsteres dos filmes. E quando descubro que a paixão do Lucas pela sétima
arte se manifesta em outros desenhos em seus braços, já não me surpreendo mais com
tanto carinho que ele tem ao falar sobre produção cinematográfica: da mesma linhagem
do seu tio Jorge, Lucas Furtado começa a trilhar o caminho da sétima arte.
Agora, se você é um fã apaixonado, que assistiu a trilogia várias vezes e leu o
livro que deu origem ao filme outras tantas, se é do tipo que decorou e recita as falas
dos personagens para os amigos, então eu sugiro que combine um café com o jornalista
Eduardo Nozari. Uma dica: nesse dia reserve no mínimo uma hora e meia para o
encontro. A impressão que dá é que Eduardo passou os seus 23 anos assistindo
repetidamente O Poderoso Chefão. Ele é tão detalhista que cita erros técnicos em
diferentes cenas, mas se apressa em dizer que tais problemas são insignificantes e que
em nada prejudicam o andamento da trama.
Eduardo considera O Poderoso Chefão II uma obra-prima, em função da trama
mais complexa e do roteiro que se sustenta mesmo trabalhando com diferentes
contextos históricos. Eduardo é cauteloso e lançou os atributos técnicos logo de cara
para depois assumir a admiração deslavada por Al Pacino e sua interpretação
inspiradíssima de Michael Corleone. Quando o questiono sobre o terceiro filme da saga,
que é sempre tão criticado pelos cinéfilos, o jornalista me surpreende ao confessar que
por um bom tempo esse foi o longa da trilogia que mais assistiu. “Rolava muito no
horário do Corujão”, lembra. Entende que a expectativa gerada entre os fãs depois de
um hiato de dezesseis anos entre o segundo e terceiro filme tenha prejudicado a
compreensão da obra e considera o desfecho épico.
No final da nossa conversa, brinco com a ascendência italiana do seu sobrenome
e a relação com a saga. Eduardo de pronto rechaça o estereótipo, diz que na sua família
não existe nenhum traço de personalidade mais expansiva e que não cultiva nenhum
tipo de tradição do país. Apesar disso, o jornalista tem cidadania italiana e em 2011
passou um mês em Florença fazendo um curso.
Eduardo está feliz. Garantiu o ingresso para assistir Al Pacino em um espetáculo
na Broadway chamado O Sucesso a Qualquer Preço. “Foi no dia 28 de novembro, às
20h, assento J 106, na última fileira”. O que Eduardo Nozari não sabe é que, enquanto
ele conta isso, gesticula alegremente, agitando as mãos no ar, de um jeito característico
que dá para imaginar de onde venha.