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Capítulo 3 O gás e a poeira Um pouco mais de história O espaço entre as estrelas é praticamente vazio. A densidade média da matéria interestelar é tão baixa, que é menor do que a do melhor vácuo que se consegue em laboratórios (ver tabela 3-1). O leitor pode então se perguntar porque ficar conjeturando a respeito do espaço vazio. Acontece que, devido à imensidão do espaço, a quantidade total de matéria existente neste meio não é nada desprezível. Os objetos mais espetaculares da Galáxia, como as nebulosas de Órion, do Caranguejo, ou tantas outras, são constituídos de gás interestelar. Além disso, o meio interestelar é o local de nascimento de estrelas, e ele é, portanto, responsável pela vida e evolução da Galáxia. Meio n (partículas/cm3) d (cm) Interior Solar 7×10 26 1×10 -9 Água 3×10 22 3×10 -8 Ar 2×10 19 4×10 -7 Fotosfera Solar 1×10 17 2×10 -6 Atmosfera Estelar* 2×10 15 8×10 -6 Vácuo em Laboratório 1×10 12 1×10 -4 Envelope Circumstelar* 1×10 8 2×10 -3 Meio Interestelar Denso 1×10 4 5×10 -2 Meio Interestelar Difuso 1×10 1 5×10 -1 Meio Internuvem 1×10 -1 2×10 0 Meio Intergaláctico* 1×10 -4 2×10 1 Tabela 3-1: Ordens de grandeza de densidades (numero de partículas por cm 3 ) em diversos meios, e distância média entre as partículas. em cm. Note-se que as densidades de atmosferas estelares e envelopes circumstelares são apenas ilustrativas, pois estes meios apresentam grande variação de densidades. A densidade do meio intergaláctico é incerta. A noção de que o espaço entre as estrelas contém gás e poeira, e de que ele abriga uma riqueza impressionante de fenômenos físicos, foi o fruto de observações e discussões científicas que se estenderam principalmente de meados do século 19 até meados do século 20. Embora a história da descoberta da Galáxia já tenha sido delineada no capítulo 1, a descoberta do meio interestelar merece um detalhamento maior, mesmo correndo o risco de incorrer em algumas repetições. Já no século 18 foi notada a existência de pequenas manchas claras e difusas no céu, que foram chamadas de “nebulosas”. Uma primeira lista de nebulosas foi feita em 1784 pelo astrônomo francês Charles Messier . Em 1888 o dinamarquês Johan Ludwig Dreyer, que trabalhou principalmente na Irlanda, publicou um catálogo de nebulosas, o 38

Capítulo 3 - astro.iag.usp.braga5739/cap3.pdf · Capítulo 3 O gás e a ... Arrancar elétrons dos átomos de um gás é algo que sabemos fazer com facilidade ... (figura 3-5). Se

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Capítulo 3

O gás e a poeira Um pouco mais de história

O espaço entre as estrelas é praticamente vazio. A densidade média da matéria interestelar é tão baixa, que é menor do que a do melhor vácuo que se consegue em laboratórios (ver tabela 3-1). O leitor pode então se perguntar porque ficar conjeturando a respeito do espaço vazio. Acontece que, devido à imensidão do espaço, a quantidade total de matéria existente neste meio não é nada desprezível. Os objetos mais espetaculares da Galáxia, como as nebulosas de Órion, do Caranguejo, ou tantas outras, são constituídos de gás interestelar. Além disso, o meio interestelar é o local de nascimento de estrelas, e ele é, portanto, responsável pela vida e evolução da Galáxia.

Meio n (partículas/cm3) d (cm) Interior Solar 7×1026 1×10-9

Água 3×1022 3×10-8

Ar 2×1019 4×10-7

Fotosfera Solar 1×1017 2×10-6

Atmosfera Estelar* 2×1015 8×10-6

Vácuo em Laboratório 1×1012 1×10-4

Envelope Circumstelar* 1×108 2×10-3

Meio Interestelar Denso 1×104 5×10-2

Meio Interestelar Difuso 1×101 5×10-1

Meio Internuvem 1×10-1 2×100

Meio Intergaláctico* 1×10-4 2×101

Tabela 3-1: Ordens de grandeza de densidades (numero de partículas por cm3) em

diversos meios, e distância média entre as partículas. em cm. Note-se que as densidades de atmosferas estelares e envelopes circumstelares são apenas ilustrativas, pois estes meios apresentam grande variação de densidades. A densidade do meio intergaláctico é incerta.

A noção de que o espaço entre as estrelas contém gás e poeira, e de que ele abriga uma riqueza impressionante de fenômenos físicos, foi o fruto de observações e discussões científicas que se estenderam principalmente de meados do século 19 até meados do século 20. Embora a história da descoberta da Galáxia já tenha sido delineada no capítulo 1, a descoberta do meio interestelar merece um detalhamento maior, mesmo correndo o risco de incorrer em algumas repetições. Já no século 18 foi notada a existência de pequenas manchas claras e difusas no céu, que foram chamadas de “nebulosas”. Uma primeira lista de nebulosas foi feita em 1784 pelo astrônomo francês Charles Messier . Em 1888 o dinamarquês Johan Ludwig Dreyer, que trabalhou principalmente na Irlanda, publicou um catálogo de nebulosas, o

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New General Catalogue (NGC), seguido de dois suplementos, index Catalogue ICI e ICII, contendo um total de cerca de 15000 objetos. A denominação NGC para muitos objetos prevalece até hoje. Com o advento dos grandes telescópios e da fotografia, verificou-se que uma parte destas nebulosas não passava de aglomerados de estrelas, que não eram distinguíveis com instrumentos menores. Estas descobertas lembram aquela feita por Galileu, que verificou que a luz difusa da Via Láctea era devida a grandes concentrações de estrelas. No entanto, em muitas nebulosas não foi possível distinguir estrelas individuais, nem mesmo com grandes telescópios. Este fato, no entanto, não era suficiente para negar que fossem sistemas estelares, já que poderiam estar muito distantes.

Na realidade, o catálogo NGC contém classes de objetos de natureza diferente, e isto foi percebido a partir da obtenção sistemática de espectros pelo astrônomo E. Hubble. O espectro é um registro da luz decomposta por meio de um dispositivo óptico, já mencionado no capítulo anterior (figura 2-12). Muitas nebulosas do NGC mostraram espectros semelhantes ao de estrelas, ricas em linhas de absorção (linhas escuras sobre um fundo brilhante). Esta semelhança levava à suposição que eram sistemas de estrelas, que o telescópio não conseguia resolver. De fato, boa parte dos aglomerados globulares de estrelas, cuja natureza é hoje bem estabelecida, têm denominação NGC. Além destes, entre as nebulosas, algumas tinham forma espiral, e outras, formas elípticas. Como já mencionamos, estas foram identificadas como galáxias. O aspecto destas nebulosas que se revelaram ser galáxias é ilustrado na figura 4-5 do próximo capítulo, onde uma classificação das mesmas é apresentada. As galáxias espirais apresentam linhas de emissão e de absorção; um exemplo de espectro é apresentado na figura 3-1.

Figura 3-1: Espectro da galáxia espiral NGC7412, obtidos por Saraiva, Bica, Pastoriza e Bonatto (2001), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Nebulosas de gás ionizado

Uma outra classe de nebulosas, ao contrário, mostrava linhas intensas em emissão (linhas brilhantes sobre um fundo escuro). Uma boa parte destas tem aparência de anel ou de disco, e foram chamadas de nebulosas planetárias, porque tinham cor esverdeada com aspecto semelhante ao de planetas, que também apresentam forma de disco. Um exemplo deste tipo de nebulosa é apresentado na figura 3-2, e seu espectro, na figura 3-3. O nome nebulosa planetária é obviamente errado, tendo apenas a justificativa histórica que mencionamos, mas é mantido por tradição, como acontece muito na Astronomia. Um outro grupo de nebulosas com fortes linhas de emissão é constituído de objetos de forma irregular, maiores e com brilho superficial (brilho por unidade de área) menor do que as nebulosas planetárias; por seu aspecto são às vezes chamadas de nebulosas difusas. Os astrônomos chamam estas nebulosas de regiões HII. Novamente, esta designação está ligada a uma tradição um pouco infeliz; como mostraremos adiante. A rigor, uma nebulosa planetária é também uma “região HII”.

Figura 3-2: NGC3132, uma nebulosa planetária. Este

objeto apresenta linhas de emissão intensas. Foto do

telescópio espacial Hubble, distribuída pela NASA, originalmente colorida.

Figura 3-3: Espectro de NGC3132, a mesma

nebulosa da figura 3-2. O eixo horizontal é o

comprimento de onda, na região espectral entre

aproximadamente 4400 e 7400 Angströms

(unidade definida no texto)

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Logo se descobriu que muitas linhas que apareciam nos espectros de nebulosas eram as mesmas emitidas por gases comuns na Terra, quando ionizados. Ionizar um gás significa arrancar um ou mais elétrons dos átomos que são normalmente neutros. Por exemplo, quando se arranca um elétron de um átomo de oxigênio (usa-se o símbolo O ), obtém-se o íon positivo O+. Arrancando-se mais um elétron obtém-se o íon O++. Os símbolos + indicam a carga elétrica. Arrancar elétrons dos átomos de um gás é algo que sabemos fazer com facilidade em laboratório; é por este motivo que podemos em geral reconhecer as linhas espectrais devidas a elementos químicos ionizados. Os astrônomos, em vez de usar os símbolos O, O+ ou O++, muitas vezes preferem usar OI, OII, OIII. O número romano indica a seqüência dos estados de ionização, ficando entendido que o primeiro estado é o neutro (não ionizado). São notações equivalentes; os químicos preferem indicar o número de cargas elétricas, mas a notação com algarismos romanos é mais tradicional em astronomia. Esta notação vale para qualquer elemento químico; assim o hidrogênio (H ou HI) quando ionizado passa a ser H+ ou HII. Este é o motivo pelo qual uma região onde a espécie dominante é o hidrogênio ionizado é designada região HII.

Os dois tipos de nebulosas de emissão (as planetárias, e as chamadas de regiões HII) apresentam espectros parecidos, nos quais podemos reconhecer as linhas do hidrogênio e do hélio, familiares nos espectros de laboratório. No entanto, entre as linhas mais intensas nos espectros das nebulosas de emissão, há um par delas (ver figura 3-3) na região verde do espectro, em 500,7 nm e 495,9 nm (o nanômetro, nm, ou milionésimo de milímetro, é uma unidade usada para os comprimentos de onda, da mesma forma que o Angström, Å, igual ao décimo de nm), cuja natureza demorou um pouco mais para ser esclarecida. Estas linhas são responsáveis pelo tom esverdeado as vezes observado em nebulosas. Elas deram origem a um episódio interessante da história do conhecimento do meio interestelar. Não se encontrando nenhuma linha similar em laboratório, durante muitos anos, foram atribuídas a um elemento químico desconhecido na Terra, que seria o nebúlio, assim denominado por ser um elemento típico das nebulosas. Em 1927 Ira Sprague Bowen descobriu que estas linhas correspondiam a transições entre níveis de energia do oxigênio duas vezes ionizado (O++ ou OIII). Estas transições são chamadas de “proibidas”, o que significa apenas que são muito pouco prováveis, ou seja, o íon permanece um longo tempo no estado excitado, antes da transição acontecer. Tais transições não são observadas em laboratório, porque nas experiências, quando o íon OIII é excitado, em pouco tempo colide com outro íon ou com a parede do recipiente que o contém, perdendo a energia que se manifestaria na transição. Em outras palavras, nas colisões o íon pode se desexcitar sem emitir fóton; por isso, a linha não aparece no espectro. No espaço quase vazio do meio interestelar, sendo raras as colisões entre íons, as transições proibidas acabam acontecendo. Então, infelizmente, o nebúlio não existe; o universo nos reservou menos surpresas do que chegamos a pensar. Na realidade, em nenhum lugar do universo foi detectado qualquer elemento químico que não exista na Terra.

As nebulosas de emissão, tanto nebulosas planetárias como regiões HII difusas, sempre estão associadas a uma ou várias estrelas muito quentes. Os fótons emitidos por estas estrelas conseguem arrancar os elétrons dos átomos, produzindo íons. Estes íons em algum momento se recombinam com os elétrons, emitindo luz. Assim, de alguma forma, as estrelas quentes tornam o gás visível. Retornaremos mais adiante à discussão dos processos físicos que ocorrem nas nebulosas ionizadas; no momento, daremos

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prosseguimento à abordagem histórica das descobertas dos componentes do meio interestelar.

Como vimos, no início do século 20 era conhecida a existência de gás quente e

ionizado na vizinhança de algumas estrelas de alta temperatura. A questão que se colocava era: será que pode ser encontrado gás longe de qualquer estrela? Podia-se imaginar que o gás das nebulosas foi ejetado por essas estrelas; inclusive, isto é verdade no caso das nebulosas planetárias. Mas se existisse gás frio, distante de estrelas quentes, não emitindo nenhuma luz, como poderíamos detectá-lo? Nebulosas de reflexão

Em algumas direções aparecem, na vizinhança de estrelas azuis brilhantes, extensas nebulosidades que se parecem com uma névoa tênue, de cor azul nas fotos coloridas. Estas nebulosidades são entendidas como luz da estrela brilhante próxima, refletida por grãos de poeira do MI; por isto são chamadas de nebulosas de reflexão. A poeira é associada a gás muito frio e não emite luz própria no visível. Os espectros das nebulosas de reflexão são totalmente diferentes dos espectros de regiões ionizadas (como o da figura 3-3); eles não mostram linhas de emissão, mas mostram as mesmas linhas de absorção da estrela, exatamente como se espera de luz refletida.

Figura 3-4: Nebulosa de reflexão NGC1435. Percebe-se uma névoa, que nas fotos coloridas apresenta a mesma cor azulada da estrela cuja luz está sendo refletida.

O gás frio

Excetuando-se as nebulosas de emissão e de reflexão, a primeira evidência de que existe gás interestelar, distribuído de maneira não uniforme e apresentando concentrações no espaço (ou nuvens), foi obtida a partir da observação de linhas de cálcio ionizado (CaII) e de sódio neutro (NaI) em absorção nos espectros ópticos de estrelas. As estrelas normalmente apresentam um grande número de linhas de absorção, produzidas em suas próprias atmosferas. O que poderia nos levar a pensar que uma dentre estas muitas linhas

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tem origem distinta da estrela? Primeiro, vamos explicar porque tais linhas aparecem em absorção. Uma estrela emite radiação numa grande faixa de comprimentos de onda, devido a sua temperatura (figura 3-5). Se existir alguma nuvem de gás frio contendo uma pequena fração de cálcio ou de sódio no meio do caminho entre a estrela e nós, a nuvem vai absorver a luz da estrela exatamente nas linhas destes elementos. Portanto, a luz da estrela que nos alcança tem intensidade menor na freqüência (ou comprimento de onda) destas linhas do que em freqüências próximas, razão pela qual aparecem em absorção. Na verdade, as linhas de absorção da própria estrela têm uma explicação semelhante: podemos considerar que a camada externa da estrela é constituída de gás mais frio do que as regiões um pouco mais internas, e que este gás mais frio absorve a luz nas freqüências próprias dos elementos químicos que o compõe.

Figura 3-5: Primeiro quadro: distribuição da energia emitida por uma estrela em função

do comprimento de onda, na ausência de linhas de absorção. Segundo quadro: algumas linhas de emissão, como são emitidas por um gás transparente de alta temperatura. Terceiro quadro: as mesmas linhas em absorção, produzidas por um gás relativamente frio situado entre a estrela e o observador. A presença de luz no espectro é indicada por cor escura.

Voltemos à questão de como distinguir uma linha da atmosfera estelar de uma linha produzida no meio do caminho. Existe uma diferença na “velocidade” obtida das linhas, dependendo de sua origem. Podemos medir a velocidade com que uma estrela se afasta ou se aproxima de nós através do efeito Doppler, que é um pequeno deslocamento da freqüência das linhas do espectro com relação à freqüência de laboratório das mesmas (ver a figura 2-12). Uma nuvem de gás situada entre a estrela e nós possivelmente não terá a mesma velocidade da estrela; as linhas de absorção produzidas na nuvem apresentarão um deslocamento Doppler diferente. A origem interestelar de algumas linhas foi provada por meio das observações de sistemas duplos de estrelas, nos quais as linhas estelares apresentam deslocamento Doppler variável com o tempo. Nos sistemas duplos, uma estrela orbita em torno da outra; por isto, a velocidade delas com relação a nós varia com o tempo. Em princípio, todas as linhas do espectro se deslocam juntas em função da velocidade da estrela. No entanto, observam-se casos em que algumas linhas mantém posição constante; estas não podem estar associadas às estrelas do par, mas podem ser produzidas por nuvens interestelares. A disposição destes elementos no espaço é ilustrada na figura 3-6.

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Figura 3-6: Um sistema binário de estrelas produz linhas espectrais cujo deslocamento Doppler é variável, enquanto que uma nuvem situada na linha de visada produz linhas de absorção fixas. As linhas espectrais fixas estão unidas por linhas tracejadas na figura.

Como já dissemos, o gás frio das nuvens não emite luz, mas pode absorver a luz de estrelas. Note-se que uma nuvem só pode ser descoberta através de linhas de absorção se estiver na frente de alguma estrela. Algumas nuvens são tão extensas que se encontram na frente de várias estrelas vizinhas. Trabalhando com o telescópio de 2,5 m do monte Wilson do qual foi diretor, Walter Sydney Adams mostrou em 1949 a existência de nuvens interestelares e determinou algumas de suas propriedades, tais como dimensão e número de nuvens por kpc cúbico. A contribuição da radioastronomia A partir de 1951 as observações radioastronômicas da linha de 21 cm do hidrogênio neutro (HI) permitiram um enorme avanço no conhecimento das caraterísticas físicas (dimensões, densidade, massa, temperatura) das nuvens interestelares. A descoberta da linha de 21 cm já foi comentada no capítulo 1. A maior parte do meio interestelar da Galáxia se encontra na forma de hidrogênio neutro (HI), e permaneceu quase totalmente desconhecida até aquela época, porque o gás frio HI não absorve nem emite luz visível. O papel da linha de 21 cm foi fundamental para o conhecimento da curva de rotação da

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Galáxia e da escala de distâncias cinemáticas, questões que serão discutidas no próximo capítulo. As observações de HI estimularam a introdução de um sistema de coordenadas adequado para a descrição de posições de objetos na Galáxia, as coordenadas galácticas. A origem do sistema se encontra no Sol. O plano galáctico, no qual se concentra quase todo o HI, inclui o Sol e o centro da Galáxia (figura 3-5). Dentro do plano, a direção de um objeto é dada pela longitude galáctica, ℓ, que é o angulo entre o objeto e o centro, com valores de 0o a 360o. A latitude galáctica, b, é o angulo entre o objeto e o plano galáctico; pode ser positiva ou negativa, indo de -90o a + 90o.

Objeto observado

Disco galáctico

b ℓ

Figura 3-7: Sistema de coordenadas galácticas, ℓ (longitude) e b (latitude). O sistema está centrado no Sol.

Na década de 50 também tiveram inicio de forma sistemática as observações no “contínuo” do espectro rádio. Uma emissão no c ntínuo significa uma emissão que não apresenta linhas de emissão, mas se faz presentfreqüências (exemplos são dados na figura 3-9). Acontínuo são chamadas de rádio-fontes. Os resulmostram que estas fontes são bastante concentradgaláctica zero). Os mapas são geralmente apresesemelhantes àquelas que são utilizadas em mapaNas direções onde há um máximo de emissão rcontorno que representam a rádio-fonte como se fUm mapa de uma região da Galáxia é mostrado na

As observações evidenciaram dois tipos báinterestelar da Galáxia, designadas fontes de emdiferença entre os dois tipos aparece quandofreqüências distintas; a emissão no continuo dgrandes comprimentos de onda (ou baixas freqpraticamente a mesma intensidade numa grande femissões térmicas estavam associadas a regiões Hde supernovas, objetos importantes do meio intere

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iformemente numa grande faixa de egiões que emitem radiação rádio no s de mapeamentos da emissão rádio o longo do plano da Galáxia (latitude os na forma de linhas de contorno, ográficos para representar o relevo.

o, são apresentadas várias linhas de uma montanha do mapa geográfico. ura 3-8.

s de rádio-fontes associadas ao meio o térmicas e fontes não-térmicas. A comparam observações feitas em não-térmicas cresce muito para os cias) enquanto que as térmicas tem de freqüências. Verificou-se que as nquanto que as não-térmicas a restos ar que comentaremos mais adiante.

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Figura 3-8: Mapa radio de uma porção do plano galático, mostrando curvas de nivel da intensidade no contínuo das rádio-fontes. Os eixos representam as coordenadas galácticas

(longitudes no eixo horizontal e latitudes no eixo vertical). O mapa contém regiões de emissão térmica e não-termica (vide texto). O levantamento foi feito com o radiotelescópio de Parkes, na

Austrália e os dados publicados no Australian Journal of Physics.

A intensidade da emissão radio em função da freqüência é mostrada na figura 3-9

para dois exemplos de radio-fontes bem conhecidas. A intensidade, para as regiões HII, cresce com a freqüência (I proporcional a v2), na região de baixas freqüências, e mostra-se praticamente constante nas altas freqüências. O processo de emissão de radiação, neste caso, é chamado de "livre-livre", "free-free" em inglês, ou de "bremsstrahlung", palavra alemã que significa radiação de deceleração. O nome engraçado livre-livre vem do fato que as partículas estão livres antes e depois da colisão, não havendo ligação ou recombinação. Fótons de baixa energia (região rádio) são emitidos cada vez que partículas carregadas sofrem alterações de velocidade, ou seja, neste caso, quando colidem entre si.

Nebulosa de Órion

Figura 3-9: Distribuição de fluxo de emissão radio em função da freqüência, para a

Nebulosa do Caranguejo

Nebulosa de Órion, que é uma região HII (fonte térmica) e para a Nebulosa do Caranguejo, um resto de supernova (fonte não térmica). As duas radio-fontes tem praticamente a mesma intensidade em 10 GHz, mas são muito distintas em 100 MHz.

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O processo de emissão, no caso não térmico, é distinto. Nos restos de supernovas (conceito explicado mais adiante), existem elétrons se deslocando em velocidade altíssima, próxima da velocidade da luz. Estes elétrons tem sua trajetória desviada pelo campo magnético presente na região, e ficam espiralando em torno da direção do campo. Novamente, toda partícula carregada que sofre alguma aceleração (ou mudança de direção) emite radiação, e é esta que observamos. A radiação neste caso é chamada de sincrotrônica, por ser da mesma natureza do que aquela é produzida na Terra em aceleradores de elétrons chamados de síncrotrons. O gás muito frio Outro passo importante no conhecimento do meio interestelar ocorreu a partir de 1968, com as detecções das moléculas OH, H2O e NH3, através de suas emissões na região rádio do espectro. Charles Townes, detentor de prêmio Nobel de Física, teve um papel fundamental para que fossem entendidas as transições moleculares na região rádio do espectro, observadas em laboratório e no céu. Estas descobertas pioneiras foram seguidas pela observação de um grande número de transições moleculares. Houve uma verdadeira corrida, visando prever teoricamente as freqüências emitidas por várias espécies moleculares, procurar estas linhas em nuvens interestelares, e ao mesmo tempo descobrir quais eram as moléculas responsáveis por muitas linhas não identificadas que apareciam nos espectros rádio. Como as partes internas das nuvens densas são protegidas da radiação ultravioleta das estrelas, muitas espécies moleculares conseguem sobreviver, e podem ser observadas através de suas linhas de emissão, geralmente situadas na região milimétrica do espectro de rádio-freqüências. A nuvem molecular denominada Sgr B2, situada próxima ao centro da Galáxia, é a mais densa (até 107 moléculas por cm3) e mais massiva (mais de 3 milhões de massas solares) conhecida. Nela foram encontradas mais de 50 espécies moleculares distintas, sendo a maioria orgânica. Algumas das moléculas mais complexas observadas são C2H5OH (álcool etílico), (CH3)2 O, C2H5CN, e a série de moléculas lineares HCN, HC3N, e assim sucessivamente, acrescentando 2 átomos de carbono, até HC13N.

As moléculas orgânicas constituem as únicas ferramentas para observar as regiões mais densas das nuvens interestelares. Nas regiões densas, quase não existem átomos livres (excetuando o Hélio), havendo apenas átomos ligados na forma de moléculas. Além de praticamente ausentes, os átomos requerem temperaturas elevadas, não encontradas nas nuvens frias, para apresentar emissão. Os níveis de energia dos átomo são naturalmente espaçados, correspondendo a energias elevadas de excitação; por isto quando conseguem ser excitados, normalmente apresentam linhas na região visível do espectro. As moléculas, ao contrário, apresentam muitas linhas na região rádio do espectro, que correspondem a níveis de energia menores (níveis de energia de rotação da molécula), excitados mesmo a temperaturas muito baixas. Uma temperatura típica de uma nuvem molecular densa é 10 graus Kelvin, ou seja, cerca de 260 graus centígrados abaixo de zero.

A descoberta de moléculas orgânicas complexas no meio interestelar deu novo impulso a teorias de “pan-spermia”, defendidas, por exemplo, pelo genial e controvertido astrônomo inglês Fred Hoyle, segundo as quais a vida não teria surgido na Terra, mas se

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encontra espalhada na Galáxia, e teria contaminado nosso planeta no momento ou pouco após sua formação.

Diversos grupos de radioastronomia realizaram mapeamentos da intensidade de

linhas de emissão molecular (principalmente de CO) de nuvens frias. Os mapas revelam a existência de uma hierarquia de caroços de gás mais denso do que o das regiões vizinhas dentro da própria nuvem, que receberam nomes em inglês como “clumps” e “cores”. Chega-se a conclusão que as nuvens têm estrutura em 3 dimensões que poderia ser descrita como “fractal”. Em poucas palavras, uma estrutura fractal seria uma estrutura que se repete, semelhante a si mesma, em nas diversas escalas de dimensões. Simulações numéricas de nuvens fractais foram construídas em computador por Annibal Hetem, para estudar as propriedades de nuvens (figura 3-10).

Figura 3-10: Estrutura simulada em computador de uma nuvem molecular, por A. Hetem. As partes mais escuras são as mais densas. A “base” serve para reforçar a impressão de perspectiva; no computador é possível ver a nuvem sob diversos ângulos.

Composição química do gás Mencionamos na seção anterior a presença de moléculas complexas em nuvens

frias. Em geral, sejam as nuvens frias ou mornas, sua composição não pode fugir da abundância universal dos elementos: elas são constituídas basicamente de hidrogênio, de hélio na proporção de 10% (em numero de átomos, com relação ao hidrogênio), e de elementos mais pesados (O,C,N) na proporção da ordem de 0,01% para cada um deles. Como veremos no capítulo 6, a proporção de elementos pesados depende da posição na Galáxia. E como será discutido abaixo, parte destes elementos químicosdisponíveis no interior de nuvens se encontram presos em grãos de poeira. Nas nuvens difusas o hidrogênio se encontra na forma atômica (H), facilmente detectável através da raia de 21 cm; algumas moléculas e radicais, como CH, CH+, OH, também estão presentes. Nas nuvens densas praticamente todo o hidrogênio se encontra na forma molecular (H2) que é dificilmente detectável, já que esta molécula não apresenta transições na região visível nem na região rádio do espectro. No entanto, como vimos, muitas outras moléculas são

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detectáveis nas nuvens densas; em particular a molécula CO é uma das mais usada para mapeamentos.

Emissão maser

Entre as linhas de emissão de moléculas, existem algumas que se destacam por sua forte intensidade, que não pode ser explicada por um processo “normal” de emissão. Trata-se de emissão maser, cujo processo de emissão é parecido com o dos lasers. Esta última palavra vem da abreviação de light amplification by stimulated emission of radiation, amplificação de luz por radiação estimulada. Trocando light por microwave (microonda), temos o maser. Este tipo de emissão está normalmente associado a gás aquecido por ondas de choques, nas proximidades de regiões HII ou em envelopes estelares. A emissão ocorre quando um número maior de moléculas se encontra num estado excitado de energia, do que em algum estado de energia inferior. Diz-se, neste caso, que há

Figura 3-11 : esquema de 3 níveis de energia de moléculas com emissão maser. Os círculos representam a proporção de moléculas que se encontram em cada estado. A transição do nível 1 para 2 é devida ao “bombeamento”; a de 3 para 2 é espontânea; acumula-se uma população anômala em 2 porque a transição 2-1 é improvável; a transição será induzida pela passagem de um fóton com energia igual à da transição 2-1.

uma “inversão de população”, porque normalmente a população de um nível (o numero de moléculas que se encontra neste nível) diminui com a energia do nível. No esquema apresentado na figura 3-11, a população do nível 2 seria, normalmente, inferior ao do nível 1, mas devido a um processo de “bombeamento” que joga moléculas do estado 1 para o 3, o nível 2 acaba sendo povoado. Estamos considerando um caso em que a transição espontânea de 2 para 1, é pouco provável (demorada), o que explica um certo acúmulo de população em 2. A passagem de radiação com a freqüência da transição do nível 2 para o nível 1 induz esta transição, e a energia emitida se soma à radiação incidente, saindo exatamente na mesma direção. Desta forma ocorre amplificação da radiação, à medida que ela atravessa a região do espaço onde existe a inversão de população. Os mecanismos capazes de bombear o maser, no meio interestelar, incluem as ondas de choque, que provocam colisões energéticas entre moléculas, e radiação infravermelha.

Entre os masers mais estudados, destaca-se o de vapor de água, H2O, na freqüência de 22,235 GHz, ou comprimento de onda 1,35 cm. O radiotelescópio de 14 m de diâmetro instalado em Atibaia (SP), hoje administrado pelo INPE/MCT, teve um papel relevante na

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descoberta de novos masers, e na observação sistemática dos mesmos. Pesquisadores como Eugênio Scalise e Maria Alcina Braz descobriram um bom número de masers H2O associados a regiões HII da Galáxia. Zulema Abraham detectou e acompanhou o “evento” maser mais intenso já observado (um repentino aumento da intensidade da linha), na nebulosa de Órion. Paulo Marques dos Santos e Jacques Lepine detectaram um maser extragaláctico extremamente intenso, considerando sua distância; este foi o primeiro de uma classe que depois foi chamada de “megamasers”.

Os masers se tornaram uma ferramenta poderosa para estudar o meio interestelar e

a estrutura da Galáxia. Pelo fato da emissão ser intensa, ela pode ser detectada mesmo a grandes distâncias. Permitem localizar as regiões de formação estelar associadas aos braços espirais da Galáxia. Como veremos no capítulo 4, uma das melhores determinações da distância ao centro galáctico foi feita através da observação de sua emissão maser. Além de H2O, as moléculas OH, SiO e CH3OH (metanol) apresentam emissões maser bastante estudadas.

Poeira interestelar. Já se suspeitava da existência de poeira no espaço interestelar desde o século 19, mas isto ficou bem estabelecido somente em 1930, a partir do trabalho de R.J. Trumpler, já discutido no capítulo 1. Estudando os aglomerados abertos de estrelas, ele determinou a distância destes, utilizando a equação 2-2 (capítulo 2), para as estrelas dos aglomerado. Conhecendo os diâmetros aparentes, ele calculou os diâmetros reais (em parsecs) dos aglomerados abertos. O resultado foi surpreendente; Trumpler encontrou que quanto mais distante, maior o aglomerado, e constatou ainda que as estrelas pertencentes a aglomerados mais distantes pareciam mais avermelhadas do que as de aglomerados próximos. Não é aceitável que qualquer propriedade intrínseca de um dado tipo de objeto, como os aglomerados abertos, dependa da distância ao Sol, porque o Sol não ocupa uma posição privilegiada na Galáxia. Na realidade, o que estava errado era a estimativa de distância dos aglomerados mais distantes.Trumpler percebeu que era possível resolver o problema dos diâmetros dos aglomerados supondo que existe uma atenuação da luz das estrelas proporcional à distância, e introduziu um fator adicional na expressão para a distância: m - M = 5 log d – 5 + A (3-1) onde A é a extinção interestelar em magnitude. Com esta nova expressão, dadas a magnitude aparente e a magnitude absoluta da estrela, a distância que se obtém é menor do que para a expressão sem o fator de extinção (equação 2-2). O avermelhamento das estrelas distantes é devido ao fato de A ser maior para comprimentos de onda curtos (luz azul) do que para os longos (luz vermelha). Sabe-se que a extinção é produzida pelo espalhamento e pela absorção da luz por grãos com dimensões da ordem de 0,01 a 1 µm (o micron, µm, é um milésimo de milímetro), que afetam mais a luz azul do que a luz vermelha. Este efeito é parecido com o que torna o Sol avermelhado quando ele está próximo do horizonte, ou seja, quando a luz solar tem que atravessar um longo caminho na atmosfera terrestre até nos alcançar. Como a luz vermelha é menos

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espalhada e absorvida pela atmosfera terrestre do que a luz azul, depois de percorrido um longo trajeto, sobra relativamente mais luz vermelha. Já que a extinção depende da faixa de comprimento de onda (ou banda) em que é medida, é importante especificar a banda à qual nos referimos; por exemplo usamos AV para a extinção no visível. A curva de extinção, que dá o valor de A em função do comprimento de onda, é mostrada na figura 3-12. Uma das caraterísticas importantes da poeira interestelar, portanto, é o fato de apresentar “extinção seletiva”, o que equivale dizer que a extinção depende do comprimento de onda. A figura 3-12 mostra que a extinção cresce para comprimento de onda λ menores (1/λ maiores), mas que este crescimento não é idêntico em todas as direções do céu. Uma forma de caracterizar o avermelhamento que afeta uma estrela é o excesso de cor E(B-V), que é a diferença entre o índice de cor B-V observado e aquele que seria esperado para a mesma estrela, se não houvesse extinção. Como vimos no capítulo 2, é

Figura 3-12: curva de extinção, ou variação da extinção interestelar com o comprimento de onda, na direção de 3 estrelas distintas. É tradição apresentar a extinção em função do inverso do comprimento de onda λ (dado em microns). As curvas são normalizadas em A=1 para λ=0,55 microns (centro da banda visível) ou 1/λ =1.8.

possível saber a cor intrínseca de uma estrela, observando suas linhas espectrais. O excesso de cor, evidentemente, cresce com a quantidade de matéria interestelar atravessada pela luz da estrela, e deve ser, portanto, proporcional à própria extinção Av. As observações mostram que esta relação é aproximadamente: Av = 3 E(B-V) (3-2) Foi verificado que tanto Av quanto E(B-V), que são efeitos da poeira, são proporcionais à densidade colunar de H (trata-se de uma densidade por unidade área, que corresponde à densidade média -no sentido habitual- de H ao longo do caminho multiplicada pela distância da estrela). Em direções onde há muito gás, há uma extinção grande. Isso indica que a poeira e o gás estão homogeneamente misturados, ou ainda, que

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não existe poeira isolada do gás1. O valor médio de Av é da ordem de 1 magnitude por kpc de distância, mas depende muito da direção em que se olha. A extinção da luz é a soma de dois efeitos, que são a absorção e o espalhamento. No primeiro processo a energia do fóton incidente é absorvida pelo grão de poeira, e transformada em energia interna (calor); posteriormente o grão irá re-irradiar esta energia no infravermelho. No processo de espalhamento o fóton é simplesmente desviado para outra direção. A importância deste processo pode ser vista nas nebulosas de reflexão, cuja natureza foi discutida mais acima; a luz observada destas nebulosas nada mais é do que luz da estrela refletida ou espalhada. Além da extinção seletiva e do avermelhamento resultante, a poeira interestelar também produz uma polarização parcial da luz. Trata-se de uma propriedade relacionada com a direção da vibração do campo elétrico da onda luminosa. Um fóton pode ser visto como uma onda de campo elétrico e campo magnético, ambos com direção perpendicular à direção de propagação do fóton. Uma fonte de radiação térmica emite fótons cada um com seu plano de polarização orientado de forma arbitrária, de forma que em média não há uma orientação privilegiada. Diz-se que a luz é polarizada quando algum processo privilegia a propagação de fótons com determinada polarização, como um buraco de fechadura privilegia chaves orientadas na vertical. A polarização, no caso que nos interessa, é atribuída à presença no MI de grãos de poeira alongados e alinhados com a direção do campo magnético galático. Pelo fato de estarem todos alinhados, os grãos de poeira produzem maior extinção para a luz que tem seu plano de vibração na direção do alinhamento. A observação da polarização permite, desta forma, estudar as direções do campo magnético galático. A descoberta da existência de polarização na luz das estrelas é mérito de W. A. Hiltner, em 1949. As propriedades da poeira descritas até agora correspondem a seus efeitos sobre a luz visível, região do espectro em que os grãos não emitem luz própria. Na região infravermelha do espectro, ao contrário, aparece a emissão própria da poeira, que é emissão térmica. Observando-se a distribuição de energia emitida em função da freqüência, pode-se medir a temperatura da poeira, que varia de dezenas a centenas de graus Kelvin. As regiões HII apresentam emissão muito intensa no infravermelho distante, entre 30 e 300 µm aproximadamente, atribuída à radiação térmica dos grãos de poeira que estão misturados com o gás ionizado, ou que estão na fronteira das regiões HII com o gás neutro que as envolve. Os grãos são aquecidos pelas colisões com os elétrons livres, como também pela absorção de fótons ultravioletas originários da estrela excitadora da região, ou dos fótons reemitidos ou espalhados dentro da nebulosa. Estes processos de aquecimento dos grãos são compensados pelo processo de esfriamento, que é a emissão de radiação no infravermelho; a temperatura de equilíbrio resultante para os grãos é da ordem de 100 a 300 K, muito abaixo da temperatura do gás numa região HII, que é da ordem de 104 K. Considera-se que os grãos não podem ter temperaturas acima de cerca de 1000 K, senão evaporam.

1 Um programa destinado ao cálculo da extinção da luz entre a posição do Sol e qualquer ponto da galáxia, baseado na distribuição conhecida do gás, encontra-se disponível no endereço internet http://astro.iag.usp.br/~amores.

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Quanto à composição química dos grãos, é claro que eles só poderiam se formar a partir dos elementos presentes no meio interestelar. Excluindo o He, que não se combina quimicamente, os próximos elementos mais abundantes (na faixa de um átomo para cada 103 ou 104 de H) , são: O, C, N, Fe, Si. Materiais sólidos de pequenas dimensões não emitem ou absorvem luz em linhas estreitas, como os átomos, mas apresentam emissão ou absorção em bandas, que são linhas muito alargadas. A presença de silicatos (materiais contendo SiO) é indicada pela banda de absorção em 9,8 µm, no infravermelho, observada em quase todas as regiões de gás denso. A presença de magnetita (Fe2O3) é invocada para explicar a capacidade dos grãos se alinharem com o campo magnético. O grafite (uma das formas do carbono) poderia explicar várias das propriedades observadas, entre as quais o pico em 220 nm (1/λ =4,5, na figura 3-12). Mais recentemente alguns autores mostraram que certas bandas de emissão ou de absorção observadas no infravermelho próximo coincidem com as bandas exibidas em laboratório por hidrocarbonetos policiclicos aromáticos (PAH em inglês, moléculas orgânicas contendo estruturas fechadas de carbono parecidas com a do benzeno). Fred Hoyle chegou a comparar algumas bandas do meio interestelar com as produzidas por açúcar ou por celulose, dentro de sua visão de procurar vida em nuvens interestelares. Em 1979 Hoyle e Wickramasinghe propuseram que a forma da curva de extinção interestelar (figura 3-12) poderia ser explicada pela presença de bactérias ressecadas no MI. Como convivem as nuvens interestelares

Foi relatado acima como foram descobertas as nuvens interestelares. Sabemos, portanto, que no espaço praticamente vazio entre as estrelas, existem regiões mais e regiões menos “densas”. As nuvens de gás, que são as concentrações de mais alta densidade, estão imersas num meio mais rarefeito chamado de meio inter-nuvens. Embora a proporção de poeira para gás seja pequena (da ordem de 1% em massa) e aproximadamente constante, freqüentemente as nuvens são chamadas de "nuvens de poeira", simplesmente porque o efeito da poeira, que é de extinguir a luz das estrelas, é o mais notável. Algumas das nuvens mais densas e mais próximas do Sol são visíveis a olho nu, distinguindo-se como regiões escuras sobre o fundo de estrelas. Um exemplo é o "Saco de Carvão", que ocupa uma área de 6 por 6 graus, na vizinhança do Cruzeiro do Sul (ver a figura 1.5).

As temperaturas e densidades típicas de nuvens estão indicadas na tabela 2-2. Nota-se que as nuvens sempre são frias, e que mesmo as nuvens "densas" na realidade apresentam densidades extremamente baixas para nossos padrões, como mostramos na tabela 2-1.

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Tabela 2-2: Propriedades de Nuvens Interestelares ___________________________________________ Tipo Temperatura (K) Densidade (cm-3) __________________________________________________ meio inter-nuvem > 104 0.1 nuvens difusas de H 50-150 10-103 nuvens escuras 3-20 103-106 (moleculares) ___________________________________________

As dimensões típicas de nuvens são de um pc a dezenas de pc, e as massas das mesmas de 102 a 105 massas solares ( M ) Apesar das massas serem elevadas, as nuvens não são gravitacionalmente ligadas; o que mantém sua integridade na fronteira com o meio inter-nuvem é o equilíbrio de pressão. A pressão de um gás é dada pelo produto da densidade pela temperatura. Qualquer gás tende a se expandir, a menos que encontre em suas fronteiras uma pressão equivalente à sua. O meio inter-nuvem, com densidade muito menor que as nuvens, apresenta temperatura muito maior, o que garante uma pressão semelhante. Estas considerações explicam em parte como meios de densidades tão diferentes conseguem conviver. Mas nem tudo está em equilíbrio no MI. Por exemplo as regiões HII, que são regiões onde o gás foi aquecido por uma estrela excitadora (veja a discussão a seguir), apresentam pressão maior que a vizinhança e estão em expansão. A física das regiões ionizadas

Vale a pena nos estender sobre os processos físicos que ocorrem em nebulosas ionizadas, devido ao grande interesse que estas tem para o estudo da Galáxia. As regiões HII são fontes intensas de radiação nas partes visível, infravermelha e radio do espectro. Mencionamos as caraterísticas da emissão rádio na seção sobre radioastronomia, e as caraterísticas infravermelhas na seção sobre a poeira. As regiões HII estão concentradas nos braços espirais da Galáxia e das galáxias em geral, e permitem o estudo destas estruturas a grandes distâncias. A estrutura espiral da Galáxia, e as posições de seus braços delineados pelas regiões HII, serão descritos no capítulo 5. As regiões HII são objetos muito jovens, comparativamente às idades de quaisquer objetos galácticos, e estão sempre ligadas a regiões de formação de estrelas. O exemplar mais próximo e mais estudado de região HII é a Nebulosa de Órion (figura 3-13), situada a cerca de 500 pc do Sol, que possui em seu centro um grupo de estrelas O que formam uma figura chamada de Trapézio (não visível na figura).

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Figura 3-13: A nebulosa de Órion

Para se entender a física que rege as regiões HII, é indispensável tomar em

consideração dois tipos de equações de equilíbrio, que são o equilíbrio de ionização e o balanço de energia. Discutiremos primeiro o equilíbrio de ionização. Para ionizar um átomo de hidrogênio é necessária uma energia mínima de 13.6 eletron-volts; apenas as estrelas mais quentes, de tipo espectral O ou B , emitem quantidade apreciável de fótons com tal energia. Quando estrelas destes tipos espectrais se formam no interior de uma nuvem interestelar, uma região esférica de gás ionizado se desenvolve em torno delas e atinge um raio bem definido, chamado de raio da esfera de Strömgren, em homenagem ao astrônomo dinamarquês que publicou em 1939 um trabalho sobre este assunto. Em cada elemento de volume da região ionizada ocorrem dois tipos de reações: H + hv = e- + p+ (3-3) e p+ + e- = H + hv (3-4) ilustradas na figura 3-14.

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Figura 3-14: Ionização do átomo de H por um fóton, produzindo um próton e um elétron, e

recombinação de um próton e de um elétron, resultando num átomo de H

Nas equações hv representa um fóton (em mecânica quântica, a energia do fóton é representada por hv; note-se que as energias representadas são diferentes nas duas reações). A primeira reação é a de ionização, em que um fóton vindo da estrela ioniza um átomo de hidrogênio neutro, produzindo um elétron e um próton (o que sobra de um átomo de hidrogênio quando se arranca seu único elétron). A taxa desta reação depende do fluxo de fótons ionizantes e da densidade de átomos neutros de hidrogênio. A segunda reação (equação 3-4) é uma reação de recombinação, em que um próton e um elétron se juntam para formar um átomo de hidrogênio, com a emissão de um ou mais fótons. A taxa desta reação depende basicamente da densidade de prótons e de elétrons, e da temperatura do meio. Na situação de equilíbrio as duas reações têm que ocorrer com a mesma taxa. Considerando-se o volume todo da esfera de Strömgren, o número total de recombinações que ocorrem por segundo é igual ao número total de fótons ionizantes emitidos por segundo pela estrela excitadora da região HII. Esta condição é que determina o raio da esfera de Strömgren; se o numero de fótons disponíveis fosse maior, o raio da região ionizada seria maior. Passando agora para a outra equação de equilíbrio a ser considerada, a quantidade total de energia recebida por segundo por um elemento de volume deve ser igual à soma das energias perdidas por segundo pelos vários processos de emissão de radiação, também chamados de mecanismos de esfriamento. Este equilíbrio é que determina a temperatura do gás ionizado, normalmente situado na faixa de 7000 a 10000 K. O ganho de energia da nebulosa é suprido pelos fotons ionizantes vindos da estrela excitadora: o excesso de energia do fóton, com relação a necessária para ionizar, se transforma em energia cinética dos elétrons. Entre os processos de emissão (perda) de energia, o mais importante é o de emissão de linhas na região visível do espectro. As regiões HII são caraterizadas pela presença de linhas intensas em seus espectros: linhas de H, do íon O+ no violeta, do íon O++ no verde, e do íon N+ no vermelho. Paradoxalmente a maior parte destas linhas (não as de H) são "proibidas", como já mencionamos. Os íons correspondentes são excitados pelas colisões com elétrons; o subsequente decaimento para o estado fundamental acaba ocorrendo porque os íons podem permanecer longos tempos sem que nenhuma outra colisão aconteça.

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Foram desenvolvidos programas de computador, por exemplo por Ruth Gruenwald e Sueli Viegas, do IAG, que resolvem simultaneamente as equações de equilíbrio de ionização dos vários íons, e de equilíbrio térmico, para nebulosas foto-ionizadas. Comparando os espectros obtidos teóricamente desta forma com os observados, é possível estabelecer as condições físicas nas nebulosas. As nebulosas planetárias (NPs), como já vimos, são regiões de gás ionizado que circundam estrelas geralmente isoladas, que alcançaram estágios finais de evolução. A física das NPs é semelhante à das regiões HII; elas também apresentam linhas proibidas no espectro visível, emissão térmica de poeira no infravermelho e emissão "livre-livre" na região radio. A diferença entre as NPs e as regiões HII propriamente ditas reside na origem do gás ionizado, e na natureza da estrela excitadora. No caso das NPs o gás resulta de um processo de ejeção de matéria pela própria estrela excitadora da região. Esta ejeção lenta, ou perda de massa da estrela, é um fenômeno que carateriza os estágios avançados da evolução estelar, pouco antes das estrelas se transformarem em anãs brancas.

As NPs são geralmente bem menores que as regiões HII. No caso das NPs, o que define o raio da região ionizada não é a quantidade de fótons ionizantes, mas a própria distancia alcançada pela matéria desde sua ejeção. Muitas vezes, as estrelas excitadoras emitem fótons em quantidade suficiente para ionizar todo o gás disponível, não restando gás neutro em volta. As estrelas excitadoras apresentam freqüentemente temperaturas mais altas (da ordem de 100 000 K ) que as regiões HII.

Restos de Supernovas.

A explosão de uma supernova produz uma concha de gás que se expande rapidamente no meio interestelar. Inicialmente esta concha é constituída de matéria da estrela, com velocidade entre 2000 e 10000 kms-1, e com massa entre 0,1 e 0,2 M para supernovas de tipo I, e de várias M para supernovas de tipo II. Em alguns anos a expansão sofre deceleração, a medida que uma quantidade apreciável de matéria interestelar é varrida.

O exemplo mais conhecido de resto de supernova é a nebulosa do Caranguejo, cuja explosão se deu em 1054 e foi observada por astrônomos chineses. A supernova foi tão brilhante que podia ser vista em pleno dia. Uma caraterística deste e de outros restos de supernovas é a presença de filamentos, geralmente situados próximos à borda em expansão (figura 3-14).

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Figura 3-14: A nebulosa do Caranguejo, um dos restos de supernova mais estudados.

A parte central da estrela que explodiu permanece como um objeto extremamente compacto, uma estrela de neutrons, com densidade parecida com a da matéria nuclear. Este objeto gira sobre si mesmo em altíssima velocidade, gerando pulsos de emissão radio com período da ordem de 1 segundo ou menos. Estas estrelas, chamadas de pulsares, atuam, por vezes, como faróis que nos iluminam com um feixe de radiação uma vez a cada rotação. Os pulsares são observados na região radio do espectro; os pulsos são tão regulares que poderiam ser usados para sincronizar nossos relógios.

Além dos pulsos provenientes da estrela de nêutrons, a nebulosa apresenta emissão no contínuo, devido à radiação sincrotrônica dos elétrons energéticos que se propagam espiralando no campo magnético ambiente, como já comentamos.

As supernovas têm grande influência na evolução da composição química da galáxia, pois a matéria que estes astros jogam para o meio interestelar na explosão é rico em elementos químicos pesados. Voltaremos a tratar desta questão no capítulo 6. O campo magnético galáctico

Na medida em que existe um campo magnético permeando o espaço entre as estrelas, devemos considerá-lo como parte do meio interestelar. Porque estaríamos interessados no campo magnético? Primeiro, por motivo de aprofundamento teórico, pois gostaríamos de entender o mecanismo que o gera. Mas por outro lado, por seus inúmeros efeitos no meio interestelar. Por exemplo, o campo magnético dificulta o colapso de nuvens, e portanto influencia a formação estelar.

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Vários métodos tem sido utilizados para inferir o valor e a orientação do campo magnético da Galáxia. O mais importante, para a intensidade do campo, é a observação dos pulsos dos pulsares, que informa sobre o valor médio do campo. Os pulsos emitidos na região radio do espectro saem do pulsar num dado instante e com uma dada polarização linear. A polarização se refere à direção de oscilação do campo elétrico da radiação como mencionamos na seção sobre poeira interestelar. O mesmo conceito se aplica a ondas radio. Sabemos, por exemplo, que uma antena de televisão tem que ser instalada com suas hastes horizontais, porque os transmissores decidiram que esta seria a direção do campo elétrico. Se os transmissores decidissem mudar a orientação de suas antenas e emitir com polarização vertical, teríamos que colocar nossas antenas com as hastes na vertical, para maximizar o sinal recebido.

Acontece, no caso dos pulsares, que tanto o instante de chegada dos pulsos na

Terra, quanto o angulo de polarização na chegada (o angulo da antena que maximiza o sinal), dependem da freqüência de observação! Esta propriedade fora do comum não é devida à fonte de emissão, mas ao que acontece no caminho. Num ambiente que contém partículas carregadas mergulhadas num campo magnético, como é o caso do MI, a velocidade da luz depende ligeiramente da freqüência da radiação, e a polarização gira lentamente (fenômeno conhecido dos estudiosos de física dos plasmas, como rotação Faraday). Mesmo não tendo informação sobre o tempo total de viagem dos pulsos, uma informação facilmente obtida é a diferença de tempo de chegada para dois receptores sintonizados em freqüências próximas. A grandeza obtida é chamada de medida de dispersão, que informa sobre <Ne>, o valor médio da densidade de elétrons ao longo do percurso dos pulsos. Da mesma forma é possível medir como o angulo de polarização varia para freqüências próximas, o que nos dá a medida de rotação, que é proporcional ao produto <Ne Bp>, onde Bp é a componente do campo magnético paralela à direção de propagação. Dividindo uma medida pela outra se obtém o valor médio da componente Bp. Os valores encontrados são da ordem de 2x10-6 Gauss. Outras estimativas são baseadas no efeito Zeemann (desdobramento de linhas espectrais devido a interação dos spins dos elétrons de átomos ou moléculas com o campo magnético), e nas observações da radiação de fundo da Galáxia em baixas freqüências (radiação sincrotrônica, causada por elétrons que se propagam no campo magnético). As várias técnicas dão as mesmas ordens de grandeza para o campo magnético, com incertezas da mesma ordem que as medidas.

A luz tal como é emitida pelas estrelas normalmente não é polarizada. Quando um certo grau de polarização é observado, esta é atribuída à absorção da luz pela poeira interestelar, que é maior para um plano de polarização do que para outro, devido ao alinhamento dos grãos de poeira com o campo magnético. Este mecanismo não fornece uma medida da intensidade do campo, mas contem informações sobre sua direção e distribuição no espaço, que não são fornecidas pelos outros métodos. Basicamente, o campo magnético parece estar alinhado com os braços espirais da Galáxia, mas as flutuações locais de direções e intensidade são importantes. Voltaremos a discutir a associação dos campo magnético com os braços no capítulo 5.

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Raios Cósmicos Os raios cósmicos são partículas de alta energia (de 109 a 1014 eletron-volts), sendo elétrons, prótons, partículas alfa e núcleos de elementos mais pesados, que atravessam o meio interestelar com velocidade praticamente igual à da luz. Enquanto que antigamente se observavam principalmente os raios cósmicos secundários, que se originam da interação dos raios cósmicos primários com a atmosfera terrestre, hoje se tem acesso aos raios cósmicos primários, por meio de satélites e de balões. Verifica-se que a abundância relativa dos elementos nos raios cósmicos é parecida com a abundância universal, a menos de um forte excesso dos elementos Lítio, Berílio , Boro, e He3. Estes elementos são produtos de reações de spalação que acontecem quando elementos como carbono, nitrogênio e oxigênio dos raios cósmicos têm alguns de seus prótons ou neutrons arrancados em colisões de alta energia com átomos de hidrogênio. Utilizando-se as seções de choque de spalação medidas com aceleradores nucleares, conclui-se que a quantidade media de matéria interestelar atravessada pêlos raios cósmicos antes de atingir a Terra é da ordem de 3 g cm-2. Desta grandeza deduz-se que os raios cósmicos passam em media 2 milhões de anos espiralando no campo magnético do disco galáctico antes de escaparem. Trata-se de um tempo curto, em escala galáctica, que mostra a necessidade de uma renovação constante dos raios cósmicos. A distribuição de energia é a mesma para todos os elementos (ou núcleos) que compõem os raios cósmicos, incluindo os prótons e partículas alfa. Para as altas energias, tem-se uma lei de potência do tipo dJ/dE = E -2.6 , onde J representa o fluxo de partículas. Ou seja, a quantidade de raios cósmicos diminui rapidamente para energias maiores. A presença dos raios cósmicos é importante para o equilíbrio energético do meio interestelar; a densidade de energia que eles representam, da ordem de 0.5 e.v. cm-3, é da mesma ordem que a densidade media de energia associada ao campo magnético galáctico, e da densidade de energia associada ao campo de radiação médio produzido pelas estrelas. Somente os raios cósmicos conseguem penetrar no interior das nuvens moleculares mais densas, constituindo um mecanismo de aquecimento para estas. O aquecimento se dá através da energia perdida pelos raios cósmicos, devido às ionizações que provocam. Os prótons dos raios cósmicos reagem com os átomos de hidrogênio (que também são prótons) do meio interestelar por meio da reação: p + p => p + p + π 0 (3-5) A energia do raio cósmico, que está sub-entendida no lado esquerdo da reação, é transformada num pion π0. Este decai posteriormente emitindo dois raios gamas. A emissão de raios gama, observada por meio de satélites, é mais intensa na direção de nuvens do que em direções sem nuvens, porque é lá que há maior ocorrência de hidrogênio. As imagens do satélite de raios gama COS B permitiram assim visualizar a distribuição de nuvens interestelares da Galáxia. Em outras palavras, os raios cósmicos tornam as nuvens moleculares brilhantes, em raios gamas!

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A origem dos raios cósmicos ainda não é bem conhecida; eles podem ser produzidos em explosões de supernovas, ou em estrelas que apresentam fulgurações (flares) parecidas com as do Sol. A analise dos rastros deixados por núcleos pesados em meteoritos e em amostras lunares indicam que o fluxo de raios cósmicos não sofreu alterações significativas nos últimos 5x107anos. Colapso de nuvens e formação de estrelas A formação de estrelas é um tema central da pesquisa do MI e da estrutura da Galáxia. As estrelas recém formadas dão origem a regiões HII e supernovas, e uma boa parte da dinâmica do MI resulta da ação destes objetos jovens. Os aglomerados jovens de estrelas são traçadores da estrutura espiral, como veremos no capítulo 5, e a formação de estrelas é responsável pelo enriquecimento do MI em elementos químicos, como discutiremos no capítulo 6.

A estrelas nascem do colapso de regiões internas de nuvens moleculares. As nuvens não são homogêneas; apresentam caroços com maior densidade, como ilustrado na figura 3-10. Já mencionamos que normalmente os meios gasosos de diversas densidades convivem graças ao equilíbrio de pressão que se estabelece, as regiões mais densas sendo mais frias, e a força de gravidade tendo pouca importância. No entanto, quando a densidade de um caroço cresce demais, e se acumula uma certa quantidade de matéria dentro de um volume não muito grande, a auto-gravidade da região passa a ser importante, e o gás começa a cair em direção ao centro da região densa, sem que a pressão do gás consiga se contrapor. A condição limite para que este colapso ocorra é bem conhecida; é uma relação entre densidade e dimensão da região2, conhecida como critério de Jeans para instabilidade gravitacional. Regiões com densidades diferentes podem se tornar instáveis, bastando que alcancem a dimensão dada por este critério. A título de exemplo, um caroço dentro de uma nuvem molecular, com dimensão 0,3 pc, densidade de 5x103 partículas por cm3, e temperatura de 20 K, terá uma massa de 30 M e estará no limiar da instabilidade.

Os detalhes do que acontece, depois de disparado o processo de colapso, são bem menos conhecidos. Sabemos que existem fatores que podem retardar o colapso, como o campo magnético, o momento angular da nuvem, e a existência de turbulência interna. O aquecimento do gás e o aumento de pressão serão também efeitos retardadores. Mas não existem no momento nem soluções analíticas nem simulações satisfatórias, que reproduzam um resultado final parecido com o que é observado. Uma boa simulação deveria produzir um certo numero de estrelas, com uma distribuição em massa parecida com a de Salpeter, e com uma fração de sistemas binários de estrelas e com velocidades de rotação similares aos encontrados em aglomerados jovens.

Resta-nos adotar um ponto de vista observacional e tentar responder a algumas

perguntas fundamentais para o entendimento do processo de formação estelar. Uma delas é se a formação estelar pode ser induzida, e em que circunstâncias isso aconteceria. Estamos falando de algum processo que atue sobre uma nuvem interestelar que contenha

2 A dimensão crítica λ de Jeans se escreve λ = (π a2 / G ρ) ½, onde a é a velocidade do som, G a constante gravitacional e ρ a densidade do meio

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caroços próximos do limiar da instabilidade gravitacional, e acelere ou precipite o colapso dos mesmos. Um mecanismo que certamente funciona é o de colisões de nuvens (ver figura 3-5), já que as colisões provocam a compressão do gás situado na região de colisão. Simulações foram realizadas por Eraldo P. Marinho (UNESP- Rio Claro) usando a técnica SPH (smoothed particle hydrodynamics, em que elementos de volume de um gás são tratados como as partículas de simulações numéricas habituais); os resultados mostram que as colisões são capazes de levar às condições de colapso. Uma propriedade muito interessante do gás interestelar é que, ao contrário dos gases aos quais estamos acostumados, quando comprimido, ele esfria, em vez de esquentar. Isto vem do fato que os mecanismos que produzem o esfriamento se tornam muito mais eficientes quando a densidade aumenta. Basicamente, o gás é esfriado pelas emissões moleculares, e estas são excitadas por colisões, que aumentam com o quadrado da densidade. No meio interestelar, as escalas de tempo envolvidas em qualquer processo de colisão de nuvens são da ordem de milhões de anos, e o tempo necessário para que o aumento esperado de pressão equilibre ou inverta o fluxo e gás é maior que o tempo de esfriamento do gás. Em suma, a pressão do gás comprimido pela colisão decresce, em vez de crescer, o que facilita a aumento sem limite da densidade da região comprimida. Note-se que o processo que acabamos de descrever é bastante diferente de uma “onda de choque” atravessando uma nuvem, provocando um aquecimento temporário por onde passa, sem aumento importante

Figura 3-15: Simulação de colisão de duas nuvens interestelares esféricas, por E.P. Marinho. A parte de cima mostra as nuvens no início da colisão, e a parte inferior o resultado final, uma nuven densa em estado de colapso formador de estrelas.

da densidade. Acreditamos que a colisão de volumes de gás provocando aumento de densidade e formação de nuvens densas ocorre nos braços espirais da galáxia. Aparentemente, os braços são os próprios formadores de nuvens moleculares, já que estas praticamente não existem fora dos braços. Uma questão relacionada com esta é se os

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braços espirais são indutores de formação estelar. A resposta é positiva, mas teremos que aguardar o capítulo 5, onde a natureza dos braços é longamente discutida.

Muitos astrônomos acreditam na eficiência de um processo chamado de “formação seqüencial de estrelas”, em que a formação de um grupo de estrelas produz ondas de choque que desestabilizam regiões vizinhas, provocando a formação de novos grupos, e assim sucessivamente. Esta questão será abordada em mais detalhe no capítulo 5, na seção sobre o cinturão de Gould.

Uma outra pergunta que podemos nos fazer é qual a eficiência do processo de formação estelar, no sentido de qual a fração da massa inicial da nuvem que será transformada em estrelas, no final do processo. Não é difícil encontrar artigos que avançam números como 30%, por exemplo. Mas convenhamos: trata-se de um numero bastante incerto, porque quando temos a possibilidade de contar as estrelas que se formaram, uma parte da nuvem já se dissipou (passou da forma molecular para a forma de nuvem difusa). Nunca teremos a oportunidade de observar uma mesma região antes e depois da formação estelar.

Para tentar responder à pergunta sobre a eficiência de formação estelar, seria

importante saber a velocidade com a qual as nuvens se dissipam ou com a qual as estrelas abandonam a nuvem onde se formaram. Vale relatar aqui alguns resultados interessantes obtidos por pesquisadores do país. Ramiro de la Reza, do Observatório Nacional ( Rio de Janeiro), foi um dos primeiros a identificar um grupo de estrelas T Tauri isoladas de qualquer nuvem de gás. As estrelas T Tauri são estrelas de massa semelhante a do Sol, que ainda se encontram na fase pré-seqüência principal, sendo portanto recém-formadas. É surpreendente que tais estrelas estejam longe de sua nuvem-mãe, ou que, no caso desta nuvem ter-se desfeito, não existam mais resíduos da mesma. Posteriormente, Ramiro de la Reza, Carlos Alberto Torres, Germano Quast (ambos do Laboratório Nacional de Astrofísica, com sede em Itajubá, MG), Jane Gregório Hetem e o autor deste livro (ambos do IAG-USP) empreenderam um trabalho de procura sistemática de estrelas T Tauri em todo o céu do hemisfério sul, que ficou conhecido como o survey ou levantamento do Pico dos Dias. As procuras de estrelas T Tauri feitas até então sempre tinham focalizado regiões já conhecidas como sendo de formação estelar. O objetivo do trabalho foi principalmente aumentar a amostra destas estrelas, mas também em grande parte verificar se as estrelas T Tauri seriam encontradas longe de regiões conhecidas de formação estelar. O survey levou a descoberta de um bom numero de estrelas T Tauri e de outras estrelas jovens (as “Ae e Be de Herbig”) desde próximas até dezenas de pc de nuvens moleculares. Estes resultados indicam que em poucos milhões de anos, estrelas recém formadas podem estar totalmente livres da nuvem que lhes deu origem.

Conclusões

Por "meio interestelar" entendemos a matéria rarefeita e a radiação que ocupam o espaço entre as estrelas. Constituído principalmente de gás e de poeira, este meio representa cerca de 20% da massa da Galáxia, o restante estando concentrado nas estrelas (estamos ignorando aqui a matéria escura). O estudo do meio interestelar é da maior relevância para a astrofísica. Os objetos celestes mais espetaculares para os observadores,

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e cuja natureza foi discutida neste capitulo, como as regiões HII, observáveis até mesmo em galáxias distantes, as nebulosas planetárias e os restos de supernovas, são exemplos de matéria interestelar. É principalmente através de observações do gás interestelar que podemos alcançar o conhecimento da estrutura da Galáxia, e do processo de formação das estrelas. A pesquisa do MI faz uso de conhecimentos de muitas áreas da física: termodinâmica, física atômica e molecular, química, física de altas energias, física de plasmas, processos radiativos, etc. Um exemplo da riqueza das estruturas encontradas no MI é mostrado na figura 3-16. O MI é um ótimo exemplo de pesquisa interdisciplinar, dentro da física.

Figura 3-16: “Colunas” (Pillars) que ilustram a convivência de meios densos e frios com meios mais rarefeitos e quentes. Uma estrela ionizante dispersou uma nuvem interestelar; algumas regiões frias sobreviveram por algum tempo, protegidas atrás de alguns caroços mais densos da nuvem original, que demoram mais para se dispersar (foto do telescópio espacial Hubble, distribuída pela NASA).

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