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CAPÍTULO I A FORMAÇÃO CENTRADA NA ESCOLA A formação centrada na escola é um conceito que deve ser entendido de forma muito ampla, em que, no essencial, o formando participa em todo o processo, desde a concepção até à avaliação, sendo conferida à formação contínua um “sentido estratégico”, colocando-a ao serviço da resolução de problemas e desenvolvimento de projectos de transformação das escolas. Neste sentido, pode ser considerada como um dos aspectos centrais do sistema educativo, susceptível de contribuir para a inovação da escola, perspectivada como um importante centro das políticas educativas, no quadro de uma autonomia efectiva. Porém, dada a prevalência de uma mera retórica de descentralização e delegação de poderes, a formação centrada na escola pode ser vista como uma realidade mitológica constituindo uma das mais recentes “ideologias educativas” do pós-25 de Abril. Neste capítulo, para além de se situar a formação contínua no campo da formação e educação de adultos, procede-se a um breve enquadramento sócio-histórico e político das problemáticas da formação e da autonomia das escolas, com base numa revisão da literatura nacional e estrangeira disponível, relacionando-as com as questões da identidade profissional, do profissionalismo docente e da criação do bem comum.

CAPÍTULO I A FORMAÇÃO CENTRADA NA ESCOLA · A formação centrada na escola é um conceito que deve ser entendido de forma muito ampla, em que, no essencial, o formando participa

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CAPÍTULO I

A FORMAÇÃO CENTRADA NA ESCOLA

A formação centrada na escola é um conceito que deve ser entendido de forma

muito ampla, em que, no essencial, o formando participa em todo o processo, desde a

concepção até à avaliação, sendo conferida à formação contínua um “sentido

estratégico”, colocando-a ao serviço da resolução de problemas e desenvolvimento de

projectos de transformação das escolas. Neste sentido, pode ser considerada como um

dos aspectos centrais do sistema educativo, susceptível de contribuir para a inovação da

escola, perspectivada como um importante centro das políticas educativas, no quadro de

uma autonomia efectiva. Porém, dada a prevalência de uma mera retórica de

descentralização e delegação de poderes, a formação centrada na escola pode ser vista

como uma realidade mitológica constituindo uma das mais recentes “ideologias

educativas” do pós-25 de Abril.

Neste capítulo, para além de se situar a formação contínua no campo da

formação e educação de adultos, procede-se a um breve enquadramento sócio-histórico

e político das problemáticas da formação e da autonomia das escolas, com base numa

revisão da literatura nacional e estrangeira disponível, relacionando-as com as questões

da identidade profissional, do profissionalismo docente e da criação do bem comum.

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1 – A formação contínua de professores e outros educadores como modalidade de educação e formação de adultos

Ao pretendermos explicitar o conceito de formação podemos fazer referência a

quatro pólos mais ou menos relacionados entre si: o educar, o ensinar, o instruir e o

formar1. Educar é um conceito muito abrangente que se refere ao desenvolvimento

intelectual, físico e moral. Ensinar está próximo dos vocábulos aprender, explicar,

demonstrar, sendo uma actividade intencional, realizada na escola, através do recurso a

profissionais com preparação específica para o efeito. Instruir tem mais a ver com

conteúdos a transmitir e, dessa forma, com o fornecimento de instrumentos intelectuais

e de informação. Formar corresponde a uma acção profunda e global da pessoa em

várias dimensões – saberes, saber- fazer, saber-ser e aprender-a-aprender. Assim, na

formação as questões não se prendem exclusivamente com a acção de agentes

exteriores, pois há o apelo a uma enunciação ou autodeterminação pelo próprio sujeito

em formação, distinguindo-se assim da educação2, do ensino e da instrução.

O conceito de formação, para Christian Alin (1996: 283), introduz interrogações

do tipo: - Que sou eu capaz de fazer? – Que lugar ocupo? – Quem sou eu? A estas três

interrogações o autor relaciona-as, respectivamente, com três lógicas – “lógica de

investimento”, “lógica de formação-acção” e “lógica de projecto”. No primeiro caso

trata-se de uma lógica de adaptação e mudança mas também de presença e investimento.

Na segunda lógica o formando determina-se como actor e autor num processo de

resolução de problemas. A terceira lógica inscreve-se numa dimensão de temporalidade

e incerteza e abre o campo da aventura do sujeito em tempo de formação.

Do ponto de vista dos valores e na perspectiva de Michel Fabre3, o conceito de

formação pode ser inspirado numa dualidade: a dimensão do saber e do saber-fazer

relacionado com o domínio profissional, por um lado; a dimensão global do sujeito que

privilegia a auto-reflexão, por outro. A estes dois pólos correspondem dois paradigmas:

o tecnológico e o biológico. O tecnológico como “[...] modelação de um formando ou

1 Educar, ensinar, instruir e formar derivam respectivamente do latim educare (alimentar, criar, ...) e educere (fazer sair de ...), insignare (conferir marca, uma distinção), instruere (inserir, dispor,...) e formare (dar o ser e a forma, organizar, estabelecer). 2 Relativamente ao conceito de educação a distinção não é muito clara, sendo frequente a utilização dos vocábulos “educação” e “formação” como palavras sinónimas (Canário, 1999: 36). 3 Michel Fabre apresenta-nos um triângulo de lógicas de formação: lógica didáctica (conteúdos e métodos); lógica psicológica (desenvolvimento pessoal) e lógica social (situação sócio-profissional). Estas três lógicas podem ser articuladas com as três interrogações de Christian Alin já referidas. Para mais detalhes sobre esta articulação Cf. Ana Maria Silva (1998).

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como «ajustamento» a um posto de trabalho [e o biológico como] adaptação flexível de

um sujeito a uma realidade em mudança” (Fabre, 1995: 29). A formação pode ser

pensada segundo o predomínio de um ou outro paradigma dando origem a tensões4 que

estão presentes em todas as concepções da formação.

Uma primeira tensão poderá resultar da tradicional dicotomia entre o lugar de

“aprender” e o lugar de “fazer” (Canário, 1999: 41), característica da formação

escolarizada. Corresponde a uma lógica de programa, que separa os tempos e espaços

de trabalho e de formação. No pólo oposto podemos situar a lógica de dispositivo de

formação (Correia, 1997), que sobrepõe esses tempos num processo único e numa

dinâmica de formatividade. A forma escolar, que se baseia na descontinuidade entre as

situações de trabalho e de formação, revela as dificuldades de uma transferibilidade

linear das aprendizagens da formação, quando o que está em causa são as exigências

concretas do quotidiano profissional onde se inclui a produção de mudanças

organizacionais substantivas.

Para ultrapassar esta aplicabilidade problemática do conteúdo da formação,

quando esta é perspectivada segundo o modelo escolar, com um programa formal e

concebido a priori, a defesa de uma formação em contexto real de trabalho tem sido um

denominador comum no discurso académico, em que é valorizada a informalidade,

traduzida pelo apelo a situações formativas pouco ou nada estruturadas e não

necessariamente conscientes ou intencionais (Canário, 1999: 80). Reforçando esta tese,

Rui Canário (1994: 33) faz a apologia do informal, entendendo que os “[...] os

processos formativos formais deveriam ser encarados como um complemento dos

processos informais”.

Na mesma linha de valorização da educação informal se situa Abraham Pain

(1990), dando especial relevância aos efeitos formativos do quotidiano em situações de

educação permanente não intencionais, permitindo a integração imediata dos resultados

do processo de formação na acção. Assim, o campo do informal relaciona-se com as

actividades quotidianas de todas as idades, quer em termos do mundo da produção,

4 De facto, numa revisão da literatura sobre a formação dá para constatar que toda ela é trespassada por uma série de dicotomias: programa/dispositivo; formal/informal; teoria/prática; carente/experiente; individual/colectivo; engenharia/bricolage; uniformidade/diversidade; racionalidade técnica/racionalidade prática; dominação/emancipação; qualificação/competência; análise de necessidades de formação/análise de necessidades em formação; lógica de substituição/lógica de recomposição; pedagogia da observação/ pedagogia da escuta; racionalidade técnica/racionalidade emancipatória; competitividade/cidadania; etc.

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quer na vida familiar, social ou de lazer, possibilitando uma aprendizagem autónoma e

favorecendo, dessa forma, o despontar de uma autonomia pessoal.

Esta perspectiva, em que se valorizam as aprendizagens em situação, em

detrimento dos “procedimentos de aprendizagem desligados da actividade tal como está

socialmente constituída” (Demailly, 1992: 142), tem como premissa a consideração do

adulto em formação como um ser experiente e, por isso mesmo, que possui um conjunto

de saberes adquiridos por via experiencial que podem ser mobilizados. Contrariamente,

o entendimento do formando como ser carente, pressupõe uma formação como

reciclagem, de natureza adaptativa e num processo cumulativo, reprodutivo, ortopédico5

e lacunar.

Continuando a explorar as dicotomias da formação, poder-se-á afirmar que a

uma racionalidade individual da formação opõem-se dinâmicas colectivas em que se

perspectiva a formação com base numa identificação de necessidades de formação6

articulada com uma lógica de projecto ou a partir da constatação de um problema ou

disfuncionamento (Le Boterf, 1990). No caso da formação contínua de professores, Rui

Canário (1995) considera que emerge a importância estratégica do conceito de problema

por contraposição ao conceito de necessidade, associando a identificação e análise de

necessidades à gestão estratégica dos estabelecimentos de ensino7.

A dicotomia teoria/prática, também presente na formação, tem por referência a

divisão social do trabalho e a separação entre conceptores e executores segundo uma

lógica tayloriana das relações de trabalho. Podemos associar esta separação aos

conceitos de engenharia da formação (Le Boterf, 1990) e de bricolage8. O bricoleur,

por analogia com o artesão e, por esse facto, em oposição ao engenheiro da formação, é

o profissional que domina todo o processo, sendo capaz de conceber, executar e,

inclusivamente, assumir processos de auto-formação.

5 As “concepções ortopédicas de formação” (Correia, 1999b: 6) sustentam o tratamento cirurgião dos profissionais de educação definidos como indivíduos carenciados. 6 Este conceito pode ser entendido, na linha de De Ketele et al. (1994: 15), como correspondendo “[...] a lacunas ou desfazamentos entre o vivido e o desejável, susceptíveis de serem colmatados por uma formação adequada”. Estes mesmos autores fazem a distinção entre procura, expectativas e necessidades. 7 O projecto de formação associado ao Projecto Educativo de Escola poderá ser uma via para retirar à formação o carácter meramente instrumental que reforça os processos de dominação, favorecendo a “investigação reflexiva” (Schön, 1996: 221) e a actividade comunicacional entre os sujeitos, estruturando a interacção entre os indivíduos e, por isso, a sua emancipação, levando-os à cidadania, autonomia e “construção das identidades profissionais” (Dubar, 1995: 70). A formação centrada na escola nesta linha de pensamento seria uma oportunidade de aprendizagem na organização e nas situações de trabalho. 8 Esta dicotomia especialista/bricoleur é feita por Lévi Strauss, na citação de José A. Correia (1998: 146).

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Este bricolage na formação é pertinente pois cada corpo profissional deve ser

visto como um conjunto de indivíduos que detêm saberes não apenas práticos, mas

sobretudo de um “saber na prática”, conhecimento importante pois, como considera

Gérard Malglaive (1995), “a teoria não diz tudo do real”. Quando o prático produz os

seus próprios saberes, a formação desloca-se da esfera do consumo para a esfera da

produção, o que é essencial num processo de formação na inovação (Amiguinho, 1992:

68). Como também considera Donald Schön (1996: 212), “[...] a investigação faz parte

das actividades do prático”, por exemplo, através de uma colaboração mútua entre

investigadores e práticos (Elliott, 1994). As tensões já apresentadas reflectem a

conflitualidade entre as lógicas de substituição e de recomposição, conforme os saberes

experienciais são ou não reconhecidos para o “enriquecimento do património

experiencial” dos sujeitos (Correia, 1998: 146-147).

A dicotomia dominação/emancipação está associada a dois tipos de

racionalidade em contradição – “racionalidade técnica” e “racionalidade prática”. A

racionalidade técnica é uma concepção epistemológica da prática herdada do

positivismo em que o professor se limita à aplicação de teorias e técnicas científicas

derivadas da investigação académica. Numa racionalidade prática o professor é um

profissional visto como practicum reflexivo que reflecte na e sobre a prática (Schön,

1992). Esta concepção é coerente com o modelo de formação na “forma interactiva-

reflexiva” permitindo a invenção e fabricação colectiva de novos saberes (saberes

profissionais) durante a formação9 (Demailly, 1992: 145).

Os processos de dominação encontram-se bem vincados em autores que

destacam numa perspectiva crítica, o carácter tecnocrático, contábil, instrumental e de

controlo da formação (Freire, 1975; Lima, 1996a; Correia, 1998, 2000). O carácter

tecnocrático que enfatiza uma formação como adaptação técnica dos indivíduos; o

carácter contábil na medida em que a educação e formação que contam são as que

permitem uma avaliação e mensuração de resultados, com instâncias de contadoria e

agentes e processos contadores; o carácter instrumental baseado na crença de que as

exigências do trabalho são possíveis de ser aprendidas e resolvidas através de uma

9 Esta concepção de professor segundo uma “racionalidade prática” não significa que as universidades não tenham um papel relevante a desempenhar numa formação centrada na escola e nas práticas profissionais (Garcia, 1992: 74).

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situação de formação. Finalmente, é realçado o papel da formação como controlo

contribuindo para a regulação social.

Por sua vez, numa formação perspectivada numa lógica emancipatória segundo

uma “racionalidade comunicativa” (Habermas, 1987), os diversos participantes, sem

coacções, superam a subjectividade inicial e de uma forma argumentada asseguram o

consenso e a intersubjectividade do contexto onde desenvolvem as suas vidas. Estamos

perante uma “pedagogia problematizadora” (Freire, 1975) onde a relação dialógica, a

horizontalidade e a democracia fazem da formação uma prática de liberdade no

exercício de uma cidadania plena e num “processo endógeno de participação activa”

(Faure et al., 1972: 323).

A dicotomia racionalidade técnica/racionalidade emancipatória é bem vivível no

pensamento dos pedagogos da perspectiva crítica e emancipatória. A racionalidade

técnica é baseada no modelo da transmissão de crenças e valores, apoia um

comportamento adaptativo e condicionado e promove o consenso, minimizando o

conflito. Todavia, na linha teórica crítica e emancipatória, a educação, o ensino e a

formação são de natureza política e não técnica e os seus profissionais, considerados

como “intelectuais transformadores” (Giroux, 1988: 121; Fernandes, 2001: 146), e não

como técnicos especializados na burocracia da escola, são potenciais autores de

mudança. Neste sentido, é feita a apologia de um professor dotado de uma atitude

crítica no exercício da sua actividade num sentido transformador, de modo a que “torne

a pedagogia mais política e a política mais pedagógica” (Giroux, 1988: 127). Mais que

enfatizando uma “hipervalorização dos projectos individuais” (Afonso, 2001), os

pedagogos críticos vêem o professor num quadro de uma “racionalidade

emancipatória”10 que se baseia:

“[...] nos princípios da crítica e da acção [tendo como objectivo] criticar aquilo que é restritivo e opressor, enquanto ao mesmo tempo apoia a acção ao serviço da liberdade e do bem estar individual. Este modo de racionalidade é construído como a capacidade de pensamento crítico para reflectir e reconstruir a sua própria génese histórica, isto é, pensar sobre o próprio processo de pensamento” (Giroux, 1983: 190).

10 Para além da “racionalidade técnica” e da “racionalidade emancipatória”, Henry Giroux, numa linha teórica crítica influenciada pelos argumentos iniciais da Escola de Frankfurt e dos seus pensadores mais representativos (Adorno, Horkheimer, Marcuse, etc.), considera um terceiro tipo de racionalidade – “racionalidade hermenêutica”. Henry Giroux considera, no entanto, esta racionalidade como “uma teoria unilateral de educação para a cidadania, que abstraiu ‘miraculosamente’ da sua epistemologia social os conceitos problemáticos como ideologia, poder, luta e opressão” (1983: 186). Trata-se de uma educação para a cidadania que não põe em causa o statu quo nem problematiza a necessidade de transformação da sociedade.

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Podemos distinguir as noções de qualificação e competência. A qualificação não

é um garante da competência (Canário, 1999: 46). A competência é produzida em acto.

Analisando a evolução das qualificações, Gilbert de Terssac (1996), faz corresponder

aos anos 70 uma qualificação em termos de um “fazer” que é uma concepção negada,

pois a realidade actual já não se compadece da valorização exclusiva de um simples

“fazer”. Aos anos 80 uma qualificação tipo “saber- fazer” que é tolerada e aos anos 90

uma qualificação de um “saber-que-fazer”11 como uma concepção reencontrada. Sobre

a noção de competência entende-a como um instrumento de codificação de um “saber-

dizer”12 (explicitação), de um “saber-de-intervenção” e de um “saber-de-avaliação”.

Daqui resulta que uma formação consentânea com os tempos actuais dificilmente

poderá esquecer as qualificações e competências que permitam enfrentar a

imprevisibilidade e a intervenção nos contextos reais de trabalho e que considerem o

formando como um sujeito actor e autor da sua própria formação.

A dicotomia uniformidade/diversidade está presente, por exemplo, quando se

analisam Centros de Formação de Associação de Escolas (Ferreira, 1998, 1999;

Formosinho et al., 1999; Formosinho, Ferreira & Silva., 1999). Por um lado, verifica-se

que a oferta formativa é “[...] tendencialmente de tipo escolar” (Ruela, 1999: 254)

segundo um lógica individual e instrumental da formação, marcada pela dupla

exterioridade (Barroso & Canário, 1999: 150) relativamente aos professores e às

escolas, podendo contribuir para a prevalência de uma certa lógica de dominação dos

sujeitos. Por outro lado, são visíveis práticas contextualizadas, embora minoritárias,

com dinâmicas colectivas, de reflexividade e potencialmente emancipatórias.

A dicotomia subordinada à análise de necessidades, acentua uma análise de

necessidades não exclusivamente prévia mas em formação, à semelhança dos

pressupostos de Bernard Charlot (1976)13 e José Alberto Correia (1989; 1999b). Com

efeito, a tradiciona l “análise de necessidades” com base na aplicação aos futuros

formandos de um inquérito por questionário tem-se revelado, por vários motivos,

contraproducente (Barroso & Canário, 1999: 124-126). Quando a formação é realizada

num sistema em que os formandos têm oportunidade de participar na concepção da

11 Contextos de acção pouco estruturados. Os procedimentos são imprevisíveis. 12 O trabalhador é que diz o que faz e que competências precisa. 13 Para Bernard Charlot (1976), “a formação que consiste na análise das próprias necessidades de formação é um dos objectivos essenciais de toda a acção”.

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formação as necessidades podem ser trabalhadas e negociadas colectiva e

continuamente no decorrer da própria acção.

Finalmente, a dicotomia competitividade/cidadania coloca em tensão as

exigências da produtividade e de sobrevivência das organizações num mercado pós-

fordista altamente competitivo, que valoriza a disciplina, a obediência, a passividade e o

individualismo, e as questões da cidadania, nas suas vertentes da solidariedade, da

participação, da criatividade e do pensamento crítico. A tentativa de convergência entre

estes dois pólos corresponde a um “novo consenso social” (Afonso & Antunes, 2000)

ou um “novo paradigma produtivo”. Neste sentido, pode questionar-se até que ponto a

elevação dos níveis de educação e de formação contribui para a consolidação e

desenvolvimento dos direitos de cidadania.

Contrariando as dicotomias expostas, que podem parecer redutoras, temos à

disposição tipologias que funcionam como modelos teóricos da formação. Assim, os

modelos e enfoques da formação servem de referente para a organização da formação e

de contextualização teórica da avaliação das práticas existentes, constituindo uma chave

ou grelha de leitura dessas práticas. Configuram “um modelo de análise e não modelos

de acção pedagógica” (Lesne, 1977: 216) e enquadram, em termos

epistemológicos/disciplinares, a formação.

Assim, como tipologias relevantes no que se refere às questões da formação

podemos referenciar os enfoques da formação de Gilles Ferry (1991) e diversos

modelos. Gilles Ferry (1991) considera quatro orientações ou enfoques da formação: a

funcionalista, a científica, a tecnológica e a situacional.

A funcionalista privilegia a função que o formando e a instituição têm num

contexto mais amplo relativamente à sociedade. Os objectivos são fundamentais. A

formação é concebida exteriormente ao sujeito e centra-se nas questões racionais.

A científica preconiza a formação científica dos formandos. Centra-se

predominantemente nos conteúdos. A formação também é concebida exteriormente ao

sujeito, não valorizando a articulação da teoria e da prática.

A tecnológica baseia-se na utilização dos recursos técnicos na organização da

formação, sendo também meio e objectivo da formação. Privilegia os recursos como

dimensão didáctica, expressiva e de investigação.

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A orientação situacional valoriza a relação dos sujeitos com as situações com as

quais estão implicados. Centra-se na experiência dos sujeitos e na sua capacidade de

análise crítica. Valoriza os aspectos funcionais e experienciais e as dimensões pessoal e

social. A ênfase é o sujeito em formação.

Como modelos da formação podemos, de entre outras, destacar quatro

tipologias: a de Marcel Lesne (1977), a de Gilles Ferry (1991), a de José Alberto

Correia (1989) e a de Carlos Vilar Estêvão (1998c). Marcel Lesne, numa focalização

sociológica da formação, considera três modos de trabalho pedagógico: o MTP1 – tipo

transmissivo de orientação normativa; o MTP2 – tipo incitativo de orientação pessoal; o

MTP3 – tipo apropriativo centrado na inserção social14. Gilles Ferry, numa focalização

psico-pedagógica da formação, considera três modelos: centrado nas aquisições;

centrado no processo e centrado na análise15. José Alberto Correia perspectiva a

formação como mecanismo de reprodução social, mecanismo de adaptação e

instrumento de transformação social16.

14 No MTP1 o formando é objecto de socialização, isto é, a pessoa é objecto do condicionamento dos outros e sofre influência directa exercida pelo mundo social. No MTP2 a pessoa em formação é sujeito da própria socialização, ou seja, é sujeito do condicionamento auto-imposto e a ênfase está em processos de adaptação activa. No MTP3 a pessoa em formação é agente de socialização na medida em que é agente do condicionamento dos outros e exerce influência sobre os outros com base na sua posição na hierarquia social. O saber é instrumento de emancipação. 15 O modelo centrado nas aquisições dá origem a dispositivos pré-concebidos e presididos por uma racionalidade técnica. O modelo centrado no processo é presidido por uma racionalidade prática. O modelo centrado na análise valoriza as situações de trabalho como situações singulares. A intenção é intervir nas situações que vão surgindo ao longo do percurso profissional. É a lógica da racionalidade crítica, sem que se dispense, no entanto, um referente teórico. Neste modelo, como refere Gilles Ferry (1991: 77), o indivíduo em formação analisa as situações distanciando-se em relação a elas. É como observar-se como se fosse outro ou “[...] é jogar o duplo jogo de actor e de observador”. 16 No primeiro caso a relação formador/formando é vertical e a avaliação certificativa. Constituem os sistemas pré-programados de formação. Continuando a tomar a escola como instituição, o mecanismo de adaptação social pensa os sistemas de formação de professores centrados no desenvolvimento pessoal. Vendo a escola como instrumento de transformação social, o sistema de formação centra-se na análise sócio-técnica das condições de trabalho. Não há dispositivos pré-definidos, existindo apenas objectivos globais. Pretende-se uma articulação formação/trabalho quer em termos físicos como teóricos. É uma formação muito mais exigente para os formandos. A teoria só é utilizada se é pertinente com a análise de necessidades efectuada. Os professores em formação produzem cientificamente num plano de estudo construído na acção, admitindo-se a sua precaridade mas existindo uma espinha dorsal definida à priori. As metodologias a utilizar são as de investigação/formação/acção, como refere Lúcia Oliveira (1997: 96), em que “[...] a acção [...] e a investigação [...] que de algum modo se pressupõe sejam mobilizadas de forma interactiva”. José Alberto Correia (1989: 131) considera que “eles são formados não só para a investigação, mas são essencialmente formados na investigação”.

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Numa acepção mais organizacional ainda podemos sinalizar uma outra tipologia

também baseada em três modelos: tecnicista, político e institucional (Estêvão, 1998c).

O tecnicista concebe a formação vinculada a intuitos produtivos e orientada para o

desempenho correcto das funções. O político surge ligado às questões do poder e do

controlo, da participação, da justiça e da cidadania 17. O institucional vê a formação

aliada a necessidades simbólicas e institucionais . Neste caso, o que é importante é

mostrar que se faz formação mesmo que esta não seja eficaz. A formação é

perspectivada como um domínio isomórfico com o domínio educacional.

17 Esta acepção será privilegiada (e desenvolvida nos capítulos seguintes) para a análise da problemática da formação na Escola Secundária Galécia. Refira-se, desde já, que a formação tanto pode contribuir para a dominação dos sujeitos como para a sua emancipação. A este propósito note-se que, genericamente, as actividades de formação podem ser agrupadas em dois grandes conjuntos – qualificação social/profissional/escolar ou socialização/desenvolvimento - conforme se trata de acções de transformação para o processo de diferenciação dos indivíduos ou para o seu processo de socialização e produção de características e comportamentos comuns (Barbier, 1990: 21).

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2 – Formação Contínua: evolução e perspectivas

2.1 – Iniciativas e dinâmicas de formação contínua até à LBSE

Os trabalhos de planeamento educacional remontam em Portugal ao final da

década de 50, através da execução do Projecto Regional do Mediterrâneo, financiado

pela OCDE, onde se fazia a previsão das necessidades do nosso sistema de ensino,

quanto ao número de diplomados necessários até 1975. Este projecto18 tinha como pano

de fundo o pressuposto da existência de uma correlação positiva entre a mão-de-obra

qualificada e o crescimento económico (Fonseca, 1981: 122). Este e outros trabalhos de

planeamento culminaram na Lei nº 5/73, conhecida como Reforma Veiga Simão.

Assim, e seguindo António Nóvoa, mediante o atraso de Portugal verificado no

início dos anos 60 relativamente aos restantes países europeus, quando comparadas as

diversas estatísticas ao nível da educação, e considerando a exigência de

desenvolvimento do País, aquela reforma acabou por adoptar algumas tendências da

vaga reformadora, que acentuava o papel da educação na formação do capital humano,

na linha das abordagens da Escola das Relações Humanas. Esta época fica marcada

nomeadamente pela expansão quantitativa do sistema educativo português e

consequente recrutamento acelerado de professores, o que fez emergir fenómenos de

desprofissionalização do professorado. Esta realidade originou uma aposta no

desenvolvimento de programas de formação de professores, principalmente nas

universidades novas, onde se inclui a Universidade do Minho, tornando os anos 70 na

década sob o signo da formação inicial de professores (Nóvoa, 1992: 20).

Sobre a formação contínua de professores pode afirmar-se, à semelhança de

Bártolo Paiva Campos (1995: 24), que desde que as escolas existem, sempre houve

oportunidades de formação para os professores em exercício, sobretudo por iniciativa

do Ministério da Educação, das instituições de formação inicial e das associações

profissionais e pedagógicas. Tratava-se, contudo, de reciclagens de curta duração,

embora de custo elevado, tendo em vista a actualização de professores justificada

principalmente por modificações ocorridas nos programas (Campos, 1980: 103).

18 O Projecto Regional do Mediterrâneo incluiu, para além de Portugal, outros países mediterrânicos, atrasados, com nós, nos mesmos aspectos educacionais - Espanha, Itália, Jugoslávia, Grécia e Turquia (Carvalho, 1986 : 795).

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A apologia de uma formação centrada na escola tem as suas origens nos anos

70, mormente no pós-25 de Abril19 e através de experiências minoritárias, mas que

consubstanciam uma “tradição rica”, das quais se pode destacar a acção formativa dos

CRAP – Centros Regionais de Apoio Pedagógico e das EAP – Equipas de Apoio

Pedagógico.

Os primeiros nascem no período da Reforma Veiga Simão e surgem por

influência da experiência dos Centros de Professores ingleses dos anos 60, nos quais

também seria inspirada a criação de centros semelhantes em Espanha. Podem ser

considerados como extensões do Instituto de Inovação Pedagógica (INIP), criado no pós

25 de Abril pelo VI Governo Provisório, no seguimento de estudos anteriores, e extinto

pelo I Governo Constitucional. A criação deste Instituto é o reflexo de um certo

“voluntarismo político” dos Governos Provisórios e da existência de “um clima propício

à implantação de inovações e à irrupção de projectos diferentes” (Campos, 1980: 108-

109). Os CRAP conferem importância à iniciativa dos professores e do Estado, na

medida em que acentuam, quer a dimensão formativa não formalizada e a autonomia

profissional dos professores, quer o papel do Estado na criação de dispositivos

desconcentrados para a concretização das políticas educativas (Amiguinho & Canário,

1994; Barroso & Canário, 1999).

Por sua vez, as EAP foram criadas na sequência da necessidade de prestação de

apoio regional à profissionalização em exercício20 realizada nas escolas preparatórias e

secundárias, cujo processo se iniciou em 1979. Reuniam o conjunto de orientadores

pedagógicos das diferentes disciplinas do currículo que, de uma forma itinerante,

apoiavam em cada escola os professores em profissionalização na disciplina respectiva,

na concepção e desenvolvimento dos Planos Individuais de Formação (PIT). Apoiavam

também o Conselho Pedagógico da escola, através sobretudo do trabalho conjunto com

os delegados à profissionalização, na elaboração e concretização do programa de

formação de professores da escola.

19 Já em 15 de Novembro de 1975, numa comunicação ao País na qualidade de Secretário de Estado da Orientação Pedagógica, Bártolo Paiva Campos (1980: 118) defendia a substituição progressiva das tradicionais reciclagens por um apoio local e permanente para a formação, por intermédio de estruturas humanas que organizassem e animassem acções de formação em conexão directa com a prática docente quotidiana. 20 A profissionalização em exercício, a formação em serviço e a profissionalização em serviço são programas de complemento da formação inicial para os professores formados sem as necessárias habilitações pedagógicas, mediante a explosão escolar já referida. Esta realidade marca os anos 80 como a década sob o signo da profissionalização em serviço dos professores (Nóvoa, 1992: 21).

22

A acção formativa liderada pelas Equipas de Apoio Pedagógico e as acções

concretizadas pela dinâmica criada na implementação deste sistema de formação21,

centrado na organização escolar, é uma primeira aproximação de certo modo

substantiva a uma formação centrada na escola, com reflexos na actividade de muitas

escolas do país e não apenas em meia dúzia de escolas de projecto. Refira-se, a este

propósito, a grande quantidade de encontros regionais dos delegados à

profissionalização com os orientadores pedagógicos, o impacto desses encontros na

formação dos professores da escola através do delegado, o efeito dos mesmos encontros

no crescimento epistemológico de algumas disciplinas para as quais ainda não existiam

cursos superiores vocacionados para a formação inicial respectiva, os seminários

abertos a toda a escola no âmbito das Áreas Escola e Sistema Educativo e também da

Área Turma, a troca de experiências entre professores do ensino particular e os

delegados destacados do ensino oficial para a profissionalização em exercício, levando

a que essa formação centrada na escola se estendesse ao ensino particular e

cooperativo22, entre outros efeitos.

É certo que, a maioria dos delegados à profissionalização não estaria a priori

preparada para o desempenho do papel formativo que se esperaria deles. No entanto, em

conjunto com as EAP iam colmatando essas falhas, e foram-se produzindo algumas

dinâmicas de formação extremamente ricas e situações de formação qualitativamente

mais importantes do que outras produzidas por formadores com qualificação

profissional reconhecida academicamente (Correia, 1989: 127).

21 O anterior modelo de estágio clássico também originava a realização de acções de formação, embora a abertura a toda a escola fosse mais débil. Esta afirmação resulta da nossa experiência como estagiário no modelo clássico e de delegado à profissionalização no modelo da profissionalização em exercício, quer no ensino oficial, quer como professor destacado no ensino particular e cooperativo. Embora alguns autores considerem esta formação como inicial (Formosinho, 1991; Silva, 2001: 39), para os profissionalizandos será ténue a separação inicial/contínua e para os restantes actores escolares revestiu nitidamente a dimensão de formação contínua. Bártolo P. Campos (2002: 79) considera toda a formação em exercício como contínua. João Formosinho (1990a) considerou que a profissionalização em exercício foi mais eficaz como modelo de animação pedagógica das escolas do que como modelo de formação inicial. 22 Assinale-se a quase ausência, no início da década de 80, de professores profissionalizados neste subsistema de ensino.

23

2.2 – A criação dos CFAE’s: antecedentes e expectativas

A Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), publicada em 1986, iniciou o

processo de reforma educativa e correspondeu ao lançamento da primeira pedra para

uma posterior institucionalização da formação contínua. No seu artigo 35º, consagrou o

direito à formação contínua embora submetendo-a exageradamente às instituições de

formação inicial. Assim, utilizando as concepções da formação de Dubar (1997a: 49-

50), são sobrevalorizados os “[...] saberes teóricos [...] e uma identidade que não se

define a partir do trabalho” em detrimento da articulação entre saberes práticos e

teóricos num “saber de organização [...] que implica mobilização e reconhecimento”

(Dubar, 1997b: 238). Este princípio, a operacionalizar-se, não ajudaria à construção da

profissionalidade docente e à valorização dos saberes profissionais.

Os trabalhos da Comissão de Reforma do Sistema Educativo (CRSE), no seu

Projecto Global de Actividades, vieram diagnosticar a “inexistência de um sistema de

formação contínua dos docentes” CRSE (1986: 28). Neste sentido, João Formosinho,

em A Gestão do Sistema Escolar (CRSE, 1988c), apresenta como uma das estratégias

para a implementação da LBSE, a formação dos recursos humanos, principalmente os

que iriam desempenhar papéis de liderança na escola. Idêntica posição assume Licínio

Lima (CRSE, 1988c: 162), que preconiza a formação dos gestores escolares apontando

para uma progressiva especialização das funções de gestão e criação da respectiva

carreira.

Nos Documentos Preparatórios II o grupo de trabalho da Universidade do Minho

retoma as mesmas propostas de cursos de formação e de pós-graduação em organização

e gestão escolar (CRSE, 1988a: 161), no sentido da especialização da gestão. Prevê

“estruturas de formação contínua de professores” na escola (id., ibid.: 201-202) e

competências do conselho pedagógico a esse nível (art. 51º) - a elaboração de um

projecto de formação contínua (entre outras). Considera um Responsável pela estrutura

de formação contínua (id., ibid.: 226).

Na Proposta Global de Reforma são definidas algumas estratégias e orientações

de que se destaca: um Encontro sobre Formação de Professores, em colaboração com a

Universidade de Coimbra; a proposta de institucionalização de novos modelos de

formação inicial e contínua de professores (Programa de Execução D2) articulada com a

24

reorganização curricular e paradigma da escola pluridimensional23; a proposta de uma

estrutura de formação contínua de professores com a nomeação pelo conselho

pedagógico da escola de um Responsável pela Formação Contínua, que teria direito a

representação naquele órgão (CRSE, 1988b).

O Decreto-Lei nº 43/89, de 3 de Fevereiro, vem reconhecer a autonomia das

escolas para a gestão e formação do pessoal docente e não docente, entre outros

aspectos (art. 14º). No entanto, este diploma faz uma associação demasiadamente linear

entre a questão da autonomia e a capacidade de elaboração e realização do Projecto

Educativo, o que traduz obviamente uma noção limitada de autonomia. Esta e outras

críticas levaram António Sousa Fernandes (1989) a prever que “a autonomia das

escolas não [seria] para um futuro próximo”.

O Decreto-Lei nº 172/91, de 10 de Maio, no seu artigo 32º, define como

competência do conselho pedagógico a elaboração e apresentação ao conselho de escola

do “plano de formação e actualização do pessoal docente e não docente, bem como

acompanhar a respectiva concretização”, na sequência da publicação do Decreto-Lei nº

344/89 (ordenamento jurídico da formação de professores e educadores) e do Estatuto

da Carreira Docente (ECD)24 que relacionava (e ainda relaciona) a formação com a

avaliação do desempenho e a progressão na carreira.

Nesta fase evolutiva do processo de definição de um regime jurídico para a

formação de professores (RJFCP), João Formosinho publica um texto onde identifica os

seguintes modelos organizacionais de formação contínua de professores: estatista; de

parceria social; centrado nas instituições de formação inicial de professores; centrado

nas instituições de formação e nas escolas; centrado nos centros e/ou associações de

professores; centrado nas escolas; liberal (Formosinho, 1991)25

23 O Subprograma para a formação contínua, a partir de um trabalho na época em curso no IIE, definia os seguintes princípios (CRSE, 1988a: 650) para o ordenamento jurídico da formação contínua: coordenação (prioridades da política nacional); descentralização (coordenação da formação a nível regional); reagrupamento (ajustamento da oferta e a procura em âmbito regional); diálogo (instituições responsáveis pela formação, escolas e professores) e participação (escolas e professores na organização e avaliação da formação). 24 Decreto-Lei nº 139-A/90, de 28 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 1/98, de 2 de Janeiro. 25 Já em 9 de Abril de 1976, Bártolo Paiva Campos (1980: 129), a propósito da criação do INIP, numa comunicação como Secretário de Estado da Orientação Pedagógica, do VI Governo Provisório, defendia a organização de “uma rede bastante densa de centros locais de formação contínua de professores”, em que a rede de então de centros de estágio, devidamente redimensionada, poderia ser o embrião de tal estrutura. Estes “centros locais de formação prática”, em articulação com a Universidade e Escolas do Magistério, seriam instituições de formação permanente dos professores.

25

Já em 1990, o mesmo autor tinha publicado um outro texto onde defendia a

necessidade da formação contínua dos professores tendo em conta as novas exigências

da escola de massas e, segundo Formosinho (1990b: 62), para uma escola onde “[...]

funciona o modelo profissional de gestão [por contraposição ao modelo burocrático] já

faz sentido articular a formação contínua com a carreira docente”.

A publicação do Decreto-Lei nº 249/92 definiu o RJFCP e criou os Centros de

Formação de Associação de Escolas (CFAE’s) como entidades formadoras, fazendo dos

anos 90 a década “marcada pelo signo da formação contínua de professores” (Nóvoa,

1992: 22). Este diploma definiu, no seu preâmbulo, como finalidade fundamental da

formação a melhoria da qualidade de ensino. Associou a formação à “progressão na

carreira do pessoal docente” com a previsão da “avaliação dos formandos e a

consequente atribuição de créditos”. Criou um Conselho Coordenador da Formação

Contínua (CCFC) para assegurar a coordenação, acreditação e avaliação do sistema.

Para além de cumprir objectivos inerentes à reforma iniciada com a LBSE, o

RJFCP constituiu um suporte legal para a execução financeira do PRODEP ligando a

formação à progressão na carreira como previa o ECD e tornando-a obrigatória,

gratuita e universal, induzindo uma lógica de oferta e de procura individuais e dando

origem à “emergência de estratégias consumistas de formação” (Barroso & Canário,

1999: 149).

Temos, então, uma formação contínua articulada com a avaliação de

desempenho 26 na qual o docente é avaliado com base num parecer de uma comissão

especializada27 constituída no Conselho Pedagógico da escola que aprecia o documento

de reflexão crítica elaborado pelo docente e não necessariamente o seu desempenho

concreto. Além disso, o documento de reflexão crítica tem que ser “acompanhado da

certificação das acções de formação concluídas”28. O mais importante não é o conteúdo

da formação nem, pelo menos, o assunto tratado, mas a soma dos créditos necessários à

progressão, ao ritmo de um por ano. Esta lógica de avaliação quase-administrativa dos

docentes, que “não equivale a uma avaliação rigorosa” (Pacheco & Flores, 1999: 189),

tem-se mantido invariável no tempo, apesar das recentes intenções do actual ministro

26 A avaliação de desempenho é regulamentada pelo Decreto-Regulamentar nº 11/98, de 15 de Maio. 27 Especializada apenas na designação. Na actual composição do Conselho Pedagógico, pelo menos cerca de metade dos seus elementos docentes, fazem parte dessa comissão. Assim, os especialistas na avaliação dos docentes até podem ter formação académica inferior aos avaliados. 28 Artigo 5º do Decreto-Regulamentar nº 11/98, de 15 de Maio.

26

para alterar esta lógica. Refira-se que, no mundo empresarial, a avaliação de

desempenho é uma fase essencial para a identificação das necessidades de formação

(Camara, Guerra & Rodrigues, 1997: 326). Na Educação a avaliação de desempenho é

posterior às actividades formativas e, da forma como o processo é conduzido, não tem

qualquer impacto na identificação de necessidades de formação dos docentes.

O Decreto–Lei nº 207/96, de 2 de Novembro, com as alterações introduzidas

pelo Decreto-Lei nº 155/99, de 10 de Maio, constitui a última29 versão do RJFCP,

diploma onde é criado o cargo de consultor30 da formação, o Conselho de

Acompanhamento da Gestão Administrativo-Financeira31 e o Conselho de Formação

Contínua32. Este diploma fecha o ciclo de institucionalização de uma formação contínua

gratuita, obrigatória e universal e marca uma década sob o signo da formação contínua

de professores.

Numa interpretação baseada na lógica da oferta e da procura, o aparelho jurídico

da formação contínua de professores dispõe de mecanismos de regulação da oferta e de

mecanismos de regulação da procura (Campos, 1995: 25). No primeiro caso ressaltam

as prioridades estabelecidas para o financiamento público e no segundo caso a

articulação da formação com a progressão na carreira. Estes mecanismos configuram

um verdadeiro mercado da formação ou melhor, como um quase-mercado da

formação, pois que, por analogia com o “quase-mercado” em educação (Le Grand,

1996; Dale, 1994; Whitty, 1996; Afonso, 1998), trata-se de um mercado da formação

sem o recurso à privatização.

Refira-se que o “quase-mercado” em educação consiste na promoção da

liberalização do sistema educativo, que amplia as disparidades intra e inter-escolas

quanto a financiamento, recursos e oportunidades. Estas disparidades transformam-se

numa espécie de polarização através da “selecção diferencial”, da voice traiçoeira e da

29 A Lei nº 60/93, de 20 de Agosto veio fazer alguns reajustamentos pouco significativos no RJFCP. Por sua vez, o Decreto – Lei nº 274/94, de 28 de Outubro, impôs algumas restrições ao leque de formadores, pela exigência de maiores qualificações e extinguiu o CCFC, criando em sua substituição o Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua (CCPFC). As competências deste Conselho prendem-se com a acreditação das entidades formadoras e das acções de formação bem como acompanhar o processo de avaliação do sistema da formação contínua. Os seus membros (13) são nomeados pelo Ministério da Educação. 30 Nomeado pela Comissão Pedagógica, homologado pelo CCPFC e desempenhado por indivíduos de currículo reconhecido. 31 É composto por um membro eleito pela Comissão Pedagógica, pelo presidente do conselho administrativo e pelo chefe dos serviços administrativos da escola-sede. 32 Órgão de consulta sobre as opções de política de formação contínua.

27

política segundo a qual “o utente é que paga”, que se traduz nos efeitos multiplicador,

marginal e de aceleração, acentuando as diferenças entre escolas. Nesta perspectiva, os

resultados desta política neo-liberal e do “quase-mercado” em educação não são a

diversidade do fornecimento mas antes a uniformidade da educação escolar baseada no

princípio da exclusão (Dale, 1994).

Uma novidade significativa introduzida em 1992 pelo RJFCP foi a criação dos

Centros de Formação de Associação de Escolas33 (CFAE’s). Estes centros alimentavam

expectativas de territorialização e contextualização da formação que potenciariam a

construção da autonomia da escola e profissional, numa configuração do tipo

departamento de formação do conjunto de escolas associadas.

2.3 – CFAE’s: do quase-mercado da formação ao discurso da contextualiza-

ção

A inovação organizacional operada com a criação dos CFAE’s possui elementos

contraditórios34 que, à semelhança de João Barroso e Rui Canário (1999), podemos

elucidar. As questões que se prendem com a lógica de descentralização funcional

iremos aprofundá- las no momento da reflexão sobre as questões da autonomia. De

qualquer modo, esta iniciativa de criação dos CFAE’s, apesar de percepcionada como

resultado da dinâmica local (id., ibid.; 40), constituiu-se mais como uma directiva da

Administração Central, isto é, a associação de escolas foi induzida pela pub licação do

RJFCP embora pareça aos actores escolares que a constituição do Centros de Formação

foi da sua iniciativa. Não admira pois que a relação Centro-escolas seja muito débil, o

que permite confirmar que os Centros não corporizam a ideia de associação de escolas

(Formosinho, Ferreira & Silva, 1999; Silva, 2000a; 2000b), sendo sobretudo um

dispositivo de gestão das carreiras dos professores.

A relação Centro-escolas associadas é dificultada pois existem constrangimentos

externos na formação contínua dos professores resultantes da articulação da formação

33 Damos, neste texto, uma grande importância a estes Centros de Formação, para além das razões relacionadas com a nossa experiência de trabalho, devido ao facto de serem os mais relevantes quer em número, quer em número de acções acreditadas pelo CCPFC (CCPFC, 2001; Campos, 2002). 34 Por exemplo, lógica de “descentralização” funcional e lógica de “controlo” político e financeiro; modelo de “centro de recursos” e “agência de formação”; “malhas de uma rede” e “salas de um castelo”; “executivo” da Administração Central e o “líder” das escolas no domínio da formação (Barroso & Canário, 1999).

28

com a progressão na carreira e que dificultam essa relação. Grande parte das decisões

são tomadas em instâncias centrais, nomeadamente os modos de financiamento. Esta

realidade configura uma lógica de controlo, em que a existência dos Centros se justifica

para ser possível gastar as verbas do PRODEP.

Esta “PRODEPendência” (Barroso & Canário, 1999: 42) ajuda a que os Centros

se configurem mais como agências de formação e menos como centros de recursos das

escolas associadas. Para tal, muito contribui a dependência administrativo-financeira

relativamente à escola-sede, para além da débil tradição de associação de escolas no

nosso país. A rede ou bacia de formação é uma realidade incipiente em que o papel dos

membros da Comissão Pedagógica é mais o de articular o Centro e as escolas

funcionando como canal de circulação da informação e não tanto como um verdadeiro

órgão político de decisão. Resulta, desta atitude, um entendimento da Comissão

Pedagógica como órgão consultivo, delegando e confiando na iniciativa do Director.

Neste contexto, não é de estranhar a confirmação da tese de “[...] que os centros

de formação são os seus directores” (Silva, 2001: 317). Também Fernando I. Ferreira

(1999: 38), num estudo da actividade do CFAE de Paredes de Coura, conclui que “a

acção do director é, pois, estruturante da actividade do Centro”. Igualmente Carlos

Ruela (1999: 247), num estudo mais recente de quatro centros verifica que “[...] o

Director surgiu como o principal protagonista de todas as actividades”. No nosso estudo

de avaliação externa do CFAE Braga/Sul, a conclusão é análoga (Formosinho, Ferreira

& Silva, 1999; Silva, 2000a; 2000b), bem como no estudo de Manuel Monteiro que

salienta uma actuação do director fortemente orientada para o consenso e para a

cooperação, num estilo de “liderança consentida” (2001: 218) estruturada em torno das

suas qualidades pessoais e profissionais.

Este papel individualista e centralizador do director empobrece a sua qualidade

de líder das escolas numa perspectiva de territorialidade da formação. De facto, o que se

verifica nos Centros de Formação é uma tendência tecnocrática e de quase-mercado na

formação e uma hegemonia do modelo escolar. Essa presença é bem visível na

importação de conceitos típicos da escola (cursos, turmas, horários, avaliação, diplomas,

etc,) e na utilização da “sala de aula” como o espaço privilegiado da realização das

acções de formação. Paralelamente, e como estratégia compensatória, os Centros

procuram dar uma visibilidade desproporcionada à diversidade, através de colóquios,

seminários, lançamento de actas e do Plano de Formação, boletins, etc., configurando

29

uma espécie de “área-escola da formação” (Formosinho et al., 1999) que mais não faz

que confirmar a lógica escolar, na medida em que não dá a devida visibilidade às

práticas maioritárias da formação em contexto de “sala de aula”.

A adopção na formação contínua do pessoal docente (e ainda mais do não

docente) do modelo escolar35, criando à semelhança da escola, um género de área-

escola da formação ou numa linguagem mais recente – Área de Projecto da formação –

pode suscitar a hipótese de uma mudança isomórfica apontando para uma certa

homologia de comportamentos e processos com a escola. Os Centros, ao valorizar

desproporcionadamente as actividades que dão uma imagem de diversidade formativa

relativamente à sua actividade maioritária de “sala de aula”, tendem a revelar algumas

semelhanças com a escola, que utiliza idêntica estratégia ao nível da Área de Projecto.

Mas também a escola, ao tender a desvalorizar a Assembleia de Escola, com

reuniões trimestrais (quando muito), entregam ao Presidente do Conselho Executivo ou

Director Executivo o poder de decisão e de representação da escola, imitando os

Centros no que se refere à subalternização da Comissão Pedagógica e à assunção da

figura do Director como principal (e quase único) protagonista. Esta realidade remete-

nos a pensar num certo “isomorfismo organizacional” em que Centros e escolas se

apropriam dos “mitos racionalizadores” respectivamente das escolas e dos Centros, para

que permaneçam “socialmente legitimadas [...] e consequentemente sobreviverem”

(Estêvão, 1995: 89).

Por um lado, Assembleia de Escola e Comissão Pedagógica, sendo órgãos

políticos de decisão, abdicam normalmente do poder que lhes é conferido, configurando

aqui uma (re)centralização das escolas e dos Centros. Por outro lado, o modelo escolar

que caracteriza o funcionamento das escolas e dos Centros tem como contraponto a

35 E é assim que grande parte dos professores parece sentir-se segura, pois em modalidades mais contextualizadas terão consciência que se expõem muito mais, quanto mais não seja pela possibilidade de diferenciação nas creditações individuais. Poder-se-á dizer que os professores, como profissionais da avaliação e com todo o poder daí decorrente (Afonso, 1998: 34; Hadji, 1994: 78-79; Figari, 1996: 35; Barbier, 1990: 115), não gostam de ser avaliados, quer na formação, quer na escola e no seu desempenho profissional. Os docentes em formação quando frequentam, por exemplo, um círculo de estudos percebem que através da variação nos estudos “têm mais possibilidades de mostrar o que valem” (Vallgarda & Norbeck, 1986: 27), mas também têm receio de mostrar as suas limitações e com possibilidades de alguma forma serem estigmatizados por creditações definitivas diferenciadas dentro do grupo. A maioria dos formadores também parece preferir o modelo escolar pois, quando se referem às “novas modalidades”, estas, sendo objecto de generalização em escolas e com grupos de professores diversificados, dão origem a expressões como “o meu círculo”, “a minha oficina”, “o meu projecto”. Este processo de reprodução “[...] copia em pequena escala o processo de lançamento das acções de que se apresentam como alternativas – os cursos de formação” (Formosinho, Ferreira & Silva, 1999).

30

divulgação exagerada da diversidade quer nas escolas quer nos Centros de Formação –

área-escola ou Área de Projecto (na escola e na formação). Parece tratar-se, então, de

um isomorfismo organizacional nos dois sentidos, em que no primeiro caso a mudança

isomórfica é adoptada pelos Centros, no segundo caso, a mudança é adoptada pelas

escolas, sobrevivendo às pressões do meio institucional e fugindo à obrigatoriedade de

prestação de contas à comunidade e “evitando avaliações ou controlos externos”

(Estêvão, 1998a: 207).

Mudanças isomórficas semelhantes podem ser percepcionadas quando se

verifica uma tendência dos Centros para o lançamento de publicações (Formosinho,

Ferreira & Silva, 1999; Formosinho, Ferreira, Monteiro & Silva, 2001) que mais não

visam que imitar as universidades, parecendo pretender legitimar a sua formação por

comparação com os “saberes teóricos” amplamente reconhecidos e produzidos no

ensino superior. Este isomorfismo institucional parece contribuir para a reabilitação da

imagem dos Centros pelo acréscimo da sua visibilidade social e institucional que, “tal

como outras instituições de formação [realizam] eventos sujeitos a cerimoniais e a

rituais próprios do mundo académico” (Monteiro, 2001: 220).

Em contracorrente relativamente às realidades percebidas no terreno, o actual

RJFCP valoriza as “modalidades formativas que possam dar o devido relevo a uma

formação centrada na escola e nos projectos aí desenvolvidos”36, dando realce ao

desenvolvimento profissional do docente “em estreita articulação com o trabalho que

desenvolve a nível do seu estabelecimento de educação ou de ensino”37. Desta forma, e

na opinião do CCPFC (1998: 6), “[...] parece decorrer a ideia de que [...] se pretendeu

operar uma mudança nas áreas, modalidades e acções de formação contínua dos

professores [...]”. A percepção emitida pelo CCPFC não é confirmada no terreno onde a

lógica individual e instrumental, apesar de tudo, continua a prevalecer38.

36 Ver Decreto-Lei nº 207/96, de 2 de Novembro, preâmbulo, ponto 1. 37 Idem, ponto 3. 38 Veja-se o facto da maioria das acções de formação realizadas, por exemplo, no CFAE Braga/Sul em 1999, ser na modalidade “Curso de formação”, construídas segundo uma lógica de mercado dos formadores e mesmo algumas das acções em “novas modalidades” serem concebidas na mesma lógica (Formosinho, Ferreira & Silva, 1999). Este Centro foi objecto de uma avaliação externa em 1999 e de uma avaliação externa bianual (Planos de Formação de 2000 e 2001). Desta avaliação bianual resultou, no que se refere às “novas modalidades”, o entendimento de que se trata de “acções contextualizadas em iniciativas e projectos das escolas e esse facto parece revelar maior envolvimento e satisfação por parte dos participantes. A sua participação nas acções é tendencialmente encarada como uma forma de contribuir para a resolução de um problema concreto da escola. (...) Pode-se concluir relativamente a esta prática de incidência nas “novas modalidades” que há uma maior aproximação aos contextos de trabalho diminuindo, comparativamente à avaliação externa do Plano de Formação de 1999, a tendencial

31

Como já vimos, o actual RJFCP valoriza uma retórica de formação centrada na

escola apresentando um discurso de contextualização. Também o Decreto-Lei nº 115-

A/98, de 4 de Maio, ao conceber “uma organização da administração centrada na

escola” continua a responsabilizar o Conselho Pedagógico pela elaboração do plano de

formação da escola, agora em colaboração com o Centro de Formação (art. 26º),

continuando a revelar uma retórica de favorecimento da dimensão local das políticas

educativas. Mas igualmente os normativos relativos à reorganização/revisão curricular39

retomam esta ideia da formação centrada na escola dando particular atenção às

inovações da reforma.

Até o próprio CCPFC (1998: 8), na sequência do RJFCP, estabelece “linhas de

acção da formação centrada na escola”, explicita as “modalidades centradas nos

contextos escolares” (id., ibid.: 14) e dá orientações precisas para a apresentação das

acções no sentido do preenchimento dos formulários de acreditação. É assim conferida

legitimidade às escolas e aos Centros para a concepção de acções segundo o perfil das

denominadas “novas modalidades”. Não admira pois o boom de círculos de estudos,

projectos e oficinas de formação que daqui resultaram (Ferreira, 2000: 34; Formosinho,

Ferreira, Monteiro & Silva, 2001: 53; CCFCP, 2001; Silva, 2002).

Estamos eventualmente em presença de uma nova ideologia que apresenta sinais

de alguma ambiguidade. A Administração Central e outras instituições legítimas, ao

mesmo tempo que difundem a crença angélica da formação centrada na escola, revelam

contradições de que é exemplo a concepção e lançamento de acções40 segundo a lógica

escolar, introduzindo expressões como “3 dias de aulas”, “Aulas-Instituto de Estudos da

Criança”, “Aulas-Instituto de Educação e Psicologia”. Estas acções, muito embora

estejam impregnadas da retórica da contextualização, mais não fazem que reproduzir

acções desenhadas superiormente e concretizadas por monitores locais, num “sistema

exterioridade da formação relativamente aos seus participantes (...). Embora ainda se verifiquem nestas “novas modalidades” influências do modelo escolar no que diz respeito, por exemplo, ao desenho e concepção das acções, percepciona-se um esbatimento das mesmas ao nível da sua concretização e da sua relação mais directa com o quotidiano profissional” (Formosinho, Ferreira, Monteiro & Silva; 2001: 94). A evolução das acções de formação realizadas no formato das “novas modalidades” tem vindo a crescer neste Centro atingindo os 6% em 1998, os 25% em 1999, os 43% em 2000 e os 55% em 2001, no que se refere ao número de acções (id., ibid .: 53; Silva, 2002). A nível nacional o crescimento gradual da formação centrada nos contextos escolares também tem sido uma realidade, atingindo os valores de: 17,4% em 1998; 26,9% em 1999; 32,4% em 2000 e 37,7% em 2001 (CCPFC, 2001). 39 Decreto-Lei nº 6/2001 e Decreto-Lei nº 7/2001, ambos de 18 de Janeiro (ver art. 18º). 40 O exemplo aqui referido tem a ver com a acção “Curso de Formação Contínua Coordenadores das Bibliotecas Escolares”, lançada pela DREN (2000-02-16, Refª 10764).

32

pré-programado de formação” numa configuração tipo “telescola sem televisão”

(Formosinho et al., 1999).

Também a própria inspecção, visível nos processos de avaliação integrada das

escolas, já se apropriou dos conceitos de “formação centrada na escola” e “formação

centrada no projecto de escola“ (IGE, 2000) o que pode indiciar uma certa banalização

das modalidades de formação potencialmente contextualizadas.

A formação contínua dos professores resultado da “transposição para o campo

educativo da ideologia dos recursos humanos” (Correia, 1999a: 4), é colocada ao

serviço quer da “ideologia da modernização”, quer da “ideologia da inclusão” (Correia,

2000) e parece constituir-se em si mesma como uma ideologia – formação centrada na

escola – na medida em que, para além da apropriação generalizada do conceito, face ao

alargamento das missões sociais atribuídas à escola, a focalização da formação na

organização escolar seria condição suficiente para a resolução de todos os males na

própria escola, incluindo os problemas sociais.

Ora, seguindo José Alberto Correia (1999a), a melhoria das qualificações dos

educadores não acarreta necessariamente a melhoria da qualidade do serviço educativo

e a formação contínua não contribui sempre para a valorização profissional e melhoria

do desempenho dos docentes. Com efeito, nem sequer é líquido que as acções de

formação em “novas modalidades” sejam mais eficazes que os cursos de formação, isto

é, que projectos, círculos de estudos e oficinas tenham, por si só, um valor intrínseco. A

nossa experiência no campo da avaliação da formação revela que, apesar dos inscritos

nos cursos de formação os realizarem com maiores motivações pelos créditos que os das

“novas modalidades”, estes últimos não avaliam a qualidade da formação e dos seus

eventuais efeitos de forma mais positiva que os outros professores em formação. O grau

de satisfação dos professores em formação depende mais de factores instrumentais

como o calendário e horário das sessões que da modalidade. O que se poderá dizer é que

os formadores têm tendência a concretizar as “novas modalidades” segundo hábitos

velhos e, como sabemos, para o ser humano “[...] é mais difícil desabituar-se dum

comportamento errado do que aprender um novo” (Vallgarda & Norbeck, 1986: 33).

A formação com o seu “poder mágico” (Silva, 2000) está associada a uma série

de crenças e mitos: o “mito da negociação das necessidades” (Charlot, 1976); a “utopia

igualitária” (a formação reduz as desigualdades) (Fischer,1978: 34); “tudo muda” ou o

33

“frenesim da boa adaptação” (id. ibid.: 36-37); a formação como tendo um valor em si

mesma contribuindo para o progresso social41; a formação como produzindo efeitos

visíveis e avaliáveis; considerar a formação dissociada da sua dimensão política; a

formação como indutora da maior autonomia dos actores; considerar que uma boa

engenharia de formação tem efeitos na qualidade e na motivação. Registe-se, ainda, a

comparação da formação a “uma espécie de religião” quando tomada como uma “via

salvadora de alguns dos problemas agudizados com a globalização” (Sanches, 2001:

31). Atente-se também que, como considera José Alberto Correia (1998: 133; 1999a:

17), os sistemas de formação podem produzir desqualificações, resultado da invasão das

escolas por “especialistas especialmente especializados” num modelo tecnicista de

educação.

Mas afinal, quais serão as vantagens e as dificuldades para conceber e

implementar uma formação centrada na escola e nas práticas profissionais, quando o

próprio CCPFC (1998) aponta no seu boletim a pertinência de desenvolver a formação

em modalidades tipo círculo de estudos, projecto ou oficina de formação? Será que

estão a dar mais poder aos actores ou, pelo contrário, são induzidas formas mais soft de

dominação, sendo retiradas as perspectivas mais políticas? Será que essas modalidades

promovem de facto a emancipação dos actores ou contribuem para a exclusão?

41 Mas a formação, para Alain Meignant (1999: 51), só se justifica “pela sua contribuição para a eficiência da organização”.

34

3 –Políticas de Formação e Autonomia42

3.1 – Formação centrada na escola e autonomia

As questões da formação estão intimamente relacionadas com as da autonomia

da escola. Como referem João Barroso e Rui Canário (1999: 37), entre os pólos da

tutela e da autonomia configuram-se duas perspectivas qualitativamente diversas

quanto aos futuros possíveis da profissão docente e da escola. Façamos uma pequena

síntese da problemática da autonomia da escola portuguesa nos últimos anos e da

relação que se pode estabelecer com a participação dos docentes na escola, com os

processos políticos mais gerais e com as questões da formação. O quadro 1 constitui um

esforço para sistematizar o alcance dessa relação no que se refere ao sistema educativo

português, articulando ainda essas questões com as denominadas “ideologias

educativas”43 (Correia, 2000). Desta forma, talvez possamos compreender melhor as

questões relativas à formação centrada na escola.

Na Sociedade Portuguesa, antes de 1974, a participação esteve presente como

reivindicação, exigida por actores e grupos envolvidos em organizações políticas e

sociais44. No entanto, durante o Estado Novo, verificava-se nas escolas a inexistência de

“[...] estruturas democráticas, de processos electivos ou de formas de participação nas

decisões político-pedagógicas e administrativas [pois tratava-se de uma] organização

para o controlo e a não participação [...]” (Lima, 2000a: 47).

Apesar da retórica da democratização do ensino encetada pelo Ministro Veiga

Simão (ideologia educativa meritocrática), as palavras da liberdade, democracia e

participação “surgiram fortemente condicionadas por uma ideologia” (id., ibid.: 47).

Neste ambiente político de ausência de democracia, participação e autonomia,

naturalmente que a formação contínua dos professores baseava-se em acções pontuais,

42 Do grego autos (si mesmo) e nomos (lei). É a capacidade de autodeterminar-se, de auto-realizar-se. Significa autoconstrução, autogoverno, ruptura com esquemas centralizadores (Gadotti, 1998). 43 Estas ideologias são, para o Portugal democrático, a democratizante e crítica, a democrática, a da modernização e a da inclusão. Também se inclui aqui a “ideologia educativa meritocrática” (Correia, 2000: 6), implícita nos discursos da Reforma Veiga Simão e que precederam o 25 de Abril de 1974. Embora José Alberto Correia as apresente de uma forma mais ou menos cronológica, também considera que elas “coexistiram e coexistem no panorama educativo português” (id., ibid.: 27) e daí a nossa opção gráfica do quadro 1 (linhas a tracejado). A cada ideologia fizemos corresponder uma designação para a autonomia e outra para a formação, de acordo com as políticas que foram acontecendo e que vamos sumariamente apresentar. 44 Apesar da nossa tradição baseada numa centralização monárquica do poder, desde os primórdios da nacionalidade, também é notória uma origem popular do poder tendo em conta o precedente da eleição do Mestre de Aviz (Afonso & Guerreiro, 1980).

35

subordinadas às exigências das reformas curriculares de implementação de novos

programas.

Quadro 1 – Síntese evolutiva e paralelismo entre “ideologias educativas”, autonomia e formação no nosso sistema educativo

Ideologias educativas dominantes

Autonomia Formação contínua

Meritocrática

Autonomia proibida (Modelo liceal de organização)

(Controlo burocrático centralizado)

Formação pontualmente realizada

(Reciclagens de curta duração)

Democratizante Autonomia à solta

(Auto-gestão - Experiências inovadoras)

Formação contextualizada experimentada

(Experiências inovadoras

Ex: CRAP’s)

Democrática Autonomia adiada

(Gestão democrática das escolas - DL 769-A/76)

Formação em exercício (Lançamento profissionalização

em exercício)

Modernização

Autonomia prometida (DL 43/89)

(Novo modelo de gestão - DL 172/91)

Formação escolarizada (Institucionalização formação contínua gratuita, obrigatória e universal - Criação CFAE’s)

Inclusão

Autonomia decretada (DL 115-A/98)

(Gestão centrada na escola) (Gestão flexível do currículo)

Formação retoricamente contextualizada

(Formação centrada na escola)

Com o 25 de Abril, através de iniciativas auto-gestionárias, as escolas

enveredaram pela mobilização, realizando assembleias de professores e alunos45, num

quadro de democracia participativa, tomando decisões em plenários convocados para o

efeito e elegendo os seus órgãos de gestão à revelia da lei, o que era considerado por

sectores políticos e sociais como “factor de anarquia e de desgoverno” (id., ibid.: 49).

Temos então que, após 1974, um dos princípios dominantes no campo social e político e

45 Esta mobilização pode ser por nós comprovada pelo facto de ter pertencido à primeira Comissão de Gestão democraticamente eleita, no Verão de 1974, numa Escola Técnica de Braga. De facto, o discurso de Stephen Stoer é, por demais, elucidativo da situação então vivenciada e no qual nos revemos: “a iniciativa local após o 25 de Abril, isto é, a iniciativa ao nível da população escolar, comandou os acontecimentos, pelo menos durante os primeiros seis meses da revolução, e durante muito mais tempo em termos dos seus efeitos duradouros. Depois do 25 de Abril, nas escolas, tudo se passou como se tivessem sido ocupadas pelos próprios professores e alunos” (1986: 127).

36

mesmo no campo individual, é o princípio da participação (ideologia educativa

democratizante), mas neste mesmo contexto, o Estado procura normalizar a situação

criada espontaneamente, legislando e legitimando os processos eleitorais das escolas.

No campo da formação surgem as iniciativas para centrar a formação na escola

propiciadas pelo ambiente inovador e transformador experienciado.

A institucionalização da gestão democrática das escolas, da iniciativa do então

Ministro da Educação, Sottomayor Cardia, inaugurou a fase de normalização, acabando

com os plenários e criando estruturas de gestão nas escolas numa lógica de democracia

representativa, num funcionamento de tipo colegial (ideologia educativa democrática).

Após um período sui generis em que as escolas exerceram o poder de direcção,

verifica-se o retorno desse poder político para a Administração Central. Esta

normalização não impediu a existência de experiências e projectos tendentes à criação

de um dispositivo permanente de formação, embora limitadas no tempo e

correspondendo a “iniciativas de carácter estatal” (Barroso & Canário, 1999: 20).

Com o decorrer do tempo e gradualmente, foram emergindo formas de

“encenação participativa” (Lima, 1998: 104), com “rituais eleitorais” (Lima, 2000a: 53),

em que numa Administração mais centralizada se induz a participação passiva. Como

refere Almerindo J. Afonso, a herança deixada pelo Estado Novo na Educação com os

seus mecanismos de controlo ideológico, de vigilância científica e curricular, e de

punição disciplinar ou de coerção administrativa terá constituído um entrave ao sucesso

de uma gestão democrática das escolas. Com o passar dos anos verificou-se uma

crescente desmobilização dos actores levando-os a uma participação ritualizada, sendo

esse modelo cerceado por uma crescente regulamentação da tutela (1999: 19-20).

Neste contexto, foi iniciada a reforma educativa em 1986 com a aprovação da

LBSE e a nomeação de uma CRSE. As propostas reformadoras que estabeleciam como

princípios a democratização, a participação e a autonomia, apesar de se situarem numa

época muito sensível às políticas de racionalização e modernização (ideologia educativa

da modernização), deram origem, até 1992, a uma “acção governativa e de produção

normativa e regulamentadora bastante activa” (Lima, 2000a: 41) nomeadamente com a

publicação do diploma sobre a Autonomia das Escolas46 (Decreto-Lei nº 43/89, de 3 de

46 Sobre este diploma António Sousa Fernandes (1989) antecipou que a autonomia das escolas não seria para um futuro próximo dada a exigência, no seu artigo 27º, da execução de um plano de formação dos agentes educativos para o exercício pleno da autonomia.

37

Fevereiro) e que culminaram, a título experimental, no “novo modelo de gestão”

(Decreto-Lei 172/91, de 10 de Maio), numa lógica gerencialista mas de inspiração

timidamente neoliberal ou, de outro modo, num contexto de um “neoliberalismo

educacional mitigado” (Afonso, 1998: 232), onde os vectores do “novo management”

não apareceram de forma tão nítida (Afonso, 1995: 79).

Apesar de tudo, verifica-se uma despolitização da organização escolar em que os

conceitos de autonomia, participação, projecto educativo e comunidade educativa são

ressemantizados e reconvertidos em termos gestionários (Lima, 1994; 2000a). A

autonomia é reconvertida numa técnica de gestão que mais não pretende do que fazer o

“elogio da diversidade na execução periférica das decisões centrais” (Lima, 1999). E é

neste contexto que é institucionalizada a formação contínua e, nessa linha, se criam os

CFAE’s, não tanto como processo decorrente de uma lógica de autonomia e

descentralização, mas mais como resultado de uma directiva da Administração Central.

Com a chegada ao poder do Partido Socialista, em 1995, embora o discurso não

tenha sido propriamente o de reformar a reforma (Lima, 2000a: 42), a lógica de

actuação pautou-se, talvez, pela tomada de medidas de maior alcance que as da própria

reforma educativa, num discurso fortemente pautado pela ideia de uma gestão flexível

do currículo (ideologia educativa da inclusão). Nesta perspectiva foi encomendado e

desenvolvido um estudo para o reforço da autonomia das escolas, liderado por João

Barroso (1997a) e que culminou na publicação do “regime de autonomia, administração

e gestão das escolas” (Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de Maio). Este diploma, do ponto

de vista legal, termina com mais de duas décadas de gestão democrática das escolas, dá

possibilidades de entrada de outros actores, para além dos docentes, na definição da

política da escola e estabelece a gradualidade do processo de autonomia, através da

implementação de contratos entre as escolas e a Administração Central. Esta vaga pós-

reformista, na linha de uma política de gestão centrada na escola, estendeu-se também

ao sector da formação, que como já vimos, foi prosseguindo com uma certa apoteose da

retórica da formação centrada na escola.

Mais recentemente o que podemos observar nas escolas é a dificuldade em

participar, em que os processos negociais inerentes às démarches de projecto são vistos

como “fonte de complicações e conflitos no interior das escolas” (Afonso & Viseu,

2001b: 82), levando a que:

38

“[...] a iniciativa política contida nas mudanças veiculadas pelo novo «Regime de Autonomia e Administração das Escolas» não parece ter produzido um efeito mobilizador significativo entre os actores com intervenção no contexto escolar, numa lógica de transformação da escola [...]” (Afonso & Viseu, 2001a: 76).

O mesmo relatório, relativamente à implementação do actual regime de

autonomia, considera que “os resultados alcançados, no final de dois anos, são

frustrantes” (Barroso, 2001: 21), em que a Assembleia de Escola é “[...] transformada

muitas vezes numa sucursal do Conselho Pedagógico” (id., ibid.: 20), o que lhe retira

politicidade, confere um poder exagerado ao presidente do conselho executivo e

potencia a “recentralização por controlo remoto” (Lima, 1995) ou a (re)centralização

por “controlo à distância” (Estêvão, 1995: 93). Ora a construção da democracia na

escola exige que “todas as vozes devam ser ouvidas” (Blase & Anderson, 1995: 146),

facto que sai certamente dificultado quando apenas se confere à escola uma espécie de

“centralidade periférica” (Lima, 1999: 77). As escolas que silenciam as vozes dos

professores, alunos, encarregados de educação e outros actores estarão certamente

desprovidas da contribuição da sua massa crítica o que dificulta uma orientação para a

inovação e mudança no sentido de transformação da escola.

Actualmente, o discur so da autonomia e da descentralização parece legitimar um

maior controlo do Estado sobre as escolas. De facto, assiste-se à invasão da inspecção

pelas escolas com a dessacralização das respectivas salas de aula, num apertar do cerco

nunca visto e numa retórica de avaliação integrada das escolas para a ajuda à

construção do processo de autonomia e à sua contratualização, mas que poderá apenas

visar o escalonamento das mesmas, numa lógica neoliberal que, em vez de aumentar os

espaços de autonomia, os diminui por intermédio de mecanismos de avaliação subtis.

Neste caso a autonomia parece ser pretexto para um controlo mais apertado por parte da

tutela em domínios que, até hoje, lhe escapavam.

Esta realidade instrumental de autonomia tende a ser utilizada como forma de

uma “mera delegação política, [em que a Administração Central remete] para as escolas

a gestão de conflitos, em períodos de crise ou de contestação” (Lima, 1995: 68)

responsabilizando os seus órgãos pela execução das políticas definidas em instâncias

centrais. Esta descrição é congruente com registos de processos similares noutros

contextos que questionam os movimentos das “escolas eficazes”, de “melhoria da

escola” e de “reestruturação” escolar. John Smyth (1993), a partir de estudos em

diferentes países, conclui relativamente à gestão centrada na escola:

39

- A retórica da devolução está a ocorrer em contextos impelidos, de forma

substancial, em direcção à recentralização da educação;

- A lógica desta contradição é explicável apenas quando nós começamos a

olhar de perto para os vastos ajustamentos estruturais que ocorrem

geralmente no capitalismo ocidental (isto é a “crise do Estado”);

- Eles mostram como formas particulares de gestão centrada na escola, longe

de serem emancipatórias ou de libertação dos professores, são de facto

gaiola de ferro (iron cage) que serve a ideologia do intervencionismo radical

da Nova Direita.

A retórica de descentralização não é mais que uma “estratégia [do Estado] muito

importante para abordar situações fortemente conflituais” (Weiler, 1999: 109) em que,

com o aumento dos conflitos e a perda de legitimidade, o Estado procura arremessar

esses conflitos para o interior da escola, aumentando a sua legitimidade e parecendo

menos centralizado e mais atento às mudanças internas e necessidades da organização

escolar, auferindo das vantagens decorrentes de tal aparência. Assim, o Estado utiliza a

descentralização como “legitimação compensatória”, na medida em que revela interesse

em desenvolver a sua capacidade de gestão de conflitos e recuperar a credibilidade das

suas acções mediante o desgaste de legitimidade.

Neste contexto, em que prevalece uma certa retórica de autonomia,

descentralização e delegação política, uma gestão centrada na escola, em que as

funções de direcção são sobretudo exercidas ao nível meso-organizacional, resulta como

missão quase impossível. As decisões tomadas ao nível da organização escolar são

acessórias já que as decisões substantivas continuam a ser tomadas a nível central. A

reforçar esta lógica, que favorece a manutenção de uma retórica de delegação num

contexto de centralismo,

“ [...] há ainda [a acrescentar] a atitude de desconfiança dos professores em relação ao poder local e regional que provém, tanto da tradição de dependência do Estado e da socialização burocrática centralista, como do comportamento genérico dos profissionais de repugnância de prestação de contas aos pares [...]” (Formosinho, 1986: 67).

Naturalmente que, neste ambiente pouco favorável, a implementação de

processos de formação centrada na escola, em que “a procura da escola seja

determinante na oferta” (Campos, 2002: 61), sai altamente dificultada.

40

Mas podemos explicitar mais claramente este conceito de formação centrada na

escola pelo recurso a cinco significados correspondentes a igual número de dimensões

(Oliveira-Formosinho & Formosinho, 2001).

Uma primeira dimensão do conceito – dimensão física – acentua o facto da

formação se realizar na escola e não em qualquer outro espaço e dá relevo a uma

formação com o professor no seu local de trabalho. A esta dimensão está associada a

designação de formação em contexto de trabalho.

O segundo sentido focaliza-se na dimensão organizacional da formação. Neste

caso é a escola como organização que no seu quadro de autonomia e mediante os seus

projectos define a formação que é necessária e para que professores. São valorizadas

assim as “necessidades institucionais” de formação e esta é uma formação centrada na

iniciativa da unidade organizacional escola.

A terceira vertente está associada a uma dimensão psicossocial da formação. O

significado desta dimensão será o de considerar o formando como sujeito da sua própria

formação e, por conseguinte, comprometido desde o processo de levantamento de

necessidades, passando pela planificação, execução e avaliação da sua formação. O

professor não é visto individualmente, mas antes integrado nos seus grupos

profissionais formais e informais e na sua inserção na instituição. Trata-se de um

significado de uma formação centrada nos professores.

O quarto sentido acentua uma formação centrada nas práticas. O projecto de

formação pretende produzir uma melhoria e transformação das práticas. É dado relevo

aos saberes práticos e ao impacto da formação na aprendizagem dos alunos. Temos aqui

uma dimensão pedagógica do conceito de formação centrada na escola.

Finalmente, uma quinta vertente invoca a auto-organização dos professores no

sentido de promoverem a sua própria formação. Temos uma formação promovida por

pares acentuando-se dessa maneira uma dimensão cívica e/ou política-corporativa deste

conceito de formação.

Os autores que temos vindo a seguir para a explicitação desta ideia de formação

centrada na escola consideram que o conceito pode conduzir a alguns equívocos. Desde

logo, o equívoco de entender que a formação por ser realizada na escola será

necessariamente boa. Ora é sabido que muitas vezes essa formação conduz igualmente

para a passividade dos professores dando origem à expressão de José Alberto Correia de

41

formação sentada na escola. Por outro lado, sendo a nossa autonomia muito relativa a

escola não pode alhear-se da comunidade envolvente onde se inclui o próprio Estado,

organizações sindicais, associações profissionais, etc. Ignorar esta realidade seria

produzir formação barricada na escola. Da mesma forma, uma formação que valorize

os valores exclusivos do grupo de professores e a defesa de interesses corporativos, é

uma formação encerrada nos professores que esquece o desenvolvimento profissional,

das crianças e da comunidade. Para evitar estes equívocos os autores defendem uma

ideia de formação centrada na escola como processo ecológico no quadro de uma

pedagogia ao serviço dos alunos (id., ibid.: 39).

Uma perspectiva com algumas intersecções com a apresentada é a noção de

formação contínua associada a uma supervisão clínica (Alarcão & Tavares, 1987). Este

tipo de supervisão acentua a colaboração e entre-ajuda entre colegas na observação e

reflexão sobre o próprio ensino sem que exista uma preocupação de avaliação como

acontece com a supervisão geral, em situações de formação inicial. Considera-se que os

adultos não aprendem tanto com a frequência de cursos ou a leitura de livros ou revistas

mas antes através da observação, análise e reflexão sobre o ensino praticado por si e

pelos colegas. A defesa destes autores da associação entre formação e supervisão clínica

radica numa experiência que caracterizam como muito positiva, enquadrada num

projecto de formação de John Smyth com professores australianos.

Um outro conceito com alguma relação com a formação centrada na escola é o

de “aprendizagem organizacional” (Bolívar, 1997), na medida em que se considera que

a organização escolar, além de produzir aprendizagens para os alunos, adquire

igualmente uma função qualificadora para os que nela trabalham, pela

institucionalização do melhoramento como processo permanente. Numa escola que

aprende, a organização está comprometida com a aprendizagem colectiva, através de

dois processos: aprendizagem com a experiência acumulada e aprendizagem com os

projectos postos em prática. Esta último processo tem, obviamente, uma relação directa

com a formação centrada na escola, através da aprendizagem pela experiência prática.

42

3.2 – Autonomia, formação e criação de bem comum

Uma escola autónoma é uma necessidade decorrente da incapacidade das

soluções centrais para garantir o sucesso, não apenas às elites, mas às massas

heterogéneas. Uma escola autónoma47 será, nesta perspectiva, o local de prevalência dos

pressupostos originais de uma gestão centrada na escola e de uma formação centrada

na escola, que reforçam a cidadania e a crescente participação e democracia na

organização escolar.

Contudo, o desenvolvimento dos processos de autonomia em diversos países,

mediante as orientações neoliberais, parece entregar a pequenos grupos de elite a

elaboração das políticas (Smyth, 1993: 9). A divisão social do trabalho no interior das

escolas tende, assim, a acentuar-se, levando a que uns se dediquem à definição das

orientações para a acção e outros à simples execução dessas orientações, ou de modo

similar, uns controlam os arquivos e a economia e os outros dedicam-se a educar

(Hartley, 2001: 134).

A própria participação dos pais na escola, em função dos pressupostos de uma

racionalidade mercantil, situa-se mais numa perspectiva de consumidor individual e, por

isso, com reduzido comprometimento com a criação conjunta de uma instituição

organizada em torno da ideia de bem comum48 (Angus, 2001: 39). E o que é mais

curioso é a constatação de que esta realidade se vem estendendo em diversos países e

independentemente do partido que esteja no governo num determinado país (Robertson,

2001: 140).

Mais do que a preocupação pela justiça social, pela equidade e pelo bem estar

para todos, esta vaga gerencialista e mercantil fomenta um certo individualismo

pedagógico e a competitividade entre escolas e valoriza de forma mais ou menos

implícita a implementação de um currículo que desenvolva destrezas e conhecimentos

47 Entre outros aspectos, será uma escola com uma gestão curricular diferenciada e contextualizada (Campos, 2002: 47). 48 A questão do bem comum pode articular-se com a autonomia e a justiça. Para Jean-Louis Derouet há vários registos ou definições de escola e de bem comum. Na década de 60 a justiça baseava-se fundamentalmente no princípio da igualdade de oportunidades, na diferenciação positiva e, como tal, justificava-se a política de centralização. A partir da década de 80 a multiplicidade do conceito de justiça complexifica a construção do bem comum local, pois “há hoje diversas formas de justiça, como de eficácia, que pode cada uma ser mais ou menos legítima ou mais ou menos pertinente em função de uma situação” (1992: 277).

43

básicos das disciplinas economicamente relevantes, em especial as línguas, as

matemáticas, as ciências da natureza e as tecnologias (Ryan, 2001: 230).

Em Portugal, no início da década de 90, as propostas de inspiração numa

ideologia neoliberal não apareceram de forma tão nítida, podendo antes falar-se de uma

“modernização conservadora à portuguesa” (Afonso, 1995: 79) em que a principal

tónica esteve na redução dos gastos públicos com a educação49. Pode-se falar de uma

fase de emergência de “novos mitos” (Estêvão, 1995: 90) de que são exemplo os novos

critérios de racionalidade, a nova ideologia do progresso, de modernização e de

predomínio do discurso da qualidade, ou mesmo de uma qualidade total50 na Educação,

com a apologia da anulação do desperdício, do zero em abandono escolar, zero

retenções de alunos, zero faltas dos alunos e professores, zero problemas de disciplina,

etc. A gestão associada (gestão da qualidade total) mais não visaria do que ocultar a

intenção de fazer mais com menos recursos podendo não salvaguardar os direitos do

mundo cívico com consequências negativas ao nível da justiça social (Estêvão, 1998e:

124).

Os desenvolvimentos da questão da autonomia no período de governação

socialista pode ter leituras contraditórias, mas é de crer que as preocupações com os

valores da democratização e justiça estavam efectivamente presentes pois “a decisão do

Estado de conceder mais autonomia às escolas tem muito a ver com decisões

pedagógicas e não tanto com razões financeiras” (Estêvão, 2001a: 22). Porém, apesar

da valorização dos estilos de gestão do sector privado e da competitividade entre escolas

não ter passado grandemente do nível da retórica, a autonomia e a “gestão estratégica

nas escolas” (Estêvão, 1998b) têm sido realidades muito incipientes, em que:

“[...] o discurso [dos gestores do topo] sobre o Projecto Educativo revela uma adesão a uma abordagem tecnicista de gestão estratégica. [...] Contudo existem indícios para suspeitar que tal adesão não decorre de uma efectiva experiência gestionária compatível com tal discurso exprimindo antes a assimilação de uma retórica gerencialista com impacto crescente na documentação oficial e na literatura de divulgação sobre gestão escolar” (Afonso & Viseu, 2001a: 72).

49 Também na maior parte dos países, a descentralização e o reforço da autonomia das escolas foram acompanhados de restrições financeiras (Dutercq, 1999: 195). 50 A conceptualização da qualidade total e da gestão da qualidade total na Educação em Portugal têm sido largamente explorados por Carlos V. Estêvão (1998d; 1998e) a partir dos estudos de Stephen Murgatroyd e Colin Morgan (1994).

44

Esta constatação evidencia que a realidade e as intenções são literalmente

diferentes, ou seja, temos uma evolução discursiva dos actores que vai “das práticas

modernas aos discursos pós-modernos” (Estêvão, 1998c), em que como já vimos, os

processos negociais inerentes às démarches de projecto são vistos como fonte de

complicações e conflitos no interior das escolas e a participação democrática e o debate

ideológico para a criação argumentada do bem comum não são práticas fortemente

enraizadas.

A nossa tradição centralista, à semelhança de outras realidades, faz com que as

escolas permaneçam como “burocracias fundadas na desconfiança, no regime de

autorização prévia, na suspeita de que toda a tomada de iniciativa ou de autonomia dá

azo a abusos, gastos, derivas, injustiças e ‘outras calamidades’” (Perrenoud, 2002: 2).

Como afirma o mesmo autor, neste quadro de autonomia, as inovações que vêm da base

são submetidas a autorização prévia e os inovadores são tratados como réus.

Em matéria de autonomia curricular, as actuais iniciativas para a flexibilização,

apesar das boas intenções em termos de cidadania51, não invertem profundamente a

“lógica tradicional de organização do currículo” (Estêvão, 2001a: 20), mantendo-se uma

lógica de grande uniformidade, pois também só dessa forma terá sentido a realização de

provas aferidas e exames nacionais para a testagem do que conta (educação contábil),

possibilitando a publicitação de resultados (rankings) numa lógica de “Estado-

avaliador” (Afonso, 1998).

Sintetizando, poder-se-á inferir que uma autonomia desta natureza52, fundada

sobre défices de participação, dificulta a criação de um bem comum radicado na justiça

e na equidade. Uma formação centrada na escola terá que, nesta perspectiva, não

perder de vista aqueles princípios. Trata-se de um modelo de cidadania que, sendo uma

construção relativamente recente, confere mais autonomia e alargamento de direitos aos

trabalhadores e outros actores. Ou melhor, trata-se de um modelo de cidadania

organizacional que faz do actor um membro “não discriminado por qualquer

51 Refira -se a intenção democrática na criação da Formação Cívica e principalmente do Estudo Acompanhado. 52 Esta afirmação não invalida uma defesa, à semelhança de Antonio Bolívar (1999: 185) citando Fullan, da necessidade conjunta de estratégias centralizadas e descentralizadas.

45

hierarquização artificial” (Estêvão, 1999a: 50), e que é incompatível com situações de

exclusão53 e de centralização no interior da própria organização.

Compatível, será com uma noção de justiça que incorpora a defesa de uma

democracia laboral, que confere aos trabalhadores o direito de participarem nas decisões

da organização e de denúncia das situações de rotinização, desclassificação e

hierarquização no emprego (Estêvão, 1999b). Assim, é questionável uma concepção e

realização da formação que não assuma claramente uma dimensão emancipatória, não

domesticadora e num registo de “dialogicidade” (Freire, 1975: 97). Refira-se que a

formação centrada na escola pode estar ao serviço desta agenda libertadora e

problematizadora, congruente com a “construção da cidadania democrática” (Lima,

1996a; 2000a) ou, bem pelo contrário, reforçar o controlo, a hierarquização e a

disciplinação, validando as elites, conduzindo a práticas mais ou menos subtis de

“eugenismo laboral” (Estêvão, 1998c: 217), em que os sobre-qualificados e multi-

especializados54 são seleccionados em detrimento dos que se situam em níveis mais

baixos e onde parece decorrer uma certa “[...] necessidade de constituir um grupo de

especialistas especialmente capazes de pensar sobre o trabalho dos outros” (Gomes,

1996: 104).

Naturalmente que há que esperar que a autonomia se vá construindo, rompendo

com o “centralismo burocrático” (Formosinho, 1984) e que os docentes vão

transformando gradualmente os seus modos de socialização profissional no sentido de

serem capazes de teorizar sobre as suas práticas, tornando-se “autores da sua própria

experiência” (Correia, 1999b: 8) e adquirindo competências relacionadas com uma

educação para a democracia e para a participação social e cívica no sentido de se

corporizar na escola um projecto político de construção da cidadania e de

democratização da democracia (Canotilho, 1993: 410; Lima, 1996a; 1999: 71). Esta

poderá ser uma via para a promoção da democratização da gestão da educação e das

escolas, para a qual a formação poderá contribuir, tornando possível práticas mais

generalizadas de participação efectiva na construção do bem comum que,

inclusivamente, desvele formas de formação ao serviço da criação e validação de elites

(Estêvão, 1999a: 53).

53 Infelizmente, como considera Thomas S. Popkewitz (1999: 53), “os sistemas que se incluem nunca são universais [sendo] produzidas exclusões em simultâneo”. 54 Refira-se que se verifica gradualmente “o crescimento das tecno-estruturas nas organizações” educativas (Gomes, 1999: 152). O conceito de tecnoestrutura será apresentado no 2º capítulo.

46

Para além de poderes locais fortes, escolas fortes, cidadãos participativos e

Estado atento e interventivo (Barroso, 1998: 49-50), onde a autonomia das escolas e

dos docentes não seja apenas uma “terra prometida” (Lima & Afonso, 1995),

precisamos de professores como profissionais-militantes para:

“Articular no exercício da função docente, a dimensão técnica de especialistas responsáveis do seu próprio trabalho, com aquela, ética, de agentes sociais comprometidos com uma missão de serviço público” (Barroso, 2000: 69).

Neste sentido, será relevante que a formação contribua para “potenciar a

construção de formas micro-emancipatórias” (Estêvão, 1999b: 151) em que cada actor

dispõe dos mecanismos de participação em todas as fases da tomada de decisão55, em

desfavor de uma democracia elitista que entrega a capacidade de decisões a alguns

pretensamente iluminados, que nem hesitam, por exemplo, em recorrer a mecanismos

tipo “voice traiçoeira”56 quando se trata da manutenção de privilégios, evidenciando que

“a definição de um bem comum local não garante à partida mais democraticidade,

participação e justiça nas decisões sobre o bem educativo [e que] autonomia tal como a

cidadania não implicam necessariamente mais democracia” (Estêvão, 1999b : 144).

A construção da autonomia está sujeita a várias lógicas e também a vários riscos.

Pode conduzir a excessos de localismo, esquecendo as questões universalistas da

cidadania; ao cosmopolitismo e à recentração, com adopção pela escola de tendências

centralistas e formalistas; a um isomorfismo local das escolas; a um aumento das

desigualdades inter e intra-comunidades57. O bem comum como artefacto da autonomia

pode, de facto, levar à agudização das exclusões baseadas na raça, sexo ou classe social

e, neste aspecto, a formação pode ter, entre outros efeitos, uma palavra a dar, pela

denúncia relativamente a estas ameaças. A construção da autonomia numa base de

justiça pode ter como consequência a agudização dos conflitos ao nível local, mas os

actores escolares pela dialogicidade e solidariedade podem ultrapassar essas tensões e

55 Também pensamos que “é, portanto, verdade que para nós «ser é participar»” (Moscovici & Doise, 1991: 65). 56 Conceito de Hirschman citado por Dale (1994). Refira-se que, na base deste conceito estão os de Exit, Voice e Loyalty (Hirschman, 1970) que serão explicitados no segundo capítulo. Assim, apesar da liberalização da educação aumentar a resposta de exit (saída) mais que de voice (voz, protesto), os pais nas escolas (Ex: Associação de Pais) defendem mais os seus interesses individuais (dos próprios filhos em concorrência com outras crianças) em detrimento dos interesses comuns do eleitorado que representam. 57 Também João Formosinho (2000) identifica alguns riscos da autonomia – autonomia da miséria, localismo, autonomia por incompetência, autonomia corporativa e desigualdade.

47

chegar a situações de compromisso pelo estabelecimento das bases de um interesse

local comum.

O Estado é um elemento essencial da justiça e deve, nesse aspecto, ter um papel

interventor, evitando que a justiça se subordine aos imperativos do mundo mercantil e

industrial, não abdicando de definir uma política de direitos fundamentais mínimos e

deixando às comunidades a definição dos direitos diferenciais. O conceito de justiça

pode ser visto de forma plural – justiça complexa – onde se reconhece a tendência da

escola para encetar o combate a algumas desigualdades em detrimento de outras. Neste

sentido, podemos questionar o facto da escola continuar a tratar os alunos como iguais

quando algumas famílias, pela posição que ocupam noutras esferas, monopolizam

ilegitimamente a Educação em benefício próprio58.

A escola é um lugar onde se cruzam vários mundos, lógicas e racionalidades e

diversos princípios argumentativos e a autonomia tanto pode contribuir para uma

definição de escola e de bem comum ao serviço de uma lógica mercantil ou, pelo

contrário, como locus de construção da justiça e cidadania, em que no seu ideário

pedagógico é enfatizada uma aprendizagem da democracia de forma efectiva e a

construção de uma autoridade emancipatória e de uma justiça curricular. A formação

também pode estar ao serviço de qualquer uma destas diferentes lógicas e

racionalidades.

De qualquer modo, acreditando nas potencialidades de um autogoverno local das

escolas, será pertinente a rejeição de “visões instrumentais do conceito de autonomia”

(Lima, 2000a: 63) ou a autonomia como mero “tópico discursivo” (Afonso, 1999) para

que os valores definidos para a cidadania europeia (Reifers et al., 1996: 18) sejam

realizáveis e, aí, a formação tem um forte contributo a dar. Sublinhe-se o entendimento

de João Barroso sobre a principal finalidade da formação centrada na escola:

“[...] animar e estruturar o processo de mudança. A formação deve permitir que os próprios professores disponham de um conhecimento aprofundado e concreto sobre a sua organização, elaborem um diagnóstico sobre os seus problemas e mobilizem as suas experiências, saberes e ideias para encontrar e aplicarem as soluções possíveis” (Barroso, 1997b: 75).

58 A este propósito registe-se a não contestação pelas classes média e alta da generalização das explicações no ensino secundário.

48

Para tal empreendimento o mesmo autor considera necessária “uma

transformação dos modos de gestão [pois] não pode haver autonomia sem participação

[e sem] lideranças. É preciso desenvolver nas escolas formas diversificadas de

lideranças (individual e colectiva)” (Barroso, 1999; 141). Continuando a seguir João

Barroso59, a autonomia é como que um campo de forças dada a diversidade de

perspectivas existentes numa escola. Assim, a autonomia deve praticar-se numa

dimensão cívica, através de uma melhor gestão e numa envolvente de cidadania,

revitalizando a democracia interna da escola, pois sem autonomia a democracia será

uma pura ideologia. Apresenta três estratégias para construir essa autonomia: gestão da

heterogeneidade do seu público; recuperação da sociabilidade perdida; fazer da escola o

lugar da reconstrução do bem comum, a partir de práticas concretas e através da

obtenção de um compromisso local sobre o valor da Educação.

Finalizando, para que a construção cidadã da escola seja uma utopia realizável

não se poderá ficar imune à valorização de uma verdadeira formação centrada na

escola, pois estamos convictos, à semelhança de Maria Fátima Pereira (2001: 115-116),

que “as lógicas e as racionalidades implicadas na formação contínua de professores são

determinantes nos percursos e nos processos que as escolas engendram para lidar com a

realidade instável e imprevisível” que caracteriza as organizações escolares da

actualidade.

3.3 – Identidade profissional, profissionalismo docente e autonomia

As problemáticas do profissionalismo docente e do ensino como profissão

articulam-se necessariamente com as questões da identidade profissional, forma

particular de identidade social. Uma tentativa possível para dissecar este conceito é o

recurso à perspectiva da Psicologia Social, com base em autores da Escola de Bristol e

da Escola de Genebra.

Para os primeiros, como Tajfel e Bruner, todos os grupos procurariam uma

identidade social positiva que se define através da pertença ao grupo, por comparações

favoráveis entre esse grupo e outros grupos relevantes. Assim, o grupo de pertença

59 Com base na argumentação avançada em 9 de Maio de 2002 no âmbito das Jornadas “A construção de uma escola cidadã”, realizadas na Universidade do Minho - Braga.

49

deveria ser percebido como positivamente diferenciado ou distinto dos outros grupos

relevantes. No caso de identidade social insatisfatória os indivíduos procuram deixar o

seu grupo para se juntar a outro mais positivamente avaliado - mobilidade social

individual60 - e/ou tornar o seu grupo mais positivamente distinto - criatividade social61

ou mudança social (Tajfel & Turner 1986: 16). Esta perspectiva salienta as

componentes individuais e colectivas da identidade – identidade pessoal e social – ou

seja, apresenta-nos uma visão dicotómica através da diferenciação num continuum entre

os pólos interpessoal e intergrupal. Estes autores acreditavam no aumento das

semelhanças intracategoriais e das diferenças intercategorias (efeito de acentuação)

quando aplicados aos grupos sociais quer estímulos físicos quer estímulos sociais 62.

Assim, não seria necessário desenvolver a competição e a discriminação para

desencadear o etnocentrismo63.

A Escola de Genebra e seus autores mais relevantes (Doise e Deschamps), que

critica a importância concedida a uma identidade social positiva e à universalidade do

efeito de acentuação no processo de categorização, entende que o pólo interpessoal e o

pólo intergrupal podem variar no mesmo sentido - hipótese de covariação - (Deschamps

& Devos, 1998), isto é, pode existir uma maior diferenciação entre o indivíduo e o

grupo de pertença em simultâneo com uma maior diferenciação entre o grupo de

pertença e o grupo dos outros. Assim, o agrupamento de indivíduos na mesma categoria

não anula, necessariamente, a especificidade individual dos seus membros. No entanto,

a identidade não funciona da mesma maneira para todos os grupos. A procura de

diferenciação é um privilégio dos grupos dominantes e, como tal, podemos falar de

identidade social pessoal (grupo dominante) e de identidade social colectiva (grupo

dominado).

À semelhança das tradicionais profissões relacionadas com o exercício da

medicina, da engenharia e do direito (Rodrigues, 1997), no caso da profissão docente,

considerando-a como um conjunto de professores que se vêm como muito distintos

entre si (grupo dominante ou grupo colecção) a procura de uma diferenciação ao nível

60 Normalmente ascendente do tipo “American dream”. 61 Exemplo da consideração do “black is beautiful”. 62 Por exemplo quando o grupo feminino vê o seu grupo de pertença muito semelhante entre si e aumenta as diferenças com o grupo masculino (grupo dos outros). 63 Tendência para favorecer o grupo de pertença relativamente aos outros grupos, tanto em avaliações como em comportamentos.

50

profissional, ou seja, a construção de uma identidade profissional tem sido visível

através das démarches recentes de constituição de uma ordem profissional, entre outras.

Esta identidade profissional docente, podendo ser vista sob vários ângulos, será

sempre o corolário do reconhecimento do exercício de uma autoridade sobre o próprio

trabalho e do conhecimento exclusivo e abstracto aprendido em instituições formais de

educação superior. Assim, a autoridade do saber é central para o profissionalismo, que

se materializa em autonomia, controlo e poder profissional64. O termo profissional

acaba por ser também uma categoria social que concede posição social e privilégios a

certos grupos65.

Num quadro de uma autonomia da escola, nomeadamente com a entrada na

escola de outros actores, a autonomia profissional dos docentes é uma reivindicação

esperada66. Os docentes, de um grupo dominante com distinção por estatuto profissional

e outras formas, passam a ter que lidar com a ameaça resultante do poder exercido por

outros actores. Uma outra distinção é a do género. No caso da profissão docente a

crescente taxa de feminização da profissão pode contribuir para associar essa

feminização com a desprofissionalização, desvalorização da profissão, perda de poder e

desprestígio social dos professores (Torres, 1997: 113). Maria de Lurdes Rodrigues

(1997: 129-130), apoiada em estudos femininos de Helena Araújo, considera que essa

associação não é linear.

A diferenciação intragrupal no interior da classe docente, que configura a

emergência de “identidades instáveis” (Estêvão & Afonso, 1991: 162), como resultado

de diferenças ao nível da formação académica, classe social de pertença, género e

outros aspectos, para não obstaculizarem uma certa identidade social do grupo de

pertença, necessitam certamente da construção de uma “identidade estratégica” (id.,

ibid.) capaz de assegurar o reconhecimento da distintividade profissional docente. Esta

64 Já Bártolo Paiva Campos, quando expunha a proposta de criação do INIP, afirmava: “quanto mais preparados estiverem os professores e mais apoiados forem, menos o poder central terá de regulamentar relativamente à prática pedagógica. A autonomia pedagógica dos professores não se pode admitir se conduzir à anarquia e à irresponsabilidade. A prática pedagógica responsável depende, porém, em grande parte, da preparação dos docentes, domínio em que terão de fazer-se esforços muito grandes no nosso país” (1980: 126). 65 Indicador desse prestígio tem sido a assinalável representação da classe docente em órgãos de poder legislativo (Assembleia da República) e executivo (Autarquias) onde, no caso do Parlamento português constituía, no estudo de António Teodoro, logo após os juristas e advogados, a maior representação (1994: 227). 66 Thomas Popkewitz (1992: 39) considera que a descentralização na Suécia acarreta a formação de grupos profissionais mais fortes nas escolas.

51

identidade que não se identifica com os outros grupos, sendo politicamente mais

organizada, resultará do investimento num profissionalismo colectivo, capaz de lidar

com as ameaças protagonizadas por outros actores.

A afirmação desta identidade estratégica, embora estejamos conscientes da

existência de uma certa crise de identidade colectiva, visível, por exemplo, na perda de

poder, influência e capacidade de mobilização do movimento sindical docente, poderá

emergir como resultado de um certo sentimento de “privação relativa” (Runciman,

1972) que parece caracterizar o grupo docente, isto é, o sentimento de injustiça

associado à percepção de ausência do poder (de especialista) a que os docentes julgam

ter direito, por comparação com a posse do mesmo recurso por parte do grupo dos

outros (dos pais ou dos não docentes). Note-se que “não é a posição social objectiva que

determina o sentimento de privação” (Monteiro, 1993: 323), podendo os grupos

objectivamente dominantes sentir-se privados em relação aos grupos objectivamente

dominados. Este sentimento pode originar o conflito, principalmente quando os

interesses são divergentes67 ou os recursos (materiais ou simbólicos) limitados.

A afirmação dos professores perante estas novas ameaças é esperado que passe

pela defesa da sua autonomia profissional e pela tentativa de um maior reconhecimento

da sua especialização profissional. O discurso e as práticas de autonomia que têm

simplesmente como efeito o arremessar de conflitos para o interior da escola,

aumentando a carga de trabalho dos professores, o controlo e a privação da sua

autonomia profissional, parecem ser normalmente vistas com desconfiança pela maioria

da classe docente. É aqui que a formação adquire uma centralidade inquestionável. A

formação vista numa dimensão plurifacetada – a pós-graduada, realizada em instituições

de formação inicial, a auto-formação, a realizada na escola e apoiada pelos Centros de

Formação e pelas instituições do ensino superior, contextualizada nos problemas das

escolas – são faces múltiplas da mesma moeda para a construção da identidade

profissional docente.

67 Esta divergência pode ter a ver com a incompatibilidade de objectivos, por exemplo na definição da carga horária das disciplinas ao nível da construção e aprovação na Assembleia de Escola do Projecto Curricular de Escola. Um encarregado de educação (presidente da associação de pais), por incrível que pareça à classe docente, pode ter mais poder em matéria de desenho curricular e contrariar orientações do Conselho Pedagógico e Executivo, não sem que para tal dê origem a conflitos (Silva, 2002).

52

Os profissionais da educação parecem valorizar mais a primeira (saberes

teóricos)68, mas a importância de uma “maior afirmação das lógicas auto-formativas”

(Estêvão, 1999a: 54) e da formação em contexto, que contribuem para a reconstrução

da profissionalidade docente, são de relevar pois reconhecem os “saberes artesanais”

dos professores em que:

“[...] esta sabedoria ou esta «bricolage profissional», embora não abdique dos saberes susceptíveis de serem transmitidos e reproduzidos, parece conviver melhor com uma lógica da situação do que com uma lógica da duplicação, apelando para uma formação mais preocupada em fazer a teoria da prática do que em fazer da prática uma aplicação normativa da teoria” (Correia, 1999a: 31).

Também Bártolo Paiva Campos (2002: 49) considera o docente como um

“profissional intelectual”, distinguindo o seu conteúdo funcional do de um simples

técnico ou de um funcionário. Na sua perspectiva, a profissionalidade implica

desempenho autónomo com recurso a saberes próprios em que se fundamente,

possibilitando a construção colectiva de uma cultura profissional própria. Para tal

defende um “desenvolvimento profissional e organizacional ao longo da vida, [que]

mais do que formação ao longo da vida, significa aprendizagem ao longo da vida” (id.,

ibid.: 60) em situações formais ou não.

A acrescentar a este desenvolvimento profissional e organizacional registe-se

que António Nóvoa valoriza também um desenvolvimento pessoal através da formação.

Para este autor, a formação deve fornecer os meios para um pensamento autónomo que

facilite as dinâmicas de auto-formação. A formação implica um investimento pessoal

com vista à construção da identidade profissional (1992: 25). A formação deve também

estimular o desenvolvimento profissional no quadro de uma autonomia contextualizada

da profissão docente. Neste sentido, “os professores têm de se assumir como produtores

da ««sua» profissão” (id., ibid.: 28). Continuando a seguir António Nóvoa, a formação

deve igualmente estar ao serviço do investimento educativo nos projectos das escolas e

ao incremento de experiências inovadoras.

Em jeito de conclusão, refira-se que a formação centrada na organização escolar

não nos parece que possa estar desligada dos processos de construção da identidade

68 Não é de estranhar esta valorização da formação teórica universitária. Refira -se a observação feita por Thomas S. Popkewitz (1999: 54) quando afirma: “enquanto que os países do ‘Primeiro Mundo’ realçam a educação universitária e as culturas científicas na educação de docentes, as políticas dos organis mos de financiamento internacional deram preferência, no que respeita aos países não industrializados, a uma formação de docentes prática e baseada na escola”.

53

profissional docente, no sentido do reforço da autonomia e cultura profissional própria.

Uma socialização profissional baseada exclusivamente nos “saberes práticos” corre o

risco de conduzir à exclusão (Dubar, 1997b: 238). No entanto, a formação, sendo

essencial para a construção de identidades profissionais pela incorporação de saberes

que estruturam a relação com o trabalho, terá oportunidade de simultaneamente associar

“saberes teóricos”, “saberes técnicos”, “saberes práticos” e “saberes de organização”, no

sentido da emancipação individual e colectiva.