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CAPÍTULO II PRESENÇA DA FOLIA DE REIS NO JORNAL CORREIO DE UBERLÂNDIA, 1984-2002. 2.1) Saberes e práticas do “progresso” na história de Uberlândia: imprensa, elites e povo. * Bendicta pois em todo caso, essa febre que nos agita continuadamente na jornada do progresso. Jornal “A Tribuna”. Uberabinha, 02/11/1919, nº8, p.1. Neste capítulo analisamos a presença da Folia de Reis no jornal Correio de Uberlândia no período 1984/2002. Antes de adentrarmos este universo, trabalharemos neste primeiro tópico um pouco da história de Uberlândia, acreditando que tal contexto permite uma melhor compreensão das análises posteriores. O objetivo aqui é a descrição da história desta cidade mediante exemplos das relações estabelecidas entre elites políticas e povo, tendo a imprensa escrita como mediadora destas relações. O foco temporal fixa-se em meados do século XX, captando os saberes e as práticas que tais elites locais traçaram sobre o povo pobre, como parte do processo efetivo de urbanização e modernização econômica do município. Sobre o trabalho a partir da imprensa, seguimos a perspectiva de Stuart Hall, que inscreve a problemática das transformações da cultura popular como fruto da passagem dos séculos XIX e XX, em contexto inglês: A transformação é a chave de um longo processo de “moralização” das classes trabalhadoras, de “desmoralização” dos pobres e de “reeducação” do povo. A cultura popular não é, num sentido “puro”, nem as tradições populares de resistência a esses processos, nem as formas que as sobrepõem. É o terreno sobre o qual as transformações são operadas. 1 Este investimento das elites políticas e econômicas sobre o povo demonstram interesses em reorganizar seus modos de vida, situação que gerou conflitos sociais, impulsionados por exigências do capitalismo no universo urbano 2 . Portanto, o contexto * Agradecemos a colaboração da Profa. Dra. Maria Clara Tomaz Machado, que nos deu acesso a seu acervo de fontes da imprensa de Uberlândia, para a investigação e escrita deste tópico. A documentação está no Centro de Documentação e Pesquisa em História (CDHIS) da UFU, em fase de organização para futuras pesquisas. Nosso acesso só foi possível graças à permissão da professora, mais a disposição e cordialidade do seu orientando, Raphael Ribeiro. 1 HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003, p.248-249. 2 No estudo da cultura popular, devemos sempre começar por aqui: com o duplo interesse da cultura popular, o duplo movimento de conter e resistir, que inevitavelmente se situa em seu interior. In: HALL, Stuart. Opus cit. p.249. Para o estudo das relações entre capitalismo, modernidade e vida urbana ver:

CAPÍTULO II - nephispo.inhis.ufu.br · 4 Existe um tipo de experiência vital - experiência de tempo e espaço, de si e dos outros, das possibilidades e perigos da vida - que é

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CAPÍTULO II PRESENÇA DA FOLIA DE REIS NO JORNAL CORREIO DE UBER LÂNDIA, 1984-2002.

2.1) Saberes e práticas do “progresso” na história de Uberlândia: imprensa, elites e

povo.*

Bendicta pois em todo caso, essa febre que nos agita continuadamente na jornada do progresso. Jornal “A Tribuna”. Uberabinha, 02/11/1919, nº8, p.1.

Neste capítulo analisamos a presença da Folia de Reis no jornal Correio de

Uberlândia no período 1984/2002. Antes de adentrarmos este universo, trabalharemos

neste primeiro tópico um pouco da história de Uberlândia, acreditando que tal contexto

permite uma melhor compreensão das análises posteriores.

O objetivo aqui é a descrição da história desta cidade mediante exemplos das

relações estabelecidas entre elites políticas e povo, tendo a imprensa escrita como

mediadora destas relações. O foco temporal fixa-se em meados do século XX, captando

os saberes e as práticas que tais elites locais traçaram sobre o povo pobre, como parte do

processo efetivo de urbanização e modernização econômica do município.

Sobre o trabalho a partir da imprensa, seguimos a perspectiva de Stuart Hall, que

inscreve a problemática das transformações da cultura popular como fruto da passagem

dos séculos XIX e XX, em contexto inglês:

A transformação é a chave de um longo processo de “moralização” das classes trabalhadoras, de “desmoralização” dos pobres e de “reeducação” do povo. A cultura popular não é, num sentido “puro”, nem as tradições populares de resistência a esses processos, nem as formas que as sobrepõem. É o terreno sobre o qual as transformações são operadas.1

Este investimento das elites políticas e econômicas sobre o povo demonstram

interesses em reorganizar seus modos de vida, situação que gerou conflitos sociais,

impulsionados por exigências do capitalismo no universo urbano2 . Portanto, o contexto

* Agradecemos a colaboração da Profa. Dra. Maria Clara Tomaz Machado, que nos deu acesso a seu acervo de fontes da imprensa de Uberlândia, para a investigação e escrita deste tópico. A documentação está no Centro de Documentação e Pesquisa em História (CDHIS) da UFU, em fase de organização para futuras pesquisas. Nosso acesso só foi possível graças à permissão da professora, mais a disposição e cordialidade do seu orientando, Raphael Ribeiro. 1 HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003, p.248-249. 2 No estudo da cultura popular, devemos sempre começar por aqui: com o duplo interesse da cultura popular, o duplo movimento de conter e resistir, que inevitavelmente se situa em seu interior. In: HALL, Stuart. Opus cit. p.249. Para o estudo das relações entre capitalismo, modernidade e vida urbana ver:

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local que desenvolvemos está inscrito neste processo global, obviamente sob colorações

particulares. O objeto de estudo que propicia esta busca é a imprensa uberlandense em

suas leituras sobre povo e pobreza. Segundo Hall,

Escrever a história da cultura das classes populares exclusivamente a partir do interior dessas classes, sem compreender como elas constantemente são mantidas em relação às instituições da produção cultural dominante, não é viver no século vinte. Essa questão, no século vinte, é muito clara.3

Para este autor, o século XX desenvolve um imperialismo popular, como forma

de imposição e massificação dos ideais modernos de desenvolvimento econômico

capitalista. Uberlândia viveu intensamente esta conjectura, experimentada pelas elites e

classes populares, explorada pela imprensa local, sob ideais como Progresso,

Urbanidade e Modernidade4. Como parte deste contexto, de novas sensações, vivências

e pensamentos, tipicamente urbanos, a tentativa de educação do povo (rural e urbano)

pelo trabalho, higiene e novos hábitos sociais constituiu objetivo de políticas das elites

locais.5

Para adentrarmos este processo buscaremos sintetizar a formação histórica de

Uberlândia, explorando rapidamente sua ocupação, pelo viés econômico, sua

organização dos diferentes estratos sociais, pelo viés da política, e os saberes e práticas

sobre o povo pelo viés cultural da imprensa escrita.

Comecemos com o estudo clássico de Caio Prado Júnior. Ao descrever a

ocupação do território colonial brasileiro através das correntes de povoamento6 , afirma

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 2005. 3 HALL, Stuart. Opus cit. p.253. 4 Existe um tipo de experiência vital - experiência de tempo e espaço, de si e dos outros, das possibilidades e perigos da vida - que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como ‘modernidade’. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor - mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desumanidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”. In: BERMAN, Marshall, Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p.15. 5 Trata-se da reconstrução do capital e do aumento dos coletivismos, da formação de um novo tipo de estado ‘educativo’, assim como de uma nova recreação, dança e música popular. Como uma área de séria investigação histórica, o estudo da cultura popular é como o estudo da história do trabalho e de suas instituições. Declarar um interesse nele é corrigir um grande desequilíbrio, é apontar uma significante omissão. Mas, no final, seus resultados são mais reveladores quando vistos em relação a uma história geral, mais ampla. In: HALL, Stuart. Opus cit. p.252. 6 Seguimos a perspectiva de PRADO JÚNIOR (2000) na distinção entre “ocupação” e “entradas” ou “bandeiras”. Posto que as duas últimas se caracterizaram como expedições com objetivos de descobrir

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ter sido de extrema importância, para a efetivação e/ou fixação humana em diversas

áreas geográficas do território, a queda da produtividade das minas, isto é, do ciclo da

mineração - dado então a expansão dos “generalistas”, em fins do século XVIII:

O assunto é interessante: trata-se sem dúvida do fato de maior importância histórica futura neste setor Centro-Sul do país, e já francamente iniciado naquele momento. Ele revelará todos seus efeitos quando Minas Gerais se tornar definitivamente de mineradora em agrícola e pastoril, formando neste terreno entre as principais circunscrições do país.7 Tais generalistas não apenas ocuparam regiões inabitadas, eles ainda ajudaram a

aumentar demograficamente e expandir economicamente áreas pouco densas ou de

economia insignificante. Quando aportaram na região do Triângulo Mineiro, nos relata

Prado Júnior:

O território que constitui o chamado Triângulo Mineiro fazia parte (...) a Goiás. Transitava por ele o caminho que leva de São Paulo à capital goiana; e era este aí quase o único sinal de vida humana, salvo algumas tribos indígenas mestiçadas e semicivilizadas, bem como uns rudimentos de mineração no alto rio da Velhas (afluente do Paranaíba), quando em fins do séc. XVIII começam a se estabelecer na região, com fazendas de gado, ‘os generalistas’.8

A diversidade do território do Triângulo Mineiro entre mineradores aventureiros,

indígenas, comunidades quilombolas e ocupações generalistas com vistas a outras

atividades econômicas está no centro da questão da terra que proporcionou a ocupação

legal da futura Uberlândia (denominada Uberabinha até 1929). Segundo João Marcos

Alem, em princípios do século XIX:

(...) a mineração ainda atraía aventureiros, mas não era empreendimento que motivasse mais do que garimpos isolados e sem capacidade para formar, rapidamente, núcleos de acumulação econômica e populacional importantes. Como a região do Triângulo havia sido objeto de demanda territorial entre Goiás e Minas, era preciso ocupar o seu espaço com formas produtivas permanentes, no interesse do governo e da Igreja Católica da província de Minas (...).9

A necessidade de posse efetiva da terra, mediante produção regular determinou a

particularidade do tipo de entrada e conseqüente ocupação iniciada com João Pereira da

Rocha, bem como sua inserção na “divisão do trabalho” da região:

(...) tendo-se apropriado muito mais de terras do que as que lhe seriam concedidas na carta de sesmarias de 1821, a partir de certo momento da ocupação, João Pereira da Rocha não necessitava mais de terras e sim de homens, mas não de quaisquer homens. Era preciso distinguir quem poderia ser proprietário ou não. (...)

territórios economicamente viáveis e, ainda, eliminar e/ou aprisionar indígenas para o comércio de escravos. Interesses não similares à ocupação efetiva de um território. 7 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia. São Paulo: Publifolha, 2000, p.70. Para uma revisão crítica desta tese clássica de PRADO JÚNIOR ver: LOURENÇO, Luís Augusto Bustamente. A oeste das Minas: escravos, índios e homens livres numa fronteira oitocentista. Triângulo mineiro (1750-1861). Uberlândia: Edufu, 2002. 8 Idem. Opus cit. p.74. 9 ALEM, João Marcos. Representações coletivas e história política em Uberlândia. In: História & Perspectivas. Uberlândia, nº4, jan./jun. 1991, p.82.

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Em vários registros sobre vendas de glebas evidencia-se a gestação do caráter burguês de apropriação, (...) se as terras se constituíram como mercadoria, a sua apropriação era seletiva, tendendo a favorecer proprietários unidos por laços afetivos e de consangüinidade. (...) Desvinculada do sistema de mineração, a região só poderia se expandir economicamente se fosse ligada ao sistema agroexportador do café, que se implantava entre o Rio de janeiro e São Paulo. E foi isso o que se deu pela comercialização de cereais, de carnes, couros e outros gêneros aqui produzidos. 10

Tal localização e função da cidade como “entreposto comercial” demarca sua

história econômica no que tange aos primeiros processos de desenvolvimento na divisão

inter-regional do trabalho. Eduardo Guimarães, afirma que

A história de Uberabinha se constituiu em momento peculiar da expansão dos trilhos por suas terras. A ferrovia passou por elas sem causar impacto sobre sua colocação regional, não despertando, portanto, um interesse de âmbito superior à organização mercantil do município. A ferrovia na cidade de Uberabinha era apenas um potencial a ser aproveitado, porém não era suficiente para gerar maior dinamismo. (...) Uberabinha seria então privilegiada, indiretamente, pelo Governo Federal através da construção em 1909 da ponte Afonso Pena, que a colocava em estreito contato de comércio com todo o sudoeste de Goiás. (...) Ou seja, Uberabinha poderia ter perdido o bonde da história regional, (...) não fosse este benefício governamental, que a elevaria a categoria de terminal rodoferroviário, mesmo com os trilhos já avançados.11

Com maior foco na história local, Maria Clara Tomaz Machado interpreta este

movimento econômico como parte de um projeto das elites de Uberlândia, donde traz à

tona não apenas a perspectiva do desenvolvimento, mas a lógica política que o projetava

e o sustentava na cidade. Postas as condições infra-estruturais de circulação de

mercadorias com a ponte, surge a primeira viação do município:

(...) foi criada, em 1912, a Companhia Mineira de Auto-Viação que, por iniciativa privada, com aplicação do capital local, construiu uma rede de estradas rodoviárias que só foram incrementadas pelo estado de Minas Gerais na época de Juscelino Kubitscheck (50-55). (...) Essa Companhia foi um empreendimento de lucro, porque explorava não só o transporte, mas também cobrava pedágios, que eram recebidos em porteiras estrategicamente colocadas. É interessante ressaltar que a maior parte das greves ocorridas em Uberlândia nesta época foi organizada pelos “chauffeurs” e dirigida contra essa Companhia.12

Já nos princípios da consolidação de Uberlândia como “entreposto comercial”

encontramos a presença de conflitos entre capital e trabalho assalariado. É este

movimento de oposições entre elites e povo e/ou trabalhadores que nos interessa mais.

10 Idem. Opus cit. p.83. 11 GUIMARÃES, Eduardo Nunes. A transformação econômica do Sertão da farinha Podre: O Triângulo mineiro na divisão inter-regional do trabalho. In: História & Perspectivas. Uberlândia, nº4, jan./jun. 1991, p.27. MACHADO nos proporciona uma visão mais atenta sobre a construção da Ponte: Do movimento separatista do Triângulo Mineiro, em 1905, que propunha a criação do Estado do Paranayba, aproveitou-se o poder oligárquico de Uberabinha. A forma que a União e o Estado encontraram para abafar esse movimento foi facilitar os projetos políticos da região. Negociar nesse clima foi vantajoso para os políticos de Uberabinha que conseguiram apoio do Governo Central para a construção, em 1909, da ponte Afonso Pena sobre o Rio Paraíba, interligando, assim, o Triângulo Mineiro a todo o sudoeste goiano e a Mato Grosso. In: MACHADO, Maria Clara Tomaz. Muito aquém do paraíso: ordem, progresso e disciplina em Uberlândia. In: História & Perspectivas. Uberlândia, nº4, jan./jun. 1991, p.51. 12 MACHADO, Maria Clara Tomaz. Opus cit. p.51.

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Portanto, daremos continuidade à descrição da formação de Uberlândia sob o viés

político da organização do espaço público, e da construção da leitura hegemônica de sua

própria história pelas elites locais.

Segundo Alem, a história política de Uberlândia traz à tona uma documentação

específica forjada sob interesses de suas elites - como exemplo, a imprensa (jornais e

revistas), documentação partidária, legislativa, administrativa, e memorialistas -,

criando uma idéia de destino ao progresso, de cidade ordeira e organizada, com

representações coletivas que estão, hoje, presentes no próprio senso comum da

população local.13

Esta produção (ou falseamento) da história, para o domínio de classe é passível

de investigação, pois suas matrizes foram:

(...) segmentos de intelectuais muito próximos ao poder, [assim] a memória histórica dominante se repete, sistematicamente, através de categorias fetichizadas (...) independente da diversidade ideológica que possam ter os produtores da memória local. De um ângulo sociológico, as fontes históricas e seus intérpretes são quase sempre os mesmos, permanecendo caladas diversas memórias coletivas e individuais importantes. Nessa constelação de mitos do ideário burguês, a política seria apenas a esfera da organização da ordem social que viabilizaria o progresso material, sem se constituir, jamais, como esfera da dominação e da reprodução das desigualdades e dos conflitos. (...) Enfim, dentre uma multiplicidade de discursos efetivamente existentes, há um discurso histórico e cultural nativo, elaborado pelas elites, que pretende fixar as categorias históricas locais, ao mesmo tempo que absorve e tenta integrar os outros diferentes sujeitos que vão se constituindo na cidade.14 Uberlândia inaugura o século XX com um setor urbano em consolidação, e a

preocupação em reorganizar a cidade de acordo com os padrões das metrópoles do

período.15 Destruindo o passado de ruas tortas e estreitas, cenário típico da vila ou

arraial rurais, para dar vazão ao ideário progressista.

13 ALEM, João Marcos. Opus cit. p.79. 14 Idem. Opus cit. p.81. 15 Modelo de urbanização que tem suas origens na Paris do século XIX. Segundo Marshall Berman: No fim dos anos de 1850 e ao longo de toda a década seguinte, (...) Georges Eugene Hausmann, prefeito de Paris e circunvizinhanças, investido no cargo por um mandato imperial de Napoleão III, estava implantando uma vasta rede de bulevares no coração da velha cidade medieval. Napoleão e Hausmann conceberam as novas vias e artérias como um sistema circulatório urbano. Tais imagens, lugar-comum hoje, eram altamente revolucionárias para a vida urbana do século XIX. Os novos bulevares permitiram ao tráfico [sic] fluir pelo centro da cidade e mover-se em linha reta, de um extremo a outro - um empreendimento quixotesco e virtualmente inimaginável, até então. Além disso, eles eliminariam as habitações miseráveis e abririam ‘espaços livres’ em meio a camadas de escuridão e apertado congestionamento. Estimulariam uma tremenda expansão de negócios locais, em todos os níveis, e ajudariam a custear imensas demolições municipais, indenizações e novas construções. Pacificariam as massas, empregando dezenas de milhares de trabalhadores - o que às vezes chegou a um quarto da mão-de-obra disponível na cidade - em obras públicas de longo prazo, as quais por sua vez gerariam milhares de novos empregos no setor privado. Por fim, criariam longos e largos corredores através dos quais as tropas de artilharia poderiam mover-se eficazmente contra futuras barricadas e insurreições populares. (...) O empreendimento pôs abaixo centenas de edifícios, deslocou milhares e milhares de pessoas, destruiu bairros inteiros que aí tinham existido por séculos. Mas franqueou toda a cidade, pela primeira

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As fontes que trabalharemos adiante demonstram este processo de reordenação e

disciplinarização do espaço urbano, enfocando as relações entre elites e povo pobre.

Vejamos notícia de 1937:

Evidentemente, só é possível se chamar de “bela e moderna” uma cidade interior, quando viajando se sente muito de perto o calor da evolução, a febre espantosa de construções de embelezamento de hygiene e do progresso geral em todos os setores. (...) Uberabinha tem um aroma embragante, aspecto maravilhoso e seductor, com um povo hospitaleiro e bom, que symboliza claramente toda a grandeza bizarria da população mineira. A sua feição nova. As ruas calçadas. Os jardins symetricos e maravilhosos, espalham perfume entontecedor. (...) Toda aquella serie de grandes e pequenas cousas proprias dos maiores centros, Uberabinha possue. E possue com luxo e decencia. Com formas finas e modernas. Alli é tudo revestido do requinte de elegancia, graça de ordem e da formosura. Lá existe o cinema falado, a praia de banho, a natação, o remo, o clube de radio, a piscina o largo intercambio entre as cidades visinhas e arrebaldes, feitos por onnibus e limousines luxuosas e tudo enfim. Ë um dos explendidos recantos fidalgos e gentis do Triângulo Mineiro.16

Podemos notar como o narrador busca não trabalhar apenas as imagens do

progresso material, mas também as fontes culturais da vida urbana. Ele fica embriagado

com a aroma da cidade, sedutora e hospitaleira, transitando pelas suas calçadas,

desfrutando dos jardins simétricos e perfumados. O passeio desinteressado, lúdico,

embriagante, bem como o cinema, os clubes, a radiofonia - elementos do mundo urbano

moderno, fazem lembrar a figura do flâuneur de Baudelaire.

Sessenta e sete anos após esta notícia, a cidade continua Com um povo

hospitaleiro e bom. Uberlândia tornou-se fusão harmônica entre o progresso econômico

e a vida tranqüila do campo (idealizado e/ou estereotipado), imagem contemporânea

disseminada neste folheto:

Entre! Uberlândia te recebe de portas abertas. Você acaba de chagar a uma metrópole que ainda conserva a cordialidade do interior. Atrações que fascinam, encantam, geram desenvolvimento, com destaque para o turismo de negócios. (...) Quer conhecer a cultura da cidade? provar a comida autêntica mineira e ainda aproveitar para fazer excelentes negócios? Então você está no lugar certo. As melhores empresas estão aqui.17

vez em sua história, à totalidade de seus habitantes. Agora, após séculos de vida claustral, em células isoladas, Paris se tornava um espaço físico e humano unificado. In: BERMAN, Marshall. Opus cit. p.171-172. 16 A TRIBUNA. Uberlândia, 30/01/1937, anno XV, nº1074, p.05. 17 ACONTECENDO - Guia Turístico de Uberlândia. Uberlândia: Convention & Visitours Bureau, ano I, nº1, agosto 2004, p.3. Neste mesmo folheto encontramos referências a outros aspectos da cultura popular, sob a mesma perspectiva: “Mercado Municipal. Aqui podem ser encontrados os produtos da terra, como doces e queijos tradicionais e regionais. O atendimento é tipicamente mineiro.” “Centro de Fiação e Tecelagem Dona Belmira. Nas mãos de senhoras de terceira idade e de adolescentes, uma história está

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Principal semelhança com a notícia de 1937 vem do fato do olhar “de fora”, do

visitante, este Outro que deve ser seduzido pelo discurso da cidade.18 Portanto,

encontramos a presença de todo um investimento das elites, por meio da imprensa, para

a argumentação da cidade como local do progresso, do desenvolvimento, donde o

passado deve ser superado em suas características negativas como a vida penosa do

trabalho agrícola, a falta de higiene, as casas de arquitetura superada, dando local ao

novo, combinado com a seleção do que é positivo enquanto tradição: a hospitalidade

e/ou sociabilidade rural, citada em 1937, e a culinária “de raiz”, citada no folheto de

2004.

Há, portanto, uma seletividade nos saberes e práticas que estas elites forjam

sobre o popular, reagrupando elementos do passado em filtros de interesses tipicamente

econômicos e contemporâneos. Assim, o processo de reorganização do espaço urbano

não visou apenas a transformação funcional das ruas e avenidas, mas toda uma ordem

estética para o centro e adjacências. Esta seleção do que pode e do que não pode

permanecer na cidade fica explícita nesta fala de 1951:

Em plena zona urbana e mesmo nos trechos principais das pomposas avenidas e das ruas de construções mais luxuosas, existem ainda casas velhas e condenadas, que precisam desaparecer em favor da estética de Uberlândia. São casas que já prestaram muito serviço abrigando algumas gerações na família de que são propriedade, mas que hoje converteram-se em ruínas e precisam ser demolidas para que não diga que algumas taperas enfeiam as nossas vias públicas. (...) Os contribuintes estão saldando oportunamente os seus débitos oriundos de tais imoveis e por qualquer cisrcunstancia adstrita aos seus interesses particulares não se dispõem às demolições necessárias. Mas nem por isso o governo municipal estará impedido de tratar do assunto. Uma intervenção amigavel perante os proprietarios com o prestigio de que dispõe o prefeito principalmente no setor imobiliario de Uberlândia pode ser proveitosa. (...) Devemos porém conjecturar sobre o valor desses terrenos que hoje atinge a preços exorbitantes. O produto da venda de uma data dessas é suficiente para aquisição de outra data maior nas vilas e para construção de uma casa decente.19

sendo reconstruída no Centro de Fiação e Tecelagem Dona Belmira.” In: ACONTECENDO. Opus cit. p.10-11. 18 Sobre esta questão, afirma Alem que (...) é interessante destacar a distinção feita entre entre os “nativos” do município e os “intrusos”. Esse traço cultural permanecerá constante no discurso da classe dominante local por toda a história do município ao lado do seu oposto, ou seja, a receptividade da cidade para com os imigrantes. O que se pode depreender é que, quando se trata de defender os interesses locais, tanto se afirmam as tradições instituídas na vida social dos “nativos”, como se enaltecem as práticas instituintes da modernidade trazidas pelos imigrantes. In: ALEM, João Marcos. Opus cit. p.89. 19 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 2/12/1951, ano XIV, nº3296, p.04. Na contraposição entre passado e contemporâneo, novamente citamos o folheto turístico de Uberlândia, para notarmos que a seleção do passado, neste discurso das elites, hoje cria os “verdadeiros” lugares de memória (oficial), isto é, as arquiteturas antigas que permaneceram após as reformas urbanas: “Igreja Nossa Senhora do Rosário. É a construção religiosa mais antiga da cidade. A igreja é palco da Festa do Congado, a mais significativa manifestação religiosa e cultural de Uberlândia.” “Casa da Cultura. Além de sua

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Podemos notar a seleção e superação do passado pela crítica às taperas que

incomodam a estética da cidade, dado que estas já contribuíram no que tinham como

função, e tornaram-se empecilhos ao desenvolvimento. Lembremos que tapera é

expressão típica do universo rural.20 Neste plano, o jornal é representante direto da fala

do Poder Municipal e das elites (setor imobiliário21 ) ao citar como necessária a

compreensão dos moradores das velhas casas para que cedam aos interesses “da

cidade”, e retirem-se do centro para as vilas (aonde poderão construir uma casa e vida

decentes, ressalta o jornal). Os elementos indesejados, arcaicos, anacrônicos são

selecionados, registrados e disciplinados a tomarem providências para que não

interfiram no bem público, no progresso citadino.

Estes conflitos entre elites e pobres presentes na imprensa demonstra que

resistências, perturbações e críticas à ordem social imposta sempre existiram na cidade

de Uberlândia. O jornal é, de certa maneira, um instrumento de hegemonia que revela,

em suas entrelinhas, queira ou não, as dificuldades das elites e Poder Público em

forjarem a cidade pelo progresso.

Mendigos Os mendigos que perambulam pelas ruas da cidade tem vivido até aqui quasi que livres da fiscalização das autoridades. Frequentemente um novo pedinte aparece, novos indivíduos arvoram-se em mendicantes e, de porta em porta, imploram pela caridade pública. Sem um certificado que comprove a sua verdadeira incapacidade para o trabalho, sem um disntictivo que os caracterizem, elles tem vivido de esmolas. É necessário que os poderes competentes voltem suas vistas para esta classe, afim de evitar que haja exploração. O povo deve concorrer para a atenuação do sofrimento dos miseráveis, mas por forma alguma, concorrer para que os exploradores se conservem parasitas da cidade.22

incontestável beleza, o edifício da Casa da Cultura é de grande importância histórica.” “Museu Municipal. Também conhecido como Palácio dos Leões, é considerado um dos principais patrimônios históricos, onde a arte da história uberlandense está estampada em seu rico acervo.” In: ACONTECENDO. Opus cit. p.10-11. 20 TAPÉRA, s.f. - casa abandonada, em lugar ermo. / Tupi. In: AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: Hucitec, 1976, 185. Tapera. S.f. Bras. 1. Habitação ou aldeia abandonada. 2. Casa arruinada. 3. Fazenda totalmente abandonada e em ruínas. Adj. 2g. 4. Diz-se de pessoa a quem falta um olho ou os dois. 5. Bras., SP. Amalucado, maluco, tonto. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Médio Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Editora Nova fronteira, 1980, p.1624. 21 Sobre a prática da apropriação e especulação imobiliária na história de Uberlândia afirma Alem: (...) as terras destinadas ao núcleo urbano aparecem como mercadoria e como expressão do poder político da elite proprietária, que faz da emergência da cidade um processo controlado. (...) O controle econômico e político sobre o solo urbano terá a maior importância quando a cidade se tornar o centro de produção e acumulação econômica. Pode-se dizer que deter capital imobiliário é decisivo na composição das elites políticas locais, ao longo de toda a história de Uberlândia. In: ALEM, João Marcos. Opus cit. p.86. 22 A TRIBUNA. Uberabinha, 09/11/1919, anno I, nº9, p.1. Segundo as pesquisadoras Lopes e Machado: Uberlândia se configura nos anos 50-80, um mosaico. As cores, o brilho, a arquitetura encantam e criam a imagem de uma cidade edênica, na qual, a crise permanece à distância, sem favelas, nem mendigos ou desempregados, mas, nas entrelinhas, percebemos um desenvolvimento urbano marcado pela falta de

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Aqui observamos a proposta de intervenção disciplinar do Poder Público sobre

os miseráveis, dotando-os de certificação de incapacidade para o trabalho - ocultado em

sua realidade, como se a cidade o dispusesse para todos, sendo apenas os incapacitados,

então, autorizados a esmolar. Na lógica do jornal o explorador da sociedade é o pedinte,

que aproveita da boa fé e caridade pública para parasitar. A caridade pública existe,

deve existir, desde que institucionalizada para aqueles que possuem a legitimidade legal

para solicitá-la.

Os mesmos conflitos entre elites e pobres, tendo na imprensa a mediação e

dispositivo do discurso hegemônico aparece em notícia trabalhada pelas pesquisadoras

Lopes e Machado:

O jornal Correio de Uberlândia de 21 de Julho de 1955 publica o artigo intitulado Antro de Vadiagem no qual relata que: “(...) além da pobreza que impera em ‘Tabocas’, a vadiagem fez lá o seu reino. Homens fortes tocam viola o dia inteiro enquanto mulheres magras, macilentas e esquálidas mendigam tostões que eles mesmos vão gastar em farras e cachaçadas ao rebolar do samba no chão-batido, rara é a semana em que não ocorrem cenas de sangue em ‘Tabocas’.23

Vemos que o mesmo olhar sobre a pobreza descortinado na notícia sobre as

casas velhas e os mendigos persiste nesta. A violência não é explorada como intrínseca

à condição social do desemprego e da pobreza, pelo contrário, ela é fruto de pessoas

preguiçosas - tais como os mendigos - que não trabalhavam provavelmente porque “não

queriam”, porque possuíam o caráter desviado ... pela cachaça?

A novidade desta notícia é a presença explícita do preconceito de classe numa

leitura implícita de manifestação da cultura popular. Ora, se homens fortes tocam viola

ao chão batido, no rebolar e na cachaça, esta poderia ser uma cena “típica” de negros (os

“homens fortes”) e/ou homens e mulheres pobres provavelmente dançando samba em

comunidade.

Como trabalhamos acima, a imprensa como leitora da cidade pela ótica das

elites cria uma seleção e superação dos aspectos do passado e da pobreza, ou do povo,

casas devido a imigração ‘estonteante’, e diversos problemas de ordem social com todas as implicações que um acentuado crescimento demográfico e geométrico podem provocar. Afiançar o futuro e as vantagens que ele proporciona é o discurso das elites que se dedicam a expor as imagens do conforto e os benefícios do progresso, escamoteando a face oculta de uma complexa relação, na qual, aquelas materializam seus discursos exibindo obras e realizações, ao mesmo tempo em que anacrônicos personagens medievais perambulam pelas ruas exibindo suas chagas, sua miséria (...). In: LOPES, Valéria Maria Cavalcante. MACHADO, Maria Clara Tomaz. A violência na disciplinarização do espaço urbano em Uberlândia: representações e Imagens (1950-1980). Uberlândia: Cadernos de Pesquisa do CDHIS, nº26, ano 13, 1º semestre 2000, p.6-7. 23 LOPES, Valéria Maria Cavalcante. MACHADO, Maria Clara Tomaz. A violência na disciplinarização do espaço urbano em Uberlândia: representações e Imagens (1950-1980). Uberlândia: Cadernos de Pesquisa do CDHIS, nº26, ano 13, 1º semestre 2000, p.7, (Grifos das autoras).

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ou seja, ela filtra o que deseja desta realidade. Como entendermos esta notícia de 1990

senão a partir de tal hipótese?

Folias invadem as ruas para comemorar Reis Amanhã, sábado, seis de janeiro, é Dia de Reis. Todas as Folias de Uberlândia vão estar nas ruas, cumprindo as promessas de seus devotos e fazendo o encerramento do que chamam de “viagem”. (...) Segundo o presidente da Associação das Folias de Reis de Uberlândia, Alair Rabelo, “existem na nossa região 826 foliões registrados”, catalogados. (...) Mas a maior e mais tradicional Festa de Reis vai acontecer amanhã, no povoado de Cruzeiro dos Peixotos, Distrito de Uberlândia, quando fazendeiro e devotos se reúnem e oferecem, num gesto que se repete há muitos anos, um grande churrasco para os foliões da região.24

Óbvio que precisamos contextualizar esta notícia situada quarenta e cinco anos

após as falas sobre Tabocas. O progresso tão almejado na Uberlândia das décadas de

1900 a 1950 “chegou”, haja vista os índices de crescimento populacional e concentração

demográfica urbana da cidade.25 Pelo filtro do olhar hodierno podemos criar uma visão

do popular como local bucólico, do passado perdido e preservado em “portadores de

tradições”, em predominância, pessoas das classes subalternas, pobres. Esta concepção

está presente na notícia ao citar o distrito de Cruzeiro dos Peixotos como local de uma

festa “das mais tradicionais” da cidade. Tal distrito, rural, com população de pouco mais

24 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 5/01/1990, p.9. Trabalhando sobre os conflitos gerados pela implantação da radiodifusão em Uberlândia, Newton Dângelo traz à tona a figura da imprensa como representante do discurso e pensamento das elites locais, bem como a criação e legitimação de uma identidade cultural para a cidade: O que percebemos em relação aos processos de instalação destes ‘melhoramentos’ era a lógica da elite social, formada por empresários, comerciantes, políticos e intelectuais, de que Uberlândia, para tornar-se reconhecida como cidade grande e para informar aos uberlandenses excluídos destas novas invenções, que as mesmas diziam respeito a todos, unificados imaginariamente numa identidade e num suposto destino comum, um mesmo ‘progresso’ e uma mesma cidade. A imprensa escrita alimentava estes ideais, ao transformar estes ‘novos inventos’ em símbolos que pertenceriam a todos, associando-os a uma imagem de cotidiano sem conflitos e problemas, solucionados pela maravilha da tecnologia. In: DÂNGELO, Newton. Radiofonia, cultura material e sonoridades urbanas. In: MACHADO, Maria Clara T. PATRIOTA, Rosangela (orgs.) Histórias & Historiografia. Perspectivas contemporâneas de investigação. Uberlândia: Edufu, 2003, p.335-336.

25 CENSO IBGE 1970

LOCALIDADE POPULAÇÃO URBANA POPULAÇÃO RURAL TOTAL

Uberlândia 110.280 64.750 175.030

CENSO IBGE 1980

LOCALIDADE POPULAÇÃO URBANA POPULAÇÃO RURAL TOTAL

Uberlândia 230.400 5.154 235.554

Podemos observar o alto índice de migrações campo-cidade em Uberlândia no período 1970-1980, com respectivo crescimento urbano e reestruturação do modo de vida destes migrantes, mantendo suas sociabilidades rurais, tais como a Folia de Reis, presente principalmente em bairros da periferia. Dados obtidos no sítio: <<www.uberlandia.mg.br>>. Acesso em 2002.

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de mil habitantes configura a “Uberlândia arraial” que superou-se pelo progresso, fez-se

cidade moderna e desenvolvida. Assim, o passado é valorizado, idealizado, e a cidade

não mais precisa escondê-lo ou envergonhar-se dele.

Quando Folias de Reis invadem as ruas ocorre a valorização do povo como

presença ativa nos espaços públicos, até porque, como demonstra a notícia pela figura

de Alair Rabelo, presidente da Associação de Folias de Reis de Uberlândia, as elites

“conseguiram” cadastrar o povo, registrá-lo, cedendo-lhe até espaços na política local,

com o apoio do Poder Público Municipal para tal institucionalização e reprodução da

tradição.26

Portanto, notamos que trinta e um anos antes deste tipo de valorização, o mesmo

jornal já mostrava que o popular, quando instituído pelos interesses das elites locais,

tem leitura positiva, em sessão intitulada “Gabinete do prefeito”. Lembremos das

Tabocas de 1955. Em 1959 passarão por processo civilizatório, donde a pobreza e

vadiagem serão provavelmente superadas, porque irá ocorrer

Progresso avassalador: Tabocas. O Bairro das Tabocas, brevemente, deverá enquadrar-se dentre aqueles mais progressistas do município. Isto devido as providências do Prefeito Geraldo Ladeira que visaram apressar, mais ainda, as obras de ligação asfáltica da rodovia Santos-Brasília, trecho que corta a cidade de Uberlândia. Na quinta-feira o chefe de Executivo em companhia do dr. Alan de Paula Fernandes, chefe do 8º Distrito do D.N.E.R. e do dr. Alvimar de Matos Paiva, engenheiro residente do D.N.E.R. de Uberlândia percorreu, demoradamente, a região do córrego dos Tabocas, estudando o melhor traçado para a ligação.27

A sessão “Gabinete do Prefeito” representa a fala direta deste. Esta atuação do

jornal como mediador explícito dos interesses das elites locais e do Poder Público

Municipal fica mais evidente em texto assinado pelo “Redator de Plantão”, em 1959:

Caro leitor... 26 Mauro William de Abreu sintetiza os interesses da Prefeitura Municipal de Uberlândia na criação da Associação de Folias de Reis da cidade: Articuladas as formas de organização do social, a administração só concebia reivindicações populares quando estas se expressassem por meio de Associações, referendando um princípio que no discurso era o de romper com as relações paternalistas, clientelistas, estimulando a participação efetiva dos cidadãos nas decisões governamentais. (...) Foram estas circunstâncias que deram origem a Associação das Folias de Reis de Uberlândia. Doravante as solicitações de apoio financeiro aos ternos de folias não seriam atendidos individualmente, o que gerava, inclusive, desentendimentos, disputas entre os diversos grupos. Evidentemente, para a administração pública era muito melhor e mais racional tratar com os representantes de todos esses grupos por meio de uma diretoria que representasse os diferentes interesses, porque as divergências já chagavam diluídas e a negociação dos apoios era feita em nome de uma causa, a preservação da cultura e da tradição e não de conflitos e interesses de grupos divididos. Por outro lado, esta prática era também uma forma de ao mesmo tempo atender reivindicações de uma causa comum, economizando financeiramente para o município. In: ABREU, Mauro William de. Folia de Reis: Fé e Resistência das Tradições Religiosas Populares Entranhadas nas Ondas do Progresso e da Modernidade de Uberlândia, (1980/97). Monografia (História), Uberlândia: UFU, 1999, p.52-53. 27 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 26/04/1959, nº7023, s/n.º p.

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Você, leitor amigo, já algum dia tirou um tempo para ver como é bonita a paisagem noturna de nossa Av. Afonso Pena, com seus automóveis de luxo, seu asfalto e seu gas-neon. Pode-se estar certo, leitor, a avenida principal de Cidade-Jardim é das mais belas e ricas de todo o interior brasileiro. Poucas concorrerão com ela, em atrativo... Olhe um dia. Perca uns minutos e depois concorde comigo: é mesmo uma riqueza a nossa (Avenida) Afonso Pena!... O Redator de Plantão.28

Não eram apenas os jornais do período que representavam as falas das elites na

imprensa. Houve também revistas que atuaram no mesmo viés. Segundo Newton

Dângelo, a revista Uberlândia Ilustrada, que circulou mensalmente na cidade a partir de

1935, com interrupções e volta trimestral em 1939, até princípios de 1960 foi

(...) Fundada e dirigida pelo prof. Jerônimo Arantes, inspetor de ensino da prefeitura municipal (...) funcionava como canal de expressão das observações, poesias e crônicas do próprio professor e redator, além de abrir espaços aos intelectuais, comerciantes, fazendeiros e políticos locais, ao divulgar solenidades e comemorações, discursos e crônicas, acompanhando o desenvolvimento urbano da cidade e de seus equipamentos públicos. Como estratégia de convencimento, o passado de Uberlândia era freqüentemente reconstruído e associado a tempos de “atraso” e de “nostalgia”, sobretudo na sessão “Visão do Passado”, em constraste com as realizações de figuras importantes da atualidade, celebradas como a “fina sociedade uberlandense”.29

Estas variações que o autor ressalta entre a exaltação do contemporâneo e a

nostalgia do passado (idealizado, é claro), estão presentes nos jornais, demonstrando

certas dificuldades e/ou conflitos das elites em forjar espaços da cidade como locais de

ordem e progresso, higiene e boas maneiras - como as da “limpeza urbana” pelo

cidadão, que, neste exemplo, talvez tivesse que aprender com a “fina sociedade

uberlandense” uma conduta mais correta:

A Cidade é sua: Conserve-a limpa. Eis a seguir o decálogo do Amigo da Cidade-Jardim. Você, uberlandense, deve seguí-lo para que sua cidade continue sempre sendo aquela tão desejada e apreciada cidade limpa de que você sempre se orgulhou: 1 -Não jogue nada nas ruas. 2 - Não piche a sua cidade. 3 - Não maltrate os jardins, as arvores. 4 - Não jogue lixo e restos em logradouros públicos ou terrenos baldios. 5 - Mantenha limpa a calçada de sua casa. 6 - Nem transforme as ruas em serventia de cachorros. 7 - Coopere com a prefeitura para a limpeza da cidade. 8 - Coloque à porta de sua sorveteria, casa de frutas, boteco, quitanda, um recipiente para cascas, copinhos e lixo. 9 - Lembre-se de que a “cidade é sua” e cabe a você conservá-la limpa.

28 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 16/1/1959, p.1. Vemos que os conteúdos de exaltação da cidade estão muito próximos daqueles ressaltados na primeira notícia aqui trabalhada, de 1937, ou seja, 22 anos depois, a notícia desenvolve o sentimento urbano, da cidade como metrópole, trazendo ao texto imagens do desenvolvimento com luzes, carros, ruas asfaltadas e a posição de Uberlândia (Cidade-Jardim) como “capital” de sua região, o Triângulo Mineiro. 29 DÂNGELO, Newton. Opus cit. p.323-324.

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10 - Coopere para fazer da cidade mais bela do Triângulo Mineiro a cidade mais limpa também. (colaboração deste jornal para a manutenção de cidade limpa).30

Novamente, o jornal se coloca como mediador entre Poder Público e população,

em defesa da cidade destaque do Triângulo Mineiro, em prol de seu orgulho e

cidadania. Entre o passado e o presente, rural e urbano, povo mal educado e cidadão,

temos os filtros da imprensa fazendo a seleção ideológica de suas publicações.

Neste sentido, “Cidade-Jardim” possui uma história, escrita por suas elites,

divulgada pela imprensa, dialogada com o povo - parte do objeto de criação desta

história. Localizar as resistências, as desordens e contradições do processo de

modernização de Uberlândia necessita das entrelinhas destas fontes, dos não ditos, dos

personagens ocultados ou calados. Problemática que segundo Alem, constitui um

impasse historiográfico, porque (...) os sujeitos políticos dominados existem, mas os

registros de suas ações tomam sempre a vertente das ações das elites.31

Vimos no início deste texto que um dos determinantes do desenvolvimento de

Uberlândia foi a construção da Ponte Afonso Pena, e os futuros empreendimentos da

cidade enquanto entreposto comercial, marcada hoje pelo setor atacadista e transporte

de cargas. Vimos também em Machado que as primeiras greves registradas na cidade se

deram pela categoria dos motoristas de caminhões. Vejamos, portanto, como o discurso

das elites incorpora o motorista na história (oficial) regional e municipal, ilustrando a

questão ressaltada por Alem.

A você, bandeirante do progresso. É a você, motorista de caminhão, bandeirante moderno do progresso, que dirigimos hoje as nossas palavras. Você, que não mede esforços no cumprimento de sua tarefa gloriosa de abrir novas estradas e novos caminhos na ronda do progresso. Seja enfrentando a noite fria das estradas asfaltadas ou desbravando trechos do sertão. Não existem palavras, que possam demonstrar o seu valor e o seu despreendimento. A máquina, que é dirigida, a sua arma, a estrada sem fim, a sua meta. Se o compararmos com os antigos cavaleiros andantes, estamos certos. Se o colocarmos no mesmo pedestal dos heróis, dos bandeirantes e algumas vezes dos mártires, não

30 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 17/8/1960, nº9032, p.5. Segundo Alem, (...) o discurso nativo não nasce apenas da convicção das elites locais de que são iluminadas para conduzir os destinos da cidade. intencional ou não, nasce do esforço da classe dominante para controlar a contradição fundamental que vai alimentando na história local. Ao reter deste a origem da cidade, um vasto controle sobre as potencialidades econômicas do município, não puderam escapar das práticas políticas mais arraigadas da tradição colonial. Neste sentido, o discurso nativo é, em essência, apenas travestido de modernidade. As reivindicações pela expansão da cidadania, a necessidade de consolidar o Estado racional-legal como instituição pública são componentes da modernidade que revertem a expectativa das elites de uma acumulação econômica harmoniosa e de um poder político unilateral. Tal reversão impõe aos produtores da memória dominante uma forma discursiva apaziguadora de tensões mas, ao mesmo tempo, impõe a esse discurso um conteúdo de luta pela manutenção do poder. In: ALEM, João Marcos. Opus cit. p.96. 31 ALEM, João Marcos. Opus cit. p.92.

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erramos. Quantas já tombaram para que esta etapa fosse cumprida. E, tôda parte, em tôda hora e em muitos lugares. Esta é sua vida, como também, a sua história, motorista de caminhão. Rendemo-lhes hoje a nossa homenagem sincera, nestas páginas, mas nunca poderemos dizer nada mais certo, ao lembrar-lhes sua epopéia, do que esta frase: O progresso e a nação, lhe agradecem, bandeirante moderno.32

São estas as memórias dos caminhoneiros? Recordando a operação seletiva que

o jornal elabora sobre o popular, filtrando o que interessa à visão de cidade e de história,

é significativo nesta homenagem a tentativa de ligação entre sua profissão e a história

do país e/ou da região do Triângulo Mineiro.

O caminhoneiro como bandeirante moderno, que enfrenta as intempéries da

profissão é o povo trabalhador, pioneiro do progresso. Neste viés, este é o popular

trabalhador que aparece na imprensa, devidamente significado, selecionado e superado.

Podemos questionar se as formas de lazer e as condições sociais de trabalho e moradia

destas pessoas se enquadrariam nos interesses da notícia. Ironicamente, o jornal deixa

claro que é ele que retoma a memória do caminhoneiro, em “versão oficial”: nunca

poderemos dizer nada mais certo, ao lembrar-lhes sua epopéia (...) o progresso e a

nação, lhe agradecem, bandeirante moderno.

Esta operação de apropriação do popular para torná-lo apropriado à

representação da cidade progresso é analisada no próximo tópico deste capítulo.33 A

partir da leitura da Folia de Reis como folclore e identidade cultural local, pelo jornal

Correio de Uberlândia, desenvolvemos um “estudo de caso”.

32 O TRIÂNGULO. Uberlândia, 25/7/1958, nº521, p.1. 33 Seguindo as ponderações de Roger Chartier sobre novas perspectivas de análise de conflitos sociais, pela história cultural, observamos que nosso trabalho se fixa, tão somente, e com referência ao “impasse historiográfico” discutido em ALEM, nas imposições de representações, que o autor ressalta neste trecho: (...) a construção das identidades sociais como resultando sempre de uma relação de forças entre as representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesma; a outra, que considera o recorte social objetivado como a tradução do crédito concedido à representação que cada grupo faz de si mesmo, portanto, à sua capacidade de fazer com que se reconheça sua existência a partir de uma exibição de unidade. Trabalhando sobre as lutas de representações, cujo objetivo é a ordenação da própria estrutura social, a história cultural afasta-se sem dúvida de uma dependência demasiado estrita em relação a uma história social fadada apenas ao estudo das lutas econômicas, mas também faz retorno útil sobre o social, já que dedica atenção às estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um “ser-percebido” constitutivo de sua identidade. In: CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia. A História entre Certezas e Inquietude. Porto Alegre: Editora Universidade / UFRGS, 2002, p.73.

90

2.2) Imprensa e povo: folclore, cultura popular e identidade cultural local.

Neste segundo tópico, abordamos a presença da Folia de Reis no jornal “Correio

de Uberlândia”, com vistas a descortinarmos os significados que esta manifestação da

cultura popular ganha quando tomada como folclore e identidade cultural local.

Retomando parte das discussões traçadas no primeiro capítulo, saímos da abordagem do

senso comum acadêmico sobre o folclore para investigarmos o senso comum geral

sobre este.

O objetivo é a compreensão das representações que a Folia de Reis adquire

enquanto folclore e cultura popular na imprensa escrita de Uberlândia. Evidenciando o

uso de que ela se presta para a construção e legitimação de uma identidade cultural e

local - portanto, a ênfase na idéia de senso comum sobre folclore.

Nosso método de abordagem se fez a partir de notícias sobre a Folia de Reis

levantadas no período entre 1984 a 2002, ou seja, o recorte temporal de nossa pesquisa.

Para facilitar a busca das fontes pesquisamos apenas os meses de dezembro e janeiro,

pois são os meses da prática costumeira desta manifestação popular.

Levantamos vinte e seis notícias sobre a Folia de Reis. Notamos que apesar de

abordarem as cidades de Uberlândia (e dois de seus quatro distritos: Martinésia e

91

Cruzeiro dos Peixotos), Romaria e Uberaba, o conjunto não apresentou diferenças

significativas - fato que, se ocorresse, impossibilitaria uma análise de generalização

sobre a visão do jornal.34

Como hipótese de trabalho, acreditamos que as notícias analisadas demonstram

o que é o senso comum sobre o folclore e sobre a cultura popular. Sustentamos esta

hipótese a partir de três pressupostos: 1) o jornalista não é, necessariamente, um

especialista em análise cultural; 2) ele escreve, estrategicamente, para a recepção

comum do seu público leitor, e 3) portanto, suas análises servem de exemplo de como a

abordagem folclórica (essencialmente descritiva) pode ser desenvolvida em nível

primário de pesquisa.

Neste sentido, percebemos que a Folia de Reis entendida como manifestação do

passado, reproduzida pela tradição, e representada como identidade cultural local

possui, implicitamente, a negação dos seus praticantes como sujeitos históricos

(historicidade/passado) e ao mesmo tempo contemporâneos (produtores de significados

sociais, de experiências). Tal negação deste desenrolar de tempos afasta a oportunidade

e/ou necessidade de compreende-los internamente e externamente, isto é, como grupos

sociais e culturais específicos, mas pertencentes à sociedade como um todo, numa

abordagem que parte de suas esferas de ação social e dinâmicas culturais.

Esta negação das diferenças sociais e culturais, a partir da construção e

legitimação de uma identidade local sem conflitos sociais, presente no discurso do

jornal “Correio”, pode ser interpretada como exemplo de uma das funções dos meios de

comunicação de massa na sociedade contemporânea. Segundo Jesús Martin-Barbero, a

cultura de massa sendo um dos dispositivos da hegemonia burguesa define-se como

Uma cultura que, em vez de ser o lugar onde as diferenças sociais são definidas, passa a ser o lugar onde as diferenças são encobertas e negadas. E isto não ocorre por um estratagema dos dominadores, e sim como elemento constitutivo do novo modo de funcionamento da hegemonia burguesa, “como parte integrante da ideologia dominante e da consciência popular.” 35

34 Especificamente, levantamos dezesseis notícias sobre Uberlândia (oito sobre práticas da Folia de Reis na cidade e oito sobre sua Associação de Folias de Reis), seis sobre o encontro de Folias de Reis do município de Romaria, duas notícias sobre a cidade de Uberaba (uma sobre a prática da Folia de Reis e outra sobre determinado encontro promovido pelo Poder Público Municipal e Casa do Folclore daquela cidade) e duas notícias sobre os distritos de Martinésia e Cruzeiro dos Peixotos (uma abordando os dois distritos e outra apenas sobre Martinésia). Durante a Qualificação, nos foi sugerido a busca por outro jornal da cidade, o “Primeira Hora”, que circulou durante alguns anos da década de 1980. Do levantamento realizado, encontramos apenas três notícias, no período 1983-86. Como a abordagem não fora discrepante em relação ao jornal “Correio de Uberlândia”, optamos por permanecermos neste, para que o capítulo adquirisse maior coerência. 35 MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p.168.

92

Adiante, demonstraremos como a própria fala de um mestre folião sustenta este

tipo de negação e dominação. Mas iniciemos nossas análises trazendo a íntegra de uma

notícia sobre Martinésia e Cruzeiro dos Peixotos, com vistas a ilustrarmos a natureza da

produção e legitimação da Folia de Reis como folclore e identidade cultural local, em

suma, como senso comum folclórico:

FOLIA DE REIS EM CRUZEIRO DOS PEIXOTOS E MARTINÉSIA

A Folia de Reis, é uma das mais tradicionais manifestações folclóricas de Cruzeiro dos Peixotos e Martinésia, terminou ontem, com uma grande festa nas sedes daqueles distritos. De acordo com os costumes, os participantes da Folia de Reis visitam, durante 9 dias, todas as fazendas e propriedades da zona rural de Cruzeiro dos Peixotos e Martinésia, cantando hinos e colhendo donativos. Ao final da novena, os folíões chegam às sedes dos distritos para a coroação do Rei e da Rainha, transformando-se numa grande festa, com muitas cantigas e danças que remontam às raízes culturais de nosso povo, da qual participa toda população do Cruzeiro dos Peixotos e Martinésia.36

Localizemos a visão folclorizante a partir dos grifos que selecionamos. Num

primeiro momento, observamos a ênfase na Folia de Reis como uma das mais

tradicionais manifestações folclóricas dos distritos, construindo, portanto, um sentido

de exaltação e insistência na tradição como aspecto definidor da manifestação.

Perguntamos: qual o significado implícito de tradição? Obviamente, como aspecto

cultural e social demarcado por um tempo passado e distante, reproduzido por

determinantes que remontam às raízes culturais de nosso povo. A integração do distrito

como comunidade orgânica e homogênea desenvolve-se no argumento de que participa

toda a população dos dois distritos na festa final. Em síntese, exemplos de unidade

social e cultural, isto é, sem conflitos.

Outro aspecto típico da abordagem folclórica é a descrição do processo ritual da

Folia de Reis. A notícia descreve, sucintamente, as andanças da Companhia de Reis na

prática do adjutório (realização do rito de adoração do presépio de casa em casa e busca

de donativos para a festa do Dia de Reis), e finaliza com a coroação do Rei e da Rainha,

no caso, os festeiros do próximo ano. Trabalharemos adiante notícias que desenvolvem

mais este aspecto.

Finalizando a análise desta primeira fonte, podemos supor que o jornalista, para

escrever a notícia, acompanhou a festa final nos distritos, e, então, produziu este “relato

de campo”. Tomemos agora trechos de outra notícia, enfocando apenas o distrito de

Martinésia:

MARTINÉSIA ENCERRA HOJE A SUA FOLIA DOS SANTOS REIS 36 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 07-01-1984, p.06. Grifos nossos.

93

Uma das mais tradicionais festas de Reis terá seu encerramento hoje, no distrito de Martinésia, a 30 quilômetros de Uberlândia. Trata-se dos festejos da Mata dos Dias, povoado próximo da localidade que, anualmente, se reúne durante nove dias para louvar os Santos Reis e o Menino Jesus, obedecendo a tradição católica que atravessa os séculos. A festa, neste ano, teve início ainda no final de 1988, por ocasião dos festejos natalinos, através de uma Folia de Reis que visitou, em nome da fé e da tradição cristã, dezenas de casas da zona rural, entoando cânticos e louvando com novenas o nascimento do Menino Jesus, repetindo o mesmo rito que, naquela região, existe há mais de cinquenta anos. (...) PEREGRINAÇÃO O ponto alto da festa é a obediência à tradição Cristã, trazida para o Brasil há mais de dois séculos. (...) APOIO Os festeiros deste ano, Antônio Inácio de Souza e Helena Ferreira de Souza, que há mais 20 anos mantêm a tradição onde moram, dizem que estão felizes por cumprir mais essa missão divina. Eles afirmam que obtiveram muito apoio para realizar o evento e com isso, acentuaram, vão mantendo viva uma tradição que atravessa o milênio também em Uberlândia. É comum, segundo eles, altas responsabilidades políticas comparecerem ao evento para prestigiar a festa e para pedir a Deus bênçãos para sua vida pública. Os dois estão esperando para hoje a visita do prefeito Virgílio Galassi, do vice Chico Humberto e outras autoridades. “Eles nos deram muito apoio”, afirmam os festeiros, aguardando a presença deles hoje à tarde.37

Novamente, analisemos esta fonte a partir dos trechos grifados. Num primeiro

ponto observamos a repetição da visão folclorizante da Folia de Reis como salientado

na notícia anterior: a Folia de Reis de Martinésia é uma das mais tradicionais festas de

Reis e obedece à tradição cristã, que, por sua vez, atravessa os séculos. A ênfase na

historicidade como passado reproduzido continuamente (e talvez similarmente) está

presente.

Como negação ou ocultação dos conflitos sociais e culturais que porventura

ocorrem na Folia de Reis não é mencionado o fato de que em Martinésia a Folia da

Mata dos Dias não é a mesma da Folia da sede do distrito (da notícia anterior), e que os

próprios moradores e praticantes dela afirmam ocorrerem diferenças entre as duas,

sendo a da Mata mais “tradicional” e menos “alterada” do que a da sede, por esta última

arregimentar mais pessoas e adquirir a característica de festejo em detrimento da

religiosidade.38 Novamente, fica implícito a idéia de tomar o distrito como uma

37 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 07-01-1989, p.03. Grifos nossos. 38 Observamos este fato desde a preparação do projeto de pesquisa, mediante conversas e entrevistas com moradores do distrito de Martinésia. O aprofundamento da discussão será trabalhado no próximo capítulo.

94

comunidade homogênea, sem diferenças substanciais, ou seja, com uma forte identidade

cultural local, fixada em raízes duradouras.

Outro ponto que oculta a particularidade da Folia de Reis e possíveis conflitos

está na não divulgação da fé católica popular, isto é, de que a Folia representa uma

religiosidade fundamentada numa interpretação específica do cristianismo, donde os três

Reis Magos adquirem conotação de santos - fato não presente na Bíblia e não

reconhecido pela Igreja Católica. O trecho o ponto alto da festa é a obediência à

tradição Cristã, trazida para o Brasil há mais de dois séculos não divulga este detalhe

e não permite que se compreenda donde e como o cristianismo se desenvolveu

historicamente no Brasil, além de demonstrar outro procedimento típico da

folclorização: a determinação das origens como elemento explicativo.

Para finalizar, o fato da presença de altas responsabilidades [sic] políticas na

Mata dos Dias não desenvolve que tipo de interesses determinados políticos objetivam

quando comparecerem ao evento para prestigiar a festa e para pedir a Deus bênçãos

para sua vida pública , ou seja, como e porque elementos sociais e políticos

extremamente contemporâneos se fazem presentes nestas práticas tão tradicionais.

Novamente, o jornal não está preocupado com a atualidade desta prática cultural

popular e com os conflitos ou interesses que os acompanham, que fazem parte dele.

Apoiando-nos na abordagem teórica de Martin-Barbero, entendemos esta última

negação do jornal (os sentidos da política local na cultura popular) como exemplo de

nosso contexto histórico contemporâneo, em que a cultura popular contendo em si uma

cultura de classe social desenvolve-se, também, como cultura de massa, donde o jornal

é elemento de hegemonia (ou dispositivo de mediação de massa). Assim, a noção

teórica e o espaço real da cultura adquire novas dinâmicas sociais. O popular se realiza

como popular porque é contemporâneo, e neste aspecto, resume-se que:

(...) ao se transformarem as massas em classe, a cultura mudou de profissão, e se converteu em espaço estratégico de hegemonia, passando a mediar, isto é, encobrir as diferenças e reconciliar os gostos. Os dispositivos de mediação de massa acham-se assim ligados estruturalmente aos movimentos no âmbito da legitimidade que articula a cultura: uma sociabilidade que realiza a abstração da forma mercantil na materialidade tecnológica da fábrica e do jornal, e uma mediação que encobre o conflito entre as classes produzindo sua resolução no imaginário, assegurando assim o consentimento ativo dos dominados. Essa mediação e esse consentimento, no entanto, só foram historicamente possíveis na medida em que a cultura de massa foi constituída acionando e deformando ao mesmo tempo sinais de identidade da antiga cultura popular e integrando ao mercado as novas demandas das massas.39

39 MARTIN-BARBERO, Jesús. Opus cit. p.169. Grifos do autor. MARTIN-BARBERO (1997) entende que Massa designa, no movimento da mudança, o modo como as classes populares vivem as novas condições de existência, tanto no que elas têm de opressão quanto no que as novas relações contêm de

95

Portanto, a teoria nos permite compreender porque o jornal “Correio de

Uberlândia” ao representar a Folia de Reis a conceitua como folclore, no sentido de

manifestação popular do passado, negando as suas transformações e correlações de

conflito social: desta maneira, ele está construindo e legitimando uma identidade

cultural local e, ao mesmo tempo, ocultando sua dimensão contemporânea. Assim, não

necessita discutir a cultura popular como cultura contemporânea, o que, explicitamente,

traria à tona seus aspectos conflituosos e seus sujeitos como participantes ativos da

sociedade da desigualdade e diferença sociais.

Quando políticos participam da festa, estão apenas tomando benções, ou seja,

reproduzindo a tradição, e, não, trabalhando ativamente os seus interesses políticos. Ora,

se evidenciassem este fato, a necessidade de questionar como os praticantes da Folia de

Reis lidam com ele (presume-se, pela dominação, pela resistência ou os dois juntos), se

transformaria em notícia - notícia esta que lhe é vedada ou desinteressante desenvolver.

E é esta dinâmica que definimos como o senso comum sobre folclore, ou seja, as

representações usuais, costumeiras, que a sociedade possui sobre as manifestações da

cultura popular, permeadas pela hegemonia contemporânea que ela

“inconscientemente” reproduz. Sobre o que entendemos por hegemonia e o senso

comum nela dinamizado, este trecho de Raymond Williams é elucidativo:

A hegemonia (...) É todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores - constitutivo e constituidor - que, ao serem experimentados como práticas, parecem confirmar-se reciprocamente. Constitui assim um senso da realidade para a maioria das pessoas na sociedade, um senso de realidade absoluta, porque experimentada, e além da qual é muito difícil para a maioria dos membros da sociedade movimentar-se, na maioria das áreas de sua vida. Em outras palavras, é no sentido mais forte uma “cultura”, mas uma cultura que tem também de ser considerada como o domínio e subordinação vividos de determinadas classes.40 Para a continuidade de nossas análises, passemos para as fontes que demonstram

esta construção e legitimação de uma identidade cultural e local pela Folia de Reis

tomada como folclore, isto é, compreendida no senso comum.

Em primeiro lugar, traremos à tona algumas notícias que forjam a identidade

cultural local a partir de um tom exaltado do folclore, da Folia de Reis e da historicidade

que os acompanham. A relação entre a história de Uberlândia e a Folia de Reis é assim

trabalhada em notícia publicada em janeiro de1998:

demanda e aspirações de democratização social. E de massa será a chamada cultura popular. (...). In: MARTIN-BARBERO, Jesús. Opus cit. p.169, (Grifo do autor). 40 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.113.

96

QUE A BANDEIRA SEJA AMADA Comemorou-se ontem a Folia de Reis, tradição folclórica centenária na região. (...) Desde 1850, quando a cidade de Uberlândia era o Arraial de Nossa Senhora do Carmo e São Sebastião da Barra de São Pedro de Uberabinha, é comemorado no dia 06 de janeiro, por seus moradores católicos, o Dia dos Três Reis Magos, através da Folia de Reis, uma tradição típica de cidade do interior. Em Uberlândia somam-se para os festeiros 45 associações de Folia de Reis. Considerando que cada uma tem, em média 15 elementos, contabiliza-se 675 foliões que envolvem mais de 70 mil pessoas indiretamente, ou seja, aqueles que recebem os foliões em suas casas, segundo informações do presidente da associação Estrela do Oriente, Alair Ribeiro. (...) 41

Notamos que a notícia procura sistematizar a Folia de Reis em conjunto com a

história de Uberlândia, argumentando que sua formação explica a prática cultural - uma

tradição típica do interior - e que esta persiste no tempo, pois os números revelam que

pelo menos setenta mil pessoas da cidade possuem alguma relação com a Folia. A

religiosidade católica seria o imperativo maior desta persistência. A notícia deixa vago o

sentido de “seus moradores católicos”, pois não explica que a Folia de Reis é fruto de

uma leitura singular e popular realizada sobre a Bíblia, tal como nos referimos

anteriormente. Neste aspecto, parece agregar a Folia com o catolicismo, e este, com a

cidade, num significado implícito de que toda a cidade pode, minimamente, identificar-

se com esta prática cultural e religiosa.

Além de identificar a Folia de Reis com o tempo passado - historicidade - de

Uberlândia, o jornal também trabalha com espaços específicos. Notícia sobre o bairro

Patrimônio possui variados elementos para compreendermos como esta identificação

entre lugar, cultura popular/folclore e cidade são construídos no objetivo de legitimar

uma identidade cultural local:

CENTENÁRIA FOLIA DE REIS ANIMA O PATRIMÔNIO O bairro assiste hoje o encerramento de uma das festas populares mais importantes da cultura regional. Os moradores do bairro Patrimônio vivem hoje mais um dia de rememória. O tradicional bairro da cidade assiste ao encerramento da folia de reis, uma das festas mais populares de Minas Gerais, que encontra no Patrimônio seus maiores preservacionaistas em Uberlândia. Desde as primeiras horas da noite, muitas centenas de pessoas deverão se aglomerar na Escola Estadual Mário Porto, local escolhido este ano para a solenidade de encerramento da folia do capitão Enercino, há 40 anos à frente do grupo. A festa nasceu praticamente junto com o Patrimônio, no século passado portanto. É fruto do sincretismo religioso e tem sua origem no meio rural, conforme explica o membro da Comissão de Assuntos Históricos do Bairro Patrimônio, Almir José da

41 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 07-01-1998, p.26. Grifos nossos.

97

Silva. (...) De 800 a mil pessoas, conforme cálculos dos organizadores, devem se reunir esta noite. Todos comem e bebem o quanto querem, sem pagar nada, uma homenagem dos homens da fé do Patrimônio aos três reis magos que foram à gruta em Belém levar presentes para o menino Jesus.42 Podemos observar o modo pelo qual a Folia de Reis, em conjunto com o bairro

Patrimônio são descritos como lugares de tradições - e como tradições, fundamentados

no passado: o dia de Reis é dia de rememoração, apenas, e não dia de colocar em ação

uma prática que dialoga com a vivência do presente. Como o bairro pode ser descrito a

partir da história de Uberlândia, ele contêm os maiores preservacionistas da cidade, que

reproduzem a Folia de Reis - presente no local desde sua fundação. O tom de exaltação

do folclore e da cultura popular se verifica na idéia de que estes formam uma das festas

populares mais importantes da cultura regional, ou seja, motivo de legitimação da

identidade cultural que os define.

Quando narra que todos comem e bebem o quanto querem, sem pagar nada,

surge a compreensão de que a festa está fora do circuito da modernidade, porque foge

ao padrão usual contemporâneo uma celebração que dispensa a troca financeira. Para

explicar este dado, é a religião que aparece como motivo de tal dispensa, e, novamente,

a tradicionalidade é fator que define uma característica típica do passado. Em síntese, o

próprio nome do bairro é sugestivo, pois “Patrimônio” congrega a noção de

propriedade, de valores culturais que definem um determinado lugar.

Outras notícias que levantamos trabalham com o folclore e a cultura popular

como fatores de celebração da identidade local e também de opção de “lazer” na cidade.

Neste aspecto, a idéia de encontro com a diferença aparece como elemento central.

Vejamos esta notícia de janeiro de 1985:

FOLIA DE REIS Neste domingo, a partir das 11 horas da manhã, Uberlândia viverá uma festa folclórica das mais atraentes. Trata-se do I Encontro de Folias de Reis. A Secretaria Municipal de Cultura, que promove o evento, faz um convite a todos para assistir uma das mais puras tradições de nosso povo. A Secretária da Cultura do Município, Yolanda de Lima, está entusiasmada com a participação de 24 dos 28 Grupos de Folia, existentes na cidade. Será armado um palanque no pátio da Igreja do Largo do Rosário, tendo à frente um presépio. Cada Grupo terá 15 minutos para fazer sua apresentação, no espaço entre 11 e 17 horas, quando então haverá uma interrupção para a celebração da Missa.43

42CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 15-01-1994, p.13. Grifos nossos. Sobre a história do bairro Patrimônio ver: LOURENÇO, Luís Augusto Bustamante. Bairro do Patrimônio: Salgadores e Moçambiqueiros. Uberlândia: Secretaria Municipal de Cultura, 1986. 43 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 19-01-1985, p.03. Grifos nossos. Sobre a dinâmica de interesses da Prefeitura Municipal na criação da Associação de Folias de Reis de Uberlândia ver rodapé 26 deste capítulo.

98

Encontramos aqui a presença do poder público municipal dentro da construção

da identidade cultural local da cidade. Chama-nos a atenção nesta notícia, além deste

fato, a reprodução do ideário de pureza da tradição popular, que move a legitimação da

concepção de folclore e tradição como fundamentos do passado, no caso específico,

ainda passíveis de observação em estado “natural”. Divulgado pelo jornal “Correio de

Uberlândia”, o Encontro demonstra o interesse da Prefeitura Municipal em não apenas

produzir a união dos grupos de Folia de Reis da cidade (mediante a criação da

Associação de Folias de Reis da cidade), mas também de chamá-la a comungar da

celebração, uma oportunidade de encontro com as raízes culturais que forjaram o

município e que o identificam.

A historicidade desta relação do poder público municipal de Uberlândia com os

grupos de Folia de Reis pode ser verificada no próprio jornal. No mesmo dia da

publicação da notícia acima citada o jornal produziu outra, mais completa, sobre este

projeto, encabeçado pela Secretaria Municipal de Cultura e trabalhado na sua equipe de

Cultura Popular:

I ENCONTRO DE FOLIAS DE REIS AMANHÃ NA PRAÇA DO ROSÁRIO Iolanda de Lima Freitas, Secretária Municipal de Cultura, abre amanhã, às 11:00 horas da manhã no Largo do Rosário, o I Encontro de Folias de Reis de Uberlândia. Procurada pela reportagem do “Correio de Uberlândia”, Iolanda disse: “Para nós está sendo um motivo de muita satisfação termos conseguido fazermos este trabalho com os grupos de Folia de Uberlândia. Nós sabíamos que eles eram vários, mas só mesmo depois de um levantamento é que pudemos constatar o grande número de existência deles. (...) Faz parte de nosso grande projeto, uma pesquisa e documentação a respeito de todos os valores culturais que Uberlândia tem e naturalmente entre esses valores culturais, nós não poderíamos deixar de lado a “Folia de Reis”, que depois do levantamento que fizemos, pudemos constatar a grande força que eles são. Eles mesmos já perceberam que devem continuar se reunindo, e já solicitaram o nosso apoio para que eles formam uma irmandade.” (...) 44

Não pretendemos trabalhar aqui os interesses específicos da Secretaria de

Cultura de Uberlândia com este projeto. Nosso foco se fixa na construção e legitimação

de uma identidade cultural local na cidade a partir dos usos da Folia de Reis pela

imprensa. Mas observamos que esta construção possui participação ativa do poder

público municipal neste período e ainda contemporaneamente. Podemos pesquisá-la em

fontes produzidas pela própria prefeitura, e assim descortinarmos que este tipo de

44 CORREIO DE Uberlândia. Uberlândia, 19-01-1985, P.06. Grifos nossos.

99

política refere-se aos pleitos de Zaire Rezende (PMDB), prefeito de Uberlândia no

período 1983-1987 e 1998-2002.

Traremos dois documentos que demonstram esta preocupação em enfatizar a

cultura popular dentro de suas políticas culturais. Em 2001 e 2002 foi produzido um

guia intitulado “Guia das Manifestações Culturais de Uberlândia”, publicação da

Secretaria de Cultura, Poder Executivo e apoio da Secretaria de Comunicação Social.

O documento se constitui de “Apresentação”, um breve histórico da cidade de

Uberlândia, “Folia de Reis”, “Carnaval”, “Festa Junina”, “Congado”, “Fiação e

Tecelagem”, “Medicina Popular” e “Culinária do Cerrado”. Nos deteremos na

“Apresentação”, donde podemos inferir algumas análises:

APRESENTAÇÃO Conhecer uma cidade é visualizar algo além das estruturas de concreto e dos traçados geométricos originários da luta humana para modificar a natureza. A cidade não é construída apenas por suas edificações e ruas mas, também, por seus hábitos e costumes. São esses códigos culturais que possibilitam o sentimento de pertencer a um determinado lugar. (...) A cultura é o único elemento capaz de humanizar a sociedade moderna e restabelecer uma ligação com o passado, para que o homem reviva experiências vitais presentes em sua memória. Devemos voltar nossos olhos para o universo singelo, singular e ao mesmo tempo grandioso da cultura popular. Considerando sua dimensão material, que podemos tocar, bem como, sua dimensão imaterial, que nos toca. As tradições culturais são traços presentes em nossas vidas, pois sabemos que nelas sobrevivem algo do nosso passado. Esse elemento revitalizador se manifesta nas festividades religiosas ou carnavalescas, na riqueza da culinária ou medicina popular. O Guia das Tradições Culturais de Uberlândia traz, além de um breve histórico sobre a trajetória da cidade, informações sobre as principais manifestações da cultura popular, que ainda resistem à contemporaneidade, em nossa região: Folia de Reis, Carnaval, Festa Junina, Congado, Fiação e Tecelagem, Medicina Popular e Culinária do Cerrado. A publicação deste Guia, pela Secretaria Municipal de Cultura, tem por objetivo divulgar a riqueza cultural da cidade, assim como estimular o interesse da população, sobretudo o das gerações mais jovens, pelas Tradições Culturais de Uberlândia.45

A “Apresentação” deste documento pode ser analisada pela noção de

“sobrevivências” que explora, inferindo a definição de cultura popular elaborada. A

idéia de que a cidade também se faz pelos seus costumes como códigos culturais,

trazendo o sentimento de pertencimento ao local é relacionado com a memória,

exemplificada pelas sobrevivências que a cultura popular traz consigo. Aqui, a

valorização do popular não se desprende deste conceito como algo do passado. 45 GUIA DAS TRADIÇÕES CULTURAIS DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 2001/2002: Secretaria Municipal de Cultura, Prefeitura Municipal, Secretaria de Comunicação Social. Sem numeração de páginas. Textos de CAVALCANTE, Valéria Maria Queiroz. LOPES, Aguinaldo Rodrigues. PAMPLONA, Gleides. Grifos nossos em negrito.

100

Quando se “apela” aos mais jovens para que reconheçam o valor da cultura

popular novamente é explicitada a concepção de que esta trabalha mediante

sobrevivências. Se sua reprodução está relacionada à necessidade de humanização da

modernidade, pela cultura, significa que o popular se desagrega, e a identidade local se

perde. Portanto, a construção e legitimação da identidade cultural local está presa ao

popular, ao folclore, às raízes, intrínsecas à Folia de Reis e às outras manifestações

populares que o Guia descreve.

A intenção do poder público em definir uma identidade cultural local fica mais

acentuada em outra fonte, de 2004, um informativo da gestão Zaire Rezende

denominado “Uberlândia Acontece”, distribuído gratuitamente nas caixas de correio das

casas em março deste ano:

RESPEITO ÀS TRADIÇÕES AFRO-BRASILEIRAS São muitas as tradições culturais em Uberlândia. Por elas o Executivo municipal tem o maior respeito. Uma prova deste reconhecimento está no apoio que a Prefeitura proporciona às manifestações culturais e às organizações das comuidades afrodescedentes. A Festa do Congado, a Folia de Reis e o Carnaval são eventos anuais realizados pela Prefeitura, e que movimentam culturalmente toda a comunidade. Tudo isto faz de Uberlândia uma cidade que mantêm sua identidade cultural e preserva suas etnias.46

É notória a idéia de que a Prefeitura respeita as tradições, e, ao mesmo tempo,

suas manifestações. Tidas como eventos anuais são realizados pela Prefeitura. Como

esta contribui - ou até realiza estas práticas culturais - a comunidade toda é

movimentada, resultando em sua preservação. Neste aspecto, a última frase é

significativa: Uberlândia é uma cidade que mantêm sua identidade cultural e preserva

suas etnias.

Para fecharmos estas análises sobre a construção e legitimação da identidade

cultural local de Uberlândia através do uso da Folia de Reis voltemos às fontes do jornal

“Correio de Uberlândia”. A íntegra desta notícia revela tanto a exaltação de identidade

cultural local quanto a participação do poder público em suas práticas. Poderemos então

compreender qual a definição de cultura popular que estas elaboram e objetivam

legitimar, bem como a sua presença no senso comum.

FOLIA DE REIS FOI SUCESSO NA PRAÇA DO ROSÁRIO Dos 28 grupos de Folia existentes em Uberlândia, 24 deles participaram da festa de domingo último, na Praça do Rosário. Cada grupo, comandado pelo seu capitão, fazia

46 UBERLÂNDIA ACONTECE. Uberlândia: Prefeitura Municipal, p.12, Março de 2004. Grifos nossos.

101

três apresentações, representando os 3 Reis Magos. Cada um deles cantava sua própria música, muitas das quais com mais de 25 versos. A Folia de Reis, segundo os mais entendidos, teve origem em Portugal, lembrando a ida dos Três Reis Magos do Oriente até Jesus em Belém. Aqui no Brasil, os foliões entendem que homenageiam os Reis e se protegem de qualquer mal. Depois de cantarem na rua, os grupos entraram na Igreja e cantaram também em frente ao Presépio, onde se encontravam as figuras dos três Reis Magos. A presença do povo valorizou o acontecimento que foi altamente marcante no contexto da cultura popular da cidade.47

A descrição de que o encontro de Folias de Reis foi um sucesso, e que houve

participação ativa dos grupos de Folias da cidade - pois dos 28, 24 compareceram ao

evento - celebra a atuação da Prefeitura com sua concretização, pois, apesar desta não

ser mencionada nesta notícia, o Encontro vinha sendo divulgado em várias notícias dos

dias anteriores, em conjunto com as falas da Secretária de Cultura da época.48

Quando a origem da Folia de Reis é mencionada, podemos entender que há a

intenção de registrar sua ancestralidade, em demarcar a prática como típica do passado,

como um folclore que pode ser observado na cidade, que a identifica, culturalmente. A

chave para compreendermos a definição de cultura popular que a fonte explora está na

última frase: a presença do povo valorizou o acontecimento que foi altamente marcante

no contexto da cultura popular da cidade. Se o povo esteve presente, é porque sua

identificação com a Folia de Reis é verdadeira, e assim observa-se que, como cultura

popular, há identidade cultural e local em tal manifestação.

Assim, o conceito de cultura popular definido pelo jornal, pelo poder público e

pelo senso comum é o de práticas culturais subjacentes ao passado remoto, que

persistem no mundo contemporâneo graças a persistências que podem ser localizadas na

religião, nos valores e nas crenças de determinadas pessoas e grupos que, quando o

realizam, “abrem uma brecha no tempo”, ou seja, praticam algo que não tem sentido no

contemporâneo a não ser pela identificação de um passado comum que é compartilhado.

Este olhar de cumplicidade e distanciamento imbricados fazem com que, no senso

comum, ocorra sempre a idéia de algo anacrônico - portanto, algo para ser “apreciado

como folclore”, como peças de museu: interessante devido ao elemento exótico do

passado.

Este senso comum, e a negação das diferenças e conflitos sociais analisados na

primeira parte deste tópico são complementares, porque formam o olhar hegemônico

sobre indivíduos e grupos que têm em suas tradições os modos de criação de

47 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 22-01-1985, p.12. Grifos nossos. 48 Como a notícia de 19-01-1985 que expomos acima.

102

significados contemporâneos à realidade que vivem. Nesta problemática social, política

e cultural, os próprios praticantes da Folia de Reis estão inseridos. Suas falas

reproduzem a hegemonia quando “protegem” suas peculiaridades culturais no discurso

da sobrevivência, e de que não se envergonham do que fazem. Com isso, reconhecem e

resistem ao senso comum, numa dialética de reprodução e negação da folclorização, do

anacrônico.

As falas de Alair José Rabelo, capitão do grupo “Estrela do Oriente” e

presidente da Associação de Folias de Reis de Uberlândia, presentes em duas notícais

do jornal “Correio” são exemplos de tal dialética: na primeira, refere-se à atuação da

Prefeitura junto aos grupos de foliões, e na segunda sobre por que é folião e o sentido de

sua fé.

FOLIA DE REIS: FESTA FOLCLÓRICA NESTE DOMINGO NA PRAÇA DO ROSÁRIO (...) O Capitão da Folia de Reis “Estrala do Oriente”, Alair José Rabelo, observou que “Fiquei surpreso pois nunca, nunca se viu em nossa cidade uma administração municipal apoiar tanto o folclore, basta se ver que de 28 Grupos de Folia de Uberlândia, a Secretaria Municipal de Cultura conseguiu reunir 24 grupos para esta apresentação no domingo”.49 (...) FESTA DE REIS TERMINA HOJE, NO PAMPULHA (...) O presidente da Associação das Folias de Reis informou que realizou seis festas em 1992 e duas este ano, todas a pedidos de fiéis que fizeram promessas e alcançaram graça. Ele disse ser folião por tradição, uma fé que herdou do pai, um religioso convicto que todo ano fazia festa para Santos Reis. “ Pego a viola com toda devoção e não tenho vergonha de sair divulgando a minha crença.” (...) 50

Voltando à perspectiva teórica de Martin-Barbero, podemos complementar nossa

análise e compreender por que a identidade cultural local de Uberlândia em sua parte

construída e legitimada pela Prefeitura e pela imprensa escrita se utiliza da Folia de

Reis. Como analisar estas pequenas falas de Alair José Rabelo inseridas em nossa

contemporaneidade? E por que o popular e o folclórico são predominantemente

remetidos ao universo rural? Não haveriam manifestações populares urbanas? O

sentimento de que o popular deve se referir ao passado é a chave de leitura que o remete

ao rural, resultando na elaboração de uma “nostalgia” que cairá nos estereótipos

folclorizantes do senso comum.

49 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 16-01-1985, p.01. Grifos nossos. 50 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 06-01-1993, p.06. Grifos nossos.

103

Tratando da cultura indígena e do seu artesanato introduzidos na produção e

consumo capitalistas, o autor define como as mediações entre a sociedade abrangente e

o grupo específico se realiza a partir da hegemonia:

O campo daquilo que denominamos mediações é constituído pelos dispositivos através dos quais a hegemonia transforma por dentro o sentido do trabalho e da vida da comunidade. Já que é o próprio sentido do artesanato ou das festas o que é modificado por aquele deslocamento “do étnico ou do típico”, que não só para o turista, mas também na comunidade, provoca o esmaecimento da memória que o convoca. (...)51

Partindo desta perspectiva podemos afirmar que a Folia de Reis representada na

imprensa sofre um distanciamento entre o vivido dos grupos que a praticam e os

conteúdos abordados no jornal. Apesar do jornal “Correio de Uberlândia” localizar a

cultura popular fora da modernidade, esta está nela inserida, sofrendo os processos das

mediações peculiares deste tempo. Portanto, os saberes e práticas do jornal e da

Prefeitura, ao conceituá-los no passado, para a legitimação da idéia de diferença e

identidade local, não permitem a compreensão dos significados atuais que estes sujeitos

celebram em suas práticas culturais.

Em suma, o que Martin-Barbero chama de esmaecimento da memória é a

transformação das práticas culturais, e esta dinâmica vivida pelos grupos é lhes negada

no jornal e no discurso oficial do poder municipal. A transformação é vista apenas como

degradação, e não como mudança intrínseca, assim, a dinâmica da cultura é abortada do

entendimento, ou seja, o popular é tido como folclore (cultura estática): concepção

hegemônica e de senso comum.

A relação entre folclore, cultura popular e rural, popular e passado, popular e

simplicidade e/ou ingenuidade reproduz o senso comum hegemônico, e pode ser lido

como um dos modos de operação das políticas municipais e do discurso jornalístico.

Segundo Martin-Barbero, a cultura popular dentro do universo urbano acarreta a

elaboração de um mito que é a própria negação deste como cultura. Novamente,

estamos diante de uma construção hegemônica, de senso comum:

Trata-se de um mito tão forte que falar em popular automaticamente evoca o rural, o camponês. E seus traços de identificação: o natural e o simples, o que seria o irremediavelmente perdido ou superado pela cidade, entendida como o lugar do artificial e do complexo. E se acrescentarmos a essa visão a concepção fatalista com que hoje se encara a homogeneização promovida pela indústria cultural, dizer urbano é falar o antônimo do popular. Entretanto, as concepções pessimistas que chegam até esse ponto, sejam de esquerda ou de direita, conservam fortes laços de parentesco, às vezes vergonhosos, com aquela intelligentsia para a qual o popular sempre se identifica com o infantil, com o ingênuo, com aquilo que é cultural e politicamente imaturo.52

51 MARTIN-BARBERO, Jesús. Opus cit. p.265. Grifo do autor. 52 Idem. Opus cit. p.265. Grifo do autor.

104

Tal análise pode ser remetida como “pano de fundo” para a leitura das fontes da

Prefeitura Municipal de Uberlândia que trabalhamos, como o “Guia das Tradições

Populares”, donde a cultura popular é vista como fragmentos resistentes de outros

tempos dentro da cidade moderna, desumanizada, complexa e destruidora de memórias.

A imaturidade ou simplicidade dos grupos de Folias de Reis aparece nas falas da

Secretária de Cultura de Uberlândia presente nas fontes do jornal “Correio”, quando

incentiva as suas organizações como modo de resistência e persistência diante das

transformações sociais e culturais que podem sofrer. A ingenuidade dos grupos

pressupõe a necessidade de condução à organização de uma “Associação” para a sua

sobrevivência.

Para concluirmos este tópico resta a demonstração da análise folclórica no jornal

“Correio” como dispositivo de mediação, isto é, como elemento de compreensão da

cultura popular que reproduz a concepção hegemônica do senso comum sobre o

folclore. A idéia, aqui, é trazer à tona como as descrições da Folia de Reis remetem a

uma prática de análise formal não especializada, que fora remetida aos folcloristas

“profissionais” mas que, a nosso ver, é constituinte de uma compreensão da cultura

popular mais abrangente do que a “profissão” folclorista.53 O mote é a evidência de que

apenas a descrição dos elementos formais das manifestações da cultura popular

fragmentam a sua compreensão, trazendo a idéia de folclore como cultura estática

fundamentada num passsado distante.

São várias as fontes do jornal “Correio” que trabalham nesta perspectiva

descritiva. Traremos apenas uma, na íntegra, para que o texto não fique repetitivo, como

evidência da problemática que exploramos.

FOLIA DE REIS REALIZOU ONTEM A FESTA DOS TRÊS REIS MAGOS Festa tradicional da cultura popular, a Folia de Reis está representada em Uberlândia por 43 grupos de foliões que, em todos os anos, no período de 25 de maio a 25 de dezembro revivem juntamente com os devotos dos Santos Reis Magos o nascimento de Cristo. Esta festa, tradicional em vários pontos do país, é encerrada todos os anos no dia seis de janeiro (ontem) com a cerimônia de comemoração ao nascimento do menino Jesus. Cada grupo de Folia é formado de 9 a 15 componentes comandados por um capitão, encarregado de puxar a cantoria e elaborar os versos que são entoados pelos foliões. Para conquistar o respeito e a confiança de seus comandados, o capitão precisa ser hábil ao tocar seu instrumento, a viola, e criativo nas cantorias, puxadas por ele e repetidas pelos foliões. Se a música é um componente fundamental na Folia de Reis, os instrumentos musicais estão na mesma ordem de importância. No grupo, o capitão tem como instrumento a

53 Ver capítulo 1 desta dissertação.

105

viola enquanto que os foliões dividem os violões, cavaquinhos, caixas, chocoalhos e acordeons. A indumentária é simples e dá preferência às cores claras como o branco, o lilás e o verde-água. Como acessórios, as coroas e as fitas são indispensáveis e também, a toalha branca representando a pureza de Maria, mãe de Jesus. Preservado ao longo dos séculos, o ritual da Folia revive o nascimento de Cristo desde o momento da anunciação - quando Maria é avisada por um anjo que vai dar à luz ao filho de Deus -, a viagem dos três Reis Magos até o nascimento da criança. Retirados da Bíblia, os versos que contam essa história são repetidos pelos foliões em forma de música em vozes que vão do grave ao mais agudo. Para que a Folia de Reis continue viva é preciso que também sobreviva a devoção aos Santos reis. Um grupo de folia só realiza o ritual de sua crença quando solicitado por um devoto que quer pagar uma graça recebida ou presta uma homenagem aos santos. Durante o cumprimento de um voto o grupo sai “em viagem” pelas ruas para uma jornada que pode alcançar até nove dias. Nessa viagem que tem como ponto de partida a casa do penitente, os foliões visitam outros devotos e, outros penitentes. Em cada casa o grupo se apresenta; diz porque vem e dá o seu recado. A bandeira, que traz a imagem do menino Jesus, é adorada pelos devotos que pedem a sua proteção. Os donos da casa - quando podem - agradecem a presença dos foliões servindo um lanche e oferecendo doações para a festa de Santos Reis. A casa que é devota aos Santos é enfeitada com um altar, bandeirinhas, fitas coloridas e três arcos de bambus representando cada um dos três Reis Magos.54

Esta notícia pode ser vista como um roteiro (incompleto) da descrição do

processo ritual da Folia de Reis. O importante é que ela evidencia, quando confrontada

com as outras fontes, um padrão que é seguido.

Mesmo não trabalhando as origens da Folia de Reis, a abordagem folclorista fica

evidente a partir dos grifos que selecionamos. Vemos que a narrativa parte da idéia de

que a Folia é uma tradição da cultura popular, encontrada em várias partes do Brasil.

Depois, seguem-se as descrições típicas do “procedimento folclórico”: componentes do

grupo, função do capitão e versos, música e instrumentos musicais, a indumentária e

seus acessórios, religiosidade, Bíblia e cumprimento de promessas. Finaliza-se com a

apresentação dos grupos nas casas, a bandeira e a respectiva decoração destas casas de

devotos.

Este tipo de abordagem formal dos elementos constituintes da Folia de Reis é o

primeiro passo para a sua compreensão, mas a interpretação segue outras problemáticas.

Não defendemos que o jornal necessite trabalhar com uma interpretação mais rica da

Folia de Reis. O que demonstramos foi o modo pelo qual este tipo de descrição congela

a dinâmica da cultura popular no tempo, pois os elementos formais não se transformam.

O sentido da religiosidade, os vínculos de sociabilidade, os conflitos internos

dentro de um grupo de foliões, bem como a recepção que a comunidade ao qual

pertencem e a sociedade como um todo, são parte das questões que envolvem as

54 CORREIO DE UBERLÂNDIA. Uberlândia, 07-01-1990, p.A-9. Grifos nossos.

106

transformações deste tipo de manifestação da cultura popular, bem como o modo ao

qual seus sujeitos lêem o mundo que os cerca a partir de sua religiosidade, não apenas

no evento anual do ritual, mas também no cotidiano: no trabalho, na família e no lazer,

principalmente.

Se contrastarmos a leitura das fontes do jornal “Correio” e da Prefeitura com a

leitura de Martin-Barbero, sobre os significados das festas populares, veremos que a

dimensão afirmada por este é justamente a dimensão negada ou ofuscada pelos

primeiros. Segundo o autor, as festas da cultura popular devem ser compreendidas como

(...) espaço preciso de afirmação cultural. Ou seja, não tanto pela ruptura com a cotinianidade, e sim por sua apropriação transformadora: enquanto afirmação do comunitário. A festa é espaço de uma produção simbólica especial, na qual os rituais são o modo de apropriação de uma economia que lhes agride mas ainda não pôde suprimir nem substituir sua peculiar relação com o possível e o radicalmente diverso - que é o sentido da mediação que os objetos sagrados e os ritos efetuam entre memória e utopia.55 Assim, ao entendermos as notícias do jornal “Correio de Uberlândia” e as fontes

advindas da Prefeitura Municipal de Uberlândia como dispositivos de mediação da

concepção hegemônica de folclore e cultura popular reproduzidos na sociedade a partir

do senso comum, das idéias formalizadas sobre eles, descortinamos as maneiras e

significados de como o popular é retratado, negado. Sugerimos que ocorre um conflito

de identidades, entre aquela que tende a ser imposta, hegemonicamente, e aquela que é

construída internamente, e se move dentro dos caminhos desta hegemonia.

A identidade cultural e local confere o ar de homogeneidade e ausência de

conflitos sociais na cultura popular, reprodutora de um passado destruído e conservado

em fragmentos, portanto, anacrônica na sua leitura do mundo. Também rural, simples e

ingênua. Ao mesmo tempo, as políticas públicas em que os seus sujeitos participam

sugerem o olhar externo do lazer e do turismo, mediante a diferença com a modernidade

urbana, isto é, com o mundo contemporâneo.

É a este processo e olhar que denominamos de negação da cultura popular, e

exclusão destas pessoas à sociedade ao qual pertencem.

55 MARTIN-BARBERO, Jesús. Opus cit. p.264.