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CAPÍTULO 11 O PROCESSO DE SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES 1 PEDRO CEZAR DUTRA FONSECA 2 A CONTROVÉRSIA SOBRE AS ORIGENS DA SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES Um dos traços mais marcantes da economia brasileira a partir de 1930 é a expressiva expansão do seu setor industrial. Este, principalmente após 1933, começou a liderar as taxas de crescimento da renda e do emprego, ao mesmo tempo que as culturas de exportação sofriam os revezes da crise internacional. A crise da agroexportação criava condições para que a economia se direcionasse preponderantemente ao mercado interno, o que contou com a política econômica governamental a seu favor. Iniciou-se, assim, um período de aproximadamente cinco décadas — que duraria até o final da década de 1970, com a conclusão dos investimentos do II PND, do governo Geisel — que é conhecido como processo de substituição de importações PSI. A Crise dos Anos 1930 como Impulso ao Processo 1 Capítulo publicado no Livro “Formação Econômica do Brasil” / Organizadores: José Márcio Rego e Rosa Maria Marques. São Paulo: Saraiva, 2003. Agradeço a Jaciara Irazoqui pelo trabalho qualificado de digitação e correções formais deste capítulo, bem como a Maria Aparecida Grendene de Souza pelas sugestões. 2 Professor titular do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pesquisador do CNPq.

capitulo11 (1)

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  • CAPTULO 11

    O PROCESSO DE SUBSTITUIO DE IMPORTAES1

    PEDRO CEZAR DUTRA FONSECA2

    A CONTROVRSIA SOBRE AS ORIGENS DA SUBSTITUIO DE

    IMPORTAES

    Um dos traos mais marcantes da economia brasileira a partir de 1930 a

    expressiva expanso do seu setor industrial. Este, principalmente aps 1933, comeou a

    liderar as taxas de crescimento da renda e do emprego, ao mesmo tempo que as culturas

    de exportao sofriam os revezes da crise internacional. A crise da agroexportao criava

    condies para que a economia se direcionasse preponderantemente ao mercado interno, o

    que contou com a poltica econmica governamental a seu favor. Iniciou-se, assim, um

    perodo de aproximadamente cinco dcadas que duraria at o final da dcada de 1970,

    com a concluso dos investimentos do II PND, do governo Geisel que conhecido

    como processo de substituio de importaes PSI.

    A Crise dos Anos 1930 como Impulso ao Processo

    1 Captulo publicado no Livro Formao Econmica do Brasil / Organizadores: Jos Mrcio Rego e

    Rosa Maria Marques. So Paulo: Saraiva, 2003. Agradeo a Jaciara Irazoqui pelo trabalho qualificado de digitao e

    correes formais deste captulo, bem como a Maria Aparecida Grendene de Souza pelas sugestes.

    2 Professor titular do Departamento de Cincias Econmicas da Universidade Federal do Rio Grande do

    Sul e Pesquisador do CNPq.

  • 2

    Embora a origem da indstria brasileira remonte s ltimas dcadas do sculo XIX,

    tendo continuidade ao longo da Repblica Velha, foi na dcada de 1930 que o

    crescimento industrial ganhou impulso e passou por certa diversificao, iniciando

    efetivamente o Processo de Substituio de Importaes PSI. Convm salientar, portanto,

    que entende-se por substituio de importaes simplesmente o fato de o pas comear a

    produzir internamente o que antes importava, o que ocorrera no Brasil com certa

    expresso na Repblica Velha. O que usualmente denomina-se PSI, todavia, supe mais

    que isto: que a liderana do crescimento econmico repouse no setor industrial, que este

    seja responsvel pela dinmica da economia, ou seja, que crescentemente seja responsvel

    pela determinao dos nveis de renda e de emprego. Assim, se na Repblica Velha o

    setor industrial crescia induzido pelo crescimento e pela diversificao do setor

    exportador, a partir de meados da dcada de 1930 a economia retomou o crescimento do

    produto a despeito da crise do setor exportador, sob a liderana dos setores voltados ao

    mercado interno.

    A tese segundo a qual a industrializao dos pases latino-americanos vincula-se s

    crises da agroexportao atribuda aos economistas da CEPAL3, principalmente a Celso

    Furtado e Ral Prebisch, e vulgarmente conhecida como teoria dos choques adversos.

    Esta, em sua verso mais simplificada, argumenta que as crises das atividades

    exportadoras criavam condies para que a economia se voltasse ao mercado interno, sob

    a liderana do setor industrial, por vrias razes:

    a) a crise incide diretamente sobre o balano de pagamentos, encarecendo as

    importaes e diminuindo a demanda de exportaes, deteriorando o preo dos bens

    exportveis no mercado internacional e dificultando o acesso a capitais e emprstimos

    3 A Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe uma das cinco Comisses Regionais das Naes Unidas, criada pela resoluo 106 (VI) pelo Conselho Econmico e Social, em 25 de fevereiro de 1948 com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento da Amrica Latina, coordenar as aes para a sua promoo e reforar as relaes econmicas de seus estados-membros com as demais naes do mundo.

  • 3

    para financiar os dficits em conta corrente. Este contexto leva os governos normalmente

    a recorrerem a desvalorizaes da moeda nacional, o que contribui para encarecer as

    importaes, criando um mercado interno indstria nacional, ou seja, h uma mudana

    de preos relativos favorvel produo domstica;

    b) a crise, ensejando a contrao da arrecadao de impostos, incita os governos a

    adotarem polticas monetrias expansivas para cobrir dficits oramentrios. A

    dificuldade de contrair gastos no mesmo montante da queda de impostos efetiva-se

    inclusive por razes polticas, j que as crises so normalmente acompanhadas pelo

    crescimento do descontentamento e aumento das presses de diversos segmentos sociais,

    inclusive por crdito, por parte dos setores empresarias mais afetados. A poltica

    monetria expansiva contribui para baixar as taxas de juros, favorecendo os setores

    voltados ao mercado interno, incentivando o investimento e a ampliao da produo

    domstica;

    c) a crise, ao estreitar a arrecadao de impostos e simultaneamente ocasionar

    dficits na balana comercial, cria condies para que os governos majorem as tarifas

    sobre os importados, contribuindo, em decorrncia, para alterar os preos relativos em

    favor da produo nacional.

    Evidencia-se, portanto, que a crise da agroexportao induz ao crescimento

    industrial por forar o governo a adotar polticas voltadas a resolver problemas em seu

    prprio mbito, como os dficits pblico e do balano de pagamentos. Para tanto, atua em

    variveis bsicas, como as taxas de cmbio, de juros e de impostos, contribuindo para

    incentivar a industrializao. Neste caso, a teoria dos choques adversos no restrita to

    somente idia de que a crise da agroexportao favoreceu, por si s, o crescimento

    industrial. A mesma s comea a dar conta do incio do PSI quando se tem presente que,

    crise estrutural da agroexportao, denunciada pelo mercado, somaram-se polticas

    econmicas capazes de, associadamente, empolgarem uma ampla reorientao da

    economia.

    No caso brasileiro, algumas peculiaridades ajudam a reforar esta associao

  • 4

    Mercado/Estado para imprimir novo direcionamento economia. Entre as quais,

    destacam-se:

    a) do lado do mercado, cabe destacar no s o crescimento e a razovel

    diversificao da produo industrial ocorrida na Repblica Velha, ainda no seio da

    economia cafeeira, que j manifestava tendncia a crises cada vez mais freqentes e

    duradouras. Tratava-se de uma crise estrutural, de longo prazo, pois desde o incio do

    sculo XX esta cultura precisava de medidas intervencionistas para garantir a

    lucratividade do setor, por exemplo, o Convnio de Taubat, de 1906, que consagrava o

    intervencionismo no mercado do caf, as caixas de converso e de estabilizao, sem

    contar as desvalorizaes cambiais recorrentes. As baixas elasticidade-preo e

    elasticidade-renda do caf, associadas expanso desenfreada da oferta criavam uma

    situao insustentvel a longo prazo. Nas palavras clssicas de Celso Furtado, ao se

    prevalecerem desta situao semimonopolstica para defenderem os preos, estavam eles

    destruindo as bases em que se assentar o seu privilgio4;

    b) j do lado do governo, preciso destacar que no Brasil, durante a Repblica

    Velha, consagrara-se a frmula do federalismo fiscal. Esta, associada a um

    presidencialismo que repousava em grande parte no controle do voto pelos governadores

    dos estados, significava, em matria de tributao, que os impostos de exportao ficavam

    a cargo dos estados, enquanto cabia ao governo federal os impostos sobre importao.

    Isso foi praticamente uma exigncia paulista por ocasio da proclamao da repblica e

    resultava num alto grau de autonomia s oligarquias mais fortes frente ao governo federal;

    ao mesmo tempo que, atrelando as receitas deste ao desempenho das importaes,

    atrelava-as indiretamente ao prprio desempenho do setor exportador.

    Dessa forma, a crise no balano de pagamentos tornava-se, ao mesmo tempo, uma

    crise nas finanas pblicas. A desvalorizao cambial, a expanso monetria e as tarifas

    alfandegrias eram respostas do governo federal deteriorao de suas finanas, o que

    4 FURTADO. C. Op. cit., p. 183.

  • 5

    induz a crer que, pela teoria dos choques adversos, a industrializao no se constitua em

    propriamente uma opo, ou fruto de uma conscincia poltica explcita de um grupo

    dirigente vinculado aos interesses industriais, mas decorrncia no planejada da forma

    com que as crises eram enfrentadas. As crises da agroexportao j se verificavam antes

    de 1930; mas fora justamente a desencadeada nesta dcada que, por sua magnitude e

    profundidade, foi capaz de redirecionar definitivamente a economia. Nas palavras de

    Prebisch:

    A grande depresso mundial marca definitivamente o fim desta forma de desenvolvimento (...). Ante a impossibilidade de manter o ritmo anterior de crescimento das exportaes tradicionais, ou de o acelerar, impe-se ento a substituio de importaes principalmente das indstrias para contrabalanar essas disparidades, e inicia-se assim o desenvolvimento para dentro dos pases latino-americanos5.

    Essas so tambm as linhas gerais da clssica interpretao de Celso Furtado nos

    captulos 30 a 33 do livro Formao Econmica do Brasil. Segundo esta, o governo

    federal, ao comprar o excesso de caf decorrente da crise, agiu de forma que os preos do

    produto se sustentassem, no permitindo que cassem tanto quanto cairiam caso no

    houvesse essa interveno. Assim, o governo teria optado por uma poltica de expanso

    creditcia para fazer frente crise, em vez de implementar um programa de austeridade

    nos moldes ortodoxos. Como conseqncia, fazia uma poltica de cunho keynesiano de

    sustentao da demanda agregada e do emprego, no s na cultura cafeeira, mas, pelo

    efeito multiplicador, em todo o complexo econmico que crescera em sua volta.

    Para implementar esta poltica expansiva em contexto de crise, o governo no

    poderia contar com emprstimos externos. Da resultava uma conseqncia indesejada, j

    que a expanso creditcia, ao manter relativamente o nvel de renda nominal, mantinha o

    nvel de importaes enquanto as exportaes passavam por forte contrao. Assim, a

    poltica expansiva acabava por repor o estrangulamento externo, forando a

    desvalorizao do mil-ris, alterando os preos relativos entre os bens importados e os da

    5 PREBISCH. Op. cit., p. 86.

  • 6

    produo domstica. Criava-se, portanto, uma situao praticamente nova na economia

    brasileira, que era a preponderncia do setor ligado ao mercado interno no processo de

    formao de capital6. Abria-se espao, assim, para o rompimento com a Antiga Diviso

    Internacional do Trabalho (ADIT), que reserva aos pases perifricos, na linguagem da

    CEPAL, o papel de fornecedores de alimentos e matrias-primas agrcolas aos pases

    centrais.

    Os Limites da Crise para Explicar a Industrializao

    Apesar da argumentao convincente das teses que defendem as crises e o

    estrangulamento externo como fatores desencadeadores do PSI verificado a partir de

    1930, vrias crticas surgiram enfocando seus fundamentos, inclusive com alternativas de

    interpretao. Boa parte destas explora a radicalidade simplificadora da dicotomia

    cepalina economia agroexportadora versus substituio de importaes , que tem

    1930 como marco divisrio. Inicialmente explicitada de forma incisiva por C. M. Pelez,

    posteriormente foi enriquecida com outros argumentos e parcialmente aceita pelos

    economistas cepalinos.

    Para embasar suas crticas teoria dos choques adversos, um procedimento

    metodolgico desta abordagem crtica consiste em no s mostrar que a indstria j

    existia e tinha relativa importncia antes de 1930, bem como negligenciar o crescimento

    industrial posterior a esse ano. Assim, perde sentido entender-se a substituio de

    importaes como um processo iniciado em 1930, quando a indstria transforma-se em

    centro dinmico da economia: ao contrrio, o PSI visto como um processo lento e

    gradual, originado no seio da economia agroexportadora e em decorrncia de seu

    crescimento e diversificao.

    6 FURTADO. Op. cit., p. 197.

  • 7

    Essas teses podem, com certa licenciosidade, serem denominadas como

    industrializao induzida pelas exportaes. Em uma verso mais simplificada, elas

    advogam que o efeito renda das exportaes de caf, com a gerao de riqueza, capital,

    mercado e infra-estrutura estradas de ferro, portos, eletrificao e economia urbana em

    geral , criava condies para a industrializao, associando-a prpria necessidade de

    diversificao da riqueza, principalmente do comrcio importador e exportador, um dos

    setores de maior lucratividade no contexto da agroexportao. Em verses mais

    sofisticadas, mostram que a revoluo burguesa brasileira, para usar a expresso de

    Florestan Fernandes, j estava em processo bastante adiantado no alvorecer do sculo XX,

    aps contornar as principais barreiras que se antepunham a seu desenvolvimento, como a

    escravido, em termos econmicos, e a monarquia que lhe assegurava sustentao

    poltica. Em adio, cabe mencionar que vrios estudos mais recentes tm mostrado a

    complexidade social das primeiras dcadas do sculo XX, inclusive com movimentos

    sociais urbanos de vulto, como as greves de 1917, de alcance nacional, os quais seriam

    inconcebveis numa economia estritamente agrria.

    Quanto poltica econmica da dcada de 1930, Pelez procurou contestar Furtado

    no que tange s medidas que anteciparam a teoria keynesiana, voltadas sustentao de

    gastos pblicos como poltica anticclica. Furtado havia argumentado que se havia

    praticado no Brasil, inconscientemente, uma poltica anticclica de maior amplitude que

    a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos pases industrializados7. Mas esta

    anlise sustentava-se na expanso monetria e creditcia como alternativa heterodoxa de

    financiamento, j que aumentava o dficit em plena crise, violando o preceito clssico das

    finanas sadias.

    Pelez, entretanto, procurou evidenciar que foi principalmente recorrendo a novos

    tributos sobre o caf, e no ao crdito, que o governo financiara sua poltica. Assim, a

    soluo foi buscada dentro do prprio setor cafeeiro. J em fevereiro de 1931, o governo

    7 FURTADO. Op. cit., p. 192.

  • 8

    federal comprou parte do caf estocado e o retirou temporariamente do mercado, tendo o

    Estado de So Paulo contribudo com parte do pagamento. A seguir, criavam-se vrios

    outros impostos sobre o caf, numa clara inteno de conter a oferta.

    Outros autores, posteriormente, procuraram melhor precisar este debate sobre as

    fontes de financiamento da poltica de defesa do caf. Fishlow, por exemplo, procurando

    certa eqidistncia entre Furtado e Pelez, argumentou que tal sustentao fora possvel

    devido inelasticidade da demanda do caf no mercado internacional, a qual permitiu que

    parte significativa destes novos impostos fosse repassada aos consumidores estrangeiros.

    Simo Silber, por sua vez, concluiu que mais de 50% das compras do Conselho Nacional

    do Caf no perodo 1931-1934 foram financiadas por crdito, o que ajuda avalizar a tese

    central de Furtado8.

    Mas ainda h outro tipo de crtica no menos importante teoria dos choques

    adversos que, indo alm da poltica econmica governamental, questiona a origem do

    capital industrial e do mercado de trabalho. A pergunta clara: se verdade que a

    substituio de importao teve lugar nas crises do modelo agroexportador, mais

    especificamente na maior de suas crises, a da dcada de 1930, qual a origem dos bens de

    capital? O estrangulamento externo e a desvalorizao cambial inerentes s crises, ao

    mesmo tempo que atuavam em benefcio da produo industrial de bens de consumo,

    encareciam os bens de capital e intermedirios necessrios para que esta mesma produo

    se efetivasse.

    O governo brasileiro, na dcada de 1930, de fato utilizou mecanismos de incentivo

    indstria nascente. Cita-se, por exemplo, a criao em 1937 da Carteira de Crdito

    Agrcola e Industrial do Banco do Brasil, a qual, na ausncia de bancos de fomento,

    iniciava oficialmente o que o Estado s de forma pontual fizera na Repblica Velha: o

    financiamento de capital fixo e de giro indstria. Menciona-se, ainda, que em 1935 o

    8 VERSIANI, F. e BARROS, J. R. M. de, (orgs.). Op. cit., p. 173-207.

  • 9

    governo brasileiro assinou tratado de comrcio com os Estados Unidos, o qual estabelecia

    vantagens a alguns produtos de exportao brasileiros caf, borracha e cacau em

    troca de redues de 20% a 60% na compra de artigos industriais norte-americanos, como

    mquinas, aparelhos e aos. Se, primeira vista, pode parecer uma reproduo da diviso

    internacional do trabalho tradicional, com o pas perifrico buscando mercado para seus

    produtos agrcolas, na verdade d para se notar j uma mudana: o pas, alm disso,

    procurava facilitar no a importao de bens de consumo, mas de bens de capital e

    insumos necessrios para promover a industrializao. No pode ser considerado,

    portanto, um acordo que visava reproduzir in totum a ADIT, constituindo-se em ato que

    permite detectar uma nova postura do governo brasileiro.

    Mas a resposta bsica sobre a origem destas mquinas e equipamentos vincula-se

    ao entendimento de que, j existindo indstrias no Brasil antes de 1930, no se precisava

    necessariamente import-las com urgncia, pelo menos nos primeiros anos da Grande

    Depresso, at a utilizao plena da capacidade instalada. Assim, pondera Versiani,

    analisando o caso da indstria txtil algodoeira, um dos setores mais importantes poca,

    muitas mquinas j tidas como obsoletas voltaram a operar na dcada de 1930, pois a

    crise, encarecendo as importaes, garantia uma reserva de mercado ao produtor local,

    viabilizando altos custos de produo e preos impensveis na poca do mil-ris

    valorizado. Neste sentido, as flutuaes do cmbio, inerentes instabilidade de uma

    economia agroexportadora, como a cafeeira da Repblica Velha, possibilitavam que, nos

    momentos de mil-ris valorizados, houvesse facilidade s importaes de bens de capital,

    enquanto nos perodos de desvalorizao cambial crescesse a produo de bens de

    consumo domstico. Por isso, boa parte do empresariado nascente teve sua matriz no

    comrcio importador/exportador, com experincia no s por seu conhecimento do

    mercado consumidor como dos mercados fornecedores externos, alm da familiaridade

    com as oscilaes e peculiaridades do mercado cambial. Cabe ainda assinalar, com base

    em Versiani, que a crise no necessariamente crise para todos: os produtores com menor

    custo de produo beneficiam-se na concorrncia e lhes assegurada taxa de lucro

  • 10

    compensadora, principalmente com a falncia e a expulso do mercado dos produtores

    marginais. Os que esto frente deste processo certamente conseguem acesso

    importao de mquinas e equipamentos, inclusive porque a crise, sendo internacional,

    desvaloriza o preo dos bens de capital, muitas vezes mais que compensando o efeito

    altista do mil-ris desvalorizado9.

    Esse tipo de abordagem certamente supera a dicotomia teoria dos choques

    adversos versus industrializao induzida pelas exportaes, pois mostra que ambas

    podem ser associadas para uma explicao mais acabada das fases iniciais do PSI.

    Mas, alm dessas abordagens que apontam para uma relao mais complexa entre

    a agroexportao e o PSI, chamando ateno para variveis tidas como de natureza

    estritamente econmicas, como a infra-estrutura gerada (portos, estradas de ferro,

    eletrificao), a expanso da economia urbana e do mercado, bem como os ciclos e as

    crises , h outras que, em confluncia com abordagens sociolgicas e antropolgicas,

    chamam ateno para aspectos no menos importantes, s vezes, decisivos para se ter

    uma viso mais acurada do processo histrico.

    Cabe indagar, como questionamento: como as grandes crises, como a iniciada em

    1929, so internacionais, por que estas incitaram a industrializao em alguns pases

    como Brasil, Argentina e Mxico, e no em outros pases da Amrica Latina? Por que o

    Brasil superou positivamente a crise, aproveitando esta oportunidade histrica para

    alterar seu modelo de crescimento, enquanto outros no tiveram outro caminho seno o da

    regresso?

    Para responder a essas questes fica desde o incio estabelecido que no bastam

    nem o estrangulamento externo nem as crises: preciso que os pases possuam certas pr-

    condies para que as crises sejam superadas voltando-se ao mercado interno e

    industrializao, criando condies ao PSI. Neste aspecto, a riqueza, o capital e o

    mercado interno criados pela economia cafeeira, aproveitando-se da situao quase de

    9 Ibid. p. 138-142.

  • 11

    monoplio do Brasil no mercado internacional nas primeiras dcadas do sculo XX,

    tornam-se indispensveis para explicar as possibilidades, quase sem paralelo na Amrica

    Latina, para que, no aprofundamento da crise, o pas tivesse a alternativa concreta de

    voltar-se produo industrial substitutiva de importaes para atender o mercado

    interno. Outro exemplo que se pode lembrar o da Argentina, com a vantagem da

    especializao em duas mercadorias mais nobres: a carne e o trigo.

    Mais que isto: o crescimento e a expanso da economia cafeeira deu lugar ao

    aparecimento de novos agentes, segmentos e classes sociais, sem os quais dificultaria ou

    inviabilizaria uma reorientao da economia to profunda em to curto perodo de

    tempo10.

    Em primeiro lugar, a agroexportao de caf, com todas as atividades que em torno

    dela se expandiram, caracterizando um processo de desenvolvimento capitalista, ensejou

    o aparecimento de empresrios. Neste aspecto, vale ter presente que no basta que a renda

    esteja concentrada em mos de um segmento social ou de uma classe para haver

    industrializao: preciso que estes homens, como agentes individuais, estejam dispostos

    a investir, ou seja, aplicar esta renda monetria para reproduzi-la e expandi-la, ou seja,

    investir seu capital, tendo como lgica definidora sua prpria expanso, por meio do

    lucro.

    A economia cafeeira paulista desde cedo, j pela metade do sculo XIX, difundira

    o trabalho assalariado, em contraste com a antiga cafeicultura de base escravista, dos

    bares do caf do Vale do Paraba (RJ). Assim, ao contrrio do clssico modelo europeu

    em que o capitalismo em seu nascedouro associou-se s atividades urbanas, contrastando

    com o campo feudal, no Brasil as atividades propriamente capitalistas, com base na busca

    do lucro e no trabalho assalariado, tiveram por epicentro uma atividade primria de

    exportao. Nesta surgiu um grupo de homens que, ao longo do tempo, expandiu seus

    capitais s atividades urbanas, muitas vezes no como produtores diretos, mas como

    10 COHN.G. Op. cit., p. 285-98.

  • 12

    acionistas de firmas comerciais, de bancos e de empresas industriais, embora parte

    significativa dos empresrios industriais, pelos estudos realizados at agora, tenha sua

    origem vinculada mais diretamente ao comrcio importador/exportador. Warren Dean

    defendeu que neste burgus imigrante que j veio da Europa com algum capital e,

    desta forma, no se confunde com a massa dos imigrantes que veio para ser mo-de-obra

    das fazendas de caf ou pequenos proprietrios de terra do Rio Grande do Sul , que se

    encontra a matriz da burguesia industrial. Mas convm destacar que estes imigrantes em

    boa parte enriqueceram no comrcio importador/exportador, de maneira que nesta

    atividade, exercida j no Brasil, em que o capital expandiu-se e houve a necessidade de

    diversific-lo11.

    A imigrao, no entanto, colaborou para que pudesse se configurar plenamente um

    processo de substituio de importaes no Brasil no s pelo lado do capital, mas

    tambm do trabalho, ao trazer grande massa de homens desprovidos de propriedade, aptos

    e dispostos ao trabalho assalariado. H de assinalar a dificuldade para que a massa de

    escravos ou dos brancos pobres da sociedade escravista se constitusse em mercado de

    trabalho, portando-se como homens livres em busca de um emprego em troca de salrio.

    Nas palavras de Cardoso de Mello12: H homens, mas o mercado de trabalho est vazio,

    porque os homens, em quantidade superabundante, no podem ser submetidos pelo

    capital. Embora documentos mostrem negros trabalhando em fbricas tanto em So

    Paulo como no Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, a maioria expressiva era branca e

    com destaque para sobrenomes italianos e alemes, especialmente nos dois primeiros

    Estados.

    A transformao do escravo em assalariado industrial, embora possvel, encontrava

    obstculo tanto no preconceito do empresrio que atribua em boa medida os problemas

    11 SILVA.Srgio. Op. cit., p. 94-96.

    12 MELLO, J. M. Cardoso de. Op. cit., p. 77.

  • 13

    scioeconmicos decorrentes da crise do escravismo origem biolgico-racial, bem como

    na dificuldade de os escravos, principalmente os do campo, sujeitarem-se disciplina

    rgida do trabalho de uma fbrica.

    A economia cafeeira, dessa forma, por meio da imigrao e de sua prpria

    expanso, resultante de seu efeito multiplicador nas atividades urbanas, foi capaz de gerar

    agentes e novos segmentos sociais indispensveis a um efetivo processo de

    industrializao.

    A SUBSTITUIO DE IMPORTAES COMO MODELO DE

    INDUSTRIALIZAO

    O Estrangulamento Externo como Varivel Propulsora

    Quando se analisa a substituio de importaes como um processo, est-se

    chamando ateno para um fenmeno histrico bem determinado, ocorrido no tempo e no

    espao por exemplo, no Brasil, no sculo XX sujeito a avanos, recuos e crises,

    circundado por motivaes polticas e decises humanas, governamentais ou de mercado.

    Mas o mesmo fenmeno pode ser analisado como modelo, em suas determinaes mais

    gerais e abstratas, procurando reter o essencial de sua configurao e apreendendo suas

    caractersticas definidoras bsicas, para tentar entender sua lgica de desenvolvimento,

    sua dinmica. Neste caso, o modelo, sendo construdo com alto grau de abstrao, capaz

    de abarcar vrias situaes histricas distintas e servir como alicerce para o entendimento

    do PSI em qualquer pas latino-americano, ou mesmo em outras partes do mundo que

    tenham se industrializado pela via da substituio de importaes. Claro que o modelo

    pouco tem a contribuir para a explicao de pases que se industrializaram, mesmo

    tardiamente, no sculo XX, mas no propriamente substituindo exportaes, mas

  • 14

    voltando-se a mercados externos, como os chamados tigres asiticos.

    Dessa forma, a anlise da substituio de importaes como modelo no d conta

    da explicao mais acabada de por que e de que forma o Brasil se industrializou ao longo

    do sculo XX, mas ajuda a entender determinados marcos essenciais para uma posterior

    investigao mais complexa, quando, a sim, vm tona as particularidades de cada pas,

    a correlao das foras polticas pr e contra a industrializao, o tipo de economia

    agrria do qual partiu, o tamanho do mercado interno e a qualificao da mo-de-obra,

    entre outros fatores.

    A anlise da substituio de importaes como modelo foi realizada

    principalmente pelos economistas cepalinos, como Ral Prebisch, Celso Furtado, Anbal

    Pinto e Maria da Conceio Tavares, nas dcadas de 1950 e 1960. Mesmo que vrios

    estudos posteriores tenham aperfeioado e criticado estes autores, suas anlises

    consagraram-se como ponto de partida imprescindvel para o debate. Este o caso do

    trabalho Auge e Declnio do Processo de Substituio de Importaes no Brasil divulgado

    inicialmente em 1963 por Tavares, depois publicado na coletnea da autora de 1972, Da

    Substituio de importaes ao capitalismo financeiro, o qual se tornou clssico por

    representar a mais bem elaborada e profunda sntese do pensamento cepalino sobre o

    tema e que tem a particularidade de ser, posteriormente, objeto de crtica da prpria

    autora, como se ver mais adiante.

    O ponto de partida definidor destas anlises consiste em entender a substituio de

    importaes como resposta ao estrangulamento externo, a vulgarmente denominada teoria

    dos choques adversos. As crises da agroexportao, incidindo em cheio sobre a balana

    comercial, traziam tona as contradies de uma economia que, embora, voltada para

    fora, no conseguia gerar divisas para manter sua pauta de importaes e pagar o servio

    de sua dvida externa. Mesmo abordando este lado financeiro do problema, os

    economistas cepalinos centravam suas anlises sobre o estrangulamento externo no lado

    real da economia, enfatizando os problemas estruturais que acabavam se manifestando na

    balana comercial, com conseqncias negativas que se alastravam para o conjunto da

  • 15

    economia. Por exemplo: as dificuldades da balana comercial associava-se estrutura da

    pauta de exportaes, centrada em um ou dois produtos primrios, que por sua vez eram

    produzidos de forma extensiva, com baixa produtividade, em grandes propriedades

    improdutivas. Assim, a estrutura agrria ajudava a explicar a pouca dinamicidade das

    exportaes e as dificuldades no balano de pagamentos.

    Mas por que as economias latino-americanas, nas primeiras dcadas do sculo XX,

    sofriam com problemas de balana comercial, mesmo que voltadas para fora? Para

    responder a essa pergunta, preciso ter presente que os economistas cepalinos tinham em

    mente um modelo de economia mundial bipolarizado os pases centrais,

    industrializados e desenvolvidos, lderes no desenvolvimento tecnolgico, e os pases

    perifricos, agrcolas, atrasados e subdesenvolvidos. No modelo agroexportador, essa

    dualidade manifestava-se internamente ao se constatar nas economias perifricas um setor

    exportador com vnculos ao exterior, ligado umbilicalmente aos pases centrais, mas que

    no imprimia nenhum ou pouco dinamismo economia interna13, que convivia com um

    setor de subsistncia produzindo basicamente alimentos para o mercado domstico,

    normalmente com tecnologia bastante rudimentar e com baixa produtividade.

    As diferenas estruturais das exportaes e importaes dos pases centrais e

    perifricos ajudam a evidenciar por que estes ltimos ocupavam um lugar subordinado na

    diviso internacional do trabalho.

    Quanto s exportaes, preciso notar que as economias centrais so tambm

    exportadoras, inclusive lderes mundiais em diversos itens. O problema, portanto, no

    13 Note que essa interpretao vai ao encontro da teoria dos choques adversos e negligencia completamente a importncia da economia cafeeira para o processo de industrializao do Brasil. Certamente isto no se verificou com o caf paulista, mas pode ser verdade para outros pases latino-americanos, nas economias de enclave, em que as atividades exportadoras pouca irradiao causavam no sistema produtivo interno. Tambm pode ser o caso de estados nordestinos, como Pernambuco, em que a economia canavieira foi incapaz, por diversas motivaes histricas, de induzir a um processo de industrializao mais amplo; ou mesmo da borracha da Amaznia, no incio do sculo XX.

  • 16

    reside na atividade exportadora em si, mas no que se exporta e na forma com que estas

    atividades se inserem no conjunto da economia, que efeitos so capazes de desencadear

    no conjunto do sistema econmico. Ora, nos pases centrais as exportaes so

    importantes mas no determinam o nvel de renda e de emprego quase exclusivamente,

    como nas economias perifricas, pois nelas o investimento privado ou pblico I e G,

    na equao da demanda agregada so, tal qual as exportaes (X), imprescindveis

    para explicar o crescimento de longo prazo daqueles pases. Isto porque os pases centrais

    so lderes na inovao e na difuso de tecnologia: no fundo, este dinamismo

    tecnolgico e os ganhos de produtividade dele decorrentes que determinam sua liderana

    econmica internacional, o que se reflete tanto na sua produo interna como para

    exportao. Nos pases centrais no h o dualismo antes mencionado, j que a produo

    para o mercado interno no substancialmente diferente da do mercado externo; esta no

    uma especializao, mas um desdobramento natural do progresso tecnolgico dos

    pases lderes. Nestes no se pode distinguir um setor exportador quase parte da

    economia interna, como nos pases perifricos.

    Tais condies contrastam com as exportaes dos pases perifricos, que,

    centradas geralmente em um ou dois produtos, pouco irradiam seu dinamismo

    internamente. Por isso, a dualidade da diviso internacional do trabalho reproduz-se

    internamente, pois se configuram dois setores, um exportador e outro de subsistncia, um

    voltado para o exterior e outro para o mercado interno, com pouca ou nenhuma interao

    entre ambos.

    Mas as importaes dos pases centrais tambm contrastam com as dos perifricos.

    Os primeiros importam basicamente produtos primrios e matrias-primas, enquanto os

    segundos buscam no exterior bens de consumo industriais, bens de capital e

    intermedirios. Esse perfil de comrcio exterior ensejou a mais famosa tese cepalina, a da

    deteriorao dos termos de intercmbio. Segundo essa tese, o comrcio internacional

    prejudicava os pases especializados na exportao de produtos primrios nas relaes de

    troca com os pases industriais, pois os preos relativos dos produtos primrios no s

  • 17

    caam mais nas crises que os da indstria, como havia uma tendncia de longo prazo ao

    barateamento relativo deles. Os pases perifricos, portanto, apresentavam capacidade de

    importar declinante o que ajuda a explicar o recorrente estrangulamento externo das

    economias latino-americanas.

    CAPACIDADE DE IMPORTAR = Qx . Px,

    Pm

    Sendo: Qx = quantidade exportada

    Px = preo mdio das exportaes

    Pm = preo mdio das importaes

    Fica visvel que, caso os preos relativos dos produtos exportados no se alterarem com

    relao aos importados, a capacidade de importar varia diretamente com a quantidade exportada. Entretanto, se os

    preos dos importados crescerem mais rapidamente que os exportados, as quantidades exportadas devem ser

    aumentadas para manter a mesma capacidade de importar. Assim, cada vez precisa-se vender mais produtos

    primrios para comprar do exterior os mesmos produtos industriais. Esta a tese da deteriorao dos termos de

    intercmbio, antiga na literatura econmica, pois j defendida pelo alemo List, no sculo XIX, e que teve em

    Prebisch seu maior defensor no contexto latino-americano das dcadas de 1950 e 1960, tornando-se marca do

    pensamento cepalino.

    A mensagem cepalina era clara: o modelo agroexportador condenava os pases

    latino-americanos estagnao e ao subdesenvolvimento. Era suas crises (os choques

    adversos) que possibilitavam romper com o modelo, pois o estrangulamento externo

    forava o pas comear a produzir internamente os bens anteriormente importados. Assim,

  • 18

    a incapacidade de manter o fluxo de importao de produtos industriais dava ensejo a uma

    mudana de modelo, e da ter incio um processo de substituio de importaes, mesmo

    que isto no se desse por deliberao intencional dos governos latino-americanos, os

    quais, em geral, eram vistos como mais prximos dos interesses das oligarquias agrrias

    que dos setores industriais e urbanos.

    O estrangulamento externo tornava-se, portanto, o principal fator desencadeador da

    substituio de importaes. Para Prebisch, mais ainda, consistia na prpria razo de ser

    da industrializao; tanto que, se fosse resolvido, no haveria por que insistir com a

    necessidade de mudana de modelo:

    Com efeito, se um pas em desenvolvimento, graas expanso dos seus mercados exteriores, consegue dar s suas exportaes um ritmo similar ao da sua procura de importaes, ter corrigido as disparidades do seu intercmbio, e no necessitar de continuar com a poltica substitutiva de importaes14.

    O estrangulamento externo pode ser absoluto ou relativo. absoluto quando a

    capacidade de importar estagnada ou declinante, como acontece nas crises. E relativo

    quando a capacidade de importar cresce, mas em ritmo inferior ao da renda, uma

    tendncia de longo prazo das economias especializadas na exportao de produtos

    primrios. Esta diferena no apenas formal: se o estrangulamento externo for absoluto

    pode inviabilizar a prpria substituio de importaes, pois impede que o pas adquira do

    exterior mquinas, equipamentos, insumos e outros itens indispensveis produo

    industrial. Por isso, pode-se dizer que o estrangulamento externo no apenas o incentivo

    e a razo de ser da substituio de importaes, mas pode-se transformar em seu limite,

    pois ser barreira ao crescimento industrial caso atinja uma magnitude tal que impea

    manter o fluxo mnimo de importaes necessrias ao processo produtivo industrial.

    Essa dupla face do estrangulamento externo, ser simultaneamente

    fator desencadeador e limitante, remete diretamente ao que significa substituio de

    importaes. Trata-se de um processo de desenvolvimento que, antes de reduzir o

    14 PREBISCH, R. Op. cit., p. 93.

  • 19

    quantum das importaes, altera sua pauta, mudando o perfil do setor externo. Este deixa

    de ser o responsvel ltimo pela dinmica econmica pela determinao da renda e do

    emprego, como no modelo agroexportador , mas passa a ter uma nova funo crucial, a

    de garantir o fluxo de divisas necessrio para importar outros produtos, desta vez os

    necessrios a garantir a produo industrial. O termo substituio de importaes, por

    isso, pode gerar equvocos e at ser imprprio, pois pode dar a entender que se trata de

    um modelo ou estilo de desenvolvimento que visa levar os pases autarcia, quando, na

    verdade, para se substituir algumas importaes precisa-se partir para outras, fruto da

    demanda derivada, sem contar os novos itens que vo aparecendo internacionalmente e

    que tendem a ingressar na pauta de importao dos pases de industrializao tardia, pois

    sua indstria no acompanha o mesmo ritmo da inovao dos pases centrais.

    Dessa forma, pode-se dizer que no modelo de substituio de importaes o

    problema da busca de divisas ser constante, e o estrangulamento externo, antes de ser

    solucionado, reaparece em cada conjuntura, o que estimula que sejam implementadas

    novas ondas de substituio. A restrio da capacidade de importar exigir dos governos

    contnua ateno, com o risco de inviabilizar, potencialmente, a prpria continuidade do

    desenvolvimento industrial substitutivo de importaes. Nas palavras de Prebisch :

    Em resumo, o processo de substituio tem de ser contnuo, enquanto no se corrigirem as tendncias dspares, que no se podero corrigir caso se mantenha o presente mdulo de intercmbio. Realizadas umas substituies, sobrevm a necessidade de realizar outras, e cada vez surgem novos e crescentes obstculos15.

    O PSI comea geralmente pelos bens de consumo popular, de tecnologia mais

    simples e de mais fcil produo, exigindo investimentos mais acessveis e com demanda

    cativa preexistente. Poder-se-ia esperar que gradualmente o pas fosse para os bens mais

    sofisticados, inicialmente de consumo, depois os intermedirios e, finalmente, os bens de

    capital. Mas a dinmica do modelo mais complexa. Na consagrada metfora de Tavares,

    15 PREBISCH, Ral. Op. cit., p. 87.

  • 20

    praticamente impossvel que o processo de industrializao se d da base para o vrtice da pirmide produtiva, isto , partindo dos bens de consumo menos elaborados e progredindo lentamente at atingir os bens de capital. necessrio para usar uma linguagem figurada que o edifcio seja construdo em vrios andares simultaneamente, mudando apenas o grau de concentrao em cada um deles de perodo para perodo16.

    Assim, o processo supe uma complexidade que no pode ser entendido como

    linear; embora as ondas possam se concentrar em algumas categorias de produtos, em

    cada perodo de tempo, o prprio processo produtivo exige que algumas outras categorias

    sejam substitudas concomitantemente, para viabilizar a continuidade da substituio de

    importaes.

    Deixaremos temporariamente a anlise abstrata para ilustrar com um exemplo

    histrico: no Brasil, o PSI seguiu bem de perto o modelo sugerido por Tavares. O perodo

    que vai do incio da recuperao econmica da dcada de 1930 at 1955, muitas vezes

    denominado de industrializao restringida, predominou a substituio de importaes de

    bens de consumo popular; entretanto, na prpria dcada de 1930 o crescimento industrial

    atingiu setores no tradicionais, como minerais no metlicos, metalrgica, papel/papelo

    e qumica. Por outro lado, a construo da Usina Siderrgica de Volta Redonda fazia o

    Brasil ingressar, em grande escala, na produo do ao, imprescindvel para o prprio

    crescimento industrial. Do perodo que vai de 1956 a 1973, ou seja, de JK ao fim do

    Milagre (1968-1973), a produo industrial voltou-se prioritariamente aos bens de

    consumo durveis, os quais lideravam o crescimento industrial mas, consigo,

    impulsionavam os setores de bens de consumo popular, os intermedirios e de capital,

    cujas taxas anuais de crescimento foram menores, mas tambm significativas. Finalmente,

    o PSI completa-se no Brasil no final da dcada de 1970, com a implementao do II PND

    do governo Geisel, voltado a substituir importaes de bens intermedirios e de capital,

    que ainda impunham barreiras produo interna. Em cada uma dessas fases houve

    16 TAVARES, Maria da Conceio. Op. cit., p. 46.

  • 21

    determinada categoria de bens que predominou, mas a cada onda de substituio novos

    bens de todas as outras categorias eram substitudos, mostrando a interdependncia

    setorial do sistema econmico e as cadeias produtivas que iam se formando, envolvendo

    uma complexa inter-relao entre fornecedores, compradores e consumidores das

    matrias-primas e insumos bsicos aos bens finais.

    Dessa forma, o PSI pode ser entendido como responsvel por mudanas de vulto

    nas economias em que ocorre, ampliando e diversificando a capacidade produtiva

    industrial. O centro dinmico das economias gradualmente deixa de ser o setor exportador

    para repousar no mercado interno, sob a liderana do investimento privado (I) e/ou

    pblico (G). Nas palavras de Tavares, trata-se de um modelo fechado pois se

    desenvolve praticamente no mbito de estados nacionais fechados , e tambm parcial, j

    que a base exportadora continua sem dinamismo, com as principais mudanas ocorrendo

    na economia urbana e industrial, mantendo a estrutura agrria arcaica e aprofundando os

    diferenciais de produtividade entre campo e cidade. O modelo, portanto, repe um novo

    dualismo.

    Por outro lado, o modelo, entendido inicialmente como uma sada para os pases

    perifricos se contraporem diviso internacional do trabalho que lhes era perversa, teve

    como resultante histrico no propriamente qualquer rompimento com a ordem

    econmica internacional, antes disso, nova forma de insero, em que qualitativamente

    alterava sua dependncia. A nova diviso internacional do trabalho que surge aps a

    Segunda Guerra Mundial enterrar de vez a antiga dicotomia entre pases perifricos

    agrrios e pases centrais industriais, j que alguns pases latino-americanos passaram

    ento a conviver com acelerado crescimento industrial, sem, todavia, romper com o

    subdesenvolvimento. Este subdesenvolvimento industrializado, na expresso de alguns

    autores, tem no Brasil o caso mais tpico, onde a industrializao avanou sem reverter na

    mesma intensidade vrios indicadores sociais, antes aprofundando a concentrao da

    renda e trazendo consigo novas relaes de dependncia, principalmente financeiras e

    tecnolgicas.

  • 22

    Crises e Desequilbrios Potenciais do Modelo

    J foi assinalado que o modelo de substituio de importaes tinha um limite

    reposto em cada conjuntura, decorrente de sua prpria lgica: ao voltar-se para o mercado

    interno e sem difundir a produtividade com a mesma intensidade e velocidade no setor

    exportador, geralmente centrado em poucos produtos primrios, tornava o

    estrangulamento externo um problema a ser recorrentemente enfrentado, freqentemente

    tornando-se barreira ao crescimento industrial acelerado que, afinal, era o objetivo e a

    razo de ser do prprio modelo. medida que o PSI avanava, assim, era de esperar que

    ficasse cada vez mais difcil substituir novas importaes, pois crescia o volume de

    capital, a qualificao da mo-de-obra e o nvel tecnolgico necessrios aos novos

    investimentos.

    Dessa forma, medida que o PSI se desenvolvia, vrios problemas e contradies

    comeavam a aflorar, dificultando ou, em alguns pases, at inviabilizando sua

    continuidade e expanso.

    A esses, alm dos problemas j mencionados acima, acrescentam-se os seguintes

    apontados pelos economistas cepalinos, principalmente Prebisch (1962), Furtado (1968) e

    Tavares (1972):

    a) No incio do PSI, o crescimento da economia trazia consigo a ampliao do

    emprego e, com isso, do mercado consumidor. De fato, pode-se pressupor que a demanda

    no era problema para a indstria nascente nas primeiras fases do PSI, j que justamente

    seu crescimento se prendia em vir atender demanda domstica preexistente, uma vez

    que, com o estrangulamento externo, no poderia ser mantido o fluxo de importaes.

    Nesse sentido, a demanda preexistia oferta: produzindo-se internamente, havia o

    mercado domstico pronto a ser atendido.

    Entretanto, ao avanar o processo, com a exigncia de maior volume de capital e

  • 23

    tecnologias mais sofisticadas, poupadoras de mo-de-obra, o emprego no crescia a taxas

    capazes de garantir um mercado de massas. Em outras palavras: cresciam as relaes

    capital/produto (K/Y) e capital/trabalho (K/L), implicando um descompasso entre a baixa

    absoro relativa de mo-de-obra e as necessidades de formao de um mercado

    consumidor capaz de absorver a produo domstica;

    b) medida que o processo ia avanando, cresciam as necessidades de

    financiamento e de poupana argumentava-se que a falta desta era parcialmente

    amenizada pela concentrao de renda , j que cada vez era necessrio maior volume

    de capital. O fato de a tecnologia ser importada gerava presso sobre o balano de

    pagamentos, aguando o estrangulamento externo. Mesmo com o relativo fechamento do

    mercado interno, os produtores locais eram induzidos a utilizar as novas tecnologias

    capital-intensivas, seja porque diminuam custos seja porque a compra de bens de capital

    do exterior geralmente eram subsidiadas, sem contar que os investidores estrangeiros, ao

    investirem, j traziam consigo as novas tcnicas;

    c) O avano do PSI fazia tornar mais ntida a contradio do modelo de exigir, para

    sua reproduo, cada vez mais capital e mo-de-obra qualificada, justamente o que

    escasso na Amrica Latina, e liberar recursos naturais e mo-de-obra de baixa

    qualificao, justamente o que era abundante. Nas palavras de Tavares, havia

    um completo divrcio entre as funes macroeconmicas de produo (virtuais) que seriam mais adequadas a uma tal dotao de recursos e aquelas que resultam por agregao das funes microeconmicas efetivamente adotadas pelos empresrios no processo de substituio de importaes, face ao sistema de preos relativos existentes17;

    17 TAVARES, M. da Conceio. Op. cit., p. 52.

  • 24

    d) Esses problemas aprofundavam-se ainda mais com a baixa produtividade da

    agricultura, em contraste com a elevao da produtividade mdia das atividades urbanas e

    industriais. Assim, o dualismo campo/cidade aprofundava-se e o xodo rural, seja pela

    atrao pela cidade seja pela expulso do homem do campo, contribua para aumentar

    ainda mais o desemprego. Dessa forma, havia populao mas no mercado (populao

    com poder aquisitivo para adquirir os produtos industriais).

    A baixa produtividade rural na maioria das anlises cepalinas associava-se

    propriedade da terra, concentrada nas mos de latifundirios pr-capitalistas, com

    mentalidade mais rentier e menos burguesa. Esse comportamento no-empresarial dos

    proprietrios de terra as oligarquias rurais ajudava a endossar uma das mais caras

    teses do pensamento cepalino: a da inelasticidade da oferta agrcola. Esta propunha que,

    ao aumentarem os preos dos produtos primrios, por exemplo, por presso da demanda,

    os proprietrios de terra no reinvestissem a receita adicional na produo e na melhoria

    de produtividade, que poderia, num perodo seguinte, por meio do crescimento da

    quantidade ofertada, fazer os preos carem. A oferta, nessa situao, era inelstica, ou

    seja, no respondia ou era pouco sensvel ao estmulo da elevao dos preos. No

    sendo os empresrios os que buscavam maximizar lucros, os proprietrios de terra no

    reinvestiam na produo, mas se comportavam como consumidores de bens de luxo, ou

    imobilizavam sua renda e no lucro comprando novas propriedades,

    preferencialmente imveis ou terras, a exemplo da antiga nobreza. A reforma agrria

    tornava-se a palavra de ordem para reverter o quadro; fazia-se mister levar o capitalismo

    ao campo.

    Esse conjunto de teses e proposies bastante articuladas entre si formava uma

    explicao bastante convincente para a crise que as economias latino-americanas

    passavam no incio da dcada de 1960. O prprio artigo de Maria da Conceio Tavares,

    publicado em 1963, busca entender no s o auge como o declnio do PSI, com a

    percepo que esta era sua crise derradeira. Entretanto, tratava-se mais de uma crise no

    modelo que do modelo, j que na economia brasileira o mesmo duraria at o final da

  • 25

    dcada de 1970, com a expressiva substituio de bens intermedirios e de capital do

    governo Geisel, sem contar as altas taxas de crescimento do Milagre (1968-1973), quando

    ocorreu significativa substituio de importaes de bens durveis de consumo.

    Entretanto, a explicao cepalina para esta crise do incio da dcada de 1960

    deixava claro, de um lado, os problemas da industrializao substitutiva de importaes,

    tal como vinha ocorrendo na Amrica Latina, algo no negligencivel, j que a CEPAL

    consagrara-se como porta-voz dos idelogos da industrializao latino-americana. De

    outro lado, o conjunto de teses possua um forte poder de seduo por sintetizar todo um

    complexo de fenmenos em uma nica explicao-sntese, j que todo o diagnstico

    apontava para a perda de dinamismo do modelo causada pela estreiteza do mercado vis--

    vis a alta tecnologia empregada, do que resultava uma tendncia estagnao ou

    subconsumo.

    SUBCONSUMISMO

    Nome pelo qual so designadas as teses que, sob diferentes argumentos, responsabilizam a falta de

    consumo como principal causa das crises. Geralmente, considera-se que o francs Sismondi, no incio do sculo

    XIX, foi o precursor do subconsumismo, ao afirmar que na sociedade capitalista industrial nascente havia uma

    tendncia do crescimento da oferta, impulsionado pela produtividade, muito superior ao do mercado consumidor,

    pressionado pelos salrios de subsistncia. O subconsumo, assim, causaria crises de superproduo. O mais famoso

    subconsumista, no entanto, Malthus, que adicionou aos argumentos a tendncia a poupar e a entesourar, que

    tambm conspirariam para a estreiteza dos mercados. H verses marxistas das teses consumistas, que exploram a

    tendncia pauperizao da classe trabalhadora em contraposio a uma tendncia de aumento de produtividade

    impulsionada pela concorrncia intercapitalista, o que geraria um excesso de produo sobre a demanda. Esta seria

    uma explicao para a acirrada busca de mercado por parte dos pases lderes, responsvel pelas guerras e pelo

    imperialismo.

    As teses subconsumistas conseguiram adeptos na Amrica Latina na dcada de 1950 a

    1960. Defendia-se, ento, que para a indstria latino-americana crescer era preciso ampliar o mercado interno: j que

    constituda majoritariamente por bens de consumo popular, argumentava-se que s poderia crescer e se expandir se

  • 26

    houvesse aumentos salariais e/ou que se incorporassem novos segmentos ao mercado consumidor, por meio de

    medidas redistribuidoras de renda. Assim, faziam-se necessrias reformas estruturais voltadas redistribuio de

    renda e ampliao do mercado consumidor, como as reformas agrria e educacional. Note-se que, dentro deste

    diagnstico, o subconsumismo no se opunha ao capitalismo e economia de mercado, mas propunha um conjunto

    de medidas redistributivas de maneira a viabiliz-lo e torn-lo mais harmnico e equilibrado socialmente.

    Configurava-se, assim, uma anlise crtica do modelo de substituio de

    importaes. Diferentemente de seus tradicionais opositores, de tradio mais liberal, que

    sempre diagnosticavam os problemas de desemprego, inflao e de balano de

    pagamentos como decorrentes da prpria lgica intervencionista do modelo, que violava a

    lei das vantagens comparativas no plano externo e criava um empresariado protegido e

    avesso concorrncia, dependente de subsdios e tarifas alfandegrias, agora a crtica

    partia dos prprios cepalinos. Assinalava-se, por exemplo, e de forma muitas vezes

    idealizada, o contraste entre a industrializao tal como ocorrera na Europa, que iniciara

    com pequenas empresas, baixa tecnologia, mercado estreito e utilizando menos capital e

    mais mo-de-obra e que, gradualmente, adotava novas tecnologias medida que o prprio

    mercado crescia, indo em direo a uma formao econmico-social mais harmnica e

    equilibrada, bastante diferente do dualismo latino-americano.

    Na Amrica Latina, a tecnologia importada associava-se a um mercado estreito, a

    uma baixa organizao sindical e a uma estrutura agrria arcaica, o que resultava num

    capitalismo desequilibrado, onde o subconsumo coexistia com inflao e desemprego. Da

    a existncia de:

    Inflao estrutural, pois decorrente da prpria estrutura fundiria (a

    inelasticidade da oferta agrcola) e da incapacidade de o Estado aumentar as receitas, seja

    por presso poltica dos segmentos de altas rendas seja por sua incapacidade de cortar

    despesas, frente ampliao das demandas sociais decorrentes da rpida urbanizao e da

    prpria necessidade de estimular o desenvolvimento; e

    Desemprego estrutural, pois mesmo nos pases com as mais expressivas

  • 27

    taxas de crescimento industrial, como Brasil, Argentina e Mxico, o setor secundrio no

    conseguia absorver a populao que migrava para as cidades. Mesmo que todo o estoque

    de capital mquinas e equipamentos da indstria estivesse plenamente empregado,

    havia uma parte da populao estruturalmente desempregada. Tratava-se de problema

    mais srio que o desemprego involuntrio keynesiano, pois este supe coexistncia com

    capacidade ociosa, de modo que polticas de estmulo demanda agregada poderiam,

    simultaneamente, aumentar o emprego do trabalho e do capital. O desemprego estrutural

    da mo-de-obra evidencia o desequilbrio das economias latino-americanas, j que pode

    ocorrer com pleno emprego do capital. Reflete a escassez deste, de modo que s polticas

    de longo prazo, centradas no desenvolvimento econmico, poderiam reverter este quadro.

    Dessa forma, seja nas etapas iniciais ou mesmo nesta primeira grande crise do PSI,

    ocorrida no incio da dcada de 1960, a CEPAL no deixou de reafirmar sua proposta

    bsica para reverter o subdesenvolvimento: a industrializao acelerada, mesmo que cada

    vez mais difcil. Para vencer esses obstculos, fazia-se necessrio um Estado atuante,

    capaz de planejar, antever e investir para evitar os pontos de estrangulamento que iriam

    aparecer medida que o processo fosse avanando, por exemplo, a eletricidade, que

    precisa ter a demanda prevista antecipadamente para que a oferta possa se expandir em

    tempo de no obstar o crescimento dos demais setores da economia.

    Crticas ao Modelo Cepalino

    A previso de estagnao econmica dos economistas cepalinos no se confirmava

    medida que passavam os anos da dcada de 1960, ao mesmo tempo que golpes militares

    em vrios pases latino-americanos inviabilizavam suas propostas reformistas. O Brasil,

    caso tpico, comeava um grande ciclo de crescimento econmico a partir de 1968,

    inclusive com inflao relativamente baixa e aumento expressivo da produo e da

  • 28

    produtividade agrcolas, o que se chocava com as principais teses cepalinas, pois no se

    implementara a reforma agrria.

    Dentro desse contexto, novas interpretaes sobre a formao histrico-econmica

    latino-americana e sobre o PSI emergiram. As primeiras crticas teoria dos choques

    adversos, mencionadas no incio deste captulo, remontam a essa poca. Apenas para fins

    de ilustrao, mencionar-se-o outras teorias crticas s concepes cepalinas,

    principalmente aquelas que mais de perto dizem respeito ao modelo de substituies de

    importaes.

    a) a teoria do bolo: esta afirma, em um aforismo, que preciso crescer o bolo para

    depois distribuir, e foi largamente utilizada, implcita ou explicitamente, pelas equipes

    econmicas dos governos militares como forma de criticar tanto as polticas salariais

    consideradas populistas dos governos anteriores a 1964, quanto para legitimar o abandono

    das reformas distributivistas. Seus fundamentos bsicos residem nas concepes clssicas

    que postulam ser a poupana pr-requisito ao investimento, bem como em teorias de

    desenvolvimento econmico como a de Rostow, que entende este como resultado de uma

    sucesso de etapas necessrias, sendo que as fases iniciais exigem sacrifcios sociais para

    que seja possvel uma arrancada, capaz de romper o crculo vicioso do

    subdesenvolvimento. Havia forte apelo ao senso comum: nenhum pas pode distribuir

    renda sem t-la, de modo que o sacrifcio presente seria compensado pela gerao futura;

    b) a teoria da dependncia: em sua verso mais conhecida e acabada, proposta por

    Cardoso e Faletto em 1970, inspirava-se em Marx e Max Weber para, numa anlise de

    cunho sociolgico, repensar a formao histrico-social latino-americana. Criticou os

    economistas cepalinos por subestimar as variveis polticas em suas anlises, como as

    classes sociais e suas relaes com o Estado, entendendo este como vinculado

    correlao de foras sociais que se organizam e se expressam por meio da poltica. A

    teoria da dependncia chamava ateno para as foras internas como condicionantes do

    processo histrico que, com vnculos ao exterior, estabelecem elos de dependncia e

    associao. Dessa forma, considera ultra-simplificado o modelo cepalino de centro

  • 29

    versus periferia, deslocando o foco da anlise da polaridade pas contra pas a

    questo nacional para as classes e interligaes concretas verificadas no processo

    produtivo, capazes de aproximar segmentos locais com associados externos. A teoria da

    dependncia, finalmente, passava a defender muitas economias latino-americanas, como a

    brasileira, que no estavam estagnadas nem condenadas estagnao, antes passavam por

    acelerado processo de desenvolvimento capitalista ao longo do sculo XX, processo este

    capaz de mudanas histricas de vulto como a industrializao e que ocorria sem

    romper com seu carter subordinado na diviso internacional do trabalho, como

    prescrevera a CEPAL; ao contrrio, desenvolvimento e dependncia eram fenmenos

    antes coexistentes que excludentes;

    c) a crtica razo dualista: deve-se fundamentalmente a Francisco de Oliveira

    (1981) que, em uma perspectiva marxista, critica as teorias do subdesenvolvimento

    cepalinas por ignorarem as determinaes do modo de produo capitalista na formao

    do capitalismo perifrico, marginalizando perguntas do tipo a quem serve o

    desenvolvimento econmico capitalista no Brasil? O dualismo entre um setor moderno e

    outro atrasado criticado, j que o moderno cresce e se alimenta da existncia do

    atrasado, devendo-se salientar no uma dicotomia formal entre ambos, mas a unidade de

    contrrios;

    d) as anlises do ciclo endgeno: A primeira crtica s teses cepalinas a partir de

    dentro apareceu em 1972, com o trabalho Alm da Estagnao de Tavares e Serra (1972).

    Tratava-se fundamentalmente de negar que haveria uma tendncia estagnao da

    economia, j que a relao K/Y no necessariamente cresceria sempre, pois as novas

    tecnologias podiam ser poupadoras de capital, uma vez que os preos relativos de novas

    mquinas e equipamentos podem cair, com relao aos antigos, alm de terem,

    geralmente, mais produtividade. Esse aumento de produtividade elevaria as taxas de lucro

    esperadas, mantendo o nvel de investimento e de produo.

  • 30

    Mas a crtica mais acabada ao subconsumismo deu-se com a

    utilizao, pela prpria Tavares (1978, 1986), do modelo de Kalecki para interpretar a

    economia brasileira. Este conclui, a partir de determinadas hipteses como curto prazo,

    em que tecnologia e estoque de capital so dados, alm da existncia de capacidade

    ociosa que os lucros independem dos salrios, j que, para o conjunto do sistema

    econmico, os lucros se igualam ao investimento mais o consumo capitalista (ou: P = I +

    Cc). Dessa forma, poderia haver crescimento do produto mesmo com rebaixamento dos

    salrios reais dos trabalhadores, pois a demanda efetiva poderia ser mantida pelos

    prprios capitalistas e pelas camadas de mais altas rendas alm da exportao. Assim, no

    haveria mais espao para o subconsumismo das teses cepalinas, que advogavam a

    ampliao do mercado interno como necessria para o crescimento econmico.

    No modelo tridepartamental de Kalecki, o Departamento 1, D1 produz os bens de

    capital, o D2 produz os bens de consumo dos capitalistas e o D3, os bens de consumo dos

    trabalhadores; supe-se que os bens intermedirios sejam produzidos nos mesmos

    departamentos dos bens finais a que se destinam. Somente o D3 perderia com a

    concentrao de renda, j que para seus capitalistas o salrio era ao mesmo tempo custo e

    demanda. Num padro de renda concentrada, em que o D1 articula-se com o D2 nos

    setores dinmicos da economia como sugeria ser a partir de 1955, como Plano de

    Metas de JK at, pelo menos, o final do Milagre , os salrios so apenas custos, pois os

    capitalistas no mais deles dependem para realizar sua produo:

    Ou seja, o problema do antagonismo entre consumo dos trabalhadores e acumulao encontra uma soluo dinmica mediante uma acelerao da taxa de acumulao, que acarreta uma acelerao do consumo dos trabalhadores, embora em ritmo inferior18.

    O modelo de Kalecki, por outro lado, associou-se a contribuies de outros

    autores, como Marx e Schumpeter, para ensejar nova interpretao economia brasileira,

    principalmente durante o PSI. O perodo de 1933-1955 visto como de industrializao

    18 TAVARES. Op. cit., p. 50.

  • 31

    restringida, pois, embora a liderana da acumulao estivesse no setor industrial, estava

    restrita ao D3, s reproduzindo o capital varivel, ou seja, a fora de trabalho. Nas

    palavras de Cardoso de Mello, a partir de 1933 pode-se dizer que,

    H industrializao, porque a dinmica da acumulao passa a se assentar na expanso industrial, ou melhor, porque existe um movimento endgeno de acumulao de capital em que se reproduzem, conjuntamente, a fora de trabalho e parte crescente do capital constante industriais; mas a industrializao se encontra restringida, porque as bases tcnicas e financeiras da acumulao no so suficientes para que se implante, num golpe, o ncleo fundamental da indstria de bens de produo, que permitiria capacidade produtiva crescer adiante da demanda, autodeterminando o processo de desenvolvimento industrial19.

    Somente com o bloco de investimentos do Plano de Metas, a partir de 1955,

    encerrar-se-ia esta fase da industrializao restringida, com a instalao da grande

    indstria de base, a qual permitia a reproduo do capital constante os bens de capital.

    A partir de ento, os ciclos da economia passariam a ser determinados endogenamente

    pela expanso e diversificao do setor industrial, como em qualquer economia

    capitalista.

    Ressalta-se que essa nova concepo mantinha a periodizao cepalina ao

    privilegiar a Grande Depresso como fundamental para o processo de industrializao do

    Brasil: no mais com a velha polaridade entre desenvolvimento para fora e para dentro,

    mas porque a comeava efetivamente um processo de industrializao, com o

    crescimento do setor industrial libertando-se da dependncia que o atrelava, direta ou

    indiretamente, pelo lado da realizao dos lucros, economia cafeeira20. Entretanto, o

    rompimento significativo em vrios aspectos: a) ao trazer baila, como central, no a

    substituio de importaes em si, mas o entendimento do processo como constituio

    das foras produtivas capitalistas, o que passa a privilegiar os fatores internos em busca

    da determinao de ciclos endgenos; b) ao admitir a importncia da economia cafeeira

    para o surgimento das primeiras indstrias, ainda na fase agroexportadora; c) ao romper

    19 MELLO, J. M. Cardoso de. Op. cit., p. 110.

    20 Ibid. p. 111.

  • 32

    com a viso antes sintetizada com a metfora do edifcio, em que o PSI no poderia ir

    linearmente da base para o vrtice da pirmide; a incisiva afirmao de que a indstria

    estava restringida aos bens de consumo surpreende ao negligenciar justamente uma das

    idias mais ricas do processo expressas por Furtado, Prebisch e pela prpria Tavares; d)

    mesmo que as novas teses no ignorem os condicionantes externos, ao lerem o processo

    histrico centrados na busca de ciclos endgenos, acabaram por negligenciar um aspecto

    fundamental que a CEPAL tinha a seu favor: trabalhar com economia aberta, mesmo com

    o modelo simplificado de relao centro/periferia, com o que ressaltava, j em primeira

    mo, a insero internacional do pas, o estrangulamento externo, os problemas

    recorrentes do balano de pagamentos e as dificuldades de absoro tecnolgica

    questes cruciais no contexto histrico do PSI.

    Como decorrncia, o estrangulamento externo perde o papel-chave que ocupara

    nas teses cepalinas, e o PSI enfocado no tanto com a singularidade que estas buscavam

    enfatizar da tardia industrializao latino-americana, j que o novo marco terico

    passvel de reproduzir, com alto grau de abstrao, qualquer economia capitalista.

    O PROCESSO DE SUBSTITUIO DE IMPORTAES NA ERA DE

    VARGAS

    O Perodo 1930-1937 e a Mudana de Modelo

    Quando Vargas tomou posse como chefe do Governo Provisrio, em

    novembro de 1930, fruto do movimento revolucionrio iniciado no ms anterior, pois sua

    chapa, a Aliana Liberal, havia sido derrotada nas urnas pelo situacionista paulista Jlio

    Prestes, o Brasil j se encontrava mergulhado em profunda crise econmica, que

    internacionalmente j iniciara h mais de um ano. Em 1931-1932, as importaes

    perfaziam um tero de seu valor de 1928, e as exportaes caram quase a metade. A

  • 33

    queda da capacidade de importar foi de cerca de 40% 21.

    Diante desse quadro, o governo federal, aps uma breve tentativa de uma poltica

    cambial liberal, reintroduziu o monoplio cambial no Banco do Brasil e estabeleceu

    critrios de prioridades cambiais no mercado de divisas, priorizando compras oficiais,

    pagamento do servio de dvida pblica e importaes oficiais, alm de decretar

    sucessivas moratrias de dvidas em moeda estrangeira. Esse intervencionismo durou pelo

    menos at 1934, quando foi afrouxado. Alm disso, promoveu a desvalorizao do mil-

    ris, que perdeu mais de 50% do seu valor com relao ao dlar somente entre 1930 e

    193122.

    Enquanto isto, os estoques de caf se avolumavam: somente no Estado de So

    Paulo, calcula-se, havia 18 milhes de sacas estocadas e a nova safra prevista para 1931

    era de 17,5 milhes; diante de uma demanda externa de 9,5 milhes, o excedente de oferta

    sobre a demanda externa era de 26 milhes de sacas. O governo, em abril de 1931,

    decidiu criar um imposto de 10 shillings sobre cada saca de caf exportada, receita com a

    qual faria um fundo para comprar o excedente; em dezembro do mesmo ano, elevou-o

    para 15 shillings. Estabeleceu ainda um imposto de 20%, em espcie, sobre o caf

    exportado e outro de 1 mil-ris sobre cada novo cafeeiro plantado no Estado de So

    Paulo. Alm disso, comeou a destruio dos estoques, que iniciou em cerca de 10% da

    safra de 1931-1932 at alcanar 40% da de 1937-1938, estimando-se que, no total, foram

    destrudas 70 milhes de sacas. Assim, pode-se afirmar que o intervencionismo

    econmico da dcada de 1930 comeou no pela indstria, mas no mercado do caf, cuja

    poltica era traada, a partir de 1933, pelo Departamento Nacional do Caf, cujos diretores

    eram nomeados pelo Ministro da Fazenda.

    A poltica do governo, de proceder desvalorizaes cambiais, ao mesmo tempo que

    tributava as exportaes e tentava impedir o aumento da produo de caf, afastava-se da

    21 ABREU. Op. cit., p. 74.

    22 Ibid. p. 74.

  • 34

    tradicional prtica da Repblica Velha, de no sinalizar aos cafeicultores que sua

    atividade era problemtica a longo prazo. Ao contrrio, conseguia simultaneamente

    segurar em parte os preos sem estimular a oferta, ao mesmo tempo que colaborava para

    que o caf perdesse peso na pauta de exportaes e que esta se diversificasse. De fato, no

    perodo 1934-1939 o caf alcanou 47,8% do valor das exportaes, em contraste com

    72,5% do perodo 1924-1929, enquanto o algodo crescia de 1,9% para 17,6%, de um

    para outro.

    Os dois primeiros anos da dcada de 1930 foram os mais difceis; em 1933, mesmo

    com o estrangulamento externo, a economia comeava a se recuperar, sob a liderana do

    setor industrial, que cresceu 11,2% anuais entre 1933-1939, enquanto a agricultura

    alcanava pouco mais de 2% entre 1934-1937, para uma taxa mdia da economia, neste

    ltimo perodo, de 6,5% ao ano.

    Embora os ramos tradicionais, como alimentos, txtil e bebidas representassem de

    70% a 80% do valor agregado industrial, no que confirma a interpretao de que a mesma

    estava centrada na produo de bens no durveis de consumo o D3 de Kalecki , de

    forma alguma pode-se concluir que estivesse restringida a ele. Os segmentos industriais

    que mais cresceram entre 1933-1939 conquanto muitas vezes partissem de uma base

    pequena, o que torna qualquer crescimento percentualmente expressivo foram os de

    papel e papelo, metalrgica e minerais no metlicos, enquanto entre 1932-1937 a

    produo fsica de ferro gusa aumentava 240%, a de ao em lingotes 123% e a de

    laminados 142%23.

    A poltica econmica do perodo no confere razo s teses que vem

    ortodoxia na poltica econmica implementada pelo governo, como as de Pelez. Este

    fixa-se no oramento superavitrio proposto pelo governo entre 1931-1933 e em algumas

    declaraes ministeriais, para defender que os dficits oramentrios existentes na

    23 VILLELA e SUZIGAN. Op. cit., p. 216.

  • 35

    execuo oramentria deveram-se Revoluo Paulista de 1932 e s secas do nordeste

    daquele ano, que inclusive foraram uma expanso monetria no planejada, pois o

    governo era comprometido com o princpio ortodoxo das finanas sadias. Assim, os

    dficits eram no planejados, nada tendo a ver com a poltica keynesiana enaltecida por

    Furtado. Entretanto, preciso esclarecer que as declaraes oficiais nem sempre foram

    ortodoxas, como mostram os discursos de Vargas no perodo, bem como no pode restar

    dvida no que diz respeito poltica econmica efetivamente implantada, profundamente

    intervencionista, principalmente no mercado cambial e da produo/exportao de caf

    portanto, do que havia de mais relevante poca para intervir e inovar, como na

    destruio do produto.

    Apesar de todas as discusses na literatura, pode-se ainda concluir que a clssica

    interpretao de Furtado sobre o carter anticclico e keynesiano, mesmo antes da Teoria

    Geral, acerta no essencial, j que o governo, na prtica, tolerava os dficits e intervia no

    mercado para assegurar preos, embora no da forma tpica proposta por Keynes, de

    investimentos pblicos no produtivos, mas comprando e destruindo estoques de caf.

    Alm disso, a proposta essencial de Furtado continua em p, que o efeito multiplicador

    desta poltica no conjunto do sistema econmico e, em especial, na indstria, dirigindo-o

    para dentro confirmando, apesar de todas as crticas e novas teses, que o estrangulamento

    externo da dcada de 1930, em pases como o Brasil, contribuiu decisivamente para

    incrementar o PSI.

    Entretanto, as evidncias no corroboram as teses cepalinas segundo as quais a

    poltica econmica era executada exclusivamente como forma de o governo sobreviver

    aos choques adversos, administrando-os. Estas tm subjacentes a tese de que a poltica

    pr-industrializao foi no-intencional, conseqncia inesperada, quando na verdade

    outras iniciativas governamentais revelam o contrrio. Neste aspecto, deve-se ter a

    precauo necessria ao analisarem-se declaraes de autoridades, muitas vezes em tom

    moralista e austero, mais como exigncia do cargo que reflexo de sua prtica efetiva. Da

    mesma forma, no se poderia esperar que a conduo das polticas monetria, cambial e

  • 36

    fiscal tivessem de ser sempre linearmente expansiva e pr-industrializante, ignorando-se

    as dificuldades de conjunturas de crise, que s vezes exigem medidas restritivas por

    decorrncia da poltica de estabilizao, a despeito das convices desenvolvimentistas

    dos dirigentes.

    Quanto conscincia e intencionalidade das polticas, vale assinalar: a) a reforma

    tributria de 1934, de carter protecionista e em acordo com as propostas defendidas por

    lideranas empresariais da poca; b) em 1931, o governo probe a importao de

    mquinas para certas indstrias e, por presso empresarial, prolonga-a at 1937, numa

    clara proteo s indstrias j instaladas; c) a concesso de crdito ao setor industrial

    mostra uma tendncia crescente na dcada de 1930, culminando em 1937 com sua

    oficializao por meio da criao da Carteira de Crdito Agrcola e Industrial do Banco

    do Brasil; d) a criao de diversos rgos, no aparelho do Estado e sob a hegemonia do

    executivo, voltados diversificao agrcola e a beneficiar a agroindstria (Instituto do

    Acar e do lcool, do Cacau da Bahia, de Biologia Animal, de Qumica, entre outros,

    numa poltica de praticamente criar para cada produto relevante um instituto); e) a

    reforma educacional, proposta por Francisco Campos, que privilegiava o ensino tcnico e

    profissional e reformava o ensino tradicional da Repblica Velha, preparador de elites e

    centrado em disciplinas como Latim, Francs, Filosofia, Literatura e Histria, em prol de

    outro, mais voltado s cincias e formador de profisses (curso Normal, para preparar

    professores primrios, cursos tcnicos agrcolas e comerciais, nfase s engenharias e a

    formao de mo-de-obra de escritrio economia e contabilidade no nvel superior;

    f) a legislao trabalhista, implementada desde a criao, j em novembro de 1930, do

    Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio no dizer de Vargas, o Ministrio da

    Revoluo e que mostra a conscincia da necessidade de legalizar e administrar os

    conflitos sociais urbanos, apontando para um projeto de nao no mnimo bastante diverso

    da tradicional viso agrarista e exportadora das elites24.

    24 FONSECA. Op. cit., p. 204-212.

  • 37

    Esse grau de conscincia pr-industrializante no estava presente na formao da

    chapa oposicionista da Aliana Liberal, em 1929, mas foi sendo construdo ao longo da

    dcada de 1930. Contou, de um lado, com o apoio decisivo do exrcito, por meio dos

    tenentes que, de rebeldes na Repblica Velha, passavam a ocupar postos relevantes na

    poltica, medida que parte dos antigos polticos oligarcas eram excludos do centro do

    poder. Vale assinalar, ento, que as foras polticas que constituram a Aliana Liberal

    polticos civis tradicionais, descontentes com o situacionismo e com a imposio, por

    parte de Washington Lus, do paulista Jlio Prestes para suced-lo , no coincidem com

    as que resolveram em 1930 partir para um levante armado, a revoluo. Boa parte dos

    aliancistas no pretendia partir para esta aventura, afinal bem-sucedida, e sem o apoio das

    foras armadas dificilmente o golpe de estado se consolidaria. A partir da, a participao

    dos militares na poltica torna-se uma constante, inclusive na deposio de Vargas, em

    1945.

    O governo procurou legitimar-se com nova constituio, em 1934, atendendo

    reivindicao da oligarquia paulista, mas a Constituinte elegeu Vargas Presidente da

    Repblica, por meio do voto indireto. A nova constituio consagrava o

    intervencionismo, a supremacia do executivo e a legislao social, mas foi insuficiente

    para acalmar os diversos focos oposicionistas que partiam seja dos antigos polticos

    oligarcas seja dos integralistas ou dos comunistas, capazes de mobilizar massas urbanas.

    O Estado Novo viria tir-los de cena, reafirmando o projeto gestado pelo prprio

    governo.

    Estado Novo e Ps-Guerra

    Em 10 de novembro de 1937, Vargas, com o apoio das foras armadas, deu o golpe

    do Estado Novo, fechando as casas legislativas do pas, em todos os nveis, nomeando

    interventores para os executivos estaduais e outorgando nova constituio. O novo regime

  • 38

    possua forte cunho autoritrio e intervencionista, consagrando a supremacia do poder

    executivo federal e algumas conquistas da Revoluo de 1930, como a legislao do

    trabalho.

    As justificativas oficiais para o golpe de estado no diferem muito de suas

    verdadeiras razes: associavam-se motivos internos, como a polarizao poltica do pas

    entre integralistas e comunistas e a dificuldade de o governo de, dentro dos marcos de

    regras democrtico-liberais, constituir foras suficientes para consolidar seu projeto, at o

    contexto de ameaa e, posteriormente, de guerra mundial, com a bipolarizao

    internacional entre o Eixo e os Aliados. Ideologicamente, o Estado Novo aproximava-se

    do fascismo, embora no contasse com um partido nico mobilizador, e respaldava-se na

    colaborao de idias de vrios pensadores, como Francisco Campos e Oliveira Vianna

    os denominados pensadores autoritrios dos anos 1930 , que pregavam uma srie

    de reformas modernizantes e pr-industrializao, contra o marasmo rural das

    oligarquias, julgando impossvel implement-la sem um estado forte e impessoal, que se

    impusesse sobre poderes locais arcaicos, e sobre outros opositores, como os polticos

    tradicionais desgostosos com os rumos da revoluo e os comunistas. Por isso, alguns

    autores vem no Estado Novo algo que lembra a revoluo pelo alto de Bismark, em que

    a industrializao e a constituio da ordem econmica e poltica capitalista partiu mais

    de uma deciso poltica que de determinaes econmicas emanadas do mercado.

    A interveno econmica iniciada em 1930 aprofundou-se durante o Estado Novo;

    mesmo que no houvesse um plano de governo, no moderno sentido da palavra, o

    governo deixava claro seu projeto industrializante e em prol da diversificao do setor

    primrio e das exportaes. A complexidade do aparelho estatal fez surgir novo segmento

    social: a burocracia. Para tanto, cria-se o DASP Departamento Administrativo do

    Servio Pblico, para recrutar por concurso os funcionrios pblicos, substituindo-se as

    antigas nomeaes polticas dos coronis e polticos, tirados parcialmente de cena com a

    ditadura. Nos Estados so criados rgos para executar as mesmas funes os

    daspinhos. Mas a maioria destes rgos dizia respeito diretamente indstria e s

  • 39

    riquezas estratgicas (Conselho Nacional do Petrleo, Aparelhamento de Defesa,

    Conselho de guas e Energia, Comisso de Defesa da Economia Nacional, Fbrica

    Nacional de Motores, Comisso Executiva do Plano Siderrgico Nacional, Companhia

    Siderrgica Nacional, Comisso de Combustveis e Lubrificantes, Servio Nacional de

    Aprendizagem Industrial SENAI, Comisso do Vale do Rio Doce, Companhia

    Nacional de lcalis, Servio Social da Indstria SESI, Conselho Nacional de Poltica

    Industrial e Comercial). Alguns se voltavam ao fomento de culturas especficas (Instituto

    de Mate e do Pinho, Servio Nacional do Trigo) e, outros, racionalizao administrativa

    e de tomada de decises (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, Plano de Obras

    Pblicas, Conselho Nacional de Ferrovias, Coordenao de Mobilizao Econmica,

    Comisso de Planejamento Econmico e Superintendncia da Moeda e do Crdito

    SUMOC).

    Apesar das intenes governamentais, nos primeiros anos do Estado Novo a

    economia desacelerou seu ritmo de crescimento, principalmente entre 1939 e 1942,

    quando cresceu apenas 0,4% e a indstria 1,6%. As dificuldades de importao,

    decorrentes da guerra, so apontadas geralmente como causa, mas as taxas so

    recuperadas a partir de 1942, com a indstria voltando a crescer em mdia 9,5% e o PIB

    6,4% entre 1942-1945.

    Os primeiros anos do Estado Novo ajudam a evidenciar a correlao entre o

    volume de divisas e taxas de crescimento. O estrangulamento cambial obrigou o governo

    a suspender o pagamento da dvida externa e a estabelecer controles de cmbio, alm de

    manter uma taxa cambial nica e desvalorizada. Mas a guerra encarregar-se-ia de reverter

    este quadro: enquanto permanecia a dificuldade de importar e o governo estabelecia

    racionamento para o trigo e a gasolina, as exportaes cresciam para os pases aliados e o

    preo do caf se recuperava. Assim, obtm-se saldo positivo nas transaes correntes,

    passando-se ento a adotar polticas mais liberais, como a possibilidade de os

    exportadores poderem vender at 70% das divisas no mercado (30% deviam ser vendidas

    ao Banco do Brasil taxa oficial de cmbio). A poltica monetria mais apertada dos

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    primeiros anos do Estado Novo tambm foi substituda por outra mais frouxa; a inflao,

    ento, comeou a se acelerar, ficando entre 15% e 20% ao ano. Mais importante que as

    taxas de crescimento em si, destaca-se sem dvida, a construo da siderrgica de Volta

    Redonda, tornando-se um marco simblico desta poca, pois inaugurou a forte presena

    estatal na produo de insumos bsicos, fato que seria uma das mais relevantes

    caractersticas do PSI brasileiro.

    A entrada do Brasil na guerra junto aos Aliados e o fato de o equilbrio de foras

    ter pendido a favor destes tornaram a ditadura estado-novista insustentvel. A partir de

    1943 j eram evidentes as contradies entre as polticas interna e externa do regime.

    Aps uma tentativa de redemocratizao com a continuidade de Vargas no poder o

    queremismo , ele derrotado por um golpe militar em 1945. Antes, havia criado dois

    partidos, o Partido Social Democrtico (PSD), mais conservador, e o Partido Trabalhista

    Brasileiro (PTB), com base na estrutura sindical e no eleitorado urbano, enquanto a

    oposio aglutinava-se na Unio Democrtica Nacional, a UDN. Em eleio realizada em

    2 de dezembro de 1945, foi eleito com 55% dos votos o general Eurico Gaspar Dutra

    (PSD), que fora Ministro da Guerra de Vargas.

    O final da guerra consagra a hegemonia norte-americana, cujas bases foram

    estabelecidas no acordo de Bretton Woods, em 1944. Este condena os protecionismos

    vigentes desde a crise de 1929 e consagra o abandono do padro ouro por parte dos

    pases, com exceo dos Estados Unidos, estabelecendo o dlar como padro

    internacional, para o qual os demais pases deveriam estabelecer taxas fixas de cmbio.

    No Brasil, a paridade cambial mantm-se fixa em Cr$ 18,50 por dlar, enquanto a

    inflao brasileira fora o dobro da norte-americana durante a guerra. Esta valorizao do

    cruzeiro, associada demanda de importaes e ao forte crescimento econmico dos

    ltimos anos do Estado Novo, explica a elevao das importaes, que logo se manifestou

    no balano de pagamentos e na perda de reservas, principalmente de moedas conversveis.

    Isso obrigou o governo, em julho de 1947, retornar aos controles cambiais e adotar o

    sistema de contingenciamento das importaes, pelo qual concedia licenas prvias para

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    importar de acordo com prioridades preestabelecidas. Mas a taxa de cmbio permaneceu

    fixa enquanto a inflao crescia (aproximadamente 15% ao ano); isso, entretanto, no

    causou imediato problema na balana comercial devido recuperao dos preos do caf,

    que em parte amenizaria as conseqncias.

    No se pode dizer que Dutra tenha abandonado a prioridade pr-indstria de

    Vargas. Houve a continuidade e expanso de crdito ao setor; alm disso, esta poltica

    cambial, em ltima instncia, significava transferncia de renda do setor exportador para

    o mercado interno, e principalmente para a indstria, pois barateava as importaes de

    bens de capital e intermedirios ao mesmo tempo em que restringia as de bem de

    consumo, pelo sistema de licenciamentos.

    O PSI, assim, no sofreu soluo de continuidade.

    O Segundo Governo Vargas e o Nacionalismo

    O retorno de Vargas ao poder, em 1951, significou a reafirmao do projeto

    industrializante e desenvolvimentista que implementara j em seu primeiro governo. Seu

    principal adversrio foi Eduardo Gomes, da UDN, que obteve menos da metade dos votos

    de Vargas, que concorrera como candidato do PTB tendo como vice Caf Filho, do PSP

    Partido Social Progressista. O PSD lanara candidato prprio, Cristiano Machado, mas

    que foi gradualmente abandonado pelos prprios correligionrios medida que a

    campanha de Vargas conseguia mais uma vez recompor a ampla alian