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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOLOGIA ANALÍTICA CARLOS FERNANDO GODOY DALACQUA PROCESSO CRIATIVO E ALQUIMIA CURITIBA, 2010

Carlos Fernando Godoy Dalacqua - Processo Criativo e Alquimia

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA

    CENTRO DE CINCIAS BIOLGICAS E DA SADE

    CURSO DE ESPECIALIZAO EM PSICOLOGIA ANALTICA

    CARLOS FERNANDO GODOY DALACQUA

    PROCESSO CRIATIVO E ALQUIMIA

    CURITIBA, 2010

  • CARLOS FERNANDO GODOY DALACQUA

    PROCESSO CRIATIVO E ALQUIMIA

    Monografia apresentada ao curso de Especializao em Psicologia Analtica do Centro de Cincias Biolgicas e da Sade da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Especialista. Orientadora: Prof. Renata Wenth

    CURITIBA, 2010

    II

  • TERMO DE APROVAO

    PROCESSO CRIATIVO E ALQUIMIA

    Por

    CARLOS FERNANDO GODOY DALACQUA

    MONOGRAFIA APROVADA COMO REQUISITO PARCIAL PARA OBTENO DO GRAU DE ESPECIALISTA EM PSICOLOGIA ANALTICA, CENTRO DE CINCIAS BIOLGICAS E DA SADE DA PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARAN, PELA COMISSO FORMADA PELOS PROFESSORES:

    ORIENTADORA: ___________________________________________

    PROFESSORA RENATA CUNHA WENTH

    ___________________________________________ DOUTORA JUSSARA JANOWSKI CARVALHO

    ___________________________________________ PROFESSOR NLIO PEREIRA DA SILVA

    CURITIBA, 02 de OUTUBRO DE 2010

    III

  • The Road Not Taken

    Two roads diverged in a yellow wood, And sorry I could not travel both And be one traveler, long I stood

    And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth;

    Then took the other, as just as fair,

    And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear,

    Though as for that the passing there Had worn them really about the same,

    And both that morning equally lay

    In leaves no step had trodden black. Oh, I marked the first for another day!

    Yet knowing how way leads on to way I doubted if I should ever come back.

    I shall be telling this with a sigh

    Somewhere ages and ages hence: Two roads diverged in a wood, and I,

    I took the one less traveled by, And that has made all the difference.

    Robert Frost

    A Estrada No Trilhada

    Num bosque, em pleno outono, a estrada bifurcou-se, mas, sendo um s, s um caminho eu tomaria.

    Assim, por longo tempo eu ali me detive, e um deles observei at um longe declive

    no qual, dobrando, desaparecia...

    Porm tomei o outro, igualmente vivel, e tendo mesmo um atrativo especial,

    pois mais ramos possua e talvez mais capim, embora, quanto a isso, o caminhar, no fim,

    os tivesse marcado por igual.

    E ambos, nessa manh, jaziam recobertos de folhas que nenhum pisar enegrecera.

    O primeiro deixei, oh, para um outro dia! E, intuindo que um caminho outro caminho gera,

    duvidei se algum dia eu voltaria.

    Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro, nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa:

    a estrada divergiu naquele bosque e eu segui pela que mais nvia me pareceu,

    e foi o que fez toda a diferena.

    Traduo: Renato Suttana

    IV

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Imagem I Ernesto Lago. 2010. Acessado em 29 de agosto de 2010. Disponvel

    em: http://www.flickriver.com/photos/ernestolago/3626596298/

    Imagem II Figura XIII. Lambspring, The book of Lambspring. London, 1893.

    p. 20. Disponvel em:

    http://uwch-

    4.humanities.washington.edu/Texts/Lambspring/The%20Book%20of%20Lambspri

    ng.pdf

    Imagem III Figura XIV. Ibid, p. 21

    Imagem IV - Figura XV. Ibid, p. 22

    Imagem V Capa e pgina interna da revista RAY GUN, criada e editada por

    David Carson. Ray Gun #50, October 1997.

    Imagem VI Guernica, Pablo Picasso, 1937.

    Imagem VII Laerte, 2010. Acesso em 29 de agosto de 2010. Disponvel em:

    http://verbeat.org/blogs/manualdominotauro/assets_c/2010/04/LAERTE-24-04-10-

    6786.html

    Imagem VII Bansky, 2010. Los Angeles, EUA. Acessado em 29 de agosto de

    2010. Disponvel em:

    http://www.mymodernmet.com/profiles/blogs/top-12-banksy-pieces-of-2010

    V

  • RESUMO

    Ttulo do trabalho: Processo Criativo e Alquimia

    O presente trabalho tem como objetivo traar paralelos entre o processo criativo e a

    opus alqumica, numa abordagem da psicologia analtica. A criatividade uma

    ferramenta fundamental dentro do processo de individuao, por oferecer meios de

    superar desafios. Ao provocar o trnsito de contedos entre a conscincia e o

    inconsciente, o processo criativo integra o novo na vida cotidiana e cataliza as

    transformaes necessrias para que o homem atinja seus potenciais. Esse processo

    guarda muitas semelhanas com a obra e o trabalho dos alquimistas. A opus

    alqumica consiste na busca pela pedra filosofal. Essa busca pode ser comparada

    elaborao de uma obra criativa. A criatividade, assim como a alquimia, pode

    oferecer respostas s eternas perguntas do homem e tambm trazer novos

    questionamentos.

    Palavras-chaves: Criatividade, alquimia, individuao

    VI

  • SUMRIO

    Termo de Aprovao ........................................................................................... III

    Lista de ilustraes .............................................................................................. V

    Resumo ................................................................................................................. VI

    Introduo ............................................................................................................ 01

    1 A Criatividade e a Psicologia Analtica...................................................... 02

    1.1 O Instinto Criativo .......................................................................... 02

    1.2 Criao Visionria e Criao Psicolgica ...................................... 04

    1.3 Noes Arquetpicas da Criatividade ............................................. 06

    1.4 A Criatividade e os Padres Sociais ............................................... 10

    1.5 A Intuio ....................................................................................... 11

    2 Alquimia e Criatividade ............................................................................. 14

    2.1 Fundamentos da Alquimia .............................................................. 14

    2.2 A Alquimia da Criatividade ............................................................ 18

    2.3 Operaes Alqumicas e Processo Criativo .................................... 19

    2.4 Entraves Obra e Bloqueios Criativos ........................................... 26

    3 A Opus Criativa .......................................................................................... 32

    3.1 O Produto Criativo e a Pedra Filosofal ........................................... 32

    3.2 Transformar o Velho em Novo ....................................................... 34

    3.3 Rubedo, Multiplicatio e a Obra Finalizada ..................................... 35

    Consideraes finais ............................................................................................. 37

    Referncias ............................................................................................................ 39

    VII

  • VIII

  • * Washington Olivetto um dos publicitrios mais premiados no mundo. Diretor de criao e presidente da W/Brasil, foi responsvel por inmeras campanhas memorveis, como a do Primeiro Suti, para a Valisre, a do cozinho dos Amortecedores Cofap e a criao do garoto-propaganda da Bombril. Fonte: Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Washington_Olivetto)

    INTRODUO

    Sou publicitrio. Toda minha formao na rea da propaganda. Entretanto,

    interessei-me muito pela psicologia analtica pelo fato dela tratar sobre muitos

    assuntos que sempre me intrigaram no decorrer da minha vida. Tentei fazer nesse

    trabalho um cruzamento - e porque no dizer, uma coniunctio - entre a psicologia

    analtica e a minha rea de atuao profissional. Entretanto, no quis me ater apenas

    propaganda, anncios e sacadas geniais. Normalmente, ao proferir uma palestra,

    o publicitrio reconhecido insiste em falar apenas sobre os prmios que j recebeu,

    sobre as grande ideias que j teve e sobre as campanhas memorveis que criou. O

    mais interessante raramente mencionado: o processo criativo. Considero essa

    postura, to recorrente na rea publicitria, totalmente inadequada. Do mesmo

    modo, no adianta nos prendermos a frmulas mgicas que vo despertar o nosso

    Washington Olivetto* adormecido: outra rea muito explorada por prestidigitadores

    em geral. Foi justamente nesse vo que procurei algumas relaes e situei meu

    objeto de pesquisa. Olhei para a criatividade como uma atividade humana por

    excelncia, independente dos meios em que se atue e tracei um paralelo com as

    prticas alqumicas.

    Podemos perceber facilmente que os sculos que nos separam dos alquimistas

    no foram suficientes para apagar a semelhana entre os processos descritos por

    eles e os processos psquicos nos quais hoje nos concentramos. Ainda reproduzimos

    processos inconscientes que foram descritos a muitos sculos atrs. As questes

    arquetpicas que permeiam nossa existncia, desde o nascimento at a morte, foram

    tratadas pelos alquimistas de maneira magistral, remetendo a smbolos de

    transformao que ainda hoje so cheios de contedo.

    Constantemente encontramos situaes em nossas vidas que remetem

    nigredo, sublimatio ou coniunctio. Por vezes temos a sensao de tocar a pedra

    filosofal! Vivenciar essa simbologia dar vida ao nosso inconsciente. Assim,

    alimentamos nossas paixes e transformamos nossa vida em uma rica opus

    alqumica.

  • 2

    1 - A Criatividade e a Psicologia Analtica

    1.1 O Instinto Criativo

    Durante o processo evolutivo do homem, a criatividade sempre foi o maior

    trunfo para o diferenciar dos demais seres vivos. No sabido em qual momento

    ocorreu o salto evolutivo que dotou o homem da capacidade de procurar solues

    inovadoras dentro do seu ambiente, mas foi nesse momento que o ser humano ou

    algum de seus ancestrais passou definitivamente ao controle da situao. A

    capacidade de pensar especificamente sobre um fazer concreto (OSTROWER,

    1999, p. 38), antecipando a possibilidade de alterar a realidade que o circunda, foi o

    que possibilitou ao homem a criao e utilizao de utenslios especficos, como a

    pedra lascada, e o desenvolvimento de estratgias de grupo, como numa caada ou

    na organizao de um grupo social cada vez mais heterogneo. Devido sua

    enorme capacidade de adaptao, o ser humano galgou aos mais altos degraus da

    escala evolutiva, desafiando a hostilidade do meio ambiente e povoando toda

    superfcie da Terra. Dessa situao se depreende que o homem naturalmente

    dotado de capacidade criativa, capaz de se adaptar a novas circunstncias com

    grande agilidade. Talvez pudssemos afirmar que, conforme a teoria evolucionista,

    na qual os mais aptos sobrevivem, os indivduos mais criativos obtiveram maior

    sucesso em legar seus genes posteridade, fazendo com que cada gerao fosse

    mais criativa e adaptvel que a anterior. Dessa forma temos a criatividade como

    herana evolutiva, um patrimnio de toda espcie. Jung vai mais alm e identifica a

    criatividade dentro da espcie humana como um instinto, ao descrever os cinco

    grupos bsicos de instintos, a saber: fome, sexualidade, impulso para atividade,

    reflexo e instinto criativo. Sobre o instinto criativo, Jung diz, no pargrafo 245 dA

    Natureza da Psique:

    Ainda que, de maneira geral, o instinto seja um sistema estavelmente organizado e, consequentemente, inclinado a repetir-se indefinidamente, contudo, o homem distintivamente dotado de capacidade de criar coisas novas no verdadeiro sentido da palavra, justamente da mesma forma como a natureza, no decurso de longos perodos de tempo, consegue produzir novas formas. No sei se "instinto" seria a palavra correta para este fenmeno. Usamos a expresso instinto criativo, porque este fator se

  • 3

    comporta dinamicamente, pelo menos semelhana de um instinto. compulsivo, como o instinto, mas no universalmente difundido nem uma organizao fixa e herdada invariavelmente. Prefiro designar a fora criativa como sendo um fator psquico de natureza semelhante do instinto. (JUNG, 2009, 245)

    Assim como os demais, o instinto criativo urge ser satisfeito. Dentro de seu

    trabalho, Jung aponta em vrios momentos para a questo da criatividade como

    meio para se atingir a individuao. Atravs da transformao desencadeada pela

    energia psquica mobilizada pelo processo criativo, o homem tem a possibilidade

    de se encontrar consigo mesmo e se renovar, dia aps dia, numa construo do seu

    verdadeiro eu. A psicoterapia, quando requerida, tem como funo auxiliar na

    liberao dessa energia psquica e permitir ao homem a sua re-criao e o

    consequente encontro consigo mesmo. No volume XVI/I das suas Obras Completas,

    - A Prtica da Psicoterapia - Jung fala o seguinte sobre o tratamento psicolgico:

    Neste caso, a natureza nos servir de guia, e a funo do mdico ser muito mais

    desenvolver os germes criativos existentes dentro do paciente do que propriamente

    trat-lo. (JUNG, 2009, 82)

    O instinto criativo pode se manifestar das formas mais diversas, desde tiradas

    espirituosas numa conversa informal, at descobertas cientficas que mudam o curso

    da humanidade, passando por todas as formas de arte e atividades possveis. No

    raro, o inconsciente rompe seus limites e como um verdadeiro instinto, toma a

    conscincia de assalto, s vezes nos colocando em situaes de desconfortvel

    exposio, outras chegando a nos surpreender quanto ao ineditismo da

    manifestao. Sobre esse assalto da conscincia por parte do inconsciente, Jung

    escreveu: Quando se d um estado emocional intenso, dizemos ou fazemos coisas que ultrapassam a medida usual. No preciso muito: amor e dio, alegria e tristeza bastam muitas vezes para acarretar uma troca entre o eu e o inconsciente. At mesmo ideias muito estranhas podem apoderar-se em tais circunstncias de pessoas normalmente sadias. Grupos, comunidades e at mesmo povos inteiros podem ser tomados por epidemias psquicas. (JUNG, 2002, 496)

    Com a criatividade, acontece o mesmo. No necessariamente de forma

  • 4

    menos brusca ou suave, a ideia original comea a se insinuar no consciente sem que

    tenhamos noo de onde vem ou para onde ela se dirige. Somente depois do

    contedo - ou imagem - expresso e registrado podemos apreciar sua profundidade e

    se pertinente ou no, pois o inconsciente apresenta contedos completamente

    diversos da conscincia, to estranhos que ningum os pode compreender, nem o

    paciente, nem seu mdico. (JUNG, 2002, 493)

    O impulso criativo fruto do inconsciente, porm fundamental a

    participao do consciente na sua elaborao, pois do contrrio, o indivduo est

    sujeito a se deixar levar por um estado patolgico improdutivo.

    Conscincia e inconsciente no constituem uma totalidade, quando um reprimido e prejudicado pelo outro. Se eles tm de combater-se, que se trate pelo menos de um combate honesto, com o mesmo direito de ambos os lados. Ambos so aspectos da vida. A conscincia deveria defender sua razo e suas possibilidades de autoproteo, e a vida catica do inconsciente tambm deveria ter a possibilidade de seguir o seu caminho, na medida em que o suportarmos. Isto significa combate aberto e colaborao aberta ao mesmo tempo. Assim deveria ser evidentemente a vida humana. (JUNG, 2002, 522)

    1.2 Criao visionria e criao psicolgica

    Jung, no captulo VI do seu livro O esprito na arte e na cincia, no qual

    trata da relao da psicologia analtica com a obra de arte potica, classificou as

    manifestaes criativas em duas categorias: criao psicolgica e criao visionria.

    Na criao visionria o artista impulsionado sua obra como num fluxo criativo

    incontrolvel, muitas vezes sendo relacionado uma possesso. o caso do poeta

    Fernando Pessoa, que deu vazo a um grande nmero de heternimos durante sua

    vida e sempre teve a percepo clara que essas vozes que se manifestavam atravs

    dele no eram fruto de sua prpria conscincia, mas sim de algo mais profundo e

    desconhecido. No processo visionrio, a inspirao atropela o artista e impe a ele

    sua obra, restando conscincia apenas a observao do fenmeno enquanto o

    inconsciente se encarrega de tomar as decises, direcionando o trabalho muitas

    vezes revelia das intenes do artista. Segundo Jung, esse fluxo criativo :

  • 5

    (...) como uma essncia viva implantada na alma do homem. A psicologia analtica denomina isso complexo autnomo. Este, como parte separada da alma e retirada da hierarquia do consciente, leva vida psquica independente e, de acordo com seu valor energtico e sua fora, aparece ou como simples distrbios de arbitrrios processo do consciente, ou como instncia superior que pode tomar a seu servio o prprio Eu. (JUNG, 1985, 115)

    O produto dessa possesso criativa geralmente transcende os limites do

    tempo e se coloca como uma obra universal, pois traz para o mundo concreto

    contedos arquetpicos e mticos, atravs de smbolos acessveis coletividade.

    A obra, nestes casos, transcende seu criador - que muitas vezes visto pela

    sociedade como louco ou desajustado - e impe sua relevncia em relao ao artista

    e sociedade, rasgando, segundo Jung, de alto a baixo a cortina na qual esto

    pintadas as imagens csmicas, permitindo uma viso das profundezas

    incompreensveis daquilo que ainda no se formou. (Jung, 1985, 141)

    Por outro lado, a criao psicolgica conduzida em grande parte pela

    conscincia do seu autor. A inteno do criador quem dita o estilo, o caminho e os

    objetivos da obra e mesmo que no completamente, exerce influncia sobre o

    resultado final. Nesse tipo de criao, o inconsciente um apoio, dando sugestes e

    indicaes de caminhos a seguir, mas no chega a tomar a pena do poeta de suas

    mos. A matria prima para a obra composta pela prpria experincia do autor:

    suas dores, seus amores, seus gozos e suas derrotas so traduzidos para o meio

    como forma de expressar seus prprios sentimentos respeito da sua vida.

    Obviamente, o inconsciente do artista est presente, orientando a conscincia,

    trazendo intuies, fazendo associaes e permitindo o fluxo de contedos entre os

    dois nveis. Uma ciso completa no possvel, pois a psique dinmica e

    interdependente.

    Entretanto, impossvel encontrar uma definio satisfatria para o ato

    criativo. Algumas palavras no se prestam a definies. Santo Agostinho foi

    extremamente perspicaz ao dizer: Se no me perguntam o que o tempo, eu sei o

    que o tempo, mas se me perguntam no sei responder. Palavras como tempo,

    alma e criatividade escapam percepo humana e no se enquadram em

  • 6

    definio alguma, pois so temas maiores e mais complexos que nossa conscincia

    capaz de abarcar. Por isso, o psiclogo norte-americano James Hillman sugere que

    deixemos de lado a definio do termo e passemos a trabalhar com a ampliao do

    significado de criatividade. Atravs da ampliao podemos reconhecer vrias

    camadas de significao que da outra forma atravs da definio no nos seriam

    acessveis. Citando as palavras de Hillman, em O Mito da Anlise, temos:

    Analisar a criatividade significaria desnudar a natureza do homem e a natureza da criao. Esses so mistrios que dizem respeito a questes de onde viemos, do que vivemos e para onde retornamos. No se sujeitam a anlise, a uma psicologia explicativa. Podemos especular e fantasiar e com nosso logos contar uma histria, isto , confabular um pouco, apresentando um mitologema como contribuio criatividade, para celebr-la, comungar com ela; mas no nos encarregaremos de seu sacrifcio (mesmo se isso fosse possvel), nem de seu desmembramento ritual, por meio da anlise psicolgica. Portanto no haver definio, que limita e corta, mas uma ampliao, que estende e relaciona. (HILLMAN, 1984, p. 37)

    1.3 Noes Arquetpicas da Criatividade

    O psiclogo americano James Hillman entende a criatividade como algo fora

    do domnio psquico e concorda com Jung sobre a existncia de um instinto

    criativo, um conceito um tanto vago e impreciso, pois no podemos alcanar toda

    sua significao. Ele defende que a criatividade no est na alma, e sim alm dela,

    porm, inerente ao ser humano. A fora instintiva ectopsquica, porque vem de

    alm da psique, mais que humana e mais potente que seu possuidor. (HILLMAN,

    1984, p. 41)

    Hillman procura encontrar as razes arquetpicas para embasar o ato criativo.

    Ele se debrua sobre os arqutipos e suas formas de manifestao, buscando no

    contedo ancestral, uma luz para entender como se d a criao. Partindo de

    modelos arquetpicos, classificou as formas de manifestao criativa, independentes

    da rea de atuao, em seis grupos. Cada grupo categorizado sob a gide de um

    grande arqutipo, sendo eles: 1 - Arqutipo do Pai; 2 - Arqutipo do Puer Aeternus;

    3 - Arqutipo da Sombra; 4 - Arqutipo do Ego; 5 - Arqutipo da Persona; 6 -

    Arqutipo da Grande Me.

  • 7

    Vamos analisar separadamente cada grupo. Essas divises foram chamadas

    por Hillman de noes de criatividade.

    As vrias noes de criatividade so comparveis s vrias noes de qualquer smbolo bsico (matria, natureza, Deus, alma, instinto). A simples existncia de tantas noes evidencia a variedade de metforas radicantes atravs das quais a psique percebe e forma suas noes. (Ibid, p. 45)

    1- Arqutipo do Pai

    A criao como manifestao do arqutipo paterno se d atravs da

    separao, diferenciao, hierarquizao. Deus criou o mundo, a partir do caos

    original, ao separar os elementos, dar forma aos seres e ordenar o ambiente de

    forma hierrquica. A criatividade aqui, definida como um processo ordenador, de

    integrao unidade, com a mandala como objetivo. E mais ainda, as ordens moral

    e esttica so associadas: justia, proporo, adequao, sistema; cada coisa em seu

    lugar. (Ibid, p.47)

    2- Arqutipo do Puer Aeternus

    Quando a criatividade vista exclusivamente como novidade, ela est sob o

    arqutipo do puer. Dessa forma o criativo aponta sempre para o futuro, renegando o

    que j est estabelecido e maduro como ultrapassado. A criatividade ser definida

    principalmente pela palavra originalidade, enquanto sua expresso negativa ser a

    irresponsabilidade narcisista. (Ibid, p. 48)

    Aqui a criatividade marcada pela instabilidade e volatilidade, sendo

    constantemente superada por algo mais criativo. Talvez possamos identificar essa

    noo criativa nos padres vertiginosos da moda, constantemente sendo superados

    pela maior originalidade da prxima estao.

    3- Arqutipo da Sombra

    Dando corpo a uma certa radicalizao do aspecto anterior, encontramos a

    noo da criatividade sob o arqutipo da sombra. Aqui, criativo tudo que contesta,

  • 8

    protesta, destri. A manifestao criativa descontrolada, abissal, excessiva e

    conflituosa.

    Em lugar de intelecto e razo, criatividade aqui significa primitivo, desnudo, ignorante, negro, despojado e depravado. (...) Esta viso de criatividade insiste em que ela entre em conflito com tudo que subjugue seu poder cnones culturais, padres de gosto, moralidade burguesa. (Ibid, p. 48-49).

    Muitos artistas - principalmente msicos, poetas e atores - se encaixam nessa

    categoria, ao buscar nas profundezas do inconsciente, seja atravs de drogas ou

    outros meios, a inspirao para sua obra.

    4- Arqutipo do Ego

    A conscincia tambm pode desempenhar uma funo chave quanto ao

    instinto criativo. Hillman cita como exemplo mtico o roubo do fogo sagrado por

    Prometeu. Defende ainda que essa a noo mais significativa na nossa sociedade

    atual, por ver a criatividade como uma maneira de resolver problemas, e no como

    algo sagrado. Segundo Hillman, O criativo, percebido pelo ego, uma inventiva

    resoluo de problemas, tudo aquilo que pode servir para expanso ou

    intensificao da conscincia. (Ibid, p. 49). Aqui o trabalho consciente e constante

    criativo. Essa noo de criatividade parece se encaixar perfeitamente com o

    trabalho cientfico.

    5- Arqutipo da Persona

    Quando a criatividade se identifica com a fama e a popularidade, pode estar

    sendo exercida sob a noo da Persona. O indivduo se confunde com sua prpria

    imagem pblica e no consegue desvencilhar sua criatividade dessa imagem, em

    parte pelo fascnio que exerce e em parte porque essa imagem passa a ser a

    portadora do instinto criativo. Ou seja, no mais a pessoa que exerce a

    criatividade, e sim a sua imagem.

    Essa forma de se expressar criativamente coloca o indivduo numa situao

    delicada, pois a cobrana pblica pode precipitar uma auto-destruio ao se abdicar

  • 9

    dessa imagem criativa. Por outro lado, o portador dessa caracterstica pode se tornar

    um grande referencial para toda a sociedade em determinada poca e forjar um

    novo olhar. Segundo Hillman, ao assumir a funo de catalisador da transformao,

    a pessoa pode fundir a individualidade com a sociedade, realizando-se como

    elemento formador da conscincia coletiva, como ator num drama histrico (Ibid,

    p. 50)

    6- Arqutipo da Grande Me

    A criatividade frequentemente pode ser experimentada como uma renovao,

    um renascimento. Quando o instinto criativo emana das profundezas do

    inconsciente, ou simbolicamente, da natureza, da terra ou dos oceanos, est sendo

    manifestada pelo aspecto da Grande Me. Segundo Hillman, nesse caso, o criativo

    uma fonte externa, uma inconscincia que a me, nutrindo e regenerando (...).

    (Ibid, p. 51)

    Durante sua vida, uma pessoa pode se encontrar sob vrias dessas noes,

    dependendo do desenvolvimento dos seus estgios arquetpicos. Criana, Pai, Me,

    Ego, Sombra e Persona se alternam e se sucedem de acordo com as particularidades

    da vida de cada indivduo. Hillman aventa a interessante hiptese de que as crises

    criativas se devam a dificuldades de transio (entre essas fases arquetpicas),

    como por exemplo o perodo crtico da meia-idade, quando exigida uma nova

    autopercepo em estilo e em contedo. (Ibid, p. 51)

    Alm de sofrer uma alterao entre esses padres arquetpicos, o instinto

    criativo tambm pode estar sob ao de mais de um ao mesmo tempo. Hillman

    chamou esse fenmeno de contaminao:

    (...) Combinaes mpias dessas experincias arquetpicas do criativo: o jovem e a sombra podem no estar suficientemente separados, dando-nos o enfant terrible; a criana o pai juntos nos do o velho tolo (...); ou, pior, a me e a sombra juntas amalgamam toda claridade e diferenciao, gerando o culto da terra e do sangue e da selvageria regressiva em nome da fora com prazer e da renovao vital (Ibid, p. 52)

  • 10

    1.4 A Criatividade e os Padres Sociais

    Como qualquer outro instinto, o homem compelido a colocar a criatividade

    em prtica, dando vazo sua energia psquica. Entretanto, em muitos casos, essa

    energia represada, em nome da ordem e dos padres estabelecidos. Por isso a ideia

    de Jung de que a criatividade instintiva, contrapondo-a ao fazer estritamente

    artstico, libertadora para o ser humano. Nem todos os homens so artistas, mas

    independentemente disso, todos carregam em si a fagulha da criatividade, herana

    instintiva que nos diferencia dos demais animais.

    Dessa forma, tem-se que a criatividade deve permear todos as atividades da

    vida humana, regando o dia a dia com a preciosa gua do inconsciente, fonte

    inesgotvel de smbolos, transformaes e novidades.

    Segregar a criatividade como um dom exclusivo dos artistas e visionrios

    esvaziar a atividade humana de significado. O indivduo privado - consciente ou

    inconscientemente - do seu potencial criativo, pode sofrer um desequilbrio

    psquico. Essa afirmao foi feita pelo prprio Jung, ao observar, no volume XVI/I,

    que: A maioria deles (os pacientes) j se submeteu anteriormente a alguma forma de tratamento psicoteraputico com resultados parciais ou negativos. Aproximadamente um tero dos meus clientes nem chega a sofrer de neuroses clinicamente definidas. Esto doentes devido falta de sentido e contedo de suas vidas. No me oponho a que se chame essa doena de neurose contempornea generalizada. (JUNG, 2009, 83)

    Dessa forma, resta apenas um incessante fazer mecnico, aonde a repetio de

    frmulas e modelos estabelecidos a regra.

    No decorrer da evoluo da sociedade ocidental, fomos impelidos cada vez

    mais a tomar partido da conscincia, em detrimento do mundo incognoscvel. A

    postura cientificista, dominante nos ltimos sculos, prima pela preponderncia da

    conscincia, ao dividir e classificar em categorias tudo o que o homem pode

    conhecer e descartar o que est alm da compreenso humana. Esse movimento

    polarizado foi muito importante para atingirmos o nvel de desenvolvimento atual.

    Atravs dele, o homem se especializou em diversas reas, obtendo resultados que

  • 11

    antes no passariam de fantasia, como por exemplo, as viagens espaciais. Sobre

    isso, Jung escreve, no captulo X da obra Os arqutipos e o inconsciente coletivo:

    A unilateralidade uma caracterstica inevitvel, porque necessria, do processo dirigido, pois direo implica unilateralidade. A unilateralidade , ao mesmo tempo, uma vantagem e um inconveniente. (...) Nossa vida civilizada exige uma atividade concentrada e dirigida da conscincia, acarretando, deste modo, o risco de um considervel distanciamento do inconsciente. Quanto mais capazes formos de nos afastar do inconsciente por um funcionamento dirigido, tanto maior a possibilidade de surgir uma forte contraposio, a qual, quando irrompe, pode ter consequncias desagradveis. (JUNG, 2002, 138-139)

    Quando no to graves quanto uma psicose, os reflexos desagradveis

    podem incluir atos falhos ou ainda um sequestro emocional. No dia a dia,

    entretanto, essa polarizao egica pode levar a uma rotina massacrante, causando

    frustrao e perda de valores caros ao sentido da vida. Para Fayga Ostrower:

    Nessas circunstncias, como poderia o trabalho ser criativo? Pois no s se exclui do fazer o sensvel, a participao interior, a possibilidade de escolha, de crescimento e de transformao, como tambm se exclui a conscientizao espiritual que se d no trabalho atravs da atuao significativa, e sobretudo significativa para si em termos humanos. (OSTROWER, 1987, p. 39)

    1.5 Intuio

    Na base dos processos criativos encontramos a intuio, pois a conscincia

    origina-se de uma psique inconsciente, mais antiga do que a primeira, que continua

    a funcionar juntamente com a conscincia ou apesar dela. (JUNG, 2002, 502). A

    intuio uma faculdade que possibilita a associao de contedos conscientes e

    inconscientes, estabelecendo um fluxo espontneo de informaes que de outra

    forma, no seriam relacionados. A intuio, ao contrrio dos instintos, possibilita

    reaes diferentes novas situaes apresentadas ao indivduo. Ela responsvel

    pela grande gama de decises que diferentes pessoas tomam quando expostas

    situaes semelhantes.

    Segundo Jung,

  • 12

    Esta uma funo da percepo que compreende o subliminar, isto , a relao possvel com objetos que no aparecem no campo da viso, e as mudanas possveis, tanto no passado como no futuro, a respeito das quais o objeto nada tem a nos dizer. A intuio uma percepo imediata de certas relaes que no podem ser constatadas pelas outras trs funes no momento da orientao. (JUNG, 2009, 59)

    O que confere grande importncia intuio o fato de que ela capaz de

    trazer para a conscincia percepes nicas e inovadoras, podendo apresentar

    caminhos que transcendem os limites da lgica.

    No captulo X do volume IX/I das Obras Completas, Jung fala sobre a forma

    de funcionamento da memria e faz uma relao com a intuio. Citando esse

    trecho, poderemos entender mais claramente como a intuio se processa:

    Alm disso, a memria funciona em geral automaticamente. Costuma utilizar as fontes da associao, mas muitas vezes serve-se desta de um modo to extraordinrio, que preciso refazer um cuidadoso exame de todo o processo de reproduo da memria, a fim de descobrir como certas lembranas conseguiram chegar conscincia. Muitas vezes essas fontes no podem ser encontradas. Em tais casos impossvel descartar a hiptese da atividade espontnea do inconsciente. Outro exemplo a intuio, a qual se baseia principalmente em processos inconscientes de natureza muito complexa. Por esta peculiaridade, defini a intuio como a percepo via inconsciente. (JUNG, 2002, 504)

    Pode-se dizer que a intuio uma funo autnoma, sendo impossvel

    submet-la ao controle da conscincia. Da mesma forma que, quando precisamos e

    no conseguimos nos recordar de alguma informao importante basta nos

    distrairmos com qualquer outra coisa para que a informao nos surja mente,

    como que por capricho do inconsciente. Assim tambm a intuio se processa. Tudo

    que podemos fazer deixar o caminho livre para que os contedos ocultos sintam-

    se vontade para vir conscincia, nos brindando com o paradoxal frescor da sua

    sabedoria ancestral.

    Entretanto, confiar somente na inspirao no a melhor forma de se obter

    um bom produto criativo. A inspirao vai ser muito melhor aproveitada se j

    estivermos com a mente direcionada para o trabalho.

    Pensar na inspirao como um instante aleatrio que venha a desencadear um processo criativo, uma noo romntica. No h como a inspirao

  • 13

    possa ocorrer desvinculada de uma elaborao j em curso, de um engajamento constante e total, embora talvez no consciente. (OSTROWER, 1987, p. 72/73)

  • 14

    2 - Alquimia e Criatividade

    2.1 Fundamentos da Alquimia

    A origem da alquimia se confunde com a origem da civilizao humana. A

    compreenso da natureza sempre foi uma das maiores ambies do homem e temos

    nos empenhado nessa tarefa ao longo da nossa evoluo. A alquimia tomou sua

    forma partir da agregao de conhecimentos pr-cientficos oriundos de diversas

    partes do mundo civilizado. Ao lado do conhecimento pr-cientfico, relacionado

    matria e natureza, os alquimistas acrescentavam crenas, mitos e fantasias

    originrias das mais diversas partes do mundo. Muitos empreendiam viagens

    longas, visando a descoberta de novos conhecimentos que pudessem auxili-los nas

    suas obras.

    Diferentemente do que acontece hoje em dia, os alquimistas no faziam

    distino entre o mundo material e o espiritual, realizando suas operaes tanto em

    um, quanto em outro, razo pela qual muitos dos fenmenos observados so

    possveis unicamente quanto tomados por suas significaes simblicas.

    (...) o alquimista desconhecia a verdadeira natureza da matria. Ele a conhecia unicamente atravs de aluses. Na medida em que procurava investig-la, projetava o inconsciente na escurido da matria, a fim de clare-la. Na tentativa de explicar o mistrio da matria, projetava outro mistrio, isto , projetava seu prprio fundo psquico desconhecido no que pretendia explicar (...) (JUNG, 2009, 345)

    Fica claro que muitos - seno todos - os fenmenos relatados nos tratados

    alqumicos so projees inconscientes e no meras reaes qumicas. igualmente

    provvel que parte dos relatos tenham sido induzidos simplesmente por intoxicao,

    visto que os metais utilizados nos processos so sabidamente venenosos e quando

    submetidos a operaes qumicas como a calcinao, a dissoluo e o derretimento

    podem facilmente liberar compostos txicos. Entretanto, por mal ou por bem, essas

    alucinaes quimicamente induzidas foram interpretadas de acordo com as crenas

    e metas dos alquimistas e, depois de enriquecidas com altas doses de mitologia e

    misticismo, foram registradas nos tratados.

  • 15

    Ainda assim, a projeo de contedos psquicos sobre a matria era uma

    constante durante todas as fases da obra. Jung relata esse fato em diversas ocasies,

    como nesse trecho: Devido projeo h uma identidade inconsciente entre a

    psique do alquimista e a substncia arcana ou substncia de transformao: o

    esprito cativo dentro da matria. (JUNG, 2009, 376). Podemos compreender que

    devido a toda carga simblica empregada nos processos, a transformao buscada

    no seja apenas qumica, mas se referia ao prprio homem, enquanto fonte de toda

    projeo.

    O psiquiatra alemo Heinrich Karl Fierz, estudioso da alquimia como

    simbolismo do inconsciente, fez uma anlise bastante detalhada do trabalho do

    alquimista Lampert Spring, publicado em 1625. O tratado de Lambspring

    composto por quinze figuras acompanhadas de texto, aonde seu autor descreve a

    criao da pedra filosofal. Fierz analisou as ilustraes de Lambspring e estabeleceu

    uma relao entre o processo alqumico e o processo de individuao, enquanto

    crescimento interior, renovao e evoluo. Nas quinze figuras, Lambspring

    descreve, atravs de oposies, como um paradigma ultrapassado deve se abrir e

    incorporar novos contedos para que a transformao ocorra. Esse processo

    doloroso vide a figura 14 do tratado, na qual o rei est de cama, suando por ter

    engolido o filho mas deve ser enfrentado para que a evoluo espiritual se

    processe. Segundo Fierz, A meta do desenvolvimento no que o antigo elemento

    seja destronado pelo novo, mas sim que governem em conjunto em uma sntese.

    (FIERZ, 1997, p. 274). Isso fica atestado pela figura 15 do tratado de Lambspring,

    na qual o pai e o filho, velho e novo, esto unidos e governam juntos.

    Sobre essa unio complementar, que leva evoluo espiritual, encarada

    pela psicologia analtica como o processo de individuao, Fierz tece o seguinte

    comentrio, ao mesmo tempo to simples e to profundo:

    Analogamente (ao processo descrito), a pessoa deve aceitar e assimilar seu lado sombrio, mas sem desvalorizar seu lado bom. A regra sempre a mesma: Saiba quem voc , ainda que isso signifique agitao ou at vergonha. Enfrente a nova experincia que est vindo em sua direo com intuio e entendimento, e se voc mudar, no destrua nada, mas, ao

  • 16

    contrrio, evolua e cresa. Neste sentido, Lambspring chama a meta do desenvolvimento de melhora e aumento. Mas com sua dcima quarta figura, tambm nos mostra que at a melhor preparao no consegue nos poupar o sofrimento resultante. (FIERZ, 1997, p. 275)

    Os alquimistas acreditavam que o mundo havia sido criado a partir de uma substncia

    nica, mstica e poderosa e dedicavam suas vidas, entre outras tarefas, a reencontrar essa

    substncia. Na falta de termos melhores, chamavam-na de Ouro Filosofal, Elixir da Vida

    Eterna, Pedra Filosofal, entre outros. Assim, era comum ocorrer a confuso entre o aurum

    philosophicum e o aurum vulgi objeto de desejo de muitas pessoas e o alquimista

    estava sujeito a todo tipo de mal-entendido. Eram vtimas constantes de preconceito,

    rotulados de bruxos ou lunticos e relegados aos limites das cidades. Outras vezes, eram

  • 17

    mantidos presos, coagidos a buscar a transmutao dos metais em ouro, por interesses de

    ignorantes algozes. Por isso, os alquimistas preferiam uma vida mais reservada, afastada

    do convvio social e avessa s convenes impostas por esse convvio.

    Muitos se dedicavam outras atividades. A mais comum era medicina, a

    exemplo de Paracelso e Dorn, por oferecer condies excepcionais de estudo, mas

    tambm se dedicavam filosofia ou ainda msica, como Michael Maier.

    Existia entre os alquimistas um forte sentimento religioso. Todos

    acreditavam que Deus tinha influncia suprema sobre o resultado da obra e a orao

    era uma atitude constante, ao lado do trabalho infatigvel.

    A alquimia foi a raiz para que grande parte do pensamento cientfico atual

    pudesse se desenvolver. Causa estranhamento que hoje em dia ela seja vista com

    preconceito e pouco caso. Qumica, astronomia e medicina se desenvolveram

    partir de estudos alqumicos. Newton, o pai da fsica moderna, baseou seus estudos

    em obras alqumicas. Alm, claro, das cincias humansticas, como a filosofia e a

    psicologia, que devem muito aos tratados alqumicos.

    Quando Jung entrou em contato com a alquimia, primeiramente atravs do

    texto O Segredo da Flor de Ouro, do sinlogo Richard Wilhelm, encontrou um

    respaldo histrico para suas ideias quanto psique e ao inconsciente coletivo.

    Atravs do parentesco entre as imagens e ideias manifestadas pelo homem ocidental e pelo chins, durante os seus raciocnios e meditaes, Jung recebeu a confirmao, h tanto tempo procurada, do inconsciente coletivo e dos arqutipos. (JAFF, 1982, p. 52)

    Jung dedicou muitos anos da sua vida ao estudo pormenorizado da opus

    alqumica e construiu uma enorme biblioteca sobre o assunto.

    Ao trazer esse conhecimento ancestral para a recm criada cincia

    psicolgica, Jung incorporou um arcabouo de referncias histrias que remontam -

    como o inconsciente, sua principal matria - aurora da humanidade. Dessa forma,

    foi capaz de encontrar nas culturas egpcia, mesopotmica, helnica e chinesa

    respostas para suas dvidas. Estabelecendo relaes entre essas culturas, a alquimia,

    mitos e religies, ele chegou ao conceito de arqutipo e o colocou como centro de

    nosso desenvolvimento psicolgico, ao situ-lo como ncleo dos complexos. Sobre

  • 18

    arqutipo, Jung escreveu em seu texto A Relao da Psicologia Analtica com a

    Obra de Arte Potica constante do volume XV das Obras Completas:

    A imagem primordial, ou arqutipo, uma figura (...) que reaparece no decorrer da histria, sempre que a imaginao criativa for livremente expressa. portanto, em primeiro lugar, uma imagem mitolgica. (...) Elas (as imagens) so, por assim dizer, os resduos psquicos de inmeras vivncias do mesmo tipo. Elas descrevem a mdia de milhes de experincias individuais apresentando, dessa maneira, uma imagem da vida psquica dividida e projetada nas diversas formas do pandemnio mitolgico. (JUNG, 1985, 127)

    2.2 A Alquimia da Criatividade

    Esse trabalho procura traar um paralelo entre a obra alqumica e o processo

    criativo. No tenho inteno de declarar que os criativos so os novos alquimistas.

    Mesmo porque, acredito que todos ns somos descendentes e herdeiros da cultura

    alqumica. Apenas estabeleo uma relao que me chamou muito a ateno quando

    comecei a estudar alquimia. Vou tentar, no presente trabalho, estabelecer esse

    paralelo da forma mais clara possvel. Entretanto, cabe uma ressalva. Em psicologia

    analtica se compara a opus alqumica individuao, processo que leva toda a vida

    do homem - por no ser possvel tomar mais tempo que isso - e nesse texto estou

    comparando a obra alqumica obra criativa, num sentido mais objetivo, ou talvez

    pudesse dizer, mais mundano. Ento, nesse ponto de vista, diferente do que

    acontecia com os alquimistas, possvel a realizao completa da obra diversas

    vezes durante nossa existncia.

    O ato criativo como um todo encerra dois momentos. Um interior, que o

    processo pelo qual a obra gerada, e outro exterior, caracterizado pela obra em si.

    Na primeira fase a unidade flagrante, pois no se pode separar o criador da sua

    obra. Aqui coexistem paradoxalmente unidade e multiplicidade, visto que uma

    infinidade de elementos e referncias esto misturados, se combinando mas sem

    nenhuma forma definida. Essa etapa pode ser relacionada nigredo alqumica,

    aonde o caos marcante. Segundo a viso tradicional da alquimia, o chaos uma

    das designaes da prima materia, logo no existe diferenciao, nem significados,

  • 19

    apenas escurido e apodrecimento. No momento exterior, a obra formada toma

    existncia prpria. O processo est completo e a obra uma entidade livre e

    independente do seu criador.

    2.3 Operaes Alqumicas e Processo Criativo

    Na busca da pedra filosofal os alquimistas submetiam a matria bruta a uma

    srie de operaes fsico-qumicas, bem como psquicas e imaginrias. No h um

    nmero definido de operaes alqumicas. Algumas se sobrepe quanto tcnica

    utilizada e outras so completamente projetivas, no atuando diretamente na

    matria. Todas entretanto carregam grande carga arquetpica, pois se relacionam aos

    elementos primordiais como o fogo, a gua, a terra e o ar, por exemplo. Alm disso,

    as operaes esto intimamente ligadas noo de transformao e por isso

    encerram os contedos culturais que se relacionam arquetipicamente

    transformao e evoluo fsica, espiritual e mental do homem, como por exemplo

    o nascimento, a reproduo e a morte, juntamente com todos seus reflexos sobre a

    psique.

    Para limitar a extenso desse trabalho, vou me ater s operaes descritas por

    Edward Edinger, no livro Anatomia da Psique. Dentre o universo ilimitado de

    operaes, Edinger considerou sete como principais e as descreveu, usando-as como

    um guia para entender o contedo catico contido nos tratados alqumicos. So elas:

    calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio e coniunctio.

    Segundo Edinger,

    Cada uma dessas sete operaes o centro de um elaborado sistema de smbolos. Esses smbolos centrais da transformao compe o principal contedo de todos os produtos culturais. Eles fornecem as categorias bsicas para a compreenso da vida da psique, ilustrando praticamente toda gama de experincias que constituem a individuao. (EDINGER, 1985, p. 34)

  • 20

    Solutio

    A solutio est relacionada com o elemento gua e uma das principais

    operaes alqumicas. Ela se relaciona com o mar, que uma imagem constante

    para o inconsciente. A gua dissolve a matria, destruindo sua consistncia e a

    transformando numa substncia indiferenciada, como a prima materia. Era,

    portanto, ponto de partida para grande parte das operaes alqumicas. A solutio

    est diretamente associada criao pois Considerava-se a gua como o tero e a

    solutio como um retorno ao tero para fins de renascimento (Ibid, p. 67)

    Criativamente, podemos relacionar a solutio fase de busca de referncias.

    Aqui, o artfice deve procurar se inundar com o maior nmero de referncias

    possvel, se instruir e dominar a tcnica que deseja utilizar.

    Existe a referncia constante solutio de um rei. Podemos entender que o rei

    representa o ego, e que dissolv-lo encharcar a conscincia em grande quantidade

    de informaes. Assim, abrimos caminho para que os contedos inconscientes

    venham tona e possam se agrupar em novas relaes.

    A solutio tambm desmembramento e fragmentao. Para que acontea a

    criao de algo novo, preciso que o antigo abra espao. Isso nem sempre feito de

    forma suave, e frequentemente assume a condio de um trauma. A solutio amolece

    e fragmenta. Conceitos estabelecidos so destrudos e suas partes arrancadas servem

    de matria prima para composio de novos paradigmas.

    Calcinatio

    A calcinatio a operao do elemento fogo. Est relacionada com o inferno,

    com o enxofre e com a purgao e depurao (extrao refinante). O fogo tambm

    uma metfora para desejo que, como aquele, se no for controlado, arde at ser

    consumido totalmente. Atravs do fogo os metais so purificados, da a relao com

    a depurao.

    Da perspectiva mais simples, a calcinatio um processo de secagem.

    (Ibid, p. 61). Dentro do processo criativo, se reconhece na calcinatio a depurao

    das ideias. Tudo que atrapalha uma nova combinao descartado. Uma ideia

    gerada precisa se desvencilhar de tudo que a fragiliza, das impurezas preconcebidas

  • 21

    e dos pontos de vista viciados. Ela precisa ser depurada e lapidada. Assim, atravs

    da calcinatio ocorre uma seleo do que vai ser descartado e de quais contedos

    sero escolhidos para serem depurados.

    prtica comum no ofcio publicitrio a busca pelo sucinto. preciso tirar

    do texto tudo que estiver sobrando, at restar o mnimo possvel: a informao mais

    concisa e direta. Para isso usa-se a expresso enxugar. Enxugar retirar a

    umidade atravs do aquecimento e remete diretamente operao da calcinatio.

    Deixar um texto ou um layout enxuto retirar tudo que no ajuda na compreenso

    do conceito publicitrio, evitando passar uma mensagem confusa. Segundo Menna

    Barreto, O conjunto de ideias em direo de determinado argumento necessita ser

    unssono e slido. (BARRETO, 2004, p. 199)

    Coagulatio

    A coagulatio est relacionada ao elemento terra, assim como toda matria,

    como a carne (corpo) e o alimento. a operao de solidificao e atravs dela as

    coisas se tornam concretas. Ela retira o lquido que dissolvia e transforma a

    substncia em algo com formato e posio definidos. Por isso a coagulatio est

    intimamente relacionada criao. Edinger refora o sentido de ao que essa

    operao carrega. Ele cita vrios mitos e sonhos nos quais a coagulatio

    experimentada como criao de terra firme atravs de alguma ao, como um

    movimento contnuo, agitao, batedura ou movimento em espiral. Em termos

    psicolgicos, significa que a atividade e o movimento psquico promovem o

    desenvolvimento do ego. A exposio tempestade e tenso da ao, a batedura

    da realidade, solidifica a personalidade. (EDINGER, 1985, p. 103)

    No jargo publicitrio existe uma expresso diretamente ligada coagulatio

    alqumica. Durante a fase de criao de um conceito ou ideia, comum usarmos a

    expresso pedalar para indicar um esforo a mais. Uma ideia que ainda no se

    sustenta pode ser facilmente destruda. como se pudssemos visualizar o processo

    da ideia passando ao estado slido, sendo coagulada atravs dessas pedaladas e

    tomando corpo, se solidificando e se tornando palpvel. Pedalar uma ao, uma

    agitao intrapsquica, debater-se em busca da soluo, levando batedura, como

  • 22

    citado por Edinger. um esforo que concretiza e d corpo e seu sentido simblico

    s pode ser compreendido to claramente a partir do arcabouo mitolgico que

    trazemos inconscientemente.

    A coagulatio pode ainda ser vista como materializao da obra criativa. o

    momento em que as ideias deixam de ser abstratas, ou deixam de existir apenas na

    imaginao e passam a existir tambm como obra criativa, seja uma poesia, tela ou

    qualquer outro meio utilizado. Aqui a coagulatio reassume a forma de criao

    propriamente dita, pois todo o processo leva criao, mas cada fase tem suas

    peculiaridades.

    Sublimatio

    A sublimatio pertence simbologia do elemento ar. Esta operao representa

    a elevao, o distanciamento e a razo. Quando estamos muito prximos de algo, ou

    mesmo inseridos e vivenciando determinada situao, no conseguimos ter uma

    perspectiva apurada do contexto e muitas vezes somos levados a interpretaes

    equivocadas. Ao contrrio, ao nos distanciarmos, podemos ter uma viso do todo,

    muito mais completa. Deixamos de ser to afetados pelo contedo e podemos julgar

    mais racionalmente, da a associao da sublimatio com a razo. Esta operao

    tambm se refere depurao, no sentido de que s o que mais puro se eleva.

    Um artista plstico est frequentemente se afastando da sua tela, para poder

    observar melhor o conjunto e decidir suas prximas pinceladas. Quando temos um

    problema para resolver, importante um certo distanciamento, desde que no

    percamos o vnculo com problema, pois assim no teramos motivo para tentar

    solucion-lo. Edinger, relata o perigo da sublimatio no seguinte trecho:

    A capacidade de estar acima das coisas e de ver a si mesmo com objetividade a habilidade de dissociar. O uso dessa palavra indica de imediato o perigo da sublimatio. (...) A capacidade de dissociao da psique tanto a fonte da conscincia do ego quanto a causa da doena mental. (Ibid, p.143)

    A criatividade tambm beneficiada com um breve afastamento do

    problema. Quando paramos de pensar objetivamente em algo, damos espao para

  • 23

    que a mente divague e faa suas associaes livremente, chegando a resultados

    inesperados. Fbio Zugman, no livro O Mito da Criatividade cita um exemplo

    bastante curioso do uso intuitivo da sublimatio no ambiente corporativo:

    Jerry Hirshberg, lendrio designer-chefe da Nissan Internacional, esvaziava o seu escritrio e levava todo mundo ao cinema justamente quando um problema parecia obcec-los. Fazia isso sempre que as ideias se estagnavam, ou quando um prazo se apertava. (ZUGMAN, 2008, p.110)

    Mortificatio

    A mortificatio est ligada diretamente nigredo, a primeira das trs fases da

    obra alqumica. O negrume, ou nigredo, um estado inicial, sempre presente no

    incio como uma qualidade da prima materia, do caos, ou da massa confusa.

    (JUNG, 2009, 334)

    A mortificatio est associada tambm putrefactio. Essas duas operaes

    no encontram paralelo na qumica, mas esto relacionadas experincia de morte e

    apodrecimento. A morte sempre causou grande comoo no homem e representa

    tortura, sofrimento e privao. J o apodrecimento algo repugnante aos sentidos,

    tanto visual quando olfativamente. Apesar disso, o apodrecimento da terra, com

    seus vermes, somados ao esterco, como adubo, que torna possvel a germinao

    saudvel da semente que vai alimentar o homem. Logo, da morte e da podrido

    que vem a vida. A percepo deste paradoxo levou a muitos desdobramentos dentro

    do simbolismo alqumico.

    A mortificatio a mais negativa operao da alquimia. Est vinculada ao negrume, derrota, tortura, mutilao, morte e ao apodrecimento. Todavia, essas imagens sombrias geralmente levam a imagens altamente positivas crescimento, ressurreio, renascimento, mas a marca registrada da mortificatio a cor negra. (EDINGER, 1985, p. 166)

    Dentro do processo criativo, a mortificatio pode ser sentida tanto no incio -

    quando o ponto de partida um caos desorganizado - quanto durante o processo,

    quando nos vemos frente a dvidas, frustraes e no sabemos para onde ir ou

    mesmo se vale a pena continuar. Essa situao de desespero costuma gerar a

    motivao para continuar o trabalho. De acordo com a lei dos opostos, uma intensa

  • 24

    conscincia de um dos lados constela seu contrrio. (Ibid, p. 167). Conforme um

    ditado popular, quando se est no fundo do poo, o nico caminho que resta para

    cima e para fora do poo. Esse ditado condensa a sabedoria popular, arquetpica

    por excelncia, e mostra que, por mais terrvel que seja a treva, a luz sempre ir

    aparecer.

    Essas imagens levam crena de que o sofrimento ser compensado por

    bons resultados. Um trabalho cansativo pode ser entendido como uma mortificao

    do corpo, mas a expectativa de bons frutos leva continuao da busca. Novamente

    me remeto Anatomia da Psique:

    A semeadura do ouro (corpus solis) uma imagem interessante. O ouro representa a luz, o valor, a conscincia. Seme-lo significa sacrific-lo, oferec-lo mortificatio, na esperana de que se multiplique. Da mesma maneira como as sementes dos gros no so comidas, mas deixadas parte, as sementes da conscincia no so usadas para a sobrevivncia. Em vez disso, so oferecidas ao inconsciente por meio de uma espcie de morte voluntria do conforto, da justeza e da racionalidade da pessoa. Permitimo-nos ser menos, a fim de sermos mais (...) (Ibid, p.178)

    A mortificatio uma ddiva para os criativos, pois serve de combustvel para

    a criatividade. Ela traz consigo uma srie de questionamentos que foram a procura

    por respostas. Sem questionamento, o processo no se inicia. A semente seria

    semeada em vo se no se decompusesse no solo. Assim a vida, filha da Morte.

    (BACHELARD, 1991, p. 200). O publicitrio Stalimir Vieira, fala sobre esse estado

    de nigredo, identificado por ele como melancolia:

    () Ento, pronto: isso melancolia, uma "tristeza" diante do incomensurvel do universo, diante da irreversibilidade da morte, diante da impossibilidade de compreender o porqu de si mesmo. Algum que se sente assim o tempo todo torna-se absolutamente insuportvel. Por outro lado, de algum que nunca passou por isso provavelmente pouco haver a esperar em termos de criatividade. (VIEIRA, 1999, p. 28)

    Fica claro a funo da mortificatio e da putrefactio como catalisadoras do

    processo criativo. Vamos para a prxima operao.

  • 25

    Separatio

    A separatio a operao da distino. A criao se d atravs da

    diferenciao de contedos outrora amalgamados. A tradio alqumica relata que a

    diviso da prima materia formou os quatro elementos primordiais: fogo, ar, gua e

    terra. Diversos mitos cosmognicos descrevem a criao do mundo atravs da

    separao e ordenao do caos primordial. O poeta latino Ovdio, descreve em

    Metamorfoses, sua obra mais conhecida, a criao do mundo:

    Antes de o mar, as terras e o cu que est acima de todos existirem, a face da natureza era uma s em toda sua abbada, estado que os homens denominaram caos: uma massa grosseira e desordenada de coisas, nada seno resduos sem vida e sementes aguerridas de elementos mal ajustado unidos num todo. (...) Deus ou a delicadssima Natureza ordenou essa confuso; porque separou a terra do cu, e o mar da terra, e apartou os cus etreos da densa atmosfera. Tendo ento liberado esses elementos, tirando-lhes o jugo do cego amontoado de coisas, ele os colocou a cada um em seu prprio lugar e os prendeu vigorosamente em harmonia. (EDINGER, 1985, p. 199, apud Ovdio, Metamorphoses, I, bloco1, linhas 5-25)

    Dentre as ferramentas para se obter a necessria conciso do texto

    publicitrio, frequentemente utilizado um recurso chamado sintaxe disjuntiva,

    que nada mais do que a substituio das vrgulas por pontos finais, com o objetivo

    de separar as frases, deixando-as mais curtas e fceis de entender. Assim o texto

    fica mais gil e as ideias so passadas de forma mais efetiva.

    A imagem do cortar ainda usada em propaganda no sentido de aparar

    excessos. Diz-se que algo deve ser cortado se est sobrando. Essa uma noo

    bastante difundida nos meios publicitrios. Mena Barreto diz que quando lhe

    parecer que o texto est pronto, tome a resoluo de cortar, ainda assim, mais uma

    palavra! (BARRETO, 2004, p. 199) (grifo do autor)

    Essa imagem se encontra com a operao calcinatio no sentido de ser uma

    extrao de impurezas.

  • 26

    Coniunctio

    A coniunctio, ao contrrio da separatio, se caracteriza pela sntese.

    Quimicamente, a fuso de metais, gerando um composto com caractersticas

    diferentes dos originrios.

    Psicologicamente, entretanto, a coniunctio tem significados muito mais

    profundos e interessantes. A psicologia analtica divide essa operao em duas

    fases, sendo: coniunctio inferior e coniunctio superior.

    A coniunctio inferior uma unio ou fuso de substncias que ainda no se encontram completamente separadas ou discriminadas. sempre seguida pela morte ou mortificatio. A coniunctio superior, por outro lado, o alvo da opus, a suprema realizao. (EDINGER, 1985, p. 227)

    Toda atividade criativa se vale da coniunctio. atravs dela que se d a

    unio de conceitos dspares, que caracteriza a criatividade. Usando do ambguo e do

    imprevisto, obtm-se uma nova forma de ver. Muitas vezes so feitas relaes no

    decorrer do processo que no terminam na obra finalizada. Essas relaes

    intermedirias podem ser vistas como uma coniunctio inferior, levando de volta

    nigredo e retomada do processo. O processo se repete indeterminadamente,

    realizando todas as operaes alqumicas novamente - aqui temos a imagem da

    circulatio alqumica - buscando uma maior depurao, at que finalmente chegamos

    coniunctio superior. Aqui os elementos j esto depurados, e so perfeitamente

    distintos e opostos entre si.

    Vejamos o caso do humor. Sua essncia a interseo que ocorre com dois planos de experincia, cada qual consistente por si mesmo, porm em conflito um com outro. So dois sistemas de referncias habitualmente incompatveis um com outro. No decorrer dessa coliso, pensamento e emoo separam-se. O pensamento salta para o outro contexto, mas a emoo, menos gil, resolve-se em riso. O desenrolar de qualquer anedota obedece a esse processo. Ela ser to mais bem-sucedida quanto melhor puder manter a lgica, a coerncia, at o momento de seu desfecho. (BARRETO, 2004, p. 98)

    2.4 Entraves Obra e Bloqueios Criativos

    No decorrer da opus, os alquimistas encontravam grandes percalos. Alm das

  • 27

    dificuldades materiais, como a obteno de matria prima e o encontro de um bom

    auxiliar, ainda enfrentavam um imenso labirinto simblico. Relacionar planetas,

    metais, partes do corpo humano e operaes fsico-qumicas e ainda manter a

    sanidade no tarefa fcil. Era preciso muita f em Deus e no resultado do trabalho

    para no se deixar levar pelo desnimo, pela frustrao ou pela loucura.

    No se trata aqui apenas do perigo do envenenamento ou de exploses (...) fcil reconhecer o perigo de complicaes psquicas. (JUNG, 2002, 429, apud Haly, in: Hoghelande, 1. c., in: Theatr. Chem., 1602, I, p. 204) (...) E ento o demnio Ofico introduz a negligncia, entravando a nossa pesquisa, coleando de todos os lados, de dentro e de fora, acarretando omisses, o medo, a insuficincia na preparao; outras vezes, ele tentar, atravs dos fracassos em nossos empreendimentos e de danos, desviar-nos (da obra). (Ibid, 430, apud Olimpiodoro, em: Berthelot, Alch. grecs, II, IV, 28 p. 92/86)

    Como grande parte da evoluo humana se d unicamente no campo

    tecnolgico, enquanto o homem em si evolui muito lentamente, natural que

    guardemos muitas semelhanas com nossos antepassados alquimistas. Hoje em dia,

    as dificuldades no so atribudas ao esprito dos metais ou a demnios

    zombeteiros, mesmo assim, podemos tirar lies preciosas ao observar o modo de

    trabalho dos alquimistas.

    O empresrio americano Brian Clark, que mantm diversos blogs sobre

    criatividade e pensamento lateral, agrupou os principais bloqueios criativos e

    elaborou uma lista com dez deles. Vamos olh-los de perto.

    1- Procurar a resposta certa

    Dentro dos domnios da alquimia, no existe uma resposta certa. Os

    alquimistas tentavam repetir os passos que seus mestres deixaram registrados nos

    tratados, mas no se escusavam de tentar novas operaes para obter os resultados

    almejados. Mesmo a receita certa no era exata e podia levar a resultados

    imprevisveis. O erro, to menosprezado nos tempos atuais, era reconhecidamente

    uma grande fonte de aprendizado.

    2- Pensar logicamente

  • 28

    O pensamento alqumico era completamente simblico. As relaes entre

    metais, planetas e conhecimentos ancestrais no obedeciam regras lgicas, mas

    laos simblicos. Pensar metaforicamente possibilita uma gama muito mais ampla

    de respostas e, mesmo que muitas no sejam aplicveis concretamente, ser mais

    fcil chegar a um resultado interessante, diferente do convencional. Essas relaes

    no lgicas possibilitavam interpretaes abertas dos fenmenos, muitas vezes

    revelando mais sobre o objeto e o indivduo do que a lgica poderia revelar. O

    smbolo possu uma riqueza imensa de contedos e no pode ser desprezado quando

    se busca uma resposta mais criativa. Colocando de lado a lgica, mesmo que apenas

    por alguns instantes, deixamos o inconsciente pensar.

    3- Seguir as regras

    O modo de vida do alquimista por si s j uma grande quebra frente aos

    padres estabelecidos. Vejamos o exemplo de Paracelso, um mestre em medicina,

    mas tido como louco por no se comportar da maneira esperada. O verdadeiro sbio

    segue suas prprias direes, no precisando agir conforme o que os outros esperam

    dele. A linha reta representa um modo direto e processual de resolver um

    problema. Isso quer dizer que, ao segui-la, voc resolve um problema do modo

    como aprendeu que deve ser resolvido: chegando mesma resposta que qualquer

    outra pessoa chegaria. ( ZUGMAN, 2008, p. 169)

    4- Ser prtico

    A praticidade importante em termos concretos, mas quando olhamos para a

    criatividade - assim como para a alquimia - vemos pouca coisa de concreto. Aqui o

    terreno o imaginrio e tentar ser prtico s vai nos enquadrar na moldura do

    padro estabelecido. Ou seja, caos, confuso e dvida - em uma palavra, a nigredo -

    so melhores combustveis para a criatividade do que a praticidade e a certeza.

    5- Trabalho no diverso

    Manter uma atitude mental de alegria e trabalhar com prazer com certeza o

    grande trunfo. Segundo Jung: O autor do Rosarium afirma que quem desejar ser

  • 29

    iniciado nesta arte e sabedoria no deve ser arrogante e sim piedoso, correto,

    profundamente compreensivo, humano, de semblante alegre e temperamento feliz.

    (JUNG, 2009, 385). O importante trabalhar com uma disposio leve, com

    interesse e principalmente amor. Quando se gosta do que se faz, o trabalho se torna

    um prazer.

    6- Esse no meu trabalho

    Pessoas criativas no aceitam limites para sua imaginao. Ideias inovadoras

    podem ocorrer a qualquer pessoa, independente de ser um especialista ou no.

    Muitos especialistas acabam ficando presos demais s regras do que possvel e do

    que no possvel que se esquecem de perguntar o porqu. Paracelso, alm de

    mdico, filsofo e alquimista, ainda se interessava por todo tipo de magia que

    pudesse encontrar.

    7- Ser uma pessoa sria

    A seriedade excessiva uma polarizao radical. preciso trafegar entre as

    duas extremidades e manter o bom humor. A pessoa muito sria enrijecida e

    pouco malevel, tendo muita dificuldade para se adaptar s novidades.

    O trabalho criativo pede uma mistura homognea entre responsabilidade e irresponsabilidade. A pessoa criativa sabe brincar com seu trabalho e com si mesma, por prazer. Sabe que na maioria das vezes, seus esforos podem dar em nada. Seu humor e sua ironia so famosos. Tudo isso com uma disciplina de dar inveja ao mais srio dos srios. (ZUGMAN, 2008, p. 78)

    8- Evitar a ambiguidade

    Para o alquimista, a ambiguidade a regra. Nada dito claramente e mesmo

    as instrues mais diretas carregam grande dose de simbolismo, que pode levar a

    interpretaes diversas. Segundo Jung, a alma ambgua. Os contedos

    arquetpicos da psique inconsciente no so expressos de forma objetiva e lmpida,

    mas sim, atravs de aproximaes, ambigidades e paradoxos. No volume IX/I das

    Obras Completas, Jung diz que:

  • 30

    Um contedo arquetpico sempre se expressa em primeiro lugar metaforicamente. Se falar do Sol e com ele identificar o leo, o rei, o tesouro de ouro guardado pelo drago, ou a "fora vital de sade" do homem, no se trata nem de um, nem de outro, mas de um terceiro desconhecido, que se expressa mais ou menos adequadamente atravs dessas metforas. (JUNG, 2002, 267)

    No processo criativo, a ambiguidade o meio de encontrar novas relaes

    entre os contedos claramente percebidos. A arte se vale da ambiguidade para

    quebrar conceitos e contestar padres estabelecidos. Na propaganda a ambiguidade

    muito utilizada para cruzar conceitos dspares, gerando uma nova ideia.

    O humor repleto de ironias e duplos sentidos, extenses da ambiguidade.

    9- Estar errado ruim

    Errar, apesar da carga negativa do termo, a melhor chance para se encontrar

    novos caminhos. At o sentido literal de errar um caminho uma oportunidade pra

    se conhecer um lugar diferente. Os alquimistas, longe de evitar o erro nos seus

    estudos, trabalhavam com todas as opes possveis, registrando e simbolizando

    cada acontecimento, por mais casual. Dessa ateno e carinho para com a matria

    estudada, surgiram inmeras figuras e interpretaes. O erro leva ao conhecimento.

    Thomas Edson tornou-se notrio por interpretar seus inmeros fracassos como

    aprendizado. Suas tentativas erradas o conduziram a experimentos que deram certo.

    Sem errar, ele no teria acertado.

    Muitas vezes, um design inovador vem do que, a princpio, parecia errado. Por

    exemplo, temos o trabalho de David Carson. Numa primeira vista, seu trabalho

    pode parecer simplesmente errado ou aleatrio. Mas olhando com mais ateno - e

    com disposio - podemos entender os propsitos que balizaram sua composio.

    Carson costuma dizer que no s porque algo pode ser lido que esta sendo

    comunicado da melhor forma. Ele usa as palavras para estabelecer uma

    comunicao no-verbal, quebrando o paradigma que diz que as palavras devem ser

    lidas apenas verbalmente.

  • 31

    10- Eu no sou criativo

    Todos seres humanos so dotados de criatividade. Ela um atributo humano,

    instintivo at, como foi dito por Jung. Criar natural e inerente ao homem. Tanto

    que o homem cria a iluso de que no criativo e acredita piamente nela. O que

    diferencia uma pessoa mais criativa de outra a disposio para criar. Segundo

    Jung, no necessrio despender muitos esforos no comeo da obra; basta

    abord-la com esprito livre e vazio. (JUNG, 2009, 381, apud Ioannes A

    Mehung em: Mus. Herm.)

    Fayga Ostrower nos d uma tima ampliao do que ser livre:

    Ser livre significa compreender, no sentido mais lcido e amplo que a palavra pode ter. Significa um entendimento de si, uma aceitao em si da necessidade da existncia em termos limitados. A vivncia desse entendimento a mais plena e a mais profunda interiorizao a que o indivduo pode chegar. Ser livre ocupar seu espao de vida. Esse entendimento de si um processo e no um estado de ser. (...) Assim, a criao um perene desdobramento e uma perene reestruturao. uma intensificao da vida. (OTROWER, 1999, p. 165)

    Com essas palavras, quase lricas, Fayga Ostrower faz uma aproximao

    muito intensa entre o processo criativo e o processo de individuao, descrito por

    Jung. A criatividade uma ferramenta muito til para o auto-conhecimento. Atravs

    do processo criativo a pessoa entra em contato com seu eu interior e pode construir

    seu processo de individuao.

  • 32

    3 A Opus Criativa

    3.1 O Produto Criativo e a Pedra Filosofal

    O objetivo deste trabalho estabelecer a relao entre a alquimia e a

    criatividade, portanto, nada mais natural que identificar o produto criativo com a

    pedra filosofal, objetivo da busca alqumica. A pedra filosofal, tambm chamada de

    ouro invulgar, aqua permanens, elixir da vida, entre outras denominaes, era uma

    substncia mstica, cujo poder era capaz de matar uma pessoa ou reviver quem j

    estivesse morto. Plena de oposies, a pedra filosofal era identificada tambm com

    o Hermafrodita, ser que possua os dois sexos no mesmo corpo, smbolo mximo da

    integrao dos opostos.

    O lugar ou meio dessa realizao no nem a matria, nem o esprito, mas aquele reino intermedirio da realidade sutil que s pode ser expresso adequadamente atravs do smbolo. O smbolo no nem abstrato, nem concreto, nem real nem irreal. sempre as duas coisas: non vulgi. (JUNG, 2009, 400)

    A obra, artstica ou no, produto de um processo criativo, tambm

    caracterizada por essa duplicidade de significados. A obra assume o carter de algo

    invulgar, que conjuga tanto o material quanto o imaterial. Um simples urinol, ao ser

    elevado por Marcel Duchamp condio de arte, adquire o poder de contestar todo

    sistema social. O quadro Guernica de Picasso impressiona pela fragmentao e

    pela crueza, mesmo a quem nunca teve nenhum contato com a guerra.

  • 33

    A obra fala diretamente ao inconsciente e faz eco com contedos que no

    sabamos possuir. Assim, os poderes da obra criativa, apesar de no serem to

    miraculosos quanto os atribudos pedra filosofal, tambm so capazes de produzir

    grandes modificaes no ser humano. A criatividade emociona, apaixona, gera

    energia. Essa energia emocional, ao ser liberada, ou constelada, pode levar a uma

    transformao. Mesmo uma tirinha de cartoon em determinados momentos, tem o

    poder de nos fazer rir, questionar conceitos e aceitar novas formas de ver.

    Esse poder transformador da criatividade facilmente reconhecido, porm

    necessita de uma disposio ntima para a mudana. Edinger fala sobre o poder da

    pedra filosofal sobre um paciente em tratamento, dizendo: Para que o paciente seja

    influenciado pelo processo psicoteraputico, o ego deve estar aberto. Isso

    corresponde ideia alqumica de que o material deve estar aberto para receber os

    efeitos da tintura. (Ibid, p. 242). Da mesma forma, o espectador precisa estar

    aberto para receber o poder transformador da obra de arte. O mau humor pode

    impedir que uma piada ou uma frase espirituosa ajude a aliviar o estresse de um dia

    tenso. O preconceito - ou a ignorncia - pode impedir que uma pessoa se deleite

    com uma sinfonia de Beethoven ou uma obra do jazzista Dave Brubeck e evitar que

    sua alma se encha da energia emanada por essas composies.

  • 34

    3.2 Transformar o Velho em Novo

    Uma caracterstica indissocivel da criatividade a originalidade. Uma ideia

    inovadora o gol do criativo, seja ele um artista, um publicitrio ou um homem

    comum, no seu dia a dia. Na alquimia encontramos inmeras referncias a essa

    busca, como na imagem do j citado tratado de Lambspring, do rei engolindo o

    filho. Assim ocorre tambm na vida do ser humano. Ns somos incitados o tempo

    todo a buscar um novo olhar, uma nova forma de interpretar velhos paradigmas e de

    nos posicionarmos frente a desafios diferentes. Sem essa capacidade de inovar, o

    indivduo passa a repetir comportamentos recorrentes ou imitar um padro limitado,

    que acaba por abafar as potencialidades existentes no seu ntimo. Entretanto, fcil

    cair nessa armadilha, pois a sociedade cobra um comportamento padronizado e est

    sempre pronta para apontar e criticar qualquer divergncia do padro estabelecido.

    mais um grande paradoxo da nossa cultura.

    David Carson, um dos designers mais inovadores e revolucionrios dos

    ltimos tempos, deu uma dica de ouro a todos que buscam a inovao. Numa

    palestra ele ressaltou a importncia de se trazer para o trabalho a sua prpria

    trajetria pessoal, sua histria de vida. Assim o artfice se coloca na sua obra, se

    reflete no processo. Acrescenta um contedo invulgar, que a sua prpria

    experincia, gerando uma maior identificao entre criatura e criador. Dessa forma

    o resultado obtido nico e no pode ser atingido por ningum mais, visto que cada

    histria de vida, cada experincia nica e pessoal, bem como universal, enquanto

    imagem arquetpica. Sobre essa questo, Jung cita obras alqumicas no seu

    Psicologia e Alquimia e diz o seguinte:

    Como h uma relao ntima entre o ser humano e o segredo da matria, no s Dorneus como antes dele o Liber quartorum j exigiam que o operador estivesse altura de sua tarefa; este devia realizar em si prprio o processo que atribua materia, uma vez que as coisas so levadas perfeio pelo que lhes semelhante. Esta a razo pela qual o operador deve estar presente na obra (oportet operatorem interesse operi). Se o pesquisador estiver longe de possuir semelhana (com a obra) no galgaria altura que descrevi, nem atingiria o caminho que conduz meta. (JUNG, 2009, 375)

  • 35

    3.3 Rubedo, Multiplicatio e a Obra Finalizada

    Completada a obra, a energia criativa ali contida como expresso arquetpica

    est configurada como matria. Temos portanto uma relao bastante prxima com

    pedra filosofal: um material bruto conjugado a um contedo espiritual. A obra

    criativa exerce seu poder de transformao primeiramente no prprio artista. A

    contemplao do trabalho terminado o grande estmulo criativo e a maior

    recompensa pelo esforo empreendido. Fayga Ostrower fala sobre o momento em

    que a obra criativa dada como completa:

    Talvez seja esse momento final o momento da inspirao. sem dvida um momento sumamente decisivo e criativo o desfecho do fazer. Nascido do trabalho, das tentativas que o precederam, das lutas e dos anseios ntimos, o final indissolvel dos momentos anteriores porque consequncia necessria. Momento inspirado, mostra-nos o quanto os momentos anteriores tambm foram inspirados; talvez at certos erros no trabalho foram inspirados. (OSTROWER, 1999, p. 72)

    Assim podemos estabelecer um paralelo ainda mais amplo, trazendo a fase

    da rubedo, juntamente com a multiplicatio alqumica para essa questo. A obra

    criativa exerce um grande fascnio e possu uma propriedade multiplicadora.

    Grandes obras de arte mudam drasticamente as concepes da sociedade.

    Campanhas publicitrias podem gerar hbitos e mudar a forma como as pessoas

    conduzem suas vidas. Invenes revolucionrias, como o cinema, a televiso, os

    antibiticos, so marcos na histria da humanidade e mudaram comportamentos e

    atitudes. Cada uma dessas grandes mudanas comeou com uma ideia criativa.

    Cada ideia partiu de um trabalho consistente e de uma observao atenta e

    carinhosa de todo o contexto que envolvia sua concepo.

    Fayga Ostrower faz uma reflexo acerca dos processos criativos, se

    aproximando bastante de uma viso alqumica:

    Compreendemos que todos os processos de criao representam, na origem, tentativas de estruturao, de experimentao e controle, processos produtivos onde o homem se descobre, onde ele prprio se articula medida que passa a identificar-se com a matria. So transferncias simblicas do homem materialidade das coisas e que novamente so transferidas para si.

  • 36

    Formando a matria, ordenando-a, configurando-a, denominando-a, tambm o homem vem a se ordenar interiormente e a dominar-se. Vem a se conhecer um pouco melhor e a ampliar sua conscincia nesse processo dinmico em que recria suas potencialidades essenciais. (Ibid, p. 53)

    Assim como um alquimista projeta sua psique na matria inerte e faz com

    que esta ganhe vida, o criativo insufla vida no seu trabalho atravs da mesma

    projeo alqumica: imaginando, intuindo, simbolizando. A obra finalizada retribui,

    plena de significados, no somente ao seu criador, mas para qualquer pessoa.

  • 37

    Consideraes finais

    A revoluo industrial e a viso cientificista trouxeram para o mundo uma

    necessidade muito grande de padronizao. As pessoas foram foradas a se

    enquadrar num sistema mecanicista, onde no havia espao para a ambiguidade

    simblica. Quem se arriscava por esses terrenos, por motivo patolgico ou

    puramente por no se enquadrar, era rapidamente taxado de louco e condenado a

    diversos tipos de sanses. Atravs da escola, a educao foi formatada para limitar a

    liberdade de pensar, fazendo com que desde cedo, as crianas se acostumassem ao

    modo de produo capitalista. Entretanto, essa polarizao para o lado da

    racionalidade se mostrou insuficiente para resolver os problemas do homem e este

    se viu novamente numa situao crtica. A vida passou a se mostrar sem sentido. A

    tecnologia no basta para suprir as carncias emocionais. A cincia criou remdios

    para quase todas as doenas, menos para a indiferena que assola a humanidade.

    Nesse cenrio, vemos uma valorizao extrema da criatividade. Busca-se de

    forma insana novas ideias que possam trazer sentido vida esvaziada das pessoas.

    Infelizmente, cada boa ideia que surge imediatamente absorvida pela indstria e

    passa a configurar fonte de lucro. No lucro como ganha-po de um artista, mas o

    lucro excedente de uma indstria cega que no percebe que essa prtica um tiro no

    prprio p.

    Contra esse esvaziamento de sentido, a criatividade se mostra a nica arma.

    No apenas a criatividade artstica, mas a criatividade enquanto vivncia cotidiana.

    A integrao do pensamento simblico no nosso pensamento concreto pode

    representar um grande ganho de qualidade de vida e pode restaurar a conscincia

    mitolgica que traz sentido para a vida do homem. Os mitos, as lendas e os

    smbolos so carregados de sentido, sentimentos e emoes que foram relegadas,

    pelo nosso sistema, a um plano ao qual apenas as crianas e os loucos tem acesso.

    Resgatar a fantasia mtica revela uma perspectiva histrica. O homem deixa de

    viver um dia aps o outro e passa a enx(v)ergar sua vida como uma obra completa,

    desde criana, com suas limitaes, suas belezas, sua sabedoria, suas vitrias e suas

    derrotas. Criando o homem se conhece. Enquanto pea de uma mquina, o homem

    perde contato consigo mesmo. Deixa de acreditar em seus sonhos e no valor da sua

  • 38

    prpria individualidade. Ao dar espao para a criao, para a subjetividade, o

    homem constri sua vida seguindo suas prprias regras. A noo de se saber senhor

    da sua prpria vida a matriz a partir da qual as escolhas passam a ter sentido. O

    homem passa a ter responsabilidade e comprometimento com as suas decises.

    Seguindo o caminho da obra, o homem se torna sua prpria obra.

  • 39

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    50008-capa-monografia fernando50008_Monografia do Fernando