Carvalho Etal 2003

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  • 101REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 6. nmero 1. 2003, p. 101-119

    R E S U M O O Algar do Barro uma gruta-necrpole datada do final do Neoltico (finais do IV

    milnio a.C.). O esplio, escasso, composto sobretudo por machados em pedra polida.

    Braceletes em concha de Glycymeris, cermica lisa, pedra lascada e alguma indstria ssea

    perfazem o restante leque de materiais votivos. No esto presentes pontas de seta nem pla-

    cas de xisto decoradas. Os restos faunsticos encontrados so de poca posterior utiliza-

    o neoltica da cavidade.

    No que respeita aos rituais funerrios, e acordo com os indicadores disponveis, parece

    estarmos perante inumaes secundrias, as quais tero sido precedidas por uma fase pr-

    via de descarnamento dos corpos. Os sedimentos embalantes dos restos sseos parecem ter

    sido transportados para o interior da cavidade.

    A anlise dos restos humanos permitiu calcular um nmero mnimo de 20 indivduos (16

    adultos e 4 crianas). A diagnose sexual indicou a presena de 5 homens e 3 mulheres adul-

    tos. Apesar da elevada fragmentao dos ossos, no se registaram patologias traumticas.

    A incidncia de artrose elevada. A presena de cries e de trtaro rara, enquanto que o

    desgaste dentrio moderado e moderado-elevado. A anlise dos caracteres mtricos e dis-

    cretos das tbias sugere que os indivduos adoptariam frequentemente a posio de ccoras.

    A cronologia do Algar do Barro, assim como as prticas funerrias e o esplio associado,

    encontram paralelo num conjunto de cavidades crsicas do Macio Calcrio Estremenho

    e regies adjacentes (p. ex., Gruta do Lugar do Canto, Gruta dos Ossos) cujo esplio, tra-

    dicionalmente atribudo ao Neoltico mdio, tem vindo a ser, em alguns casos, datado de

    finais do IV milnio (ou seja, no que se convencionou chamar Neoltico final).

    A B S T R A C T Algar do Barro is a burial cave dated to the Late Neolithic (late 4th mil-

    lennium BC). The artefacts, which are very scarce, are composed mainly by polished stone

    axes. Bracelets made of shells of Glycymeris, plain pottery and some bone industry make

    up the rest of the votive artefacts. Arrow points and engraved slate plaques are completely

    A gruta-necrpole neolticado Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

    ANTNIO FAUSTINO CARVALHO*NATHALIE ANTUNES-FERREIRA**MARIA JOO VALENTE***

  • absent. The faunal remains are of later age and cannot be associated to the Neolithic use

    of the cave.

    The available data concerning the burial practices seem to indicate the deposition of sec-

    ondary burials, having these been preceded by a previous phase of burial of the corpses in

    order to be cleaned of the flesh. The sediments where the human remains were found seem

    to have been transported to the cave.

    A minimum number of 20 individuals (16 adults and 4 children) was calculated after the

    analysis if the human remains. Sexual diagnosis has indicated the presence of 8 adults: 5

    men and 3 women. Despite the high fragmentation of the bones, traumatic pathologies

    were not identified. Arthrosis is well represented. Caries and tartar are rare, whilst dental

    use wear is moderate and moderate-high. The analysis of both metric and discrete traits of

    tibiae suggests that these individuals would adopt frequently the squatting posture.

    The chronology of Algar do Barro, as well as its burial practices and associated artefacts,

    are comparable to those found in some carsic caves of the Limestone Massif of Estremadura

    and adjacent regions (e.g., Gruta do Lugar do Canto, Gruta dos Ossos), the materials of

    which are traditionally attributed to the Middle Neolithic. Notwithstanding, in some cases,

    these contexts have also been dated to the late 4th millennium, a period conventionally

    called Late Neolithic.

    1. Localizao, descoberta e trabalhos realizados

    O Algar do Barro localiza-se na freguesia de Monsanto, concelho de Alcanena (Fig. 1).A sua descoberta ocorreu aquando de prospeces espeleo-arqueolgicas realizadas em 1990 nombito do projecto Carta Arqueolgica do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, dirigido porJ. Zilho. Verificou-se na altura que a cavidade tinha sido utilizada como necrpole durante aPr-Histria recente, conforme evidenciado pela natureza dos materiais arqueolgicos e ossoshumanos que ento foi possvel recolher superfcie.

    Trata-se de uma pequena cavidade crsica situada a menos de 1 km para Nordeste de Mon-santo e cerca de 2 km a Norte das nascentes do Rio Alviela. Est situada no rebordo Nascente deum pequeno planalto que se desenvolve entre aquela povoao e as faldas da Serra do Cheirinho.A sua entrada actual abre-se a Nascente, sobre um estreito vale de orientao Norte-Sul, densa-mente cortado por pequenas linhas de gua que terminam em sumidouros crsicos (Fig. 1). A vegetao envolvente composta por formaes muito densas de carrascos, facto que alis difi-culta o acesso ao local e at a identificao da entrada da gruta.

    O acesso ao interior do Algar do Barro faz-se atravs de uma abertura existente no tectoda sala principal (Fig. 2). Por essa razo, foi designada por Sala de Entrada. O cho desta salaapresenta uma acentuada inclinao para Poente. esquerda da entrada abre-se uma pequenasala e desenvolve-se um corredor irregular, descendente e desprovido de sedimentos, que liga Sala do Fundo. Esta apresenta-se aplanada e com preenchimento sedimentar.

    Os trabalhos de escavao ocorreram em 1993 sob a direco de J. Zilho e com a cola-borao de J. Maurcio e P. Souto, da Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia (Tor-res Novas). Tiveram como objectivo principal a obteno de elementos que permitissem con-textualizar melhor a ocupao pr-histrica e caracterizar a importncia da jazida, uma vezque as vrias pedreiras existentes na rea (Fig. 1) poderiam vir a pr em perigo a sua sobrevi-vncia.

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo Valente

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    A gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

  • Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo ValenteA gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

    103REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 6. nmero 1. 2003, p. 101-119

    Fig. 1 Localizao do Algar do Barro na Carta Militar de Portugal (escala 1:25 000, Folha 328, Monsanto-Alcanena).

  • Os trabalhos consistiram, tanto na data da sua descoberta como subsequentemente, narecolha de materiais descontextualizados dispersos por toda a rea da cavidade. Por seu lado, ostrabalhos de escavao incidiram nos seguintes espaos:

    no nicho na parede Sul da Sala de Entrada (designado por Sondagem 1), bem visvel noCorte A-B da Fig. 2;

    na Sala do Fundo, onde haviam sido recolhidos numerosos materiais de superfcie,abriu-se uma sondagem de 1 m2 (designada por Sondagem 2); esta sondagem foi esca-vada em funo da estratigrafia mas com subdiviso dos estratos em nveis artificiaisde 10 cm;

    numa diaclase na parede Sul da Sala do Fundo (designada por Sondagem 3) preenchidacom ossos humanos.

    Um primeiro balano sinttico dos resultados destes trabalhos, assim como a discussoda datao de radiocarbono entretanto efectuada sobre uma amostra de ossos humanos pro-venientes da sala onde se realizou a Sondagem 2, foram j publicados (Zilho e Carvalho,1996). O objectivo do presente trabalho o estudo mais detido do esplio recuperado duranteaqueles trabalhos (artefactos, restos faunsticos, restos sseos humanos e prticas funer-rias) e a integrao destes dados em contextos coevos da regio do Macio Calcrio Estre-menho.

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    Fig. 2 Planta e perfis do Algar do Barro, com localizao das sondagens (indicadas pelos algarismos): 1.: Sondagem 1(nicho); 2.: Sondagem 2 (Sala do Fundo); 3.: Sondagem 3 (diaclase).

  • 2. Contextos e prticas funerrias

    2.1. Sala de Entrada: deposies em nicho

    A escavao da Sondagem 1, na Sala de Entrada, permitiu verificar que o nicho estava divi-dido em dois espaos por uma laje calcria. De um lado encontrava-se uma lasca de slex e ossoshumanos muito fragmentados (incluindo fragmentos cranianos e ossos das mos e ps). Nametade oposta, encontravam-se dois crnios (um dos quais fragmentado) associados a um vasocermico de forma hemisfrica, colocado de boca para baixo (Fig. 3).

    Trata-se, em toda a evidncia, de um contexto funerrio que correspondente a uma depo-sio secundria. A compartimentao interna deste pequeno contexto atravs da colocao dalaje denuncia um comportamento deliberado de apartar os dois conjuntos de restos sseos,denunciando um propsito cujo significado nos escapa.

    Por outro lado, a associao crnios/pote interessante no tanto pela associao em si,mas pela arrumao do pote de boca para baixo no sentido de evocar a presena de um terceirocrnio. Esta iluso, alis, foi bem patente aquando do incio dos trabalhos, pois s durante aprpria escavao do nicho foi possvel verificar que este achado se tratava afinal de um pote eno de um crnio.

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo ValenteA gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

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    Fig. 3 Fotografia do espao do nicho da Sala de Entrada antes de iniciados os trabalhos de escavao, podendo ver-se um potede boca para baixo ( esquerda) e dois crnios humanos ( direita), um dos quais com a calote esmagada.

  • 2.2. Sala do Fundo: deposies na superfcie e em diaclase

    Na Sala do Fundo, a Sondagem 2 permitiu chegar a duas concluses principais. Em pri-meiro lugar, o reconhecimento de uma estratigrafia constituda apenas por duas camadas dis-tintas: uma, superficial, com uma espessura mxima de cerca de 20 cm, composta por sedimen-tos soltos de cor esbranquiada, e uma camada inferior, formada por sedimentos argilososvermelho-escuros mais compactados.

    Os vestgios arqueolgicos encontram-se exclusivamente na camada de topo, a qual noparece ser um depsito sedimentar tpico dos ambientes crsicos, mas antes ter sido intencio-nalmente transportada para o interior da cavidade. Nesta hiptese, o transporte e deposio desedimentos embalando os restos humanos encerraria tambm uma componente ritual. Esta pos-sibilidade foi tambm apontada para a Gruta dos Ossos (Tomar), onde parte dos sedimentosembalantes dos restos humanos parece ter sido depositada no interior da cavidade por acoantrpica (Oosterbeek, 1993).

    Em segundo lugar, aquela sondagem permitiu confirmar a disposio desorganizada dosossos humanos, a qual se denunciava j nos achados de superfcie. Esta disposio desorgani-zada, particularmente observvel no caso dos ossos longos, com certeza o resultado de per-turbaes ps-deposicionais. As suas causas so seguramente relacionadas com a frequentaoulterior deste espao, tanto por animais que tero revolvido os sedimentos e as deposies fune-rrias, como pelo Homem. Estas possibilidades so suportadas pelo achado de restos sseos deanimais que tero entrado na gruta em data posterior (ver adiante), para os quais esta ter fun-cionado como uma armadilha (atente-se na disposio da entrada actual). Por outro lado, oachado de fragmentos de bojo de um vaso fabricado a torno, permitindo colagens entre frag-mentos de superfcie da Sala do Fundo e fragmentos provenientes do nvel artificial 2 da Son-dagem 2, so indicadores que testemunham a utilizao desta gruta como abrigo j em pocahistrica e o revolvimento causado nos estratos.

    A Sondagem 3 uma pequena diaclase na parede Sul da Sala do Fundo, localizada junto Sondagem 2 (Fig. 2). Aqui descobriu-se um importante conjunto de ossos humanos, delibera-damente arrumados e preenchendo-a quase totalmente. Pode dizer-se que se trata de uma selec-o de peas sseas, sobretudo ossos longos, pertencentes a vrios indivduos, e provavelmenteacumulados nesta fenda durante tarefas de reorganizao do espao funerrio ainda em pocaneoltica.

    A anlise das fracturas destes ossos longos parece poder correlacionar-se com o peso daterra exercido sobre os mesmos durante o perodo de enterramento. Esta observao sugere que,pelo menos neste caso, tero ocorrido dois tempos de inumao:

    1. uma primeira fase de descarnamento do corpo (inumao primria), conseguida atravsdo seu enterramento, da resultando as marcas observadas;2. uma segunda fase, em que os ossos seriam exumados e depositados em definitivo na gruta(inumao secundria), designadamente na diaclase da Sala do Fundo e no nicho da Salade Entrada.

    Resta determinar se a inumao primria teria tido lugar no exterior da gruta e, nesta pos-sibilidade, a cavidade serviria apenas como local de inumao definitiva, ou se o descarnamentodos corpos teria ocorrido j no interior do Algar do Barro (por exemplo, nos sedimentos esbran-quiados da Sala do Fundo).

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo Valente

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    A gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

  • 3. Artefactos votivos

    Os nicos artefactos ps-neolticos identificados at ao momento no Algar do Barro soos fragmentos de bojo com marcas de fabrico a torno. Todos os restantes artefactos, muito dimi-nutos em termos numricos, correspondem utilizao funerria neoltica da cavidade, e podemser agrupados nas categorias que se indicam.

    3.1. Artefactos sobre matria dura de origem animal

    Nesta categoria genrica incluem-se apenas trs peas. A mais notvel um bracelete fabri-cada a partir de concha de Glycymeris (Fig. 4, n. 1). Esta pea encontra-se quebrada pela metade,podendo-se no entanto determinar que media originalmente perto de 9 cm de dimetro. Foiachada superfcie.

    As restantes duas peas so furadores sobre pedaos de difises de ossos longos de mam-feros, contudo de espcies indeterminveis. Foram ambos encontrados superfcie. O seu afei-oamento consistiu no polimento da ponta til. O exemplar n. 2 da Fig. 4 encontra-se partidoem dois e fragmentado na ponta e na extremidade proximal; ainda assim, a pea mais com-prida, com 8,5 cm de comprimento por 1,8 cm de largura mxima junto base. O outro exem-plar (Fig. 4, n. 3), encurtado por fractura ps-deposicional, aparenta ter tido uma morfologiamais regular que o anterior, apresentando uma largura constante de 1,1 cm. O polimento parececingir-se configurao da ponta do furador.

    3.2. Cermica

    A cermica muito rara neste contexto. superfcie foi apenas recolhido um pequeno frag-mento de fundo convexo, de fabrico manual e, por maioria de razo, datvel do Neoltico. Toda-via, o achado mais interessante nesta categoria o vaso depositado no nicho da Sala de Entrada

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    Fig. 4 1.: Fragmento de bracelete em concha de Glycymeris; 2.-3.: Furadores sobre osso; 4.: Furador sobre pequena lmina deslex (escala em cm).

    1

    2 3 4

  • e encontrado ainda intacto (Fig. 5). Trata-se de um esfrico com 13,5 cm de altura, apresentandoum dimetro de 16,5 cm ao nvel da boca e um dimetro mximo de 19,5 cm. A espessura daparede, algo irregular, apresenta uma mdia de 0,7 cm. Um dos aspectos mais interessantesquanto sua tecnologia a aplicao de almagre na superfcie desta pea, ainda bem visvel emlargas pores da mesma.

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    Fig. 5 Vaso esfrico proveniente do nicho da Sala de Entrada (escala em cm).

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    Fig. 6 Utenslios em pedra polida (escala em cm).

    1

    2

    3

    4

  • 3.3. Pedra lascada e polida

    Em pedra lascada esto presentes apenas duas peas: uma lasca de slex encontrada no nichoda Sala de Entrada, e uma pequena lmina em slex com um espigo na extremidade distal, tra-tando-se provavelmente de um furador. Esta pea de slex de cor creme, sobre lmina de sec-o transversal triangular (Fig. 4, n. 4). A presena de pequenas denticulaes descontnuas aolongo de ambos os bordos poder indicar tambm o seu uso como faca. O espigo encontra-sefracturado, pelo que o comprimento mximo do furador indeterminvel. Apresenta as seguin-tes medidas: 5 cm de comprimento, 1,4 cm de largura e 0,4 cm de espessura.

    Nesta categoria, porm, o aspecto mais significativo o nmero relativamente elevado depeas em pedra polida (Fig. 6), que totalizam seis exemplares, produzidas em rocha anfiblicade cor cinzento-escura. Destas, trs foram recolhidas superfcie e as restantes na escavao daSondagem 2, estando portanto directamente associadas aos restos humanos. A tipologia espe-cfica deste conjunto composta por 3 enxs, 1 machado e 2 peas de tipologia indeterminada.Estas ltimas so apenas fragmentos longitudinais (p. ex., Fig. 6, n. 4), que permitem obter aslarguras e comprimentos originais mas no as espessuras, nem as morfologias dos gumes etales.

    O machado, no desenhado, apresenta-se muito fragmentado nos flancos. No entanto, estapea tem um comprimento de 10,4 cm e teria uma espessura mxima de 4,2 cm. O polimento cinge-se zona do gume, apresentando o corpo da pea apenas o picotado do afeioamento inicial.

    As enxs, representadas na Fig. 6 (n.os 1 a 3), apresentam considerveis diferenas no que tocas suas dimenses. Com efeito, se as peas n.os 1 e 3 apresentam comprimentos (13,0 cm e 13,7 cm,respectivamente) e larguras (5,3 cm e 6,2 cm, respectivamente) semelhantes, j diferem bastanteno que respeita s respectivas espessuras, muito mais delgada a primeira (2,7 cm) do que a terceira(4,0 cm). Por contraste, a pea ilustrada sob o n. 2 da mesma Figura mede apenas 7,7 cm de com-primento, por 3,3 cm de largura e 1,7 cm de espessura. Esta pea apresenta polimento em toda asua extenso, ao invs das restantes, que esto polidas apenas no gume. Ainda no que respeita morfologia deste conjunto, saliente-se, pela singularidade, a execuo de profundas incises cur-vas em ambas as superfcies de uma das enxs, localizadas nas suas partes proximal e mesial (Fig.6, n. 1), quer para facilitar o encabamento da pea, quer para fins puramente ornamentais.

    4. Restos faunsticos

    O achado de um significativo conjunto de restos faunsticos dispersos por toda a extensoda cavidade, levou a que se considerasse inicialmente a hiptese da sua associao aos restoshumanos e que, portanto, poderiam consistir em deposies de carcter votivo. Porm, a an-lise deste material conclui que se tratam de materiais de idade ps-neoltica, concluso que seprocurar fundamentar de seguida.

    Os restos faunsticos compem uma coleco no muito numerosa que soma apenas 95espcimes (Quadro 1). Ainda assim, este conjunto formado por alguma variedade no que sespcies presentes diz respeito, sendo a sua composio a seguinte:

    Ordem CarnivoraCanis familiaris L. 1758 (= co)

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo Valente

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    A gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

  • Ordem Artiodactyla Capra hircus L. 1758 (= cabra domstica) Cervus elaphus L. 1758 (?) (= veado) Capreolus capreolus L. 1758 (= coro)

    Ordem Lagomorpha Oryctolagus cuniculus L. 1758 (= coelho)

    Como se pode observar atravs da leitura do Quadro 1, entre as espcies determinadas pre-dominam os restos de Capra hircus e de Capreolus capreolus, com 16,8% e 13,7% do Nmero Totalde Restos (NTR), respectivamente. Esta percentagem encontra-se artificialmente reduzida, umavez que no foi possvel classificar conclusivamente 43 restos (cerca de 45% do NTR), na sua mai-oria pertencentes a animal jovem. Tal indistino resulta, no tanto da relativa fragmentao domaterial do Algar do Barro, mas essencialmente da semelhana anatmica entre os indivduosjuvenis das duas espcies.

    Em menor abundncia surgem os restos de Oryctolagus cuniculus (5,3% do NTR) e Canis fami-liaris (3,2% do NTR). Foi tambm observado um fragmento epfise distal de metpodo, atribu-do a Cervus elaphus. No entanto, esta classificao reservada face ausncia de outros vestgiospertencentes mesma espcie.

    Se se atentar aos valores resultantes da determinao do Nmero Mnimo de Indivduos (NMI)(Quadro 2), verificamos que so reduzidos, sendo todavia evidente a discrepncia entre estes e osvalores obtidos para os Nmeros de Restos Determinados conforme as espcies (NRD). De facto,comparadas com as outras espcies, a Capra hircus e o Capreolus capreolus apresentam um nmerode restos bastante mais elevado para igual nmero reduzido de indivduos. Esta situao pode indi-ciar um processo deposicional ou ps-deposicional distinto entre estas espcies e as de Canis fami-liaris e Oryctolagus cuniculus, uma vez que a representatividade da amostra anloga para todas asespcies presentes. Refira-se ainda que, como indicado no Quadro 1, qualquer uma destas quatroespcies foi identificada tanto no conjunto das recolhas de superfcie, como na sondagem 2.

    Quadro 1. Algar do Barro. Restos faunsticos: Nmero Total de Restos (NTR) e Nmero de Restos Determinados (NRD)

    Superfcie Sondagem 2 Total

    Canis familiaris 1 2 3 3,2%

    Cervus elaphus (?) 1 1 1,0%

    Capra hircus 9 7 16 16,8%

    Capreolus capreolus 4 9 13 13,7%

    Capra hircus / Capreolus capreolus 9 34 43 45,3%

    Oryctolagus cuniculus 3 2 5 5,3%

    Animal mdio indeterminado (ND) 1 13 14 14,7%

    Total 27 68 95 100%

    Quadro 2. Algar do Barro. Restos faunsticos: Nmero Mnimo de Indivduos (NMI)

    adultos jovens

    Canis familiaris 1

    Cervus elaphus (?) 1

    Capra hircus 1 1

    Capreolus capreolus 1

    Oryctolagus cuniculus 2

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo ValenteA gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

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  • A comparao entre o estado de conservao deste material e dos restos antropolgicosaporta concluses importantes sobre o funcionamento desta cavidade. Com efeito, os restoshumanos encontram-se, em regra, muito mais fragmentados, e apresentam agregada uma gangade cor esbranquiada e um grau de mineralizao mais avanado. Inversamente, os restos fau-nsticos encontram-se menos fragmentados, tm colorao acinzentada e aspecto menos mine-ralizado.

    Acrescente-se ainda que no foi possvel identificar quaisquer sinais de natureza antrpicanos ossos da fauna (marcas de corte, fracturas por toro, etc.) ou sinais de outra aco carn-vora, mas to-s evidncias do processo bioestratinmico (sobretudo fracturas tpicas de ossossecos provavelmente causadas por fenmenos de bioturbao).

    Em face destes resultados, podemos concluir que no existem indcios que permitamassociar os restos faunsticos, ou mesmo apenas parte destes, utilizao do Algar do Barroenquanto gruta-necrpole durante o Neoltico. Tratar-se-, com toda a probabilidade, de res-tos de animais cados e aprisionados no interior da cavidade em pocas posteriores, os quaissero ainda com certeza responsveis por parte do revolvimento que os sedimentos apresen-tam.

    5. Antropologia fsica

    O estudo dos restos osteolgicos humanos no est ainda concludo, pois no se procedeu anlise dos dois crnios depositados no nicho da Sala de Entrada. Contudo, o restante mate-rial foi j objecto de um estudo preliminar (Antunes-Ferreira, s.d.), onde se discute a metodolo-gia empregue na sua anlise. No presente trabalho so apresentadas as concluses a que se che-gou naquele estudo.

    Esta coleco composta por um conjunto de ossos desarticulados, distribudos por quasetodo o espao da gruta. O estado de fragmentao dos ossos elevado, apresentando alteraespostmortem muito significativas, aspectos que condicionaram grandemente a anlise macrosc-pica e mtrica do material em vrias ocasies.

    5.1. Sondagem 1

    Os restos humanos estudados da Sondagem 1 so ossos cranianos, ossos longos muito frag-mentados, ossos de mo/p, e 25 dentes. Os dois crnios encontrados quase intactos em associ-ao com o vaso esfrico (Fig. 3) no foram ainda objecto de anlise, pelo que estes restos se refe-rem apenas parte do nicho separada dos crnios e do vaso por uma laje de calcrio.

    O nmero mnimo de indivduos, estimado a partir dos ossos temporais e dos dentes, indicaa presena de, pelo menos, dois indivduos adultos, entre os quais um ser muito provavelmentedo sexo masculino.

    Em relao aos 25 dentes, pode concluir-se que no se regista um nico caso de crie. Parao trtaro, dos 15 dentes soltos que permitem a observao desta condio patolgica, regista-secalculus dentrio num canino e num pr-molar, ambos com pequenos depsitos, e em trs mola-res superiores com acumulaes moderadas. Os resultados da anlise da presena/ausncia eseveridade do desgaste mostram que, em termos mdios, a eroso da superfcie oclusal dos den-tes moderada e moderado-elevada.

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo Valente

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    A gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

  • 5.2. Sondagem 2

    A Sondagem 2 aquela que revelou mais material osteolgico e, consequentemente, maisinformaes acerca dos indivduos inumados nesta gruta-necrpole. Foram contabilizados 12indivduos, dos quais 9 adultos e 3 no adultos.

    Quadro 3. Algar do Barro (Sondagem 2). Antropologia fsica: distribuio dos indivduos por classe etria e sexo

    Classe etria (anos) Sexo feminino Sexo masculino Sexo indeterminado

    0-4 1

    5-9 1

    15-19 1

    40-49 1 1

    50-59 1

    O elevado estado de fragmentao dos ossos condicionou de modo muito significativo aestimativa da idade morte e a diagnose sexual dos indivduos exumados. No entanto, foi pos-svel estimar o sexo em 67% dos indivduos, tendo-se encontrado 3 homens e 2 mulheres. No quediz respeito estimativa da idade morte (Quadro 3), os critrios adoptados (Antunes-Ferreira,s.d.) permitiram determinar a presena de uma criana com 3,5-4,5 anos e outra com 5,5-7,5 anosde idade. Nos adultos, apenas possvel determinar a idade morte para 3 indivduos, dois com40-44 anos (sendo um deles um homem), e uma mulher com 50-59 anos. Identificou-se aindaum jovem adulto de 18-23 anos.

    A anlise mtrica dos ossos longos proporcionou as seguintes concluses:

    a sua robustez mdia; o ndice de achatamento dos meros analisados (N=2) euribrquio, ou seja, apresentam

    ao meio da difise a seco transversal arredondada;

    14 fmures (5 esquerdos e 9 direitos) so platimricos, isto , apresentam achatamentoantero-posterior do tero superior do osso; a adaptao mecnica considerada uma daspossveis causas para a platimeria; apenas um fmur eurimrico;

    2 tbias so platicnmicas, apresentando achatamento transversal das suas difises; diver-sos investigadores sugerem que a platicnemia o resultado de causas estticas e mecni-cas; esta caracterstica, associada com as facetas de agachamento da tbia, poderia indi-ciar que estes indivduos adoptariam frequentemente a posio de ccoras.

    No que concerne estimativa da estatura, esta foi calculada para um fmur e um cbito,ambos direitos. O fmur apresenta robustez mdia, com a linea aspera pouco desenvolvida, e eurimrico, pertencendo a um indivduo de sexo indeterminado. Neste caso, se for atribudo aosexo feminino, a estatura seria aproximadamente 158,33 cm; se for considerado pertencente aosexo masculino, aproximar-se-ia dos 159,82 cm. O cbito pertence a um homem e permitiu esti-mar a estatura deste em cerca de 169,90 cm.

    Em relao incidncia da patologia infecciosa, observou-se reaco ligeira e remodeladanuma difise do mero de um indivduo jovem, numa tbia esquerda, numa extremidade pro-ximal esquerda de tbia, numa difise de pernio, numa clavcula direita e em trs fragmentosde costelas. Uma ligeira reaco peristica, mas no remodelada, foi registada numa difise defmur esquerdo.

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo ValenteA gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

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  • A elevada frequncia de artrose ao nvel das articulaes dos ossos do esqueleto apendi-cular e da coluna vertebral, e considerando que as leses no so muito severas, parece apon-tar para idades acima dos 35 anos. Esta observao encontra correspondncia com as estima-tivas da idade morte, pois pelo menos trs indivduos do Algar do Barro teriam idadessuperiores a 35 anos. Na anlise da patologia articular ao nvel dos ossos do esqueleto apen-dicular no se observaram grandes diferenas entre a frequncia de artrose dos membros supe-riores e a dos inferiores. No esqueleto axial, a incidncia de artrose bastante elevada paratodas as vrtebras, registando-se uma relao positiva entre a degenerao do corpo vertebrale a artrose das articulaes apofisrias.

    A aco contnua dos mesmos msculos e tendes pode causar uma reaco inflamat-ria que provoca a calcificao e/ou ossificao dos ligamentos, a que se d o nome de enteso-patias (Dutour, 1986). A anlise desta patologia no articular no estudo das paleopopulaespode fornecer informaes relevantes acerca das actividades desempenhadas pelos seus mem-bros. No Algar do Barro, as leses entesopticas no so muito frequentes no esqueleto apen-dicular, quer nos membros superiores, quer nos inferiores. J ao nvel axial, h uma maior inci-dncia na regio lombar.

    No se registou nenhum caso de patologia traumtica, o que, atendendo ao estado de frag-mentao do material, no de estranhar. Para a patologia oral, analisada sobre um conjuntode 79 dentes, analisou-se a crie (N=79), o desgaste dentrio (N=66) e o trtaro (N=39). Regis-taram-se cries em 4 pr-molares e em 1 molar. O desgaste dentrio , em mdia, moderado emoderado-elevado. O trtaro, por seu lado, est presente em 2 molares, 1 canino e 1 incisivo.Apesar das limitaes desta coleco, as elevadas percentagens de desgaste dentrio e a baixaincidncia de crie observadas indiciam que os indivduos analisados poderiam ter tido umadieta constituda por partculas duras e abrasivas.

    5.3. Sondagem 3

    Nesta sondagem contabilizaram-se dois indivduos adultos, no se registando qualquerosso de no adulto.

    Determinou-se o sexo de um dos indivduos a partir de uma tbia esquerda, sendo esta clas-sificada como pertencente ao sexo masculino. No se pode tirar qualquer ilao quanto s ida-des dada a inexistncia dos indicadores sseos que poderiam fornecer esta estimativa.

    Analisaram-se alguns ndices de achatamento, nomeadamente para uma tbia esquerda (ado indivduo do sexo masculino) e para um fmur direito. A tbia mesocnmica, ou seja, noapresenta achatamento transversal e o fmur platimrico.

    Passando ao estudo dos caracteres discretos, ao nvel do esqueleto craniano regista-se umcaso de metopismo. As condies de fragmentao do material no permitiram observar outroscaracteres no mtricos.

    No se registou nenhum caso de infeco nem de traumatismo, e na anlise da patologiadegenerativa articular e no articular, apenas nos podemos pronunciar em relao tbia esquerdamasculina, que apresenta artrose ligeira na sua superfcie articular proximal. As entesopatiasdesta tbia so de expressividade ligeira.

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo Valente

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    A gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

  • 5.4. Recolhas de superfcie

    No Algar do Barro foram recuperados superfcie alguns ossos humanos completamentedesarticulados, que correspondem a quatro indivduos, a saber: trs adultos e uma criana.

    Apenas foi possvel determinar o sexo dos indivduos em dois ossos, sendo ambos classifi-cados como femininos, pelo que se conclui estar-se na presena de, pelo menos, uma mulher.Deduz-se pelo crnio do indivduo do sexo feminino que este no seria muito idoso, visto ter assuturas endo e exocranianas abertas. Em relao morfologia, o estudo craniomtrico foi invi-vel. Porm, observaram-se alguns caracteres discretos: so visveis dois foramina parietais comcerca de 2,0 mm de dimetro, um sobre cada parietal; registaram-se tambm dois ossculos sobrea sutura lambdide, um no lado direito e o outro no esquerdo. No se detectou nenhum oss-culo sobre o bregma nem sobre o lambda.

    No campo da patologia oral examinaram-se trs molares: um 1. e um 2. molar direitos,inclusos no maxilar superior, e um 2. molar superior direito, solto. No se observaram quais-quer evidncias de crie ou trtaro. O desgaste ligeiro-moderado.

    Em trs ossos analisaram-se sinais de possveis infeces, nomeadamente reaco peris-tica ligeira, numa difise de mero, num fmur e numa extremidade distal de fmur de criana.Para a patologia degenerativa, os poucos ossos que permitiram uma observao, no apresen-tavam artrose nem entesopatias. No estudo da patologia traumtica, no se registou nenhumcaso de enfermidades.

    6. Insero cronolgico-cultural. Contribuio para o conhecimento das prticasfunerrias no Macio Calcrio Estremenho durante o final do IV milnio a.C.

    A discusso da insero cronolgica e cultural do Algar do Barro no contexto regional doMacio Calcrio Estremenho foi j amplamente apresentada (Zilho e Carvalho, 1996, p. 666).A inexistncia de novos dados sobre as prticas funerrias do Neoltico regional mantm essadiscusso ainda bastante actual nas suas linhas gerais. Essencialmente, a principal questo levan-tada pela datao de ossos humanos desta cavidade a sua cronologia tardia, de finais do IVmilnio a.C. (Quadro 4; Fig. 8), supostamente incompatvel com o esquema evolutivo tradicio-nal do Neoltico do Centro e Sul de Portugal.

    Com efeito, os artefactos recuperados nesta gruta apontavam para uma cronologia do Neo-ltico mdio, tal como reconhecido naquelas regies: o esplio constitudo quase em exclusivopor materiais no cermicos, como lminas e lamelas, machados e enxs em pedra polida, fura-dores em osso, braceletes em concha de Glycymeris, e micrlitos trapezoidais (cuja ausncia no Algardo Barro no deve ser sobrevalorizada). A cermica apresenta formas simples, lisas e frequente-mente com aplicao de almagre. No Macio Calcrio Estremenho, os contextos equiparveis so,em Torres Novas, a Lapa da Modeira (Leito e Ferreira, 1981), a Lapa dos Namorados (Carvalho etal., 2000) e a Entrada Superior 2 do Almonda (Zilho et al., 1991); em Alcanede, a Gruta do Lugardo Canto (Leito et al., 1987), e em Alcanena, a Gruta dos Carrascos (Gonalves e Pereira, 1974/77).

    Nesta regio, efectivamente, possvel definir um segundo grupo de contextos, tradicio-nalmente atribudos ao Neoltico final. Nestes, a cermica e as lminas e lamelas apresentamuma maior abundncia relativa e esto presentes alfinetes em osso, pontas de seta e placas dexisto gravadas; inversamente, os braceletes, os geomtricos e os furadores em osso so muitoraros ou mesmo inexistentes. Os stios integrveis neste grupo so, em Torres Novas, a Lapa da

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo ValenteA gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

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  • Bugalheira (Pao et al., 1971), e em Alcanena, a Lapa da Galinha (S, 1959) e a Gruta da Mar-mota (Gonalves e Pereira, 1974/77). A estes stios pode-se acrescentar a Cova das Lapas (Gon-alves, 1987, 1999), em Alcobaa, que se encontra datada, tal como o Algar do Barro, de finaisdo IV milnio a.C. (Quadro 4).

    Os materiais conhecidos nas Grutas da Sra. da Luz (Cardoso et al., 1996), em Rio Maior,no se podem associar com segurana a qualquer destes grupos. Do mesmo modo, das duas gru-tas da regio de Alcobaa localizadas na rea do Macio (Carvalhal de Aljubarrota e RedondasIX ou Algar de Joo Ramos), escavadas por Natividade (1899/1903), apenas a ltima parece poderinserir-se no grupo do Neoltico Final, pois revelou placas de xisto e pontas de seta. Da anta-capela de Alcobertas, em Rio Maior, no se conhece o respectivo esplio (Pao et al., 1959), peloque no se podem tecer quaisquer consideraes.

    Se se alargar o mbito geogrfico de anlise s regies imediatamente adjacentes do MacioCalcrio Estremenho, encontra-se outro contexto arqueolgico equiparvel ao Algar do Barro:trata-se da Gruta do Ossos, no Vale do Nabo (Oosterbeek, 1993). Esta gruta-necrpole ter sidoocupada no Calcoltico (atente-se datao I-17248, do III milnio, e ao achado de um copo cane-lado); no entanto, a ocupao mais antiga composta por lminas e lamelas, instrumentos empedra polida e geomtricos, e foi datada de finais do IV milnio (Quadro 4). Mais recentemente,a escavao e estudo de um pequenssimo contexto funerrio no Covo do Poo, em Porto de Ms,revelou restos sseos humanos datados da mesma ordem de valores (Zambujo et al., s.d.). Porm,a inexistncia de esplio associado impede uma avaliao precisa do seu contexto cultural.

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo Valente

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    A gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

    Fig. 7 Contextos funerrios do Neoltico mdio e final do Macio Calcrio Estremenho. 1.: Carvalhal de Aljubarrota; 2.: Covo do Poo; 3.: Lapa da Modeira; 4.: Lapa dos Namorados; 5.: Entrada Superior 2 do Almonda; 6.: Lapa da Bugalheira;7.: Gruta IX das Redondas ou Algar de Joo Ramos; 8.: Gruta dos Carrascos; 9.: Algar do Barro; 10.: Lapa da Galinha; 11.: Gruta do Lugar do Canto; 12.: Gruta da Marmota; 13.: Anta-Capela de Alcobertas; 14.: Grutas de Sra. da Luz.

  • Quadro 4. Macio Calcrio Estremenho e regies adjacentes.Dataes de radiocarbono para contextos funerrios da segunda metade do IV milnio a.C.

    Stio Provenincia Amostra Cdigo de Datao BP cal a.C. cal a.C. Laboratrio 1 sigma 2 sigma

    Algar do Barro superfcie Homo ICEN-740 4660 70 3617 - 3361 3637 - 3123

    Covo do Poo Homo Beta-134407 4360 60 3081 - 2901 3311 - 2879

    Cova das Lapas Homo ICEN-463 4550 60 3367 - 3101 3499 - 3031

    Gruta dos Ossos c. 1-3 Homo? ICEN-465 4630 80 3623 - 3139 3633 - 3101

    c. 1-3 Homo? I-17368 4460 110 3340 - 2935 3500 - 2885

    c. 4 Homo? I-17248 3970 140 2835 - 2205 2880 - 2060

    No estado actual dos nossos conhecimentos, podem levantar-se actualmente trs hipte-ses explicativas para este cenrio de coincidncia de datas para esplios votivos distintos:

    1. A mais simples ser a de se considerar a presena de um mosaico cultural responsvelpela coexistncia de dois sistemas de prticas funerrias na regio durante a segunda metadedo IV milnio, um dos quais na tradio no Neoltico mdio. Nesta possibilidade, a asso-ciao, no mesmo stio, de artefactos votivos pertencentes a um e outro sistema de prticasfunerrias dever ser interpretada como tratando-se de processos de reocupao do mesmoespao, ou como evidncia da existncia de trocas entre comunidades com prticas fune-rrias distintas.

    2. Noutra hiptese, os dois grupos de prticas funerrias dispem-se diacronicamente den-tro do Neoltico Final, sendo que o horizonte acermico constituir a sua fase mais antiga(hiptese proposta em Zilho e Carvalho, 1996). Este processo de sucesso no tempo actu-almente de difcil percepo devido escassez de dados e impreciso inerente ao mtodode datao por radiocarbono. Nesta hiptese, os stios que apresentam alguma mistura demateriais comuns a ambos os sistemas funerrios sero o resultado de reocupaes cujaestratificao no ter sido identificada em escavaes antigas.

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    Fig. 8 Dataes de radiocarbono para contextos funerrios da segunda metade do IV milnio a.C. do Macio CalcrioEstremenho (Algar do Barro e Covo do Poo) e regies adjacentes (Cova das Lapas e Gruta dos Ossos).

    Algar do Barro

    Covo do Poo

    Cova das Lapa

    Gruta dos Ossos

    2000 cal BC 3000 4000

  • 3. A datao da Cova das Lapas consistir num outlier, no podendo considerar-se repre-sentativa do conjunto do esplio a que se encontra associada. Nesta hiptese, as prticasfunerrias tpicas do Neoltico Final desta regio so exclusivamente as representadas peloAlgar do Barro e stios afins. Deste modo, os materiais considerados mais tardios, comoas placas de xisto gravadas, teriam de ser empurrados para uma cronologia calcoltica.Embora esta hiptese parea a que mais contradiz a realidade arqueogrfica, deve ter-se emateno as recentes reavaliaes sobre a cronologia das placas de xisto, cujos resultadosparecem apontar cada vez mais para os primeiros sculos do III milnio enquanto perodode generalizao do seu uso (Gonalves, 2001).

    A opo por qualquer uma destas hipteses no poder ser realizada no mbito temtico egeogrfico determinados para o presente estudo, que se constitui apenas como a publicao dosresultados obtidos no Algar do Barro.

    Para a compreenso do que se afigura ser uma questo complexa, no basta, com efeito,jogar apenas com os dados do mundo funerrio destas comunidades nem circunscrev-los aoMacio Calcrio Estremenho. Efectivamente, uma das vertentes fundamentais de abordagem aeste processo so os contextos habitacionais correlacionveis com aquelas grutas-necrpole, parao estudo dos quais se comea a dispor de alguma informao pertinente nesta regio, designa-damente no Abrigo da Pena dgua (Carvalho, 1998) e no habitat de ar livre da Costa do Pereiro,cuja publicao se prepara, ambos localizados em Torres Novas. Noutro sentido, a anlise davariabilidade das prticas funerrias desta poca dever adoptar uma escala supra-regional, poispara alm dos paralelos apontados no Macio Calcrio Estremenho para o Algar do Barro, tantoo Algar do Bom Santo, em Alenquer (Duarte, 1998), como, talvez menos pacificamente, a Grutado Escoural, em Montemor-o-Novo (Arajo e Lejeune, 1995), so testemunhos destas prticasfunerrias nos finais do IV milnio a.C. no Centro e Sul de Portugal.

    Nota final

    Os autores desejam deixar expresso o seu agradecimento a Joo Zilho pela cedncia dosmateriais do Algar do Barro para estudo e publicao.

    A planta e perfis do Algar do Barro foram levantados em 1993 por Joo Maurcio e PedroSouto, da Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia. Os materiais foram todos dese-nhados por Maria Fernanda Sousa, com excepo da pea n. 4 da Figura 4, que foi desenhadapor Paulo Marques.

    Uma primeira anlise dos restos faunsticos foi realizada por Joo Vargues e Raul Pereirano mbito da cadeira de Introduo Arqueologia II do curso de Patrimnio Cultural da Univer-sidade do Algarve, sob orientao de Maria Joo Valente.

    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo Valente

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    A gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

  • NOTAS

    * Universidade do AlgarveF.C.H.S.Campus de Gambelas8000-117 FaroE-mail: [email protected]

    ** Mestranda em Pr-Histria e Arqueologia na Universidade de LisboaE-mail: [email protected]

    *** Universidade do AlgarveF.C.H.S.Campus de Gambelas8000-117 FaroE-mail: [email protected]

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    Antnio Faustino Carvalho, Nathalie Antunes-Ferreira e Maria Joo ValenteA gruta-necrpole neoltica do Algar do Barro (Monsanto, Alcanena)

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