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1 Nesta Praia tem Tubarão casa show: lazer e sociabilidade travesti no Litoral Norte da Paraíba 1 Verônica Alcântara Guerra Mestranda do Programa de Pós- graduação em Antropologia da UFPB. Resumo O presente trabalho apresenta os espaços de lazer e sociabilidade das travestis no período do Verão na cidade da Baia da Traição, cercada por aldeias da etnia Potiguara. A cidade com pouco mais de oito mil habitantes, nesta época do ano o contingente populacional se expande em razão de sua utilização como espaço de férias e veraneio, reencontro de famílias e as festividades locais. Nesse cenário destaca-se o “Tubarão Casa Show”, uma das mais antigas casas de espetáculo da Paraíba em plena atividade há mais de 45 anos. Na dinâmica do verão, o Tubarão torna-se protagonista e símbolo dos festejos, um elemento de suma importância para este movimento de lazer das travestis e dos demais frequentadores. A musicalidade torna-se também um agente significativo da cidade no verão; ritmos como funk e forró eletrônico torna-se trilha sonora das narrativas travestis sobre o lazer, mas também se converte em música ambiente para os moradores da cidade tendo em vista o aumento do número de carros e visitantes de outras cidades e regiões. As travestis atuam como agentes ativas nessa dinâmica, inserindo-se e mobilizando atividades diversas nos seus trânsitos pela cidade. Palavras- chave: Gênero; Travestilidade; Sociabilidade Abstract This paper presents the leisure spaces and sociability of transvestites during the summer in the city of Baia da Traição , surrounded by villages of ethnic Potiguara . The city with just over eight thousand inhabitants , this time of year the population quota expands due to their use as space rental and vacation , reunion of families and local festivities . In this scenario highlights the "Tubarão Casa Show" , one of the oldest playhouses of Paraíba in full swing for over 45 years. The dynamics of summer, the Tubarão becomes the protagonist and symbol of the festivities , an element of paramount importance to this leisure movement of the transvestites and other regulars . The music also becomes a significant agent of the city in the summer ; rhythms such as funk and electronic forró becomes soundtrack transvestite narratives about leisure , but also becomes background music for the residents of the city in view of the increasing number of cars and visitors from other cities and regions . Transvestites act as active agents in this dynamic, inserting themself and mobilizing a lot of activities in their transits through the city. Keywords: Gender ; Travestilidade ; sociability 1 Trabalho apresentado na 29ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de Agosto de 2014, Natal/RN.

Casa Show”, uma das - 29rba.abant.org.br · The music also becomes a significant agent of the city in the summer ; rhythms such as ... sodomita, estéril) foi também um dos nomes

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Nesta Praia tem Tubarão casa show:

lazer e sociabilidade travesti no Litoral Norte da Paraíba1

Verônica Alcântara Guerra

Mestranda do Programa de Pós- graduação em Antropologia da UFPB.

Resumo

O presente trabalho apresenta os espaços de lazer e sociabilidade das travestis no

período do Verão na cidade da Baia da Traição, cercada por aldeias da etnia Potiguara.

A cidade com pouco mais de oito mil habitantes, nesta época do ano o contingente

populacional se expande em razão de sua utilização como espaço de férias e veraneio,

reencontro de famílias e as festividades locais. Nesse cenário destaca-se o “Tubarão

Casa Show”, uma das mais antigas casas de espetáculo da Paraíba em plena atividade há

mais de 45 anos. Na dinâmica do verão, o Tubarão torna-se protagonista e símbolo dos

festejos, um elemento de suma importância para este movimento de lazer das travestis e

dos demais frequentadores. A musicalidade torna-se também um agente significativo da

cidade no verão; ritmos como funk e forró eletrônico torna-se trilha sonora das

narrativas travestis sobre o lazer, mas também se converte em música ambiente para os

moradores da cidade tendo em vista o aumento do número de carros e visitantes de

outras cidades e regiões. As travestis atuam como agentes ativas nessa dinâmica,

inserindo-se e mobilizando atividades diversas nos seus trânsitos pela cidade.

Palavras- chave: Gênero; Travestilidade; Sociabilidade

Abstract

This paper presents the leisure spaces and sociability of transvestites during the summer

in the city of Baia da Traição , surrounded by villages of ethnic Potiguara . The city

with just over eight thousand inhabitants , this time of year the population quota

expands due to their use as space rental and vacation , reunion of families and local

festivities . In this scenario highlights the "Tubarão Casa Show" , one of the oldest

playhouses of Paraíba in full swing for over 45 years. The dynamics of summer, the

Tubarão becomes the protagonist and symbol of the festivities , an element of

paramount importance to this leisure movement of the transvestites and other regulars .

The music also becomes a significant agent of the city in the summer ; rhythms such as

funk and electronic forró becomes soundtrack transvestite narratives about leisure , but

also becomes background music for the residents of the city in view of the increasing

number of cars and visitors from other cities and regions . Transvestites act as active

agents in this dynamic, inserting themself and mobilizing a lot of activities in their

transits through the city.

Keywords: Gender ; Travestilidade ; sociability

1 Trabalho apresentado na 29ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

Agosto de 2014, Natal/RN.

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1. Preâmbulo

Não é necessária uma observação minuciosa para perceber as mudanças

ocasionadas pela a chegada do verão na Baia da Traição. Basta caminhar num domingo

à tarde por alguns quilômetros da aldeia Akajutibiró até a Praça centra José Barbosa, e

perceber o fluxo de pessoas que deixam a cidade. Os nativos são facilmente

identificados, pois eles andam a pé, de bicicleta ou em motocicletas sem capacetes e

com excesso de passageiro, três, quatro e até cinto pessoas em uma moto. Já os turistas

que vêm de motocicleta e que deixam a cidade estão equipados com capacetes, luvas,

blusa de mangas cumpridas, algumas aparentemente de couro e calças jeans, as motos

variam entre 150 a 1.600 cilindradas, assim como os carros que vão do popular nacional

ao luxuoso importando, alguns carregam reboques com Jet esqui e motos apropriadas

para trilhas.

Há também os turistas que continuam na Baia da Traição, eles se fazem notar

pelos paredões de som, que se caracterizam pela alta potência na transmissão de som e

pelo tamanho das caixas, geralmente eles tomam todo o espaço do porta-malas de um

carro ret, ocupam metade do espaço da traseira das caminhonetas, ou são postos na

frente das casas, onde o grupo de familiares e amigos se concentra, ouvem forró e funk,

enquanto consomem bebidas alcoólicas. Este aparato também corresponde o poder

econômico dos que vem de fora, em alguns momentos cria uma tensão moral com os

moradores, especialmente no período de carnaval, a maior festa da região. Aqui,

quando falo em tensão moral refiro-me ao uso dado à cidade pelos que os vêm de fora:

aparelhos de som em alto volume, Jet esquis próximos a praia correndo o risco de

machucar os banhistas, e o aumento do trafego de veículos em alta velocidade, tanto nas

praias, quanto nas ruas, com motoristas embriagados que vez ou outra atropelam alguns

pedestres ou banhista, causando lesões leves e graves.

A Baia da Traição é um município localizado a cerca de 90 km da capital João

Pessoa, Litoral Norte paraibano, está cercada por lendas, praias e aldeias indígenas da

etnia Potiguara, tais como: Aldeia do Forte, São Miguele Akajutibiró2 - esta última

tendo em seu nome uma ligação etimológica e cosmológica com a “sodomia” (akaîu,

cajueiro + tebiró, sodomita, estéril) foi também um dos nomes que precederam Baia da

2 Aldeia foi instalada durante a gestão do ex-prefeito, o Potiguara, Marcos Santana eleito por dois

mandatos consecutivos, entre os anos 1996-2000 e 2000-2004.

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Traição3 até1962 (TOTA, 2012) ano em que a cidade se emancipou. Atualmente a Baia

tem cerca de oito mil habitantes segundo dados do IBGE, sendo que quase seis mil se

declaram indígenas Potiguara, formando o que uma nativa chama de: “Aldeia na

cidade”. Nesse contexto, a Baia se caracteriza como um dos municípios brasileiros com

maior presença indígena;todavia, como apresentamos ao longo do texto, a identidade

étnica não exerce uma influência expressiva nas práticas de lazer e sociabilidades das

travestis, mesmo que quando perguntadas sobre quem são, algumas dessas travestis se

posicionem e caracterizem enquanto Potiguara devido à relações de proximidade,

pertencimento territorial e de parentesco.

Nas práticas de lazer e sociabilidade os bofes – categoria pela qual as travestis se

referem aos homens mais másculos - exercem o papal de destaque, visto que as travestis

encaram o sexo como lazer; é através dos jogos sexuais onde se relaxa, como se

tivessem tirado um peso de seus corpos. Estas práticas muitas vezes ocorrem em becos,

praia e nos rios, algumas entendem que estes espaços são os motéis da cidade, onde a

circulação de travestis é comum.

Bárbara, Rhayka, Hillary, Mouhana e Mikaelly são travestis que podemos

encontrar com facilidade ao caminhar pelas ruas da cidade. Elas frequentam a praia,

rios, bares, casas de show, lanchonetes, salões de beleza e aos domingos podemos

encontrá-las no campo de futebol, frenéticas, torcendo por algum time e xingando o

juiz. Também há jogos que algumas das travestis participam como jogadoras de futebol.

Os esquemas- categoria êmica- são formas de negociar encontros sexuais e/ou

amorosos, sigilosos, com homens que se entendem como “machos”, mas que gostam de

estar com travestis. Em geral, estas negociações acontecem em momentos festivos,

brincadeiras que se convertem em relações sexuais, ou em fortuitos encontros na praça.

Há também momentos onde estes esquemas são dispensados, especialmente quando o

desejo por parte dos bofes é explicitados sem o uso de recados enviados por um amigo,

mensagens de texto, ligações telefônicas ou códigos de comunicação corporal.

2. “ATENÇÃO: Nesta praia tem Tubarão casa show”

Ao sair da minha casa para ir ao Tubarão, tenho que percorrer quase

toda a cidade e passar pelos principais pontos de concentração de

pessoas no “carrego”, ─termo usado entre turistas e nativos para

3 Como lembra Martinho Tota (2012), a história política da Baia da Traição é marcada por intensos fluxos

de interesse, processos de territorialização e influência que podem ser vistos nas sucessivas mudanças no

nome do território que hoje cabe ao município: Freguesia de São Miguel (1762), Distrinto de

Mamanguape (1840), Vila (1938) e Baia da Traição (1962).

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identificar pessoas reunidas, com som em alto volume e geralmente

fazendo uso de bebidas alcoólicas─. (...) Na frente de várias casas

localizadas nas principais ruas da cidade têm pessoas sentadas nas

calçadas, uns com paredões de som, outros com apenas simples caixas

transmissoras; as músicas geralmente são as que estão em evidência

no momento: forró, sertanejos universitários e o funk ostentação, com

letras alusivas ao consumo de luxo, a exemplos dos carros luxuosos

como o Camaro, Ferrari, Hilux, Lamborghini, Pajero, e bebidas

importadas como: Uísque, Tequila, Vodka Absolut, Champanhe e

outras.

Ao chegar na Praça central Jose Barbosa, que está sempre lotada em

dia de festa, fui surpreendida por um grito vindo do outro lado da rua,

um dos rapazes que estava junto a um dos paredões de som- gritou:

ANTROPÓLOGA; sofri um susto, e ao voltar meu olhar para o outro

lado da rua, vi que era um dos alunos do curso de Antropologia do

campus IV da UFPB-LN, localizada na cidade de Rio Tinto. Fui ao

seu encontro para cumprimentá-lo, ao chegar notei que ele e seus

amigos estavam bebendo uísque, bebida que destoa do clima quente

do litoral, mas que é muito comum entre os que têm condições de

adquiri-lo. Conversamos por alguns instantes, depois sai para outro

ponto da praça, que tinha várias rodinhas de jovens, também

consumindo bebidas alcoólicas, havia também casais, pais com filhos

no colo, crianças correndo e algumas pilotando motinhas elétricas,

tudo isso embalados por muito forró, brega e funk vindos dos paredões

de som. (Fragmentos do diário de campo, 04/01/2014)

O Tubarão casa show é uma das mais antigas casas de espetáculos da Paraíba,

com mais de 45 anos de funcionamento ininterrupto, no mesmo local e com o mesmo

proprietário até o momento. Na época em que o espaço foi construído, Laelson Padilha,

o seu dono, e alguns colegas que estudavam em João Pessoa sentiam falta de um lugar

para se reunirem na Baia da Traição, foi então que surgiu a ideia de fazerem uma

palhoça4 para uso exclusivo da “moçada” estudante. De início não havia casas por perto,

era rodeada de coqueiros e o mar à sua frente, a música era transmitido por um gravador

de rolo antigo e pequeno. Ao passar do tempo a frequência na palhoça começou a

aumentar, com certa resistência, já que aquele ambiente era para os estudantes, mas por

fim, resolveram abrir para outras pessoas participarem.

Padilha lembra que no mesmo tempo em que a bar para os estudantes foi

montado, havia um grande bar na cidade com o nome de Baleia, e em certa manhã

quando organizava o espaço para mais um encontro, parou um pescador na frente da

palhoça, se encostou do coqueiro, ficou olhando e perguntou-lhe. “Qual o nome desse

bar?” Ao responder que ainda não tinha nome, o pescador disse que ia passar a chamá-

4 Construção caracterizada pelo uso de madeira e palha de coco.

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lo de Tubarão e que ele ia “engolir aquela Baleia”, o bar que ficava do outro lado da

praia, onde hoje é apenas mar e areia, e não resta nenhuma lembrança material de sua

existência.

O bar para estudantes com o passar dos anos deu espaço ao uma casa de show,

suas paredes de madeira, agora são de tijolos, o telhado de palha de coco deu lugar a

uma moderna iluminação e o gravador de rolo foi substituído por potentes caixas de

som auxiliadas por um amplificador, e que transmitem músicas que fazem sucesso em

nível local e nacional- onde a presença da suingueira da Banda Grafith, do funk de MCs

e forró de várias bandas são marcantes- há noite de música ao vivo com bandas da

aldeia indígena, cidades vizinhas e da capital João Pessoa, há também noites animadas

por Djs da região. Cada trilha sonora dita um ritmo, quando passa forró os homens

tendem a chamar as mulheres para dançar, o que facilita a paqueira; já as travestis se

divertem mais quando toca funk ou suingueira, pois são músicas agitadas e elas se

jogam na pista de dança, demonstrando todo o seu gingado e performance corporal.

Para as travestis, “o Tubarão é de lei”, elas sempre marcam presença em suas

festas quando tem dinheiro para pagar a entrada, que variam entre 5 e 20 reais, sem

distinção de sexo, todos pagam para entrar, há noites que o ingresso é mais caro de

acordo com o potencial das bandas, se são amplamente conhecidas ou não, em algumas

sextas-feiras a entrada é franca, mas isto não é uma constância.

Durante as festas Barbara explica que: “Quando um macho fica na dúvida se eu

sou uma mulher ou travesti, eu dou uma de lésbica para ele vir até mim...” Talvez esta

técnica de paquera explique alguns beijinhos em uma mulher lésbica, as duas dançavam

forró e de vez em quando davam selinhos. Durante a festa alguns rapazes e moças

cumprimentavam Bárbara com beijos e abraços, e outros paravam para conhecê-la, ou

apresentá-la a um amigo.

Para travesti Rayka, que frequenta a casa de show desde os 15 anos, o Tubarão é

um lugar onde tudo acontece, e ao ir para uma festa sua intenção é de ficar com o um

boyzinho, - outro nome atribuído a rapazes másculos que se relacionam com as

travestis- e quando se interessa por algum rapaz, já marca e passa várias vezes na frente

dele para que a perceba, e se o rapaz notar, “ele vai me chamar para dançar, falar

comigo, perguntar meu nome... É assim... É só eu passar... Gosto de ser assim, quando

eu passo os homens desejam.” E quando o contato está negociado, eles saem para os

becos próximos a praia, e na melhor das hipóteses, se o rapaz tiver carro vão para dentro

dele.

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O Tubarão uma casa ampla, com jogos de luz modernos, dispões de cinco

camarotes e uma grande saída de emergência. Em seus banheiros, sobretudo, o feminino

não há restrições com a entrada de travestis, é comum entrar e vê-las arrumando o

cabelo na frente do espelho, retocando o batom e a maquiagem, enquanto conversam

com uma amiga. Este também é o ambiente de encontro e desencontro de travestis com

seus namorados, Rayka explica que ao entrar no Tubarão viu o seu ex-namorado:

Ele estava naquelas mesinhas de madeira logo na entrada... ai eu

passei e fiquei dançado... eu provoco mesmo, e ele ficou doido...

Ligando, ligando, sei que ele ligou umas 15 vezes... Ai depois eu

cansei do Tubarão, era Domingo também, já estava morgado...

01h00min já. Ai, vim embora e ele continuou ligando... Depois eu

atendi e disse: o que qui tu quê?- Ele disse: ‘Você sabe... Você’ (...)

Saímos pra conversar, entrei no carro dele, nos brigamos tanto, mais

tanto, que eu nunca vi uma coisa daquela, depois fizemos as pazes e

voltamos o namoro.

Os esquemas com os “boyzinhos, uma coisinha nova, bonitinha” e o jogo de

conquista que desemboca na praia e nos becos, também é outro atrativo que a casa de

show proporciona as travestis. Este cenário também faz parte das lembranças infantis de

Hillary, que desde criança já vestia roupas curtas e jamais usou “roupas de homem,” e

segue dizendo:

Antigamente no Tubarão tinha uma domingueira na parte da tarde,

era aberto e eu ia para lá... sempre fui banada... Era na época do

Gera Sampa e eu fica lá dançado na boquinha da garrafa. Minha mãe

ia me buscar, batia em mim, mas não adiantava, no outro Domingo eu

voltava de novo.

Mesmo com o passar do tempo o Tubarão continuou sendo palco de muitos

acontecimentos que envolvia a travesti: romances, brigas, encontro com os amigos, e

frequentes esquemas. Ela lembra que certa noite ao sair da casa de show: um bofe a

convidou para acompanhá-lo à praia, durante o percurso, sorrateiramente, a travesti

passou a mão na altura de seu pênis e “não senti grande coisa”, mas no instante que

chegaram a um lugar mais deserto da praia, ela pode notar o tamanho e espessura

avantajados do “pau do bofe”, disse que sentiu vontade de correr, mas se conteve, pois

ficou com medo do rapaz espalhar que ela não se garantia. Fugir dessa situação para a

travesti seria inviável, já que ela deixaria de ser “uma mulher com uma rola entre as

pernas.” Depois deste episódio, a travesti foge do rapaz, porque ele quase destruiu o seu

“útero”.

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A casa de show também foi palco do 1ª e do 2ª concurso de Miss Gay Regional,

que aconteceu em outubro de 2012, onde Hillary ganhadora do primeiro concurso fez o

desfile de abertura, e em seguida vieram Barbara, Rayka, Mouhana e Ramona Pink, esta

última foi a primeira travesti da aldeia Tracueira, e uma das mais velhas com 30 anos.

Durante o desfile não foram ditas, pelo público presente, palavras ofensivas às travestis

que desfilavam em uma passarela feita com pó de serragem. As candidatas

apresentaram-se duas vezes na passarela: traje típico e traje de noite. Rayka foi à

vencedora, Barbara ficou em segundo lugar, Mouhana em terceiro e Ramona Pink foi a

Miss Simpatia. Todas foram premiadas, e após o desfile a festa continuou com um DJ

que veio de João Pessoa, e que tocava músicas que variaram entre funk, forró e

eletrônicas, esta última quase nunca são tocadas.

Durante as festas que acontecem nas sextas, sábados e domingos, e

intensificadas no período do verão, basicamente com o mesmo estilo musical, podemos

encontrar pessoas de várias gerações, etnias, cores, gostos e sexualidades:

heterossexuais, travestis, “viados”, “bichas” e “chupa charque”─ este último é nome

dado pelas travestis e gays da cidade às mulheres que mantêm relações sexuais com

outras mulheres─ e mesmo que o Tubarão seja um espaço que reúne vários grupos em

uma aparente harmonia, o conflito entre eles são expressos através de discussões e

brigas, motivadas muitas vezes pelo uso de bebidas alcoólicas e ciúmes entre casais.

Vale ressaltar, que embora o Tubarão congregue pessoas gays, travestis e lésbicas, está

não é um espaço propriamente homossexual.

2.1.Do centro à aldeia em ritmo de festa

A praça central da Baia da Traição é um local que concentra as festas de rua em

comemoração ao fim do ano, aniversário da cidade e o carnaval, maior evento da região,

e que reúne em torno de 120 mil pessoas. Quando há festas no Tubarão, também é na

praça que as pessoas se reúnem primeiro, elas ficam nos quiosques que vendem

comidas e bebidas, ou em volta dos paredões de som iluminados com luz de led, que

quase sempre ocupam todo o espaço do porta-malas do automóvel.

Em dia de festa “tradicional”, nome dado a comemorações que já ocorrem há

vários anos, com datas pré-estabelecidas, cujos principais destaques são as festas de

santos padroeiros, culturas agrícolas da região (caju, camarão) e o dia do índio. São

atraídas para o Centro da cidade, tendas que comercializam objetos para ornamentar o

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corpo, tais como: brincos, pulseiras, colares e tatuagens feitas com renas, e até mesmo

equipamentos de parque de diversão, como: castelos infláveis para as crianças

escorregarem, tendas para tiros ao alvo com espingardas de chumbinho e jogos de azar.

Entretanto, quando estas festas ocorrem em aldeias vizinhas da cidade, o que

vemos é um deslocamento do centro para a aldeia. Na Festa do caju, comemorada há

vários anos na aldeia Vila São Miguel, cuja fronteira com a cidade é o estreito rio

Sinimbu, o Centro se move e transgride o limite territorial; esta comemoração atrai

pessoas de várias partes do mundo, além de uma vasta quantidade de homens, mulheres

e travestis, havia também estrangeiros (franceses e portugueses) dançando ao som da

suingueira da Banda Grafith, de Natal (RN).

As atrações musicais se apresentaram em um espaço fechado que dispõe de

grande palco. Nos arredores da área fechada, reservada para festa, podia-se observar um

grupo de quatro travestis vindas da aldeia Caeira, Salema, distrito de Rio Tinto, e duas

delas vieram de Araçagi, cidade famosa pela presença expressiva de travestis. Apenas

uma estava acompanhada pelo marido, que se posicionava a margem do grupo,

aproximando-se da companheira apenas ao entrarem no espaço reservado para festa, lá

eles ficaram abraçados formando uma espécie de conchinha, ele a segurava por trás, e

apenas se soltavam quando a travesti ia dança suingueira, ou para ir ao banheiro

acompanhado pelas amigas.

Havia em torno de onze travestis na festa da aldeia, mas apenas quatro estavam

reunidas formando um grupo que ficou próximo a entrada do clube sob uma grande

tenda branca. Imagino que este seja um local estratégico, pois elas viam e eram vistas

por quem chegava. As demais travestis estavam acompanhadas por seus amigos gays,

ou com amigos de infância que não são homossexuais. De longe, observei que elas

dançavam e conversavam entre si em aparente tranquilidade.

Do outro lado do clube, Bárbara estava na mesa de suas amigas de infância e

dois lusitanos que havia conhecido há poucos dias, em especial Pedro, cuja irmã é

casada com um francês e tem uma pousada na cidade de frente para o mar. A travesti se

movia de maneira sensual acompanhando o ritmo das músicas, que estavam cheias de

mensagens sexuais: “... É impar, é par, é impar, é par! Se der impar você chupa, se der

par você me dá...” Havia também Mouhana e Rayka, a primeira estava em uma mesa

acompanhada com duas pessoas. Rayka estava na companhia de uma “chupa charque”,

e por uma razão que não sabia explicar, sentiu-se mal e logo saiu para os esquemas com

os “boyzinhos” na ruína da igreja São Miguel.

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2.2.Carnaval: ponto auge do Verão

Ao falar sobre o carnaval como rito e como mito, o antropólogo Roberto da

Mat. (1997, p. 39) argumenta que é, “sobretudo no ritual coletivo, que a sociedade pode

ter (e efetivamente tem) uma visão alternativa de si mesma. Pois é aí que ela sai de si

mesma e ganha um terreno ambíguo, onde não fica nem como é normalmente, nem

como poderia ser, já que o cerimonial é por definição um estado passageiro”. E para o

autor há duas formas de apreensão dos rituais, o primeiro ocorre em “seu momento de

chegada,” e desse momento até chagar ou fim, isso é: o seu momento de passagem,

visto que o fim é marcado com o retorno para a residência, "onde espera pela rotina do

cotidiano com as esperanças renovadas ou com o medo das penalidades que a 'realidade

da vida' nos apontará." (ibidem).

No período do carnaval a cidade da Baia da Traição é mais procurada da região,

assim, as práticas rotineiras dão lugar aos paredões de som de vários tipos: pequenos,

médios e grandes, com os quais a realidade social é reinventada. Em 2014 os números

de visitantes, entre turistas e veranistas, fez com que a Baia da Traição ficasse em 2º

lugar no ranking das cidades mais procuradas da Paraíba, com cerca de 120 mil

pessoas5 que ocupavam as casas de veraneio, imóveis alugados e as pousadas, isso

ocorre não apenas por causa das lindas praias propícias para o banho, mas também pelos

rios de água doce em volta do município. Os movimentos de veículos ficam intensos

nesta época com a chegada dos turistas, veranistas e das pessoas que moram em outras

cidades e aproveita a ocasião da festa para visitarem os familiares

A prefeitura junto com patrocinadores investe para que haja atrações durante os

quatro dias de carnaval6, com instalação de um grande palco na praça central e um trio

elétrico para acompanharem os maiores blocos: Bloco Brilho da Lua, Bloco Papai Folia,

Bloco das Virgens, neste último os homens usam indumentárias femininas e visse-versa,

este é o mais aguardado e reúne a maior quantidade de foliões, há também o Bloco do

Quartel e o mais recente Bloco da Várzea, uma localidade social da cidade. Aqui as

ruas são estreitas, não há um espaço amplo o bastante, e nem investimentos por parte

dos patrocinadores para instalação de camarotes, as festas são totalmente grátis para o

público, exceto os abadás para os blocos de variaram entre 10 e 30 reais. Assim, casas

de primeiro andar com sacadas funcionam como uma espécie de camarote que reúnem

5 Dados não oficiais da Secretaria de Turismo emitidos pela polícia Militar.

6 As comemorações do carnaval, de modo geral, é contabilidade os quatro dias, no entanto, ela costuma

ser antecipada e prolongada para além do Sábado, Domingo, Segunda e Terça.

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grupos de amigos e familiares, também é comum no espaço da “sacada” ocorrerem são

os shows de danças frenéticas de alguns “loucos”.

No sábado, nem bem amanhecia, ouvia-se de longe o som estridente dos

paredões de som que estavam instalados na frente de inúmeras casas, nos porta-malas de

carros, e para algum desses paredões era necessário o uso de caminhão, ou serem

rebocados pelos automóveis. Ao redor desse aparelho concentram-se grupos de pessoas,

sejam da Baia da Traição, ou de outras cidades, eles estão os principais pontos da

cidade, ruas, praias e rios.

No fim de tarde ao sair para observar o comércio e os corpos, ouvir as músicas e

o que se falavam levas ruas, escuto do alto da sacada de um apartamento, uma voz não

estranha que gritava o meu nome, era Bárbara, ela pediu que lhe esperasse, pois ia

descer para falar comigo, a mais de um mês que não nos encontrávamos, desde que foi

morar com sua mãe em João Pessoa, ela veio especialmente para festas, re-ver amigos e

paqueras. Durante a nossa conversa, a travesti viu e cumprimentou muitas pessoas e me

apresentou a quase todas. Uma de suas amigas estava com o dreads colorido e artesanal

no cabelo, Bárbara achou bonito e resolveu fazer o mesmo; e para chagar até a barraca

que ofertava este serviço, andamos juntas por alguns metros, no percurso, Barbara

parava para abraçar os amigos que encontrava. Após enfeitar o cabelo, se passado

alguns minutos, fomos juntas no primeiro bloco carnavalesco do dia.

O bloco Brilho da lua, com concentração na Praça Central, às 17 horas seguiu

acompanhado do trio elétrico que tocava músicas regionais em ritmo de marchinha

carnavalesca, pelas principais ruas da cidade até a sede dos idosos que deu nome ao

bloco, este em especial, abre espaço para as pessoas da terceira idade fantasiadas com

roupas coloridas, porta bandeiras e cartazes; não raro ocorrem alguns acidentes com os

idosos e eles têm que ser levados as pressas ao hospital do Trauma em João Pessoa.

Na frente da sede dos idosos, Brilho da Lua, também foi à concentração do

segundo ano do Bloco do Papai Folia, realizado em homenagem ao atual prefeito

Manoel Messias. Durante o percurso de tempo em que as pessoas esperavam para seguir

o caminho inverso, Barbara encontrou vários amigos e parentes, ficamos juntas por

algum tempo, e seus amigos pediam-lhes que fossem apresentados a mim, e ao fazer

isso Barbara o advertia sobre a minha homossexualidade: “Esse é a minha amiga

Verônica... e ela não curte, viu?”, este não curte dito por Barbara tem ligação direta ao

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fato de não estabelecer “relações” com homens, sendo eu uma chupa charque7 que não

tinha interesses pelos seus potencias paqueras, e eles por sua vez, não tentaria manter

um contato mais próximo comigo.

Barbara, seus amigos e eu, seguimos no bloco que reuniu pessoas mais jovens, e

guiadas pelo mesmo trio elétrico, fizemos o caminho inverso, dançando e bebendo até a

Praça Central, que estava tomada por pessoas que aguardavam o bloco e esperavam pela

festa com show das bandas Pimenta de Cheiro e Duquinha eletro, que aconteceria em

um grande palco a partir das às 22 horas e se encerrava por volta de 01hr:45min,

seguindo determinação da Superintendência de Administração do Meio Ambiente

(SUDEMA). No dia seguinte da pagina de notícias da cidade Facenews Baia da

Traição, foi postado uma notícia cujo titulo era: Sábado de Carnaval acaba mal, e em

seu conteúdo estava escrito:

Na madrugada de sábado para domingo, logo após o termino das

festividades carnavalesca, vândalos revoltados pelo horário de

termino ser até às 2h da manhã, começaram a atear garrafas de vidro

para o alto, atingindo vários foliões, muitos ficaram feridos e foram

levadas para o Posto Médico, a policia agiu rapidamente, mas com a

multidão, não se deu para identificar os vândalos.

Este ato de violência modificou a dinâmica das festas nos dias seguintes, passou

a ser proibido à entrada na área reservada para as festas bebidas em garrafas de vidro, os

seguranças revistaram as caixas térmicas nas entradas das principais ruas.

2.3. As virgens da Baia da Traição

Esse bloco devia ser as arrombadas

da Baia da Traição, isso sim!

(Travesti Mikaelly, ao falar sobre o bloco)

Na tarde do Domingo houve o mais esperado Bloco das Virgens da Baia da

Traição. Uma representação baiense da inversão de papeis que apenas o carnaval

permite. É impossível andar pelas ruas e não sorrir com homens andando de perna

aberta e tragando um delicado vestido, com roupas coladas ao corpo, tem também os

rapazes mais caricatos, que usam perucas coloridas e exageram na maquiagem. Para

muitos a produção é levada a sério, alguns são maquiados pelas namoradas, esposa ou

amigas, e todos os anos saem de virgem, este é o caso de Serginho e seu amigos, eles

são da cidade de Mamanguape e há vários anos saem vestidos com adereços femininos

no bloco e dançando as músicas de sucesso do momento. Tragando as roupas de

7 Penso que este fato tem ligação significativa com o meu corpo em campo, talvez um corpo que atraia

alguns homens, mas que não oferece concorrência às travestis.

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ginástica da companheira, Serginho explica que tem que ter muita prática, porque não é

fácil usar roupas de mulher e ainda dançar, beber e andar.

Notei que as mulheres que estavam vestidas de maneira masculina,

encontravam-se de mãos dados com um parceiro aparelhado de mulher, desse modo,

para os homens é mais comum sair em grupos de amigos todos de saias, roupas coladas

e maquiagens, do que as mulheres colocarem roupas masculinas, prenderem o cabelo e

desenharem barbas na face. Por outro lado, mesmo participando do Bloco das Virgens,

não pude observar toda a sua dimensão, e deixei passar despercebido o que seria uma

espécie liminaridade do ritual carnavalesco, como nos ensina Victor Turner, inspirado

em Van Gennep. Ao conversar com uma travesti que apenas observava o bloco, soube

que Barbara, considerada uma pessoa bonita e atraente, estatura mediana, dona de

longos cabelos negros e lisos, pernas torneadas e delicados traços sinuosos e que chama

a tenção o fato de andar sempre com roupas curtas e apenas a parte de cima no biquíni,

no momento do bloco estava usando roupas de “homem, e nós ficamos brincando,

dizendo: ah, Joãozinho voltou... mas, ele disse que no bloco das virgens as mulheres se

vestiam de homem, foi uma resenha.”

Há também as pessoas que investem na produção para ficar mais belas e

atraentes, pois em seu cotidiano já se porta de maneira tida como feminina, é o caso das

travestis, Hilary e Mouhana que estavam com roupas provocantes e brilhantes,

chamando atenção do folião e convidadas a pousar para fotos.

Fotos: 2. As travestis baienses: Hilary de roupa branca e Mouhana de roupa vermelha.

Hilary iniciou o percurso até a concentração no bloco na frente da creche

municipal, localizado na rua principal, calçando um salto alto que estava machucando

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seus pés, e ao caminhar ele prendia nos paralelepípedos, por essa razão ela os tirou e

jogou em um terreno baldio, seguindo descalça pelas ruas, pois a festa não podia parar.

Mouhana permaneceu de salto alto durante todo o percurso, mas reclamava das dores e

disse que “babado vai ser meus pés mais tarde”. Elas encontravam os amigos, param

para serem fotografadas pelos turistas e com os turistas.

As travestis encontravam os seus amigos e parentes pelo caminho, e ao

chegarem ao local previsto para a concentração do bloco, elas estavam rodeadas por

eles, e os demais foliões. E quando o bloco começou, animado pelos Mauricinhos do

Forró, cantando um dos rits do carnaval ─“entra em cena, rouba a cena (...) poderosa,

maravilhosa, onde passa incomoda, onde passa incomoda”─ as travestis se perderam

aos pulos na multidão que cantava, dançava e consumia bebidas alcoólicas.

Neste momento, no universo dissimulado, como nos aponta Simmel, (1968) o

tato, é de suma importância: “onde nenhum interesse egoísta imediato ou externo dirige

a auto-regulação do indivíduo em suas relações pessoais com outros, é o tato que

preenche essa função reguladora” (ibidem, p. 170), cuja interação atravessa as diversas

formas de contato social, no qual “a sociabilidade é o jogo no qual se ‘faz de conta’ que

são todos iguais e, ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é referenciado em

particular; e ‘fazer de conta’ não é mentira” (ibidem, p. 173), pois as pessoas estão

reunidas para saciarem as suas vontades e não para “simular a realidade.” No momento

reservado para o carnaval: com blocos pelas ruas as "pessoas (os chamados 'foliões'=

loucos), brincando de modo individual (isto é sozinho), em casais ou coletivamente".

(DA MATA, ibidem, p. 110) mantém através do tato visual e verbal a interação entre si.

3. Outras reflexões

Para compreendermos melhor as informações que compõem este artigo, a cerca

dos espaços de lazer e sociabilidade entre as travestis no período do verão, temos com

levam em consideração que elas foram obtidas através da observação participante, mas,

em outras, apenas com diálogos em que as travestis narravam os acontecimentos. Isto

faz suscitar questões relacionadas à metodologia, por seu eu dona de um corpo, cujo

sexo é feminino, há espaços e momentos que meu corpo, embora homossexual, são

interditados.

As travestis fazem parte do universo do lazer na Baia da Traição e da diversão

do carnaval, elas expõem seus corpos usando roupas curtas, deixando a mostras suas

pernas tornadas e pele bronzeada. Elas alargam suas possibilidade de práticas sexuais e

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amizades: nos rios e praias com a brincadeira lúdicas e sexuais, esta última foi

registrada pelo antropólogo Martinho Tota (2012) ao pesquisar sobre “processos e

fluxos identitários complexos envolvendo etnicidade, gênero, geração e sexualidades no

município da Baía da Traição”, seu corpo masculino e sua homossexualidade por vezes

acionada em campo possibilitaram a participação efetiva nas redes homoeróticas e

brincadeiras sexuais nas casas de veraneio desabitadas na frente do mar.

Na primeira noite em que fui ao cenário onde se dava a “brincadeira”,

Geraldinho me conduziu até os fundos de uma casa de veraneio

fechada, defronte o mar. Claudiano estava lá, acompanhado por cerca

de oito rapazes. De imediato percebi um clima de “sacanagem”

imperando naquele ambiente. Pouco depois Britney apareceu de

biquíni. Havia passado a tarde inteira na praia e disse já ter “feito um

bofe” naquele dia. Os outros rapazes faziam muita algazarra, gritavam,

assobiavam, sem nenhuma preocupação de chamar a atenção de outras

pessoas. Na verdade a praia estava deserta, “nenhuma pessoa sozinha

ia, nenhuma pessoa vinha...”, como dizia aquela canção de Marisa

Monte.

Tota não se limitou a pesquisar e registrar apenas as biografias de rapazes

homossexuais da aldeia e da cidade, ele também teve acesso as travestis de uma maneira

que eu jamais teria, a exemplo de acompanhá-las nas brincadeiras sexuais com fez com

Britney. A mim e ao meu corpo feminino, embora homossexual, resta o “diague racha”,

que desde 2009 dá forma a metodologia aqui acionada. Esclareço para o leitor não

familiarizado com a expressão supracitada, que diague na linguagem do grupo em

questão, quer dizer, grosso modo, para isolar algum acontecimento que não seria

agradável, e racha é com se referem à mulher, cuja genitália é rachada.

Breve epilogo

No âmbito da vida cotidiana, ao cruzar com as travestis pelas ruas, ao estar com

elas em suas casas, e compartilhar momentos em bares e festas, noto que não apenas no

período de carnaval, mas em seu cotidiano, as travestilidade expressa nas ruas da Baia

da Traição, não se encaixa nos alvos constantes de preconceito pelo o “não

cumprimento dessa exigência de adequação de um sexo a um gênero e, destes, a um

conjunto de performances corporais que culminariam com a expressão de um desejo

uni-direcionado.” (PELÚCIO, 2011, p. 107). Neste contexto etnográfico a feminilidade

fálica das travestis faz com que elas experienciam o poder da sedução através da estética

de seus corpos que as liberam. Desse modo, o poder “encontra-se exposto no próprio

corpo” (FOUCAULT, 2001, p. 146). Não como uma forma de controle e disciplina, mas

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um poder que torna os corpos despeitados das travestis indóceis. Assim, na prática

etnográfica, observamos a preciosidade da estética travesti e o seu corpo despeitado nas

ruas da Baia da Traição. Um corpo que atrai, seduz, e causa embaraços.

Certa noite ao sair nas ruas penumbrosas com Barbara, para irmos justas a uma

“festa da sacanagem” no Tubarão, na companhia de mais duas amigas da travesti,

sentimos o assedio que a envolvia, os olhares lascivos dos machos que se encontravam

na frente das casas e transitando pelas ruas nos acompanhavam. E ao caminharmos parte

do trajeto que dá acesso a praça central, Bárbara acendeu um cigarro, fumou e se

arrependeu de ter posto um salto alto: “Nã... estou me sentindo arrumada demais... Vou

voltar em casa e trocar de sandália.” Foi apenas o tempo de virarmos a esquina que

dava acesso à rua principal, que ela rapidamente arrumou um motoqueiro para

acompanhá-la a sua casa, rapidamente, foi e voltou usando uma sandália rasteirinha.

Seguimos o percurso, e em uma rua movimentada a poucos metros da praça, um

macho que estava sobre uma moto chamou a atenção de Barbara e disse: “Tu viu a

buzinada que eu dei hoje cedo?” Ela sorriu e o rapaz continuou: “Venha cá?!” E logo

depois desse convite, Bárbara nos pediu para espera-l* na frente da farmácia, esquina

com a praça. Esperamos por cerca de 40 min, o rapaz vir deixá-la no local combinado,

ao descer da moto ela notou que havia perdido o ingresso para a festa que tinha

guardado em sua “buceta”. E sem demora Barbara arrumou outro motoqueiro para

acompanhá-la até o local onde era provável ter deixado cair o ingresso, dessa vez

esperamos mais tempo. Barbara chega sorrindo e diz: “Foi com um macho, perdi o

ingresso, voltei, achei e ganhei outro macho... Hoje eu estou com um chama.” As

experimentações de Barbara com rapazes da cidade e turistas são constantes, caráter

secreto dos esquemas, por vezes é deixado de lado, uma vez que a travesti é “desviantes

de alta visibilidade, atraí para si todas as atenções.” (SILVA, 2007, p. 62), assim,

Mouhana, Rayka, Hilary e Barbara sãos os exemplos mais claros de como a estética

travesti atraí: nos rios, nas praias, nas ruas e nas festas elas estão sempre rodeadas por

rapazes.

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Bibliografia

Da Matta, Roberto. Carnaval, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema

brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Racco. 1997.

FOUCAULT, Michel. Poder - corpo. In: Microfísica do Poder. Organização e tradução

de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001a, p. 145-152.

PELÚCIO, Larissa.Corpos indóceis - a gramática erótica do sexo transnacional e as

travestis que desafiam fronteiras. In: Michel Foucault: sexualidade, corpo e direito. São

Paulo: Ed. Cultura Acadêmica, 2011. pp. 105-132.

SIMMEL, Georg. “Sociabilidade: um exemplo de sociologia pura ou formal”. In:

MORAES FILHO, Evaristo de (org.). Simmel. São Paulo: Editora Ática, 1983. pp. 165-

181 (Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 34)

SILVA, Hélio R.S. Travestis:entre o espelho e a rua. Rio de Janeiro: Ed. Rocco. 2007.

TOTA, Martinho. 2012. Entre as diferenças: gênero, geração e sexualidades em

contexto interétnico. Doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: UFRJ-/ Museu

Nacional.