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DIDONET:A Avaliação na e da Educação Infantil
Vital DidonetAssessor da Secretaria Executiva - RNPI
I –Introdução
O objetivo deste texto é (a) resenhar as definições e diretrizes legais, políticas e operacionais sobre a avaliação na e da educação infantil no Brasil, expedidas pelo governo federal, portanto, de aplicação geral em todo o país. Diretrizes e orientações práticas dos sistemas de ensino dos Estados, do DF e dos Municípios não entram neste estudo; (b) apresentar questões centrais do debate sobre avaliação na e da educação infantil e (c) sugerir algumas linhas sobre as quais a reflexão deve incidir para garantir que a avaliação na educação infantil seja coerente com as concepções mais avançadas de criança e infância e com as finalidades dessa etapa da educação básica.
As preposições “na” e “da” constantes do título distinguem dois objetos e dois contextos da avaliação. A avaliação na educação infantil se refere àquela feitainternamente no processo educativo, focada nas crianças enquanto sujeitos e coautoras de seu desenvolvimento. Seu âmbito é o microambiente, o acontecer pedagógico e o efeitoque gera sobre as crianças. A avaliação da educação infantil toma esse fenômeno sociocultural (“a educação nos primeiros cinco anos de vida em estabelecimentos próprios, com intencionalidade educacional, formalizada num projeto político-pedagógico ou numa proposta pedagógica”), visando a responder se e quanto ele atende à sua finalidade, a seus objetivos e às diretrizes que definem sua identidade. Essa questão implica perguntar-se sobre quem o realiza, o espaço em que ele se realiza e suas relações com o meio sociocultural. Enquanto a primeira avaliação aceita uma dada educação e procura saber seus efeitos sobre as crianças, a segunda interroga a oferta que é feita às crianças, confrontando-a com parâmetros e indicadores de qualidade.
No conjunto de documentos legais, normativos e de orientações pedagógicas encontramos dispositivos sobre avaliação do desenvolvimento das crianças, bem como sobre a política de educação infantil, nos seus diferentes aspectos e âmbitos de formulação e aplicação.Uma vez que eles são produto de um debate amplamente participativo, do qual tomaram parte estudiosos, pesquisadores, professores, representantes de entidades da área, eles constituem umconsistente ponto de partida para as respostas que somos instados a dar, neste momento, sobre a avaliação na e daeducação infantil.
A avaliação da educação vem se tornando um assunto cada vez mais presente no mundo todo, tanto no que se refere à aplicação de testes quanto no debate sobre as concepções que subjazem à sua formulação, sua adequação ou inadequação, seus objetivos e usos.
A educação infantil não está imune a essa onda de avaliação que vem tomando conta do ambiente social e educacional. Ela não sofreu, ainda, a invasão de um teste nacional ou internacional, mas “eles” estão rondando, com os mesmos argumentos que impulsionam os que vêm sendo aplicados nos outros níveis da educação. Educadores resistem à aplicação de testesestandardizados, de forma generalizada para todas as crianças, com objetivo de marcar o estágio ou nível de desenvolvimento eo alcance de objetivos pré-definidos para respectivas idades. E há, também, educadores e gestores de sistemas de ensino que veem nos dados coletados por meio de testes, questionários ou registros de observação, indicações seguras e precisas para a programação de atividades, oferta de estímulos e incidência pontual sobre itens que estariam precisando de maior atenção.
O debate está instalado e terá que evoluir para um entendimento mais aproximado da forma justa de apoiar, incentivar e mediar o processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças nos estabelecimentos de educação infantil.
II - Situando a questão
A avaliação na educação infantil é tema presente na legislação e na política pública de educação no Brasil pelo menos desde 1996. Na prática pedagógica, ela é anterior, uma vez que, formal ou informalmente, deliberada ou sem perceber, sempre estamos avaliando aquilo que vemos, experimentamos ou fazemos. Não seria diferente na oferta da educação às crianças.
O tema entra na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no calor do embate entrevisões teóricas e práticasopostas – umas querendo adotar na educação infantil os mesmos procedimentos usados nas etapas seguintes da educação básica, constituídos de provas, testes e trabalhos aos quais se atribuemconceitos e notas; outras, preconizando a observação e o registro dos comportamentos e atitudes, dasexpressões e produções das crianças. As primeiras, pretendendo identificar progressos ou atrasos, deficiências ou a não realização das aprendizagens esperadas. As outras, almejando reunir um conjunto de indicadores capazes de produzir uma percepção sempre mais aproximada do processo de construção de conhecimentos e desenvolvimento de cada criança para exercer mais eficazmente sua mediação.
A caracterização da avaliação que a LDB adota objetiva definir a diretriz legal, portanto, obrigatória, para os sistemas de ensino, os estabelecimentos e os professores de educação infantil, dirimindo as possíveis polêmicas e consolidando um único procedimento quanto à avaliação na educação infantil.
A LDB não trata da avaliação da política da educação infantil, mas dos processos internos de acompanhamento do desenvolvimento e aprendizagem das crianças, ou seja, do microambiente criado pela atividade educacional da creche e da pré-escola: o que ela está sendo para as crianças enquanto sujeitos de desenvolvimento integral, nos aspectos físico, psicológico, intelectual e social (art. 29).
Os documentos posteriores reproduzem essa diretriz, sugerindo formas de cumpri-la, e estendem o olhar para fora da “sala de atividades”, abarcando a formulação da política de educação infantil, sua articulação com o ensino fundamental ea inserção no contexto sociocultural. Introduzem o conceito de qualidade como objetivo a ser alcançado, construindo parâmetros e indicadores de qualidade, sobre os quais podem ser criados instrumentos de avaliação.
Esses documentos foram produzidos sob a liderança ou coordenação do Ministério da Educação (SEB/COEDI) com ampla participação de especialistas e instituições educacionais, movimentos e redes de organizações com comprovada experiência nos diferentes campos da atividade educacional – pesquisa, avaliação, formação de professores, atuação em creches e pré-escolas, políticas públicas de educação, legislação e gestão de sistemas de ensino.
II - A avaliação nos documentos legais e políticos da educação infantil
1. A LDB, no art. 31,firmou uma posição clara e precisa de que a “Na educação infantil, aavaliação far-se-á mediante acompanhamento e registro do desenvolvimento infantil, sem o objetivo de promoção, mesmo para o aceso ao ensino fundamental”.
A lei não indica como será feito o acompanhamento nem que instrumentos se usarão para captar a evolução no desenvolvimento das crianças. Mas ela é assertiva em não permitir que a avaliação seja usada para reprovar ou aprovar a transição das crianças para subetapas seguintes (por exemplo, do Maternal para o Jardim I, do Jardim I para o II, e deste para o Jardim III)nem da educação infantil para o ensino fundamental. Duas razões principaisconduziram o legislador a formular a segunda parte do art. 31: (a) a concepção de desenvolvimento humano, de construção dos conhecimentos, do ritmo e forma próprios de cada criança e (b) a obrigatoriedade do ensino fundamental a partir do sétimo ano de vida – hoje a partir dos seis -, sem restrições de qualquer natureza. Se não há pré-requisito, além da idade, para entrar no ensino obrigatório, não cabe avaliar conhecimento ou competências que o precederiam.
Diversos documentos de diretrizes nacionais, como o Plano Nacional de Educação 2001-2011, a Política Nacional de Educação Infantil - 2005, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, do CNE/CEB - 2009, reproduzem e explicitam o texto da LDB, mas vão além, indicando o contexto em que a educação infantil é formulada, viabilizada política, administrativa e tecnicamente.
2. Plano Nacional de Educação - PNE 2001-2011
Embora esteja vencido o prazo de vigência desse PNE, é importante considerar que posições ele firmou nesse assunto. O objetivo/meta 11 do Capítulo sobre a Educação Infantil preconiza a criação de mecanismos de colaboração entre educação, saúde e assistência na manutenção, expansão, administração e avaliação das instituições de atendimento de crianças de zero a três anos de idade. O objetivo/meta 19 manda “estabelecer parâmetros de qualidade dos serviços de educação infantil, como referência para a supervisão, o controle e a avaliação, e como instrumento para a adoção de medidas de melhoria da qualidade”. E o objetivo/meta 10: “que os municípios estabeleçam um sistema de acompanhamento, controle
e supervisão da educação infantil visando ao apoio técnico-pedagógico para a melhoria da qualidade e à garantia de cumprimento dos padrões mínimos estabelecidos pelas diretrizes nacionais e estaduais”.
O PNE, portanto, não menciona a avaliação do desenvolvimento das crianças, mas preconiza a avaliação da oferta.
3. Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à educação
Nesse documento, a avaliação considerada é a que se refere à política, às propostas pedagógicas (que devem ser avaliadas pelas próprias instituições de educação infantil), ao trabalho pedagógico (que deve ser prevista nas propostas pedagógicas e envolver toda a comunidade escolar). Pode-se entender que o objetivo de “Garantir a realização de estudos, pesquisas e diagnósticos da realidade da educação infantil no país para orientar e definir políticas públicas para a área” seja, também, uma indicação sobre a avaliação. Novamente aqui, o foco é o perfil da realidade em vista de novas políticas ou ajustamento das que se encontram em vigor.
As diretrizes da política nacional de educação infantil nãofazem menção à avaliação do desenvolvimento ou da aprendizagem das crianças.
4. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - RCNEI 2009
São mais explícitas e detalhadas, cumprindo sua função de orientar a prática cotidiana:
“Art. 10. As instituições de Educação Infantil devem criar procedimentos para acompanhamento do trabalho pedagógico e para avaliação do desenvolvimento das crianças, sem objetivo de seleção, promoção ou classificação, garantindo:
- A observação crítica e criativa das atividades, das brincadeiras e interações das crianças no cotidiano;
- Utilização de múltiplos registros realizados por adultos e crianças (relatórios, fotografias, desenhos, álbuns etc.);
- A continuidade dos processos de aprendizagens por meio da criação de estratégias adequadas aos diferentes momentos de transição vividos pela criança (transição casa/instituição de Educação Infantil, transições no interior da instituição, transição creche/pré-escola e transição pré-escola/Ensino Fundamental);
- Documentação específica que permita às famílias conhecer o trabalho da instituição junto às crianças e os processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança na Educação Infantil;- A não retenção das crianças na Educação Infantil.”
As diretrizes curriculares indicam duas áreas de avaliação: (a) o trabalho pedagógico e (b) o desenvolvimento das crianças. Repete a LDB no impedimento de procedimento avaliativo que vise à seleção, promoção, retenção ou classificação das crianças.
E apontam dois procedimentos de avaliação: observação das atividades das crianças e registro, feito em diferentes formas pelos adultos e pelas crianças.
5. Plano Nacional pela Primeira Infância –PNPI 2011-2022
Elaborado pela Rede Nacional Primeira infância num extenso processo participativo, foi aprovado pelo CONANDA e assumido pelo Governo Federal, sob a coordenação intersetorial da Secretaria de Direitos humanos. Esse Plano articula as políticas públicas voltadas às crianças em vista de uma ação governamental integral e integrada, sugere políticas em direitos até agora não contemplados, define diretrizes, objetivos e metas relativos aos direitos da criança de até seis anos de idade. É um plano de longo prazo (2011-2022), abrangente de todos os direitos e do universo das crianças na sua diversidade e prevê a elaboração de planos estaduais e municipais segundo os mesmos princípios, diretrizes e objetivos.
No capítulo sobre a educação infantil, o PNPI estabelece as seguintes diretrizes sobre a avaliação:
(a) “A busca por fazeres pedagógicos cada vez mais qualificados deve constituir uma decisão e um esforço permanente para todas as instituições de educação infantil. Embora o conceito de qualidade se modifique ao longo do tempo, esteja relacionado à cultura do grupo, da comunidade e da região, ele envolve parâmetros mínimos nacionais e locais, Tais parâmetros devem ser bem conhecidos e utilizados como referentes para a avaliação da instituição, do trabalho docente e da atuação das crianças, bem como para a construção de um plano de busca permanente da qualidade” e
(b) “a avaliação ocorre permanentemente e emprega diferentes meios, como a observação, o registro, a reflexão sobre o desenvolvimento das atividades e projetos, sobre as hipóteses e descobertas das crianças: nunca como ato formal de teste, comprovação, atribuição de notas e atitudes que sinalizem punição – (pois esses são) processos externos e artificiais que bloqueiam a manifestação livre e espontânea da criança. Ela (a avaliação) será sempre sobre a criança em relação a si mesma e não comparativamente com as outras crianças, com objetivo de melhorar a forma de mediação do professor para que o processo de aprendizagem alcance níveis sempre mais elevados”.
E a meta:
“Estabelecer em todos os Municípios, no prazo de três anos, um sistema de acompanhamento, controle e supervisão da educação infantil, nos estabelecimentos públicos e privados, visando ao apoio técnico-pedagógico para a melhoria da qualidade e à garantia do cumprimento dos padrões mínimos estabelecidos pelas diretrizes nacionais e estaduais”.
6. Projeto de Lei nº 8035/2010 – PNE 2012-2022
O novo PNE ainda se encontra em tramitação no Congresso Nacional e, portanto, sujeito a mudanças, mesmo assim é interessante registrar o que nele está sendo proposto sobre a avaliação da educação infantil, porque representa, até o momento, o consenso do setor.
A estratégia 1.6 é de que se “implante, até o segundo ano da vigência do Plano, a avaliação da educação infantil, a ser realizada a cada dois anos, com base em parâmetros nacionais de qualidade, a fim de aferir a infraestrutura física, o quadro de pessoal, as condições
de gestão, os recursos pedagógicos, a situação de acessibilidade, entre outros indicadores relevantes”.
Ele aponta para a avaliação “da” educação infantil e não “na”, ou seja, considera estratégico para o alcance da qualidade e da meta que a cada dois anos se avaliem as condições da oferta: os espaços dos estabelecimentos de educação infantil (neles incluídos os parâmetros de acessibilidade), os profissionais, a gestão e os meios didáticos disponíveis e em uso.
É digno de nota que, para o ensino fundamental e médio, o novo PNE estabelece várias estratégias sobre avaliação individual dos alunos, ao passo que para a educação infantil é determinada apenas a avaliação das condições da oferta, sem menção à avaliação das crianças e sua aprendizagem. Ter sido preservada, no PNE, das propostas de aplicação de instrumentos de testes, provas ou outras formas de verificação de desenvolvimento e aprendizagem não é, ainda, garantia de que a educação infantil esteja imune da avalanche de instrumentos avaliadores que são indicados pelo mesmo Plano para o ensino fundamental e médio, como se vê a seguir.
Para a meta da universalização do ensino fundamental, uma estratégia se refere à avaliação: a criação de mecanismos para o acompanhamento individualizado dos alunos.
A alfabetização, que tem uma meta própria, separada da universalização do ensino fundamental, também recebe a indicação de uma estratégia: “5.2. Instituir instrumentos de avaliação nacional periódicos e específicos para aferir a alfabetização das crianças, aplicados a cada ano, bem como estimular os sistemas de ensino e as escolas a criar seus respectivos instrumentos de avaliação e monitoramento, implementando medidas pedagógicas para alfabetizar todos os alunos e alunas até o final do terceiro ano do ensino fundamental”.
Para o ensino médio: “Universalizar o ENEM, fundamentado em matriz de referência do conteúdo curricular do ensino médio e em técnicas estatísticas e psicométricas que permitam comparabilidade de resultados, articulando-o ao SAEB, e promover sua utilização como instrumento de avaliação sistêmica, para subsidiar políticas públicas para a educação básica, de avaliação certificadora, possibilitando aferição de conhecimentos e habilidades adquiridos dentro e fora da escola, e de avaliação classificatória, como critério de acesso á educação superior”.
A Meta 7, que trata da qualidade da educação básica, chega ao ponto de fixar as notas médias nacionais a serem alcançadas pelos alunos, no IDEB, nos anos iniciais e nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, no !º, no 3º, no 5º, no 7º e no 10º ano do PNE! Nessa meta identifica-se uma estratégia: a construção de um conjunto (nacional) de indicadores de avaliação institucional com base no perfil do alunado e do corpo de profissionais da educação, nas condições de infraestrutura das escolas, nos recursos pedagógicos disponíveis e nas características da gestão.
Nas entrelinhas d estratégia 7.10 percebe-se o imperialismo da avaliação. Ela faz uma inversão sintomática: o objetivo finalístico da escola, que é a aprendizagem, passa a ser meio para ter boas notas no PISA. Diz o texto do PNE: “Melhorar o desempenho dos alunos da
educação básica nas avaliações da aprendizagem no Programa Internacional de Avaliação de Alunos – PISA, tomado como instrumento externo de referência, internacionalmente reconhecido...” – e fixa as media a serem alcançadas em diferentes anos até 2021...
A educação especial terá indicadores específicos de avaliação da qualidade (estratégia 7.7)
A pletora de instrumentos está apenas começando... (a) a alfabetização de crianças terá instrumentos (no plural) nacionais, aplicados periodicamente, ao longo do processo, a cada ano, e ao final dele e instrumentos criados pelos estados e municípios; (b) o ensino fundamental terá mecanismos de acompanhamento individualizado dos alunos; (c) o ensino médio, um Enem obedecendo a técnicas estatísticas e psicométricas que permitam comparar resultados e forneçam uma avaliação classificatória; (d) a qualidade terá o IDEB como instrumento indicador do alcance dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento; um conjunto de indicadores de avaliação institucional; instrumentos para as escolas realizarem a autoavaliação contínua e o PISA, com notas médias em matemática, leitura e ciências.
III - A avaliação nos documentos de orientação operacional
1. Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil – 2006
A avaliação depende do conceito de qualidade que se adota. O documento resume as seguintes características da qualidade:
- é um conceito socialmente construído, sujeito a constantes negociações;
- depende do contexto;
- baseia-se em direitos, necessidades, demandas, conhecimentos e
possibilidades;
- a definição de critérios de qualidade está constantemente tensionada por essas diferentes perspectivas.
Tendo em mente essas características, os aspectos a serem avaliados sob o enfoque da qualidade são:
- as políticas para a Educação Infantil, sua implementação e acompanhamento;
- as propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil;
- a relação estabelecida com as famílias das crianças;
- a formação regular e continuada dos professores e demais profissionais;
- a infraestrutura necessária ao funcionamento dessas instituições.
O volume 2 atribui ao MEC a competência de zelar pela qualidade da educação infantil e aos municípios recomenda que adotem medidas para não permitir que se realizem avaliações que levem à retenção de crianças na Educação Infantil. Mas o documento não ingressa no âmbito do desenvolvimento infantil como objeto de avaliação.
A contribuição desse documento é estabelecer os parâmetros ou sinalizações do que deve ser feito nos estabelecimentos de educação infantil. Um instrumento de avaliação deve ser construído ou adotado para verificar e registrar o cumprimento daqueles parâmetros de qualidade.
2. Parâmetros Básicos de Infraestrutura dos Estabelecimentos de Educação Infantil – 2006
O documento sugere que os dirigentes municípios de educação “considerem critérios de qualidade para a realização das obras em seus vários aspectos: técnicos, funcionais, estéticos e compositivos”. E, à equipe multidisciplinar, que “proponha indicadores para a avaliação da qualidade das edificações ao longo de sua realização”.
3. Critérios para um Atendimento em Creches que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças - 2009
É um instrumento prático de autoavaliação dos profissionais que atuam em creches. Apresenta uma ampla lista de itens indicativos de uma boa educação na creche em dois campos: a ação pedagógica e a política de creche, ambos focados no respeito aos direitos da criança. A leitura desse “checklist” é, por si só, instigador de respostas sim ou não, servindo para a professora apropriar-se de um conhecimento sobre a realidade em que atua e decidir-se por melhorar sua atuação bem como buscar os meios necessários para atender ao que ali está indicado como direito das crianças. Pode-se dizer que é um instrumento de orientação e, simultaneamente, de avaliação da educação infantil na creche.
4. Indicadores da Qualidade na Educação Infantil – 2009
É um instrumento a ser usado pelos estabelecimentos educacionais para conhecer a qualidade da educação infantil realizada, em seus diferentes aspectos, e elaborar sucessivos planos de correção de falhas e contínuo aperfeiçoamento das práticas. É, por isso, um processo de autoavaliação, do qual participam a direção, os técnicos, os professores, auxiliares, as famílias e pessoas da comunidade. Quer que se analise o contexto, nos seus aspectos culturais e nas condições objetivas locais, “por esse motivo, o processo de definir e avaliar a qualidade de uma instituição educativa deve ser participativo e aberto...” (pág. 12). Participativo e aberto não significa que qualquer rumo ou qualquer referencial seja válido – diz o documento – pois há princípios e diretrizes nacionais firmados em legislação e constitutivos
de práticas pedagógicas reconhecidas como boas, que servem de referência. Os Indicadores de qualidade foram definidos a partir dos Parâmetros nacionais de Qualidade para a Educação Infantil.Dessa forma, se mantém a coerência entre as normas e orientações gerais e a análise local das condições de oferta da educação infantil.
Os Indicadores não são um instrumento de medida nem propõem quantificações dos itens observados. Em vez disso, são um convite e guia para a tomada de consciência coletiva, das pessoas envolvidas no estabelecimento de educação infantil, de como veem seu desempenho nas seguintes dimensões: (a) planejamento institucional; (b) multiplicidade de experiências e linguagens; (c) interações; (d) promoção da saúde; (e) espaços, materiais e mobiliário; (f) formação e condições de trabalho das professoras e demais profissionais e (g) cooperação e troca com as famílias e participação na rede de proteção social.
4. Referenciais Curriculares Nacionais – RCNEI,
Esse documento é o mais pontual e específico, com indicações concretas e objetivas sobre a avaliação na educação infantil, o que se justifica por ser um texto dirigido aos professores, para ser usado como orientador de sua prática pedagógica.
A concepção de avaliação que os RCNEI explicitam é:
“...um conjunto de ações que auxiliam o professor a refletir sobre as condições de aprendizagem oferecidas e ajustar sua prática às necessidades colocadas pelas crianças. É um elemento indissociável do processo educativo que possibilita ao professor definir critérios para planejar as atividades e criar situações que gerem avanços na aprendizagem das crianças. Tem como função acompanhar, orientar, regular e redirecionar esse processo como um todo” (pág. 59).
Os instrumentos principais dessa avaliação indicados pelos Referenciais são a observação e o registro. “Por meio deles o professor pode registrar, contextualmente, os processos de aprendizagem das crianças; a qualidade das interações estabelecidas com outras crianças, funcionários e com o professor e acompanhar os processos de desenvolvimento obtendo informações sobre as experiências das crianças na instituição”. São dadas várias sugestões de como fazê-lo: “A escrita é, sem dúvida, a mais comum e acessível. O registro diário de suas observações, impressões, ideias etc. pode compor um rico material de reflexão e ajuda para o planejamentoeducativo. Outras formas de registro também podem ser consideradas, como a gravaçãoem áudio e vídeo; produções das crianças ao longo do tempo; fotografias etc.”. E acrescentam os Referenciais: “Esta observação e seu registro fornecem aos professores uma visão integral das crianças aomesmo tempo em que revelam suas particularidades”.
Cabe, ainda, trazer dois fragmentos dos RCNEI, um sobre a avaliação das crianças e outro sobre o planejamento pedagógico da instituição:
“No que se refere às crianças, a avaliação deve permitir que elas acompanhem suas conquistas, suas dificuldades e suas possibilidades ao longo de seu processo de aprendizagem” e
“A avaliação também é um excelente instrumento para que a instituição possa estabelecer suas prioridades para o trabalho educativo, identificar pontos que necessitam de maior atenção e reorientar a prática, definindo o que avaliar, como e quando em consonância com os princípios educativos que elege” (pág. 60).
IV - O ASQ-3 – Ages and Stages Questionnnaire
Em 2011 iniciou-se uma discussão que se estendeu por todo o país sobre avaliação do desenvolvimento infantil em creches realizada por um instrumento norte-americano (ASQ-3), validado no Rio de Janeiro e aplicado na rede de creches públicas e conveniadas com a prefeitura do município do Rio de Janeiro, abrangendo 91% das crianças.
A intenção de seus aplicadores de estender ao país a avaliação do desenvolvimento das crianças que frequentam creches utilizando esse instrumento foi motivo de ampla contestação ([1]). Pesquisadores, especialistas, professores, entidades que congregam gestores, professores e organizações, por meio de Manifestos, Cartas e Atos de Repúdio, vídeos e debates em seminários, expressaram discordâncias e reafirmaram os princípios e diretrizes já consagrados na política nacional de educação infantil.
Um Seminário foi promovido pela SAE – Secretaria de Assuntos Estratégicos, da Presidência da República, em Brasília (5/12/2011), em que a Dra. Jane Squires, uma das autoras do ASQ-3, explicou como o questionário foi construído, as fases que teve de aperfeiçoamento e complementação, suas qualidades comparativamente com outros instrumentos de diagnóstico do desenvolvimento infantil.
O ASQ foi concebido como instrumento de triagem – faz o diagnóstico de problemas ou distúrbios no desenvolvimento de crianças pequenas - para encaminhamento a um profissional especializado. Classifica as crianças em três categorias: (a) necessita uma avaliação em profundidade, (b) monitoramento e estímulos adicionais são recomendados e (c) está se desenvolvendo conforme esperado.Investiga seis dimensões do desenvolvimento infantil: comunicação, motora ampla, motora fina, solução de problemas, pessoal/social e emocional, informando em qual daquelas dimensões a crianças está menos desenvolvida.
O questionário consta de 30 perguntas e 21 escalas com 620 itens; como existem repetições, o total de itens não repetidos é 275. Acompanhando o ASQ-3, há um rol de atividades para ser aplicado às crianças, naquele item em que o desenvolvimento se encontra insatisfatório.
Vários documentos (Cartas, Manifestos, Considerações, Contribuições ao Debate...) por instituições, especialistas e pesquisadores foram escritos e distribuídos e encaminhados à autoridade educacional sobre o ASQ-3 e a intenção de adotá-lo como instrumento geral de avaliação do desenvolvimento infantil na rede de estabelecimentos educacionais.
A Rede Nacional Primeira Infância enviou uma carta ao Ministro da Educação em que tece comentários sobre a polêmica em torno do ASQ-3 e apresenta o entendimento das
organizações que naquele momento faziam parte da Rede sobre a avaliação do desenvolvimento das crianças nos estabelecimentos de educação infantil.
Alguns fragmentos da carta esclarecem a posição da RNPI:
- Os fundamentos (da política nacional de educação infantil) já estabelecidos em documentos oficiais partem do princípio que afirma ser a criança sujeito do presente, historicamente constituído, geograficamente situado, culturalmente inserido e que precisa de um ambiente onde possa se desenvolver plenamente. Portanto, a Educação Infantildeve ser um espaço de interação e desenvolvimento destas múltiplas dimensões, da forma mais integrada possível. O desenvolvimento infantil, por sua vez, é compreendido como um processo de variabilidade especialmente acentuada para as crianças abaixo de 3 anos. Há, de fato, marcos do desenvolvimento que são próprios da infância, mas há particularidades tanto individuais quanto sociais que dão a cada criança singularidades que precisam ser consideradas. Procedimentos de avaliação para essa fase, quando aplicados em larga escala, não consideram esta variabilidade. Por estas razões, os estudos de Psicologia do Desenvolvimentosugerem que as avaliações sejam contextuais e acompanhadas por profissionais qualificados, a fim de evitar que os instrumentos e procedimentos de avaliação produzam processos de classificação e exclusão.
- Reconhecendo que os ambientes dos centros de educação infantil ainda precisam de vigoroso investimento para se constituir em locais que promovam o desenvolvimento das crianças, adequados ao cuidado e que possibilitem a aprendizagem, respeitando as múltiplas linguagens das crianças, é de se perguntar qual o sentido de uma avaliação de “desempenho” das crianças antes de fazer esses investimentos? Como avaliá-las sem ter oferecido as condições a que tem direito para seu desenvolvimento? Anterior a essa, a avaliação de contexto, sim, é urgente e necessária e pode gerar respostas práticas para a gestão dos sistemas de ensino.
- Ainda nocampo do direito e da ética, é necessário lembrar que uma avaliação de desenvolvimento não tem a mesma natureza de avaliações de aprendizagem onde o que é medido é o processo de aprendizagem dos conteúdos escolares. O que se avalia nesta escala é o desenvolvimento das crianças e resulta em informações sobre competências individuais para ser. Neste caso, para preservar o direito das crianças, é preciso que as famílias sejam informadas e consintam com o processo.
A RNPI formula perguntas cujas respostas são essenciais para tomar decisões em relação a esse Questionário ou a qualquer outro instrumento padronizado, estandardizado, que toma uma “média nacional” de desenvolvimento:
- Qual a concepção de desenvolvimento humano que está guiando ametodologia de avaliar capacidades da criança?
- Como estabelecer indicadores de desenvolvimento infantil sem considerar contextos de desigualdade econômica e social que condicionam esse mesmo desenvolvimento?
- Como conciliar o conceito de diversidade e o de inclusão, expressos em diretrizes e normas de educação no país, com a ideia de avaliar habilidades e estabelecer indicadores de desenvolvimento padrão?
V –Nova iniciativa do MEC: Grupo de Trabalho de Avaliação da Educação Infantil
Em dezembro de 2011 o Ministro da Educação instituiu, pela Portaria nº 1.747, um Grupo de Trabalho para produzir subsídios que contribuam para a definição da política de avaliação da educação infantil no Brasil. Em abril de 2012, outra Portaria, de nº 379, nomeia os representantes dos órgãos e entidades que compõem o Grupo de Trabalho de Avaliação da Educação Infantil.
Esse GT tem a tarefa de explicitar uma matriz lógica ou marco de referência que estabeleça diretrizes e metodologia para subsidiar um programa de avaliação da Educação infantil. É da competência legal do INEP criar instrumentos e executar os processos de avaliação da educação no País, portanto também da educação infantil. Os estudos e sugestõesdo GT visam contribuir para essas tarefas do INEP.
O GT foi instalado e realizou a primeira reunião (ampliada com convidados internacionais) em 24 e 25 de abril de 2012, na sede da OEI – Organização dos Estados Ibero-americanos, em Brasília, que organizou, com a parceria do MEC e da Universidade Federal do Paraná, um Seminário Internacional sobre Avaliação da Educação Infantil. Nessa ocasião, duas pesquisadoras italianas, de Reggio Emilia, (Anna Bondioli e Donatella Savio) e uma espanhola (Ana Perez) apresentaram suas concepções, práticas e projeto/instrumento de avaliação. A Maria Malta Campos, da Fundação Carlos Chagas e PUC/SP, apresentou a Pesquisa MEC/BID/FCC: Avaliação Qualitativa e Quantitativa na Educação Infantilsobre qualidade em creche no país. A Rita Coelho, coordenadora geral de educação infantil do MEC, falou sobre os Indicadores de Qualidade em EI – sua construção, distribuição e uso pelos estabelecimentos de educação infantil. O Ricardo Paes de Barros, secretário de assuntos estratégicos da Presidência da República, expôs a concepção e conteúdo do ASQ-3 e a experiência de sua aplicação nas creches do sistema de ensino do município do Rio de Janeiro.Os debatesforam coordenados por Rosa Blanco, da OEI-Chile, que também fez a síntese das ideias apresentadas nos dois dias.
A segunda reunião do GT foi no dia 14 de maio, no MEC, em Brasília. E a terceira, na Faculdade de Educação da UFMG, no dia 18 de junho.
A profa. Sandra Zákia foi contratada pelo MEC para assessorar o grupo na elaboração do documento final de sugestões e recomendações.
VI –Sugestões para a delimitação do campo da Avaliação em Educação Infantil
Há consenso de que a avaliação é essencial para conhecer e aperfeiçoar aquilo que se faz. As opiniões e convicções se dividem na escolha dos meios e na forma de avaliar.
Naeducação infantil, aavaliação tem especificidades derivadas das características etárias das crianças, nos aspectos físicos, psicológicos e sociais, correlacionadas às formas culturais em que se dá sua formação humana, dependentes das finalidades e objetivos que a
sociedade determina para essa etapa da educação, dos ambientes e espaços em que ela se realiza edas interações que se estabelecem entre crianças e entre crianças e adultos. Não pode ser tratada, por isso, da mesma forma como o é a avaliação do ensino fundamental, médio ou superior.
Cinco questões-chave devem ser postas previamente:
(a) a concepção de criança, que implica subjetividade, diversidade, etapa da vida com valor-em-si-mesmo e dinâmica de desenvolvimento tendente a níveis de crescente complexidade,
(b) concepção de infância e infâncias, contextualizadas histórica e culturalmente,
(c) a política nacional de educação infantil
(d) a caracterização dosespaços (estabelecimentos) e tempos em que ela é realizada e
(e) as transições internas da educação infantil e desta ao ensino fundamental num processo que mantém unidade no interior da criança enquanto sujeito e autora de seu desenvolvimento e da aprendizagem.
As concepções teóricas e análises de práticas em cursosobre avaliaçãoem educação,internacionais e nacionais, nos recomendam alerta e a tomada posição clara nos seguintes pontos:
(a) umacultura de testesvem tomando espaço cada vez maior na educação a ponto de serem os grandes, senão os únicos, referenciais da qualidade da educação. A educação parece que vai se estruturando ao redor deles: “é preciso alcançar tal metas no IDEB, melhorar a posição no PISA, atenção para o peso que cada edição do PISA atribui a uma das três áreas ou disciplinas avaliadas (língua, matemática e ciências), valorização, com prêmio, dos professores cujos alunos alcançam notas mais altas...”. Essa cultura dos testes é uma franca inversão nos processos pedagógicos, colocando os meios no lugar dos fins.
(b) diagnóstico e avaliaçãovem sendo confundidos e até tomados como se fossem a mesma coisa.
(c) aplicação de testesde conhecimento ou habilidades na educação infantil, ainda em pequena escala, mas com tendência a se expandir, é prejudicial às crianças. Testes criam situação de tensão. Artificializam a expressão do conhecimento e do saber fazer. Não avaliam valores, atitudes, caráter. Não avaliam persistência, esforço, alegria na descoberta, significados internos de coisas feitas. Priorizam a memória de informações. Recortam um processo dinâmico de desenvolvimento, retiram dele uma amostra e generalizam para todo o ser da criança. Tendem a classificar, quantificar, comparar – senão com outras crianças, pelo menos com uma média considerada “padrão”. Sabendo os professores quanto um mau desempenho nos testes de seus alunos repercute em sua avaliação, são induzidos a treiná-los para se saírem bem na prova. Professores que almejam prêmio pelo bom desempenho de seus alunos tendem a cobrar deles acertos e notas altas nos testes estandardizados ([2]). O foco do ensino e da aprendizagem muda do conhecimento para o reconhecimento, ou seja, da construção do
conhecimento para a sua demonstração social. Os testes medem as coisas com uma visão estreita e em circunstâncias delimitadas, muito diferentes da vida real.
(d) o estabelecimento de rankingsegundo pontos, notas, conceitos ou juízos valorativos, de crianças, turmas, escolas, municípios, países é pernicioso. Como são perniciosas comparações usando resultados de testes de diagnóstico ou de avaliação. Essa posição encontra similaridade com a de outras organizações educacionais, tais como aAssociação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino (Andifes), “que não reconhece rankings de avaliação das universidades federais” ou do MEC, que “também não comenta sobre rankings, pois não são a melhor forma de avaliar a educação” (comentário a propósito da avaliação feita pela Quacquerelli Symonds University Ranking - QS, instituição britânica especializada em avaliação de desempenho de instituições de ensino superior (Jornal A Tarde, BA, 15.6.2012). Os critérios para conferir pontos e fazer os ranks são discutíveis. Se eles são questionáveis no ensino superior, imagine-se na educação infantil, que atende crianças na fase da vida em que estão se constituindo sujeitos, quando as estruturas cognitivas, sociais e afetivas da personalidade começam a se formar e consolidar.
Somos, no entanto, favoráveis à avaliação:
a) da aprendizagem e desenvolvimento das crianças, nos termos do art. 31 da LDB: acompanhamento do desenvolvimento, por meio de observações e registro, usando diferentes formas. As observações e registros devem ser contextualizados, isto é, tomando as crianças concretas, em suas histórias de vida, seus ambientes sociais e culturais. E devem ser variados, tais como a escrita, a gravação de falas, diálogos, fotografias, vídeos, os trabalhos das crianças etc. As professoras anotam, por exemplo, o que observam, as impressões e ideias que têm sobre acontecimentos, descrevem o envolvimento das crianças nas atividades, as iniciativas, as interações entre as crianças etc.E usam esses registros para refletir e tirar conclusões visando aperfeiçoar a prática pedagógica.
As crianças devem ser envolvidas na avaliação das atividades, da ação da professora, das coisas feitas pelas crianças. A professora conversa com elas, ouve suas dificuldades, registra a percepção que elas têm sobre e com elas combina formas mais agradáveis, mais eficientes, mais desafiadoras nas próximas vezes...
b) dos componentes da oferta de educação infantil. É a avaliação do “serviço”, de como ele está sendo posto para as crianças. Os parâmetros e os critérios de qualidade são as referências, e da política de educação infantil, em todos os seus âmbitos.
A RNPI reafirma o que propôs no PNPI sobre a avaliação na e da educação infantil:
1 – Sobre Qualidade, Parâmetros e Indicadores:
* A busca por fazeres pedagógicos cada vez mais qualificados deve constituir uma decisão e um esforço permanente para todas as instituições de educação infantil;
* Embora o conceito de qualidade se modifique ao longo do tempo, esteja relacionado à cultura do grupo, da comunidade e da região, ele envolve parâmetros mínimos nacionais e locais, Tais parâmetros devem ser bem conhecidos e utilizados como referentes para a avaliação da instituição, do trabalho docente e da atuação das crianças, bem como para a construção de um plano de busca permanente da qualidade.
2 – Sobre avaliação das crianças:
* A avaliação ocorre permanentemente e emprega diferentes meios, como a observação, o registro, a reflexão sobre o desenvolvimento das atividades e projetos, sobre as hipóteses e descobertas das crianças. Pensamos ser recomendável elaborar um guia ou orientações para fazer o registro: o que é relevante registrar, que meios empregar, quem faz o registro, o que fazer com os registros...;
* Nunca como ato formal de teste, comprovação, atribuição de notas e atitudes que sinalizem punição – (pois esses são) processos externos e artificiais que bloqueiam a manifestação livre e espontânea da criança;
* A avaliação será sempre sobre a criança em relação a si mesma e não comparativamente com as outras crianças
* O objetivo da avaliação é melhorar a forma de mediação do professor para que o processo de aprendizagem alcance níveis sempre mais elevados.
3 – Sobre avaliação dos elementos de oferta da educação infantil:
* Que se crie em todos os Municípios, no prazo de três anos, um sistema de acompanhamento, controle e supervisão da educação infantil, nos estabelecimentos públicos e privados, visando ao apoio técnico-pedagógico para a melhoria da qualidade e à garantia do cumprimento dos padrões mínimos estabelecidos pelas diretrizes nacionais e estaduais (PNPI);
* Que se implante, em dois anos a contar da sanção do PNE (2012-2022), um sistema de avaliação da educação infantil, com instrumento aplicado a cada dois anos, que verifique, com base nos parâmetros nacionais de qualidade,os elementos da oferta: infraestrutura física, as condições de acessibilidade, a gestão, o quadro de pessoal, a proposta pedagógica, os recursos pedagógicos, entre outros indicadores relevantes (PNE 2012-2020).
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[1] Extraído do Site da SAE:“...o ministro de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), Moreira Franco, e a secretária municipal de Educação, Claudia Costin, firmaram acordo para a formulação de políticas públicas voltadas para a primeira infância do município.O termo, que inclui ações nas áreas de saúde, educação e assistência social, também foi assinado pelo presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP), Ricardo Manuel Henriques, e pelo secretário municipal de Saúde e Defesa Civil, Hans Dohmann. A experiência no Rio de Janeiro vai servir de base para uma proposta de política nacional para a primeira infância, que está sendo debatida pela SAE.
[2] Em atenção ao Programa No Child Left Behind, do governo G.W. Bush, nos Estados Unidos, a direção de Jardins de Infância forçou professores a substituir o brincar e atividades de criatividadee de artes pelo ensino de conteúdos curriculares que seriam objeto dos testes de conhecimento.
NASCIMENTO
Algumas considerações sobrea infância e as políticas deeducação infantilMaria Letícia Nascimento*ResumoO objetivo deste artigo é apresentar considerações sobre aspolíticas públicas voltadas para a educação infantil e sobre olugar ocupado pelas crianças pequenas no sistema educacional,a partir de um quadro teórico que compreende a infância comouma categoria na estrutura social e, portanto, as crianças comoatores sociais, sujeitos de direito que constroem culturas. Nestesentido, em primeiro lugar, discute os caminhos que tornampossível o novo paradigma da infância, para, em seguida,rever as políticas, referindo brevemente o desenvolvimentode pesquisas nacionais e internacionais. Pretende discutir aspectosda (in)visibilidade da infância e questões concretas queimpedem as crianças pequenas de exercerem seu pleno direitoà educação infantil.Palavras-chave: Pequena infância – políticas públicas – legislação.Reflections on childhood and policies forearly childhood educationAbstractThe objective of this paper is to reflect on the public policiesfor early childhood education e the place of small childrenwithin the educational system, starting from a theoretical frameworkthat understands childhood as a category in the socialstructure and, thus, children as social actors and subjects ofright who create culture. In this sense, it first discusses what* Docente da Feusp, pesquisadora na área da Sociologia da Infância e Educação Infantil.E-mail: [email protected] u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043147makes the new paradigm of childhood possible and, then reviewsthe policies, with a brief reference to the developmentof national and international researches. It attempts to discusssome aspects about the (in)visibility of childhood and concreteissues that prevent small children to exercise their full rightto education.Keywords: Early childhood – public policies – law.Algunas consideraciones sobre la infancia ylas políticas de educación de la niñez
ResumenEl objetivo de este trabajo es presentar consideraciones sobrelas políticas públicas de educación infantil y el lugar ocupadopor los niños pequeños en el sistema educativo, desde unmarco teórico que comprende la infancia como una categoríaen la estructura social y, por tanto, los niños, como actoressociales, sujetos de derecho que conforman culturas. Paraeso, en primer lugar, examina los caminos que hacen posibleel nuevo paradigma de la infancia, a continuación, revisar laspolíticas, indicando brevemente el desarrollo de investigacionesnacionales e internacionales. Busca discutir aspectos de la (in)visibilidad de los niños y cuestiones concretas que impiden quelos niños ejerzan su derecho pleno a la educación.Palabras clave: Pequeña niñez – políticas públicas – legislación.Pensar a infância no Brasil significa considerar diferentesgrupos de crianças, cujas vidas e oportunidades, na maior partedas vezes, são determinadas por diferentes condições econômicase sociais. Neste sentido, pode-se pensar que, apesar da legislaçãoque universaliza os direitos das crianças (Constituição Federal de1988, Convenção dos Direitos da Criança1, de 1989, Estatuto daCriança e do Adolescente, de 1990), o respeito ou a restrição aesses direitos pode ser relativo ao grau de pobreza, ao gênero,à etnia ou à pouca idade. Ainda que, no caso das crianças pequenas,o grau de pobreza tenha acompanhado o surgimentoe o desenvolvimento das instituições educacionais voltadas a1 Sobre a CDC, um recente artigo de Rosemberg e Mariano (2010) apresenta suascontradições e repercussões no Brasil.a 148 Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043elas, como se verifica em diversos artigos2 e nas referências nalegislação3, parece interessante trazer para essas consideraçõesa restrição causada pela última categoria, a idade, que tem sidopouco aclamada, pesquisada ou discutida, principalmente porque,do ponto de vista geracional, as relações sociais entre a infânciae o mundo adulto enfatizam a subordinação da primeira, compreendidacomo tempo de passagem em direção à vida adulta.Há uma interpretação negativa atribuída às característicasinfantis, relacionada à vulnerabilidade física e moral, que produzpráticas sociais de proteção e de controle que, em últimainstância, restringem a visibilidade das crianças – e seus direitos.Em outras palavras, é natural que o adulto decida sobre a infânciae que esta fique limitada às interpretações – construídascultural ou socialmente – pelo mundo adulto. De acordo comQvortrup (2011[1993]), ao contrário, a infância deve ser compreendidacomo uma forma estrutural de qualquer sociedade,e como tal,é conceitualmente comparável com o conceito de classe, no
sentido da definição das características pelas quais os membros,por assim dizer, da infância estão organizados, e pela posição dainfância assinalada por outros grupos sociais, mais dominantes(adultos)” (2011, p. 203).A organização social, portanto, utiliza o aspecto biológicopara definir socialmente o lugar da infância e, dessa forma, osrelacionamentos entre os adultos e as crianças envolvem tanto oexercício do poder quanto a expressão do amor (DAHLBERGet al., 2003, p. 71).2 �radicionalmente, a creche é associada ao assistencialismo, ao favor, às crianças pobres(ver KUHLMANN Jr., 1998; ROSEMBERG, 1989), mas também a pré-escolapública assume essas características em seu surgimento no município de São Paulo,como explicita o artigo de Campos (1985).3 Ver, por exemplo, o Plano Nacional de Educação de 2001, que afirma, em suas diretrizes,que a prioridade da educação infantil deve ser dada às crianças das famíliasde menor renda, acrescentando que “a expasão que se verifica no atendimento dascrianças de 6 e 5 anos de idade conduzirá invariavelmente à universalização, transcendendoa questão da renda familiar”.Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043149O confinamento das crianças em determinados lugaresconsiderados apropriados ao seu desenvolvimento ou socializa-ção – as escolas e as creches – faz parte, assim, de um sistemade proteção e de preparação para o futuro, o que, por um lado,amplia a atenção à infância e às suas necessidades, e, por outro,cerceia sua participação na vida social, tornando-a invisível paraa sociedade como um todo. Cabe aqui lembrar o papel das ciências,sobretudo da pediatria e da psicologia, no estabelecimentode um modelo universal de criança, que camuflou as criançasconcretas, contribuindo para sua invisibilidade.O impacto das políticas sociais mais amplas, porém, trazas crianças concretas à ordem do dia, direta ou indiretamente.Qvortrup (2010) argumenta que, por exemplo, o aumento daparticipação da mulher no mercado de trabalho, acompanhadopela necessidade da criação de creches e de espaços educacionaisextraescolares, torna-se uma “política que visa deliberadamenteà infância, embora, em um primeiro momento, a entrada dasmulheres no mercado de trabalho não incluísse uma preocupa-ção com as crianças ou a infância; ela se tornou necessária emum segundo momento” (p. 784). Neste sentido, essa e outraspolíticas que afetam diretamente as vidas das crianças, além desua aclamada condição de sujeitos de direitos, desencadeiamestudos que estabelecem novos paradigmas sobre a infância.Ou seja, as crianças passam de um reconhecimento como seresuniversais, frágeis e imaturos, para tornarem-se pessoas concretase contextualizadas, submetidas aos mesmos problemas
que atingem o grupo social do qual fazem parte. De acordocom essa perspectiva, altera-se a posição e o caráter natural euniversal atribuído à infância na estrutura social da sociedadeatual (NASCIMENTO, 2010).São duas as principais referências que sustentam os novosparadigmas da infância: na mesma década de 1990, a sociologiada infância se constituiu como campo de conhecimento e aexperiência das creches de Reggio Emilia, cidade do norte daItália, começou a ser divulgada. Essas referências internacionaisprovocaram significativas alterações naquilo que será denominadovisibilidade da infância. Em relação à primeira, foi delineado a 150 Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043um pressuposto, compartilhado por diferentes ciências sociais,de que as crianças são atores sociais e participantes ativos davida em sociedade, o que as coloca como centro da pesquisa,estudadas em seus próprios direitos. A segunda parte coloca umaconcepção de criança “forte, poderosa, competente e, acima detudo, conectada aos adultos e outras crianças” (MALAGUZZI,apud MOSS; PETRIE, 2002, p. 101), que se expressa por meiode diferentes linguagens. As duas referências se entrecruzamna constatação de que as crianças não são seres passivos, masdesenvolvem interações complexas, desde muito cedo, com osadultos e com seus pares etários.Os estudos da infância vão ainda sustentar que as criançastêm plena capacidade de produção simbólica e que constituemsuas representações e crenças em sistemas organizados, ou seja,em culturas (SARMENTO; PINTO, 1997). Por culturas infantis,Corsaro define “um conjunto estável de atividades ou rotinas,artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem ecompartilham em interação com as demais” (2011, p. 128). Suaprodução influencia e é influenciada pelo mundo adulto, ao qualas crianças reagem, tanto para dar-lhe sentido quanto para retirarelementos para lidar com outras crianças e outros adultos.As políticas de educação infantilDeterminada como direito da criança, dever do Estado eescolha da família na Constituição Federal de 1988 (CF/88), einstituída como primeira etapa da Educação Básica pela Lei deDiretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9394/96),a educação infantil foi impactada pela intensa discussão internacionale, do ponto de vista nacional, tornou-se objeto de amplarevisão das concepções de infância presentes nos projetos e naspráticas pedagógicas.É importante lembrar que a etapa da educação infantil foiconstituída legalmente pela junção entre creches e pré-escolas,instituições de diferentes origens e histórias, o que levou ascreches, tradicionalmente alocadas em secretarias de assistênciasocial, a serem transferidas para as secretarias de educação. Alémdisso, do ponto de vista da visibilidade da pequena infância, há Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011
ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043151menos informação sobre as crianças nas creches e instituiçõessimilares do que nas pré-escolas, inseridas nos sistemas públicosde educação há mais tempo. O Instituto Nacional de EstudosPedagógicos Anísio Teixeira (Inep) realizou, em 2000, o primeirocadastro nacional de instituições que atendem crianças pequenas,com o objetivo de conhecer as dimensões da demanda edo atendimento, informação publicada parcialmente em 2001.O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realiza,por sua vez, um trabalho sistemático de produção, organizaçãoe divulgação de estatísticas relativas à população de crianças de0 a 6 anos, dentro do grupo etário mais amplo de 0 a 17 anos,utilizando várias fontes de informações. Entretanto, as estatísticassobre educação infantil começaram a ser sistematizadas a partirdo Anuário estatístico de 1974 (KAPPEL et al., 2001), ao passoque as informações socioeducacionais das crianças de 0 a 4 anosde idade foram incluídas sistematicamente na Pesquisa Nacionalpor Amostra de Domicílios (PNAD) a partir de 1995 e incluídasno Censo Demográfico a partir de 2000 (KAPPEL, 2001).As políticas públicas para a pequena infância, desde os documentospublicados pelo MEC na primeira metade da década de1990 – os chamados documentos das carinhas4 – até a Política Nacional5, de 2006, têm buscado pautar-se pela concepção de criançacomo sujeito de direitos e ator social. As Diretrizes CurricularesNacionais, tanto em sua versão de 1999 (Resolução CNE/CEB1/1999), quanto na atualização de 2009 (Resolução CNE/CEB5/2009), apresentam a mesma concepção. Isso deveria indicarque as instituições de educação infantil – creche e pré-escola, nostermos da Lei 9.394/96 – desenvolvem um trabalho que valorizae visibiliza as crianças pequenas, promovendo-as como sujeitos dedireito. Entretanto, não é esse o quadro que se apresenta.4 Estes buscavam a superação da dicotomia educação/assistência, explicitando objetivos,diretrizes e linhas de ação prioritárias para o segmento, para a garantia do direito dapequena infância a uma educação de qualidade (BARRETO, 1995).5 “[…] atualmente emerge uma nova concepção de criança como criadora, capaz deestabelecer múltiplas relações, sujeito de direitos, um ser sócio-histórico, produtorde cultura e nela inserido” (BRASIL, 2006, p. 8).a 152 Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043Em primeiro lugar, parece importante apontar que a LDB9.394/96, ao mesmo tempo em que regulamentou a educaçãoinfantil, determinou a municipalização desta etapa e do ensinofundamental. Sobre a municipalização, parece interessanteesclarecer que, no Brasil, o Estado responde pela garantia doconjunto de direitos sociais, embora, como federação, haja umadistribuição de competências entre os entes federados para aoferta da educação. Os recursos tributários, assim, são distribuídos
de maneira a sustentar a implementação e manutençãodas políticas educacionais. O regime de cooperação entre osentes federados, previsto na CF/88, a partir do princípio dofederalismo cooperativo, contudo, não foi regulamentado, o que,de acordo com análise de Araújo (2010), “em conjunto com aextrema fragmentação orçamentária da descentralização de perfilmunicipalista mitigam as possibilidades de melhoria das políticasde acesso e permanência na escola […]” (p. 237).A propósito da desigualdade relativa à municipalização aindaem 1996, foi aprovada a Lei 9.424/96, que instituía o Fundo deManutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e deValorização do Magistério (Fundef)6, que instituía mecanismosde redistribuição de receitas, em regime de colaboração, e “alterouos dispositivos constitucionais, definindo a atuação prioritáriade cada ente da federação” (ARAÚJO, 2010, p. 238, grifo nooriginal). Nessa linha, o Fundef reforçava a municipalizaçãoe, como anuncia seu nome, financiava e valorizava o ensinofundamental, de maneira que o financiamento para a educaçãoinfantil, nos municípios, concorria com o destinado ao ensinomédio, o que, para Didonet (2000), representava “um instrumentogovernamental concreto que pode(ria) levar, por tabela,a educação infantil à asfixia” (p. 20).Alterado pela Lei nº 11.494/07, que instituiu o FundoNacional de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorizaçãodo Magistério (Fundeb)7, o recurso para o financiamentoda educação infantil foi garantido legalmente, ainda que, numprimeiro momento, as creches tivessem sido excluídas desse6 Emenda Constitucional (EC) n. 14/96.7 Emenda Constitucional (EC) n. 53/06.Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043153Fundo, fato que gerou grande mobilização dos movimentossociais e que apontava para a visão fragmentada da etapa porparte de políticos e legisladores.Dentre os documentos nacionais relativos à implementaçãode políticas públicas, aqui, para a educação infantil, o PlanoNacional de Educação (PNE), Lei 10.172/01, constatou que, sepor um lado, o investimento na educação infantil constituía ummovimento internacional de apoio às famílias e ao desenvolvimentodas crianças, por outro, sua oferta era desequilibrada emrelação às creches e às pré-escolas, visto que havia poucos dadosdisponíveis sobre a primeira e uma quantidade maior sobre asegunda. Propunha, em primeiro lugar, a melhoria da qualidadedo atendimento, e estabelecia a meta de 50% de atendimento àscrianças de 0 a 3 anos de idade e de 80% para as de 4 a 6 anos,destacando sua tendência à universalização.A propósito da ideia de universalização, em 2005, as
crianças de seis anos de idade foram compulsoriamente transferidasda educação infantil para o ensino fundamental pela Lei11.114/05, que instituiu o início da obrigatoriedade do ensinofundamental aos 6 anos. Essa determinação, prevista pelo Art.87, da LDB de 1996, se coaduna com a exclusividade do financiamentopara o ensino fundamental pelo Fundef, ou seja,um número maior de crianças equivalia a maiores recursos aomunicípio. Na análise de Arelaro et al. (2011), esse procedimentoprovocou o aumento médio do número de alunos em cadaturma, sem que houvesse, de fato, investimento na ampliaçãoda quantidade de escolas ou de professores/as. E, do ponto devista das crianças, é importante destacar que perdiam um ano deseu direito à educação, isto é, o último ano da educação infantilera o primeiro ano do ensino fundamental.Essa situação foi regularizada pela Lei 11.274/06, que instituiuo ensino fundamental de nove anos, considerando seu inícioaos seis anos de idade, o que, de certa maneira, devolveu o anoperdido às crianças. Essa mudança estrutural que, a princípio,provocaria uma reorganização dos sistemas municipais de educa-ção, no sentido do acolhimento das crianças menores (uma vezque havia um prazo dado para a implementação da Lei), acabou a 154 Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043por tornar-se uma improvisação, sem que fosse dada atenção aessa mudança em grande parte dos municípios8.A ampliação do período de duração do ensino fundamentalpara nove anos – e a consequente universalização do ensino paraas crianças a partir dos 6 anos de idade – acabou por provocardiferentes questões para a educação infantil. A primeira delasrefere-se à matrícula de crianças de 5 anos no ensino fundamental,prática de vários municípios, cuja regularização foi objeto de Projetode Lei9, em 2008. Mais uma vez, a articulação dos movimentossociais sensibilizou alguns políticos e o projeto foi adiado.Outra questão polêmica foi a transferência de crianças de3 anos de idade da creche para o primeiro estágio da pré-escola,então esvaziada, em alguns municípios do estado de São Paulo.O arranjo, cujo objetivo era ampliar o número de vagas nas creches,foi contestado pelo Ministério Público porque as criançaseram matriculadas em salas inadequadas, com um número médiode 35 crianças para um professor, o que contrariava a propor-ção 18/1, indicada nas orientações federais. A regulamentaçãoelaborada pelo CNE e, sobretudo, a aprovação da EmendaConstitucional 59/2009, significou o retorno das crianças de 3anos para as creches, ainda que em piores condições, pois assalas acolhem atualmente, ao menos no município de São Paulo,25 crianças de 3 anos de idade, número que ainda contraria aproporção ideal.A aprovação da EC59/2009, que torna o ensino obrigatório
de 4 a 17 anos, como estratégia para assegurar o direito à educaçãode maneira ampliada, por um lado beneficia as camadasmais pobres da população, pois “estima-se um adicional de 3,96milhões de alunos, em todo o país, para universalizar a educaçãobásica para a população de quatro a 17 anos […] 41% da populaçãoa ser matriculada é oriunda das famílias que se encontramentre os 20% mais pobres” (PINTO; ALVES, 2010, p. 216).8 Para uma avaliação da implantação do ensino fundamental de nove anos, ver odossiê Educação Básica Obrigatória (Retratos da Escola/Escola de Formação daConfederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (Esforce) – v.4, n.7, jul./dez.2010) e a edição temática: ensino fundamental de nove anos, da Revista Educaçãoe Pesquisa, v.37, n.1, jan./abr.2011.9 PL 414/2008Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043155Por outro lado, considerando a educação infantil como etapa daeducação básica, a medida a fragmenta, pois exclui as crianças de0 a 3 anos e abala a concepção de creche como espaço legítimode educação e cuidado da criança pequena.Poder-se-ia ponderar se é ou não adequado tornar a educaçãodos bebês obrigatória, mas essa ponderação nos remeteriaa outro artigo. Pode-se, contudo, levantar a seguinte questão: sea educação infantil é dever do Estado, ela é obrigatória, pois oEstado deve atender o direito da população à educação desdeo nascimento. O compromisso novo que se estabelece com aEC59/09 é com os pais, que serão obrigados a matricular seusfilhos na escola ou pré-escola. Assim, a possibilidade de afamília escolher se quer ou não que suas crianças frequentema educação infantil fica só para os pais e mães de crianças atétrês anos.Ainda que o tema demande uma reflexão mais elaborada,cabe considerar que duas medidas legais diferentes para umamesma etapa de educação dividem a etapa em duas, recuperando,de certa maneira, sua divisão histórica. Uma segunda consideração,mesmo que apresentada como especulação, uma vez quea medida legal não foi ainda implantada, é a possibilidade de apré-escola ser compreendida como antecipação da escola, comoocorreu nos anos de 1970 e 1980, por ocasião da formalizaçãoda educação pré-escolar no Brasil. Não há dúvida de que atribuircaracterística antecipatória à educação de crianças de 4 e 5 anosfará com que a identidade da educação infantil, em construçãoporque recentemente formalizada, tenda a se fragmentar. Emoutras palavras, serão as crianças de 4 e 5 anos identificadascom as propostas pedagógicas do ensino fundamental e perderãoseu direito a uma educação cujos eixos são a brincadeira ea interação (DNCEI, Art. 9º)?Acrescente-se que, tomando os índices de acesso da pequenainfância à educação infantil – aproximadamente 18% e 74%,em relação às creches e pré-escolas, respectivamente, segundo
dados do Censo da Educação Básica do Inep –, verifica-se umadesigualdade interna na etapa. Se as crianças de 4 e 5 anos, porconta inclusive da legislação, têm um horizonte de universaliza-a 156 Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043ção do acesso à educação infantil, o mesmo não acontece emrelação às crianças de 0 a 3 anos de idade.No município de São Paulo, por exemplo, de acordo comdados da Secretaria Municipal de Educação10, em março de 2011havia 190.691 crianças matriculadas em creche e 186.162, empré-escola, para uma demanda de 127.651 e 14.839, respectivamente,dados que confirmam os índices nacionais.Pode-se argumentar que o município desenvolve ação emrelação ao seu dever de atender à demanda por creches, emborao faça ampliando convênios com instituições não governamentais,filantrópicas ou assistenciais, como indicam os númerosapresentados em seu portal11: 313 creches diretas, 316 indiretas12e 770 conveniadas, além de 463 escolas de educação infantil(pré-escolas). Em relação aos convênios, estes devem ser umaalternativa provisória, com sistema regular de acompanhamento,controle e supervisão na forma de apoio técnico-pedagógicopara garantir que correspondam ao padrão mínimo de qualidadeindicado na legislação.Pequena infância e educação infantilA argumentação apresentada até aqui revela contradiçõessignificativas em relação às políticas voltadas à primeira infânciae às crianças como sujeitos de direito. A legislação proporcionouaos sistemas públicos de educação, nas últimas décadas, a oportunidadede assumirem o compromisso de transformar espaçosde assistência em espaços educacionais, assim como de elaborar10 Dados disponíveis em: <http://www.portalsme.prefeitura.sp.gov.br/Documentos/demanda/ALUNOS_DEMANDA_DISTRITO%20-%20DOM%2020110401.pdf.>Acesso em: 10 mai. 2011.11 http://eolgerenciamento.prefeitura.sp.gov.br/frmgerencial/NumerosCoordenadoria.aspx?Cod=00000012 Creches indiretas são administradas por entidades privadas, que “gerenciam o própriomunicipal e os bens móveis necessários ao funcionamento, para desenvolverem atividadescorrespondentes ao plano de trabalho específico, inclusive quando o imóvelfor locado pela Secretaria Municipal de Educação”. Informação disponível em<http://portalsme.prefeitura.sp.gov.br/Anonimo/EdInf/convenios.aspx?MenuID=111&MenuIDAberto=88>.Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043157projetos pedagógicos contextualizados e significativos, ou seja,por força legal, poderiam ter desencadeado um processo dereorganização, com o objetivo de atender ao direito à educaçãode qualidade.
Este direito, de acordo com pesquisas internacionais enacionais, tem como proposição uma pedagogia da infância,ou seja, a organização dos espaços e dos tempos que privilegiaa brincadeira e a voz das crianças, coconstrutoras de seus processosde desenvolvimento, de aprendizagem e de socialização.Nessa linha, a participação e a visibilidade das crianças pequenase a produção de culturas infantis são a base.Verifica-se, assim, um descompasso entre as potencialidadesdas crianças e as oportunidades postas à sua disposição, retirandodas crianças as conquistas obtidas a partir de seu reconhecimentocomo sujeitos de direitos – sobretudo do direito à educaçãodesde o nascimento.ReferênciasARAUJO, G. C. Direito à educação básica: a cooperação entre os entes federados.Retratos da Escola, Brasília, v. 4, n. 7, p.231-242, jul./dez. 2010.ARELARO, L. R. G.; JACOMINI, M.; KLEIN, S. B. O ensino fundamentalde nove anos e o direito à educação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37,n. 1, p. 35-51, jan./abr. 2011.BARRETO, A. M. R. F. Educação infantil no Brasil: desafios colocados.Cadernos CEDES: Grandes políticas para os pequenos, Campinas, v. 37, p.7-18, 1995.BRASIL. Parecer CNE/CEB 020/2009; Resolução CNE/CEB N. 5/2009.Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, DF:Conselho Nacional de Educação/Câmara da Educação Básica, 2009.BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Contagem da população2007. Disponível em:<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem2007/default.shtm>. Acesso em:12/12/2010BRASIL. Lei n. 11.494, de 24 de junho de 2007. Fundo de manutenção edesenvolvimento da educação básica e de valorização dos profissionaisda educação. Brasília: Fundeb, 2007.a 158 Ed u c a ç ã o & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • 146-159, jan.-dez. 2011ISSN Impresso:1415-9902 • ISSN Eletrônico: 2176-1043BRASIL. Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Plano Nacional de Educa-ção. Diário Oficial da União, Brasília, 10 de janeiro de 2001, Seção I, p. 3-5.BRASIL. Parecer CEB 022/98; Resolução CEB 1/1999. Diretrizes CurricularesNacionais para a Educação Infantil. Brasília, DF: Conselho Nacionalde Educação/ Câmara da Educação Básica, 1999.BRASIL. Lei n. 9.424, de 24 de dezembro de 1996. Fundo de manutenção edesenvolvimento do ensino fundamental e de valorização do magistério.Brasília: Fundeb, 1996.BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Basesda Educação Nacional. Brasília, DF: MEC, 1996.BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e doAdolescente. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990.BRASIL. Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convençãosobre os Direitos da Criança, Diário Oficial da União, Brasília, 22nov. 1990.BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil.Brasília, DF: Senado, 1988.BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e PesquisasEducacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar da Educação Básica de 2009.Disponível em: <http://www.inep.gov.br/basica/censo/censo.asp>. Acessoem: 12/12/2010BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental.Coordenação Geral da Educação Infantil. Política Nacional de EducaçãoInfantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à educação. Brasília:MEC/SEF/DPE/COEDI, 2006.BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental.Coordenação Geral da Educação Infantil. Política Nacional de EducaçãoInfantil. Brasília: MEC/SEF/DPE/ COEDI, 1994.
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SILVEIRA
Os bebês interrogam o currículo: as múltiplas linguagens nacrecheSandra Regina Simonis Richter*Maria Carmen Silveira Barbosa**ResumoO cotidiano das escolas de Educação Infantil evidencia que as propostascurriculares, na especificidade da creche, se concretizam através de três modalidades.Essas modalidades apontam para pedagogias adultocêntricas e “escolarizadas”nas quais os bebês e as crianças pequenas não são reconhecidoscomo seres linguageiros, ativos e interativos em suas primeiras aprendizagensde convivência no e com o mundo. O poder delas de aprender a apropriar-se designificados através da inserção gradual em um conjunto de relações e processosconstituem um sistema de sentido. A função docente, como co-produtorade currículo, efetiva-se na construção de um espaço educacional que favoreça,através da interlocução com as crianças e as famílias, experiências nas diferenteslinguagens e nas práticas sociais e culturais de cada comunidade. Os bebês,em seu humano poder de interagir, interrogam esses modelos curricularesao afirmarem, nas suas ações cotidianas, a interseção do lúdico com o cognitivonas diferentes linguagens: a conciliação entre imaginação e raciocínio, entrecorpo e pensamento, movimento e mundo, em seus processos corporais deaprender a operar linguagens e narrativas.Palavras-chave: Currículo. Múltiplas linguagens. Educação de bebês.
Babies question the curriculum: multiple languages in nursery schoolsAbstractThe day-to-day activities in early childhood education demonstrate that theproposed curriculum, specifically in early childhood, is based on and followsthree recurrent modalities. All the three modalities reveal an adult-centeredpedagogy inspired by formal education, in which babies and small children arenot recognized as active and interactive linguistic beings in their early sociallearning in and with their environment. Their capacity to learn and acquire meaningsby getting gradually involved in a set of relationships and processes that represent* Professora Doutora da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Departamento de Educa-ção. Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.** Professora Doutora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Faculdade deEducação, Departamento de Estudos Especializados. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.86 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>Sandra Regina S. Richter – Maria Carmen S. Barbosaa system of sense is overlooked. The role of the teacher, as a co-producer ofcurriculum, becomes effective in creating an educational environment andinteracting with the children and their families, facilitating experiences in differentlanguages and in the social and cultural activities of each community. Babies,with their human capacity to interact, question these curriculum models anddemonstrate in their day-to-day actions the intersection between playfulnessand cognition in different languages: the conciliation between imagination andreasoning, between body and thought, movement and world, in their bodily processesof learning to operate languages and narratives.Keywords: Curriculum. Multiple languages. Babies education.
O que significa ser professora de bebês? Como se caracteriza o “ofí-cio de aluno” em uma turma de berçário? O que se espera de uma ação pedagó-gica na creche? Como propor um currículo para crianças bem pequenas? Quaissão as funções específicas de uma escola que atende bebês e crianças bempequenas? Quais as estratégias consideradas adequadas ao trabalho pedagó-gico com crianças pequenas? Quais possibilidades de conhecimento podemser desencadeadas e promovidas na creche?Enfrentar as interrogações acima é constatar que as especificidadesdas características da faixa etária das crianças que freqüentam a creche exigemconceber um outro tipo de estabelecimento educacional e, conseqüentemente,a revisão de conceitos naturalizados em nossa sociedade sobre escolae infância, conhecimento e currículo.As crianças pequenas têm como característica trazer novidade aomundo. Hannah Arendt (2004, p. 17) destaca que a condição humana da natalidade,enquanto “o novo começo inerente a cada nascimento”, pode “fazer-sesentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade deiniciar algo novo, isto é, de agir”. Em sua perspectiva, cada nascimento trazconsigo a irrupção da imprevisibilidade e da irreversibilidade. Cada criança quenasce é um desafio, uma interrupção, uma interrogação ao trazer consigo outraspossibilidades de agir. Inclusive ser diferente de como a conhecemos ou aconcebemos a partir de nossas teorias. Nesse sentido, elas trazem questionamentostambém à instituição educacional e ao currículo.As múltiplas linguagens dos bebêsOs seres humanos, ao nascerem, trazem como condição de sobrevivênciaa necessidade e o desejo de se relacionar e de se comunicar. Nascer,para Bernard Charlot (2000, p. 53), “é penetrar nessa condição humana. Entrarem uma história, a história singular de um sujeito inscrita na história maior daespécie humana. Entrar em um conjunto de relações e interações com outros”.87 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>Os bebês interrogam o currículo: as múltiplas linguagens na creche
Por isso, para o autor, os bebês nascem submetidos à obrigação de aprenderem,de penetrarem “em um conjunto de relações e processos que constituemum sistema de sentido, (...) [que se] elabora no próprio movimento através doqual eu me construo e sou construído pelos outros” (CHARLOT, 2000, p. 53).Por isso, os bebês nascem “falando”, brincando e “conversando” com qualquerum através de múltiplas linguagens: do olhar, do gesto, do toque.Nessa perspectiva, as linguagens são apreendidas pelas crianças muitocedo nas interações que estabelecem com outras crianças e adultos. Alémdisso, as pessoas importantes para elas constantemente as incluem – olhandoem sua direção, esperando respostas, fazendo gestos e olhares específicos.Considerando que a criança se constitui apropriando-se de uma humanidadeque lhe é “exterior”, é necessário a mediação do outro. Aqui, “a educação não ésocialização de um ser que não fosse já social: o mundo, e com ele a sociedade,já está sempre presente” (CHARLOT, 2000, p. 54).Os bebês sabem muitas coisas que nós culturalmente não conseguimosainda ver e compreender e, portanto, reconhecer como um saber. As suasformas de interpretar, significar e comunicar emergem do corpo e acontecematravés dos gestos, dos olhares, dos sorrisos, dos choros, enquanto movimentosexpressivos e comunicativos anteriores à linguagem verbal e queconstituem, simultâneos à criação do campo da confiança, os primeiros canaisde interação com o mundo e os outros, permanecendo em nós – em nossocorpo – e no modo como estabelecemos nossas relações sociais.Ao adulto cumpre estar presente, observar, procurar dar sentido àslinguagens da criança e responder adequadamente, pois esse diálogo somentepoderá ocorrer com a materialidade do corpo capaz de expressar desejos, gostos,aflições. Esta é uma linguagem esquecida, mas que pode ser reavivada nocalor da disposição para com a vulnerabilidade do outro, o bebê, mas também epara com a fragilidade do adulto. É um ato de disposição colocar-se na perspectivade que também nós, adultos, pela condição de humanos, já esquecemos, já
deixamos de saber. Nesse caso, os bebês nos ensinam a reaprender outrosmodos de sentir, perceber e agir no mundo.As crianças pequenas, especialmente os bebês, têm um crescimentomuito rápido. Do ponto de vista orgânico, as crianças, no primeiro ano de vida,realizam grandes conquistas através do movimento e das linguagens do corpo.Esse ritmo acelerado de aprendizagens, geralmente comum nas crianças (excetuandoaquelas que apresentam algum transtorno de desenvolvimento, masque podem, num ritmo mais lento, ou de modo diferenciado, também aprenderem),apresenta diferenças que podem ser pessoais, individuais, ou aquelasdefinidas como sociais e culturais.No cotidiano da creche existe uma riqueza de ações que não sãovalidadas como aprendizagens culturais. O bebê é muito ágil e inventivo; é pode-88 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>Sandra Regina S. Richter – Maria Carmen S. Barbosaroso em sua capacidade básica de se auto-organizar, autogerir, auto-administrar,escolher e tomar decisões para empreender ações e alcançar êxito nosresultados. A ação autônoma, escolhida e realizada pela criança, enquanto capacidadede movimentar-se, disposição para iniciativas nas suas relações comoutros, interesse pelo mundo e prazer lúdico de surpreender-se com aimprevisibilidade dos acontecimentos gerados pelo movimento, é uma necessidadefundamental do humano desde seu nascimento (TARDOS; SZANTO, 2004).Esse poder de busca – essa “autonomia” – emerge a partir “de um laboratóriosubmergido e silencioso de tentativas, provas, experimentos para comunicar,organizar intercâmbios e interações” (MALAGUZZI, 2004, p. 16) que não é reconhecidoe valorizado nos currículos para crianças pequenas. Pelo contrário,elas são insistentemente desencorajadas a iniciarem e organizarem outro percurso,a ir além do previsto pelo adulto.Concepções de currículo em disputaA problematização sobre as concepções de currículo vem sendo feitaem nossa sociedade desde a década de 1950. As propostas curriculares, quedurante muitos anos pareciam dar conta das necessidades das escolas em seuobjetivo de formação dos alunos, passam a ser problematizadas a partir de duasquestões:a) a expansão da escola pública e sua obrigatoriedade para todas ascrianças, em suas diversidades e desigualdades, em caráter global, eb) as transformações, cada vez mais rápidas da sociedade moderna,que desestabilizaram os objetivos propostos ao sistema educacional.As primeiras críticas ao currículo emergem nas décadas de 1960 e1970inicialmente através das teorias críticas, de orientação neomarxista, em umaanálise da educação e da escola a partir da reprodução das estruturas de classeda sociedade capitalista e, posteriormente, através da perspectiva pós-estruturalistaque retoma e reformula algumas dessas análises para enfatizar o currí-culo como prática cultural e como prática de significação (SILVA, 2006). Nos estudos curriculares contemporâneos, o pensamento deStenhouse (1991) e de Goodson (2008) contribuem para pensar o currículo naperspectiva do encontro entre adultos e crianças no espaço de formação coletivada creche. Para Stenhouse (1991), um modelo curricular precisa estarbaseado em processos, isto é, no desenvolvimento de “estratégias de ensino”
que não podem ser previamente determinadas, pois terão que ser elaboradaspelos professores a partir da reflexão da prática obtida no encontro com ascrianças. Um currículo expressa uma concepção do que é conhecimento e umaconcepção do processo educacional enquanto espaço de intercâmbio vital ecultural, de pesquisa e também de aperfeiçoamento dos professores. Nessaconcepção, o professor assume na prática profissional a postura de pesquisa-89 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>Os bebês interrogam o currículo: as múltiplas linguagens na crechedor, e não de especialista em programar tecnicamente aquilo que pretende ensinar.O processo de aprendizagem torna-se colaborativo porque o professor nãopode aprender mediante a pesquisa sem fazer com que os alunos tambémaprendam.Nesse modelo, a autonomia profissional é a base da qualidadeeducativa. Para tanto, exige um trabalho em colaboração – participativo de umacomunidade profissional – e supõe negociação de procedimentos para ampliara compreensão, avaliar e desenvolver propostas. A indagação torna-se o instrumentoprincipal da ação docente (STENHOUSE, 1991, p. 243). Para Stenhouse,currículo e desenvolvimento docente caminham juntos porque em qualquer matéria,se nossa preocupação é educativa e se queremos distingui-la da merainstrução, algo que devemos rechaçar é a pré-especificação de resultados.Goodson (2008) compartilha a crítica aos parâmetros de prescrição,gerenciamento e controle curricular com foco na eficiência e eficácia ao reivindicara centralidade do envolvimento entre alunos e professores. Para tanto, propõea mudança de um currículo como prescrição para um currículo como narra-ção, de uma aprendizagem cognitiva prescrita para uma aprendizagem narrativade gerenciamento da vida.Para Goodson (2008, p. 152), o sentido curricular encontra-se no aprendizadonarrativo que ocorre durante a formulação e a manutenção contínua deuma história de vida. É o aprendizado que demanda modalidades diferentes deplanejamento e de pesquisa para a compreensão dos processos de aprenderque passam a relacionar-se com as necessidades e os interesses dos envolvidosno processo. Em síntese, para o autor, localizar o aprendizado na constru-ção de narrativas de vida é respeitar sua contextualização e sua história, dandosentido aos percursos individuais e estabelecendo significados sociais no espa-ço coletivo e institucional.Pensar um currículo alicerçado em narrativas abre a perspectiva deum docente que compreenda tanto o valor educativo do conhecimento, enquantoprocesso cultural colaborativo e investigativo, quanto a relevância de umasubjetividade em processo dinâmico de constituição de um percurso de vida.Porém, as discussões acerca do pensar – propor e criticar – o currículo aindanão chegaram aos estabelecimentos que cuidam e educam os bebês. As instituiçõesque atendem crianças com menos de três anos recentemente se caracterizaramcomo escolares. Mas, pela demanda legal de sua inserção no sistemaeducacional como parte da Educação Básica, ou pela novidade de pensar aeducação com bebês, as incorporações de tradições da escolarização no atendimento
às crianças pequenas parece ser o único ponto de partida para sustentarpropostas pedagógicas na creche.Em nosso país (BRASIL, 2009), podemos encontrar basicamente trêsmodalidades curriculares na especificidade da creche:90 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>Sandra Regina S. Richter – Maria Carmen S. Barbosaa) listagem de ações educativas espelhadas no Ensino Fundamental,sustentadas na fragmentação das áreas do conhecimento;b) ações de “vigilância” ou “aceleração” do desenvolvimento infantilcom base nas etapas evolutivas;c) ações voltadas prioritariamente para o atendimento às necessidadesbásicas das crianças.Essas três modalidades curriculares apontam para pedagogiasadultocêntricas, higienistas e “escolarizadoras” nas quais não há lugar para oreconhecimento dos bebês e das crianças pequenas como seres linguageiros,ativos e interativos. Esses currículos não os consideram em suas primeirasaprendizagens de convivência “no e com o mundo”. São propostas que têmcomo característica a prescrição advinda de diferentes discursos: da psicologia,da medicina ou enfermagem, do senso comum. As perspectivas apontadas por Stenhouse e Goodson emergem comopossibilidade produtiva para pensar um currículo para bebês em suas interaçõescom o mundo ao priorizarem a função docente como envolvimento colaborativo ea narratividade como processo de interlocução para a construção de históriasde vida compartilhadas, isto é, que afetam tanto a subjetividade do adulto quantodo bebê. Este caminho é uma possibilidade interessante, pois a análise sobreos currículos prescritivos apontam para a inviabilidade dos mesmos em umasociedade líquida, descrita por Bauman (2001). Se currículos prescritivos,universalizantes e lineares podiam ser viáveis numa sociedade moderna, isto é,não inclusiva, com valores sólidos, eles se tornam impossíveis na contemporaneidade.Trata-se, enfim, de aprender a pensar que é possível pensar a educa-ção como acompanhamento, hospitalidade e acolhimento do outro em sua radicalalteridade (MÈLICH; BÁRCENA, 2000). Confirmando as palavras de Arendt(2004) que a especificidade da educação é a natalidade, isto é, o fato de que nomundo hajam nascido humanos. Aqui, o humano não se fabrica, nasce; não éexecução de um plano predeterminado, mas o enigma de um começar-se.Os bebês e as crianças pequenas, em sua condição vital de seremsimultaneamente dependentes dos cuidados do adulto e independentes em seusprocessos interativos no e com o mundo, rompem com a tradição de concebere realizar o currículo como prescrição de objetivos e “conteúdos” a serem aprendidos.Um estabelecimento educacional para crianças pequenas exige pensar epraticar ações no cotidiano diferentes do modelo escolar organizado em “aulas”e baseado na “transmissão de conteúdos”. Os bebês, porque não podem aindadeslocar-se com autonomia, não falam a “nossa língua”, não permanecem imó-veis e quietos para ouvirem lições, interrogam a escola e o currículo, exigindo aabertura a outras possibilidades de planejar, organizar e avaliar o cotidiano dacreche.91 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>Os bebês interrogam o currículo: as múltiplas linguagens na creche
Para explorar tal abertura, propomos substituir a concepção curricularprescritiva do que os adultos devem ensinar e do que os bebês e as criançaspequenas devem aprender para a concepção interativa de um currículo pautadonas narrativas que ambos podem estabelecer no cotidiano da creche a partir dovínculo das linguagens com a vida. A Educação Infantil, em sua especificidadede primeira etapa da Educação Básica, exige ser pensada na perspectiva dacomplementaridade e da continuidade. Os primeiros anos de escolarização sãomomentos de intensas aprendizagens para as crianças. Elas estão chegandoao mundo, construindo relações de pertencimento, aprendendo a compreenderseu corpo e suas ações, suas interações, gradualmente se inserindo com e nacomplexidade de sua(s) cultura(s) e corporalizando-a(s).Linguagens, narratividades e currículosAs crianças pequenas solicitam aos educadores uma pedagogia sustentadanas relações, nas interações e em práticas educativas intencionalmentevoltadas para suas experiências lúdicas e seus processos de aprendizagemno espaço coletivo, diferente de uma intencionalidade pedagógica voltada pararesultados escolares individualizados. Aqui, a função docente é co-produtora decurrículo e se efetiva na construção de um espaço educacional que favoreça,através da interlocução com as crianças e as famílias, experiências provocativasnas diferentes linguagens enraizadas nas práticas sociais e culturais de cadacomunidade.As características dos bebês exigem que o dia a dia seja muito bemplanejado, pois há um grande dinamismo e diversidade no grupo. Enquanto duascrianças dormem, uma quer comer, outra brinca ou lê seus livros-brinquedosenquanto outro bebê precisa ser trocado. Toda essa diversidade, numa situaçãode dependência, exige atenção permanente à segurança das crianças atravésde um número adequado de adultos para efetivamente dar conta das singularidadesdas crianças. A criação de espaços pedagógicos, de materiais e a construçãode ações educativas que desafiem e contribuam para o desenvolvimentodas crianças exigem preparo e disponibilidade das professoras.Os bebês e as crianças pequenas estão construindo suas primeirasaprendizagens e, em todas as situações aprendem: quando conversamos comeles e nos respondem com balbucios, quando trocamos suas fraldas eles nosauxiliam esticando as pernas. Todas as vivências são educadoras nessa faixaetária. A criança nasce inscrita em um código natural e sociocultural. Na interaçãocom o outro, nas inúmeras possibilidades que o outro lhe aponta, ela imprimeas marcas do humano e constrói sentidos nas linguagens. Sentidos intimamentevinculados ao ato de brincar, criar, linguajar.¹A experiência lúdica de brincar inaugura o humano por configurar aprimeira referência de compreensão individual e social que o bebê retém dasinterações corporais com a mãe, o pai, irmão ou outro adulto por ela responsá-92 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>Sandra Regina S. Richter – Maria Carmen S. Barbosavel, numa dinâmica de aceitação e confiança mútua que emerge na intimidadedo brincar com o corpo. As primeiras brincadeiras do bebê estão relacionadastanto ao vínculo entre seu corpo e o corpo de quem o cuida quanto à confiançacomo fator imprescindível relacionado aos primeiros cuidados e à sobrevivência
do bebê.As primeiras noções sobre o mundo se constituem no encontro e nasinterações com adultos e outras crianças, marcados pelas relações de emoçãoe afeto e pelas oportunidades que as práticas culturais e as linguagens simbó-licas daquela sociedade sugerem. Nessa perspectiva, o viver não pode ser previamentedeterminado, pois a criança não sente e não pensa como os adultos.Todas têm que aprender a falar, a cantar, a desenhar, a modelar, a dramatizar, adançar, ou seja, têm que aprender a narrar o vivido e o que pode ser vivido parasituar-se na convivência coletiva.Para Bruner (2001, p. 95),parece que construímos histórias do chamado mundoreal de forma bastante semelhante como construímoshistórias fictícias: as mesmas regras de formação, asmesmas estruturas narrativas. Simplesmente não sabemos,e nunca saberemos, se aprendemos sobre anarrativa a partir da vida ou sobre a vida a partir da narrativa:provavelmente ambos.Implica, porém, compreender que o notável não é tanto o “conteúdodessas histórias que nos prendem, mas seu artifício narrativo” (p. 44).Configuramo-nos na e pela narrativa a partir do modo como concebemos e assumimosa nós mesmos nos personagens, nas opções, nas atitudes, porque nosencontramos lançados, desde o nascimento, à abertura das linguagens que nospermitem compartilhar sentidos e participar do mesmo mundo. Assim, cada umde nós configura os acontecimentos dispersos da sua vida tecendo uma interpretaçãopessoal. Nessa perspectiva, a vida humana não se circunscreve noslimites do biológico: torna-se humana em sua abertura às múltiplas linguagens.Aqui, o importante a reter é que, por não “vir naturalmente”, temos queaprender o pensamento narrativo assim como o pensamento lógico-matemático.Para que as narrativas tornem-se produção de significado “é preciso trabalhode nossa parte – precisamos lê-la, produzi-la, analisá-la, entender seus mecanismos,sentir seus usos, discuti-la” (Bruner, 2001, p. 44-45). É porque as narrativasdizem respeito ao modo como experimentamos e interpretamos o mundo,como estruturamos os relatos de nossas experiências e de nossas crençasmais estimadas, que por elas nos projetamos e nos reconhecemos e, assim,podemos nos compreender e configurar modos de nos constituirmos com outrosna convivência.93 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>Os bebês interrogam o currículo: as múltiplas linguagens na crecheTambém significa compreender que é através do corpo performativoque as diferentes linguagens emergem das brincadeiras que as crianças experimentame interpretam a convivência. A prática social das brincadeiras exige oencontro das linguagens. São as culturas da infância sendo produzidas pelascrianças, em interação com os adultos, que delas participam e são ativadaspelos processos vitais de interações e transformações linguageiras. Nessemomento, seus atos de linguagem são potentes e podem dar a ver as complexasrelações sociais e culturais que sempre – desde o nascimento – estabeleceramcom o entorno.As crianças, em suas culturas infantis, recompõem a cultura materiale simbólica de uma sociedade. Elas fazem sua releitura do mundo: lêem o
mundo adicionando novos elementos geracionais, recriando-o e reinventando-o.O espaço privilegiado para a interpretação e produção da cultura infantil são asbrincadeiras, que ocorrem no convívio e nas interações entre pares, meninos emeninas, de idade aproximada e na vivência de situações – reais e imaginárias– que proporcionam o encontro entre as culturas adultas – familiares, midiáticas,políticas, étnicas, de gênero, de religião – e as novas culturas infantis. Noencontro entre gerações e também entre os participantes de uma mesma gera-ção, a necessidade de brincar, de repetir aquilo que nos parece a mesma brincadeiratodo o dia, é um grande esforço de inventar o tempo, a memória e ahistória.Resgatando as interrogações dos bebêsPara resistir à tendência de fazer da Educação Infantil uma escola“elementar” facilitada ou simplificada e investir na proposição de outro modo depensar e organizar o cotidiano da creche, propomos refletir sobre algumas dasinterrogações que os bebês fazem à educação. A expectativa é destacar o currículoda creche como um lugar e um tempo que tenha como foco não apenas apresença e a participação da criança pequena, mas também a opção pedagógicade ofertar uma experiência de infância rica, diversificada, complexificada pelaintencionalidade de favorecer experiências lúdicas com e nas múltiplas linguagens,favorecendo a construção de narrativas que possam oferecer sentido àvida e às aprendizagens. Uma infância na qual a qualidade da atenção às crian-ças de zero a três anos seja discutida e socialmente partilhada, ou seja, umestabelecimento aberto para a discussão com a família e a sociedade. Sobrequal infância e formação queremos oferecer às crianças.Os bebês, em seu humano poder de interagir, ou seja, em suaintegralidade – multidimensional e polissensorial – negam o “ofício de aluno” ereivindicam ações educativas participativas voltadas para a interseção do lúdicocom o cognitivo nas diferentes linguagens. A conciliação entre imaginação eraciocínio, entre corpo e pensamento, movimento e mundo, exige planejar epromover situações e experiências que possam ser vividas por um corpo quepensa. Supõe considerar na ação pedagógica da creche a relevância de favore-94 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>Sandra Regina S. Richter – Maria Carmen S. Barbosacer processos de aprender a operar corporalmente linguagens e narrativas apartir das brincadeiras e das repetições lúdicas. Aqui, o divertimento, a sensibilidadee a alegria, o encanto do bebê pelo encontro com sons, cores, sabores,texturas, odores, toques, olhares, tornam-se fundamentais porque são uma necessidadecognitiva: um faro para a inteligibilidade das coisas e seu sentidopara a existência.Assim, as funções específicas da creche, do ponto de vista do conhecimentoe da aprendizagem, são favorecer experiências que permitam aos bebêse às crianças pequenas a imersão, cada vez mais complexificadora, emsua sociedade através das práticas sociais de sua cultura, das linguagens queessa cultura produziu, e produz, para interpretar, configurar e compartilhar sensaçõese sentidos que significam o estar junto no mundo, construindo narrativasem comum.Trata-se de um radical desafio à educação de zero a três anos poisexige compreender o currículo não como um plano prévio de ensinar a vida mas
como abertura à experiência de viver junto – bebês, crianças pequenas e adultosprofessores – as situações contextualizadas em narratividades. A dificuldadeestá em mudarmos a nossa concepção de currículo como “fabricação” dohumano (MÈLICH; BÁRCENA, 2000) para currículo como criação, ação e narra-ção do humano já que diz respeito ao agir e portanto, ao risco e ao arriscar-seem linguagens. Para Arendt (2004), agir é como um segundo nascimento, poismantém estreita relação com a condição humana da natalidade. Não há aquiutilidade mas pluralidade que necessita ser narrada. Implica priorizar a atitudede respeito à condição humana de buscar sentidos para o viver junto. Trata-sede um currículo comprometido com escolhas – prudentes mas também apaixonadas– pelo que efetivamente importa para o significado da vida, para aquiloque torna a vida digna de ser vivida na esfera pública e planetária.ReferênciasARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2004.BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.BRASIL. Relatório de pesquisa: Mapeamento e análise das propostas pedagó-gicas municipais para a Educação Infantil. Projeto de Cooperação Técnica MECe UFRGS para Construção de Orientações Curriculares para a Educação Infantil.Brasília, MEC/SEB/UFRGS,2009. http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relat_pesquisa%20analise_ropostas_pedagogicas.pdf Acesso em: maio 2009.
BRUNER, J. A cultura da educação. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. PortoAlegre: Artmed, 2000.95 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistaeducacao>Os bebês interrogam o currículo: as múltiplas linguagens na crecheGOODSON, I. F. As políticas de currículo e de escolarização. Petrópolis,Vozes, 2008.MALAGUZZI, L. El cuento de los peces con los niños del cine mudo. In: REGGIOCHILDREN. Colección La escucha que no se da, 1. Los pequeños del cinemudo: juegos en la escuela infantil entre peces y niños. Barcelona: A.M. RosaSensat - Reggio Children, 2004.MÈLICH, J-C.; BÁRCENA, F. La educación como acontecimiento ético:natalidad, narración y hospitalidad. Barcelona: Paidós, 2000.SILVA, T. T. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular.Belo Horizonte: Autêntica, 2006.STENHOUSE, L. Investigación y desarrollo del curriculum. Madrid: EdicionesMorata, 1991.TARDOS, A.; SZANTO, A. O que é autonomia na primeira infância? In: FALK,Judite (Org.). Educar os três primeiros anos: a experiência de Lóczy. Araraquara:JM Editora, 2004. p. 33-46.Notas¹ Neologismo que faz referência ao ato de estar na linguagem sem associar tal ato à fala, comoaconteceria com a palavra falar.
CorrespondênciaSandra Regina Simonis Richter – Universidade de Santa Cruz do Sul, Departamento deEducação. Av. Independência, 2293, Independência, CEP 96815-900, Santa Cruz do Sul (RS),Caixa-Postal: 188.E-mail: [email protected] em 12 de outubro de 2009Aprovado em 22 de novembro de 2009