209

Cenarios Liminares

Embed Size (px)

DESCRIPTION

CABALLERO Ileana Dieguez

Citation preview

  • Cenrios liminares:teatralidades, performances e poltica

  • ~UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    REITORAlfredo Jlio Fernandes Neto

    VICE-REITORDarizon Alves de Andrade

    DIRETOR DA EOUFUHumberto Guido

    CONSELHO EDITORIAL

    CONSELHEIROS

    Ado de Siqueira FerreiraAlessandro Alves Santana

    Benvinda Rosalina dos SantosDaurea Abadia de Souza

    Dcio Gatti Jnior

    ED

    Joo Carlos Gabrielli BiffiLlia Gonalves NevesLuiz Carlos de LaurentizManuel G. Hernndez TerronesRoberto Rosa

    FUEditora da Universidade Federal de Uberlndia

    Av. Joo Naves de vila, 2121 - Campus Santa Mnica - Bloco 15 - TrreoCep 38408-100 - Uberlndia - Minas Gerais

    Tel: (34) 3239-4293www.edufu.ufu.br e-mail: [email protected]

  • ILEANA DIGUEZ CABALLEROTraduo: Luis Alberto Alonso e Angela Reis

    Cenrios liminares:teatralidades, performances e poltica

    ED FU2011

  • ~ED \~fF UEditora da Universidade Federal de Uberlndia

    Copyright Edufu - Editora daUniversidade Federal deUberlndia/MGTodos os direitos reservados. proibida areproduo parcial ou total sem permisso daeditora.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

    CI12c Caballero, lIeana Di gucz, 1961-Cenrios liminares: teatralidades. pcrformanccs c poltica f llcana

    Diguez Caballero ; traduo Lui s Alberto Alonso c Angela Reis. --Uberlndia: EDUFU, 2011. (Coleo Teoria Teatral Latino Americana;v. I)

    210 p. : iI.Inclui bibliografia.ISBN 978-1\5-7078-266-3

    I . Teatro - Brasil - Histria e crtica. 2.Teatro - Peru - Histria ecrtica. 3. Teatro - Argentina - Histria e crtica. 4. Teatro - Colmb ia-Histria e critica. 5. Teatro - Mx ico - Histri a e crtica. I. Alonso , LuisAlberto, 1974-. II. Reis, ngela, 1961-. III.Titulo.

    CD U: 792(81 j(091)

    Equipe de realizao

    Reviso gramaticalReviso ABNTProjeto grfico

    CapaFoto capa

    DiagramaoFotos

    Miryan Lucy de Rezende ArantesRoberta Oliveira Finotti MoraesIvan da Silva LimaPablo GonzlezEnrique Cneo . Jornal: EIComercio. LimaBruna Finotti FontesJuan E. Gonzlez. Miguel Vllafae, FidelMelquades, Elsa Estremadoyro, MiguelRubio, Elenize Dezgeniski , Elio Martucelli,Fernando Cruz. Rolando Vargas, XimenaVargas, Pablo Gonzlez, Gerson Sandoval;Alberto Barbos a; [uan Carlos Cuadros, TeresaMargolles, Jos Catan, Oscar Monsalve, lIeanaDiguez. Arquivos de: Emilio Garcia Wehbi,Rosemberg Sandoval, lvaro Villalobos,Grupo Etctera, Grupo GAC, Arde Arte .

  • AGRADECIMENTOS

    A pesquisa dos processos cnicos e especialmente das te-atralidades atuais no se faz a partir das bibliotecas ou das salasacadmicas, mas se sustenta em colaboraes generosas, em ex-perincias in situ, em persistncias, dilogos e encontros. Estapesquisa tem uma dvida com muitas pessoas, que de diferenteslugares, tm proporcionado importantes apoios ao facilitar-medocumentos e registros visuais, e s quais tambm devo refle-xes , experincias e afetos.

    Meu agradecimento a Miguel Rublo, Teresa e Rebeca Ralli,Ana e Dbora Correa, [uli n Vargas, Fidel Melquiades, AugustoCasafranca, e ao Grupo Yuyachkani; a Rolf e Heidi Abderhaldene a Mapa Teatro; a Emilio Garca Wehbi, Daniel Veronese e AnaAlvarado; lvaro Villalobos e Rosemberg Sandoval; ao ColectivoEtctera e a Federico Zukerfeld; a Carolina Golder, AlfredoSegatori, Fernando Rubio, Ana Groch, Halima Tahan, ClaudioPansera; a Jorge Miyagui, Gustavo Buntinx, Susana Torres e aoColectivo Socedad Civil.

    Quero tambm agradecer a Antunes Filho e ao GrupoMacunama, Antonio Arajo e Teatro da Vertigem, AdemarBianchi, Luis Pazos e o Grupo Escombros, Carlos Cueva, ClaudiaSchapra, Silvana Garca, Diego Cazabat, Angel Demnio, VctorVarela; ainda que os materiais por eles oferecidos no este-jam refletidos no resultado que agora apresento, de forma in-direta, tm contribudo para as reflexes aqui elaboradas.Ao programa de apoio para os estudantes de Ps-Graduao

    (PAED) da Universidade Nacional Autnoma de Mxico, agrade-o a ajuda para realizar uma pesquisa em trs pases sul-ame-ricanos durante julho e agosto de 2004. A informao reunidanesses meses foi decisiva para os resultados que aqui apresento.Outras pessoas tambm me ajudaram, contribuindo com diver-sos apoios em cada um dos pases visitados: Addie Barandiarne Socorro Naveda, no Per; Santiago Serrano, Hctor Molina,Felicitas Luna, o Grupo Periplo e Astrolabio Teatro, em Buenos

  • Aires; Beth Accioly e Antunes, em So Paulo. A Regina Quifionese Abel Gleizer devo a generosa ajuda trazendo alguns livros emateriais visuais de Buenos Aires. A Miguel Villafafie, por per-mitir o acesso ao seu acervo de vdeos.

    Esta pesquisa foi realizada com a assessoria e orientaodo professor doutor Gabriel Weisz, que tem sido meu mestre du-rante mais de dez anos e a quem devo muitas ideias desenvol-vidas neste e em outros trabalhos. Nos seminrios sobre teorialiterria conduzidos por ele conheci explanaes originais queme convidaram a desafiar os olhares cannicos. Pensar a teoriacomo metfora, analisar discursos expandindo os horizontes li-terrios, textualizar o Corpo e corporizar os textos, so algumasdas propostas fornecidas pelo professor doutor Weisz e com asquais sempre estarei em dvida.

    De igual forma agradeo professora doutora TatianaBubnova a imerso no universo bakhtiniano. Suas reflexes eo generoso dilogo que sempre me ofereceu proporcionaramideias fundamentais para este trabalho.

    s professoras doutoras Nair Anaya, Carmen Lefiero,lleana Azor e ao professor doutor Jos Ramn Alcntara, leitoresdeste texto, devo importantes comentrios e contribuies.

    Ao professor doutor Jorge Dubatti, meu profundo agrade-cimento por suas leituras e observaes desde os primeiros mo-mentos, por todo o apoio e os numerosos contatos que me faci-litou, pelos livros e diversos materiais fornecidos. Suas reflexestericas sobre a teatralidade como ato de convvio no s foramum ponto de partida fundamental para esta pesquisa, mas umaimportante contribuio para os estudos cnicos ao propor umolhar que no coisifica, mas expande o teatro alm dos discursossemiticos. Graas a Dubatti e a Jorge Garrido este texto foi in-cludo nas colees da Editorial Atuel.

    Muitas das problemticas que aqui apresento foram de-senvolvidas, discutidas e confrontadas nos seminrios e cur-sos sobre teatro latino-americano ministrados na Casa doTeatro, Universidade Ibero-americana e Instituto de Artes daUniversidade de Hidalgo. Agradeo pelos espaos que propor-

  • cionaram os frutferos dilogos travados com vrios alunos.Quero especialmente agradecer a Rodolfo Obregn por

    dar-me sempre o seu generoso apoio, facilitando de diversasformas o desenvolvimento desta pesquisa. E a Jos A. Sanchez,por propiciar textos e espaos que trouxeram acrscimos a estetrabalho.

    As experincias que servem de suporte para este estudo es-to vinculadas de forma definitiva e entranhvel a Osvaldo Dragne aos cursos por ele convocados, por meio dos quais fui conhecen-do como se faz, se vive e se sustenta a prtica teatral independente,em boa parte deste continente. Nos encontros realizados se teceuuma especial rede de mestres, interlocutores e amigos por ondecircularam vivncias, informaes e pequenas histrias que voconfigurando a memria de um teatro vivo. Essas experinciastm-me confirmado que as communitas podem existir emborasejam habitadas apenas eventualmente.

    Acredito que para qualquer pesquisador a melhor opor-tunidade de aprendizado e confrontaes est na prtica e naexperincia viva, onde as ideias podem morrer ou tomar corpo.Durante o processo de reviso deste texto, os cenrios da resis-tncia civil vividos na Cidade do Mxico foram um apaixonantelaboratrio para entender, assentar e questionar os meus pen-samentos.

    Agradeo tambm s pessoas, que de maneira incondicio-nal, me acompanharam neste trabalho: a Kike e Pablo, que en-frentaram minhas ausncias com solidria pacincia e somarampontos de vista. Aminha me e irms, pela sua permanente fora.E a Osvaldo, sempre, pelas utopias e as travessias sem retorno.

    Mxico, D.E, julho-dezembro de 2006

  • E a propsito desta traduo, agradeo a Luis AlbertoAlonso, professora doutora Angela Reis, Tiago Chaves Martinez,ao professor doutor Narciso Telles, Editora da UniversidadeFederal de Uberlndia e ao Oco Teatro Laboratrio na Baha, poracreditarem que vale a pena traduzir e editar este livro no Brasil,onde convivem e criam muitssimos amigos e gente de teatrocom os quais me sinto em dvida.

    Mxico, janeiro de 2009

  • Acredito que h que resistir: esse tem sido omeu lema. Mas hoje, quantas vezes me per-guntei como encarnar esta palavra. Antes,quando a vida era menos dura, eu entendiaa resistncia como um ato heroico {. ..}. Asituao mudou tanto que devemos revalo-rizar, com muita cautela, o que entendemospor resistir. No posso dar uma resposta. Setivesse essa resposta sairia com um Exrcitode Salvao, ou esses crentes delirantes - tal-vez os nicos que acreditam no testemunho -a proclam-lo nas esquinas, com a urgnciaque nos devem dar ospoucos metros que nosseparam da catstrofe. Acho que no, intuoque algo menos formidvel, muito menor,como af num milagre {. ..}. Algo que corres-ponda noitena qual vivemos.

    Ernesto Sbato, La Resistncia, 2000.

  • SUMRIO

    13 1 Pr-liminar

    34 2 Articulaes liminares / metforas tericas36 2.1 A perspectiva liminar40 2.2 Teatralidade e convvio42 2.3 A teatralidade e o real45 2.4 Esttica relacional48 2.5 Hibridez e subverso cultural51 2.6 A forma esttica dos atos ticos54 2.7 Estratgias que carnavalizam e construes grotescas57 2.8 Liminaridades metafricas.

    60 3 Polticas do corpo (cenrios peruanos)62 3.1 Texturas corporais65 3.2 Teatralidades fronteirias69 3.3 Communitas xamnica80 3.4 Hibridaes e tcnicas mistas92 3.5 Rituais situacionistas

    102 4 Tramas da memria (cenrios argentinos)105 4.1 Bonecos obscenos113 4.2 Teatralidade politicamente incorreta?121 4.3 Prticas simblicas de resistncia126 4.4 A arte de escrachar

    139 5 Prticas de visibilidade (cenrios colombianos)142 5.1 Teatralidades do real150 5.2 Communitas votiva156 5.3 Rituais impudicos

    166 6 Resistncias ldicas/cartografias do desejo168 6.1 Teatralidades da Resistncia (cenrios mexicanos)180 6.2 Estticas liminares

    191 Referncias

  • Pr-liminar

    o teatro no preexiste nem transcende aos corpos no palco.Todo espetculo nasce com data de vencimento, como a existn-cia profana e material se dissolve no passado e no tem formade conserv-Ia. No h em consequncia forma de conservar oteatro. Lembrar o teatro passado a partir do presente significaconscincia da perda, da morte, percepo da dissoluo e doirrepetvel (DUBATTI. 2003c, p.7).

    Esta uma pesquisa sobre a teatralidade e no especifi -camente sobre o teatro. Nasceu da minha experincia pessoalcomo espectadora e pesquisadora de fenmenos e processos c-nicos pelos quais comecei a perceber uma inefvel pulso, umaespecie de ilegibilidade, um plug que me transferia da arte vidae vice-versa, submergindo-me na incompreenso do fenmeno,se decidia optar por um dos dois planos. Sentia-me empurradaat os limites nos quais experimentava a fuga de todos os sabe-res, das frmulas prontas para explicar a arte. Em algum mo-mento perguntei-me se aqueles fenmenos poderiam ser deli-mitados como arte.

    A problemtica aqui exposta implica uma srie de dificul-dades. Ao me propor observar a teatralidade a partir de sua es-pecificidade cnica e de uma perspectiva que adianto como limi-nar - conceito que tomo da antropologia social de Victor Turnere que procuro transpor para a arte - tento me aproximar de umcorpus efmero e da performance, pois a sua materialidade temuma vida limitada ao instante no qual ocorre o fenmeno cnico,e que est inserido num conjunto de relaes que o modificam.De alguma maneira trata-se de um 'objeto' de estudo 'estranho',que foge da objetividade e da fixao material e intemporal.

    As prticas da cena a que me referirei expem outro desa-fio, escapando das taxonomias tradicionais que tm condiciona-do a teatralidade: no representam nem partem necessariamen-te de um texto dramtico prvio, mas tm-se configurado comoescrituras cnicas e performances experimentais, associadas a

    Cenrios limin ares (teatralidades, performances e poltica) 13

  • processos de pesquisa, nas bordas do teatral, explorando estra-tgias das artes visuais e dentro da tradio da arte indepen-dente, desvinculadas de projetas institucionais ou oficiais. Dadoo carter processual, temporal, no-objetuol dessas prticas,neste espao apresentarei minhas reflexes em torno do cam-po da teatralidade, retomando ideias desenvolvidas por outrospensadores atuais.

    Ao insistir na teatralidade como prtica, reafirmo sua con-dio de fato, de atividade inserida no tecido dos acontecimen-tos da esfera vital e social. A palavra prtica tem tambm uma d-vida com a definio deste termo por [ula Kristeva. Ao transporo termo para outro contexto e disciplina, a denominao 'prti-cas cncas' tenta quebrar a sistematizao tradicional e procuraexpressar o conjunto de modalidades cnicas - incluindo as nosistematizadas pela taxonomia teatral - como as performances,intervenes, a es cidads e rituais.

    Mas, sobretudo, esta pesquisa se abre a outro territriono teatral, no esttico: os gestos simblicos que colocam von-tades coletivas na esfera pblica e constroem de outras manei-ras seu ser poltico. No tendo um fim esttico, produzem umalinguagem que absorve a percepo e suscitam olhares a partirdo campo artstico. Nestas pginas tambm incluo as prticaspolticas e simblicas de alguns grupos, para refletir sobre a sua'teatralidade' e sentido da performance.

    No pretendo construir nenhum corpus terico sistrnico,nem nenhum modelo que de forma geral possa ser utilizado paramedir ou limitar os processos cnicos, O tecido do meu olharno supe nenhuma narrativa linear. Os conceitos que selecionovm das provocaes suscitadas pelas prticas artsticas da mi-nha experincia de vida, das minhas pesquisas e leituras, da ca-pacidade de determinados mestres de problematizar, das incita-es produzidas por alguns criadores e das perguntas que tenhoformulado no dilogo com a teatralidade latino-americana atual,que tem sido durante anos meu campo de vnculo e estudo.'

    I Devo dizer que esta experincia de pesquisa e conhecimento tem sido umprocesso vivo, desenvolvid o como 't rabalho de campo' e no como aprendizagem

    14 I1eana Diguez CabaIlero

  • Considero como possveis lentes metafricas as diferentesnoes que utilizo. procedentes de disciplinas e de vrios pen-sadores, abrangendo mbitos como a filosofia da vida, a antro-pologia, a teatralidade, a cultura popular e os rituais festivos. Asarticulaes que as relacionam poderiam sugerir uma sintaxemais sincrnica que diacrnica.

    Tal como manifestou Turner (2002, p.35):

    Frequentemente descobrimos que o sistema completo de umterico no aquele que nos oferece uma pauta analtica, masas ideias dispersas, fascas de reconhecimento que se despren-dem do contexto sistmico e so aplicadas na informao tam-bm disseminada.

    Inclino-me pelos que pensam a teoria como ao metaf-rica, nmade e instvel (TURNER, MANGIERI, STEINER, MIEKEBAL), como sentimento (BAKHTIN), como exerccio-prtica, noimposio do pensamento (FERAL-CULLER), como olhar polti-co (BAHBHA)Z.

    Apesar do uso e do gosto pelo prefixo 'ps', com todas asconsequncias associadas a esta nova 'norma cultural' - a incli-nao pelo fragmentrio, o residual, o sincrnico, o esquizoide, e,inclusive, o que alguns tm identificado como "uma nova super-ficialidade que encontra-se prolongada tanto na 'teoria' contem-pornea quanto em toda uma nova cultura da imagem ou simula-cro" (JAMESON, 1991, p. 21), nos espaos habituais de produo ediscusso terica ainda se polemiza com tal neo-canonizao, De

    de livros, em contato direto com as prticas e laboratrios de prestigiososcriadores. Tal experincia tem sid o possvel graas aos encontros propiciadospela Escola Internacional de Teatro de Amrica Latina e el Caribe fundada edirigida por Osvaldo Drag n, escol a virtu al, itinerante e no-governamental,que parecida com as communitas liminares tem gerado espaos efmeros eintersti ciais .Estou especialmente em dvida com aqueles que tm se dedicado a ensinare pensar a teoria como uma prtica metafrica. Penso particularmente emGabriel Weisz e Tatiana Bubnova, acadmicos e investigadores da Faculdadede Filosofia e Letras e do Instituto de Investigaes Filolgicas da UNAM, comquem tive o privilgio de ter aulas de teori a literria.

    Cenrios Iiminares (te atralidades, performances e poltica) 15

  • modo geral, a inclinao pelo 'ps' tambm tem priorizado o usode citaes de autoridade, sobretudo daquelas que representam afilosofia apocalptica produzida h mais de vinte anos , em certasocasies recorrendo a uma mesma construo do discurso linear;duro, falocntrico, que tiveram a iluso de destronar.

    Desde os anos cinquenta, alguns estudiosos - penso fun-damentalmente em Michael Krby" - tm manifestado suas preo-cupaes acerca das mudanas de paradigma e a hibridao dasartes cnicas contemporneas." Por volta dos anos oitenta secomeou a falar da representao como esfera do deslocamen-to (CARLSON, 1997, p. 497), enfatizando a necessidade de umaviso crtica-terica alm dos posicionamentos tradicionais quetinham considerado o teatro como um sistema semitico fecha -do. Tambm neste perodo, um dos tericos que aqui retomo,apresenta um novo texto no qual reflete sobre os nexos entre"drama social" e teatro, mostrando uma sntese da teatralidadeps-moderna daquela dcada, o qual pode dar uma ideia dastransformaes artsticas s quais me estou referindo:

    Como comum no teatro ps-moderno (posterior SegundaGuerra Mundial), s vezes o texto construdo por meio dos en -saios, os textos de escritores teatrais se desarticulam para arti-cul-los novamente. No h um privilgio do texto. Elementos emecanismos como o espao teatral, os atares, o diretor, o uso dosmeios (a amplificao e distoro da linguagem, o uso de telasde televiso, trechos de filmes, proje es, fitas sonoras, msica,jogos sincrnicos dos movimentos dos lbios, fogos de artifcio,etc.) e a separao sustentada entre personagem e atar por meiode muitos dispositivos e mecanismos, se articulam de maneiraflexvel e se rearticulam como reflexes de uma vontade comumem raros momentos, quando a communtas se instaura entre osmembros do grupo teatral. (TURNER, 2002, p. 83-84) .

    3 Esttica e Arte da Vanguarda.4 'l..] nos ltimos anos. algumas encenaes tm comeado a relacionar o teatro

    com as outras artes. Estas montagens, ass im como as apresentaes em diversosespaos no convencionais. nos obrigam a examinar o teatro sob uma nova luz,e sugerem perguntas em volta da palavra em si: 'Teatro' (KIRBY. 1976. p.61)

    16 lIeana Diguez Caballero

    1!Ij.' ~1I1

    I

    \

  • Vinte anos depois, e numa situao teatral bastante pr-xima descrita por Turner, se continua insistindo na naturezahbrida do artstico, na transgresso das defini es " e na neces-sidade de outros olhares conceituais para pensar os fenmenoscnicos atuais.

    O teatro, ainda quando integra elementos de outras artesna sua complexa corporalidade cnica, tem desenvolvido umaextensa histria de fixaes, convenes e definies dramtico--tericas. No percurso de mais de vinte anos a arquitetura teatralmanteve - com uma impressionante obedincia - as premissasde uma concepo dramtica sistematizada pela teoria aristot-lica. Com excees na histria da teatralidade - a arte dos trova-dores na poca medieval, a Commedia dell'Arte da Renascena,alguns momentos de Molire - apenas no final do sculo XIXcomeam a produzir-se decomposies sistemticas e quebrasdo corpo dramatrgico: estou pensando em [arry e no ltimoStrindberg. Durante o sculo XX, e fundamentalmente sob o im-pulso das vanguardas e a radical proposta de Artaud, a teatrali-dade comeou a variar sua arquitetura e linguagem, com menospeso no discurso verbal, desestruturao da fbula, mudanasradicais na noo psicolgica da personagem, ruptura com oprincpio de mimese e com o realismo oitocentista, e lima acen-tuada preponderncia do corporal e do vivencial. Esta situao,at a segunda metade do sculo XX, passou por um aceleradoprocesso de radicalizao, fazendo da cena teatral contempor-nea um espao mais hbrido a partir de uma maior presena dasartes visuais, as mdias, e as aes da performance. Acontinuida-de de algumas destas estratgias tem gerado oxigenantes fendasna teatralidade atual.

    A partir da quebra das textual idades - que foi configuran-do nas artes de vanguarda a tendncia ao azar, ao processual, aomutvel e ambguo nas experimentaes cnicas iniciadas porJohn Cage - a teatralidade foi se contaminando ou hibridizando

    5 "Hoje, a teatralidade analt ica no teatro opera pelo questionamento de todas ascategorias teatrais", afirma Helga Finter no ensaio includo na revista argentinaTeatro ai Sur, 2003, p. 29-39.

    Cenrios Iiminares (teatralidades, performances e poltica) 17

  • com outras artes. Esta s ituao fez com que, na metade do sculoXX, criadores e estudiosos como Michael Kirby chegassem a es-tabelecer para si mesmos a necessidade de outras terminologiaspara conceituar o novo teatro. Os textos cnicos foram mais doque nunca verdadeiras travessias, espaos de encruzilhadas nosquais se reconheciam mltiplas disciplinas, estilos, discursos evozes. Escrituras sem dependncia do texto prvio a represen-tar foram aparecendo nos mais inslitos espaos; os eventosteatrais no se sustentavam necessariamente numa estruturainformativo-narrativa. "Qualquer material escrito, e inclusivematerial no -verbal, pode servir como 'texto' para uma apre-sentao" (KIRBY, 1976, p. 67)f'. A performance, o imprevisvel,o extraordinariamente efmero, os rituais irreproduzveis con-taminaram as textualidades cnicas vanguardistas que muitoschegaram a considerar como coI/ages.

    A arte que hoje acontece em algumas cidades do mundosignifica um desafio para os olhares ortodoxos que seguem pen-sando na produo artstica de forma segmentada. Vou dar comoexemplo a 'interveno' urbana FiJoctetes, Lemnos em BuenosAires, coordenada por Emilio Garcia Wehbi - artista plstico ecnico - que numa manh de novembro de 2002 fez aparecer v-rios corpos imveis em pontos distintos da cidade. Tratava-se devinte e trs bonecos hiper-realistas colocados em lugares muitofrequentados da cidade por uma numerosa equipe interdiscipli-nar, que se interrogava sobre as relaes entre os transeuntes eos moradores de rua. As reaes que este evento provocou fo-ram muito diversas. Vrios cidados, desesperados ante a pre-sena dos corpos, que acreditavam serem reais, pediram auxlios instituies competentes; outros, a grande maioria, passavamtranquilos, insensveis frente a uma paisagem urbana que come-ava a parecer normal", Considero esta ao e seu contexto comosituao exemplar para refletir sobre os efeitos da "interferncia

    b Em 1995, num a entrev ista qu e fez parte do video Persistncia da Memria, qu ehom en ageava os 25 a nos do Yuyachkani, Miguel Rubio expressava uma ideiamuito similar.

    7 Esta ao aco nteceu em Buenos Aires depois da crise de dezemb ro de 200 1.

    18 . lIeana Diguez Caballero

  • da fronte ira entre ispa o est tico e real" (200 3, p. 37), sugeridapor Helga Finter.

    Fiiocte tes, Lemnos em Buenos AiresFoto: Arquivo Emilio G.Wehbi.

    Interven es urbanas como es ta, ass im como muitas aese ins ta laes cnicas que hoje es to aco ntecendo em algumascidades latino -am ericanas, desenvolvidas em ruas, praas, gale-rias e eventualmente em teatros, por gente de teat ro, performers,artistas plsticos, desenh istas, dan arinos, msicos, es tudiososou especialistas no campo da imagem, so indicadores das not-veis mud an as que tm acontecido no universo das artes cnicasnes te contine nte.

    Interessa-me es tuda r a condio liminar que resid e num aparte dessas teatralidad es atua is, nas quais se entrecruza m nos outras formas artsticas, mas tambm diferentes arquite turascnicas, conc ep es teatrais, olhares filosficos, posicionam en-tos ticos e polticos, universos vitales, circunstnci as sociais.No desejo me referir teatralidade como um conjunto de es-pecificidades territoriais desligado de outras prtic as e discipli -nas artsticas. No melhor dos casos, gostaria de observ-Ia como

    Cenrios limin ares (tea tra lidades . performan ces e polt ica) 19

  • uma situao em movimento, redefinida pelas prticas artsticase humanas.

    Este estudo procura analisar a utilizao das estratgiasartsticas nas aes polticas e nos protestos cidados, e refletirsobre a sua possvel teatralidade. Tambm pretende consideraro ressurgimento de uma politizao na arte, atravs de prticascarnavalescas, ldicas e corporais, e o desenvolvimento de umaatitude estetizante das prticas polticas com propsitos muitodiferentes dos desenvolvidos pelos sistemas totalitrios

    Inicialmente associei o conceito de liminar aos conceitosde hibridao (BAHBHA; CANCLINI), contaminao, fronteirio(LOTMAN; BAKHTIN), excentris (LINDA HUTCHEON), indican-do essa regio trans-disciplinar onde se entrecruzam o teatro, aperformance art, as artes visuais e o ativismo, e aproximando-ado conceito de exlio, da no territorialidade, do mutvel e tran-sitrio, do processual e inacabado, do fato de apresentar mais doque representar, sem tampouco expor a negatividade do termorepresentao.

    A partir de que Turner introduziu o liminar no campo dosestudos tericos, este termo se direciona relao entre o fen-meno - ritual ou artstico - e o seu entorno social, aspecto quetem comeado a ser particularmente atendido pela esttica rela-cional. A minha percepo do liminar sugere o termo como umespao no qual se configuram mltiplas arquitetnicas," comouma zona complexa onde se cruzam a vida e a arte, a condiotica e a criao esttica, como uma ao da presena num meiode prticas representacionais.

    Nopercurso dos processos de pesquisa que acompanharama realizao deste estudo, vivenciei experincias que me fizeramrepensar o lugar da teoria para estudar uma arte em situao deprecariedade, em dilogo com a vida?e exercida a partir do com-

    B A arquitetnica um conceito elabo rado por Bakhtin a partir da inverso daideia kantiana . Indica um sistema per son alizado no qual se expem as relae sdo indivduo com o seu tempo e espao.

    9 Nos meses de julho e agosto do ano 2004, tive a oportunidade de visitaralguns dos cenrios culturais e sociais que cito na minha. pesquisa, graasaos recur sos do Programa de Apoio aos Estudantes de Ps-Graduao da

    20 lIeana Diguez Caballero

  • promisso tico. Pretender estudar a arte cnica que hoje aconte-ce em mltiplos cenrios urbanos e artsticos de Amrica Latinaimplica em nos interrogar sobre as caractersticas, molduras econtaminaes nas artes contemporneas, assim como seus en-trecruzamentos e dilogos com a realidade. Seria estril tentarfechar num laboratrio estas manifestaes artsticas, isol-lasdas suas realidades e tentar aplicar-lhes procedimentos abstra-tos academicistas. Como tem sido dito, "se existe um lugar nomundo onde a arte teatral e a sua prtica tm no dia a dia umafuno poltica, social e cultural relevante, esse lugar a AmricaLatina"!", Abrir um espao de reflexo sobre a constituio dasatuais teatralidades liminares neste continente no s implicaem desenvolver uma anlise sobre o seu complexo hibridismoartstico, mas tambm considerar as suas articulaes com o te-cido social no qual esto inseridas.

    A historiografia da arte, na qual tem predominado um olhar for-malista e estetizante, que evita as 'contaminaes' do seu objeto,tem tendncia a relegar ou subestimar a dimenso poltica dosposicionamentos dos artistas e das suas produes. Por outrolado, a partir da historiografia poltica, as questes artsticas fi-cam reduzidas a meros ornamentos, ilustraes da palavra, des-conhecendo o seu potencial revulsivo, sua espessura como re-presentao e a especificidade das suas linguagens. (LONGONI,2001, p. 19)

    Usando a expresso 'hibridismo artstico' me dirijo con-figurao de um tecido contaminado pelos entrecruzamentos demodalidades e disciplinas diversas, como a dana, o teatro, as

    Universidade Nacional Autnoma do Mxico. O contato com alguns criadores,investigadores e grupos de ao cultural e intervenes urbanas nas cidades deLima, Buenos Aires e So Paulo me proporcionou vivncias fundamentais parao questionamento e reconsiderao do meu prprio olhar terico.

    10 Fao uso deste enunciado de Olivier Poivre d'Arvor, diretor da AssociaoFrancesa de Ao Artstica, inserido nas pginas de Teatro aI Sur, n..23, p. 41,novo 2003) e que em forma de intertexto ressaltado no artigo "Tintas frescas,un puente entre Franciay Amrica Latina':

    Cenrios liminares (teatralidades, performances e poltica) 21

  • artes visuais, a performance art, ou configurao de um tecidode relaes 'transversais' entre diferentes aspectos das diversasartes; no pretendendo de maneira alguma reduzir a anlise aocampo esttico ou exclusivamente formal. Qualquer tentativa dedocumentar ou estudar as contaminaes na arte desvinculadasda sua relao com o entorno reduziria a sua complexidade eanularia uma parte do espesso tecido arte/sociedade ou arte/realidade. Interessa-me insistir na liminaridade como antiestru-tura que coloca em crise os status e hierarquias, associados asituaes intersticiais, ou de marginalidade, sempre na beira dosocial e nunca fazendo comunidade com as instituies. Esta arazo da necessidade de remarcar a condio independente, noinstitucional e o carter poltico das prticas liminares.

    No campo cnico latino-americano, a partir de 1991,Miguel Rubio (2001, p. 100)11 constatava a existncia de "umteatro de fronteiras e limites dificilmente classificveis", "mul-ti disciplinar e limtrofe com a dana, artes visuais e sonoras, es-paciais, linguagens de impresses fortemente visuais que se im-pem ao espectador". Relendo Notas sobre Teatro, constato quea melhor reflexo ser essa que procede do fato teatral e de seuspraticantes, gente de teatro. O liminar no nenhuma novidadeimposta pelo pensamento terico, j uma situao vivenciadapor uma prtica experimental ou pelo menos no tradicionalque a partir das ltimas dcadas tem marcado com bastante de-terminao a teatralidade latino-americana.

    Acredito - emconcord ncia com o que Miguel Rubio expe- que a partir dos ltimos anos da dcada de noventa, o teatrolatino-americano transitou por escrituras mais visuais, influen-ciadas pelas indagaes no territrio da plstica, o Accionismoe a instalao, incursionando por processos que implicam su-tis questionamentos conceituais e crticos. Neste sentido men-ciono algumas referncias entre as quais tambm esto aque-

    II Diretor e fundador do grupo peruano Yuyachkani, com mais de trinta anos detrabalho.Alm de dirigir num erosas criaes cnicas, tambm autor de vriosensaios, artigos e dos livros: Notas sobre Teatro, Lima-Minneso ta , 2001 e EICuerpo Ausente (performance poltica), Grupo Cultural Yuyachkani, Lima, 2006.

    22 Ileana Diguez Caballero

  • les que so objeto do meu estudo: Yuyachkani, La otra orilla eAngel Demonio, de Lima; Mapa Teatro e algumas criaes deLa Candelaria, de Bogot; Perifrico de Objetos e Catalinas Sur,de Buenos Aires; o Teatro da Vertigem, o Ncleo Bartolomeu deDepoimentos, e Macunaima de So Paulo; Teatro Obstculo deCuba-Miami; OPatoqallina, do Chile; Malayerba, de Quito; Teatrode los Andes, da Bolvia, entre outros. E a estes processos nochegaram por moda ou por necessidade de se afinar com as pr-ticas estticas dos 'ps'. Em todo caso seria necessrio pensarestes discursos e estratgias cnicas em dilogo com as suascronotopias, lembrar que a partir dos anos noventa e de modocrtico at o final dessa dcada, os cenrios sociais, econmicos epolticos deste continente comearam a ser mais espetaculares emiditicos. Numa sociedade de discursos esgotados, onde a po-pulao civil tem explorado recursos de representacionismo, etem usado o seu prprio corpo como meio de expresso num en-torno que midiatiza todas as intervenes, a teatralidade, comoa vida, tem que reinventar-se a cada dia, assumindo o mesmorisco, a mesma fragilidade e sobrevivncia que marca os espaosonde se insere.

    Em mais de uma ocasio tenho escutado alguns criadoresreferirem-se s suas criaes como no pertencentes ao terri-trio esttico, insistindo em separ-las da "zona protegida daarte", propondo-as como "rituais pblicos e partcipatvos"!".Relaciono estas afirmaes ideia de "rituais dalgicos', pro-posta por Paul Gilroy, em que os espectadores adquirem funesparticipativas em processos coletivos e catrticos e podem che-gar a criar uma comunidade (BAHBHA, 2002, p. 50).

    Em Lima, como em Buenos Aires, artistas plsticos ede outras disciplinas tm-se organizado coletivamente pararealizar aes pblicas e participativas que tm chegado aincidir no rumo poltico e social das suas comunidades. Refiro-

    12 Estou-me referindo s palavras de Gustavo Buntinx durante o encontro comvrios artistas das artes plsticas e a perforrnance, no Centro Cultural SanMarcos, Lima, 24 de julho de 2004. Duas semanas depois, em Buenos Aires,Carolina Golder do Grupo Arte Callejero utilizava frases similares.

    Cenrios liminares (teatralidades, performances e poltica) 23

  • me sucintamente a duas destas aes: a realizada na Praa deArmas de Lima,Peru, no ano 2000, onde se lavou em pblico, junto multido, a bandeira peruana, ao convocada pelo ColectivoSociedad Civil, que, na opinio de Gustavo Buntinx, contribuiupara o derrocamento da ditadura de Fujrnor!". E os escraches"realizados em Buenos Aires com a participao de coletividadescomo o Grupo Arte Callejero e Etctera, em conjunto com aAssociao H.I.j.o.S, que colocaram em evidncia residncias dealguns dos responsveis pelas desaparies, torturas, roubos decrianas e a morte de milhares" de argentinos durante a ltimaditadura.

    Este tipo de evento - rituais comunitrios - nos quais ficatransparente a responsabilidade cidad do artista, incita a umareflexo alm das taxonomias estticas. Interessa refletir sobreas dimenses de convvio (DUBATTI, 2003, p, 6)16, sobre o car-ter das performances, efrneras, acionistas, 17 participativas, pol-ticas e ticas destas prticas.

    Na Amrica Latina, a necessidade de manter vivo o teatrocomo ato de convivncia, como espao de dilogo e encontro, foidecisiva na procura de novos temas, de novas formas de escritae de nova produo cnica. Essa urgncia impulsionou a criaodos teatros independentes e de criao coletiva. Diversos gruposteatrais nascidos na Colmbia, Argentina, Peru e Brasil, que con-seguiram ganhar espaos prprios reconhecidos e apoiados pelo

    IJ "O poder tambm se define no aspecto simblico, no cultural, no econmico,assim como no militar", argumentava Buntinx em funo da repercusso daao do Colectivo Sociedad Civil, no encontro que teve lugar no Centro CulturalSan Marcos, Lima, 2004.

    14 Escrache, de "escrachar", uma palavra procedente do lunfardo argentino quesignifica pr em evidncia.

    IS A cifra reconhecida pela sociedade civil fala de trinta mil desaparecidos.1(, Segundo observao de Jorge Dubatti, "o teatro uma das manifestaes de

    convvio de essa 'cultura viva' transmitida durante sculos at o presente, ondea letra palpita in vivo" (2003, p. 6) e na qual se recupera a celebrao da festa,do ritual, do encontro de presenas que foi o ato de fundao da teatralidadea partir de a Antiga Grcia. Este olhar tambm nos interessa articulado aosestudos de Bakhtin sobre a cultura ritu al e de celebrao das antiguidadesgregas, a cultura popular medieval e da renascena, no oficial, o carnaval e afesta, sempre fontes de teatralidade e manifestaes artsticas.

    17 Do Accionismo Vienense .

    24 Ileana Diguez Caballero

  • seu pblico, margem de qualquer apoio ou compromisso ins-titucional, tm sido e so ainda importantes ncleos de culturaviva, referncias essenciais para todo estudo sobre os processosculturais em qualquer um desses pases. Eles criam os espaospossveis para pensar a liminaridade, pois, assim como Turner,vinculam este conceito a situaes de marginalidade, fora dasestruturas sociais.

    Este outro jeito de produzir - no sentido de criar - o fatocnico foi redefinindo um conceito de teatralidade cada vez me-nos apegado ao exerccio das hierarquias teatrais e aos meca-nismos da encenao. Os longos processos de pesquisa e experi-mentao na procura de temas, linguagens e meios, - incluindoem certas ocasies trabalhos de pesquisa de campo, com crit-rios e prticas mais coletivas e heterrquicas'" - foi configurandoescrituras cnicas onde o texto dramtico no era um ponto departida, mas um elemento mais do corpo cnico, resultante dosprocessos da dramaturgia do atar.

    A resistncia de alguns criadores por transpor suas cria-es cnicas para um texto escrito indica uma teatralidade queno s se situa numa verdadeira independncia do texto dram-tico, mas que concebida essencialmente corno efmera, proces-sual, de performance, unicamente possvel a partir de um tempoe espacializaes cnicos. "Minha resistncia publicao dostextos nos quais trabalho [...] porque no acredito no valor dostextos que surgem daqueles sucessos e acontecimentos que seproduzem no palco, que tambm no podem ser transmitidospelas didasclias", expressa Ricardo Barris'? (1998, p. 84-85), emaberta discordncia a um teatro onde "o texto ganha uma supre-macia ideolgica em relao forma e[o] corpo" (p. 85)

    Se as discusses da arte contempornea tm consideradocomo signo fundamental da mudana uma noo de obra que

    tu o uso do prefixo hetero indica lima forma de ordenamento diferente dohierrquico, numa disposio mais diversificada e sem sujeio a umpensamento nico. Interessa-me tambm como indicador de uma relao maishorizontal e menos vertical.

    l O Ricardo Barts, fundador e criador do Sportivo Teatral , um dos nomes maissignific ativos da cena experimental de Buenos Aires.

    Cenrios liminares (teatralidades, performances e poltica) 25

  • no se limita coisificao, produo de um objeto especfico;em se tratando do teatro importante remarcar a existncia dofenmeno cnico alm das representaes de um texto prvio.

    Uma problemtica da qual ainda no se tem conscincianas discusses sobre a arte cnica a noo mesma de texto.Objeto de re-significaes a partir da expanso semitica e dopensamento ps-estruturalista, o conceito de texto abarca umconjunto de prticas significantes to diversas como produespictricas, musicais, rituais, religiosas, mgicas e oraculares.Esta re-elaborao do termo tem aberto perspectivas funda-mentais para a considerao dos diversos textos que integram oprocesso teatral: textos performticos, icnicos, cnicos, espeta-culares e dramatrgicos.

    importante enfatizar estas caractersticas porque asteatralidades que estou propondo estudar esto mais imersasnos processos de escrita ou criaes cnicas que nos tradicionaisprocessos de encenao. Da subjugao do teatro mise enscne, como representao de um texto prvio que inclusivesobrevive como escrita dramtica, deriva a situao de um atarsubmetido a interpretar a criao do dramaturgojdiretor. Ooutro jeito de conceber o fato teatral, como criao cnica ondeo texto dramtico bombardeado", debilitado e no funcionacomo dispositivo essencial, tambm implica outras formas departicipao no processo criativo, especialmente para o atarque j no s intrprete de uma personagem, mas criadorde uma entidade ficcional, co-criador do acontecimento cnicoou inclusive performer que trabalha a partir da sua prpriainterveno ou presena, condio que caracteriza os praticantesdas teatralidades que nos interessam.

    Um estudo dos entrecruzamentos entre as prticas teatraise as artes performticas teria que reconhecer a performatividadecomo aspecto fundamental da teatralidade, assim como a

    20 Interessa-me esta dimenso que metaforicamente cha mo de bombardeado emrelao aos rompimentos e debilitaes dos aspectos dramticos numa parte doteatro atual. Numa dimenso similar, [osette Feral fala de um "texto perfurado"(2004, p. 109) ao referir-se ao 'texto performtico' como um dos componentes,entre tantos, da representao.

    26 I1eana Diguez CabaJlero

  • execuo ou encenao de imagens atravs do corpo do ator.a que no teatro tem-se denominado de 'texto performtico'implica uma escritura gestual, uma prtica corporal. A palavraperformance tambm tem sido utilizada para sinalizar arepresentao ou execuo de uma obra teatral e em geral cnica.Mas necessrio considerar a particularizao que teve estadenominao na dcada de sessenta, quando os artistas plsticosabandonaram os espaos seguros dos museus e impregnaramsuas obras de recursos do representacionismo, gerando umaespcie de teatralizao das artes plsticas, sendo estas aesou execues conhecidas como happenings e performances.Assim comeou o reconhecimento de uma prtica conhecidacomo performance art, forma migrante que se transportou dasartes visuais at as artes cnicas e que desde ento foi ganhandoespao, diferenciada das tradicionais estruturas teatrais.

    Em mltiplas ocasies Richard Schechner (1990, p. 330)tem feito referncia a dois tipos de teatro: um inscrito na tradi-o da encenao e outro que se refere performance text, ex-plicando este ltimo como "um processo com mltiplos canaisde comunicao criado pelo ato espetacular". Para [osette Fral(2004, p. 109), o 'texto performtico' remete noo de 'perfor-matividade', o que "faz pensar no que est na base mesma do tra-balho do ator" (p. 127), onde o texto perfurado" sem ocuparum lugar primordial, inseparvel da sua execuo cnica.

    Na metade da dcada de oitenta, Barba; Savarese afirma-vam que:

    A distino entre um teatro baseado num texto escrito ou com-posto preliminarmente e utilizado como matriz da encenao,e um teatro no qual o texto significativo seja somente o textoperformtco, representa muito bem, a um nvel intuitivo, a dife-rena entre 'teatro tradicional' e 'novo teatro. (1990, p. 77).

    21 Em dilogo com essa ideia do texto perfurado, pensamos como exemplo derupturas textuais, num sentido totalmente diferente do propsito de pr emcena uma obra dramtica, as escrituras cnicas que no procuram representara ideia de dramaturgo algum , mas que se tecem como relaes tangenciais,travessias, dilogos com algum pr-texto.

    Cenrios liminares (teatralidades, performances e poltica) 27

  • Em sintonia com esta ideia, quero me referir ao uso que fa-zia Victor Varel a" da categoria performance text para identificaro texto de uma das suas obras, La Cuarta Pared. Esta criao tevecomo ponto de partida uma primeira escritura do prprio dire-tor, implicando num longo processo de pesquisa, experimenta-o e fragmentaes, a partir do qual nasceu um complexo textoperformtico. La Cuarta Pared foi o acontecimento teatral maismarginal, transgressor e contestatrio na cena e na sociedadecubana nos finais da dcada de oitenta, um divisor de guas quenecessariamente tem de ser levado em conta ao se fazer qual-quer retrospectiva do teatro cubano das ltimas dcadas.

    La Cuarta Pared / Teatro Obstculo.Foto: Juan Enrique Gonzlez Careaga

    22 Autor, ator e encenado r teatral e art ista plst ico cuba no. fund ador do grupoTeatro Obstculo. que na dcad a de oitenta. representou ao se tor maiscontesta tr io da cena cubana. Criad or de mem orveis es pe t culos, migra paraBuenos Aires e post eriormente para Miami . onde segue trabalhando. Tempublicad o EI rbo dei pan y Biblis e tem em processo edito r ial EI texto impos ble,um a anto logia da sua obra teatral.

    28 . Ileana Diguez Caba lle ro

  • Fral (2004, p. 111) introduz uma terceira categoria - o'texto espetacular' - com a qual resume as noes de texto e tex-to performtico como "o resultado de um apertado tecido entreo texto e os outros elementos da representao". Esta nova taxo-nomia neutraliza a diferena no uso dos termos indicados porSchechner e Barba para distinguir teatralidades, que se confi-guram sob o formato da 'encenao' ou do texto performtico eque indicam maneiras distintas de abordar a cena. Em todo caso,as criaes cnicas - 'espetaculares; segundo Fral - que me in-teressam estudar esto mais determinadas pela dimenso per-formtica e visual das suas propostas do que pela dependnciade um texto prvio. Prefiro considerar a condio espetacular- no como texto, mas como prtica - para dar conta de situa-es performticas produzidas de forma espontnea na vida co-tidiana, que conseguem uma expressividade simblica pelo usode determinados dispositivos de linguagem, e que, no entanto,no pretendem ser fixadas nem lidas como eventos artsticos. Anoo de espetculo j foi assinalada por Guy Debord para refe -rir-se s produes espetaculares das sociedades de consumo.Como apontou Helga Finter (2003, p. 36), o espetculo que se dcomo 'realidade' no consciente da sua teatralidade. Na atuali-dade, assistimos produo de situaes espetaculares produzi-das de forma espontnea a partir de baixo - no a partir de hie-rarquias institucionais - que do conta de um olhar dissidente,inconformado, diferente da norma estabelecida pelo poder, talcomo aconteceu nos panelaos, no ms de dezembro de 2001, naArgentina, ou em Oaxaca, Mxico, em agosto de 2006.

    Procurando uma maior distino entre os conceitos de en -cenao e o de escritura ou criao cnica, retomo as definiesda tradicional mise en scne, termo francs utilizado a partir dasprimeiras dcadas do sculo XIX, sendo traduzido no mbito his-pnico como 'puesta en escena', 'direcct n' ou 'montaje ' (PAVIS,1983, p. 384). Na opinio de Veinstein (1955)23, a denominao'puesta en escena' (encenao) designa o conjunto dos meios de23 La Mise en scne th trale et sa condition esth tique. Paris: Flammarion, 1955.

    Traduo ao es pa nhol: La Puesta en escena. Buenos Aires: Cia Gral. Fabril.

    Cenrios Iimin ares (teatralid ade s, performances e poltica) 29

  • interpretao na cena, cenrios, iluminao, msica e atuao,assim como a atividade que consiste na disposio em certo tem-po e espao da atuao, dos elementos de interpretao cnca, ede uma obra dramtica (citado por PAVIS, 1983, p. 385). A ence-nao entendida, de modo geral, como transposio da escritadramtica, e implica num processo no qual deve ser evidenciadoo sentido aprofundado do texto dramtico, a explicao do texto'em ato' (Idem, p. 386).

    A tradicional sujeio da encenao ao texto dramticofoi combatida por criadores como Artaud, que no consideravao teatro como reflexo de um texto escrito>, nem como simplesprojeo de duplos que nascem com a dramaturgia (ARTAUD,1969, p.13). No seu empenho por devolver a teatralidade aoteatro, Artaud prope um caminho diferente no qual as obrasnascem da cena, recuperando uma linguagem de gestos semnenhuma dependncia de um texto prvio: "toda criao nasceda cena" (Idem, p. 87).

    Nestas propostas, ou solictaes", reconheo os primei-ros delineamentos de criaes cnicas que priorizam a dimen-so visual ou performtica. Ametfora de um 'corpo sem rgos'(CsO), sugerida por Artaud, poderia ser entendida - levando emconta a sua carga de pulses e a sua caracterstica parricida -na procura de uma teatralidade menos racional e mais corporal.Numa relao metafrica, a demanda de um 'corpo sem rgos'pode esgrimir-se contra a noo de encenao, se entendemosesta como sinnimo da montagem de um texto que prioriza alinguagem verbal. O CsO proposto por Artaud a expresso deum corpo com vontades, de um corpus libertado, erotizado; umcorpo humano, poltico ou teatral. a teatralidade sem cotaes

    24 " [, .. ] Aexpresso 'encenao' tem adquirido com o uso esse sentido depreciativosomente por causa da nossa concepo europeia do teatro, que d primazia linguagem falada sobre todos os outros mdios de expresso", Cartas sobre ellenguaje. Primera carta, Paris, 15 de septiembre de 1931. En El teatro y su doble,p. 141.

    25 Gosto da palavra com a qual Derrida define os anseios que Artaud nos deixouem El Teatro y su Doble: solicitaes. Ver "EIteatro de la crueldad y la clausurade la representacin", en La escritura y la diferencia, p. 322.

    30 lleana Diguez Caballero

  • de representacionismo, driblando a marcao da tradicional or-ganizao drama/representao. O texto ali est quebrado, per-furado. O teatro das contaminaes, das pestes, do desejo, dasvontades, que no precisa legitimar-se num sistema, parecia terem Artaud uma primeira metfora conceituaI.

    Uma parte importante do teatro latino-americano das lti-mas dcadas tem desenvolvido suas criaes a partir das escri-turas corporais dos atares, das improvisaes e achados cnicos.Acredito que a noo de performance text baseada no trabalhoperformtico - no sentido de execuo dos atores, ou inclusi-ve de representao - pode dar conta das teatralidades corpo-rais que a partir dos anos oitenta foram se desenvolvendo naAmrica Latina e nas quais seria preciso reconhecer o impulsorevitalizador do Odn Teatret e de Eugnio Barba. Acontribuiodas formas de trabalho do Odn em sua passagem pela AmricaLatina, especialmente depois do Encontro de Teatros de Grupoorganizado por Cuatrotablas em Ayacucho (1978), comentadacriticamente por Miguel Rubio. Pela importncia desta reflexo,estendo-me na citao:

    Achegada do Odn por estas terras produziu definitivamente umsistema teatral na Amrica Latina e foi em Ayacucho, no meu en-tender, que se assentaram as bases desta influncia. Penso quea sua aceitao e rejeio ao mesmo tempo foi causada pelo fatode haver um movimento teatral emergente com muita clareza doque tinha que ser feito, mas ao mesmo tempo bastante retrico;revolucionrio em ideias, mas em muitos casos conservador nasformas, sem iniciativas muito claras para o atar e a sua tcnica.Este um ponto importante, porque esse vazio permitiu ao Odndar-nos uma alternativa teatral, direcionada fundamentalmentepara o ator. As tcnicas so as maneiras como respondemos snossas necessidades, os grupos precisvamos de ferramentasnovas que fossem teis para enfrentar novos cenrios e novospblicos. Na maioria dos casos vnhamos resolvendo empirica-mente estas necessidades, mas, quando nos confrontamos como Odin, achamos todo um sistema para o teatro que nutria-se

    Cenrios liminares (teatralidades, performances e poltica) 31

  • das fontes mais importantes da tradio teatral do Ocidente e dasia. Isto no foi entendido em toda a sua dimenso por aquelesque, fascinados pelo que viam, digeriram mal as informaes,e se arriscaram acriticamente repetindo basicamente formas eno descobrindo que embaixo delas havia princpios onde se co-nectam e realizam as obras de arte [...] (RUBlO, 2001, p. 148).

    Como indica Miguel Rubio, entre as contribuies do Odinao teatro latino-americano destaca-se o fato de propiciar a rela-o com uma tcnica que ofereceu aos atores outras ferramentaspara desenvolver escrituras mais performticas.

    As demonstraes de trabalho empreendidas por atorese atrizes peruanas(os), colombianas(os), brasileiras(os), oucubanas(os), mencionando exemplos que mais trago na me-mria, a partir das demonstraes de Iben Nagel Rasmussen,Roberta Carrieri, [ulia Varley, dirigidas por Barba, podem serconsiderados modelos do alto nvel alcanado nos processos decriao, treinamentos e dramaturgias do ator".

    Quando, em 1988, La Candelria estreou El Paso: parbolade un camino, no Festival Ibero-Americano de Teatro de Cdiz,foi necessrio considerar uma notvel mudana nos discur-sos cnicos deste conhecido grupo. La Candelaria, dirigida porSantiago Garcia em Bogot, junto com o Teatro Experimental deCali, fundado e dirigido por Enrique Buenaventura, tinham sidoos grupos colombianos iniciadores de um peculiar sistema decriao e produo na Amrica Latina: a criao coletiva, que re-tomava princpios reflexivos e ideolgicos do teatro brechtianoe formas de trabalho j desenvolvidas pela Commedia dell'Arte.

    A modalidade da criao coletiva privilegiava a construoda fbula ou a intriga - como tinha proposto Brecht - a partir doamplo material acumulado pelos atores durante os processos n-vestigativos. Para este novo espetculo - El Paso - La Candelariapermitiu-se a explorao de universos subjetivos em crcunstn-

    26 Consultar: "Des/tejer, des/rnontar; de/velar", prlogo de Ileana Diguez a Desjtejiendo escenas. Desmontajes: procesos de investigaciny creacin. Mxico: UIA-INBA-CONACULTA, 2009, pp . 9-20.

    32 I1eana Diguez Caballero

  • cias de violncia e ameaas. O resultado foi uma estranha 'obra'com uma caracterstica diferente das anteriores: uma espcie detexto performtico com algumas inseres de dilogos. A maiorparte do texto era uma escritura em didasclias que tentava darconta dos silncios e de aes minimalistas. Em cada representa-o, os atares produziam partituras e dilogos que no estavamestritamente fixados, que no tinham que ser mecanicamente me-morizados. Nas notas de dramaturgia publicadas posteriormentepodia-se ler situaes como esta: "o que foi dito entre dentes po-deria ser" (Teatro La Cande/aria, 1991, p. 16) ou didasclias como:

    A Senhora segue discutindo com o amante. Ela quer ir embora,do jeito que for. Esses homens so muito suspeitosos, podem serdetetives enviados pelo marido. A discusso fica cada vez maisquente at o momento em que o amante joga uma mala no chocom inusitada violncia.

    Para a msica de pera (p. 25) [...]Deimediato todos ficam absortos em seus prprios pensamentos.

    Huma longa pausa.De repente Don Blanco, que estava comendo um prato com cal-do de peixe, comea a sacudir os braos como se estivesse seafogando (p. 35).

    No plano da escritura dramtica E/ Pasopermaneceu comoum estranho texto que j anunciava outra configurao da tea-tralidade, com quadros metafricos que no poderiam ter sidocosturados de forma linear, pois j no contavam uma histria,mas apenas nos faziam participantes de uma situao densa eambgua.

    [...] aqui no acontece nada... ou melhor, menos que nada... defora chegam notcias... so cada dia piores... em Torrente porexemplo na semana passada mataram outros seis homens[...](Teatro La Candelaria, 1991, p. 20).

    Cenrios liminares (te atralid ades, performances e polti ca) 33

  • Meses depois, em janeiro do ano seguinte, (1989), as sedesdo grupo La Candelaria e da Corporacin Colombiana de Teatrode Bogot foram tomadas pelo Exrcito Colombiano como par-te da poltica de vigilncia e ameaa de morte praticada contraalguns artistas e intelectuais colombianos. Tratando-se de umestdio sobre as teatralidades na Amrica Latina, onde os tex-tos no so meras experimentaes formais, mas condensaesde experincias, riscos e pensamentos que tm que passar pelasagudas metforas da cena, no posso deixar de considerar o fatode que a presso sob a qual viviam vrios criadores desse grupopode ter influenciado a criao desse discurso potico, aparen-temente trivial nas suas annimas e cotidianas aes, onde 'ono dito' poderia ser perceptvel.

    O liminar tambm interessa como condio ou situao apartir da qual se vive e se produz arte, e no unicamente comoestratgias artsticas de entrecruzamentos e transversalidades.A partir de sua concepo terica, a liminaridade uma espciede fenda produzida nas crises. Vrios dos exemplos desenvol-vidos ao longo deste estudo esto associados de forma irreme-divel s situaes de crise que tm transformado a vida e otrabalho artstico das pessoas, e a partir das quais tm emergidoexperincias de alteridade. arte e cultura cidad necessriofazer visveis os espaos de diferena onde existem esses outrosque no se organizam sob os sistemas hierrquicos e a estabili-dade oficial, e que, ao contrrio, fundam projetas intersticiais,independentes e excentris.

    2 Articulaes limlnares / metforas tericas.

    Quando levamos teorias ao campo de pesquisa, estas passam aser relevantes somente se conseguirem esclarecer a realidadesocial. Frequentemente descobrimos que o sistema completode um terico no aquele que nos oferece uma pauta anal-tica . mas as ideias dispersas, fascas de reconhecimento que sedesprendem do contexto sistmico e so aplicados tambm eminformaes disseminadas (TURNER, 2002, p. 35).

    34 lIeana Diguez Caballero

  • Os termos que aqui relaciono, a partir de corpus diversos,no pretendem constituir nenhum sistema; as relaes entre elespodem ser perturbadoras. Interessa-me a prtica terica comoproduo de um olhar metafrico ou estranho, prximo ao pro-cedimento de estranhamento que indicaram os formalistas rus-sos (SKLOVSKI) para definir a natureza do artstico. A metforatem sido explorada como uma maneira singular de conhecer pormeio da qual as caractersticas de uma coisa (NISBET citado porTURNER, 2002, p. 37) entram numa relao de tenso: no preci-samente se transferem a outra coisa para produzir a semelhanaou outra forma da mesma, mas sugerem o que tem-se chamado de"uma fasca intuitiva" por efeito de tenso, des-automatizando amaneiras de ver as coisas. A dimenso cognitiva e criativa das es-truturas metafricas assenta-se em outra percepo que emergena diferena, sem pretender revelar essncias nem verdades ocul-tas. No penso na metfora como dispositivo heliotrpico, nemna teoria como territrio para o que Derrida (1989b, p. 306)27definiu criticamente como "metforas de luz", independente deque, em geral, os corpus tericos constituem territrios tropolgi-coso Interessa-me explorar a relao de tenso que surge quandoaproximamos obras artsticas e tericas, no para exercitar com-provaes, mas sim aproximaes metafricas.

    As noes que quero revisitar, como tropos - neste casofiguras do pensamento, no da retrica - foram formuladas porvrios pensadores: "liminaridade", "drama social", "communi-tas", de Victor Turner; "convvio", "acontecimento convval'?",

    27 Fao referncia ao desconstrucionismo de Jacques Derrida em relao institucionalizao da metfora e sua utilizao como instrumento desubstituio e como veculo para transportar presenas do logocentrismoocidental. Ver "Amitologia branca" (Margensdafilosofia) . Estas problematizaesso parte das reflexes desenvolvidas no Seminrio de Literatura e Magia(Literatura e Antropologia) dirigido pelo Prof. Dr. Gabriel Weisz, na UNAM(2006-2007), que experimentou como laboratrio de atualizaes crtic as emtorno do pensamento terico atual.

    211 Utilizo a palavra tal como proposta por Dubatti, incentivado pelo esprito rio-platense mais frequente (convivial) que pelas indicaes dos dicionrios dalngua espanhola (convival). Em outros casos tambm usamos alguns termossegundo a maneira utilizada pelos praticantes da teatralidade, considerando,como sugeria Bakhtin, as possibilidades de atualizao da lngua a partir das

    Cenrios Iiminares (teatralidades, performances e poltica) 35

  • "acontecimento potico e de linguagem", "acontecimento expec-tatorial", de Jorge Dubatti; "arte relacional", "obra de arte comointerstcio social", "transparncia do real", "esttica relacional",de Nicolas Bourriaud: "ato tico", "arquitetnica", "carnavalza-o', "corpo grotesco", "corpo hbrido", de Mikhail Bakhtin; "hi-bridao", de Homi Bahbha, "culturas hbridas", de Nestor GarciaCanclini. De modo mais especfico tambm utilizo as denomina-es: "situacionismo", "construo de situaes", "sociedade doespetculo", de Guy Debord, "Teatro invisvel", de Augusto Boal;"teatros do real" e "effraction", de Maryvonne Saison. So concei-tos na sua maioria tomados de disciplinas marginais ao teatro,como a antropologia, a filosofia da vida e a cultura; quer dizer,no emergem do centro de uma teoria teatral, mas tambm noso totalmente alheios a este campo. Alguns procedem de estu-dos relacionados com as artes visuais ou a literatura. Em todocaso, este conjunto de ideias constituem uma espcie de "zcaloconcetual'?" hbrido, e o fato de aproxim-lo do campo artsticopara refletir sobre suas prticas cnicas e sociais podem propi-ciar novas maneiras de olhar.

    2.1 A perspectiva liminar

    A questo liminar foi delineada pelo antroplogo VictorTurner ao estudar as caractersticas sociais da fase liminar do ri-tual ndembu'", e a partir das observaes de Arnold Van Gennepsobre os rites de passage associados a situaes de margens ouJimen (umbral). Nos ritos ndembu, Turner (1988, p. 104) ana-lisa a liminaridade em situaes ambguas, passageiras ou detransio, de limite ou fronteira entre dois campos, observando

    prticas orais.29 Considero a ideia de "z calo conceituaI" a partir da frase "z6cl1ln lexical"

    proposta por Ana Mar ia Guasch na conferncia "O Intercultural entre o MinhaIe o local", ministrada em 8 de junho de 2005, no Laborat6rlo Arte Alameda,Mxico, DE Interessa a sua traduo como praa de concetos,e.pao pblico noqual se oferecem de forma aberta e descentralizadora as teorl, Bm.apanhol iipalavra zcaJo equivale a praa pblica.

    30 "Liminaridade e Communitas", captulo III de EJ Proceso R/tua/, Bltructurll YAntire structura. Madrid: Taurus, 1988.

    36 Ileana Diguez CabaIlero

  • quatro condies: 1) a funo purificadora e pedaggica ao ins-taurar um perodo de mudanas curativas e restauradoras; 2) aexperimentao de prticas de inverso - "o que est acima deveexperimentar o que est embaixo" e os subordinados passam aocupar uma posio proeminente (Idem, p. 109); como consequ-ncia as situaes liminares podem transformar-se em situaesarriscadas e imprevisveis ao outorgar poder aos fracos -; 3) arealizao de uma experincia, uma vivncia nos interstcios dosdois mundos; 4) a criao de communitas, entendida esta comouma ant-estrutura na qual se suspendem as hierarquias, como"sociedades abertas" onde se estabelecem relaes igualitrias,espontneas e no racionais.

    Por correspondncia, os 'entes liminares' que ocupam osinterstcios das estruturas sociais, que encontram-se nas suasmargens, nos degraus inferiores, (TURNER, 1988, p. 131) sogeralmente seres despossudos, sem status nem propriedadese fazem seus os estigmas dos inferiores. Dentro desta condi-o Turner (2002, p. 133) colocou os artistas, a quem idealizoucomo "gente liminar e marginal", "observadores perifricos"imersos numa espcie de "loucura sagrada", seres xam nicospossudos por espritos de mudanas antes que as mudanassejam visveis na esfera pblica (TURNER, 2002, p. 40). Essafigura do "ente liminar" - alm de qualquer idealizao ou con-cesso a ele de alguma posio privilegiada, alguma dimensoproftica de que no cornpartilho-, me interessa como expres-so do estado fronteirio dos artistas/cidados que desenvol-vem estratgias artsticas para intervir na esfera pblica, assimcomo tambm poderia indicar a natureza ambgua de quemutiliza estratgias poticas para configurar aes polticas noforo mesmo da sociedade, desafiando seus representantes(TURNER, 2002, p. 50). Esses 'entes liminares' so portadoresde estados contagiantes prprios das anti-estruturas, uma es-pcie de dionisismo cidado ao qual me referirei como 'pathosliminar'. A partir da viso nietzschiana o termo dionisismo ex-pressa a colocao em ao de estados orgisticos. Vinculado asituaes de possesso, de festividade transbordante e conta-

    Cenrios liminares (teatralidades, performances e poltica) 37

  • giante, de liberao das regras e procura de um esprito utpi-co, entendo sua colocao em ao no espao pblico, em cir-cunstncias excepcionais.

    A communitas representa uma modalidade de interaosocial oposta de estrutura, na sua temporalidade e transito-riedade, onde as relaes entre iguais do-se espontaneamen-te, sem legislao e sem subordinao a relaes de parentesco,numa espcie de "humilde irmandade geral", que esto fixadasatravs de aes litrgicas ou prticas rituais. Esta concepoutpica exemplificada por Turner recorrendo a diversos mo-mentos singulares, como foram a existncia das comunidadeshippies, os beats, a comunidade fundada por Francisco de Assisou, inclusive, situaes ficcionais como a repblica ideal propos-ta pela personagem Gonzalo, em A Tempestade de Shakespeare.Em todos estes casos a liminaridade uma situao de margem,de existncia no limite, portadora de mudana, proponente deumbrais transformadores.

    Embora Turner situou as communitas como antiestru-turas o seu conceito de "drama social" pertence ao grupo dasestruturas positivas, quer dizer, das sociedades estruturadas efundadoras de status e hierarquias. Os dramas sociais separame dividem; numa relao muito diferente das geradas pelas com-munitas. Turner (2002, p. 74) observou uma estrutura dramti-ca no interior dos dramas sociais, em analogia direta com as es-truturas da fico cnica e como expresso do potencial 'teatral'da vida social. Considerou que nestes dramas operavam quatrofases: 1) a fenda, 2) a crise, 3) a ao reparadora, 4) a reintegra-o. No mbito da segunda fase colocou tambm a emergnciade liminaridade, como umbral entre as etapas mais estveis doprocesso, mas no na dimenso do lmen sagrado separado davida quotidiana, mas no foro mesmo da sociedade, desafiandoseus representantes (Idem, p. 50). Insisto nesta dimenso da Ii-minaridade, fora da esfera estritamente sagrada, pelo potencialque representa para refletir as situaes cnicas e polticas inse-ridas na vida social, propiciadoras de trnsitos efrneros, mas dealguma maneira tambm transcendentes.

    38. Ileana Diguez Caballero

  • Na introduo a From Ritual to Theater", Turner analisaas relaes entre performance e experincia, e coloca o conceitode experincia a partir da palavra alem erlebnis utilizada porWilhelm Dilthey para significar vivncia ou o que tem sido vven-ciado, e na qual observa uma 'estrutura processual' (TURNER,2002, p. 78-80). Para Turner, em qualquer tipo de performancecultural - o ritual, o carnaval, a poesia ou o teatro - ilumina-sealgo que pertence s profundezas da vida sociocultural, explica--se algo da vida mesma. Neste sentido toda expresso perfor-mativa est em relao ou 'exprime' uma experincia. Por issoa volta etimologia da denominao performance derivada dofrancs antigo parfournir - realizar ou completar - concebendoento 0 32 performance como a realizao:" de uma experincia(TURNER, 2002, p. 80).

    No livro sobre antropologia da experincia", Turner(2002, p. 101) assinala as fontes da forma esttica em certasformas da experincia social e insiste em vincular o ritual e osseus descendentes, como "as artes da performance', ao que cha-ma de "o corao subjuntivo" e liminar do drama social (Idem,p. 101), onde as estruturas da vivncia so remodeladas. A artee o ritual so gerados em zonas de liminaridade onde proces-sos de mutao, de crise e de importantes mudanas so domi-nantes (TURNER, 1988, p.58); por esse motivo a liminaridade observada como "caos fecundo", "armazm de possibilidades","processo de gestao" e "esforo por novas formas e estruturas"(TURNER, 2002, p. 99). Esse olhar interessa para refletir sobrealguns rituais pblicos como fatos conviviais nos quais se con-densa, atravs da reunio do ato real e ao mesmo tempo simb-lico, uma "teatralidade" liminar.

    II Texto consultado na verso de Ingrid Geist, includa em Antroplogia do Ritual,de Victor Turner, compil ao de textos por I. Geist. Mxico, Instituto Nacional deAntropologia e Histria, Escola Nacion al de Antropologia e Hstria, 2002.

    32 Fao uso do termo performance no gnero masculino (o) a diferena do uso que sugerido, em alguns casos, para falar no campo artst ico como a performance.

    J 3 Em lugar de "concluso", como aparece no original de pesquisa traduzido, uso"realizao", sentido que tambm est na et imologia do termo.

    34 "Dewey, Dilthey e drama. um ensaio em torno da antropologia da experincia", emThe Antropology ofExperience, texto includo na compilao preparada por Geist.

    Cenrios liminares (teatralidades. performance s e poltica) 39

  • 2.2 Teatralidade e convvio.

    Um estudo sobre as teatralidades que emergem em situ-aes de liminaridade, imersas no 'entre' do tecido cultural eatravessadas por prticas polticas e cidads, tem que refletirsobre a natureza do convvio dos seus eventos. As experinciasliminares implicam de uma outra forma em experincias de so -cializao e convivncia.

    Se para [osette Fral a teatralidade definida pelas capaci-dades de transformao, de transgresso do cotidiano, de repre-sentao e semiotizao do corpo e do sujeito para criar territ-rios de fico". Jorge Dubatti (2003, p. 9) se prope a redefinira teatralidade "a partir da identificao, descrio e anlise dassuas estruturas conviviais". Mais do que concentrar-se estrita-mente num estudo da linguagem, a este investigador interessa oato capaz de convocar apario do teatral: o encontro de pre-senas, reunio ou convvio sem o qual no teria lugar o "acon-tecimento teatral".

    O ponto de partida para Dubatti foram os estudos deFlorence Dupont sobre as prticas orais na cultura greco-latina,particularmente o symposion e o banquete. A oralidade um fe-nmeno imerso nas relaes de convvio, pois a transmisso aovivo e in situ dos textos implica, no mnimo, a presena de outrosou de um grupo de ouvintes, estimulando vnculos sociais. Comoindica Dubatti (2003, p. 11), "trata-se de um modelo de produ-o, circulao e recepo literrias antpodas s da escrita im-pressa e a leitura ex visu, silenciosa, do livro".

    As prticas de convvio apresentam uma srie de carac-tersticas, ainda que resumidas a partir dos delineamentos deDubatti: reunio de uma ou vrias pessoas num determinado

    3 5 No seminrio ministrado na Universidade de Buenos Aires (agosto, 2001), estapesquisadora delineou a teatralidade como um ato de transformao do real,do sujeito, do corpo, do espao, do tempo, por isso um trabalho no nvel darepresentao, um ato de transgresso do quotidiano atravs do ato mesmo dacriao , um ato que implica o corpo, uma semiotizao dos signos ; a presenade um sujeito que pe no seu lugar as estruturas do imaginrio atravs do corpo(2004,104) .

    40 lIeana Diguez Caballero

  • espao, encontro de presenas num tempo determinado paracompartilhar um rito de sociabilidade no qual se distribuem ea/temam papis" , companhia, dilogo, sada de si ao encontrodo outro, afetar e deixar-se afetar, suspenso do solipsismo e doisolamento, proximidade, audibilidade e visibilidade estreitas,conexes sensoriais, e o convvio com o efrnero e o irrepetvel(DUBATTI, 2003, p. 14).

    Estas caractersticas dos atos conviviais podem nos levarde imediato reunio que propicia o ato teatral e sem a qual esteno existiria: no possvel o teatro sem convvio, ma is ainda, naopinio de Dubatt,a instituio ancestral do convvio tem sido amatriz do teatro (DUBATTI, 2003, p. 17).

    Longe de prender o teatro na objetualidade textual qual osestudos semiticos o tem reduzido, Dubatti o define como acon-tecimento, como prxis ou ao humana, e considera sua consti-tuio o resultado da reunio de trs acontecimentos: o convivial,o acontecimento potico ou da linguagem e o acontecimento deconstruo do espao do espectador (DUBATTI, 2003, p. 16).

    Embora "no convvio h mais experincia do que lingua-gem, mas h as zonas da experincia das quais a linguagem nopode construir o discurso" (DUBATTI, 2003, p. 25): os aspectosda linguagem propiciam a apario do ato potico ao instaurar--se uma outra ordem ontolgica. O desvio da physis natural physis potica passa pela constituio de um tecido de signosque produzem sentido e fazem possvel o discurso ficcional,fundando uma nova dimenso ntica (DUBATTI, 2003, p. 21) egerando o que Dubatti chama um espao vedado ou de reserva:o espao onde emerge a figura do espectador contemplador douniverso de fico.

    A partir de um olhar que indaga nos interstcios limina-res, me interessa destacar o acontecimento expectatoria/ comoa fronteira que diferencia os atos teatrais (poticos) dos pa-rateatrais (pertencentes ordem do real) , pois nestes ltimosno emerge uma nova esfera ontolgica, ficando estes no nveldo real intersubjetivo (DUBATTI, 2003, p. 21): o observador36 Destaco algumas terminologias em itlico.

    Cenrios Iiminares (te atralidade s, performances e poltica) 41

  • no reconhece o que sucede como acontecimento potico ou delinguagem, no consegue separ-lo da ordem da vida e por issono pode ter conscincia de ser espectador, encontrando-se nomesmo nvel de realidade daquilo que observa. Sem funo ex-pectatorial no h fico, ento o teatro fica transformado emprtica espetacular da parateatralidade e a arte funde-se coma vida (DUBATTl, 2003, p. 23). Dubatti indica algumas situa-es de abduo potica como a do "Teatro Invisvel" introdu-zido por Augusto Boal, onde o espectador ingressa no espaodo acontecimento potico sem saber que est assistindo umacena teatral. No entanto, alm destas diferencias indicadas porDubatti para separar a teatralidade daquilo que ele identifi-ca como parateatralidade, interessa-me considerar essas si-tuaes de transgresso de espaos nticos e poticos, de en-trecruzamentos e liminaridades, ao refletir sobre alguns dosexemplos que me mobilizam.

    2.3 A teatralidade e o real.

    Considero importante referir-me ao pensamento que temdelineado as transformaes da teatralidade e seus entrecru-zamentos com outras artes, e que tambm tem considerado asprodutivas contaminaes com o universo do "real". Alm deHelga Finter (2003, p. 23-39]37, Hans Thies Lehmann (2002)38tem desenvolvido um amplo estudo sobre a teatralidade con-tempornea e especificamente atual. Oque ele observa e propecomo teatro "ps-dramtico" aquele que no quer permane-cer no formato tradicional de representao, mas que procura"l'approche d'une exprience inm diate du rel (temps, espace,corps)" (LEHMANN, 2002, p. 216). As transformaes sucedi-das na utilizao dos signos teatrais tm flexibilizado as deli-mitaes que separavam o gnero teatral de prticas que, comoa performance art, tm tendncia a produzir uma experincia37 "Espetculo do real ou re alidade do espetculo? Notas sobre a teatralidade e

    o teatro recente na Alemanha". Revista Teatro ai Sur, n. 25. out. 2003, BuenosAires: p. 29-39.

    38 Le Th tre postdramatique. Paris : LArche. 2002 .

    42 Ileana Diguez Caballero

  • concreta, e tm propiciado o surgimento de um espao liminarentre a performance e o teatro. Lehmann (2002, p. 216) propeum teatro que se aproxime ao "qeste de l'auto-repr sentation dupeformer", que s'affirme-t-il comme un processus et non commersultat, objet artistique accompli, comme une action et produc-tion plutt que comme produit (LEHMANN, 2002, p. 165). Surgeassim uma problemtica que tem-se convertido em objeto de re-flexo para alguns praticantes do teatro e da qual podem derivarcomplexos questionamentos sobre as produes ficcionais e ostatus mesmo da fico.

    Retomar o debate sobre a relao presena/representa-o, interpretao/no interpretao, actinq/not actinq, nosremete a meados do sculo XX, quando Michael Kirby propu-nha suas ideias sobre uma interpretao "no matrizada" paraexplicar o novo teatro norte-americano, levando-nos de volta aArtaud, o primeiro que atacou um teatro que se converteu "emuma funo de substituio" (ARTAUD, 1969, p. 61. 191)39, comotambm nos leva a Grotowski, ao Living Theater, e a Sob Wilson,entre outros.

    Lehmann no concebe o ator como um representante, mascomo produtor de autorepresentaes, como "le performer quioffre sa prsence sur la sc ne" (LEHMAN N, 2002, p. 217). O cor-po do ator rejeita seu papel de significar, j no portador desentido, mas "dans sa substance physique et son potentielgestuel"(LEHMANN, 2002, p. 150). Ainda que Lehmann reintroduza umolhar terico que ajuda a pensar as atuais problemticas cni-cas, o acento que coloca na "prsence auratique" e na manifes-tao do "r el sensoriel" no suficiente para explicar a cargapoltica da presena nas teatralidades dos contextos que preten-do estudar. O corpo do ato r, do praticante ou executante cnico- corporalit autosuffisante, assinala Lehmann (2002, p. 150) -no somente uma presena material que executa uma partituraperformtica dentro de um marco autorreferencial e esttico. Ocorpo do executante de um sujeito inserido numa coordenada3') ''Afirmo que a cena um lugar fsico e concreto que exige ser ocupado e que se

    lhe permita falar a sua prpria linguagem concreta" (ARTAUD, p. 61).

    Cenrios Iiminares (teatralidades. performances e poltica) 43

  • cronotr pica'", a presena um ethos que assume a sua fisici-dade, mas tambm o fato tico do ato, e as derivaes da suainterveno. A condio de performer", tal e como se tem enten-dido na arte contempornea, enfatiza uma poltica da presenaao implicar uma participao tica, um risco nas suas aes semque as histrias e as personagens dramticas sirvam de pretex-to para encubrir seus atos.

    A discusso desse tema ganha outra elaborao no estu-do de Maryvonne Saison, Les thtres du rel, para quem almda "ph m rit ontoloqique"" est o problema da dimensocvica e poltica da teatralidade. Em dilogo com a conside-rao de Dubatti (2003b, p. 15), de que o convvio quemoutorga dimenso poltica ao teatro, entendo a afirmao deSaison: "Par la reconduction 'du geste entier de la convocation ;dans un 'espace de la mise en commun dans la cit; le thtrese fait t'embl me de l'ajointement essentiel de l'art et du poli-tique" (SAISON, 1998, p. 8). Embora a inquietude do realesteja presente no pensamento cnico contemporneo, existetambm um desvio na percepo espontnea daquilo queconstitui nossa realidade ("le rel, aujourd'hui, est occult"),donde "[l]e constat de l'occultation fonde la dtermination desmetteurs en sc ne provoquer, par le thtre, l'accs au rel"(SAISON, 1998, p. 13). Se na verdade esta pesquisadora refletesobre a crise da referncia na teatralidade contempornea, oproblema do real no fica reduzido presena do execu-tante nem ao acontecimento real que ocorre e gera umareflexo dentro do marco esttico: "l'autonomie du thtre etl'auto-rfrence artistique ont pour consquence immdiate,comme le soullqnait Christian Schiaretti en 1990 [...], une ir-responsabilit et une irralisation de l'art thtral" (SAISON,1998, p. 16).

    40 No sentido bakhtiniano, as coordenadas espao/tempo nas quais SI! produz (J ato.4 1 "l.art action et de performance est un gigantesque analyseur. c'est uussi la

    responsabilit d'un protagoniste -ici un artiste- de subir et d'u.qlrduns um espace-temps performatif" (MARTEL, 2001, p. 35).

    42 O teatro no existe mais do que "dans la rencontre phmre un publlc"(SAISON,1998, p. 7).

    44 Ileana Diguez Caballero

  • Procurando outras formas de dilogo com o real, o teatrona atualidade no se empenha nos problemas da tematizaonem da demonstrao didtica, mas tambm no se pode assu-mir que a transgresso semitica ou a crise da referncia ser asoluo para a sada dos lugares tradicionais ou comuns. Almda especializao e da hiper-reflexo, o retorno ao real faz umapelo ao entrecruzamento entre o social e o artstico, acentuan-do a implicao tica do artista". No olhar terico de Saison, o"real" tem presena prpria sem nenhuma mediao, da o seuconceito de effraction, irrupo direta da prpria realidade so-bre a cena. Interessa-me aproximar esta ideia noo de "trans-parncia social" proveniente da esttica relacional, j que ambosos olhares - o olhar de Saison e o de Bourriaud - no considerama obra de arte como absolutamente autorreferencial, mas a de-volvem prxis vital em consonncia com os delineamentos quePeter Brger fez em seus estudos sobre a arte de vanguarda.

    2.4 Esttica relacional

    A denominao foi criada por Nicolas Bourriaud, escritor,terico e curador de arte, fundador e co-diretor da galeria pari-siense Palais de Tokyo (janeiro de 2002), a partir da observaoda obra de um grupo de artistas com quem conviveu e trabalhoudurante os anos noventa. Seu interesse foi o de reunir criadoresque no trabalhassem nos formatos clssicos, mas que optassempor suportes culturais mais interconectados, mais contaminados,e que estivessem interessados em propor a arte no como objetode contemplao, mas como um objeto de uso e comunicao, ofe-recendo servios de designers de salas de estar e leitura.

    A esttica relacional estabelece o estudo da arte rela-cionai, que nas palavras de Bourriaud aquela arte que tomacomo horizonte a esfera das interaes humanas e o seu con-texto social - mais do que a afirmao de um espao simbli-

    43 "Citoy ens-artistes, ceux qui se dsignaient comme 'gens du spectacle' sortirent deleur terrain d'action 'professionnel' pour faire basculer I'implicite mobilisationcivique et politiqu e des arts scniques et de leur public vers un engagementconcret sur le terrain de la r alit" (SAlSON,1998, p. 20) .

    Cenrios liminares (teatralidades, performances e poltica) 45

  • co autnomo e privado -, inserido no auge da cultura urbanae no desenvolvimento dos projetas das cidades (BOURRIAUD,2001, p. 14); uma arte que afirma o seu estatuto relacionalem graus diversos entre diferentes modalidades artsticascomo fator de socializao e estabelecimento de dilogo(BOURRIAUD, 2001, p. 15).

    Recuperando o conceito de interstcio - espao para as re-laes humanas que sugerem possibilidades de intercmbio di-ferentes das que esto em vigor dentro do sistema (BOURRIAUD,2001, p. 16), quer dizer, um espao alternativo - Bourriaud pro-pe sua ideia da obra de arte como interstcio social, que ampli-fica-se na compreenso da arte como prtica social alternativa ecomo projeto poltico" e que favorece um intercmbio diferen-te do intercmbio das 'zonas de comunicao' que nos so im-postas (BOURRIAUD, 2001, p. 16). As poticas intersticiais pro-pem tecidos conectivos alm das classificaes estabelecidas edos sentidos fixos, e validam a arte como "un tat de rencontre"(BOURRIAUD. 2001, p. 18).

    Acriao artstica, um produto do trabalho humano, abertaao dilogo, discusso e negociao inter-humana, est imersana esfera relacional. Colocando em crise a ideia da autonomiada arte, esta retomada como fundadora de dilogo; alm dasnoes de artista e de espectadores, todos podem ser criadorese participantes, propondo novas modalidades de happenlnq":

    A arte relacional prope um dilogo crtlco com oSituacionismo francs, movimento liderado por Guy Deborddesde a fundao, em 1957, da Internacional Sltuaclonlsta, eque alcanou o seu auge durante os movimentos revolucio-nrios, no ms de maio, na Frana de 1968. Revitalizando oesprito dadasta que afirmava a soberania da surpresa e quesugeria um novo "uso" da vida, o Situacionismo procurou asubstituio da representao artstica pela "construo de

    44 "Uart contemporain dveloppe bel et bien un pro}et po/ltJqU' qllund /I 1/'lIl/ilr('1!d'investir la sph rerelationnelle en la problmatisant" (BOURRIAUD. ZOO\, p.17).

    45 La 'participation' de spectateur thorise par les happ"nlnlll.t ,,, p.r!brmun('l!sFluxus, est devenue une constante de la pratique artlstlqu," (IOURRIAUD, 211111,p.25).

    46 Ileana Diguez Caballero

  • situaes", entendendo estas como momentos da vida forma-dos pelos gestos e aes de um cenrio vivo, organizadas cole-tivamente como um jogo de acontecimentos. O Situacionismonegou a separao entre criadores e espectadores e props anoo de 'vivedores', debateu a concepo da esttica basea-da na contemplao e transcendncia do belo, e considerou aatividade cultural como um mtodo de construo experimen-tal da vida cotidiana. Para Bourriaud, o implacvel diagnsti-co de Guy Debord sobre as produes espetaculares carece daperspectiva necessria para considerar novos modos de rela -es que possibilitem o seu destronamento. Nas palavras deBourriaud (2001, p. 89), as obras que conformam um mundorelacional atualizam o projeto situacionista e reconciliam estecom o mundo da arte.

    Arte como um "estado de encontro" - afirmao deBourriaud (2001, p. 16) - sublinha a dimenso convivial e so-cializante - arte como lugar de produo de uma socializaoespecfica- no necessariamente no nvel de coletividadesmassvas, mas tambm de micro-comunidades e micro-en-contros que testemunham as efmeras relaes com o outro.Quando Bourriaud exemplifica o surgimento de uma micro--comunidade na ao desenvolvida por [ens Haaning (Turkish[okes, 1994) ao transmitir, por meio de caixas de som, hist-rias humorsticas em turco, numa praa de Copenhague, con-seguindo que os emigrantes se juntassem num momento bre-ve de sorriso coletivo, que inverte a sua condio de exilados(BOURRIAUD, 2001, p. 17), desenhando uma utopia da proxi-midade, imediatamente percebo uma relao com o conceitode communitas liminar proposto por Turner. Particularmenteporque muitas das aes artsticas s quais Bourriaud faz re-ferncia, apontam - como tambm acontece nas prticas dasquais me aproximo - a emergncia de estados efmeros deencontro que do espao a gestos de dissidncia e de dife-rena, e que por isso mesmo invertem as relaes com o quenos rodeia, carnavalizando de alguma maneira estas relaes,embora num tempo muito breve.

    Cenrios liminares (teatralidade s, performances e poltica) 47

  • 2.5 Hibridez e subverso cultural.

    Comentando as declaraes da artista visual afro-norte--americana Rene Green a propsito do uso da escada numa ins-ralao". Homi Bhabha prope a liminaridade como espao paraa representao da diferena cultural, estendendo, a partir da,uma srie de associaes como "entre-meio", "tecido conectivo","passagem intersticial", situao "onde se negociam as experin-cias inter-subjetvas" (BHABHA, 2002, p. 18).

    Tanto o liminar quanto o intersticial permitem estabele-cer a problemtica de criaes artsticas que so colocadas emzonas complexas do real. No pensamento de Bhabha o liminar vinculado hibridez cultural e sua inevitvel condio frontei-ria, onde so desenvolvidas as tradues culturais como aesinsurgentes.

    Hibridez um conceito procedente da biologia, transpos-to s anlises lingusticas e socioculturais, operando como umametfora terica. Bakhtin (1989, p. 175) observa a hibridaocomo uma das modalidades principais da conscincia histricae do processo de formao das linguagens" mas nos espaos ar-tsticos e literrios, particularmente na novela, definida comoum procedimento (ou sistema de procedimentos) intencional noqual so misturadas duas linguagens sociais, duas conscinciaslingusticas diferentes (BAKHTIN, 1989, p. 174). Para Bakhtin(1989, p. 177), o hbrido novelesco - e podemos lev-lo ao amploterritrio da arte - um sistema de combinaes de linguagensorganizado, intencional e consciente, a partir do ponto de vistaartstico. A hibridao est estreitamente vinculada confron-tao dialgica de linguagens. A pardia e toda palavra utilizadacom reserva, colocada entre aspas de entonao, por exceln-cia um hbrido intencional dialgico (BAKHTIN, 1989, p. 442).

    A hibridao foi tambm um fenmeno observado por

    46 Ver a introduo de Bhabha em O lugar da cultura.47 ".. todo enunciado vivo numa linguagem viva . de certa forma, um hbrido"

    (Bakhtin, 1989, p. 177). Todas as referncias sobre as hbrtdaes tlngufsttcas sotomad as dos estudos e pesquisas de Bakhtin reco pilados em 1rorfa Y flstt/c:a danovela, livro publicado em 1975 , ano em que morre o destacado lHltllltlfIIsofu.

    48. Ileana Diguez Caballero

  • Bakhtin nos seus estudos sobre a cultura popular e as configu-raes grotescas, no contexto de Rabelais. Introduz a noo de"corpo hbrido" para nomear as galerias de imagens de sereshumanos extraordinrios (metade homens, metade bestas), gi-gantes, anes e pigmeus, "fantasias anatmicas" que povoavama literatura, e que, em sua opinio, influenciaram a concepogrotesca do corpo na poca medieval.

    Problematizando o conceito de hibridao e acentuandoas contradies e o uso do termo, Nestor Garcia Canclini (2001,11I)48 presta especial ateno ao estudo dos processos sociocul-turais que combinam estruturas ou prticas discretas para geraroutras estruturas, prticas e objetos que, longe de construir para-sos harmnicos, devem ser entendidas como zonas de conflito.Estuda a natureza poltica do conceito a partir do complexo cam-po das cincias sociais para evidenciar conflitos gerados na inter-culturalidade latino-americana, onde a hibridez possui uma longatrajetria, representando a "dupla perda" que no consegue maisreferenciar e legitimar paradigmas (CANCLINI, 2001, p. 307).

    Para Bhabha (2002, p. 24), a constituio paradigmticada hibridez pode ser observada na cultura do emigrante, pois uma cultura da ssobrevivncia que trabalha "nos interstciosde um espectro de prticas". Da suas referncias s criaes deartistas que vivem nos interstcios das culturas, reinventandosuas vidas e suas prticas. Tanto o liminar como o fronteirioimportam como condio vivencial. Perguntas radicais so esta-belecidas com a experincia do artista migrante que a partir do"no territrio" e da relao complexa com o outro elege a artehbrido-fronteiria do perforrntico"?como uma maneira de "as-sumir uma atitude ante o mundo"?' As criaes e as prprias re-flexes do performer chi cano-mexicano Guillermo Gmez Pefia

    4" Culturas Hbridas, particularmente a edio 2001. com a introduo '11s culturashbridas nos tempos da globalizao ':

    4'1 O termo performtico tem sido sugerido para o contexto latino-americano pelapesquisadora Diana Taylor. Ver "Hacia una definicin de performance". Conjunto126, Casa de las Amricas, sep-dic, 2002.

    50 Anotaes da autora durante o curso "ExCentris", ministrado por GuillermoGmez Pena no Museu Universitrio de Chopo, 12 a 16 de maio de 2003.

    Cenrios Iiminares (teatralidades, performances e poltica) 49

  • constituem interessantes espaos para a anlise desta questo.Acondio polmica do hbrido e do fronteirio est condensadaem sua escritura:

    Na verdade eu opto pelo "fronteirio" e assumo a minha conjun-tura: vivo justo na fenda de dois mundos, na ferida infestada, ameio quarteiro do fim da civilizao ocidental e a quatro milhasdo princpio da fronteira do Mxico com os Estados Unidos deAmrica, no ponto mais ao norte da Amrica Latina . Na minhamulti-realidade-fraturada, ainda realidade, co-habitam duashistrias, linguagens. cosmogonias, tradies artsticas e siste-mas polticos drasticamente opostos (a fronteira o enfrenta-menta contnuo de dois ou mais cdigos referenciais)[.