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CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO UNIFAI Thomas Antonio Baptista A Narrativa Simbólica do Cinema e a Representação do “Real” na História São Paulo 2009

CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO UNIFAI LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Fotografia tirada na Ilha de Iwo Jima 47 Figura 2 – Fotografia tirada na Guerra do Vietnã 47 Figura 3

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CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO

UNIFAI

Thomas Antonio Baptista

A Narrativa Simbólica do Cinema

e a Representação do “Real” na História

São Paulo

2009

1

THOMAS ANTONIO BAPTISTA

A Narrativa Simbólica do Cinema e a

Representação do “Real” na História

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

ao curso de História, para obtenção parcial do

grau de Licenciatura em História.

ORIENTADOR: Prof. CLÉZIO DOS SANTOS

CO-ORIENTADOR: Prof. Dr. JOSÉ ANTÔNIO DA COSTA FERNANDES

São Paulo

2009

2

THOMAS ANTONIO BAPTISTA

A Narrativa Simbólica do Cinema e a

Representação do “Real” na História

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

ao curso de História, para obtenção parcial do

grau de Licenciatura em História.

Aprovado em dezembro de 2009.

3

À memória de Claude Lévi-Strauss (1908-2009).

4

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. José Antônio da Costa Fernandes, cujas aulas tornaram essas epifanias “reais”.

Aos professores do curso de História da UNIFAI, que me revelaram os autores que me

formaram como sujeito da História.

Aos meus amigos e amigas pelas conversas infindáveis sobre o tema deste trabalho.

5

RESUMO

A presente pesquisa aborda a narrativa simbólica do cinema representada por dois

filmes – A conquista da honra (2006, 131’) e Cartas de Iwo Jima (2006, 140’) –, ambos do

diretor norte-americano Clint Eastwood, a fim de demonstrar a contraposição da suposta

representação do “real” na História com o fato retratado pelos filmes, qual seja, a invasão e

conquista da Ilha de Iwo Jima, no Japão, realizada pelos Estados Unidos durante a Segunda

Guerra Mundial. O fato histórico ocorrido durante a ocupação da Ilha pelos Estados Unidos

pode ser analisado sob vários vértices, entre eles a visão americana, a visão japonesa e a

construção discursiva deste fato feita não apenas pelos dois povos, mas também pelo cinema

enquanto documento histórico e fonte de pesquisa. O desenvolvimento do trabalho se dará a

partir da análise da construção imagética desses dois filmes e da leitura de pensadores do

campo da História, além de realizar a análise da construção deste fato histórico por meio do

discurso sobre ele elaborado, com passeios pelos teóricos dos estudos de linguagem e da

filosofia.

Palavras-chaves: História – Discurso – Fato – Imaginário – Cinema

6

Plena pausa

Paulo Leminski Distraídos venceremos

Lugar onde se faz

o que já foi feito,

branco da página,

soma de todos os textos,

foi-se o tempo

quando, escrevendo,

era preciso

uma folha isenta.

Nenhuma página

jamais foi limpa.

Mesmo a mais Saara,

ártica, significa.

Nunca houve isso,

uma página em branco.

No fundo, todas gritam,

pálidas de tanto.

7

SUMÁRIO

1 Introdução 9

2 O Discurso e o Fato 13

2.1 Vestígios: as Diferentes Fontes 15

2.2 Escrituras: o Ensaio da Definição Perdida 19

3 O Cinema e a Narrativa Simbólica 23

3.1 Cinema: a Construção do Discurso Imagético 24

3.2 Narrativa Cinematográfica: a Terceira Margem do Discurso 28

3.3 Clint Eastwood e a Construção do Anti-Herói 32

4 A Construção Histórica Americana 39

4.1 A Verdade na Guerra: o Acontecido Desaparecido 41

4.2 Um Simulacro: a Névoa que Encobre o Real 45

5 Japão: um Construto Milenar 51

5.1 O Outro Irredutível e o Suicídio 52

5.2 General Kuribayashi: do Desejo à Irredutibilidade 57

6 Considerações Finais 67

Referências 72

8

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Fotografia tirada na Ilha de Iwo Jima 47

Figura 2 – Fotografia tirada na Guerra do Vietnã 47

Figura 3 – Tela “A liberdade guiando o povo” (Museu do Louvre, Paris) 48

Figura 4 – Carta ilustrada retirada do livro Cartas de Iwo Jima 66

Figura 5 – Carta ilustrada retirada do livro Cartas de Iwo Jima 66

Figura 6 – Tela “O espelho falso” (coleção particular) 71

Figura 7 – Capa do DVD dos filmes A conquista da honra e Cartas de Iwo Jima 77

9

CAPÍTULO 1

INTRODUÇÃO

“Mas o que me parece é que, no fundo, o vestígio só é vestígio com valor histórico, só é vestígio para o historiador, a partir do momento em que já faz parte de um discurso; antes, não é vestígio de história. Nesse sentido, o discurso está sempre presente. Mesmo uma data só se torna facto de História no seio do discurso que decidiu exumá-la da triste repetição do calendário” (LARDREAU, 1989: 37).

O ponto de partida da pesquisa deste trabalho foi a leitura do livro Diálogos sobre a

Nova História1, no qual Georges Duby, historiador ligado à nova história, e o filósofo Guy

Lardreau, travam um diálogo sobre fatos, discursos e interpretação. A indagação de Guy

Lardreau, mencionada na epígrafe acima, demonstra uma preocupação a respeito da gênese da

criação do fato histórico, e qual é esse trajeto percorrido onde estiveram as páginas das

escrituras e dos arquivos da História.

Podemos fazer aqui uma separação de interesse do estudo. Guy Lardreau é filósofo e,

por vezes, como a maioria dos filósofos, afasta-se do mínimo de positivismo que costumamos

dar ao fato histórico. Nesse caso, o fato histórico, como objeto, está muito mais perto de sua

apreensão por historiadores, mesmo de um historiador como George Duby, representante de

uma escola em que as narrativas ganharam a dimensão exata entre a ficção nas lendas e a

representação do Real: “A base filosófica da Nova História é a idéia de que a realidade é

social ou culturalmente constituída” (BURKE, 1992: 11)2.

Nesse sentido, procuramos um objeto de análise – um fato – que, para facilitar a

distinção de interpretações em nível comparativo, deveria ser vivenciado a partir de culturas

díspares. Delimitamos, assim, o campo da busca pelo objeto e as ferramentas que teríamos em

mãos para analisá-lo. Encontramos quase no final da Segunda Guerra Mundial, numa pequena

Ilha vulcânica de nome Iwo Jima, o nosso pretexto, para intervirmos naquilo que desejávamos

interrogar.

1 Ver George Duby & Guy Lardreau, Diálogos sobre a Nova História (Lisboa: Dom Quixote, 1989). 2 Fernand Braudel usou pela primeira vez o termo “História Nova” em aula inaugural no Collége de France (1950).

10

A batalha na Ilha de Iwo Jima, ao final da guerra, determinou de um lado quase 20 mil

japoneses mortos (mais de 90% dos soldados) – a maioria por suicídio quando a derrota era

iminente –, e de outro 6 mil soldados norte-americanos – que encontraram uma resistência de

35 dias, muito mais do que qualquer analista poderia considerar.

Nesse ponto, tínhamos as peças: duas culturas dessemelhantes e o tabuleiro teórico,

encontrado na análise discursiva, em autores pós-estruturalistas como Roland Barthes, Gilles

Deleuze, Jacques Derrida e, principalmente, Michel Foucault. Poderíamos, assim, nos ater a

filosofar sobre os aspectos das duas culturas, afastando-nos do positivismo histórico, porém

com o apoio de autores da Escola dos Annales, tanto os da primeira geração (Bloch, Braudel e

Febvre) como os da segunda geração (entre eles, de acordo com Burke, Le Goff e Duby). A

interação da História com a Antropologia, a Sociologia e a Filosofia sedimenta nossa crença

nos múltiplos enunciados e interpretações: “Não há enunciado que não suponha outros, não há

nenhum que não tenha em torno de si um campo de coexistências” (Foucault, 1986: 14).

Deflagrada essa disputa entre inconsciente e imaginário, escolhemos o Cinema como

ferramenta mediadora entre a construção narrativa do Real pelo historiador e o discurso:

pródigo na construção simbólica, mestre na edificação dos mitos modernos e presente na

estrutura contemporânea de coleção de imagens. Para isso, foi necessário o estabelecimento

de algumas distinções, já que o cinema se faz presente no campo da História de várias

maneiras: a) como fonte e objeto da História (documentários de guerra, por exemplo); b)

como produto de propaganda política (utilizado pela Alemanha nazista e pela ex-União

Soviética, entre outros casos); c) como fruto da autoria de diretores, escritores e produtores,

que fizeram do cinema um veículo capaz de eternizar o simbólico e o imaginário de gerações

distantes, de povos inatingíveis e da cultura popular.

No caso do fato histórico específico que analisamos neste trabalho – a invasão da Ilha

de Iwo Jima durante a Segunda Guerra Mundial –, vemos uma certa dose de sorte por termos

dois filmes dirigidos por Clint Eastwood. Ele foi contratado para dirigir o filme A conquista

da honra (2006), mais relacionado aos soldados retratados na fotografia norte-americana de

Louis Lowery (no hasteamento da bandeira dos Estados Unidos no monte Suribachi) do que

propriamente à guerra. Esse episódio gerou, por um lado, um monumento em Washington,

simbolizando os soldados americanos daquela foto e, por outro, acusações de que a fotografia

havia sido apenas uma encenação para vender bônus de guerra à população americana.

11

Durante as filmagens, o diretor Clint Eastwood realizou gravações in loco na Ilha de

Iwo Jima, e esse contato com a cultura japonesa fez com que descobrisse a existência de

cartas enviadas pelo tenente-general Kuribayashi, comandante-maior na Batalha de 1944, a

sua família. Após essa experiência, Eastwood decidiu realizar também o filme Cartas de Iwo

Jima (2006), baseado em livro homônimo e que mostra o mesmo conflito a partir da singular

perspectiva japonesa. Este filme pode ser visto como um contraponto ao filme americano; foi

filmado em preto e branco, com elenco de atores japoneses, e é falado apenas em japonês.

Eastwood produziu, assim, duas peças de interpretações distintas – portanto, com diferentes

pontos-de-vista – sobre o mesmo fato histórico.

Para desenvolver essa proposta, o trabalho ora apresentado está dividido em quatro

capítulos, além de introdução (capítulo 1) e conclusão (capítulo 6). No capítulo 2, buscamos

desvendar os caminhos entre o fato e o discurso, trabalhando com o objeto histórico desde sua

aparição, como vestígio ou fonte, até sua apreensão, já depurado pelos escritos históricos.

Para isso tratamos não só dos conceitos de escrita, escritura e suas definições, entre outros,

mas também sobre como eles foram, ao longo do tempo, sendo influenciados pela

interdisciplinaridade e transformando os conceitos de fonte, fato e História. Como atesta Peter

Burke:

Em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de

acontecimentos por uma História problematizadora. Em segundo lugar, a história

de todas as atividades humanas e não apenas a história política. Em terceiro lugar,

visando completar os dois primeiros objetivos, a colaboração com outras

disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a economia, a lingüística, a

antropologia social e tantas outras (BURKE, 1997: 12).

Desses “casamentos” com outras disciplinas, o mais rentável academicamente foi

aquele com a Antropologia. Historiadores da Nova História bebiam das fontes do

estruturalismo de Lévi-Strauss e dos trabalhos sobre fronteiras e intercâmbios culturais de

Marcel Mauss, assim como Jacques Le Goff utilizou-se da Antropologia Cultural para

dissecar a Idade Média3. Para Burke, no livro A escola dos Annales, esse intercâmbio é

definitivo:

3 Entre outras obras, Le Goff utilizou-se da Antropologia Cultural em “Ritos da vassalagem”, capítulo publicado no livro Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente (Lisboa: Stampa, 1980), buscando o simbólico na vida social.

12

Tudo o que os historiadores anteriores pareciam desejar de sua disciplina

vizinha era a oportunidade de sobrevoá-la, de tempos em tempos, em busca de

novos conceitos. Alguns historiadores das décadas de 70 e 80, contudo,

demonstraram intenções mais sérias. Podiam mesmo pensar em termos de

casamento, em outras palavras, em termos de “Antropologia Histórica” ou de

“Etno-História” (BURKE, 1997: 94).

Tendo apresentado esse capítulo, passemos aos seguintes. Construímos capítulos

interligados pelo mesmo objeto de análise. O capítulo 3, de caráter predominantemente

teórico, discorre a respeito do cinema, inicialmente tratando da construção imagética na

sedimentação dos mitos modernos e dos discursos. Não poderíamos deixar de citar neste

capítulo a influência de algumas tendências cinematográficas, como a nouvelle vague e o neo-

realismo italiano, no trabalho de diversos historiadores. Ainda nesse capítulo, tratamos

especificamente do realizador e ator norte-americano Clint Eastwood e das influências que

recebeu, enquanto diretor, de grandes nomes do cinema clássico, entre eles Sergio Leone.

Mais que isso, apontamos como a construção do herói mitológico em seus filmes é próxima

àquela desenvolvida por autores como Roland Barthes, referência fundamental neste trabalho.

Para finalizar, temos dois capítulos irmanados e interligados por um personagem

central: o general Tadamichi Kuribayashi. O capítulo 4 refere-se à construção da verdade de

guerra delineada a partir do ponto-de-vista do povo norte-americano, totalmente díspar, sob

este aspecto, do capitulo 5, que trata da construção discursiva “milenar” do povo japonês. O

general Kuribayashi é apresentando em um tópico dedicado exclusivamente a ele porque foi o

único personagem que, tendo realizado parte de sua formação (por dois anos) nos Estados

Unidos, estava familiarizado com as duas culturas.

Esperamos que alguns limites e desafios do trabalho, como o fato de os dois filmes – A

conquista da honra e Cartas de Iwo Jima – terem sido realizados por um diretor norte-

americano – aspecto que, por si só, poderia negar uma necessária isenção – não interfira de

modo negativo na análise histórica proposta. Afinal, Clint Eastwood criou uma construção

imagética e estamos, ao longo deste trabalho, justamente caracterizando várias construções

possíveis para o entendimento da História. Nas palavras de Braudel, “globalidade não é querer

escrever uma história completa do mundo... é simplesmente o desejo, ao nos defrontarmos

com um problema, de ir sistematicamente além dos seus limites” (BRAUDEL, 1978: 245).

Braudel, quando perguntado se fazia uma “história total”, respondia: “Faço história,

simplesmente”.

13

CAPÍTULO 2

O DISCURSO E O FATO

“A realidade mais essencial é a mais escondida, não se situando nem na ausência do discurso, nem no explícito deste, mas no entremeio de sua latência, necessitando, portanto, de uma escuta ou leitura particular a fim de o revelar a si mesmo” (DOSSE, 1993: 336).

O tema proposto neste trabalho se justifica a partir de um conjunto de escolhas teóricas

e metodológicas. Por se tratar de escolhas, iremos privilegiar alguns dados e desconsiderar

outros em relação àquilo que é normalmente chamado de “fato histórico”, debruçando-nos

prioritariamente no que Michel Foucault chama de “interstícios dos discursos”, ou seja, nas

lacunas que há entre eles. Justamente essa construção discursiva é o que se encontra no

princípio do fato histórico, ou para sermos mais exatos, em sua gênese; na maioria das vezes,

essa construção é ignorada pelos historiadores clássicos, que vêem no próprio fato a síntese de

sua existência. Dessa forma, pretendemos investigar muito mais do que objetos e temas, pois

como afirma George Duby é possível investigar “o discurso que esses homens faziam sobre si

próprios” a fim de interpretar e construir um determinado fato histórico.

Essa margem que contorna o fato “real” é o que, justamente, leva o leitor ao infinito e

ao impossível. Nessa construção encontra-se o alicerce das sociedades modernas, situando o

tema em termos não apenas históricos, mas também atuais. Importante fonte de análise, o

cinema tem sido, muitas vezes, desconsiderado enquanto fonte para pesquisas acadêmicas no

campo da História (ainda que haja historiadores que trabalhem as relações entre cinema e

história)4. Por ter uma realidade interpretativa diversa, o cinema passa ao largo dos cursos de

História e sua intertextualidade é em geral desconsiderada. Na proposta que desenvolvemos,

ele se torna não apenas fonte mas também lugar de criação de discursos e, portanto, espaço

para a construção de fatos históricos representativos da sociedade contemporânea.

4 Entre eles, podemos citar o trabalho de Maria Helena Capelato e de um grupo de pesquisadores reunidos no livro História e cinema (São Paulo: Alameda, 2007).

14

É por esse caminho, estabelecendo um debate entre a narrativa cinematográfica e a

representação histórica, que iniciamos nosso trajeto.

Há de sempre criarmos uma diferenciação entre fatos e discursos. Não ao final do

processo, pois para o historiador não será possível enxergar tal diferenciação no resultado

obtido. Essa simbiose entre fato e discurso se dá no fazer-se. Seria imperativo, portanto,

voltarmo-nos às ruínas iniciais, aos vestígios do entremeio e ao leve fantasma discursivo para

podemos rastrear essas diferenças.

Para o desenvolvimento do tema deste trabalho temos então, no início, dois processos

em andamento: o primeiro, a invasão da Ilha de Iwo Jima vista pela ótica dos soldados

japoneses que tentavam uma resistência; o segundo, mais complexo em relação à formação do

fato histórico, o rastro criado pela fotografia norte-americana que se tornaria ícone da

Segunda Guerra Mundial. Esta foto, como veremos adiante, foi tirada por Louis Lowery,

segundo-sargento dos fuzileiros navais americanos, e publicada pela Leatherneck Magazine,

revista dos fuzileiros navais.

Nesses dois processos, apontamos de início, de maneira simples, uma inconsistência

para quem acredita na “verdade absoluta dos fatos”: povos distantes, separados por

construções distintas, com olhares diferenciados sobre o mesmo objeto – a Ilha de Iwo Jima5.

Iwo Jima está situada ao sul de Tóquio, sendo considerada pelos especialistas como ponto

geográfico crucial na Guerra do Pacífico, travada entre Estados Unidos e Japão. Essa Ilha

vulcânica com 8 quilômetros de extensão é composta por várias montanhas, sendo uma delas

de 161 metros de altitude – o monte Suribachi, local que seria usado para hastear a bandeira

americana em solo japonês, indicando a conquista daquele território.

O conflito que resultou na morte de 20 mil japoneses (a maior parte por suicídio) e de

aproximadamente 6 mil fuzileiros americanos, totalizando mais de 20 mil feridos, foi

estendido por 35 dias e disputado em trincheiras não-aparentes durante a Segunda Guerra

Mundial, no ano de 1944. Tática de guerra japonesa, o banzai (defesa em massa do litoral) foi

deixado de lado: a disputa se deu em cavernas cavadas a duras penas pelos soldados japoneses

(ao final já não havia água potável nem comida). Esse conflito subterrâneo se deu não só em

plano concreto, mas também no campo da inter-relação subjetiva de dois povos díspares que

tinham em comum, entretanto, um general japonês (chamado Tadamichi Kuribayashi) que

havia realizado parte de sua formação militar nos Estados Unidos. Tal personagem, devido a

5 Torna-se mais evidente para nossa compreensão colocarmos como objeto algo pertencente ao mundo inanimado – uma ilha.

15

sua importância enquanto elo de ligação entre as duas culturas, será abordado posteriormente,

em capítulo específico deste trabalho.

Quanto aos americanos, o rastro deixado pela fotografia de seis fuzileiros navais

hasteando a bandeira do país em solo japonês é inestimável para a análise do discurso

histórico que se criou desde então nos Estados Unidos, apontando justamente as relações entre

os discursos e os fatos quando tratamos da História e de seus acontecimentos. Dos seis

fuzileiros retratados na foto que virou também monumento, apenas três sobreviveram, e

sofreram um processo ambíguo, sendo em parte transformados em ícones pelo imaginário

norte-americano, em parte transformados em publicidade pelo governo para a venda de bônus

visando financiar o desfecho da Segunda Guerra Mundial. Além disso, uma parcela

minoritária da imprensa acusou-os de participar de uma farsa, já que a fotografia teria sido

montada em momento posterior ao evento nela mostrado, sendo que a “verdadeira” fotografia

determinava outros personagens, já mortos em batalha, e também um outro momento.

Para poder entender os subterrâneos desse conflito, discutiremos a seguir a formação

de fontes, fatos e escrituras à luz da História. Perseguiremos, assim, não a “verdade histórica”,

mas a construção da mesma por meio de discursos.

2.1. VESTÍGIOS: AS DIFERENTES FONTES

“O mistério – se quisermos a todo custo, pelas necessidades do discurso, dar uma figura àquilo que, por definição não a tem – pode ser representado como uma margem, uma franja que aperta o objeto, isolando-o ao mesmo tempo que sublinha a sua presença, mascarando-o ao mesmo tempo que o qualifica, inserindo-o num arlequim de fatos sem ligação nem causa assinaláveis, ao mesmo tempo que a cor particular com que ela o tinge o extrai do fundo pantanoso onde se misturam os fatos comuns” (LEIRIS, 1991: 24).

Naquilo que diz respeito às fontes, os vestígios estão e estarão umbilicalmente ligados,

não pelo concreto, não pelas realidades simplistas, mas pelos rastros visivelmente deixados,

principalmente, por quem confecciona essas relíquias. Não basta ao historiador encontrar as

ruínas, como livros em bibliotecas milenares ou assinaturas de casamentos em igrejas

seculares. É preciso realizar uma elaboração, fruto da interpretação visando o entendimento

daquilo que os signos e o imaginário humano deixam aparecer sem o poder do conhecimento

16

de seu criador. No caso dos textos, seria preciso mais do que sua descoberta, buscando o

estabelecimento de articulações sobre o lugar que teriam ocupado ou desempenhado no tecido

social de uma dada época. Como afirmou Tzvetan Todorov: “Um texto é apenas um

piquenique onde o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido” (TODOROV,

1987: 12).

Não há como negar que a prova essencial buscada pelo historiador não existe. Pois a

essência das interpretações da História é como o eco das palavras nos ouvidos do inconsciente

humano. Mesmo atentos, algo nos escapa, como escapou no momento exato que a suposta

prova foi concebida, ou quando o texto saiu do autor e chegou ao leitor. Henri Moniot tenta

desvendar essa teia complexa de acontecimentos e interpretações em seu artigo “A história

dos povos sem história”:

Podem ser distinguidas duas espécies de documentos. Aqueles que emanam

da comunicação dos homens entre si: eles falam, mantém um discurso – acreditou-

se às vezes que seria suficiente lê-los –, mas também são subjetivos, distinguem-se

tanto pela conivência como pela alteração, são de antemão portadores de uma

significação, mas definida em seu contexto de origem. E os outros, neutros e

taciturnos, vestígios ou elementos materiais e imateriais aos quais o próprio

historiador pode reconhecer um valor implícito de signo, índice, prova, testemunho

(MONIOT, 1976: 100, grifos do autor).

O texto de Moniot navega de volta a um tempo em que a História positivista não

permitia facultar a um povo sem escrita a sua história. Tempo no qual a Europa, como palco

do mundo, desconhecia outras representações culturais. No entanto, o eurocentrismo dominou

a ciência histórica até o início do século 20, quando novos antropólogos – entre eles Claude

Lévi-Strauss – ou, em particular, alguns historiadores franceses – entre eles Lucien Febvre,

Marc Bloch e Fernand Braudel –, criaram o que Peter Burke chama de “revolução francesa da

historiografia”, um permanente exercício de descentramento do olhar. Bem antes, no século

19, Friedrich Nietzsche (ainda que acusado por alguns de niilista) já dizia que: “Não existe

um fato em si. É sempre preciso começar por introduzir um sentido para que haja um fato”

(NIETZSCHE, 2008).

Por vezes disperso, o trabalho dos historiadores é amplo e ilimitado, porém o que

buscamos neste momento está enclausurado naquilo que Michel Foucault chama de “lacuna”,

a estreita passagem entre o real e a ficção, entre a verdade e o imaginário, entre a fé e a razão.

17

Essa busca lacunar nas fontes, sejam elas textos, imagens, lendas, relíquias, é a priori a

própria busca do historiador. Não há razão para operar apenas na superfície, não há razão para

ignorarmos o que a princípio parece intuição mas se torna algo puramente investigativo.

Nesse sentido, leiamos Roland Barthes quando fala do texto: “O brio do texto (sem o qual, em

suma, não há texto) seria a sua vontade de fruição: lá onde precisamente ele excede a procura,

ultrapassa a tagarelice e através do qual tenta transbordar, forçar o embargo dos adjetivos –

que são essas portas da linguagem por onde o ideológico e o imaginário penetram em grandes

ondas” (BARTHES, 2008: 20).

A positividade absoluta na História causou uma onda de aflição naqueles que já se

entrelaçavam com outros campos de conhecimento, tais como a filosofia e a antropologia. A

História teve que dar vazão ao fantasma dos objetos perdidos, ao sentimento dos textos não-

interpretados, aos povos sem escrita, e criou-se, assim, a História como multiplicidade de

fatores entrelaçados numa teia de relações sociais, como afirma Le Goff: “A crítica da noção

de fato histórico tem, além disso, provocado o reconhecimento de ‘realidades’ históricas

negligenciadas por muito tempo pelos historiadores” (LE GOFF, 2003: 11).

Não podemos, assim, vivenciar a construção do fato sem atestar o entrelaçamento do

discurso engendrado no seu núcleo. Para textos e historiadores do passado distante, é preciso

fazer o que Umberto Eco chama de “superinterpretação”: “As palavras trazidas pelo autor são

um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar passar

em silêncio, nem em barulho” (ECO, 1993: 28). Tentamos, assim, conduzir o texto histórico a

outras alamedas, como a psicanálise, por exemplo, já rejeitada por alguns historiadores. Essa

interposição da psicanálise ao texto histórico visa preencher o vazio que a negação positivista

deixou; por isso, Umberto Eco completa: “O leitor real é aquele que compreende que o

segredo de um texto é seu vazio” (ECO, 1993: 28).

Para empreender tal trajeto, damos abertura à interpretação do discurso histórico nos

apropriando da noção de “inconsciente” de Jacques Lacan (a partir dos estudos de Sigmund

Freud), que ao contrário de devaneios visa entender o cerne da construção dos fatos. Podemos

dizer que a linguagem é o modo provocador desse encontro disciplinar devido a sua estrutura

onisciente: “(...) é esta estrutura que dá seu estatuto ao inconsciente. É ela, em cada caso, que

nos garante que há, sob o termo de inconsciente, algo de qualificável, de acessível, de

objetivável” (LACAN, 1990: 26). Tratar do inconsciente, portanto, não é retirar o sujeito da

História mas, ao contrário, tecer uma História que se cria no seu âmago pelo assujeitamento,

já que para isso há um descontrole de seu próprio criador. Seria preciso, no entanto,

18

afastarmo-nos do determinismo histórico ou das dúvidas de quem acredita que o discurso,

sendo constituinte de uma sociedade, seja impossível de ser alterado. Freitas define esses

perigosos caminhos: “Mas os discursos e, portanto, as realidades que fundam e definem, não

são quaisquer: são articulações (relações) determinadas, estruturam o mundo histórico-social e

são por ele estruturadas. Além disso, são passíveis de transformações e têm funções”

(FREITAS, 1997).

A exclusão de Freud não é prerrogativa apenas da discussão histórica: sempre que a

pureza da análise não é obedecida, o rigor afasta o que poderia ser uma interseção. Louis

Althusser fala sobre esses “filhos indesejados”:

Sabemos que no decurso do século 19 nasceram duas ou três crianças que

não eram esperadas: Marx, Nietzsche, Freud. Filhos “naturais” no sentido em que

a natureza ofende os bons costumes, o direito, a moral e o bom-viver: natureza, isto

é, regra violada, a mãe solteira, a ausência de pai legal. A uma criança sem pai, a

Razão ocidental fá-lo pagar caro (...): um preço contabilizado em exclusões,

condenações, injúrias, miséria, fome, morte ou loucura (ALTHUSSER, 1964: 161).

Ao pensamento althusseriano, vale aqui um adendo: o cinema. Pior para a Razão

ocidental do que os filhos sem pai representados pelos autores citados, este nasceu órfão, pois

seu criador apenas inventou seu maquinário. Porém, depois de liberto de seu orfanato

mecânico, o cinema ganhou todos os pais do mundo, viajando entre o ocidente e o oriente,

sem nunca montar uma família. Como ousamos?, diria a Razão, colocar imagens em

movimento? Como ousamos transformar a loucura em prosa, o discurso em fetiche e o riso

em tragédia?

Após essa digressão, regressemos ao “Real” da História. Por meio do filósofo Guy

Lardreau, submetemos o seguinte questionamento:

Portanto, a questão que surge em primeiro lugar, como aquela que decide

propriamente da ordem das razões, é a que interroga o “passado”. A História,

como discurso, estear-se-á num real, real esvaecido, mas que insiste em regressar

ao ser? Ou será ela, como objeto, apenas suscitada pelo discurso que a nomeia,

puro efeito de nomeação? (LARDREAU, 1989: 13).

Poderíamos responder a essa indagação com a presença do discurso no germe da

nomeação pela História. Não nos interessa, porém, saber se a História é nomeadora ou

19

nominada, o que importa é que ela opera com o intercâmbio discursivo entre o sujeito coletivo

e o fato. Portanto, ao longo dos séculos, esses discursos infinitamente cambiados provocam o

sulco do leito de um rio. Por vezes modificamos a sua trajetória forçosamente, com um novo

destino e paragens. Não obstante, em tempos difíceis e de grandes tempestades, o rio tende a

voltar a seu curso natural. Como Michel Foucault responderia a essa indagação? Arriscamos

uma possível resposta: “São os discursos que, indefinidamente, para além de sua formação,

são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer” (FOUCAULT, 2008b: 22).

2.2. ESCRITURAS: O ENSAIO DA DEFINIÇÃO PERDIDA

“Saber que não se escreve para o outro, saber que as coisas que vou escrever não me farão nunca amado por aquele que amo, saber que a escritura não compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente aí onde você não está – é o começo da Escritura” (BARTHES, 1990: 93).

Não há como nos desviarmos da marca que a escritura faz, não só no historiador que

interpreta determinada fonte, como também no corpo social, para o qual as definições estão

entre o que foi perdido no tempo e o clamor do discurso. Nesse ínterim entre o jogo da

negação e os aparecimentos, entre o escrever História ou simplesmente filosofar, encontramos

o transbordamento do significado. Jacques Derrida questiona sobre o jogo que convém à

escritura: “Poder-se-ia, desde então, passar esse singular limite que não o é, que não separa

mais o dentro do fora do que lhes assegura a permeável e transparente continuidade?”

(DERRIDA, 1995: 17).

Como todo jogo, a resposta de Derrida estará certamente perto do entrelace que o texto

primeiro tem com o seu interpretador. Intérprete que pode ser não apenas o historiador, mas

todo um coletivo social que instaura a escritura no discurso. Desse processo, poder-se-ia dizer

que abrange resíduos entre significações, como atesta Gilles-Gaston Granger:

Toda prática [especialmente a ciência] poderia ser descrita como uma

tentativa de transformar a unidade da experiência [individual] em unidade de uma

estrutura, mas esta tentativa comporta sempre um resíduo. A significação nasceria

20

das alusões a este resíduo, que a consciência laboriosa apreende na obra

estruturada e introduz como imperfeições na estrutura (GRANGER, 1974: 135).

A luta incessante entre significantes define a escrita da História através dos tempos e

traz um problema de insensato saber aos que desviam seu curso ou apagam propositadamente

as suas ruínas, pois como disse Michel de Montaigne “existe maior dificuldade em interpretar

as interpretações do que em interpretar as coisas” (MONTAIGNE, 1972: 316). Esse processo

pede ao “escritor da História” paciência e dedicação, pois a instauração do discurso sobre as

estruturas sociais é fruto da passagem do tempo, e daquilo que as relações sociais provocam

nesse prédio construído. Alguns “andares” da representação do “Real”, alguns “andares” de

lendas e de imaginário popular, algumas “portas e janelas” de signos e o elevador como

enunciado. Enunciado esse que Foucault correlaciona à língua: “Não há enunciado em geral,

livre, neutro, e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um

conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se

distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo” (FOUCAULT, 2008b: 114)6.

A memória nos fala – ou nos constrói como sujeitos – a partir de fragmentos de

estruturas que carregamos, na maioria das vezes, de modo inconsciente – principalmente por

meio de fontes, entre elas a tradição oral. Por outro lado, não há como distinguir a tradição

oral das escrituras históricas pois, em alguns casos, não podemos nem saber quem precede o

que. Essa relação entre enunciado e memória, complexa por definição, traz uma indagação

que vem de Foucault: “Poderíamos falar de enunciado se uma voz não o tivesse enunciado, se

uma superfície não registrasse os seus signos, se ele não tivesse tomado corpo em um

elemento sensível e se não tivesse deixado marcas – apenas alguns instantes – em uma

memória ou em um espaço?” (FOUCAULT, 2008b: 115).

Sabemos, portanto, que a escrita da História está inserida não só na lacuna que a

memória traz, mas também marcada pelo modo como o historiador preenche essa lacuna, de

forma não-dissociada do próprio sujeito e do seu inconsciente. O escritor da História é vítima

do seu próprio tempo (presente que emana deliberações), produzindo assim um material que

6 Preferimos definir enunciado a partir de Foucault: entremeado com toda a rede de tecido social. Foucault assim o define: “Ao invés de ser uma coisa dita de forma definitiva – e perdida no passado com a decisão de uma batalha, uma catástrofe geológica ou a morte de um rei – o enunciado, ao mesmo tempo em que surge em sua materialidade, aparece com um status, entra em redes, se coloca em campos de utilização, se oferece a transferências e a modificações possíveis, se integra a operações e em estratégias onde sua identidade se mantém ou se apaga. Assim, o enunciado circula, serve, se arquiva, permite ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra na ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriação ou de rivalidade” (FOUCAULT, 2008b: 114).

21

carece de interpretações e superinterpretações7, interligado não só à rede de relações que o

objeto de estudo produziu no passado, como também à rede de relações na qual o historiador

está ligado no presente. Michel de Certeau, em seu livro A escrita da história (1975), explica

um pouco esse trabalho do historiador:

Fazer História é estabelecer uma relação com o tempo. O gesto que afasta

a tradição vivida para torná-la objeto de um saber indissociável do destino da

escrita. Escrever História é gerar um passado, circunscrevê-lo, organizar o

material heterogêneo de fatos para construir no presente uma razão: é para uma

sociedade, substituir a experiência opaca do corpo social pelo progresso controlado

de um querer fazer. (...) Por estar ligada, assim, a um poder político, ela se define

pelo que inclui e pelas suas faltas. Incluindo e excluindo, fazendo escolhas,

portanto, o historiador executa operações que regulam a escrita da História: a

fabricação de um objeto, a organização de espaço e de tempo, a encenação de um

relato (DE CERTEAU, 1975: 65).

O devir da História está, portanto, na consciência – por parte do escritor – de que esse

emaranhado de entrecruzamentos sociais existe, e seu texto sempre carecerá de análises

buscando entender não o significado, mas apoderando-se da intenção do significante: “A

noção de estrutura e do significante aparecem inseparáveis. De fato, quando analisamos uma

estrutura é sempre, pelo menos idealmente, do significante que se trata” (LACAN, 1985:

210). Para Lacan, não há dúvida sobre a autoridade do significante, e é sempre a ele que

devemos estar atentos. Em relação às escrituras da História, teremos sempre que buscar a

definição mais precisa, mas é necessário lembrar que esse arquivo estará sempre aberto,

sempre sujeito às alterações do tempo, dos rumores sociais e das novas concepções

acadêmicas. As definições para objetos, palavras e enunciados virão sempre a posteriori do

escrito. Pêcheaux nos orienta:

É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o

que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve etc., evidências

que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queriam dizer o que realmente

dizem” e que mascaram, assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que

chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados

(PÊCHEAUX, 1997: 160).

7 Umberto Eco define “superinterpretação” como a similaridade entre textos e eventos que, por relações baseadas na individuação, ligam-se uns aos outros, microcosmos e macrocosmos.

22

Pêcheaux trata as escrituras da História como parte integrante de seu próprio núcleo.

Arquivos das palavras que retornam para si mesmas após a sua apreensão, naquilo que

Pêcheaux chama de “práticas silenciosas de leitura espontânea”. Por tudo isso, é preciso

entender que não há início e não há fim nessa construção: na História, como no poema de

Paulo Leminski transcrito na epígrafe inicial deste trabalho, “não há páginas em branco”. A

gênese da escritura histórica seria como aquele minuto antes do amanhecer, pura inapreensão

da Razão. Voltemos ao poema de Leminski: “Lugar onde se faz o que já foi feito / branco da

página, soma de todos os textos / foi-se o tempo quando, escrevendo, era preciso uma folha

isenta. / Nenhuma página jamais foi limpa, / mesmo a mais Saara, ártica, significa. / Nunca

houve isso, uma página em branco. / No fundo todas gritam, pálidas de tanto” (LEMINSKI,

1987: 29).

Ferramenta na construção de discursos, o cinema é um forte aliado para pensarmos a

História não apenas como escrita, mas também como interpretação: este o sentido da

expressão “escrituras da História” que utilizamos neste capítulo, sobre a qual nos curvaremos

nos capítulos seguintes, guiados pelas mãos de Clint Eastwood nos filmes analisados.

23

CAPÍTULO 3

O CINEMA E A NARRATIVA SIMBÓLICA

“O cinema deve exprimir as linhas de forma da existência e se preocupar menos em ser cópia da realidade” (CLAUDE CHABROL).

O cinema, desde o primeiro cinematógrafo (do francês cinématographe, composto dos

elementos gregos “movimento” e “escrever”) inventado pelos irmãos Lumière8, possui uma

trajetória diferente de outras artes. Nasce como uma invenção da ciência e rompe a escravidão

comum aos objetos inventados, passando a fazer parte da História e dos sonhos da sociedade

humana. A partir de sua primeira imagem – tentativa de efeito de realidade – da locomotiva

avançando sobre o público, o cinema tem se integrado a todos os movimentos narrativos da

arte, política e literatura do século 20 até hoje. Foi quando rompeu as amarras do “real”,

quando saiu do trilho previsível de sua própria existência, que o cinema sublimou a

concretude das sociedades que o produzem.

Nas suas interações, o cinema produziu simbolismos ímpares com diversos pares: no

expressionismo alemão, com Fritz Lang (Metrópolis, 1927); no surrealismo, com Luis Buñuel

e Salvador Dalí (Um chien andalou, 1928); no neo-realismo italiano, com Roberto Rossellini

(Roma, cidade aberta, 1945, e Paisá, 1946) e Vittorio de Sica (Vítimas da tormenta, 1946, e

Ladrões de bicicleta, 1948). A chamada “sétima arte” esteve ao lado do poder, como na

Alemanha nazista e na União Soviética dos primeiros anos da Revolução de 1917, mas

também ao lado da resistência, como no nuovo cinema italiano, na nouvelle vague francesa ou

8 O cinema é possível graças à invenção do cinematógrafo pelos Irmãos Lumière no fim do século XIX. Em 28 de dezembro de 1895, no subterrâneo do Grand Café, em Paris, eles realizaram a primeira exibição pública e paga de cinema: uma série de dez filmes, com duração de 40 a 50 segundos cada, já que os rolos de película tinham quinze metros de comprimento. Os filmes até hoje mais conhecidos desta primeira sessão chamavam-se “A saída dos operários da Fábrica Lumière” e “A chegada do trem à Estação Ciotat”, cujos títulos exprimem bem o conteúdo. Apesar de também existirem registros de projeções um pouco anteriores feitas por outros inventores, a sessão dos Lumière é aceita pela maciça maioria da literatura cinematográfica como o marco inicial da nova arte. O cinema expandiu-se, a partir de então, por toda a França, Europa e Estados Unidos, através de cinegrafistas enviados pelos irmãos Lumière, para captar imagens de vários países (fonte: www.pt.wikipedia.org, acesso em 01/11/2009).

24

no cinema novo brasileiro; entretanto, em nenhum momento deixou-se aprisionar no sótão

comum da mediocridade.

A imagem em movimento do cinema é inapreensível e, por esse motivo, é sinal de

simbolismo e imaginação, mesmo em sociedades autoritárias. Marc Ferro atesta esse

momento:

(...) Os soviéticos e os nazistas foram os primeiros a encarar o cinema em

toda a sua amplitude, analisando sua função, atribuindo-lhe um estatuto

privilegiado no mundo do saber, da propaganda, da cultura. (...) O cinema não foi

apenas um instrumento de propaganda para os nazistas. Ele também foi, por vezes,

um meio de informação, dotando os nazistas de uma cultura paralela. (...) Os

nazistas foram os únicos dirigentes do século 20 cujo imaginário mergulhava,

essencialmente, no mundo da imagem (FERRO, 1992: 72-73).

Ao longo de sua existência, em suas articulações com a História o cinema é usado não

apenas como representante do passado e do presente, mas também como fonte histórica.

3.1. CINEMA: A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO IMAGÉTICO

“O que efetua a idéia é o signo. No cinema, as imagens são signos” (DELEUZE, 1992: 83).

Ao falar das imagens como discurso, devemos fazer uma distinção clara entre o

cinema enquanto um achado arqueológico, usado como fonte (por exemplo, filmes Super-8

encontrados nas duas grandes guerras), e o cinema de modo mais abrangente, enquanto

construtor de signos e simbologias que caracterizam as nações. Podemos falar também das

negações e dos interditos a ele relacionados, como quando o cinema subverte a repressão, seja

ela qualquer repressão – moral, sexual, política, imaginária. Nesse sentido, ao cinema não

pode ser atribuído um dono. Ele foge das mãos do autor como se fosse um filho rebelde, e

passa a fazer parte do construto simbólico de determinado lugar. Mesmo quando adormecido

e quase dominado, ele rompe as estruturas de dentro para fora, empunhando a bandeira do

novo e da liberdade. Gilles Deleuze discorre sobre esse tema, explicando a chegada do neo-

realismo italiano no pós-Segunda Guerra Mundial: “(...) Se a grande ruptura acontece no fim

25

da guerra com o neo-realismo, é justamente porque registra a falência dos esquemas sensório-

motores: os personagens não ‘sabem’ mais reagir às situações que os ultrapassam, porque é

horrível demais, ou belo demais, ou insolúvel...” (DELEUZE, 1992: 78).

De toda forma, o cinema – como imagem em movimento – não pode ser apreendido.

Ele já faz parte de vários “todos”: o da metáfora instantânea, o do sentido coletivo a que o

filme se propõe e, depois, órfão que é após romper com seu próprio criador, do todo coletivo

que o assiste. No meio termo que existiu antes dos filmes do diretor norte-americano Clint

Eastwood – os quais iremos analisar neste trabalho –, o cinema viveu uma vida sem igual.

Entre rupturas e afirmações, entre metáforas e textos assertivos, em lugares desconhecidos e

metrópoles, entre passado e ficção, ele se tornou a mais rebelde das formas culturais.

Antes de chegarmos a Eastwood, diretor que realiza, em sua obra, filmes

predominantemente dotados de uma narrativa clássica, o cinema foi se modificando e se

modernizando, mantendo-se sempre irmão da dialética e dos signos, já que seus modos de

fazer “não são noções técnicas (travelling, raccord, falsos raccords, profundidade de campo,

planeza etc.), mas a técnica não é nada se não serve a fins que ela supõe e que ela não

explica” (DELEUZE, 1992: 76). Para Deleuze, não há como aferir um desejo se este for

estagnado pelo uso da técnica. No exato momento que está sendo feito, ainda que com

propósitos pré-estabelecidos, o cinema é capturado pelo social, como no caso de Sergei

Einsenstein9, que se utiliza da montagem para inserir o encadeamento das imagens no “todo”

de sua época. No filme O encouraçado Potemkin (1926), a cena da escadaria de Odessa –

feita pelo diretor para inserir uma dialética do movimento da imagem com o tempo da

revolução – é libertária. E só passa a sê-lo quando desprendida de seu autor, pois nesse

momento passa a ser apreendida pelos espectadores do cinema e por todos os diretores que, a

partir daí, usaram-na como intertexto em diversos filmes, com distintas abordagens e temas.

Como num círculo infinito, essas cenas intertextualizadas desencadeiam outra série de

metáforas e idéias. Para Ismail Xavier, a montagem era essencial no cinema de Einsenstein:

“Einsenstein compara o processo de montagem no cinema com o princípio básico do

funcionamento da escrita japonesa (duas imagens designativas de objetos ou fenômenos

naturais produzindo a representação de uma idéia abstrata)” (XAVIER, 1984: 115).

No caso da escadaria de Odessa, temos um exemplo clássico desse pensamento que

Xavier nos propõe: uma mãe com um carrinho de bebê em meio à confusão de uma das

rebeliões de 1917. Os dois ideogramas japoneses seriam o entrelaçamento do macro-político,

9 Cineasta russo (1898-1948).

26

simbolizando o alvorecer da Revolução Russa, e do sentimento individualista e desesperado

de uma mãe tentando salvar o filho da queda e morte na escadaria. Para Einsenstein, o cinema

nos remete a uma extensão muito maior do que a da própria literatura, principalmente pelo

fato de que tanto Sergei Einsenstein como, depois dele, Pier Paolo Pasolini, colocam a

montagem a serviço da imagem em movimento; por estar sempre em movimento, a metáfora,

nesse caso, já se libertou.

No início da invenção do cinematógrafo houve uma dificuldade, e até mesmo um

desprezo, para aceitá-lo como fonte intrínseca à História. Durante os primeiros anos, havia

problemas até para se aceitar a figura do autor no cinema, uma espécie de desconfiança que

via os filmes vinculados apenas aos grandes estúdios de produção, e que considerava que o

cinema estaria apenas a serviço dos iletrados. Durante um longo período, o roteirista era

considerado como autor, aceitação mais simples, pois o roteiro fazia parte de uma noção de

história escrita já predominante na sociedade humana. A imagem, em sua indistinção entre

real e ficção, mostrava-se como assustadora.

Marc Ferro revela esse momento histórico no artigo “O filme: uma contra-análise da

sociedade?”:

O cinema destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada indivíduo

se tinha constituído diante da sociedade. A câmara revela o funcionamento real

daquela, diz mais sobre cada um do que queria mostrar. Ela descobre o segredo,

ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus

“lapsus”. É mais do que preciso para que após a hora do desprezo, venha a da

desconfiança, a do temor (...) A idéia de que um gesto poderia ser uma frase, esse

olhar, um longo discurso, é totalmente insuportável: significaria que a imagem, as

imagens (...) constituem a matéria de uma outra história que não a História, uma

contra-análise da sociedade (FERRO, 1976: 203).

Entendemos aqui duas trajetórias distintas, a de produção, na qual o autor vai imprimir

as suas idéias, e a que ocorre após a estréia, na qual o espectador passa a fazer parte de seus

simbolismos. Jean-Patrick Lebel afirma em seu livro Cinema e ideologia:

(...) mas estas imagens e sons que são a imagem da realidade que lhe deu

origem vão tornar-se nos elementos base, no material do filme: material a partir do

qual vai ser criada uma realidade imaginária, que não é a ficção do filme. Esta

realidade não nos remete para o Real, para o mundo geral, mas pura e

simplesmente para a ficção do filme (LEBEL, 1989: 93).

27

De todo modo, tanto Lebel quanto Ferro não afastam o fazer cinema do fazer um

processo historiográfico. Para Ferro, o cinema “é o elemento que entra de modo ativo em

processos históricos”, porém não nos esqueçamos da capacidade intrínseca ao cinema de nos

remeter a outros destinatários, como por exemplo a já citada união do surrealista Dalí com o

cineasta espanhol Buñuel, produzindo um entremeio entre signo – imagem – inconsciente.

O autor, obviamente, escolhe a abordagem e o caminho da produção de sua obra. O

diretor Andrzej Wajda, em seu filme Danton – O processo da revolução (1982), inicia sua

abordagem pela fase do terror da Revolução Francesa. Num ataque pós-moderno a

Robespierre e ao Iluminismo, numa alusão clara quando mostra esta revolução de modo

antropofágico, comendo seus próprios filhos. Por outro lado, após sua estréia, o grande

público – embalado pela voz rouca de Gérard Depardieu (Danton) – aceita e comemora os

destinos da Revolução, causando assim um certo mal-estar entre intenção e subjetividade.

O cinema, no imaginário da cultura popular, é libertário no sentido de ser, como diz

Jacques Derrida, “um jogo infinito de significações”. Nesse sentido, a formação dos mitos

modernos, sejam eles políticos, como Stálin, Hitler, Mussolini, ou do imaginário cultural,

como James Dean ou Humphrey Bogart, é construída pelos discursos imagéticos. Leni

Rienfesthal (1935) constrói a imagem da idolatria a Hitler por parte de seus admiradores no

filme Triunfo da vontade. Nesse caso, o estigma nazista impede os críticos de fazerem

interpretações isentas ao cinema de Rienfesthal. Alguns críticos e historiadores, além do

estigma, tentam reduzir o cinema a assuntos de grande importância, sejam eles propriamente

históricos ou filosóficos. Esquecem esses críticos que o entretenimento popular desperta, por

vezes, mais construções simbólicas e imaginárias do que os ditos filmes mais densos. O

crítico italiano Nello Ajello conta a sua experiência sobre esse tema:

Para muitos de nós, Bogart era um ídolo. No final das contas, nós nos

reservávamos um espaço privado para apreciar o cinema como ele deve ser

apreciado, sem cerimônias, sem ter para cada filme a resposta pronta no bolso, sem

ter de aplicar obrigatoriamente a etiqueta política a tudo. Às vezes, no grupo de

cinema, apresentávamos Páscoa de sangue, com a presença do autor. Tínhamos

sonhado fazer um debate sobre Humphrey Bogart, mas os debates se faziam sobre

as colhedoras de arroz (AJELLO, 1979: 211).

Mesmo historiadores experientes apresentam dificuldades na inter-relação Cinema –

História. O próprio Peter Burke faz uma espécie de mea culpa: “Na minha experiência

28

pessoal, é muito difícil para um historiador ver um filme que se passa em um período anterior

de 1700 sem ficar desconfortavelmente consciente dos anacronismos, nas cenas e gestos bem

como na linguagem ou nas idéias” (BURKE, 2004: 203). Por outro lado, o próprio Burke

atesta o casamento Cinema – História, desde os primórdios de sua aparição: “É surpreendente

saber que já em 1916 foi publicado um livro na Inglaterra com o titulo A câmera como

historiadora. Dada a importância da mão que segura a câmera e do olho e do cérebro que a

direcionam, seria melhor dizer o cinegrafista como historiador” (BURKE, 2004: 199).

Desde o seu surgimento, o cinema tem disputado espaço com outras fontes. Não

menos envolvente do que outras categorias da arte, ele sofria do preconceito acadêmico por

ser jovem. Por outro lado, por ser do mesmo tecido dos signos, sonhos e imaginação,

transformou-se em fonte de pesquisa e inspiração. Roland Barthes engloba o cinema em

outros “teares”: “Eu leio textos, imagens, faces, gestos, cenas etc.” (BARTHES, 1968: 141).

O cinema, diferentemente da imagem estática da fotografia, ganha vida na

“representação do Real”. A fotografia, exposta a sua estaticidade, não produz distinção das

suas inter-relações, enquanto que o cinema usa a tela como esconderijo da simbologia e do

imaginário. Por isso, o cinema é a libertação para qualquer Fausto, libertação para qualquer

angústia, libertação para qualquer “realidade”.

3.2. NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA: A TERCEIRA MARGEM DO DISCURSO

“O cinema americano é o grande catálogo da imaginação ocidental” (CALLIGARIS, 1998).

O cinema americano, pode-se afirmar de forma assertiva, foi o maior construtor de

mitos populares do século 20. Nesse ponto, teremos a função de enquadrar os personagens do

diretor Clint Eastwood para nos aproximarmos tanto do personagem central do filme Cartas

de Iwo Jima, general Tadamichi Kuribayashi, como dos personagens centrais da foto de

guerra presente no filme A conquista da honra. Usaremos, para isso, a concepção do mito de

Roland Barthes, que considera que o mito age como uma “linguagem roubada”. Nesse

sentido, os personagens criados desde os anos clássicos do cinema americano – tendo

Humphrey Bogart como um dos mais “desejados”, passando pelos anos 60 (década pródiga da

contra-cultura) – têm em comum uma certa mise-en-scène de negação e deformação, apoiados

29

no discurso, mas fundados numa certa resistência popular. Essa reconstrução da verdade

permeia o chamado “desconstrutivismo do sujeito”, termo criado e utilizado por Jacques

Derrida. Cria-se, assim, uma quimera, uma ilusão, paralela à verdade, que nos constrói como

integrantes do processo fílmico. Catherine Clément discorre sobre as deformações:

O mito, tanto quanto a fantasia, são estruturas simbólicas: servindo de

enquadramento aos materiais do imaginário, asseguram essa ocultação –

necessária ignorância, necessário engano – que tornam visível a verdade. Esta pode

então ser objeto de uma definição: objeto de deformação, sujeito a deformações,

sujeito de deformação (Clément, 1973: 1).

Poder-se-ia dizer que há uma certa aquiescência do sujeito em relação ao mito que ele

deseja. Mas como diriam os desconstrutivistas: não somos todos nós personagens de nós

mesmos? Como afirma Contardo Calligaris em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo,

“você e eu estamos apenas acalentando nossa fictícia pessoa para fugir da desordem

fragmentada do mundo” (Calligaris, 1998). Nessa sensação fugidia do sujeito somos guiados

pela imaginação, e por isso a dar voltas ao significado das “verdades” inoperantes. Nas salas

escuras do cinema, estamos propensos ao simulacro e, por isso, a construções mitológicas.

Naturalmente, então, os intrépidos personagens de Bogart e Dean ganham força no

imaginário popular. O primeiro já havia sido um meta-personagem no filme Sonhos de um

sedutor (1972), de Herbert Ross com Woody Allen10; e o segundo foi um personagem de si

mesmo na vida cotidiana, morrendo em um desastre de automóvel. Esses intertextos da vida

“real” com os personagens mitológicos do cinema são muito mais próximos de nós do que

podemos supor.

Sentido de libertação de nossas próprias histórias, o mito passa a ser instrumento

cirúrgico desse corte do simbólico: “Parece, portanto, extremamente difícil reduzir o mito

pelo interior, pois o próprio movimento de libertação fica por sua vez cativo no mito: o mito

pode sempre, em última instância, significar a resistência que se lhe opõe” (BARTHES, 1982:

156). Sempre que sentamos na cadeira do cinema, nascemos novamente para um “Outro”.

Sofremos em batalha, rimos de situações cômicas, choramos a perda de um amor romântico

que é nosso, pois a mágica da identificação já está em processo. Vejamos o que fala Béla

Balázs, crítico e teórico de cinema: “Nós olhamos para cima, para o balcão de Julieta com os

10 A despeito de ter sido dirigido por Herbert Ross, Sonhos de um sedutor é a representação clara de uma transição na carreira de Woody Allen (fonte: www.pt.wikipedia.org, acesso em 01/11/2009).

30

olhos de Romeu e, para baixo para Romeu, com os olhos de Julieta. Nosso olho e com ele

nossa consciência, identifica-se com os personagens no filme” (BALÁZS apud XAVIER,

1983: 85). Essa viagem do ego no cinema nos parece irreversível a partir do momento em que

as luzes são apagadas. Balázs termina: “Nada comparado a esse efeito de ‘identificação’ já

ocorreu em qualquer outra forma de arte e é aqui que o cinema manifesta sua absoluta

novidade artística” (BALÁZS apud XAVIER, 1983: 85).

Retornemos à construção discursiva. A impressão do celulóide (ou do digital, nos

tempos atuais) remete-se ao preenchimento do vazio; a construção do mito moderno serve-se

dessa folha em branco. Nesse caso, falamos mais da linguagem, estofo universal humano, do

que propriamente das estruturas de poder da indústria do cinema. Como disse Robert

Desnos11: “Por cinema, entenda-se que não se trata aqui dos interesses corporativistas ou

técnicos, mas do seu próprio espírito e dos laços que o unem aos elementos solares da

inquietude” (DESNOS apud XAVIER, 1983: 324)12. Inquietude. Esse mesmo sentimento que

acompanha todos os personagens construídos pelo cinema de Clint Eastwood, que

analisaremos adiante.

Na composição do vazio construímos não somente o seu recheio, como também a sua

borda (ou margem), evento que o rodeia e que ao mesmo tempo lhe é intrínseco. Jean-Pierre

Vernant fala desse instante anterior à formação do mito:

O que havia quando não havia coisa alguma, quando não havia nada? A

essa pergunta os gregos responderam com histórias e mitos. (...) No início de tudo o

que primeiro existiu foi Abismo: os gregos dizem Kháos. O que é o Caos? É um

vazio escuro onde não se distingue nada. Espaço de queda, vertigem e confusão,

sem fim, sem fundo. Somos apanhados por esse Abismo como por uma boca imensa

e aberta que tudo tragasse numa mesma noite indistinta. Portanto, na origem há

apenas esse caos, abismo cego, noturno, ilimitado (VERNANT, 2000: 12).

No título deste tópico, há uma paráfrase explícita ao conto “A terceira margem do rio”,

de João Guimarães Rosa, publicado em seu livro Primeiras estórias (1985). Para nós, o que

importa é o personagem do Pai presente no conto. Homem ordeiro, típico cumpridor dos

deveres sociais e éticos, foi com o tempo cansando-se e, por isso, quieto diante da insatisfação

que o dominava de dentro para fora, em determinado momento o filho narra: “Mas se deu

11 Poeta surrealista francês (1900-1945). 12 Artigo escrito por Robert Desnos em 1927, publicado no livro Cinéma, cujos textos foram reunidos por André Tchernia (Paris: Gallimard, 1966).

31

que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa” (GUIMARÃES ROSA, 1985: 32).

Certo do seu novo destino, esse Pai montou em sua canoa recém-construída e embarcou no

rio. A narração termina assim:

O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele

aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens

terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas

as semanas, e meses, e os anos – sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em

nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão

nem capim (GUIMARÃES ROSA, 1985: 34).

Por que nos referimos a esse conto de Rosa? Acreditamos que a metáfora da

impossibilidade de voltar à margem trata não só da apreensão mas também da transformação

do personagem, vivo que era, em mito. Apesar de termos quase certeza de que Clint Eastwood

não tenha lido este conto, as semelhanças na construção dos personagens anti-heróis de quase

todos os seus filmes traduzem muito o universo roseano. Em especial, dois personagens que

vagavam por suas canoas até colidirem com a desordem do mundo. O primeiro deles, William

“Bill” Munny, é personagem do filme Os imperdoáveis (1992), homem que apesar de ter um

extenso cartel de mortes como pistoleiro mercenário vive num casebre simples no meio do

nada. Se Os imperdoáveis fosse um conto literário, provavelmente William Munny poderia

utilizar-se do refúgio mitológico das palavras escritas, mas por algum motivo, mais

possivelmente pela “imagem-movimento” da qual Deleuze tanto nos fala ao se referir ao

cinema, ele se libertou para seu novo destino, também insólito, de ser um matador contratado.

O segundo personagem, presente no filme Gran Torino (2008), é Walt Kowalski,

veterano de guerra americano refugiado no bairro no qual sempre morou mas que, agora,

recebe novos moradores vindos do Vietnã. Vietnamitas que, não tendo como permanecer em

seu país devido à derrota na guerra, procuram abrigo em um bairro pobre de Detroit. Nesse

momento, vale uma pequena digressão: Detroit é a capital americana da indústria

automobilística. No filme, Gran Torino é um carro clássico, fabricado pela Ford Motors nos

anos 60. Notamos aqui uma semelhança com a menção da viagem do general Kuribayashi

pelos Estados Unidos, apresentada no filme Cartas de Iwo Jima (2006), e o amor deste

general pelos carros americanos, metáfora que desvendaremos mais à frente. Na verdade,

quando falamos que os Estados Unidos perderam a guerra do Vietnã, dizemos uma meia-

verdade, pois o verdadeiro perdedor foi o Vietnã do Sul, abandonado pelos americanos, e que

sofreu enormemente com o novo governo instaurado.

32

3.3. CLINT EASTWOOD E A CONSTRUÇÃO DO ANTI-HERÓI

Clint Eastwood nasceu em 31 de maio de 1930, na cidade de São Francisco,

Califórnia; cursou a faculdade Oakland Technical High e, durante a faculdade, freqüentou

sessões de jazz com Lester Young, Coleman Hawking e Charlie Parker, esse último

homenageado no filme Bird (1988), de sua autoria, em que o músico foi interpretado por

Forrest Whitaker. Convocado para a Guerra da Coréia em 1950, só entrou no mundo do

cinema em 1954, já com 24 anos, participando no início de pequenas pontas em filmes “B”.

A partir do primeiro encontro com o diretor de cinema Sergio Leone, Eastwood passa

a vivenciar um tipo de construção da narrativa cinematográfica da qual viria a se tornar

herdeiro. Sergio Leone, cineasta italiano nascido em Roma em 01 de janeiro de 1929,

modificou para sempre a concepção do chamado gênero “western”, ou faroeste (far west). Sua

câmera segura, precisa e de poucos movimentos, em enquadramentos com ângulos abertos e

grande profundidade de campo, intensificou o modo como o personagem-herói (ou anti-herói)

passou a ser caracterizado a partir de então. As duas parcerias da dupla Eastwood-Leone em

filmes (Por um punhado de dólares, 1964; e Três homens em conflito, 1965) foram

fundamentais para o desenvolvimento conceitual inicial de todos os outros personagens que

Eastwood viria a criar13.

Em cada um dos anti-heróis criados por Clint Eastwood, há uma mistura de melancolia

e culpa por estar ocupando esta posição. Em quase todos, a ausência de relações sociais retrata

essa personalidade afásica de seus personagens. Desde Bird (1988), em que seu jazzista

preferido é retratado como sensível e anti-social; passando pelo jornalista Steve Everett,

alcoólatra e mulherengo em Crime verdadeiro (1999); Frank Corvin, o astronauta rebelde e

aposentado em Cowboys do espaço (2000); William “Bill” Munny, matador profissional em

Os imperdoáveis (1992), em que só volta à atividade e ao convívio em sociedade por receber

um pedido de vingança feito por um grupo de prostitutas; Frankie Dunn, personagem de um

treinador de boxe decadente e desiludido no filme Menina de ouro (2004); e o já citado Walt

Kowalski, viúvo veterano da Guerra da Coréia que desiste de se relacionar não só com seus

vizinhos vietnamitas, como também com sua própria família em Gran Torino (2008).

Finalmente, iremos destacar os personagens de maior interesse neste trabalho:

primeiramente, o general Tadamichi Kuribayashi, do filme Cartas de Iwo Jima (2006), pouco

aceito por seus compatriotas no início de sua trajetória como comandante na ilha de Iwo Jima,

13 Para outras informações sobre Clint Eastwood, ver o site www.imdb.com (acesso em 02/11/2009).

33

justamente por ter se relacionado com o inimigo dois anos antes, quando vivera nos Estados

Unidos; e em segundo lugar, os personagens-soldados do filme A conquista da honra (2006),

que relata o episódio da Ilha com destaque para a foto norte-americana que viraria

monumento e símbolo da vitória naquele combate, mostrando o hasteamento da bandeira

americana em Iwo Jima (no original, o filme é chamado Flags of our fathers).

Desses seis soldados americanos, três foram mortos em combate, dois se renderam à

bebida e ao sofrimento, e apenas um sobreviveu – seu filho tornou-se autor do livro A

conquista da honra (2006)14, homônimo ao filme, cuja história inspirou Clint Eastwood.

Vemos relatado no filme A conquista da honra (2006) o paradoxo de uma nação: a

necessidade da construção de heróis, principalmente em épocas turbulentas, e a rejeição de

um desses heróis, estigmatizado que foi por ser um índio americano, dando a entender que,

para essa sociedade, o verdadeiro cidadão estadunidense seria o homem branco que veio da

Europa na época da colonização.

Clint Eastwood, com sua câmera evocando a lentidão da passagem do tempo,

assemelha-se não só a Sergio Leone mas também a Andrei Tarkovsky, que colocava o tempo

a serviço do cinema. Tarkovsky exemplificou, na revista Positif, sua relação com o tempo: “O

tempo num plano deve fluir independentemente e, se se pode dizer, por conta própria”

(TARKOVSKY, 1981). Poderíamos propor, dessa forma, uma síntese, afirmando que

Eastwood compõe seus personagens à la Sergio Leone e os insere nos grandes planos abertos

de Tarkovsky15. Isso também se faz presente nos dois filmes que trataremos a seguir, situando

seus discursos em relação ao fato histórico que retratam. Gilles Deleuze nos traduz a

multiplicidade dos cinemas e dos autores durante a sua aparição: “O cinema faz nascer signos

que lhe são próprios e cuja classificação lhe pertence mas, uma vez criados, eles voltam a

irromper em outro lugar, e o mundo se põe a ‘fazer cinema’” (DELEUZE, 1992: 83).

Apresentamos, a seguir, uma filmografia selecionada do diretor Clint Eastwood.

14 Os seis fuzileiros navais figurados na fotografia que se tornaria síntese da Segunda Guerra Mundial e ícone de seus militares só puderam ser identificados porque um deles, John Bradley, sobreviveu à guerra para nomeá-los. O filho dele, James Bradley, escreveu o livro como uma homenagem a seu pai, a partir de recortes encontrados após sua morte, em 1994. 15 Exemplo dessa simbiose entre os diretores é uma cena de Os imperdoáveis, em que o personagem de Clint Eastwood “filosofa” com o personagem de Morgan Freeman em primeiro plano e, durante longos minutos, a câmera aberta mostra ao fundo um cowboy chegando com o dinheiro da recompensa.

34

Filmografia: Clint Eastwood

:: Clint Eastwood, diretor e ator norte-americano, teve uma passagem modesta pela

televisão, trabalhando como ator no seriado “Rawhide”, na década de 50.

:: Ele já sobreviveu a um desastre de avião no oceano Pacífico e foi dado como

morto em ação na guerra da Coréia.

:: Durante dois anos (1986-1988), Clint Eastwood foi prefeito, pelo Partido

Republicano, da cidade litorânea de Carmel, na Califórnia.

:: Foi classificado em segundo lugar no ranking dos cem maiores atores de todos os

tempos, feito pela revista Empire.

Filmografia selecionada (diretor)

:: 2008: Gran Torino

:: 2006: Cartas de Iwo Jima

:: 2006: A conquista da honra

:: 2004: Menina de ouro

:: 2003: Sobre meninos e lobos

:: 2002: Dívida de sangue

:: 2000: Cowboys do espaço

:: 1999: Crime verdadeiro

:: 1997: Meia-noite no jardim do bem e do mal

:: 1997: Poder absoluto

:: 1995: As pontes de Madison

:: 1993: Um mundo perfeito

:: 1992: Os imperdoáveis

:: 1990: Rookie – Um profissional do perigo

:: 1990: Coração de caçador

:: 1988: Bird

:: 1986: O destemido senhor da guerra

:: 1985: O cavaleiro solitário

:: 1983: Impacto fulminante

:: 1982: Honkytonk Man

:: 1982: Raposa de fogo

:: 1980: Bronco Billy

35

:: 1977: Rota suicida

:: 1976: Josey Wales, o fora-da-lei

:: 1975: The Eiger Sanction

:: 1973: Breezy

:: 1972: O estranho sem nome

:: 1971: Perversa paixão

Filmografia selecionada (ator)

:: 2008: Gran Torino

:: 2004: Menina de ouro

:: 2003: Sobre meninos e lobos

:: 2002: Dívida de sangue

:: 2000: Cowboys do espaço

:: 1999: Crime verdadeiro

:: 1997: Poder absoluto

:: 1996: Wild Bill: Hollywood Maverick

:: 1995: Gasparzinho, o fantasminha camarada

:: 1995: As pontes de Madison

:: 1994: Don’t Pave Main Street: Carmel’s Heritage (voz)

:: 1993: Um mundo perfeito

:: 1993: Na linha de fogo

:: 1992: Os imperdoáveis

:: 1990: Rookie – Um profissional do perigo

:: 1990: Coração de caçador

:: 1989: O cadillac cor-de-rosa

:: 1988: Dirty Harry – Na lista negra

:: 1986: O destemido senhor da guerra

:: 1985: O cavaleiro solitário

:: 1984: Um agente na corda bamba

:: 1984: Cidade ardente

:: 1983: Impacto fulminante

:: 1982: Honkytonk man

:: 1982: Raposa de fogo

:: 1980: Bronco Billy

:: 1980: Punhos de aço – Um lutador de rua

:: 1979: Alcatraz – Fuga impossível

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:: 1978: Doido para brigar, louco para amar

:: 1977: Rota suicida

:: 1976: Josey Wales, o fora-da-lei

:: 1976: Sem medo da morte

:: 1975: The Eiger Sanction

:: 1974: Thunderbolt and Lighfoot

:: 1973: Magnum 44

:: 1972: Joe Kid

:: 1972: O estranho sem nome

:: 1971: Perversa paixão

:: 1971: The Beguiled

:: 1971: Perseguidor implacável

:: 1970: Os guerreiros pilantras

:: 1969: Os aventureiros do ouro

:: 1969: Desafio das águias

:: 1969: Os abutres têm fome

:: 1968: Meu nome é Coogan

:: 1967: A marca da forca

:: 1966: Três homens em conflito

:: 1966: The Witches

:: 1965: Por uns dólares a mais

:: 1964: Por um punhado de dólares

:: 1958: Lafayette Escadrille

:: 1958: Ambush at Cimarron Paxh

:: 1957: Escapade in Japan

:: 1956: Away all Boats

:: 1956: Never Say Goodbye

:: 1956: The First Travelling Saleslady

:: 1956: Star in the Dust

:: 1955: Francis in the Navy

:: 1955: Revenge of the Creature

:: 1955: Lady Godiva

:: 1955: Tarantula

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Filmografia: Sergei Einsenstein (1898-1948)

:: 1923: O diário de Glumov

:: 1924: A greve

:: 1925: O encouraçado Potemkin

:: 1927: Outubro

:: 1928: A linha geral

:: 1931: Que viva México

:: 1935: O prado de Beijin

:: 1938: Alexandre Nevski

:: 1944: Ivan, o terrível I e II

Filmografia: Sergio Leone (1929-1989)

:: 1959: Os últimos dias de Pompéia

:: 1961: O colosso de Rodes

:: 1962: Os últimos dias de Sodoma e Gomorra

:: 1964: Por um punhado de dólares

:: 1965: Três homens em conflito

:: 1966: Era uma vez no Oeste

:: 1971: Quando explode a vingança

:: 1973: Il mio nome è Nessuno

:: 1975: Un gênio, due compari, un pollo

:: 1984: Era uma vez na América

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Filmografia: Andrei Tarkovsky (1932-1986)

:: 1959: Hoje não haverá aula

:: 1960: O rolo compressor e o violino

:: 1962: A infância de Ivan

:: 1966: Andrei Rublev

:: 1972: Solaris

:: 1974: O espelho

:: 1979: Stalker

:: 1983: Nostalgia

:: 1983: Tempo de viagem

:: 1986: O sacrifício

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CAPÍTULO 4

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA AMERICANA

“Há em olhos humanos, ainda que litográficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da consciência, grito clandestino de haver alma”

(PESSOA, 1982: 149).

A gênese da formação histórica dos Estados Unidos está implicitamente ligada a

alguns aspectos que iremos abordar nos próximos tópicos. O caráter multifacetado de parte de

sua sociedade faz com que essa nação desenvolva de forma diferente as características

referentes ao enfrentamento na guerra, a transposição da formação mítica e de heróis para a

sociedade civil e, por fim, a forma como esse país, ainda buscando uma tradição antiga,

consegue conviver com o horror do Real16 na guerra e seus simulacros no homem comum.

Não queremos negar uma anterioridade histórica aos Estados Unidos. Seu passado

vem da antiga Europa, sem dúvida, mas erradamente colocamos, nesse caso, a Europa como

uma fonte única e semelhante em todo o seu continente. Essa mesma Europa sempre foi uma

cultura originada em várias culturas que, ao longo dos séculos, foram se multifacetando.

Jacques Le Goff já falava da Europa o que poderíamos aplicar ao Mundo Novo: “A Europa se

constrói. É uma grande esperança. Ela só se realizará se levar em conta a História: uma

Europa sem História seria órfã e infeliz. Pois hoje vem de ontem, e amanhã sai do passado”

(LE GOFF, 2007: 9).

Os Estados Unidos, no seu devir, correspondem a uma Europa que existia de fato

apenas pelo seu entremeio de culturas dispares, e as disputas dentro do solo americano já

atestavam isso – como nos casos de Connecticut sendo disputado por ingleses e holandeses, e

da disputa entre espanhóis e franceses no sul dos Estados Unidos. Essa mesma Espanha já

vinha de uma interseção de culturas européias e árabes. É preciso salientar, no entanto, que o

16 Na impossibilidade do controle do inconsciente, Lacan nos coloca o Real como um interdito ou, no caso da falta, como aquilo que sempre terá ainda que ser dito. Na incompletude desse campo a ser dito pela eternidade, o que sobra às estruturas psíquicas é o horror. Lembramos que, para Lacan, aquilo que convencionamos chamar de “real” é apenas a sua representação.

40

homem norte-americano dos primórdios da colonização era, no geral, um expatriado,

desiludido com as suas próprias origens sem, contudo, abandoná-las definitivamente.

No livro Cerimônias de posse na conquista européia do Novo Mundo, Patrícia Seed

fala tanto de costumes europeus múltiplos, como da diferença da construção discursiva sobre

o significado da posse: “No cerne dos colonialismos europeus havia conjuntos distintos de

atos expressivos. Erigir sebes, marchar em procissões cerimoniais, medir as estrelas – que

usavam sinais culturais para estabelecer o que as sociedades européias julgavam ser um

domínio legítimo sobre o Novo Mundo” (SEED, 1999: 249).

Esses sinais culturais faziam parte da formação cultural e discursiva de cada momento

e de cada período europeu, por isso distintos entre eles. Seed complementa: “(...) os ingleses

consideravam que podiam adquirir direito ao Novo Mundo por meio de objetos físicos; os

franceses por meio de gestos; os espanhóis, por discursos; os portugueses, pelos números; e os

holandeses, pela descrição” (SEED, 1999: 249).

Se recuarmos às origens da Europa, podemos enxergar o fim do Império Romano

como um marco importante, que teria modificado profundamente esse europeu já quase

construído nas colonizações. Apesar das diferenças culturais fundamentais entre as nações

européias durante a colonização, havia uma unidade no que se refere à tentativa de construção

de um novo Império Romano. Em As raízes medievais da Europa, Le Goff afirma que esse

período foi marca profunda de representação do que a Europa é hoje: “A Idade Média como

época de nascimento da Europa foi amplamente evocada na véspera e no dia seguinte à

Segunda Guerra Mundial (...)” (LE GOFF, 2007: 11). Patrícia Seed também atesta esse

pensamento: “Apesar das muitas dessemelhanças em vários aspectos, Portugal, Inglaterra,

França e Espanha proclamavam a expansão romana como metáfora política central. No

entanto, cada uma das quatro potências, invocando Roma, construiu idéias inteiramente

diferentes sobre o que havia sido o Império Romano” (SEED, 1999: 251).

Dessa forma, falar dos primeiros norte-americanos é falar de um povo que veio de

uma construção ou desconstrução, se pensarmos em termos de discurso e geografia. A

construção discursiva da Europa que chegou à América é, ainda, aquela permeada pelo ritual

do medo devido às inúmeras invasões que a constituíram enquanto continente. Em artigo

publicado no jornal Folha de S. Paulo, Eric Hobsbawm fala de como o desaparecido pode

engendrar um discurso: “O Império Romano nunca conseguiu estabelecer-se solidamente

além do Reno e do Danúbio. Roma foi um Império pan-mediterrâneo, mais que europeu, e o

41

que conta para o destino da Europa não é o Império que triunfa, mas o Império que

desaparece” (Hobsbawm, FSP, 05/10/2008)17.

É no contato com o “Outro” na América que o europeu vai construir a teoria

eurocentrista da civilização. Hobsbawm continua: “Eles descobrem não apenas as Américas,

mas a Europa, pois é em contraposição aos povos indígenas do Novo Mundo que espanhóis,

portugueses, ingleses, holandeses, franceses e italianos, que se precipitam sobre as Américas,

vão reconhecer seu caráter europeu. Eles têm a pele branca, impossível de confundir com a

dos ‘índios’. Nasce uma diferenciação racial que, nos séculos 19 e 20, se converterá na

certeza de que os brancos detêm o monopólio da civilização” (Hobsbawm, FSP, 05/10/2008).

Vamos ignorar, para fins deste trabalho, a Europa que construiu a América espanhola

e nos ater, nesse momento, à América do Norte, onde as fronteiras ideológicas18 eram

expandidas com um sentimento de gênese em relação ao Velho Mundo. Talvez os Estados

Unidos tenham sido, durante esses séculos, uma espécie de Iugoslávia bem sucedida.

4.1. A VERDADE NA GUERRA: O ACONTECIDO DESAPARECIDO

“O imaginário é uma noção muito complicada, porque está no entrecruzamento dos dois pares. O imaginário não é o irreal, mas a indiscernibilidade entre o Real e o Irreal” (DELEUZE, 1976: 84).

É preciso uma certa dose de coragem para se questionar uma verdade histórica,

principalmente em tempos perigosos como uma grande guerra. Por isso, uma construção

discursiva é intrinsecamente ligada a uma narrativa, a um achado arqueológico, ou a um

documento como, por exemplo, uma foto. Não nos importa, nesse momento, saber se a foto19

dos seis fuzileiros navais erguendo a bandeira americana foi forjada ou não, pois isso tem

menos importância se comparado ao que se sucedeu depois na sociedade civil americana.

17 Tradução de artigo originalmente publicado no jornal francês Le Monde, traduzido por Clara Allain. 18 Chamamos de “fronteira ideológica” aquilo que ultrapassa a geografia. O conceito foi usado algumas vezes para determinar a expansão norte-americana na época da colonização. 19 Foto do hasteamento da bandeira americana, tirada por Lou Lowery no monte Suribachi devido à tomada da ilha de Iwo Jima pelos soldados americanos. Louis R. “Lou” Lowery (24/07/1916-15/04/1987) foi o fotógrafo mais conhecido da Corporação da Marinha Americana por ter tirado a primeira foto do hasteamento da bandeira em Iwo Jima, em 1944. A primeira bandeira hasteada era muito pequena para poder ser facilmente reconhecida nos arredores da ilha, então uma segunda bandeira, maior que a primeira, foi hasteada posteriormente e fotografada por Joe Rosenthal. Esta segunda foto se tornou mundialmente famosa, tendo resultado em um Prêmio Pulitzer de Fotografia ao seu autor.

42

Apesar de haver fatos irrefutáveis de que esse momento heróico de guerra teria sido

teatral e fugaz, o impacto dessa cena encontrou-se com o imaginário, o simbólico e com a

narração discursiva americana desde a chegada dos primeiros europeus até os tempos

modernos. Em Arqueologia do saber (1969), Michel Foucault afirma: “O documento, pois,

não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os

homens fizeram ou disseram” (FOUCAULT, 2008a: 7). Para a sociedade que analisa um

determinado documento, as implicações são como uma máquina propulsora das narrações

criadas a partir de então.

O documento, no caso uma foto, por si só poderia não dizer muito; mas a relação

intrínseca dessa foto com a linguagem e o discurso existentes nos Estados Unidos nos anos 40

a elevaram de um “documento de arquivo” a um “ser” dentro da História. Daí nossa

afirmação sobre o caráter menos fundamental acerca da veracidade da foto: “O falso não é um

erro ou uma confusão, mas uma potência que torna o verdadeiro indecidível” (DELEUZE,

1976: 84). Para Deleuze, em situações como essa não há como discernir o que seria a

verdade, pois ela já percorreu caminhos inimagináveis desde o tambor da máquina Kodak de

Lowery, até as intrincadas relações de poder e resistência existentes nos Estados Unidos.

Seria oportuno lembrar, nesse momento, nossa escolha por colocar pensadores da

análise do discurso e da linguagem no caminho direto deste tema histórico. Ao contrário do

que pensa a maioria dos publicitários e as análises superficiais, não foi a propaganda de

guerra que levou os americanos a acreditarem na sua justeza e na veracidade da foto. Outros

milhares de fotos de guerra foram tirados no século 20, e outras dezenas de conflitos foram

precipitadas pelos Estados Unidos. Porém, foi como se a narrativa coletiva norte-americana

tivesse se apoderado dessa polaróide, preenchendo o vazio da imagem, causando assim uma

interdição do fato para que esta prevalecesse no imaginário social:

Se a interdição tem um sentido, é porque as imagens são enganadoras (...).

Elas são tão belas que não vemos que são sempre ocas. Mas também o homem

enquanto imagem, é pelo oco que a imagem esvazia o que é interessante – por

aquilo que não se vê nas imagens, que está além da captura da imagem o vazio que

Deus deixou exposto (LACAN, 1986: 231).

Para Jacques Lacan, é nessa repressão ao vazio que surge o terceiro elemento, que é

fruto do documento aceito como verdadeiro e das relações sociais entremeadas com ele

próprio.

43

Existe, nesse caso, um jogo de esconde-esconde entre a imagem, o discurso e o

símbolo, criando uma espiral infinita, elevando o caráter do sujeito. Sobre as ruínas que ficam

desse jogo, Lúcia Santaella esclarece: “O signo é uma espécie de coisa, mas, em maior ou

menor medida, sem escapatória possível. Seja ele uma palavra ou uma imagem, o signo não

pode ser a coisa que ele designa. Fica sempre um resíduo, uma sobra, algo restante que o

signo não pode encobrir” (SANTAELLA, 1996: 32). Não há como dizer que o trabalho do

historiador não seja debruçar-se sobre essas ruínas e resíduos, sob pena de estudar apenas a

superfície do iceberg histórico.

Podemos entender então que o objeto-foto não é a História, mas apenas o percurso de

algo maior. Para Foucault, “o objeto não pré-existe a si mesmo” (FOUCAULT, 2008a: 50). É

no rastro desse objeto que se encontra a interpretação, e a interpretação da interpretação. É

entre o que Foucault chama de “as palavras e as coisas” que estão o rastro, o olhar, o visível e

o invisível. A ordem disso? Não descobrimos ainda. Maurice Merleau-Ponty fala dessa ordem

ou desordem em seu livro O visível e o invisível:

O olhar, dizíamos, envolve, apalpa, esposa as coisas visíveis. Como se

estivesse com elas numa relação de harmonia preestabelecida, como se as soubesse

antes de sabê-las, move-se à sua maneira, em seu estilo sincopado e imperioso. No

entanto, as vistas tomadas não são quaisquer, não olho um caos mas coisas, de

sorte que não se pode dizer, enfim, se é ele ou se são elas quem comanda

(MERLEAU-PONTY, 1999: 130).

O que transforma esses intertextos em discurso, não nos esqueçamos, está longe de ser

uma forma da natureza, ou parte de um determinismo histórico. Ao contrário, o que

transforma aqueles jovens soldados americanos da foto em intérritos heróis é a junção da

construção ideológica com as relações individuais do norte-americano com seu “Real” e seu

“Imaginário”. Vamos atentar ao que Louis Althusser diz a esse respeito:

Toda ideologia representa, em sua deformação necessariamente

imaginária, não as relações de produção existentes (e as outras relações que delas

derivam) mas, sobretudo, a relação (imaginária) dos indivíduos com as relações de

produção e com as relações delas derivadas. Na ideologia não está, portanto,

representado o sistema de relações reais que governa a existência dos indivíduos,

mas sim as relações imaginárias destes indivíduos com as relações reais em que

viva (ALTHUSSER, 1977: 32).

44

Os discursos, obviamente, são distribuídos por órgãos materiais, como atesta

Althusser, porém todos eles se iniciam no sujeito. A foto e, posteriormente, o monumento em

Washington D. C. surgem da necessidade de busca pela tradição numa nação ainda jovem e

de influência européia. O homem americano chega aos Estados Unidos órfão e desprezado

pela pátria-mãe, mas não recém-nascido. Ele traz na memória fundamental a juventude nos

tempos de Velho Mundo, por isso não há rupturas significativas com relação a construções

discursivas possíveis. Assim como os filósofos do Iluminismo europeu influenciaram a

Declaração de Independência americana, as suas universidades, como Yale e Harvard, são

inspiradas por suas matrizes, Cambridge e Oxford, na Inglaterra.

Também é importante lembrar que, durante os anos de nazi-fascismo europeu, os

Estados Unidos deram abrigo ao que foi chamado de “segunda onda de imigração”,

constituída por físicos, cineastas, filósofos, pensadores e artistas de várias nacionalidades,

entre eles muitos judeus. Todos eles atribuíram qualidade e tiveram grande influência nas

universidades, e na vida artística norte-americana. Poderíamos citar, entre eles, Einstein,

Brecht, Benjamin e Fritz Lang, para ficarmos apenas no campo da ciência, da filosofia e das

artes (teatro e cinema).

O polaróide mágico de Iwo Jima não foi tirado de propósito (aqui usamos propósito

como antítese do inconsciente), tampouco sua revelação e interpretação foram definidas

previamente visando preencher a lacuna que faltava, ao povo americano, para que acreditasse

no ideal da guerra. Isso seria impossível, pois a incompletude do humano (usando uma

expressão do matemático Goedel) é “inapreensível”, assim como a verdade histórica ou o

“real” da guerra também o são. Por certo a única dúvida dissipada é que o humano é sujeito

do próprio discurso, e também por ele constituído.

45

4.2. UM SIMULACRO: A NÉVOA QUE ENCOBRE O REAL

“O estatuto de um processo pode ser assertivo, negativo, interrogativo. Ora, o estatuto do discurso histórico uniformemente assertivo, consignativo; o fato histórico está ligado lingüisticamente a um privilégio do ser; conta-se o que foi, não o que não foi, ou que foi duvidoso. Numa palavra, o discurso histórico desconhece a negação (ou conhece raramente, de maneira excêntrica)” (BARTHES, 1988: 152).

Não há dúvida de que o humano seja inclinadamente exposto à teoria da “existência do

real”. Sempre que surge uma inquietude sobre sua aquiescência, designam-se advogados para

acalmar os realistas. Tomo como realistas não só leigos, mas parte dos historiadores,

antropólogos, cientistas, jornalistas e toda a parcela chamada “civilização” que considera

loucura ou interdição operar além do convencional. Não atribuímos ao “Real” a sua

inexistência, posto este que seria o outro lado da mesma moeda. Ao sujeito, pede-se-lhe que

dê sentido a esse “real” instaurado, e que esse sujeito lhe coloque no campo do humano.

Humano, sim, pois a árvore na beira da estrada, exemplo consagrado para comprovar a

existência do “real” pelos realistas, não está no campo do humano. Poderíamos chamar essa

árvore como pertencente ao livro dos seres inanimados20.

Pois bem, a nossa amiga árvore só passa a fazer parte da representação do “real”

quando ganha existência, justamente ao ser descrita (ou narrada) por um humano para outro

humano. Jacques Lacan esclarece como se dá tal processo:

Reflitam um instantinho sobre o real. É porque a palavra elefante existe na

língua, e porque o elefante entra assim nas suas deliberações, que os homens

puderam tomar em relação aos elefantes, antes mesmo de tocá-los, resoluções muito

mais decisivas para esses paquidermes do que o que quer que lhes tenha acontecido

na sua história – a travessia de um rio ou a esterilização natural de uma floresta. Só

com a palavra elefante e a maneira pela qual os homens a usam, acontecem, aos

elefantes, coisas, favoráveis ou desfavoráveis, fastas ou nefastas – de qualquer

maneira, catastróficas – antes mesmo que se tenha começado a levantar em direção

a eles um arco ou um fuzil (LACAN, 1986: 206).

20 Utilizo o termo “seres inanimados” para tudo aquilo que não faz parte da linguagem, ou seja, aquilo que não foi simbolizado. A linguagem teria nascido, portanto, apenas quando o segundo humano nasceu. Tomei a liberdade de parafrasear Jorge Luis Borges em um livro seu no qual cita uma certa enciclopédia chinesa que catalogava todos os seres fantásticos, ou imaginários.

46

Esse caminho de um humano a outro por meio do discurso é, justamente, o que

chamamos de História. Barthes descreve com veemência esse entreato no livro O rumor da

língua:

O prestígio do aconteceu tem uma importância e uma amplitude

verdadeiramente histórica. Há um gosto de toda a nossa civilização pelo efeito do

real, atestado pelo desenvolvimento de gêneros específicos como o romance

realista, o diário íntimo, a literatura do documento, o noticiário policial, o museu

histórico, a exposição de objetos antigos e, principalmente, o desenvolvimento

maciço da fotografia, cujo único traço pertinente (comparada ao desenho) é

precisamente significar que o evento representado realmente se deu (BARTHES,

1988: 156).

Chegamos aqui a um ponto de crucial importância: quando Barthes fala da fotografia

como a maior representante de “documentos realistas”, explica também que após deflagrado o

processo de captação da imagem, essa foto passa pelo que podemos chamar de estrada do

discurso, que envolve: narração, apreensão, criação, interdição e outras composições do

campo coletivo. Nesse percurso, Barthes afirma: “O que a fotografia reproduz ao infinito só

ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se

existencialmente” (BARTHES, 1980: 13).

Para entender as fotografias, temos que lhes atribuir uma existência futura e exposta ao

tempo no qual esta existência se insere. Seria como se a foto passasse por dois processos de

revelação, o primeiro na câmara escura, em que o vazio e o nada ainda são seus aliados, e o

segundo na revelação diária feita pelo coletivo que a detém. Vejamos essa estrada reveladora:

temos abaixo duas fotos de guerra, a primeira, analisada neste trabalho, foi tirada por Louis

Lowery em 1944, em Iwo Jima; a segunda, foi tirada por Hung Cong Ut, em 1972, após um

ataque de Napalm na guerra do Vietnã21.

21 Em 08 de junho de 1972, o exército americano ordenou às forças aéreas do Vietnã do Sul atacar a vila de Trang Bang. Hung Cong (Nick) Ut tirou essa foto, que foi vista pela primeira vez na capa da revista Time, em 1972.

47

Foto tirada por Louis Lowery, em Iwo Jima, em 1944.

Foto tirada por Hung Cong Ut após um ataque

de Napalm na Guerra do Vietnã, em 1972.

A foto de Lowery, referente à Segunda Guerra Mundial, recebeu uma narrativa de

heroísmo por parte do discurso norte-americano. Independente de ter sido obtida ou não a

partir de uma situação forjada (ou repetida), a foto percorreu o caminho dos mitos épicos de

guerra – no caso dos Estados Unidos, um herói coletivo empunhando a bandeira. Por outro

lado, a foto referente à guerra do Vietnã seguiu pelo riacho da contra-cultura americana nos

anos 70, e sublinhou como uma caneta marca-texto o “Outro” como herói na figura da criança

nua, vitima da crueldade de uma guerra que aquela sociedade já não suportava mais.

48

A foto da Segunda Guerra seria comparável à tela “A Liberdade guiando o povo”, de

Eugène Delacroix (1830-1831, óleo sobre tela, Museu do Louvre, Paris, França), pois ambas

– foto e pintura – foram erguidas ainda sob a égide do Iluminismo. Vemos então o que

Barthes confirma: “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é

sempre invisível: não é ela que vemos” (BARTHES, 1980: 16).

A Liberdade Guiando o Povo (La Liberté guidant le peuple) é uma pintura de Eugène Delacroix em

comemoração à Revolução de Julho de 1830, com a queda de Carlos X22.

A história enigmática dos seis soldados americanos da foto possuía uma dupla

representação: a da acusação de ter forjado um momento histórico (mas não seriam todos os

momentos fotográficos composições de um teatro?), e a da própria incapacidade do ser

humano de aceitar-se nas fotos: “Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me

julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de

que ele serve para exibir sua arte” (BARTHES, 1980: 27). Para Barthes, o ato fundamental do

ser humano é olhar a si no retrato como um duplo de si mesmo. O autor continua: “Em outras

palavras, ato curioso: não paro de me imitar e é por isso que, cada vez que me faço (que me

deixo) fotografar, sou infalivelmente tocado por uma sensação de inautenticidade”

(BARTHES, 1980: 27).

Podemos compreender, dessa forma, como é iniciado o processo, pois ele é simples e

mecânico, parecido com um tiro: Lowery aponta para os soldados americanos e dispara a sua

Kodachrome; a partir daí não temos mais respostas, mas a paciência de esperar o processo que

se inicia na História. Para entender melhor, citamos Umberto Eco em seu Viagem na

22 Uma mulher representando a Liberdade guia o povo por cima dos corpos dos derrotados, levando a bandeira tricolor da Revolução Francesa em uma mão e brandindo um mosquete com baioneta na outra (fonte: www.pt.wikipedia.org, acesso em 05/11/2009).

49

irrealidade cotidiana, no qual busca interpretar a famosa foto de Ernesto Che Guevara que se

tornou produto de consumo do capitalismo em camisetas e pôsteres:

Não interessa saber se se tratava de uma pose (e portanto de um falso); ou

se era o testemunho de um ato de bravata consciente; se foi obra de um fotógrafo

profissional que calculou o momento, a luz, o enquadramento; ou se ela se fez, por

assim dizer, sozinha, tirada por um acaso feliz e por mãos inexperientes. A partir do

momento em que surgiu, seu trajeto comunicativo começou: e uma vez mais o

político e o privado foram atravessados pelas tramas do simbólico que, conforme

sempre aconteceu, demonstrou-se produtor de realidade (ECO, 1984: 273).

Não há possibilidade de interromper a rede que discute, transmite e reproduz o

documento histórico. O “real”, no sentido simples da realidade crua, sofre com o impacto

dessas intermediações e, principalmente, com o que os simbolismos e a imaginação possam

interferir nesse caminho. Peter Burke fala sobre essa intermediação: “É certamente impossível

estudar o passado sem a assistência de toda uma cadeia de intermediários, incluindo não

apenas os primeiros historiadores, mas também os arquivistas que organizam os documentos,

os escribas que os escreveram e as testemunhas cujas palavras foram registradas” (BURKE,

2004: 16). Por isso, não temos o direito, como historiadores, de negligenciar outras questões,

como por exemplo os rumores, lendas, vestígios, simbolismos e construções discursivas e

narrativas da História de cada povo ou nação. No caso de uma foto, não poderíamos esconder

o que Francis Haskell23 chamou de “o impacto da imagem na imaginação histórica”.

Nesses termos, uma foto, uma escultura, um quadro podem representar em seu

conjunto, na maioria das vezes, o entendimento completo apenas para a sociedade que os

criou. Podemos entender, estudar e nos especializarmos na tela “Guernica”, de Pablo Picasso,

mas somente os moradores da pequena cidade espanhola bombardeada em 1937 por aviões

alemães, com o apoio do ditador Francisco Franco, conseguiram depreender por inteiro a alma

desse quadro cubista. Erwin Panofsky24 construiu uma frase perfeita para essa compreensão:

“[Um] nativo australiano não poderia reconhecer o tema da Última Ceia; para ele, a cena

apenas evocaria a idéia de um alegre jantar” (Panofsky, 1939).

Por vezes, esses rumores entre a imagem e a realidade são encobertos por motivos

díspares intrínsecos à História de cada nação, criando o que chamamos de névoa que encobre

o Real. São datações e minúcias que jogam uma manta sobre o fato, obstruindo-o do

23 Francis Haskell (1928-2000), historiador de arte britânico. 24 Erwin Panofsky (1892-1968), historiador de arte alemão.

50

entendimento. Jorge Luis Borges criou um conto, no livro História universal da infâmia, que

pode ser usado como metáfora desses rumores, atribuindo-lhe autoria de um outro escritor:

Naquele Império, a Arte da Cartografia logrou tal perfeição que o mapa

duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma

Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios

de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e

coincidia ponto a ponto com ele. Menos apegadas ao Estudo da Cartografia, as

Gerações Seguintes entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e não sem

Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do

Oeste subsistem despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por

Mendigos; em todo o País não resta outra relíquia das Disciplinas Geográficas

[Suáres Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quatro, cap. XLV, Lérida,

1658] (BORGES, 1989: 71).

Esse fragmento de Borges, tão esmiuçado por filósofos e lingüistas, carrega um

ensinamento fundamental. Temos de ter paciência para entender as histórias e seus fatos. Não

podemos debruçar sobre as fontes elementos em excesso. Talvez o melhor seria dar um passo

atrás e esperar o que as ilusões e simbolismos nos indicam. Estudar a História, por vezes, pelo

que foi esquecido, e não pelo que foi apreendido, estudar a História pela negação dos

momentos graves e não pela afirmação do distribuidor oficial. Sigmund Freud descobre um

pouco essa névoa com uma explicação ponderada:

Cada porção que retorna do esquecimento instala-se com força peculiar e

exerce uma influência incomparável e poderosa na massa, e eleva um irresistível

clamor pela verdade, frente à qual a objeção lógica torna-se impotente (...). A

verdade esquecida permanece oculta nas idéias ilusórias; quando esta retorna,

enfrenta distorções e incompreensões, e a compulsiva convicção que se solda à

ilusão emerge desse coração da verdade e espalha-se sobre os erros que a envolvem

[a verdade histórica] (FREUD, 1975: 85).

Os profissionais que analisam as fontes, muitas vezes no afã dessa busca insaciável

pela verdade e pelo realismo históricos, adensam essa névoa – tal como o mapa narrado por

Borges. O simulacro que Borges cria por intermédio de um cartógrafo seria como uma infinita

crítica a uma obra que não existe. Esperemos, então, o seu per-curso e os seus desvios.

Deveríamos entender o “Real” como uma sunya, palavra budista para “realidade” que

significa vazio. O tempo, assim, cuidará de preenchê-lo.

51

CAPÍTULO 5

JAPÃO: UM CONSTRUTO MILENAR

“A longa duração não é muito longa. Entre ela e o ‘acontecimento’, o enigma é o tempo médio” (VILAR, 1976: 161).

O Japão é e foi caracterizado pelo eurocentrismo e pela antiga antropologia como o

oriente distante. Nesse caso, passam pela palavra “distante” vários verbetes: incomum,

indecifrável, inominável e aquém do desejo de interpretações mais profundas.

A análise construtiva que tentaremos seguir passa pelo novo período não só da

História, como também da antropologia, transformando o que era uma história inessencial de

um país em algo relevante.

Não há dúvida de que tanto para o filme de Clint Eastwood – que tem o mesmo nome

de Cartas de Iwo Jima, livro publicado em 200225 –, como para o próprio livro, o Japão foi

autor essencial na Segunda Guerra Mundial e que, portanto, merece ser incluído nos circuitos

de análise histórica.

Para isso, é possível dividir essa análise em duas partes:

1) A construção de seus soldados como seres desejantes e delineadores dos seus

próprios mitos; e também a profundidade do tempo histórico japonês, derivação da sua

própria cultura, e do discurso servido há séculos de sua existência nesse banquete histórico.

2) E, por fim, a interpretação daquele que considero o elo de ligação entre desejos e

desejados com a cultura norte-americana, general Tadamichi Kuribayashi.

As duas partes deste capítulo, portanto, apresentam o debate em torno da construção

deste Outro – o Japão – e de suas relações com o discurso fundante representado pelos

Estados Unidos.

25 O livro contém publicadas as cartas escritas pelo general Tadamichi Kuribayashi. No final da década de 20, passou uma temporada nos Estados Unidos. Todas as suas impressões eram relatadas em cartas que ele enviava para a esposa e o filho Taro, então com um ano. Por essa razão, Kuribayashi sempre desenhava o que via para que seu filho pudesse entender. Essas cartas, bem como aquelas que o general Kuribayashi escreveu durante a guerra, estão reunidas neste livro, que será retomado adiante.

52

5.1. O OUTRO IRREDUTÍVEL E O SUICÍDIO

“O sentido não está pontualmente presente em lugar algum na linguagem, ele está sempre sujeito a uma espécie de derrapagem (ou demora) semântica que impossibilita o signo de jamais (por assim dizer) coincidir consigo mesmo em um momento de apreensão perfeita, sem resíduos” (NORRIS, 1987: 15).

A dificuldade de analisar um objeto distante é incorrer inconscientemente num

empirismo tolo. Não há como o historiador distanciar-se de si mesmo e deitar-se numa cama

estranha, analisando conceitualmente objetos distantes. Michel de Certeau fala dessa marca

indelével que cada historiador carrega: “Certamente não existem considerações, por mais

gerais que sejam, nem leituras, por mais longe que as entendamos, capazes de apagar a

particularidade do lugar de onde eu falo e do domínio por onde conduzo uma investigação”

(DE CERTEAU, 1976: 17).

Ao falar do suicídio japonês na ilha de Iwo Jima, entraremos em um despenhadeiro

alcantilado que não cessará as suas asperezas por análises simplistas, ou pelo caminho da

História tradicional.

Seria preciso investigar o que Gustave Flaubert chamara de “tatuagem imemorial”,

inscrição engendrada na “pele” do inconsciente e que, no caso dos soldados japoneses,

carrega séculos da existência constitutiva do discurso daquela cultura. Essa escritura pressiona

as palavras como um trem lotado, causando aos olhos do outro um contra-senso, uma espécie

de irrealidade, uma angústia, e transformando, para os soldados japoneses, o desejo em

desejado, o significado em significante, e o outro em nós mesmos.

Para falar de desejo, fazemos referência ao conceito de Jacques Lacan ao afirmar em

seus escritos que o sujeito é o desejo do Outro. Para Lacan, o desejo do homem é o desejo do

outro, e só como outro ele deseja. Dessa forma, o primeiro significante está implícito nessa

marca: o sujeito nasce no lugar do Outro. Por isso, carrega em si um paradoxo: o ser só é ser

na fala, mas essa fala está ancorada na existência do Outro. De acordo com Freitas, o discurso

lacaniano para essas hipóteses é fundamental: “Para Lacan, o sujeito é o efeito intermediário

entre aquilo que representa um significante e outro significante. Assim, o sujeito só pode ser

apreendido através de uma ‘metáfora bem sucedida’ neste fugidio momento em que é

representado por um significante para outro significante” (FREITAS, 1992: 105).

53

No filme Cartas de Iwo Jima, em nenhum momento é mostrado o olhar de um

americano assistindo a este teatro histórico. Propositalmente, talvez, Clint Eastwood não

tenha se rendido ao prazer da hipocrisia em relatar a loucura nos olhos do outro.

Para o soldado japonês não há derrota, o suicídio eleva-o a uma vitória mítica, entrega-

se à morte como se entrega ao mestre. Essa relação com seus mestres e mitos escarnece uma

espiral inquebrantável: “O sujeito que pensa o pensamento do outro, vê no outro a imagem e o

esboço dos seus próprios movimentos. Ora, cada vez que o outro é exatamente o mesmo que o

sujeito, não há outro mestre exceto o mestre absoluto, a morte” (LACAN, 1996).

Para Lacan, essa relação eu-outro-morte-suicídio é como as estradas que desaguavam

em Roma26. Todavia, esse “outro” citado só é iniciado pelo mito e pela História, pois o

“Outro” maiúsculo seria o indecifrável círculo Japão – Estados Unidos – Japão, e por ser

indecifrável torna-se irredutível.

Essa diacronia leva o soldado japonês a ter como o outro desejado os seus ancestrais

mais remotos, exceto o tenente-general Tadamichi Kuribayashi27, que residiu nos Estados

Unidos e resistiu até o último minuto ao grito de seus ancestrais. Para ele, o desejo talvez seja

deslocado e decifrável em outras paragens, mas essa é uma história que será contada depois.

Deparamo-nos aqui com uma diferença fundamental entre o soldado japonês e o

soldado americano: a construção de suas mitologias. No caso japonês, por se tratar de uma

construção milenar, o edifício está pronto. Nesse ponto, a história do Japão está à mercê desse

teatro da consciência, como disse Jacques Derrida sobre a escritura (1967): “A diferença entre

a palavra e a escritura é a falta” (DERRIDA, 1995: 59). Nessa lacuna, colocaremos uma luz

nas dessemelhanças entre essas culturas tão díspares.

Há uma diferença fundamental entre a construção dos mitos antigos, analisados por

filósofos como Marilena Chauí – que faz isso de modo tradicional, como quando explica a

presença do mito de Édipo na construção de narrativas diversas para a proibição do incesto –,

e outras possibilidades teóricas advindas do pós-estruturalismo. Na explicação de Roland

Barthes, o mito é definido em certos episódios como algo que pode “transformar um sentido

em forma. Isto é, o mito é sempre um roubo de linguagem” (BARTHES, 1982: 152). Para este

autor, o mito não é nem pode ser considerado um objeto, posto que ele é mensagem e

comunicação. 26 A exemplo do dito popular “todas as estradas deságuam em Roma”, cujo texto completo seria: naquela época, apenas os romanos faziam estradas, daí esta afirmação. Portanto, trata-se de um axioma quando colocado em contexto. 27 O general Tadamichi Kuribayashi (07/07/1891-22/03/1945) era o comandante da defesa japonesa durante a Batalha de Iwo Jima.

54

Ainda em relação à construção dos mitos, Jacques Derrida, em A escritura e a

diferença, no capítulo intitulado “Edmond Jabès e a questão do livro”, apresenta as idéias

deste poeta, que interroga: “Que diferença há entre escolher e ser escolhido quando não

podemos fazer outra coisa senão submeter-nos à escolha?” (JABÈS apud DERRIDA, 1995:

54). O sujeito seria, ao mesmo tempo, aquele que escreve e que é escrito.

Para Jabès, ainda de acordo com Derrida, o “Livro”28 é a essência da Escritura, já que

tudo está no livro. Tanto a gênese do mito ancestral, como as milhares de desconstruções

vividas pelos séculos de existência. Todos estão dentro do livro. Inclusive o seu próprio

interstício, onde possam pairar as dúvidas cotidianas. Para Jabès, “o mundo existe porque o

livro existe”, e o livro é a própria obra do livro.

Essa mesma perspectiva pode ser buscada ao pensarmos nos soldados japoneses. A

dívida simbólica do soldado japonês está no entrecruzamento da sua tradição com a

construção cotidiana de seu presente. Para refletir sobre isso, aproximamo-nos da compleição

do mito de Roland Barthes, já referido: “Mito é um sistema de comunicação, é uma

mensagem” (BARTHES, 1982: 131).

Estamos falando da história dos homens e não dos seres inanimados, por isso o mito

não pode ser sacralizado fora do “Livro” de Jabès, já que ele só é constituído pelo discurso e

pela História. O cinema nos ajuda na compreensão desta afirmação, pois é pródigo de signos.

Quando nos deparamos com o suicídio no filme japonês, somos arremessados contra o horror

da brutalidade. Talvez acostumados com a assepsia americana, como em filmes de astronautas

em que o suicídio é representado por uma pílula, desnudamos de nossa pseudocapacidade

civilizatória o encontro com as entranhas japonesas detonadas por granadas.

É certo que Eastwood quis realmente produzir esse efeito de sentido, pois trabalha em

quase toda sua obra com personagens defrontados com outras culturas ou estigmatizados. A

diferença nesse exemplar japonês de seus filmes é que não há o confronto cinematográfico

dentro da mesma história. Ele ocorre apenas no campo do simbólico e do imaginário

(portanto, faz-se presente para o espectador), como quando o primeiro alferes sai da caverna

para averiguar a chegada dos americanos na Ilha e se depara com um gigantismo inimaginado

feito de milhares de embarcações. Nesse ponto, o encontro com o “outro” já foi entregue ao

construto histórico, pois a derrota era iminente. Só restava àqueles soldados japoneses o

encontro com as próprias escrituras e com sua própria gênese mitológica. Nesse sentido, não

há vencedores e derrotados. Há apenas o mistério da morte sendo decifrado, ou não.

28 Nesse sentido, o “Livro” seria a gênese e a continuidade de todas as relações humanas.

55

Essa linguagem mítica japonesa é forjada por vários integrantes do universo construtor

desses discursos, como o cinema de Akira Kurosawa. No filme Os sete samurais29, o tempo e

a coreografia das batalhas conduzem à inevitabilidade da morte. Para Kurosawa, o horror das

batalhas nos leva erradamente a indagações ocidentais. Para ele, o pior horror é o inumano, é

o não-ser, por isso Eastwood tem como referência essas imagens nas cenas de suicídio

mostradas em seu filme. Aquilo que para o Ocidente pode ser desprezível ou extremo, para o

outro irredutível do Oriente pode ser justamente o que mais nos aproxima de estarmos dentro

do mundo, e esse mundo dentro do “Livro” escrito pelo discurso, aparecido (fazendo-se

presença) por meio da linguagem.

Vejamos o que fala Julia Kristeva sobre a relação do humano com a morte: “O amor à

morte, o desejo de morte, é o segredo sobre o qual fechamos os olhos para ser capazes de

olhar sem ver, de dormir e de sonhar. Se não fechássemos os olhos só veríamos o vazio, o

preto, o branco e formas partidas” (KRISTEVA, 1996: 10).

Para Kristeva, fechar os olhos para o sonho ou para a morte, em um encontro

mitológico, é a própria aquiescência com nossa mais íntima humanidade. Se entendermos os

mitos japoneses ou qualquer outro mito como um sistema semiológico, de acordo com Roland

Barthes, podemos entender como foi feita e refeita essa história: “Pode conceber-se que haja

mitos muito antigos, mas não eternos, pois é a história que transforma o real em discurso, é

ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica” (BARTHES, 1982: 132).

Para Barthes, a transformação do real passa pelos fundamentos da sociedade. Ou seja,

a sua escrita, a tradição oral, as suas lendas, o cinema, as suas músicas e, principalmente –

como no intricado sistema de cavernas que os japoneses construíram na ilha –, as interações

sociais. Não há mito, para Barthes, sem fundamento histórico.

Esses signos que envolvem o mito servem como paradoxo, como desorientação,

tornando risíveis as verdades absolutas. As imperfeições que insistimos em apontar e que

resistimos em detalhar não só na cultura mitológica japonesa, como em qualquer outra cultura

que não seja a nossa, são a estrada que carrega o significante mitológico. Essa estrada, porém,

ao contrário dos mitos, é construída somente pela cultura de cada nação, fundada em suas

diferenças. Ao longo do trabalho do historiador, há várias interdições. Uma delas é o lugar

concreto onde este analista histórico vive, outra são as complexas relações entre mitologia e a

sociedade que a constrói.

29 Cf. Akira Kurosawa, Os sete samurais, 1954, dvd Continental.

56

Michel de Certeau fala sobre a interdição do lugar: “Antes de saber o que a História

diz de uma sociedade, importa analisar como ela aí funciona. Essa instituição inscreve-se num

complexo que lhe permite somente um tipo de produções e lhe interdita outros”. O autor

continua: “Tal é a dupla função do lugar. O lugar torna possível determinadas pesquisas, por

meio de conjuntura e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis” (DE CERTEAU,

1976: 27). Nesse sentido, também o auxílio da psicanálise, com Lacan e Freud, e a visada dos

pós-estruturalistas, como Barthes e Derrida, vai iluminando esse ponto cego colocado por de

Certeau, que mesmo com seus vultos e penumbra nos guia pouco a pouco no caminho de

reconhecimento do “Outro”.

Quando nos deparamos com a arquitetura russa, isso não causa, em nós, sentimentos

puros de significação. Bela e exótica, diríamos, mas não há profundidade. Por outro lado,

sentimentos profundos e reconfortantes envolvem os brasileiros ao se depararem com a

arquitetura colonial em Portugal. Esse caminho é um misto de História, discurso e cotidiano,

que preenche as lacunas desse “real” e nos apazigua com nossos mitos: “Os homens fazem

sua própria História, mas não sabem que a fazem” (LÉVI-STRAUSS, 1949)30.

O que Lévi-Strauss traduz é uma busca pela fruição de sentidos, empreendida por nós

a todo o momento – seja como historiadores, seja como antropólogos – a fim de atingirmos a

plenitude. Todavia, essa compreensão total é impossível, já que há uma tríade entre fato –

signo – sentido que constrói uma verdade lacunar31. De acordo com Barthes, “a linguagem

dos escritos não está encarregada de representar o real, mas de o significar” (BARTHES,

1982: 157).

Para tentarmos dar sentido ás várias verdades existentes, é preciso percorrer o caminho

ou a fenda que se abre entre elas. Essa fenda é o próprio interstício do discurso, já que para

Foucault o discurso está no poder, porém também está na resistência:

O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo

diante dos seus próprios olhos; e quando tudo pode, enfim, tomar a forma do

discurso, quando tudo pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as

coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade

silenciosa da consciência de si (FOUCAULT, 2008b: 49).

30 Artigo intitulado “Antropologia cultural”, publicado na Revue de Métaphysique et de Morale, número 54, 1949. 31 Para Michel Foucault, não existe uma verdade absoluta. Se entendermos a verdade como parte da construção discursiva, será preciso construir também a lacuna. Foucault afirma, em A ordem do discurso (1971), que “o discurso só pode ser ameaçado pelo nada, pelo não-ser, pelo não-sentido” (Foucault, 2008b: 49).

57

Podemos usar na construção mítica japonesa a “verdade lacunar”. Esse vestígio

histórico, que proporciona a construção discursiva do povo japonês, foi feito e refeito a partir

de uma mitologia milenar, criada na linguagem oriental. Esse vestígio sofre do esquecimento

e do desaparecimento quando transformado em verdade e, portanto, é nessa lacuna que

encontraremos o suicídio – posto que é fim, já que serve ao “deus da morte” –, e

encontraremos o “outro” – posto que é início, porque esse “deus” está dentro da história dos

homens.

5.2. GENERAL KURIBAYASHI: DO DESEJO À IRREDUTIBILIDADE

“Não se trata de saber se eu falo de mim de conformidade com aquilo que eu sou, mas se, quando falo de mim, sou idêntico àquele de quem falo” (LACAN, 1998: 520).

O titulo deste tópico já nos leva a crer que possamos dividir a vida de Kuribayashi em

duas partes: a primeira, com todo o aprendizado que teve no Japão – o que levou esse

personagem não só a se tornar um ser inserido na cultura japonesa, como também a se tornar

um militar de Alta Patente durante os seus primeiros 36 anos de vida; e a segunda, como uma

nova formação iniciada com o aprendizado da língua inglesa e a cultura norte-americana,

onde cultuou – como podemos ver em várias de suas cartas – um país novo e ao mesmo

tempo moderno, causando um certo desconforto entre o seu “ser japonês” e o seu “ser

americano”, ávido de contato com a nova cultura.

Neste ponto, poderíamos dizer que seriam três partes, pois ele começa como

irredutível ao “outro” norte-americano, passa pelo desejo vinculado a esse Outro e retorna no

epílogo de sua jornada à irredutibilidade. Esse processo, ou esse caminho tomado por

Kuribayashi, nunca foi e nunca será fácil a qualquer sujeito e a qualquer cultura.

Essa lacuna, brecha ou mesmo borda, por levar essa estrada a dar a volta sobre si

mesma – transformando o fim em início –, só é possível pela falta no sujeito; ou, para ser

mais específico, pela incompletude intrínseca a cada um de nós. Podemos entender essas

cartas como fonte-autor, e entender que existe em todas as fontes e todos os autores um traço

indelével e individual, e para seu desvendamento seria necessário ler todas as fontes como um

verdadeiro psicanalista. No livro Margens do discurso, Rosana Soares diz:

58

Nesse percurso, a psicanálise surge como uma possibilidade singular, por

considerarmos ser este um dos poucos campos do saber a tomar os vestígios,

sobras, ruínas; umas das poucas teorias a incorporar em sua articulação a falta

como topos produtivo e criador (SOARES, 2009: 19).

O entrelace dessas culturas díspares (a japonesa e a americana) causa ruínas e sobras,

que são fontes inesgotáveis de pesquisa, desde que colocadas na borda que cobre essa história.

No entanto, para esse episódio, Kuribayashi é talvez o único personagem que faz esse elo de

ligação entre a cultura japonesa e a cultura americana.

A história desse militar japonês era incomum, já que havia uma tradição na

universidade do Exército Imperial Japonês de enviar os seus melhores alunos para a

Alemanha, pois a linha militar germânica era mais aceita pelo exército imperial.

Kuribayashi, assim que defrontado com uma cultura divergente, começa a criar

relações intersubjetivas, o que torna esse laço cada vez menos irredutível. Kuribayashi

escreve para o filho Taro em uma de suas cartas: “O velhinho rega a grama do jardim em

frente de sua casa. Papai está olhando crianças brincando de triciclo enquanto conta

histórias do Japão a esse velhinho” (KURIBAYASHI, 2007: 37).

Nesse ponto seria preciso fazer uma pequena digressão: todas as cartas de Kuribayashi

escritas nos Estados Unidos foram destinadas a seu filho Taro, de 5 anos. Apesar da emoção

evidente e sentimentos paternais, existe a clara alusão, até mesmo consciente, de relacionar o

que viveu nesse período de tempo nos Estados Unidos a um novo Japão, com o qual

Kuribayashi sonhava. Misturas de sentimentos ambíguos entre dever e culpa pelo desejo

também se fazem presentes, porém de forma inconsciente, em seus escritos.

No período entre 1928, sua chegada, e 1930, sua partida, Kuribayashi não desenvolveu

planos de batalhas nem agiu como um espião em território inimigo. Ao contrário, os

fragmentos narrativos de suas cartas evidenciam mais a paixão do que a repulsa. O percurso

que caracteriza o desejo do Outro é evidenciado não como objeto, mas como um contra-

estigma, apagando aos poucos as marcas do passado histórico. Vejamos o que Gilles Deleuze

fala sobre desejo e inconsciente:

É verdade que o inconsciente deseja e não faz senão desejar. Mas, ao

mesmo tempo em que o desejo encontra o princípio de sua diferença com relação à

necessidade no objeto virtual, ele aparece não como uma potência de negação, nem

59

como elemento de uma oposição, mas sobretudo, como uma força de procura, uma

força questionante e problematizante que se desenvolve num outro campo que não o

da necessidade e da satisfação (DELEUZE, 1988: 180).

Essa contradição entre afirmação e negação da cultura de outrem eleva esse sujeito à

condição de anti-herói de seus próprios soldados, como podemos verificar na ordem de

construir cavernas numa ilha vulcânica, em vez de enfrentar o inimigo que chegava na praia.

Somente Kuribayashi sabia do potencial por inteiro dos Estados Unidos, e por isso o torna

prisioneiro do seu próprio horror. A luta entre o sujeito e o Outro desejado esvai-se por entre

os laços sociais daqueles que nos confortam dentro de nossa própria cultura. Esses três

vértices, que são o Outro, a incompletude e o inconsciente, estão umbilicalmente ligados,

como diz Mayra Gomes:

Pois o horror vacui nos remete a esse originário, a barra instalada entre o

sujeito e o real, ou entre o sujeito e um Grande Outro; incide na condição de

incompletude da qual tentamos escapar, cuja busca é o motor das articulações

imaginárias pelas quais acreditamos nas nossas irrealidades (GOMES, 2001: 175).

Entende-se como Grande Outro, nesse caso, as construções mitológicas que

constituem a subjetividade desse personagem japonês. O escapismo de Kuribayashi esteve

presente na sua viagem para a América, implicando assim a tentativa de preencher a sua falta.

Gomes assim continua:

Defender a validade do preenchimento do vazio como estratégia implicaria

o reconhecimento da falta originária, o reconhecimento de que tudo se constrói em

torno disso na suposição da completude do Outro, completude contingencial

(porque imaginada) que se torna necessária como mola que é para o acionar dessas

estratégias. Isso seria uma admissão intolerável e paradoxal, quando o princípio da

dimensão humana é o trabalho no sentido de negá-la (GOMES, 2001: 175).

Kuribayashi, nesse sentido, nunca se afastou da sua própria cultura; nas cartas

enviadas a seu filho, sempre que um elemento novo aparece, é comparado ao Japão. Como,

por exemplo, a descrição, numa das cartas, de vizinhas de mais idade:

60

Essas são as senhoras americanas tagarelando enquanto trabalham na

cozinha. A de vestido azul é a dona da pensão. A que está descascando pêssego

mora no terceiro andar e a está ajudando. A proprietária apronta-se para o inverno

e prepara diariamente conserva em diversos alimentos, como no Japão

(KURIBAYASHI, 2007: 41, grifos do autor)32.

Ou quando ele diz em outra carta, lamentando-se: “Só os gatos são iguais aos do

Japão”. Percebe-se aí a contradição entre o desejo e a representação do Real, pois sabemos

que não há personagem histórico que não esteja inserido no seu próprio coletivo social.

Esse coletivo é a gênese da criação de todo sujeito, e este é constituído a partir dessas

normas simbólicas. Como afirma Lévi-Strauss:

(...) Pertence à natureza da sociedade o facto de ele se exprimir

simbolicamente nos seus costumes e nas suas instituições; pelo contrário, as

condutas individuais normais são simbólicas por si mesmas: elas são os elementos a

partir dos quais se constrói um sistema simbólico que não pode deixar de ser

coletivo (LÉVI-STRAUSS, 1967: 155).

Não há, portanto, como nos depararmos com o outro como uma fonte inerte; toda

fonte é por si só recheada de redes de significantes. Não há como dissociar o sujeito, primeiro,

daquilo que o forma e, segundo, daquilo que ele ausculta. É essa interação da linguagem no

ser que Lacan nos explica:

O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por esse efeito ele

não é causa de si próprio, ele traz em si o verme da causa que o escinde. Pois sua

causa é o significante, sem o qual não haveria nenhum sujeito no Real. Mas esse

sujeito é o que o significante representa, e ele não poderia representar nada senão

para um outro significante: a que desde então se reduz o sujeito que escuta

(LACAN, 1992b: 320).

Esse nosso personagem é barrado pela solidão, não a solidão simples, negação de

relações interpessoais como a conhecemos, mas a solidão que carrega o signo do Desejo e, ao

mesmo tempo, no seu final, o horror do Real. Os seus interlocutores eram, na maioria,

testemunhas caladas, como seus soldados na Ilha, ou personagens vazios de sua vida na

32 Todas as cartas de Kuribayashi a seu filho, Taro, são acompanhadas de desenhos representativos da narração e dos eventos descritos.

61

América; e, por fim, seu filho Taro, de 5 anos. Poderíamos dizer que as cartas de Kuribayashi

endereçadas ao Japão na verdade eram cartas dirigidas a si mesmo como um apaziguamento

histórico33.

Podemos explicitar essa relação Estados Unidos – Kuribayashi – Japão em uma

viagem programada por ele para partir de Fort Riley, Kansas, em um recém-adquirido

Chevrolet (modelo K 1929), atravessando 2 mil quilômetros do continente norte-americano

até chegar em Washington D. C. A bordo do seu Chevrolet, Kuribayashi se questionava sobre

como uma nação que ainda guerreava montada em seus cavalos poderia competir com esse

aparato tecnológico, que via não só na indústria automobilística mas também na indústria

bélica. Amante de seus cavalos no Japão, Kuribayashi sacrificava a sua própria história para

entender esse mundo novo em que vivia. Em uma de suas cartas, ele demonstrava seu

maravilhamento com uma visita que fez a uma fábrica de automóveis em Detroit: “Um botão

fazia tudo”. Nos Estados Unidos, o seu Chevrolet era seu novo cavalo, e por ser mais rápido,

mais moderno, transformava essa inquietude japonesa em força. O cavalo, por mais que

participasse da história dos homens, não foi criado por ele, como o Chevrolet 1929. Por isso,

para Kuribayashi, causava essa sensação de desnivelamento nas forças de guerra. Podemos

dizer que essa vida entre desejos e inclemências acabou no dia 19 de fevereiro de 1945,

quando as tropas americanas desembarcaram na Ilha de Iwo Jima, com os seus

“Chevrolets”34.

Se pensarmos no Japão pós-Segunda Guerra Mundial e no que se tornou depois,

podemos dizer que o general Kuribayashi seria um dos marcos do “novo” herói mítico

japonês. Mesmo hoje, Tóquio e as grandes cidades japonesas convivem com o que há de mais

moderno entrelaçado com culturas milenares.

Kuribayashi não pensava em ser herói, mas algum herói autêntico por acaso pensa em

se consagrar? Sua intenção era aproximar-se mais do “profano”, no sentido de que ele queria

romper com a tradição, dessacralizar algo para engendrar o novo (como nos escritos de

Mikhail Bakhtin sobre as festas medievais pagãs). Por isso há uma estátua individual desse

heróico general japonês no monte Suribachi, diferente da foto coletiva dos soldados

americanos, que se tornou também uma estátua nos Estados Unidos.

33 Como exemplo, temos uma das cartas escritas a Taro: “Sou contra comer entre as refeições, por isso capricho nas três diárias. Com esse pretexto, papai come bastante na casa dos outros (será uma explicação prática das táticas de guerra?). Vou riscar essa frase porque o Taro ainda não irá entender o significado” (Kuribayashi, 2007: 113). 34 O Chevrolet é usado aqui como uma metáfora para toda a ação tecnológica envolvida no bombardeio e desembarque na Ilha de Iwo Jima.

62

Foi apenas pelo simbólico e pela construção discursiva de um novo herói que

Kuribayashi se tornou parte do imaginário japonês, ao mesmo tempo – paradoxalmente –

carregando consigo, até a morte, seus ancestrais.

Umberto Eco, em seu livro Viagem na irrealidade cotidiana, diz algo sobre a

formação de um herói:

O herói verdadeiro é sempre herói por engano, seu sonho seria o de ser um

honesto covarde, como todos. Se tivesse tido a possibilidade, teria resolvido o caso

de outra forma, e de modo incruento. Não se gaba nem da sua morte, nem da de

outrem. Mas não se arrepende. Sofre e cala, os outros é que se aproveitam dele,

tornando-o um mito, enquanto ele, o homem merecedor de respeito, não passava de

um coitado que reagiu com dignidade e coragem diante de uma história maior que

ele (ECO, 1984: 146).

Temos assim dois momentos inessenciais na história desse personagem: a foto de

Kuribayashi ao lado de seu Chevrolet, antes de sua viagem, rompendo as estradas americanas

e demonstrando todo o seu desejo pela cultura norte-americana; e o outro momento, quase ao

final de sua história, quando ele retira sua própria insígnia para lutar como um soldado

comum.

Na medida em que ele enfrenta o “Outro” na contradição do desejo e do irredutível,

ele troca de papel várias vezes. De herói a narrador, da narração à interpretação, da

interpretação à submissão às escrituras, das escrituras a um novo desejo, do desejo a um mito

fundante, do mito fundante à irredutibilidade, e por fim ao suicídio: “A escritura é o momento

desse vale originário do Outro no ser. Momento da profundidade também como decadência,

instância e insistência do grave” (DERRIDA, 1995: 52).

Jacques Derrida nos apresenta esse momento no qual o general Kuribayashi possa ser

objeto e sujeito, marcado por algo maior. Marcado na insistência do “Livro” essencial da

História como um austero “Todo”, sendo tragado pela linguagem e pelo discurso em que a

existência fora dele é o Nada, e onde as coisas e as formas são um austero “Tudo”.

63

Cronologia: Tadamichi Kuribayashi e a História35 :: 7 de julho de 1891: Nasce Tadamichi Kuribayashi na província de Nagano, Japão. Ele foi o

segundo filho de Tsurujiro Kuribayashi.

:: 1894: Tadamichi é matriculado na Escola Primária Toyosaka Jinjo Shogakko, em Nagano.

:: 1902: É matriculado na Escola Primária Superior e Municipal de Matsushiro-Cho.

:: 1904: Tem início a guerra russo-japonesa.

:: 1906: Matricula-se na Escola Ginasial da Província de Nagano (Nagano Chugakko), atual

Escola de Ensino Médio de Nagano.

:: 1907: Começa a ter aula de shakuhachi (instrumento de sopro).

:: 1911: Presta exame para ingressar na Academia Militar do Exército e na Escola Toa Dobun

Shoin de Xangai, sendo aprovado em ambas. Forma-se na Escola Ginasial da Província de

Nagano; em dezembro ingressa no 15º. Regimento de Cavalaria de Narashino como cadete.

:: 1912: Ingressa na Academia Militar do Exército em Ichigaya, Tóquio.

:: 1914: Em maio, forma-se na Academia Militar do Exército e é designado para o 15º.

Regimento da Cavalaria como oficial-aspirante. Em dezembro assume a posição de segundo

tenente da Cavalaria do Exército. Eclode a Primeira Guerra Mundial.

:: 1915: Em dezembro, ingressa na Escola de Cavalaria do Exército como estudante técnico

em artes da equitação.

:: 1916: Em novembro, forma-se na Escola de Cavalaria do Exército.

:: 1918: Em julho, passar a ser primeiro-tenente da Cavalaria.

:: 1920: Em dezembro, ingressa na Universidade do Exército.

:: 1922: O irmão mais novo, Kuamo, falece.

:: 1923: Em agosto, é nomeado capitão de Cavalaria. Em novembro, forma-se com honras na

Universidade do Exército e recebe o sabre com inscrição Onshi. Em dezembro casa-se com

Yoshii Kuribayashi, de 19 anos, e fixa residência em Narashino, província de Chiba. Grande

terremoto de Kanto.

:: 1924: Em novembro, nasce seu primogênito, Taro. Em dezembro, faz parte do

Departamento de Supervisão Geral de Educação do Exército japonês.

:: 1925: Em maio, torna-se membro do Departamento de Supervisão da Cavalaria.

35 As informações reproduzidas nesta cronologia foram retiradas do livro Cartas de Iwo Jima, de Tadamichi Kuribayashi. Edição de Tsuyuko Yoshida. São Paulo: JBC, 2007, pp. 225-231. Este livro deu origem ao filme de Clint Eastwood referido neste capítulo.

64

:: 1927: Crise no sistema financeiro.

:: 1928: Em março, viaja para os Estados Unidos. Em maio, muda para Boston, próximo à

Universidade de Harvard. Em agosto reside como pensionista na casa de um americano em

Bufallo. Estuda inglês sem contato com outros japoneses. Em novembro, retorna à Embaixada

Japonesa em Washington. Nasce sua filha Yoko, no Japão.

:: 1929: Em janeiro reside em El Paso, no Texas. Adquire um automóvel Chevrolet. Em maio

acompanha Shigeri Takeshita, oficial da Marinha Japonesa, em visita em El Paso. Em agosto

reencontra o major Yoshio Wada em viagem ao México. Em setembro, transfere-se para Fort

Riley, no estado de Kansas. Ocorre a violenta queda de ações da bolsa de Nova York. Em

dezembro, com o retorno programado para janeiro, viaja sozinho de carro de Fort Riley a

Washington D. C., passando pelas montanhas nevadas.

:: 1930: Em fevereiro é expedida a ordem de retorno ao Japão. Em março passa ser major da

Cavalaria. Em abril, parte de Washington e chega a Liverpool. Visita Londres, Paris e Berlim.

Em julho retorna ao Japão via Sibéria. Fixa residência em Taishido, Tóquio.

:: 1931: Em setembro, integra o Quartel Geral do Estado-Maior e é designado adido militar na

Embaixada do Canadá. Ocorre o incidente da Manchúria.

:: 1933: Em agosto, é graduado tenente-coronel da Cavalaria. Em outubro, retorna ao Japão

pelo oceano Índico. Mora em Shimokitazawa, distrito de Setagaya, Tóquio.

:: 1934: Em abril recebe a quarta ordem do Sol Nascente por serviços prestados.

:: 1937: Em agosto torna-se coronel de Cavalaria e chefe de Políticas Eqüestres do Ministério

do Exército. É designado membro do Conselho de Demandas Militares do Ministério do

Exército.

:: 1938: Incidente da ponte Marco Pólo (começa a guerra total entre Japão e China).

:: 1940: Em março é promovido a general de Brigada do Exército, comandante da Segunda

Cavalaria de Narashino. Em dezembro, é nomeado chefe da Brigada de Primeira Cavalaria

(tropa mecanizada). Assinada a Tríplice Aliança entre Japão, Alemanha e Itália.

:: 1941: Em outubro, foi nomeado chefe de Estado-Maior da 23ª. Tropa enviada a Nanzhi

(região sul da China). Em dezembro, torna-se chefe de Estado-Maior na batalha de ocupação

em Hong Kong. Após a ocupação retorna ao posto Hara, no Cantão (atual Guangzhou), onde

é incumbido de comandar as operações táticas contra Chong Qing. Ataque japonês a Pearl

Harbor, no Havaí; início da guerra no Pacífico.

65

:: 1943: Em março recebe a condecoração Kun Zuihosho (segunda ordem do Tesouro

Sagrado). Em junho, passa a ser general-de-divisão do Exército, acumulando simultaneamente

o cargo de comandante da segunda divisão de Vigilância do Palácio Imperial. Mora na

residência oficial dos comandantes em Roppongi, distrito de Minato, Tóquio.

:: 1944: Em abril, integra o comando militar do leste. Em maio, é designado comandante da

109ª. Tropa. Em 10 de junho parte para o front de Iwo Jima. Despede-se da família pela

última vez. Em 1º. de julho é designado a assumir simultaneamente como comandante-geral

em Ogasawara Heidon, subordinando-se ao Alto Comando Militar da época e diretamente

subordinado ao Imperador.

:: 1945: Em 19 de fevereiro tem início o desembarque das Forças Americanas em Iwo Jima.

Em 1º. de março é anunciado que o general de Divisão Tadamichi Kuribayashi é o

comandante máximo de toda a região de Ogosawara. Em 16 de março envia a última carta-

telegrama de Iwo Jima. Em 17 de março é considerado o dia da última e audaciosa ofensiva

japonesa em Iwo Jima. É promovido a general-de-Exército. Morre no front, em 26 de março.

Ocorre o grande ataque aéreo em Tóquio. O Japão é derrotado na guerra.

:: 1967: Kuribayashi recebe a condecoração póstuma Kyokujitsu Daijusho (grande cordão da

Ordem do Sol Nascente).

66

Carta escrita na cidade norte-americana de Fort Riley (Kansas).

Carta escrita na cidade norte-americana de Buffalo36.

36 Ilustrações retiradas do livro Cartas de Iwo Jima, de Tadamichi Kuribayashi. Edição de Tsuyuko Yoshida. São Paulo: JBC, 2007.

67

CAPÍTULO 6

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Relemos enquanto escrevemos, e relemos o que está escrito. Nos dois casos, reescrevemos. Nós dois casos, há alografia, maior ou menor. Ainda não escrito e já escrito, não faz grande diferença. Eu dizia: não podemos não nos escutar escrevendo. Escutar-se é escutar o rumor da tropa das palavras em debandada. Não podemos ouvir um pensamento que vem se não escutarmos esse rumor, o rumor de onde vem o pensamento e por onde ele vem, de onde ele sai e onde tenta entrar” (LYOTARD, 1996).

Ao chegar ao final, esperamos que este trabalho, mais do que construir um tema, tenha

desconstruído seu problema de pesquisa. Sabemos não ser fácil, para nenhuma pesquisa,

encontrar um meio termo específico nesse movimento de fechamento e abertura. Ao lado de

todas as questões relevantes, situam-se sempre as escolhas realizadas. Ao escolher nos

afastarmos, por vezes, da História positiva (que pretenderia contar algo exatamente como

aconteceu), equilibrando-nos sempre à beira do abismo, oscilamos entre essa perspectiva e o

niilismo sem, contudo, abraçarmos essa visão. Como afirma Pierre Vilar a respeito das

ambigüidades presentes no entremeio de uma “história total” e de uma “história em

construção”: “O abismo do empirismo encontra-se separado do abismo do idealismo apenas

pelo fio da navalha” (VILAR, 1976: 153). Difícil caminho esse, o do historiador: tentar

entender, interpretar, criar soluções para as paragens simbólicas e imaginárias dos caminhos

percorridos pela História humana.

Queríamos ter a certeza dos físicos ou os olhos de um cartógrafo, que consegue

desvendar em segundos as diferenças entre escarpas e cordilheiras. O caminho que

perseguimos neste trabalho foi tortuoso, porém em constante movimento. Como a imagem-

movimento do cinema, o trabalho teve a fruição que desejava. Perto, às vezes, de uma

parafrenia causada pelos autores nele articulados, o trabalho seguiu o seu caminho, criando

um dialogismo entre História e outras disciplinas, criando um descentramento das teses

rebuscadas sobre macro-estruturas.

68

A pesquisa nos levou, assim, a vários questionamentos sobre a importância e a

precisão dos duplos: realidade e imaginário; discurso e fato; existência e ficção. Qual deles

seria mais evidente estudar? Qual teria surgido primeiro? Qual o mais imprescindível? A

razão da busca deste trabalho foi tentar responder tais questões. Algumas foram respondidas,

outras serão exploradas em teses futuras. E há também aquelas que se mostraram

irrespondíveis.

A função do historiador, todavia, é buscar as respostas ao longo do caminho, e jamais

preconcebê-las. Como afirma Peter Burke referindo-se ao uso de fotografias, tema

assumidamente importante neste trabalho:

Quando utilizam imagens, os historiadores tendem a tratá-las como meras

ilustrações, reproduzindo-as nos livros sem comentários. Nos casos em que as

imagens são discutidas no texto, essa evidência é freqüentemente utilizada para

ilustrar conclusões a que o autor já havia chegado por outros meios, em vez de

oferecer novas respostas ou suscitar novas questões (BURKE, 2004: 12).

Passar ao largo, ou negligenciar alguns “fatos históricos” em detrimento de outros

sempre será uma decisão arriscada – assim como dialogar com filósofos pós-estruturalistas, ao

tratar de questões históricas, também o é –, mas o risco é o desejo de sobrevôo por outras

paragens que não as tradicionais, ou como diz Georges Duby, trata-se de “fazer um

nominalismo bem temperado”37. Duby nos lembra que mesmo com a escolha em nossas

“penas”, não somos inteiramente livres: “Nesse sentido, a escolha que faço não é livre,

também eu estou preso numa rede. A minha atenção (...) é forçada a incidir sobre um certo

número desses restos, desses vestígios, desses documentos, dessas ‘fontes’, para falar da gíria

dos historiadores” (DUBY, 1989: 38).

Feitas as escolhas, debruçamo-nos sobre duas culturas dessemelhantes: a norte-

americana e a japonesa. Na análise da cultura japonesa nos enveredamos pelo caminho da

irredutibilidade, já que os caminhos dos desencontros entre as duas culturas eram quase totais.

Utilizamos, para isso, o conceito que os franceses cunharam como “l’Autre”38 (o Outro). O

conceito mais usado no capítulo anterior foi aquele de Jacques Lacan, que trata da ligação do

outro ao desejo do Outro. Poderíamos retornar a Freud, como explica Lacan: “(...) o que

37 Título do primeiro capítulo do livro Diálogos sobre a Nova História, de Georges Duby e Guy Lardreau (1989), em que os autores tratam da busca por uma “nova positividade” na História enquanto campo científico. 38 “Outro” maiúsculo ou, no caso dos franceses, Autre maiúsculo, denominado por Lacan de “Grande Outro”.

69

Freud nos traz relativo ao outro é o seguinte: só há outro se o dizemos, mas é impossível dizê-

lo completamente. Há um Urverdrangt, um inconsciente irredutível, e dizê-lo não somente se

define como impossível, mas introduz como tal a categoria do impossível” (LACAN, 1974:

75)39.

Outra dessemelhança entre as duas culturas é aquela relativa ao tempo histórico. Sob

esse ponto de partida – relativo ao tempo – investigamos a diferença entre a criação dos mitos

na cultura norte-americana e na cultura japonesa. A respeito da relação entre tempo-presente,

tempo-passado e criação de mitologias, Lévi-Strauss já afirmara:

O interesse que acreditamos ter o passado só é, na verdade, um interesse

pelo presente; ligando-o firmemente ao passado, nós acreditamos tornar o presente

mais durável, estancando-o para impedi-lo de fugir e se tornar passado. É como se,

posto em contato com o presente, o passado fosse por uma milagrosa osmose

tornar-se presente, e que o presente fosse salvo de sua própria sorte que é tornar-se

passado. É isso que fazem os mitos (...). Levada até o fim, a análise dos mitos atinge

um nível em que a História se auto-anula, (...) tempo, melhor do que reencontrado,

suprimido (LÉVI-STRAUSS, 1971: 537).

Sobre este efeito de longa duração relativo ao tempo, a presença do filme Cartas de

Iwo Jima faz-se uma feliz escolha, pois seu diretor, Clint Eastwood, trabalha com uma câmera

mais próxima da construção japonesa do que do modo norte-americano de filmar. Basta

observar alguns de seus filmes mais prestigiados, entre eles Os imperdoáveis (1992), para

perceber tal aspecto. É na submissão ao tempo histórico e à sua mitologia que construímos no

trabalho a noção de suicídio dos soldados japoneses, lembrando que, ocidentais que somos,

sempre temos que tomar cuidado ao analisar sociedades distantes. Para isso, recorremos ao

auxílio de Alquié:

Nossa tarefa é, então, simples: é de toda a eternidade que devemos nos

separar e nos libertar, mesmo da eternidade espiritual. Todo movimento que põe a

eternidade como objetivo parece suspeito: é contra nossa condição humana, é

paixão... É recusa afetiva do tempo, do futuro, que é medo da morte, da finitude

(ALQUIÉ, 1990: 129).

39 Urverdrangt refere-se à marca originária do sujeito, como lemos nesse trecho de Jacques Lacan publicado em O Seminário: Livro 22 – RSI, ainda não-publicado e aqui referenciado a partir de texto mimeografado da versão transcrita não-autorizada.

70

Partindo desse momento da História japonesa poderíamos definir o suicídio de seus

soldados em Iwo Jima como uma “metáfora utópica”. E as utopias sempre ajudam a tolerar o

tempo e a morte.

Não pensamos que a criação dos mitos, tanto para aquela como para qualquer outra

sociedade, venha a descaracterizar o sujeito da História. Ao contrário, todas as construção nos

constituem como agentes do tecido social. A esse respeito, Freitas afirma: “(Deus, alma,

pátria etc.), têm como caráter principal dissimular sua existência no interior de seu próprio

funcionamento, produzindo um tecido de evidências subjetivas que constituem o sujeito”

(FREITAS, 1992: 93)40.

Ao falar do que nos torna humanos e habitantes da nossa própria História, talvez haja

mais pontos de encontro entre norte-americanos e japoneses. Exemplo disso seria o destino de

seus “heróis”. Nos Estados Unidos, saíram os soldados da famosa fotografia pelos comícios,

elevando o clamor por uma “guerra justa” para a população civil. No Japão, foi manchete do

jornal Asahi a frase “Sigam os heróis de Iwo Jima”. Evidencia-se, assim, uma prioridade

política infiltrando-se no seio daquelas comunidades. Porém, como a construção do discurso

está na autoridade e também na transgressão, a realidade e o imaginário podem trocar seus

papéis enquanto autores dessa peça histórica. Pierre Vilar afima: “Na medida em que

efetivamente o acontecimento se tornou intimamente ligado à sua expressão, sua significação

é intelectual. Próximo de uma primeira forma de elaboração histórica, esvaziou-se a favor de

suas virtualidades emocionais. A realidade propõe, o imaginário dispõe” (VILAR, 1976: 184).

Nesse sentido, todo “acontecimento” é cercado também de um “não-acontecimento”,

que apesar de não fazer parte da credulidade potencial dos escritores realistas, envolve toda

uma rede de interpretações e de imaginários. Sendo assim, não há dúvida de que a ferramenta

mais fundamental e importante, no século 20, para tratar dos “não-acontecimentos” é o

Cinema, imaginário da cultura popular e relegado, por vezes, pela alta roda de historiadores.

Mas podemos indagar, porém: quem (mesmo o mais gabaritado dos intelectuais) já não

sonhou ser alguma vez Clark Gable em E o vento levou, ou Errol Flynn na pele de Robin

Hood? Ou, ainda, um general japonês heróico em Cartas de Iwo Jima?

O cinema possui essa magia: transporta-nos para um real que não existe, enquanto

estamos sentados na cadeira das salas escuras, onde também construímos a representação de

nossa realidade e podemos reter os mitos em nosso próprio ser.

40 Grifos do autor.

71

Podemos dar um passo atrás e observar o “Real” na tela; em outro momento, recuar

mais um passo e nos observarmos já capturados por aquela magia, observando o “Real”, e

continuarmos infinitamente nessa apreensão impossível de nós mesmos. Como em um quadro

de René Magritte, pouco a pouco tornamo-nos historiadores de nossas micro-histórias.

Puro desejo...

O espelho falso (1935). Óleo sobre tela, 19 x 27 cm, coleção particular41.

41 René Magritte (1898-1967), pintor surrealista nascido na Bélgica. Nesse quadro, “Magritte está mais uma vez a fazer o seu jogo de virar do avesso, perguntando o que está dentro e o que está fora. ‘O olho é o espelho da alma’, segundo uma versão do provérbio. O olho humano hiperdimensionado, em vez de proporcionar uma visão do que está por dentro, na alma do homem, reflete o que está fora, um céu com nuvens” (PAQUET, 1992: 11).

72

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