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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo XIV (70-69 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo XIV

(70-69 a.C.)

Maria Galito

2017

César e a Vestal 305 Maria Galito

Capítulo XIV

684-685 AUC

A morte faz parte do ciclo de vida!

No ano do consulado de Crasso e Pompeu (684 AUC), César foi questor. Mamerco assumiu lugar de princeps senatus por cinco anos e andava de peito inchado pelo fórum, enquanto os executivos digladiavam os seus egos no Senado.

Nesta época, o templo de Júpiter Optimus Maximus ainda estava em obras, mas a Cúria Hostília dava-se por concluída! Fora destruída durante a terceira invasão de Roma e Sila aprovara ambiciosos planos de ampliação, para acomodar o dobro de senadores que havia. Mas o espaço estava, enfim, completamente renovado. Restava saber por quanto tempo, pois quem a usava andava sempre à briga!

Os censores tinham sido cônsules dois anos antes. Foram incumbidos de supervisionar um novo censo à população e recolheram listas de eleitores com 910 000 nomes. No decurso do seu mandato também aplicaram a lei dos bons costumes contra sessenta e quatro senadores (como se eles tivessem moral para o fazer!).

No colégio dos pontífices nós roíamos o osso que era Metelo Pio! Ele delegara funções durante os anos em que estivera ausente. Mas agora, que vivia em Roma, tinha de celebrar os rituais. Como ele gaguejava, estes tinham de ser repetidos até que as orações fossem pronunciadas corretamente, o que podia levar muito tempo a conseguir-se!

Até que eu dei um passo em frente para o ajudar. Perante o desânimo total de Fonteia, Mamerco e de todos quantos assistiam ao evento, tomei a iniciativa de relembrar o protocolo ao líder da religião e de lhe incutir confiança, para não tartamudear. Dei-lhe a mão e declamei, com ele, as palavras de ordem, calmamente, ao seu ritmo. Resultado? O ritual acabou quando já ninguém acreditava possível.

Metelo Pio agradeceu. Ele já me respeitava em tempo de Sila, por influência da falecida Metela. Passou a não abdicar dos meus serviços de sacerdotisa. Não fazia nada sem mim! Fonteia podia ser a vestal máxima mas, na prática, era eu que assegurava a liderança do templo, pois ela detestava o homem e não queria, nem vê-lo, o que dificultava a relação institucional entre as partes. Atendendo a que Fonteia e Metelo Pio eram optimates e eu era popular, havia quem fizesse leituras políticas da situação. Mas a ideia era apenas que as coisas funcionassem e não ruíssem à nossa frente!

O colégio dos pontífices raramente se reunia. Metelo Pio preferia receber as pessoas no seu tablino, na Domus Publica, pois o nosso chefe evitava falar muito, queria estudar os pergaminhos e colocar-se a par dos trâmites oficiais antes de se pronunciar a propósito

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do que quer que fosse! Lembro-me que fizemos ajustes incansáveis ao calendário no mês de Fébruo, que estava estrambelhado após anos sem supervisão conveniente.

Quando finalmente a assembleia se reuniu, eu fui a primeira a entrar na Cúria Régia para a preparar. Qual não foi o meu espanto quando dei de caras com César. Estranhei a sua presença ali, tão cedo! Haveria algum problema? Eu não reagi logo. Ele sim!

O que foi? Agora já não me cumprimentas? – Atacou, contendo mal a fúria.

Saudações, colega pontífice. – Inspirei com força. Resolvi controlar a ansiedade. Ele ficou pior do que estragado e o seu humor inflamou:

Não me dás os parabéns por ser questor? – Perguntou, ao desafio. Eu podia ter sido simpática, mas não estava para ali virada:

Gostas de cobrar impostos? Não costuma ser cargo apreciado pelo público e tu és um homem popular. – Portanto, não lhe reguei o pezinho como ele desejava.

Estou a ver… comigo agora é só indiferença!

É simples! A nossa relação acabou e nós não temos mais nada para conversar. Num ápice, César transformou a nossa distância em proximidade.

O que foi, já não te agrado? Colou-se a mim. Surpreendida, afastei-me dele:

O que estás a fazer? Deixa-me! – Exigi. Fiquei em pânico, por causa de Mânio! Eu tinha de separar-me de César, já!

Antes não me rejeitavas. Já não me queres, é isso? – Estranhou, perplexo.

Podem ver-nos. Isto não é conversa para termos aqui! – Alertei, olhando para todos os lados, temendo que alguém pudesse flagrar-nos na Cúria Régia.

Queres ter a conversa onde, se negas os convites que te faço? – Perguntou. Ele estava possesso de irritação! Fui obrigada a impor-me e a reivindicar espaço.

Dei-te o que pediste. Devias estar satisfeito. – Sussurrei-lhe, com firmeza.

Mentira! Eu pedi que te encontrasses comigo e tu não quiseste.

Pelos vistos, ele queria manter a relação disfuncional que antes tínhamos! Fiz esgar de impaciência e relembrei frustrações de outros tempos. As suas conversas tornavam-se repetitivas e eu não queria explicações, estava cansada de ouvir mais do mesmo.

César, o passado já não tem volta. Segue o teu caminho. – Adverti, afastando-me. Mas ele não me largava!

Não consigo estar longe de ti muito tempo! Eu gosto de ti.

Duvidei das suas boas intenções. Quando um homem pensa ter direitos exclusivos sobre uma mulher, tenta exercer poder sobre ela. Admiti que ele me manipulava as emoções para satisfazer o seu intento e eu não estava disposta a permiti-lo, pois já preenchia o meu coração com Mânio! Rebelei-me e disse-lhe tudo quanto tinha engasgado na garganta:

Eu tenho ouvido rumores sobre ti, César e… já não te conheço. Tu mudaste muito. Não sei se foi por causa das guerras em que participaste, dos desafios que foste obrigado a superar, mas o teu comportamento tornou-se errático, suspeito! Ouvi dizer que seduzes as mulheres dos teus inimigos para te vingares deles, o que, a

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ser verdade, é imoral! – Fiz questão de lhe explicar. – Não tentes fazer-me mal. Eu não estou aqui para servir os teus caprichos!

Não podes acreditar em tudo o que ouves na cidade, Emília.

Onde há fumo, há fogo, César. Ele parecia ofendido. Mais do que isso, desiludido comigo:

Tu dantes acreditavas em mim. Éramos os dois contra o mundo, lembras-te?

Fonte tu que acabaste a nossa relação, César.

Não me lembro disso.

Disseste-me que eu já não era a tua Caia.

Falei por falar! Um homem já não pode ter um dia mau?

César gesticulava qual águia-macho, de porte real e grandes asas abertas. Tinha nobreza no porte. Mas estaria ele a ser sincero? Tentava ele manipular-me, como diziam que fazia com outras mulheres na cidade:

As ações têm consequências e eu… também segui o meu caminho, que agora é diferente do teu. – Conclui, de forma difusa, sem verdadeiramente revelar que eu agora abraçava Mânio. Mas marquei território, pois era importante impor limites. César é que não aceitou as novas regras. De tão possesso, agarrou-me:

Agora sou teu colega no colégio de pontífices. Não vai ver-te livre de mim! – Exclamou, antes de lançar uma posta de pescada. – O que se passa? Constato que és muito amiguinha de Metelo Pio. Não sei se foi do nervosismo, mas tal ideia era engraçada:

Todos sabem que o sumo-sacerdote tem preferência por homens. – Depois acrescentei. – Dei-lhe apoio técnico porque ele é pontífice máximo e precisa de ajuda. Tu sabes a confusão em que está o nosso calendário e o quanto Metelo Pio gagueja! – Expliquei. – Eu sou uma vestal. Compete-me velar pela cidade e é exatamente isso que eu estou a fazer.

É um optimate empedernido!

Eu não tenho a culpa que Metelo Pio tenha sido nomeado líder da religião romana.

Podes recusar trabalhar para ele! – Insistiu, de olhos em riste. – O homem era o número dois de Sila na guerra civil! Sabes as coisas que ele fez?

Que ele fez? E todos os outros? – Enfrentei-o, pois a realidade era complexa. – Os romanos não deviam ter combatido entre si em guerra civil. Metelo Pio é herói para metade da cidade e para a maioria dos membros do Senado. Tu não gostas dele porque fazes parte do grupo dos vencidos.

Como te atreves?! – Irritou-se, com olhos de águia em voo picado.

Diz-me! Qual é a diferença entre Metelo Pio e Cina? Ou entre Sila e Mário? Todos colocaram o orgulho acima dos interesses de Roma. A população sofreu horrores e tenta a custo reerguer-se das ruínas em que os magistrados deixaram a cidade! Ou pensas que tudo se resolve de um dia para o outro? Vão ser precisos muitos anos até que tudo volte ao normal. Eu ainda tenho pesadelos. Tu não os tens? Porque o enfrentava? Desde pequena que o meu intuito fora sempre apaziguá-lo.

Tenho e muitos. – Reconheceu, com rosto cerrado e olhos cravados nos meus.

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Eu sou uma vestal. Cumpro as funções o melhor que posso a favor do meu povo.

E eu não? – Perguntou, sentindo-se acusado. – No Senado, apoio leis que promovam melhores condições de vida. Defendo a distribuição de cereais pelos desfavorecidos e de terras pelos legionários que lutam uma vida inteira nos exércitos romanos. Eram boas medidas. Eu podia tê-lo agraciado com simpatia.

Não fazes mais do que a tua obrigação.

Sou o único a fazê-lo, queres tu dizer! – Protestou. Recordei Mânio, que eu considerava ser um bom homem.

Também não é assim...

Ah isso é que é! – Insistiu ele. – Que apoios tenho tido na Cúria Hostília? Basta saber que os senadores fazem tudo para bloquear as minhas iniciativas políticas. Os optimates são uns egoístas, centrados no seu próprio umbigo! Tentei libertar-me da sua mão enganchada no meu braço.

Não os metas todos no mesmo saco de couro, não é justo! – Exclamei, em defesa de Mânio. – Há conservadores que não abusam da população, nem manipulam a turba, como os demagogos que falam em nome dela apenas para arrancar votos.

Isso é uma crítica dirigida a mim? Mas tu endoideceste? – Atónito por me ter perdido como aliada e frustrado por eu não sucumbir aos seus encantos, resolveu cravar-me de setas. – Tu e as tuas lições de moral! Que sabes tu da vida? Sempre foste uma privilegiada, primeiro no Palatino, depois aqui no fórum! Pensas que sabes mais do que eu porque dás voltinhas montada num jumento a distribuir pão? Isso é caridade, não salva ninguém da miséria! Os romanos pobres precisam de políticas públicas que lhes ofereçam emprego ou melhores condições de subsistência! Que os salvem da pobreza abjeta! Eu sei o que sofrem, porque vivo em Subura. Nasci e cresci sem mordomias! Andei por muitas paragens, passei fome, sede, frio e quase morri doente perdido nas montanhas! Resisti a coisas horríveis que tu não sabes, nem sonhas! Eu preocupo-me com o meu povo porque me identifico com ele! Sei que passa mal, porque converso com os meus eleitores e ajudo-os no terreno porque muitos deles são meus clientes; já o eram de Mário e sabem recordar o valor que o meu tio tinha. A família de Metelo Pio não queria que ele progredisse na carreira e tudo fez para o destruir. O coitado só era respeitado no Senado quando se impunha. Um homem tantas vezes cônsul devia ter sido louvado e apaparicado e ele nunca o foi, o que é uma vergonha! Não vou deixar que o façam a mim! Tu não fazes ideia do que eu tenho de aturar todos os dias dentro daquele Senado autofágico, que é um ninho de víboras! Ele tinha o coração na boca ou a mente na palavra? Tive pena dele e claudiquei:

Eu não te quero mal, César. – Disse-lhe, quando a sua presença crescia em altura e dominava completamente o espaço à nossa volta. – Mas as coisas mudaram.

Porquê? Condenas-me por não ser perfeito? Pensas que me excedo? Julgas-me! Acusas-me! Negas-me! Viras-me as costas, quando eu mais preciso que me apoies! Deixaste de acreditar em mim? Pois eu já não confio em ti e não te perdoo pelo que me estás a fazer, Emília!

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E assim me deixou sem um pingo de sangue nas veias. Fiquei estanque. O coração batia-me com força no peito e era só o que eu ouvia!

Depois desatei a correr e atravessei portas e subi escadas até me aproximar de Fonteia. Ela gastava a paciência a compreender Metelo Pio. Sentei-me ao lado deles, no tablino e agarrei-me ao braço da sumo-sacerdotisa, à procura de proteção.

Deixaste tudo arrumado na Cúria Régia? – Perguntou a chefe das vestais.

Penso que sim. O importante é que este dia acabe depressa! – Advoguei. Tremia desalmadamente e tive de convencê-los que tinha frio.

Está bem, traz os rolos de papiro e eu levo as tabuinhas de cera para a Assembleia. Metelo Pio encarrega-se dos pergaminhos e… que Vesta nos salve!

A reunião tinha tudo para correr mal. A rivalidade entre pontífices deflagrou em incêndio, com Catulo e César a demonstrarem porque optimates e populares não se entendiam! Já não recordo como começou, mas Sila não parecia morto e incinerado naquela tarde de diatribes:

Exaltas Sila porquê? Ele quase acabou com a nossa República! – Atirou César a um colega que lhe respondeu à letra.

Quem nos queria destruir era o teu tio, que invadiu Roma por egoísmo! Sila entrou nas muralhas sérvias por patriotismo! Para nos salvar dos excessos de Mário. Abdicou do cargo de ditador para preservar o nosso sistema político! César não perdoou as palavras de Catulo e contra-argumentou nestes termos:

Esqueces-te que Sila deixou atrás de si milhares de mortos e de feridos. Roma foi por ele abandonada em ruínas, depois de lhe deitar fogo! As instituições, depois das suas muitas leis para as reformar, ficaram numa confusão! Autoproclamou-se dono disto tudo e fez o que lhe deu na real gana! – Advogou, cortando a palavra a Catulo, que nem conseguia fazer-se ouvir. – Estamos no tempo de Ulisses, que conquistou Troia para a saquear, pilhar, destruir e largar à sua sorte? Roma não é uma cidade inimiga, é a capital da nossa República! Deve ser respeitada.

Sila foi nomeado ditador pelo Senado e eleito cônsul nas eleições. – Garantiu Catulo. Esquecia-se que a escolha fora feita ao som de gritos excruciantes; e que os escrutínios tinham sido feitos sob ameaça: vê lá tu em quem votas! César sabia-o e recorreu a exemplos:

É por isso que a nossa República é uma palavra vã desprovida de realidade e

consistência. Quando abdicou da ditadura, Sila agiu como um aluno a aprender

o alfabeto! 1 Comportou-se como as crianças que brincam e abandonam os objetos

desorganizados pelo chão e os servos que os arrumem! Sila agiu como um agricultor que abate árvores, mas se esquece que não basta fazer tábua rasa do que antes existia, é preciso continuar a lavrar a terra, semear, proteger as colheitas das pragas e dos insetos, colher as espigas e apanhar frutos.

Não percebi. Tu és o agricultor, ou a criança desarrumada? – Troçou Catulo.

Deve-se governar de e para as pessoas! – Advogou César.

Este deve pensar que nos engana! – Exclamou Catão.

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Guarda os discursos políticos para o Senado, César! Estamos na Cúria Régia e aqui discute-se religião. – Avisou Mamerco, erguendo-se para assistir o pontífice máximo que enrolava a língua quando mais precisava de defender-se.

Então porque é que Metelo Pio se mantém em funções? – Quis saber César, enfrentando a maioria de optimates ali presente. – Ele não foi eleito, apenas nomeado e por um homem que já morreu! O nosso líder da religião não sabe de cor uma única oração, não cumpre um ritual sem auxílio, nem sabe dizer uma frase sem gaguejar. Se no colégio de pontífices se discute religião e não política, então que se organizem eleições para escolher um novo pontífice máximo!

Ninguém aceitou a proposta de César! Metelo Pio podia ser tartamudo, mas era um líder consensual entre os optimates, ao contrário de Catulo que liderava o partido mas criava antagonismos entre as hostes. Metelo Pio mandava na retaguarda, mas estava de pé e cal no Senado e no colégio dos pontífices.

Metelo Pio é o nosso líder, todos concordamos com isso e tu só tens de o aceitar. – Irritou-se Catulo, oferecendo-lhe os punhos cerrados.

Não se podem calar discordâncias em prol de consensos espúrios. – Disse César, que de cobarde não tinha absolutamente nada!

Tu és um malcriado que não sabe respeitar um herói de guerra que há pouco tempo desfilava, em triunfo, pelas ruas da cidade. – Gritou-lhe Catulo.

Que fez ele? Matou Sertório, um romano. – Repreendeu César.

Os populares tendiam a poetizar a vida daquele sabino criado pela mãe, após a morte prematura do pai. Em jovem integrara-se nos exércitos de Mário. Nunca fora vencido em batalha, nem vergara perante Sila. Partira para a Ibéria onde as experiências tinham sido mistas. A sul dos Pirenéus mandara matar, ou escravizar, crianças que ele próprio incentivara a entrar para a escola, após uma revolta dos pais? Na Lusitânia terá prometido libertar a população do jugo estrangeiro, mas impôs-lhes a cultura romana, enquanto afirmava comunicar com a deusa Diana através de uma corsa branca. Negociara com piratas que saqueavam as costas das principais cidades. O meu irmão enviou-lhe os legionários que conseguiu salvar de Pompeu, mas Sertório entrou em conflito com o líder destes homens, que era parente de Perpena e foi assassinado por ele. Morreu com fama de bêbado e debochado, de líder que não inspirava confiança a ninguém. Mas sabe-se que ele sofreu muita propaganda negativa. Eu não posso confirmar nem desmentir os rumores, pois não sei o que realmente aconteceu.

Metelo Pio não matou Sertório que foi assassinado às mãos de populares. – Troçou Catulo, para irritar o interlocutor.

Sabes lá tu o que aconteceu! O certo é que nem Pompeu nem Metelo Pio venceram a guerra, pela qual marcharam em triunfo nas ruas de Roma. – Criticou César.

Pouco importa se mataram Sertório. Eles venceram os marianos e isso dá-nos a todos um grande gozo! – E Catulo ameaçava-o como um animal feroz.

Eu sou sobrinho do falecido Mário e ainda estou vivo. – Recordou valentemente. César expunha-se. Senti medo por ele e resolvi intervir, erguendo-me em pontas:

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Que se promova a paz entre nós, por favor. Já nos chegam os anos de guerra civil que tivemos, não queremos mais! A discórdia não deve reinar neste colégio. Nem todos concordaram comigo:

Quem quer a paz tem de preparar-se para a guerra! – Foi a apologia de Catulo, que brigara monumentalmente com o meu irmão, para não o deixar governar. Abanei a cabeça e podia ter emudecido, mas resolvi ser valente e argumentei:

Lamento, mas quem deseja viver sossegado, estabelece acordos. Nós, os romanos, temos de aprender a coexistir, independentemente das nossas diferenças.

As vestais querem viver em paz. É pedir muito? – Perguntou Fonteia.

Os homens entreolharam-se. Arquearam as sobrancelhas, cruzaram as pernas, suspiraram, miraram o teto, passaram a mão pelos cabelos, coçaram o pescoço, mas não responderam.

Cícero prefere uma paz injusta à mais justa das guerras! – Admitiu Isáurico. O advogado era muitas vezes citado pelos optimates.

Eu prefiro uma paz justa. – Fiz questão de frisar e aproveitei para marcar o meu ponto, virando-me para o centro da ação. – Catulo é um líder partidário. Mas se quer governar bem a cidade, deve levar em consideração o bem-estar de todos e não apenas o seu.

Catulo ficou lívido com a minha resposta, mas teria continuado a ripostar, se Isáurico não lhe tivesse puxado a toga para que se sentasse. Metelo Pio olhou em volta, depreendeu qual era a vontade da maioria e deu a sessão por terminada.

O ano do consulado de Crasso e Pompeu foi competitivo, para dizer o mínimo! Crasso e Pompeu odiavam-se de morte! Não chegaram a vias de facto como Mário e Sila. Mas espetaram várias facadas políticas, nas costas um do outro, durante meses! Sei que se empenharam em jogos de bastidores. Negociaram. Coscuvilharam e intrigaram. Às vezes nem conseguiam sentar-se ao lado um do outro nas cerimónias públicas. Era ridículo!

Crasso parecia ser o preferido do Senado. Era o homem mais rico de Roma. A sua fortuna aumentara de 300 para 7100 talentos numa década apenas! Pompeu era o campeão do povo e fora eleito cônsul, sem nunca ter sido tribuno militar, questor, edil ou pretor, e assim abrira precedente potencialmente perigoso! Crasso teria uns quarenta e cinco de idade. Pompeu era dez anos mais novo. Deviam ser adultos responsáveis. Não eram!

Dizem os gregos que a idade traz sabedoria. – Comentou Mânio, no dia em que veio visitar-me. – Dizem os romanos que a idade traz sabedoria… mas nem sempre. – Remexeu as sobrancelhas e eu deixei-me rir. Ele beijou-me.

O Senado de Roma não confiava em Crasso, nem em Pompeu. Temia que eles se engalfinhassem em nova guerra civil. Talvez por isso, um membro da classe equestre, ascendeu aos rostra numa Assembleia da Plebe para afirmar que Júpiter lhe teria aparecido em sonhos, para pedir aos cônsules que fizessem as pazes.

Imagine-se a cena. Dois veteranos de guerra, a serem incentivados como crianças a darem-se bem. Não lembra a Saturno! – Contou-me Mânio, a abanar a cabeça.

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Ao que parece, as pessoas que assistiam ao evento ficaram na expetativa, a ver como Crasso e Pompeu reagiam. Depois de um compasso de espera, o primeiro tomou a iniciativa e estendeu a mão ao colega, dizendo:

Meus caros concidadãos, nada faço de ignóbil se for o primeiro a estender a mão

a Pompeu, a quem chamaram de Magno quando ainda nem barba tinha, a quem

decretaram dois triunfos sem ainda ser senador, a quem elegeram cônsul sem

antes ter assumido qualquer cargo político2. – Citou Mânio ao meu ouvido.

O cumprimento continha em si uma crítica. Mas também podia ser interpretado como um elogio. Pompeu, que ascendeu politicamente em circunstâncias excecionais, julgou-se enaltecido, levantou-se e aceitou o cumprimento sob uma chuva de aplausos.

Desse dia em diante, Crasso e Pompeu fingiram ser amigos e terminaram o mandato sem se matarem um ao outro. Depois regressaram às suas rotinas diárias. O primeiro virou-se para os negócios. O segundo entregou-se ao tédio de vaguear pela cidade.

Pompeu anda desesperado sem saber o que fazer! – Avisou-me Mânio.

Porquê? – Estranhei.

Ele habituou-se à guerra, ao desafio de vencer inimigos. Para ele é difícil viver entre quatro paredes, sem grande perspetiva de futuro. Ele já foi cônsul. Resta-lhe fazer o quê?

E tu? Tens saudades da guerra.

Não. Eu estou bem aqui contigo. Ronronei em resposta.

Quem se segue? – Perguntei.

Agora é a minha vez. – Respondeu calmamente.

Parabéns ao novo pretor. – E derreti-me em sorrisos. Ele mantinha-se sério, mas adorava quando eu o elogiava.

Vou aplicar a justiça.

És o meu herói!

Ele envolvia-me nos seus braços e eu sentia-me feliz. Na verdade, começava a habituar-me a ele, à sua maneira de ser e de estar. Eu dava valor à forma carinhosa com que ele me tratava. Respeitava-o. Era uma relação serena e carinhosa. Eu precisava disso, depois de anos de altos e baixos com César, que me tinham deixado os nervos em pé!

Nesta fase, eu saía pouco à rua. Mas ia religiosamente buscar água à Porta Capena montada em Pales, que agradecia o exercício, pois estava outra vez saudável, cheio de força e de energia!

Eu seguia trajeto fixo, ao longo do qual interagia com as pessoas e fazia trabalho social. Havia dezenas, centenas de catraios a correr descalços pelas ruas, que vinham ter comigo a rir de contentes. Eu dava-lhes sempre qualquer coisa, que guardava nos alforges de Pales, o verdadeiro ídolo dos miúdos. Se o jumento gostava de tantas carícias, não sei, mas andava sempre a abanar a cauda e a agitar as suas grandes orelhas.

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Peles acompanhava-me com alforges de víveres. Trincava umas verduras quando eu não tomava atenção e engordava de tanto comer! Os transeuntes que vinham ter connosco recebiam alimentos e alguns conselhos, caso os solicitassem. Recordo sobretudo as perguntas das crianças, que faziam sempre muitas. Como eu estava na terceira fase do sacerdócio, em que devia transmitir conhecimentos, respondia na medida das minhas possibilidades.

Vestal, porque é que Rómulo matou Remo? – Perguntou-me um rapaz descalço, a quem dei umas sandálias usadas, doadas, mas com boa sola.

Talvez Roma fosse mais pacífica, se Rómulo tivesse feito do irmão um amigo.

Como nascem os bebés? – Quis saber um miúdo sem perna, a quem presenteei com uma bengala e muita esperança, para ele não se deixar ir abaixo.

Tens de perguntar à tua mãe. – Foi a minha resposta.

A lua vem à noite e o sol de manhã, porquê? – Tentou saber uma jovem órfã, cheia de sonhos, que eu mais tarde ajudei a casar com um rapaz bom e trabalhador.

No fundo, são como um casal que às vezes zanga-se e separa-se, mas reencontra-se durante o crepúsculo e a alvorada, quando parecem beijar-se no céu e depois nascem uns lindos meninos como vocês. – E eles sorriram-me.

Um homem observava-me ao longe, montado num cavalo. Seria César? Ele estava contra o sol, não posso garanti-lo. Foi-se embora logo depois. Também não liguei muito. Quando regressei ao fórum, despedi-me dos lictores e levei o animal sagrado para a sua cama de palha. Depois fui a cantarolar para o templo.

Vou a tribunal defender o meu irmão. – Avisou-me a vestal máxima, assim que me viu. Ela não estava bem-disposta.

De que acusam Fonteio?

É acusado de extorsão e má governação durante o tempo em que foi pro-pretor na Gália Narbonense. – Explicou ela.

O advogado do teu irmão é bom?

Cícero é excelente! Tem experiência como edil e carreira política consolidada. É também o mais famoso dos advogados de Roma.

O maior dos advogados não é um dos atuais cônsules? Ela não estava minimamente interessada nessa conversa, por isso atalhou:

Fonteio disse-me que era inocente. Portanto, vai ser absolvido.

O caso já se arrastava, quando Fonteia saiu do átrio das vestais com destino ao tribunal de extorsão. Por lá ficou todo o dia a defender a causa do irmão. O seu testemunho foi considerado abonatório. Popília e Perpena foram assistir aos depoimentos. Eu fiquei a velar pelo fogo sagrado com Licínia.

Quando Fonteia regressou ao templo, a mais jovem foi comer qualquer coisa. Eu fiquei a fazer companhia à chefe das vestais, que precisava de desabafar:

Fonteio assumiu funções na Gália Narbonense durante três anos, na mesma época em que Pompeu e Metelo Pio lutavam contra os rebeldes de Sertório. Aliás, ele

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tinha sido questor na região, uns anos antes. Depois foi legado na Macedónia onde reprimiu as incursões das tribos trácias na província romana. Quando regressou a Roma levaram-no à barra do tribunal.

Tricas políticas? – Perguntei. A irmã inspirou profundamente para tomar balanço:

Os gauleses queixam-se de impostos excessivos, sobretudo sobre os vinhos; de estradas queimadas por não conseguirem pagar tributos; de recrutamento forçado, na Ibéria para os exércitos de Metelo Pio e de Pompeu. Fonteio é acusado de defraudar os credores enquanto questor. Enfim, esse tipo de coisas. – Expôs, com cansaço na voz. – Os gauleses testemunharam contra ele. O principal discurso foi o líder dos Alóbroges. Cícero arguiu que as medidas aplicadas na Gália foram severas, porque não poderiam ter sido brandas, em nome dos interesses do Estado.

O júri vai deliberar a favor do teu irmão? – Perguntei a Fonteia.

Está a ser aplicada a Lei Aurélia Judiciária, aprovada durante o consulado de Crasso e Pompeu, que reorganiza a composição dos júris em tribunal. Agora, os juízes são escolhidos igualmente entre senadores, cavaleiros e tribunos erários (cidadãos privados que pagam o aes militare, um tributo regular que é entregue ao exército). Logo, cada grupo constitui um terço do total e assim considera-se o sistema mais justo. – Explicou, antes de se encostar na cadeira. Ela arrastava a voz e parecia fatigada.

O veredito não foi imediato, mas favorável. A minha colega ficou mais aliviada por o irmão ter regressado a casa ilibado de todas as acusações. Entretanto, Cícero mandou fazer cópias dos seus discursos, os quais ficaram conhecidos por Pro Fonteio. Mas uns dias depois da leitura da sentença, a vestal máxima veio ter comigo e queixou-se do irmão:

Fonteio resolveu gastar os denários que ganhou a rapinar as províncias. Que vergonha! – Exclamou, remexendo no madeiro que crepitava no fogo sacro como se desejasse espicaçá-lo com o espeto. Parecia furiosa!

Disseste-me que Fonteio era inocente.

Não. Ele era culpado. – Confessou, com um suspiro longo e arrastado. – Quando ele queria a minha ajuda, era só simpatias. Agora trata-me como se não me conhecesse e até quisesse livrar-se de mim. Somos irmãos! Ele é parvo ou faz-se?

Lamento.

Desde que ele foi absolvido que anda em negociações em Nápoles para comprar a Domus Rabiriana, uma casa sumptuosa que existe na região. O atual dono não quer vender, pede um balúrdio por ela, mas o meu irmão está determinado em comprá-la. – Expôs. Depois sentou-se e juntou as mãos no regaço. Fonteia arfava desde o dia em que testemunhara a favor do irmão.

Tu estás doente? Andas a respirar com dificuldade.

Só preciso de descansar. – Negligenciou.

Tens a certeza?

Sim. Mas tenho algo para te dizer, antes que me esqueça.

O que se passa?

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Avisaram-me que Júlia, a viúva de Mário, está à beira da morte. Parece que a situação é grave. Ninguém sabe quanto tempo ela aguenta. Tens autorização para ir visitá-la, se quiseres.

Claro que quero, obrigada.

Enrolei-me num manto quente e fui ter com Pales, para o preparar para a viagem. Havia muita gente na rua e o céu estava carregado. Levei o dobro do tempo a chegar ao destino e, ao entrar pela porta da ínsula, atravessei Cila e Caríbdis. Aurélia cumprimentou-me mas manteve pose seca e distante. Cinila perdeu a compostura e mandou-me às urtigas!

Pode dar-me os parabéns. Estou grávida outra vez. Vou ter um filho de César. Não é uma maravilha? – Perguntou ao desafio, de nariz e queixo arrebitados. Pela primeira vez, senti-me feliz por ela. O carinho de Mânio dava-me segurança.

Muitos parabéns pela sua gravidez, Cinila. – Saudei calmamente. A mulher de César ficou espantada com a minha reação, mas eu encurtei as saudações. – Vim ver Júlia, a viúva de Mário. Onde é que ela está? – Perguntei.

Escoltaram-me por uma penumbra de poucas lamparinas. A ínsula era grande, estava bem decorada, mas era relativamente pobre. Dava para perceber que os inquilinos faziam contas aos sestércios gastos na manutenção da casa.

Talvez me competisse fazer conversa de circunstância, mas Cinila preferia o silêncio. A mãe de César era pragmática, não sentia necessidade de preencher espaços com palavras e eu não tinha vontade de inventar o que quer que fosse.

O cubículo de Júlia ficava em frente. Ao aproximar-me da soleira da porta, respirei um cheiro forte e característico de quando se visita uma pessoa doente. Entrei e tentei conter as emoções. É que a tia Júlia das torradas com manteiga estava deitada, muito direita e cadavérica, de cabelo branquinho em rosto lívido e enrugado.

Saudei-a e ela respondeu-me com carinho. Nem aguentei. Esqueci o estoicismo e lágrimas correram-me pelo rosto abaixo, como mar de mel. Como eu não podia sentar-me a chorar à beira da moribunda, virei-me em direção à entrada. Ao fazê-lo, reconheci o corpo mais magro de César e foram os seus olhos que me prenderam. Ele estava profundamente triste e eu não estava menos.

Hoje não vamos brigar, pois não? – Pedi-lhe.

Júlia estava acordada e assistia à cena, por isso, chamou-nos aos dois à sua cabeceira e disse, na sua voz pausada e quase sumida, com as suas mãos nas nossas:

Que os deuses vos protejam aos dois. – Pediu a anciã.

O suspiro de Júlia comoveu-me. Sentei-me a seu lado, peguei-lhe pela mão e fiz-lhe companhia, sabendo que aquela era a última vez que falava com a corajosa viúva de Mário. Só muito depois me despedi-me dela, com amizade e afeto.

César e a Vestal 316 Maria Galito

Afastei-me lentamente do cubículo onde a doente era velada, a pensar sobre a vida e a morte, quando César pediu para falar comigo. Avisei que não era boa ideia. Ele insistiu. Eu cedi, pelo que ficámos a sós por um momento, numa zona reservada da casa.

Vou para a Hispânia Ulterior. – Explicou de rosto carregado. – Estou preocupado com a minha tia. Se ela morre, não sei como fica a minha mãe. Agora Cinila está grávida. Tudo a acontecer ao mesmo tempo… Sentou-se. Tive pena dele e puxei um banquinho de madeira para mim.

Tu sempre foste forte. Vais conseguir vencer esta batalha. Ele respirou fundo.

Na família todos confiam na boa gestão de Aurélia. – Concluiu, orgulhoso.

Têm razões para isso. A tua mãe é uma dona de casa impecável.

O pior é a minha tia...

A idade não perdoa, infelizmente.

A minha partida está marcada para depois da ceia de Níger.

Pois é. Temos novo flâmine de Marte! Mas ainda tens tempo para te organizares.

Cinila não quer que eu vá e a deixe sozinha.

Quem quer subir no cursus honorum tem de passar pelas províncias romanas.

Tu sabes isso. Porque não sabe ela?

Tenta compreender. Cinila está grávida. É um período delicado na vida de uma mulher. Ela gostava que estivesses por perto, é só isso. – Disse-lhe eu, para sua embasbacada surpresa.

Já não sentes ciúmes em relação a mim? Estás muito calma. Preferi não lhe responder, para não alimentar conversa desnecessária.

Quanto tempo vais ficar fora da cidade, desta vez? – Resolvi perguntar.

O mandato são dois anos. Vamos ver… Passávamos a vida a despedir-nos e esse dia não foi exceção.

Estás a dizer-me adeus, César? – Sorri-lhe, sem rasgos de dor ou frustração.

É um até breve. Eu volto. Não tenciono morrer por lá. – Fez questão de frisar.

És um homem sem medo. – Reconheci. – Essa personalidade autoconfiante dá-te forças para ultrapassar as dificuldades. – Comentei.

Hoje não me sinto assim tão bem. Ele queria mimo!

Hoje não te sentes feliz, por causa da tia Júlia. Mas em breve terás nos braços um novo bebé. A vida é assim, tem ciclos. – Disse-lhe tranquilamente, como uma velha amiga.

Obrigado, Emília. – Agradeceu e baixou os olhos.

Bom, vou andando. – E levantei-me. Mas ele manteve a mesma posição, a pensar para a sua túnica amarrotada.

Não te tratei como merecias, desculpa. Que devia eu responder, se não lhe perdoava? Não podia simplesmente esquecer.

A vida continua, César. – Foi o que lhe consegui dizer, tentando ser compreensiva. – Eu sei que estás preocupado com a tua tia. Desejo-lhe as melhoras, a sério.

César e a Vestal 317 Maria Galito

Eu queria mudar de assunto. Mas César ergueu-se e olhou-me nos olhos:

Eu não sou homem para ti, Emília. Não estava mesmo nada à espera que afirmasse tal coisa. O meu coração parou.

Tudo bem. Eu lembro-me do teu cresce e aparece.

Não foi minha intenção magoar-te, Emília. Em criança acreditei que podíamos casar, mas a vida impediu-me de concretizar os planos que eu tinha para nós. Engoli em seco.

Os deuses tinham outros desígnios para nós. O meu distanciamento magoava-o, talvez, não sei.

Compreendo que queiras começar uma vida nova sem mim. O que queria ele dizer com aquilo? Saberia da minha relação com Mânio?

Não sei a que se deve esta conversa.

Espera! – Pediu, pegando-me pelo braço. – Vamos fazer diferente desta vez.

Como assim?

Vamos ser honestos um com o outro.

Eu nunca te menti. – Declarei e começava a ter medo, a ansiar pela porta. César largou-me e sentou-se outra vez. Respirei fundo, aliviada.

Sofro pressões horríveis por estar atolado em dívidas. Eu não sou rico! Erro com Cinila! Não lhe consigo dar a vida de conforto e de luxo que ela merece.

Se ela gostar de ti, isso não importa. – Disse-lhe, pois não fui capaz de calar. – Os antigos romanos viviam com pouco.

Queres dizer o quê? Subura nunca seria morada para uma lépida como tu, habituada ao Palatino e ao fórum. Eu nunca poderia trazer-te para aqui!

Eu já ouvi essa conversa e não faz sentido.

Eu afastei-me de ti, porque me conheço bem. Não consigo fazer-te feliz.

Falamos em círculos. Vou-me embora!

Não vês que não tenho nada para te oferecer? Eu preferia estar contigo, mas não posso. Tu és uma vestal e eu estou falido! Não posso dar-te a vida que queres, que tu mereces. Por muito que me custe reconhecê-lo, eu não tenho condições para te convidar a entrar no meu mundo. Nunca tive! Sou sobrinho de Mário e tenho muitos inimigos, que colocam a minha família em perigo. Foi para te proteger que me afastei de ti. Vieram-me as lágrimas aos olhos. Não me contive.

César...

Como posso esquecer o passado com a minha tia Júlia a morrer? É tudo o que hoje recordo! Os tempos em que eu subia ao Palatino para ouvir o tio Mário falar de batalhas, para comer torradas com manteiga da Gália da tia Júlia e estar junto de ti. Desde então, não tive um momento de paz! Estou a perder tudo o que faz sentido para mim. Por Júpiter, porquê?! – Rebelou-se. Sim, a dor atormentava-o.

Fixei-me nos seus olhos, uma imensa noite cheia de estrelas! Senti compaixão pelo seu sofrimento. César estava desolado! De corpo magro, parecia outra vez aquele jovem que se vestia com mangas de franjas, cintos soltos sem nós e enfiava gorro da cor das sandálias

César e a Vestal 318 Maria Galito

para orar a Júpiter! Os traços maduros do rosto, porém, alertavam para a sua idade e ele era político experimentado, distante da criança que um dia fora. A vida dera-lhe muitas rasteiras e ele, ao contrário do que dizia, não estava a ficar mais frágil. Mas era humano.

Lamento, César. Não gosto de ver-te triste. Mas melhores dias virão, vais ver. Confia na tua boa estrela. – Disse-lhe e fui-me embora, desta vez sem um abraço, como não podia deixar de ser.

Júlia faleceu nessa noite. Assim que tomei conhecimento disso, saí à rua para ir ao funeral. César não admitia em público, e muito raramente em privado, que era vulnerável e eu estava preocupada com ele. Mas não era preciso.

O filho de Aurélia não era fleumático como a mãe, era um vulcão de lava incandescente! Mas esse tipo de força interior que o agitava e queimava, também lhe dava poder. Ele aprendera a ser duro, combativo e não estava a perder faculdades, nem a deixar-se abater pela vida. Carpia as suas lágrimas para se reerguer depois como uma árvore que não verga. Ele era guerreiro para lutar até ao último suspiro do seu ser! E demonstrou isso quando a tia morreu.

As exéquias de Júlia não foram discretas. César projetou aquela mulher para os anais de história, ao subir aos rostra, em pleno fórum magno, para lhe fazer um elogio fúnebre. Portanto, ela foi louvada pelo sobrinho em público, como nenhuma mulher fora antes dela! Mas ele adorava a tia e fez questão de o enunciar:

A minha tia Júlia, por via materna, descendia de Anco Márcio, da dinastia real

dos Márcios. Pelo lado paterno, descendia de Vénus. A nossa linhagem tem a

santidade dos reis, que tão grande poder tem entre os homens; e a majestade dos

deuses, de quem depende o próprio poder dos reis.

Admito que Júlia se consideraria merecedora de um louvor público. Ela teria ficado certamente orgulhosa do sobrinho por ele ter ousado contrariar as convenções a seu favor, para louvar a família!

De facto, César rodeou-se de aparato monumental com efígies de antepassados desde os tempos mais remotos, o que alongava o desfile e assombrava as pessoas que a ele assistiam! Abriu os braços ao povo que o escutava e aos senadores que o olhavam espantados. Ele estava a autopromover-se. Assim testou a sua popularidade.

O funeral da viúva de Mário foi um ato político! César aproveitou o momento para recordar o homem que fora sete vezes cônsul de Roma, cuja memória Sila tentara apagar. O ex-ditador mandara destruir tudo o que pudesse recordar o seu arqui-inimigo, incluindo estátuas e murais. Até o túmulo da raposa de Arpino fora conspurcado. O povo estivera proibido de carpir publicamente o seu herói popular mas, naquele momento de apoteose, pôde fazê-lo. Porque César queria deixar legado antes de partir para a Hispânia Ulterior. Não queria que o povo se esquecesse dele durante a sua ausência.

César e a Vestal 319 Maria Galito

Apostou tudo no seu discurso, talvez pensando não ter outra oportunidade para fazê-lo, tão cedo. Mas não durou muito tempo até Plutão bater novamente à sua porta. Lembro-me de acordar e encontrar as outras vestais a cochichar baixinho, em roda apertada.

O que se passa? – Perguntei.

Morreu de parto, coitada. – Ouvi Licínia comentar, sem empatia na voz.

Sim, Terência enviou-me mensagem por estafeta. O parto durou todo o dia. A criança nunca mais nascia, até que ela não aguentou e esvaiu-se em sangue ao dar à luz um natimorto. Uma tragédia! – Pormenorizou Fábia, olhando para as suas unhas muito bem cuidadas. A questão, apesar de triste, não a afetava.

Quando é o funeral? – Perguntou Licínia, por simples curiosidade.

Logo à tarde. A mulher morreu ontem e o velório deve ter durado toda a noite. Aproximei-me delas, sem perceber a quem se referiam:

Quem morreu?

A mulher de César. – Esclareceu Licínia. A minha voz ficou refém dos pensamentos.

Dizem que a morte da viúva de Mário mexeu muito com ela. – Afirmou Fábia.

Não sei o que aconteceu. Cinila sentiu-se mal no velório de Júlia e, uns dias depois, entrou em trabalho de parto. O bebé era prematuro e nasceu já morto. – Rematou Licínia.

Fui ter com a chefe das vestais. Fonteia tinha má cara, pois nunca mais curava as febres que a assolavam. Sem dar parte de fraca, tentou responder ao meu apelo, contorcendo-se.

Vamos chamar uma curandeira, pode ser? – Pedi-lhe.

Não insistas. Isto passa! Eu sou uma vestal. Se as pessoas souberem que eu estou doente, podem pensar que já não sou pura.

Que disparate, Fonteia! Se te sentes mal, deves pedir ajuda.

Eu estou bem. – Interrompeu-me. – O que queres?

Licínia e Fábia contaram-me que faleceu ontem a mulher de um dos pontífices.

A mulher de César. Sim, já sei. – A que virando-se para mim. – Conheces bem a família. Queres ir assistir ao funeral?

Se não te importares, quero.

Vou mandar chamar um lictor. Mas vais de liteira. Nós precisamos do jumento hoje para os rituais. – Alertou, levantando-se para ir buscar um gole de água.

Quando cheguei ao cemitério, o funeral de Cinila já tivera início. Desci discretamente da liteira e avancei pelo espaço medindo os passos. O corpo estava consumido em cinzas. As testemunhas enlutadas resguardavam a tristeza nos seus trajes negros. César estava ao centro, com a mãe à direita e a filha à esquerda. À retaguarda, as irmãs e as suas respetivas famílias. Juliana e Julinha, apesar de amigas de infância, eram personagens distantes na minha história, mas mantinham-se assíduas na vida do irmão.

Seguiu-se o ritual de recolha das cinzas, as quais foram colocadas na urna e depositadas no túmulo familiar. Aguentei firme durante toda a cerimónia, a uma distância confortável,

César e a Vestal 320 Maria Galito

sob a sombra de um cipreste. Escutei o canto das cigarras e o choro profissional das carpideiras. Acompanhei o ritual religioso subsequente. Aguardei pelo melhor momento para cumprimentar a família. Quando chegou a minha vez, ele comprometeu-se com as despedidas e eu pude constatar que estava magro e pálido.

Os meus pêsames. – Foi o que me ocorreu dizer.

Obrigado, Emília. – Retribuiu César.

Agradecemos o facto de ter vindo, vestal. – Foi o cumprimento formal de Aurélia.

Trocámos mais algumas palavras de circunstância, mas preferi não alongar a tortura. Eles estavam abatidos e a precisar de descansar.

No espaço de um intervalo de mercado, César perdera Júlia, Cinila e o filho; três pessoas importantes de uma só cajadada do destino! O momento não era certamente fácil para ele. Mas, mais uma vez, mostrou fibra!

Não havia tradição de elogiar as mulheres em público, quando morriam. Mas foi o que César fez, pela segunda vez consecutiva! Enquanto o povo se comovia com as palavras ternas que dirigia à falecida esposa, ele aproveitou para relembrar o sogro, um comandante prestigiado, que fora líder do partido dos populares e quatro vezes cônsul de Roma.

César fazia uso da morte para fins políticos. Os discursos, analisados no seu conjunto, eram duas belas peças de oratória! Ele reinventava-se publicamente e projetava-se no futuro. A sua glória estava a ser talhada pelo próprio mestre. Ele construía o seu templo, com paciência e argamassa de engenho, pilares de coragem e telhados de estratégia. Ele queria afirmar-se como grande estadista e campeão do povo.

A sua atitude gerou controvérsia. As críticas vinham de diferentes quadrantes! Nem todos tinham as mesmas razões para o censurar. Os inimigos tinham inveja do seu poder na adversidade, da sua capacidade de raciocínio. Os tradicionalistas não viam com bons olhos a sua forma de agir:

César é um homem sem escrúpulos. – Mânio queixava-se dele regularmente. – Nenhum romano decente faria campanha política num funeral. Ele repetiu a patifaria duas vezes num curto espaço de tempo!

Não ligues! Ele daqui a pouco vai para a Hispânia Ulterior e o povo esquece-se. Mânio não foi simpático:

César manipula as emoções da população a seu favor. Como é aquele homem não tem vergonha de fazer uma coisa dessas? – Insistiu. Mânio não estava bem-disposto, mas eu preferi ser sincera com ele:

Eu ouvi os discursos. – Confessei, enquanto ele me mirava de rosto sério. – Sim, eu fui ao funeral de Júlia e de Cinila. Conheço a família desde pequena. Enfim, eles compareceram no funeral do meu pai, da minha mãe, do meu irmão. Achei que devia ir. Não faz mal, pois não? Mânio tinha um rosto impenetrável. Era impossível, para mim, descodificá-lo:

César e a Vestal 321 Maria Galito

Os teus sobrinhos, Lépido ou Paulo, podem representar a tua família nesse tipo de cerimónias e tu deves ser mais discreta. – Propôs. – Tens de ter cuidado ou ainda passas por mariana.

As pessoas pensam que eu sou mariana?

Não serve os teus interesses. – Asseverou, com rosto cada vez mais fechado.

Está bem.

É perigoso para ti. Acredita, estou a tentar ajudar-te.

Obrigada, querido. Eu gosto que te preocupes comigo.

Tentei abraçá-lo, mas Mânio afastou-se militarmente para a direita. Deu apenas um passo, mas de uma forma rígida, como quem se despede com tranquilidade aparente.

Tenho de ir. Faz-se tarde e amanhã tenho de trabalhar. Senti uma fronteira entre os dois, incorpórea, mas firme como um muro.

Estás aborrecido comigo, Mânio? – Perguntei carinhosamente.

Estou cansado e vou cedo para o Campo de Marte, onde tenho responsabilidades. Se ele tinha alguma coisa a dizer-me, porque não o fazia?

Eu entendo.

Não me beijou na despedida. Enrolou-se na capa escura e saiu do lucus pela passagem secreta, desaparecendo do meu horizonte, pouco depois. Regressei ao átrio das vestais. No dia seguinte, encontrei a chefe das vestais a tricotar lã, enrolada numa manta.

Que tal o funeral de Cinila? – Perguntou Fonteia, de rosto pálido.

O nosso colega pontífice discursou no fórum em nome da esposa e do sogro, agora falecidos. Eu diria que foi comovente. – Esclareci, sentando-me num banquinho.

César aproveita todos os momentos para se dirigir ao povo, não é?

Parece que sim. – Foi tudo o que consegui dizer, agarrada ao novelo de lã.

Há homens que nasceram para a política e César dificilmente não chega a cônsul! – Exclamou, mantendo-se ativa na sua tarefa. Encolhi os ombros. Até reparar na sua manga suja e rubra.

Andas a tossir sangue, Fonteia?

É só cuspo, eu estou bem.

Não estás nada e eu vou pedir ajuda! – Rebelei-me.

Fonteia ainda tentou advogar contra a ideia. Mas, desta vez, eu não lhe dei ouvidos. Agarrei nas pernas e fui ao portão do santuário falar com o lictor, que estava de vigia, para que ele chamasse uma curandeira, com urgência.

As benzedeiras que mandámos chamar (e foram duas!) não a conseguiram salvar. A doença alastrara pelo corpo de forma irremediável! Para consternação de todos, Fonteia expirou três dias depois. Foi morte natural, aos cinquenta e um anos de idade.

O óbito de mais uma vestal máxima causou consternação. Ninguém esperava aquele desfecho e o colégio de pontífices chegou a fazer rituais de purificação da cidade, que aliviaram a ideia prevalecente, apesar de acomodada, de que era necessário morrer uma

César e a Vestal 322 Maria Galito

vestal para expurgar a cidade da invasão de Sila. Catão apareceu no funeral e arengou sobre essa matéria!

Para mim foi um rude golpe. Fonteia era minha amiga e senti a sua falta. Nunca tive saudades das suas predecessoras, mas dela sim. Acabei a carpir mágoas, junto ao fogo sagrado, na companhia de Perpena, pois era com ela que partilhava o turno:

Coitada, ela não merecia! Porque é que a deusa a deixou morrer? – Perguntei.

Não sei. Talvez merecesse. – Concluiu Perpena, que era uma popular.

Não digas isso. Fonteia era boa pessoa. – Fiz questão de frisar.

Há anos que os optimates governam mal esta cidade, Emília. A deusa está descontente. – Argumentou Perpena, insistindo no seu ponto.

Mas será que as pessoas não veem além da política? – Queixei-me aos céus.

Três dias após o funeral de Fonteia, fui chamada à Domus Publica. Fui a correr, pois as ordens de Metelo Pio eram para cumprir com celeridade. As vestais agora eram recrutas! O melhor era bater à porta do tablino do pontífice máximo, antes de entrar e aguardar por indicações, de costas muito direitas e postura irrepreensível.

Metelo Pio estava sentado, bufando pelas narinas. Levou tempo a fazer-se perceber. Pela sua boca saíram sons confusos que precisei descodificar. Após algum tempo, percebi que arranjara uma nova sacerdotisa para o templo e que se chamava Arruntia. Mostrei disponibilidade para a acolher. Prontifiquei-me a avisar as colegas da sua chegada.

Mas a novidade não era essa. Ele pretendia nomear-me vestal máxima. Apanhei um susto! Eu não podia ser sumo-sacerdotisa! Eu encontrava-me com Mânio. Tinha César no meu passado. A deusa nunca me perdoaria se eu liderasse o seu templo!

Fiquei tão nervosa com a proposta que nem pensei, respondi logo que não. Recusei a indigitação e aconselhei o pontífice máximo a promover Popília ou Perpena.

Metelo Pio ficou pasmo, a olhar para mim. Na sua presença nunca ninguém recusara uma promoção. Todos queriam mais poder, em Roma. Eu queria menos? Que ave rara! O líder da religião romana pensou antes de falar. Depois perguntou-me porque declinava a nomeação. Isto foi o que lhe respondi:

Não me sinto confortável numa posição de tanta responsabilidade.

Metelo Pio rebateu as minhas dúvidas. Explicou-me que eu deveria reconsiderar a minha posição, pois o meu nome era o único que reunia consensos no colégio de pontífices. Para mim, tal constituiu uma surpresa. Sinceramente, julguei que ninguém desejasse tal coisa! Suspirei, como quem pede clemência:

Mas e se eu falhar? Nunca mais me perdoava se algo corresse mal durante o meu mandato! O povo de Roma precisa acreditar nas suas instituições religiosas, nos seus pontífices, para não mais viver de coração apertado nesta cidade que é de todos. – Declarei com o coração nas mãos. Ele sorriu e, sem gaguejar (o que era de espantar!), respondeu:

César e a Vestal 323 Maria Galito

É por isso que a Emília é a escolha certa.

Mas, mas… – Balbuciei, com peso na consciência. Tão sarapantada fiquei, que comecei a articular palavras ininteligíveis. O pontífice máximo fez um gesto com a mão para que me acalmasse.

Não comece a ga-gaguejar! Aqui só eu-eu tenho direito a fazê-lo! Observei-o de olhos esbugalhados por tempo indefinido. Respirei fundo.

Bom, está bem. Pode contar comigo, pontífice máximo. Assumo o cargo de chefe das vestais com muita honra. – Respondi com valentia.

Ótimo. Pode ir. – E assim me despachou, sem mais cumprimentos ou felicitações.

Regressei ao átrio das vestais sem saber o que sentia com a nomeação. Esperei até à noite por Mânio, para lhe comunicar novidade que, pelos vistos, ele já conhecia. Mal me viu, deu-me os parabéns pela promoção a sumo-sacerdotisa.

Mânio, tu sabias? – Estranhei.

Fiz campanha a teu favor, indiretamente, mas com toda a determinação. . Confessou. – É justo que assim seja! Não pode haver melhor chefe das vestais do que tu, que te dedicas tanto a Roma. A sua voz era firme, neutra. A sua postura direita.

Obrigada, Mânio. – Sorri-lhe.

É melhor não nos vermos até terminares as funções de vestal máxima. Enfim, admitindo que abdicas daqui a seis anos. – Foi a água que deitou sobre o meu fogo.

Fui completamente apanhada de surpresa. Teoricamente, os rituais exigiam uma renúncia total aos desejos terrenos e, nem eu nem ele, queríamos mais invasões ou que a deusa nos castigasse. Mas a nossa separação não foi iniciativa minha. Foi dele!

Assumi funções depois de participar no ritual de investidura, ao qual assistiram todos os colegas do colégio de pontífices. Poucos dias depois, aplaudimos o novo flâmine de Marte, no que foi o meu primeiro grande ato público enquanto chefe das vestais.

Resolvi dar o exemplo e fiz tudo certinho. Desempenhei as formalidades protocolares durante todo o dia! Depois de mil cumprimentos e troca de galhardetes, fui para o templo como líder ciosa dos meus afazeres, dando prioridade à vigília do fogo sagrado de Roma, como me competia. Portanto, não enchi a barriga com os ouriços-do-mar, cozinhados em molho de azeite, que foram servidos na ceia em honra de Níger. Mas César confirmou a sua presença e as minhas colegas Perpena e Popília gabaram os temperos. Até se escreveu muito sobre isso, porque o responsável pela refeição foi Apício, o cozinheiro mais famoso da cidade!

Níger substituía o odioso Flaco com humor e simpatia. A mulher dele era mais agradável do que a flamínica anterior. Ele estava tão interessado em impressionar os seus colegas do colégio que investira num repasto que ficou lendário porque, no geral, foi um espavento! Para além de ouriços-do-mar, foram servidas aves de engorda salpicadas de farinha e cozinhadas no ponto; costelas de javali servidas com vegetais cozidos; pastéis

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fritos em azeite; ostras cruas e mexilhões dos grandes. À mesa havia de tudo, até patos marrecos, lebres assadas e doces regados a mel.3 Tudo em fartura como era típico em Roma. Mas eu, nessa noite de estrelas, fiz jejum. Coloquei-me de plantão no templo de Vesta e velei sozinha pelo fogo sagrado durante toda a noite.

César partiu de Roma no dia seguinte.

NOTAS FINAIS:

1 Baseado em Suetónio, Os Doze Césares, César, LXXVII. 2 Baseado em Plutarco, Vidas paralelas, Crasso, 12.4. 3 Lista de presenças na ceia de Níger: o Rex Sacrorum, Catulo, Décimo Silvano, Públio Cévola, Quinto Cornélio, Públio Albinovano e Públio Volúmnio; mas também Lúcio Júlio César, que nesta fase já era áugure. O átrio das vestais esteve representado por Popília, Perpena, Arruntia e Licínia. A Flaminica Publícia levara a mãe, Semprónia (baseado em Macróbio, Saturnália, 3.13.10-12).