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cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre
Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo
UNIV E RSID A D E F E D E R A L D A B A HIA
FA CULD AD E D E AR QUITETUR A
PR O GR A M A PÓS-GR AD UA Ç Ã O EM AR QUITETUR A E UR B AN ISM O
M AR IN A C AR M ELLO CUN H A
C ID A D E R EST O : O ESP A Ç O (D A) R O UP A E O Q UE [SO B R E]VIV E E N T R E B AIX A
D OS SAP A T E IR OS E P AR Q UE N O V O M UN D O
S A LV ADO R - B A
2014
M AR IN A C AR M ELLO CUN H A
C ID A D E R EST O : O ESP A Ç O (D A) R O UP A E O Q UE [SO B R E]VIV E E N T R E B AIX A
D OS SAP A T E IR OS E P AR Q UE N O V O M UN D O
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Arquitetura em Urbanismo. Área de concentração: Urbanismo. Linha de pesquisa: Processos Urbanos Contemporâneos.
Orientadora: Profª. Dra. Thais de Bhanthumchinda Portela Coorientadora: Profª. Dra. Paola Berestein Jacques
S A LV ADO R - B A 2014
C972 Cunha, Marina Carmello. Cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo / Marina Carmello Cunha. 2014. 114 f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Thais de Bhanthumchinda Portela. Coorientadora: Profª. Dra. Paola Berestein Jacques
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2014.
1. Sociologia urbana - Cidades e vilas. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura. II. Portela, Thais de Bhanthumchinda. III. Jacques, Paola Berestein. IV. Título.
CDU: 711.4:316
[Para minha amiga , e
os tantos outros que falam através
dela, eternizada nessa costura de
palavras. Com o amor e a dor que
cabem ao encontro]
Agradecimentos
Agradeço a todos com quem me emaranhei por esses caminhos. Por me oferecerem
almoços e cafés, abrirem a porta de suas casas, doarem tempo, história e vida à esse
trajeto. À tudo que cabe dentro desse texto torto, como disse certo dia minha Mana
Preta, Pri: todos os afetos, ebós, choros e risos, todas as urgências, atrasos e o que mais
couber.
Aos distantes, mas sempre presentes, Dé, Fabis e Nan.
Ao meu mestre e boss Cassio Brasil, que eu vi trabalhar lindamente costurando vida e arte. Que me apresentou o Parque Novo Mundo e toda sua magia invisível.
À Paty, mulher iluminada a quem devo muito, principalmente por colocar meus pés no chão algumas vezes quando precisei.
Aos Borean, minha família porteña, que me transmitem força e carinho por todos os lados.
Ao querido Zé, companheiro dos momentos mais difíceis e divertidos. Meu amor e gratidão infinitos.
Aos amigos‐irmãos caipiras: Mama, Za, Du, Fe e Bidi que tem o dom de transformar a vida em felicidade. Obrigada por serem tudo o que são! Quanto amor!
À pequena família que tive a alegria de construir em Salvador: Nini, Rê, Pri, TT, Jana, Marcelo, Sara, Lu, Jujuba e o Barrigo, Gus, Tia Thai, Pablito, Clarita, OzLindo, Tai, Titi e vovó Suda. Seria impossível sem vocês!
À minha amiga Lis, pelas descobertas, as trocas e o amor todo. E à sua família, que virou um pouco minha.
À Carol Bierrenbach e Cris Mesquita, pela amizade, confiança e os caminhos abertos com delicadeza.
À Paola por caminhar junto, apontar caminhos e fazer comentários certeiros.
À Tai por aceitar remar comigo e fazer isso da maneira mais leve e bonita que poderia acontecer. Muito amor e gratidão.
Ao Guigo, por ter chegado a tempo de dar alegria à reta final de fechamento da dissertação.
Ao Gag, que entrou na minha vida no dia da defesa, de forma linda e avassaladora. E desde então tem sido o maior estimulador das minhas vontades, realizações e amor. Muita alegria e aprendizado em sua companhia.
Aos dois pequenos que alegram minha vida e dão sentido aos esforços há um ano e alguns meses, Leonardo e Gabriel, meus sobrinhos e pontinhos de alegria diários.
Às minhas avós, pelas linhas todas.
À minha família, de poucos membros e alguns agregados (Mami, Papi, Tite, Osma, Rafa, Rô, Paulinha e Ana), essa ilha para onde remo o barquinho sempre que preciso de terra firme. Sem vocês perderia o prumo!
À CAPES, por ter sido uma boa mãe financiadora deste trabalho.
E à cidade do Salvador, que me transformou infinitamente.
CUNHA, Marina Carmello. Cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo. 2014. 114 f. il. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
RESUMO
No contexto dessa pesquisa, acreditamos que está nos restos, no que é quase invisível, uma resistência potente a uma certa hegemonia de valores. Nesse sentido, nos perguntamos: aonde vão parar as coisas que já não servem mais à cidade formal, esta que é regida pelo poder hegemônico? O que acontece com elas? Como sobrevivem? Na intenção de trazer à tona pistas que nos levem a possíveis respostas a essas perguntas, nos encaminhamos através de conceitos como o do homem em farrapos, de Flávio de Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco peles, de Hundertwasser, da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros autores e do paradigma indiciário, de Carlos Ginzburg. É assim que este trabalho se faz, se utilizando de uma metodologia de catação de rastros, sobras, trapos, conceitos e restos de roupa, de cidade e de gente; vestígios tais que encontramos entre a Baixa dos Sapateiros, em Salvador e o Parque Novo Mundo, em São Paulo. Essa costura invisível nos leva a conhecer o que chamamos cidade resto, um lugar agenciado por sujeitos que vivem dos restos de outros sujeitos.
Palavras‐chave: restos; cidade; roupas; corpo; catação.
CUNHA, Marina Carmello. City of Remains: the space (of) clothes and what survives between Baixa dos Sapateiros and Parque Novo Mundo. 2014. 114 f. il. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
ABSTRACT
In the context of this search, we believe that the remain is, as it is almost invisible, strong resistence to certain dominance values. In this sense, we ask: where will stop things that no longer serve more the formal city, which is governed by the hegemonic power? What happens to them? How they survive? Intending to bring up possible clues to answer these questions, we headed through concepts such as the man in rags, from Flávio de Carvalho, the ragpicker, from Walter Benjamin, the five skins, from Hundertwasser, the anthropophagy in Oswald de Andrade and other authors and the evidential paradigm, by Carlos Ginzburg. This is how this work is done, using a metodology of scavenging of traces, wastes, rags and clothing remains, city and people; this traces we can find between Baixa dos Sapateiros, in Salvador and Parque Novo Mundo, in São Paulo. This invisible sewing leads us to comprehend what we call the city of remains, a place intermediated by subjects who live within the remains of other subjects.
Key‐words: remain; city; clothes; body; scavenging.
Lista de figuras
Fig.1, 2 e 3 30 Peças da linha ‘0’, de Martin Margiela, das coleções PrimaveraVerão 2007, OutonoInverno 2005 e PrimaveraVerão 2008, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela.tumblr.com/collections#/en_US/10_archives/01_coll_artisanal/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013. Fig.4, 5 e 6 31 Peças da linha ‘0’, de Martin Margiela, das coleções OutonoInverno 2008, PrimaveraVerão 2007 e OutonoInverno 2006, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela.tumblr.com/collections#/en_US/10_archives/01_coll_artisanal/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013. Fig.7 32 Imagem retirada de frame do filme Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise, de Dai Sijie, 2012. Fig.8 36 Ticket de entrada para o Ahsan Manzil Museum, em Bangladesh. Fonte: arquivo pessoal. Fig.9 40 Imagem retirada de frame do documentário Les Glaneurs et la Glaneuse, de Agnès Varda, 2000. Fig.10 44 Loja da Baixa dos Sapateiros, em Salvador, onde a primeira pista da pesquisa foi encontrada. Foto de arquivo pessoal, 2012.
Fig.11 48 Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores. Foto retirada do Google Maps, em setembro de 2012. Fig.12 49 Ilustração de Hundertwasser representando as cinco peles. Fonte: RESTANY, 2003, p.15. Fig.13 54 Manequins da loja de roupas usadas na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.14 58 Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores. Fonte: Google Maps, setembro de 2012.
Fig.15 60 Entrada do ateliê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.16 61 Misterioso corredor de entrada do ateliê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012.
Fig.17 e 18 67
Local de trabalho da Costureirinha e ela mostrando um de seus muitos truques: a tesoura imantada que atrai alfinetes, em Salvador / BA. Fotos de arquivo pessoal, 2012. Fig.19 67 Corredor do ateliê da Costureirinha cheio de bolsas e mochilas consertadas por ela, em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.20 e 21 69 O Catador mostra peça de roupa ainda sem uso e etiquetada, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013. Fig.22 70 Em frente à loja do Catador roupas são jogadas na calçada para serem recolhidas pelo Rueiro ou pelo caminhão de lixo da Prefeitura, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013. Fig.23 e 24 77 Local de trabalho da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2013. Fig.25 93 Cartografia bordada da dimensão da cidade de Salvador para a Costureirinha baseada em sua concepção temporal. Foto de acervo pessoal. Fig.26 94 Leitura das localidades da Costureirinha aos moldes urbanísticos, baseada em uma concepção espacial. Mapa retirado do site: http://www.meuclub.net/wpcontent/uploads/2012/03/mapadesalvadorvejaaqui.jpg, com alterações e marcações nossas.
Fig.27 99 Cartografia bordada da Baixa dos Sapateiros a partir das relações da Costureirinha. Foto de arquivo pessoal. Fig.28 101 Cartografia bordada do Parque Novo Mundo a partir das relações do Catador. Foto de arquivo pessoal.
Sumário
SOBRE A ESCRITA
o início 15
“canteiro de obras a céu aberto” 16
GUIA DE LEITURA 22
capítulo I
PUXANDO FIOS EMARANHADOS: CATAÇÃO DE CONCEITOS 23
a catação 24
Desalinhavo#1 30
puxando fios: Martin Margiela nos apresenta à moda 32
Desalinhavo#2 35
quando moda e cidade se encontram 36
A beirada 38
o resto 38
Desalinhavo#3 39
o corpo e o resto ou o “corporesto” 41
Desalinhavo#4 42
o espaço (da) roupa 46
capítulo II
ALINHAVANDO TRAPOS: QUANDO SE VAI À RUA 54
vestígios e vínculos:
primeiras pistas 56
memória 58
das desculpas e táticas 61
Desalinhavo#5 64
os aliados 66
fardo de miudezas ou o “diaadia da roupa usada” 67
Desalinhavo#6 68
vãose os dedos, ficam os anéis 74
Desalinhavo#sem número 75
o lugar e o tempo 77
Desalinhavo#7 79
o Rueiro e suas múltiplas facetas 80
capítulo III
COSTURAS: QUANDO SE COLOCAM AS AGULHAS À PROVA 86
Desalinhavo#8 88
ferramentas e ofícios 89
o clarão da morte 94
o mapa e o mapeado 98
em outro canto, o mesmo conto? 102
O ARREMATE FINAL: CIDADE RESTO OU RESTO DE CIDADE? 107
referências bibliográficas 110
“Vale a pena em certas horas do dia ou
da noite observar objetos úteis em
repouso: rodas que atravessaram
empoeiradas e longas distâncias, com sua
enorme carga de plantações ou minério;
sacos de carvão; barris; cestas; os
cabos e as alças das ferramentas de
carpinteiro...As superfícies gastas, o
gasto infligido por mãos humanas, as
emanações às vezes trágicas, sempre
patéticas, desses objetos dão à
realidade um magnetismo que não deveria
ser ridicularizado. Podemos perceber
neles nossa nebulosa impureza, a
afinidade por grupos, o uso e a
obsolescência dos materiais, a marca de
uma mão ou de um pé, a constância de uma
presença humana que permeia toda a
superfície. Esta é a poesia que nós
buscamos.”
(NERUDA, 1983 apud STALYBRASS, 2008, p. 31)
15
SOBRE A ESCRITA
o início
Porque alguém com formação em Design de Moda busca investigar suas
questões em uma Faculdade de Arquitetura e Urbanismo? Em 2006, visitando a 27ª
Bienal de São Paulo pela segunda vez das quatro em que fui, assisti a um vídeo chamado
“Olive Green”, de uma artista peruana chamada Narda Alvarado. No vídeo, uma fila de
homens vestidos com fardas militares levava um prato nas mãos e caminhava como se
fosse atravessar uma rua pela faixa de pedestres. Quando o primeiro homem da fila
chegava ao outro lado da rua, todos eles paravam em cima da faixa, se viravam de frente
para os motoristas dos carros parados na via, tiravam do prato uma azeitona verde e a
comiam lentamente, roçando o caroço com os dentes até não sobrar nada comestível
da iguaria. Quando o último dos homens fardados colocava o caroço no prato, eles
seguiam seu caminho e terminavam de atravessar a rua. Os motoristas, por sua vez,
assistindo a tal cena que bloqueava sua passagem, buzinavam e gritavam indignados.
Não havia paciência para esperar nem mesmo o tempo de se saborear uma azeitona. A
Bienal, que tinha como tema: “Como viver junto?”, provocava meu primeiro ano
morando na grande capital do estado de São Paulo. Naquela tarde foi que percebi o
quanto vivíamos acelerados e eu, uma estudante de primeiro ano de Design de Moda,
entrei em crise com a cidade e, consequentemente com meu objeto de estudo, a roupa
e seus modos de fazer.
Somente alguns anos depois fui entender o que era o urbanismo em sua
constituição, sua base modernista, sua faceta mais desenvolvida e qual era a relação
dele com aquele vídeo de militares e azeitonas. O tempo do mastigar lento está fora dos
contornos espaciais e temporais propostos pelo urbano planejado nos moldes desse
urbanismo citado acima. A faixa de pedestres é feita para se atravessar, a rua é feita
para que os carros possam seguir um fluxo corrente e tudo deve se encaixar
harmonicamente para que a cidade funcione sem problemas. Mas a questão “Como
viver junto?” nos traz outras perguntas, que passam por lugares mais subjetivos e
profundos em relação à organização social e o cotidiano dos sujeitos na cidade.
16
Questões estas que, por vezes, nos dão pistas da existência de lugares e acontecimentos
inalcançáveis por esse pensamento linear e formal. Foram essas questões, levadas a
diante nessa dissertação, que me fizeram chegar a um mestrado em Urbanismo. Minha
crise com a cidade se desdobrou em perguntas e curiosidades que passeiam por uma
questão principal: o que cabe e o que não cabe nos moldes desse urbanismo? Como não
poderia deixar de ser, um dos objetos fundamentais da pesquisa é a roupa, porém ela
não está sozinha, vem acompanhada de suas duas camadas mais próximas, o corpo e o
espaço por onde circula, nesse caso, a cidade. Através da roupa, suas camadas e dos fios
teóricos e experienciais que nos permite puxar é que pensamos o urbanismo e seu
alcance espacial, temporal e cotidiano. Ao contrário dos caminhos lineares ou radiais
pensados por essa disciplina, essa pesquisa segue tortuosa e sem limites determinados.
“canteiro de obras a céu aberto”
“eu acreditava entrar no porto, mas... fui jogado novamente em pleno mar” 1
Buscar um porto se faz desafio no viver. Quando se encontra um, a felicidade da
estabilidade, contrária ao marear das ondas, parece não durar muito tempo. Em um
diálogo virtual entre Piracicaba/SP e Barcelona/ES se encontram, no tatear da conversa,
algumas interpretações empíricas da frase com a qual decidimos introduzir esse texto:
‐ parece que ando assim o tempo todo...no fazer campo, na vida, em tudo...(risos) ‐ mas o que você acha disso? tá sendo bom ser jogada em pleno mar o tempo todo? ‐ por enquanto tô achando bom sim. meio cansativo né? mas bom...eu interpretei como se fosse assim, a cada porto, um monte de outras coisas a serem descobertas....um mar de coisas... ‐ humm...essa é uma boa interpretação...e dá pra pensar que ser jogado no mar é também questionar tudo que a gente vê como base pra gente, né? ‐ é, essa também é uma boa interpretação...duvidar do porto..
1 LEIBNIZ, Gottfried. Novo sistema da natureza, par.12 In DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.30.
17
‐ mas acho que são interpretações complementares. e também pensar na transitoriedade das coisas, e como a gente não pode controlar nada. ‐ sim, complementares...exatamente...nada, nossa! nada mesmo!2
Duvidar do porto, ter ciência do descontrole das coisas, ver em cada atraque uma
nova perspectiva para olhar o mar. Assim se tentou levar esta pesquisa o tempo todo. A
pesquisadora, mareada, tateando com os pés a linha onde se equilibra, sem medo da
queda (cair em pleno mar pode ser delicioso ou extremamente perigoso), pois,
enquanto pesquisadora é sempre preciso assumir o risco. O chão estável do porto, que
poucas vezes esteve sob os pés desta pesquisa, teve o tempo todo o papel de lançador
do olhar para o horizonte3. Pelo trajeto da investigação, o resultado não poderia ser
outro: esse oscilar entre solo firme e mar aberto. A escrita não poderia se fazer
diferente: cambiável, mutante, mareada, em vai‐e‐vem.
Por isso, é necessário introduzir esse texto dando destaque principalmente à
falta de eixo ou cronologia nesta escrita. Os fatos dos quais aqui falamos não
necessariamente aconteceram na ordem tal em que foram organizados, os mergulhos
se confundem e as linhas dão nós. Nem mesmo os conceitos foram encontrados na
ordem que estão postos, pois a escrita quase sempre não tem fim, está em processo,
em movimento, é este porto que te lança o tempo todo de volta ao mar. É, muitas vezes,
um texto fragmentado, que desacredita da totalidade das coisas e prefere fazer a
tentativa de trazer as partes diversas de um todo heterogêneo que é a própria pesquisa.
Portanto, encarando esse trajeto fragmentado, enredado por desvios e rotas de fuga,
conclui‐se que, se houvesse mais tempo (ou menos), a escrita seria outra, a dissertação
diferente. É então, um processo vivo e sem fim, que não acaba mesmo depois da ilusória
finalização da escrita. Deste modo, esta, configurada aqui, neste momento, é um
resultado de inúmeros afetos que permitiram vir à tona diversas questões sobre a
2 Este diálogo foi feito em novembro de 2013 via Skype entre duas amigas pesquisadoras, as duas
se interessam pelos restos urbanos e veem na pesquisa um lugar tão des afiante quanto a vida. 3 Aqui preferimos conceber o horizonte pelas palavras de Deleuze e Guattari em O que é a
filosofia?: “Não o horizonte relativo que funciona como um limite, muda com um observador e engloba estados de coisas observáveis, mas o horizonte absoluto, independente de todo observador, e que torna o acontecimento como conceito independente de um estado de coisas visível em que ele se efetuaria” (1992, p.46).
18
vivência numa cidade, sobre o sistema da moda, o cotidiano, o capitalismo, a hegemonia
e a micropolítica. Essas questões postas culminaram no encontro de um prumo, mesmo
que nunca certeiro, mas um prumo para onde mirar: o resto urbano.
Apesar de usarmos como recurso de escrita a criação de personagens que nos
ajudam a dissertar, este texto não é uma ficção. Porém, seguindo os pensamentos de
Foucault, para criar esse discurso na tentativa de desvendar uma suposta cidade
resto, a qual, imaginamos, pode possibilitar a descoberta de outros modos4 de existir
no espaço urbano, decidimos “ficcionar”. Essa é, então, uma discussão acadêmica,
baseada em acontecimentos e descobertas reais, abordados de forma a configurar um
discurso, uma cartografia e levantar questões possíveis sobre as cidades. Segundo
Araújo,
“Em 1977, sendo entrevistado por Lucette Finas para La Quinzaine Littéraire, Foucault é inquirido sobre o aspecto ficcional frequentemente associado a seus textos. Sua resposta: ‘Quanto ao problema da ficção, ele é para mim um problema muito importante; eu me dou conta claramente que nunca escrevi nada senão ficções. Eu não quero dizer por isso que estas estejam fora da verdade. Me parece que é possível aí fazer trabalhar a ficção na verdade, induzir efeitos de verdade com um discurso de ficção, e de fazê‐lo de tal forma que o discurso de verdade suscite, fabrique qualquer coisa que não existe ainda, e assim ‘ficcione’’”. (2011, p.58)
Foi nesse sentido então, que “ficcionar”, virou nossa estratégia de escrita. Criar
um discurso “na fronteira entre o dado e o criado” (PINTO, 2012, p.198), utilizando‐se
de recursos como a memória, a fotografia e o registro escrito, entendendo que ciência
e ficção, como pensadas por Certeau, não existem em suas “formas ‘puras’, mas tão
somente nessa estranha mistura” (PINTO, 2012, p.198), nessa existência não delimitada
e contaminada a todo o tempo.
O “ficcionar” deve ser entendido aqui como atitude literária que acontece com
o intuito de favorecer a experiência de leitura, é um modo de “opor‐se a totalizar”
(ARAÚJO, 2011, p. 61), “afinal, a ficção enquanto geradora de efeitos de verdade é uma
4 Outros modos estes que possivelmente burlariam, desviariam e se diferenciariam do modo
padronizado e ideal imposto pelo pensamento hegemônico, higienizado e l inear desencadeado a partir do capitalismo e do pensamento moderno.
19
intervenção na ‘política do pensamento’” (ARAÚJO, 2011, p. 61). “Ficcionar” é então
“produzir efeitos de verdade”, é a tentativa de provocar no leitor uma “experiência de
liberdade, de autogoverno” (ARAÚJO, 2011, p. 70). É um ato processual, experimental e
indefinido. Com o qual se pretende dar ao leitor a possibilidade de outras formas de
leitura e entendimento da verdade.
É através de conceitos como o do homem em farrapos, de Flávio de
Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco peles, de Hundertwasser,
da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros autores, do paradigma
indiciário, de Carlos Ginzburg e de outros conceitos desenvolvidos pelo próprio
trabalho como o da cidade resto, do espaço da roupa e do espaço
roupa, que esta pesquisa e esse texto se pretendem fazer, enquanto uma catação
de rastros, sobras, trapos e restos de roupa, de cidade e de gente na intenção de trazer
a tona um alinhavo entre Salvador e São Paulo. Alinhavar se diz do ato de se costurar
com pontos largos e à mão o que depois deve ser costurado com pontos mais estreitos.
É fazer uma costura “temporária” que depois deve ser reforçada por outra. Alinhavar a
escrita ou o mapa é ainda rascunhar o pensamento e a experiência. É juntar
acontecimentos a pontos largos, pontos tais que após serem feitos, observados e
aprovados podem ser reforçados por uma costura definitiva de pensamento, uma
reflexão mais madura, um traçado mais certeiro.
Esse processo de construção de dissertação é uma tentativa incessante de que
“os procedimentos de pesquisar/produzir/escrever não se separem do próprio objeto e
configurem uma viva tessitura, uma pesquisa como ‘canteiro de obras a céu aberto’” 5.
No entanto, a forma como se apresenta o texto, foi pensada de maneira que
facilite o entendimento de nosso assunto, metodologia e objeto. Por isso, iniciamos a
dissertação a partir de uma catação de conceitos teóricos que nos ajudarão a
5 Trecho retirado do parecer de Cristiane Mesquita para nossa primeira banca de qualificação. A
frase “canteiro de obras a céu aberto” teria sido dita por Rosane Preciosa em referência a alguém que Cristiane não se lembrava. Ficamos com a “imagem” da frase de Preciosa, como pretendia Cristiane em seu parecer. Para conhecer mais de Mesquita, ver: MESQUITA, Cristiane [tese]. Políticas do vestir: recortes em viés. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008. Para conhecer mais de Preciosa, ver: PRECIOSA, Rosane. Produção Estética – notas sobre roupas, sujeitos e modos de vida. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2005.
20
entender o segundo capítulo, que consiste na escrita de nossa prática pela cidade, o
fazer campo. Porém, por serem indomados os fios dessa pesquisa, algumas vezes o
primeiro capítulo é atravessado por questões a serem desenvolvidas mais a diante, no
capítulo seguinte e no segundo, questões tratadas no primeiro atravessam o texto como
se quisessem puxar à memória o que já foi trazido ao leitor. Mais ao final, como se o
primeiro capítulo fosse um puxar de fios emaranhados e o segundo um processo de
alinhavar retalhos, chegamos ao terceiro com o intuito de costurar mais firmemente os
alinhavos com os fios conceituais desemaranhados, conscientes de que, por serem os
conceitos e a vivência em campo lugares sem limite definido, essa costura se faz
tortuosa, um tortuoso estabelecer de conexões entre conceitos e prática, numa possível
cartografia dessa cidade resto.
São apresentados no decorrer do texto, principalmente a partir do segundo
capítulo, alguns personagens conceituais que nos ajudam a puxar os fios emaranhados
dessa trama, num entendimento quase rizomático6 dos bairros em questão. Esses
personagens conceituais dialogam com os fios de conceito puxados no primeiro capítulo
e nos ajudam a encontrar e desvendar as pistas que nos levam em direção à descoberta
de uma possível cidade resto.
Entre tantos alinhavos que vamos tentando fazer destes retalhos e fios
recolhidos pela cidade, há ainda desalinhavos que não poderiam deixar de aparecer, são
questões, acontecimentos ou curiosidades que podem levar o leitor a outros caminhos,
dentro ou fora desta dissertação. Os desalinhavos aparecem algumas vezes no decorrer
do texto, como apareceram durante a pesquisa de campo e incitaram a vontade do
pesquisador de mudar a direção: são entrelinhas, dados marginais. Aqui, os
desalinhavos se tornam pequenas tentações para o leitor espiar por esta fresta, este
buraco na costura que permite ver algo além da parte exterior da roupa, se configuram
6 O pensamento rizomático proposto por Gil les Deleuze e Félix Guattari em seu livro Mil Platôs,
vol.1, diz de um sistema de pensamento não hierárquico, não‐ significante e heterogêneo, onde não há uma força coordenadora dos movimentos e cujos resultados não se pode prever ou organizar. O rizoma, “(...) é feito de direções móveis, sem início nem fim, mas apenas um meio, por onde ele cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar” (PELBART, 2003, p. 216), portanto, “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê‐lo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.22). É um pensamento sem eixo.
21
como pistas que o leitor escolhe ler ou não, seguir ou não. Estas pistas são retalhos
catados durante a pesquisa, que não tivemos tempo de continuar costurando a esse
patchwork tentacular (mas que fazem sentido no processo desta dissertação), fica
apenas a vontade de desenvolver, de se enveredar por cada novo emaranhado, cada
novo trapo, que possivelmente nos levaria a outros, nessa rede infinita de fios e tramas
onde personagens se conectam e enlaçam através dos restos urbanos.
22
GUIA DE LEITURA
Para ler esta costura/dissertação/cartografia é preciso entender algumas regras e os
termos englobados por elas. Segue abaixo um diagrama que facilitará a leitura do texto,
tire‐a da página e boa leitura!
Conceitos: homem em farrapos, trapeiro, cinco peles, antropofagia, paradigma indiciário, espaço da roupa,
espaçoroupa e cidade resto.
Palavraschave: catação, o fazer campo, sobrevivência, memória, corpografia, personagem conceitual/figura
estética, desculpa, brecha.
Desalinhavos#
Costuras e descosturas abertas ao leitor.
Notas do fazer campo.
23
capítulo I
PUXANDO FIOS
EMARANHADOS:
CATAÇÃO DE CONCEITOS
Qual é a relação do corpo com o espaço urbano? E quais são as interferências e
influências das roupas nessa relação? Esta pesquisa começou com essas questões
principais, uma simples inquietação nossa. Logo do fazer dessas questões, a imagem
que surgiu foi a do morador de rua, esse corpo que vagueia pelas cidades e geralmente
constrói seu espaço apenas com o corpo e os tecidos que o recobrem, as amarrações
que juntam seus objetos e seus cobertores à sua pele. Mas foi a mudança de São Paulo
para Salvador para frequentar as aulas na UFBA que fez nossos olhos perceberem outras
coisas. A necessidade de criar espaços através de poucos objetos e tecidos nessa
vivência na rua se fazia muito mais clara em São Paulo, onde possivelmente o clima e as
condições de sobrevivência na cidade favoreciam tais práticas. Percebeu‐se que o
morador de rua em São Paulo se fixava, o de Salvador caminhava e, quase sempre,
levava pouca roupa e nenhum objeto. A construção do espaço era outra e as roupas e
objetos quase não estavam implicados nessa construção. Nosso olhar estava atento
para encontrar um corpo que pudesse dizer desse espaço construído na cidade, mas eis
que durante algumas caminhadas pelo centro da capital baiana, fomos atravessados por
outras questões e essas percepções nos levaram a fazer um desvio de rota. O encontro
com a Baixa dos Sapateiros, em Salvador, e suas lojas de roupas usadas nos levou a
acionar antigas memórias e descobrir ligações deste bairro com o Parque Novo
Mundo, um bairro da periferia de São Paulo, onde anos atrás estivemos diversas vezes
com o intuito de selecionar e comprar roupas usadas para serem utilizadas em figurinos
24
de teatro e cinema. Os encontros desse trajeto investigativo nos deram a possibilidade
de pensar estes dois bairros de cidades distintas através de uma matéria que resulta da
própria cidade: o resto. É então seguindo pistas que perpassam por esse estado de
matéria que a pesquisa vai se fazendo. O resto se torna objeto principal da investigação,
fio condutor do alinhavo.
a catação
Para encontrar o caminho da pesquisa foi preciso caminhar. Queremos dizer com
isso, que foi no decorrer da pesquisa que a metodologia (ou a catação de métodos)
usada em campo (aqui o campo inclui também a pesquisa teórica) se fez entender. Sem
estabelecer regras primárias, logo a relação entre pesquisador e cidade impulsionou
uma maneira particular de estar no espaço urbano. Tal maneira acabou sendo levada
também para nossas buscas conceituais e teóricas.
Esse conjunto de métodos descobertos e catados, se apresenta aqui em um
modo de escrita alegórico. Para Walter Benjamin (1984), o alegórico se aproxima do
simbólico, mas é diferente dele por acompanhar o fluxo do tempo, estar em constante
progressão e revelar a todo momento novas possibilidades de significação. Em seu texto
“Origem do drama barroco alemão”, Benjamin destaca a alegoria enquanto uma
expressão de múltiplos sentidos e a relaciona com o Barroco. Ele define tal período
artístico e a expressão alegórica como efêmeros, inacabados e fragmentários. A arte
barroca lhe parece sempre aberta, tumultuada diversa e confusa, uma arte que deixa
aberta a possibilidade de continuação, não tem fim, assim como a alegoria. Nesse
sentido, assumir um texto alegórico é deixar o caminho aberto, certo de que “cada
pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra” (BENJAMIN, 1984,
p.196). A alegoria, segundo Benjamin, tem uma “tendência destrutiva”, no sentido de
que desconstrói qualquer “falsa totalidade” (1984, p.246), apresentando os
acontecimentos em fragmentos. Portanto, a própria pesquisa se mostra como uma
expressão fragmentada, aberta, cheia de nuances e camadas – máscaras cambiáveis.
Tomando a alegoria como processo de constituição de sentido, preconizamos uma
essência fragmentária e selecionamos frações de acontecimentos que talvez, fora desse
25
texto, não fizessem sentido. As organizamos de forma a constituir um todo
fragmentado, não totalitário, porém significante.
Para além da escrita, encontramos em nosso caminho diversas posturas
metodológicas que nos tornaram em certos momentos, devoradores da história7.
Engolimos pistas e fragmentos e os devolvemos em uma possível cartografia de afetos,
memórias e restos da efemeridade urbana. Descobrindo modos de relacionar pistas e
acontecimentos, tentamos fazer o encontro e a costura entre os retalhos conceituais e
o campo da pesquisa, agenciando‐os nessa descoberta de uma suposta cidade
resto.
Assim vai se fazendo nossa pesquisa, percebendo em tudo a possibilidade de
costura, não deixamos passar os trapos encontrados pelas ruas: uma catação de
rastros, sobras, farrapos e restos de roupa, de cidade e de gente na intenção de fazer
um alinhavo entre trechos de cidades e seus usos através de nossas descobertas.
Caminhamos entre bairros de Salvador e São Paulo, em busca de pistas para continuar
a perseguir os restos, possíveis reveladores de um existir na cidade que transgrida o
padrão hegemônico8 de pensamento. Em nosso trajeto, descobrimos as perguntas que
levarão a pesquisa adiante: onde vão parar as coisas que já não servem mais à cidade
formal, esta que é regida pelo pensar hegemônico? O que acontece com elas? Como
sobrevivem? Seguindo um percurso delimitado pelo processo da própria pesquisa, é na
perseguição dos restos que encontramos os personagens que poderão colaborar para o
desvendar dessas questões no âmbito urbano.
Percebemos então, que nos serão valiosas as características da “noivinha‐
antropófaga”, uma das noivinhas cartografadas por Suely Rolnik (2011), que “se guia
pelas causas estimulantes (afetos de um corpo que estimulam os afetos do outro corpo)
7 Questionamentos de historiadores como Aby Warburg e mais posteriormente Carlo Ginzburg,
nos fazem pensar sobre a história e sua maneira l inear e cronológica de ser contada. Os esforços destes dois estudiosos e de alguns outros para tentar encontrar outra maneira de narrar a história que passe por lugares mais subjetivos dos acontecimentos, como a memória, nos induzem a questiona r tudo o que já parece estabelecido em nossa sociedade. Quando devorada a história pode ser experienciada, virando outra coisa, fragmentando‐se.
8 No decorrer do texto definiremos melhor o “hegemônico” de que falamos.
26
e não pelas causas finais ou determinantes” (ROLNIK, 2011, p.193), “embarca no
movimento (de desterritorialização e reterritorialização) e, de dentro dele, deixa que
seus afetos se atualizem na invenção de um território” (ROLNIK, 2011, p. 195). Através
dela chegamos à antropofagia que é, então, o artifício que utilizamos enquanto
postura metodológica.
Essa postura é inspirada no Movimento Antropofágico que ocorreu nas artes
durante as décadas de 1920 e 1930 e foi consolidado pelo Manifesto antropófago,
escrito por Oswald de Andrade, em 1928. Os artistas envolvidos no movimento tinham
por objetivo reagir contra a dominação artística estrangeira, mas sem negá‐la ou copiá‐
la. Eles “preconizavam devorar suas ideias (...), comer a arte europeia, ruminá‐la com
um molho nativo e popular e, finalmente vomitar a arte antropofágica, tipicamente
brasileira, com toda sua ironia e crítica subversiva” (JACQUES, 2012, p.98). Neste
sentido, usar a antropofagia enquanto postura metódica poderia ser devorar o que
o “outro” encontrado no fazer campo nos dá, ruminar esse material com nosso
repertório teórico e vomitar de outra forma.
Esse outro de que se fala é a alteridade que está relacionada às roupas e aos
restos urbanos. Sujeitos que, encontrados durante a pesquisa, se tornaram importantes
em relação ao contexto dos restos e dessa suposta “cidade resto”, agentes de
ressignificação desses objetos, espaços, ideias e corpos que sobram. Nesse sentido, não
é toda e qualquer alteridade, ou todo “outro” que é devorado por nós, mas sim os que,
como os índios antropófagos faziam, podem permitir a absorção de alguma qualidade,
convivência ou informação desejada.
Nosso então assumido estado antropofágico, faz pensar em que sentido essa
condição pode influenciar na apreensão desta cidade supostamente regida pelos restos.
Em sua tese denominada Exercícios de Leitoria, Jorge Menna Barreto9 (2012) faz uma
leitura interessante do livro de Hélio Oiticica, Aspiro ao Grande Labirinto, considerando
seu texto uma construção gerada a partir de uma prática antropofágica. Para Barreto,
no texto de Oiticica é perceptível a “deglutição, o engolir, os movimentos peristálticos,
9 Jorge Menna Barreto é Formado em Artes Plásticas pela UFRGS, mestre e doutor em Poéticas
Visuais pela USP.
27
os ácidos críticos da saliva e do estômago que transformam a matéria e a preparam para
a absorção” (2012, p.114). Ele percebe no artista esse devorar do outro e faz um paralelo
entre deglutir e ver, duas maneiras de capturar a alteridade que se diferem
principalmente pela temporalidade do processo de captura.
“A apreensão do outro pelo sistema digestório é lenta. Envolve uma extensa jornada que atravessa o corpo e aciona intensos processos químicos e mecânicos de decomposição. Cada pedaço de alteridade tem que ser mastigado e vigorosamente modificado, quebrado em moléculas. (...) É muito diferente dos processos de incorporação pela visão, nos quais há uma imediaticidade enganosa (...). O olho acelera o processo de captura. Sua função não é de absorver a alteridade, mas de detectá‐la e reconhecê‐la. A alteridade só pode ser absorvida lentamente, mastigadamente, engolidamente, digestivamente, antropofagicamente. A radicalidade maior da antropofagia está na mudança, no desvio de modo e temporalidade na percepção do outro. Deixa‐se de usar o mecanismo ótico para usar o digestivo, que também envolve órgãos de leitura, mas não da imagem, e sim do valor nutritivo da matéria‐outro, reconhecendo o que deve ser ou não absorvido” (BARRETO, 2012, p.114, grifo nosso).
Foi inspirada na prática dos índios tupis que a antropofagia se consolidou
nas ideias dos artistas e nas palavras de Oswald de Andrade, fazendo migrar para a
cultura a relação com o outro, identificada no ritual do canibalismo. Os índios tupis
devoravam seus inimigos, não todos, apenas aqueles que, selecionados por suas
virtudes, pudessem favorecer o próprio devorador. É assim que, no chamado
Movimento Antropofágico, essa “fórmula de produção cultural” ganha visibilidade
(ROLNIK, 1998). Pode parecer que, justamente por enaltecer o “não europeu”, tal
movimento apenas persistiu na posição subalterna da cultura produzida nacionalmente,
mas não se pode deixar de lado que
“a força da Antropofagia é justamente a afirmação irreverente da mistura que não respeita qualquer espécie de hierarquia cultural a priori, já que para esse modo de produção de cultura todos os repertórios são potencialmente equivalentes enquanto fornecedores de recursos para produzir sentido” (ROLNIK, 1998, p.133, grifo nosso).
28
Portanto, esta pesquisa só pode existir em relação ao outro, aos sujeitos que
encontramos em nosso trajeto, bem como o outro só existe aqui em relação a nós10.
Somos devorados o tempo todo por cada um dos sujeitos encontrados no fazer
campo que aqui são retirados da sua condição de sujeito para serem empregados
enquanto conceito que nos ajuda a pensar o que chamaremos de espaçoroupa. A
temporalidade, que sempre questionamos em nosso trajeto à cata de conceitos, é
subvertida também na maneira encontrada para se estar na cidade. Assim, o leitor verá
adiante em nossa prática de campo, a vontade de simplesmente estar, pois acreditamos
(metodologicamente) que é o tempo, e só ele, que pode fazer emergir do campo nossas
desejadas pistas, que nos permitirão seguir em frente.
É o resto na (ou da) cidade que se faz fio condutor das reflexões aqui
estabelecidas e é na perseguição deste estado de matéria que encontramos nossas
pistas. A intenção desobstinada é tratar a cidade e suas fronteiras por meio de um fazer
campo que vai acontecendo rizomaticamente, a princípio sem regras. Portanto, a
percepção da metodologia só acontece no meio do processo: basicamente encontra‐se
um composto, uma catação de métodos que poderiam ser úteis, cada um a sua
maneira, para o entendimento desta trama dos restos. O que devoramos em nosso
caminho são pistas encontradas na cidade.
É partindo do encontro com o paradigma indiciário, método proposto
pelo historiador Carlos Ginzburg11, que se decide efetivamente perseguir os detalhes, os
dados marginais. Aí se estabelece, através das descobertas da própria pesquisa, uma
primeira regra: nossos olhos e ouvidos devem estar atentos às pequenas coisas, dicas,
fatos e encontros pelo caminho. A primeira regra diz de uma maneira de estar em
10 A escolha pela escrita na 1ª pessoa do plural (nós) se deu pela percepção de que a escrita,
justamente por ser alegórica, se faz como se a pesquisadora pudesse vestir e desvestir diferentes máscaras no decorrer do texto e da pesquisa. Assim, a pesquisadora é modista, cartógrafa, catadora de pistas e escritora, além de ser afetada a todo o tempo pelo outro encontrado em campo, esse que também fala através dela.
11 Apesar de citarmos com maior importância o trabalho intelectual de Carlo Ginzburg, estamos cientes da influência que ele teve do historiador de arte Aby Wasburg. Ginzburg teria estudado no Warburg Institute de Londres e aprendido através dos estudos de Aby a pensar a História de uma forma diferente, não linear e possibil itadora de diálogos interdisciplinares. Para aprofundamento nas pesquisas de Warburg ver: DIDI‐HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2013.
29
campo. Essas pequenas fontes, então, devem ser tomadas enquanto pistas, indícios,
sinais e vestígios sobre os quais muitas vezes devemos fazer uso de nossa intuição e
sensibilidade para encontrar o caminho da pesquisa (GINZBURG, 1990).
Método investigativo de produção de conhecimento, o paradigma
indiciário é colocado a serviço da história por Ginzburg, sendo usado para
descobrir e escrever a história do lugar, partindo do pressuposto de que as pistas são
necessárias para levantar dados que existiam no passado e não existem mais. Nos textos
em que fala dessa metodologia, Ginzburg utiliza fatos históricos para “justificar” sua
eficácia, trazendo para a discussão o Paradigma Venatório e o Divinatório. O primeiro,
relativo aos caçadores do Neolítico, tinha como instrumento de investigação pistas
como esterco, pelos, pegadas e plumas, o segundo trata dos adivinhos da Mesopotâmia
que observavam entranhas de animais, gotas de óleo na água, astros e movimentos
involuntários do corpo para decifrar o que viria a diante. Ambos os métodos eram
usados para descobrir pistas de eventos dos quais o observador não pôde participar ou
experimentar, seja porque ocorreu no passado ou porque ainda virá a acontecer no
futuro. Nos dois casos, o exercício de descoberta das pistas envolvia operações
semelhantes, como análises, comparações e classificações (GINZBURG, 1990).
Ginzburg questiona o papel e os modos de fazer da história, se pergunta sobre o
que é a verdade, principalmente em relação às interpretações e usos de documentos e
busca demonstrar que as provas visíveis e palpáveis não são as únicas possíveis de serem
averiguadas pela narrativa histórica. Ele afirma que os historiadores deveriam se
lembrar que todo ponto de vista pode ser seletivo e parcial (RODRIGUES, 2005). Para ele
“o historiador é, por definição, um investigador para quem as experiências, no sentido rigoroso do termo, estão vedadas. Reproduzir uma revolução é impossível, não só na prática, como em princípio, para uma disciplina que estuda fenômenos temporalmente irreversíveis enquanto tais” (GINZBURG, 1991, p.180).
Por isso, ele insiste numa maneira de fazer história que leve em consideração
pequenas pistas e fatos que poderiam revelar muita coisa. Segundo ele, essas pequenos
vestígios “são frutos do acaso e não da curiosidade deliberada. Surgem em algum
momento da pesquisa onde a sensação é de ter encontrado uma pista relevante e ao
30
mesmo tempo a consciência aguda da ignorância sobre o que é ou significa” (Ginzburg,
2004, p.11). Nesse sentido, se há o recurso da memória, se há esse “estalo”, esse
lampejo do encontro entre o passado e o presente, esse “fruto do acaso”, será mesmo
que a experiência está vedada ao historiador?
Desalinhavo#1
“[...] num dia de inverno, chegando eu em casa,
minha mãe, vendome com frio, propôs que tomasse,
contra meus hábitos, um pouco de chá. [...] E
logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia
tristonho e a perspectiva de um dia seguinte
igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de
chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleine.
[...] Mas no mesmo instante em que esse gole,
misturado com os farelos do biscoito, tocou meu
paladar, estremeci, atento ao que se passava de
extraordinário em mim. [...] E de súbito a
lembrança me apareceu [...]”.
(PROUST, 2002, p.50)
Para seguir essa pista leia PROUST, Marcel. No
caminho de Swamm ; À sombra das moças em flor.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. Ou vá até a página
55 dessa dissertação.
A memória, muitas vezes involuntária, se apresenta como uma pista para a
conexão de situações diversas e é caracterizada pela clara ligação entre linguagem,
história e tempo. Portanto, essas fontes involuntárias que atravessam a pesquisa
devem, segundo ele, ser questionadas com intuição e sensibilidade, já que a imagem
gerada pela memória é de extrema importância para indicar uma outra possibilidade de
contar a história, de uma maneira que nem sempre se valha do tempo linear12. Sobre a
narrativa histórica, o autor ainda afirma que teria sido feita pela primeira vez por um
12 Essas informações sobre a memória foram obtidas através de uma entrevista com Jeanne
Marie Gagnebin. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Dr7jJoqxFfU
31
caçador, sendo este “o único capaz de ler, nas pistas mudas uma série coerente de
eventos” (Ginzburg, 1990, p.152) e, portanto, o primeiro capaz de transmitir tal leitura
para seu grupo. É este passado da caça que teria contribuído para o desenvolvimento
de inúmeras capacidades humanas, como o raciocínio lógico, a abstração, a percepção
e a imaginação. Ginzburg afirma que
“por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas. Gerações e gerações de caçadores enriqueceram e transmitiram esse patrimônio cognoscitivo”. (GINZBURG, 1990, p.151)
Por outro lado, encontramos em Rolnik a elucubração do que seria uma
subjetividade antropofágica (1998), onde a autora afirma que a antropofagia está
intrínseca na existência social dos indivíduos brasileiros. Seria uma característica
enraizada em nossa sociedade. Então, ser brasileiro é ter um “quê” antropofágico e ser
humano é ter um “quê” de caçador. Nós, enquanto caçadores de pistas e trapos que
falem sobre o tempo presente, não temos a pretensão de contar a História oficial de
uma localidade, por isso as pistas são devoradas e deglutidas com conceitos e
informações alheias ao fazer campo. É através dos indícios e das pistas capturadas
pelo tempo lento de deglutição antropofágico que inventamos nossas hipóteses e
buscamos desvendá‐las. Antropofagia e paradigma indiciário interferem
metodologicamente o tempo todo, ora a pista é encontrada e devorada, ora a deglutição
acontece primeiro para depois permitir que novos vestígios surjam em campo.
A segunda regra é então estabelecida: não fazer perguntas. Se a catação de
metodologias até então fala da temporalidade, da espera digestiva e do encontro de
pistas que não se buscam, perguntar estaria fora do que se acredita para este caminho
investigativo. É claro que perguntas diretas poderiam esclarecer dúvidas, mas nos
levariam para um caminho quase pré‐estabelecido, enquanto que as informações
obtidas metodologicamente através do silêncio, em que escutamos a resposta para
depois formular a pergunta, nos levam na direção de novas descobertas
32
surpreendentes, mesmo que isso custe o “deixar de lado” de algumas informações. A
pesquisa se faz como uma escolha de caminhos, a escolha de que pistas seguir.
puxando fios:
Martin Margiela nos apresenta à moda
Levados pelas roupas, encontramos nossos pares: estilistas, costureiras,
separadores de roupa. Encontramos na maneira de olhar do outro, desvios
surpreendentes, a capacidade de ver no que resta alguma forma de transformação.
Uma pista dada a nós, nos leva a encontrar os restos reorganizados de Martin
Margiela e a puxar o que decidimos serem os primeiros fios deste emaranhado13 para,
enfim, refletir sobre a cidade. Mas como um designer pode colaborar para essas
reflexões sobre o urbano? O designer belga que questiona o sistema e a configuração
da moda, mesmo inserido nele, faz de sua marca de roupas, a Maison Martin Margiela,
um espaço de problematização e transgressão do sistema da moda. Desde sua fundação,
em 1988, Margiela não se deixa fotografar, não aparece no final dos desfiles como é de
praxe no meio da moda, em todo material de divulgação usa o pronome “nós”,
implicando toda sua equipe no processo de desenvolvimento das roupas e usa
etiquetas, caixas e sacolas brancas, sem logotipo. Ele “faz uma ode ao anonimato”
(RABELLO, 2011, p.82).
Sempre provocativo, Margiela questiona a velocidade da produção das roupas
através do inacabamento e da precariedade das peças. As costuras de algumas roupas,
bem como suas marcações de corte, fios, sobras de tecido e pespontos, que segundo a
tradição na confecção, ficam escondidos do lado avesso da peça, em muitas de suas
roupas estão do lado de fora (RABELLO, 2011). Tal atitude faz pensar a temporalidade
da produção de moda, em que muitas indústrias sacrificam seus funcionários e
13 Como dito anteriormente, os conceitos e fatos não seguem aqui uma ordem cronológica. Nossa
escolha foi montar o patchwork de trapos encontrados da maneira que nos pareceu mais compreensível para o leitor.
33
maquinário para produzir uma quantidade exorbitante de peças em tempo recorde.
Como produzir roupas bem acabadas, com qualidade e desenvolvidas com delicadeza
se o sistema da moda impõe essa velocidade de produção extravagante? A velocidade
e volume de peças lançadas no mercado se somam a efemeridade do uso das roupas e,
em Margiela, estes três fatores são arguidos principalmente através de uma linha de
produtos de sua marca, a linha artesanal chamada oficialmente de linha ‘0’. Nesta linha,
o estilista e sua equipe usam roupas, acessórios e diversos objetos de “segunda mão”,
desenvolvidos a princípio para funções diversas, para serem transformados
manualmente em peças de vestir. Uma das características principais dessa proposta é
que cada peça seja feita completamente à mão.
Fig. 1, 2 e 3: peças da l inha ‘0’, das coleções Primavera ‐Verão 2007, Outono‐Inverno 2005 e Primavera‐Verão 2008, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela .tumblr.com/col lections#/en_US/10_archives/01_coll_‐artisanal ‐/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013.
Por conta disso, o tempo se torna um elemento importante para a valorização
das roupas e, nas etiquetas desta linha, a Maison Martin Margiela coloca as horas de
trabalho para a concepção da peça como informação tão importante quanto o tamanho
ou a composição do produto (RABELLO, 2011). Ao usar materiais simples, de baixo valor
de mercado, o estilista desconstrói alguns padrões da indústria da moda, transformando
matérias‐primas ordinárias na confecção de produtos luxuosos. Sua crítica vai em
direção “ao princípio de descarte e a efemeridade dos itens produzidos em massa pela
cadeia de moda e à submissão do público às tendências estilísticas do vestuário”
34
(RABELLO, 2011, p.122). Seria então, segundo Margiela (2009, p.360.1‐360.b In
RABELLO, 2011, p.122), esta submissão dos consumidores que distorceria a percepção
de valores das roupas e acessórios no sistema da moda. Uma hegemonia de valores,
construída subjetivamente pela própria cadeia produtiva da moda e sua necessidade de
produção em larga escala.
Fig. 4, 5 e 6: peças da l inha ‘0’, das coleções Outono‐Inverno 2008, Primavera ‐Verão 2007, e Outono‐Inverno 2006, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela .tumblr.com/col lections#/en_US/10_archives/01_coll_‐artisanal ‐/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013.
É refletindo sobre o processo criativo de Margiela que nos sentimos provocados
a pensar a velocidade produtiva e a efemeridade do sistema da moda, fatores que
começam a parecer bastante importantes no processo de descarte de qualquer objeto
no espaço urbano. Temporalidade, descarte, autoria, desvio, transformação, modos de
usar e modos de produzir. O encontro com a roupa de Margiela traz inúmeras questões
que aparecerão em diversos contextos durante nossa trajetória, tais questões
colaboram para que o resto comece a se configurar diante de nossos olhos enquanto
estado de matéria que tem a capacidade de subverter e burlar o sistema através da
35
transformação consentida por mãos como as dos profissionais da Maison Martin
Margiela.
Desalinhavo#2
O filme “Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise”
(2002), que em português é traduzido para “Balzac
e a Costureirinha Chinesa”, de Dai Sijie, se passa
na China dos anos 1960, sob a Revolução Cultural
de Mao TseTung, quando as universidades foram
fechadas e muitos livros proibidos. Dois jovens
mandados para o campo a fim de serem reeducados
pelos camponeses encontram uma costureirinha e
uma maleta cheia de livros proibidos e juntos
descobrem uma realidade desconhecida além das
fronteiras da China. Através de escritores como
Balzac, Dostoievsky, Dumas e outros autores
estrangeiros, a costureirinha conhece um mundo
para além de sua aldeia apresentado pelos dois
jovens. As influências de suas leituras acabam
sendo vistas claramente nas roupas que ela e seu
avô, o alfaiate, costuram para as moças da aldeia.
No sentido contrário, os dois jovens que tinham a
intenção de abrir os horizontes para os moradores
do campo, acabam por conhecer e entender outros
valores, diferentes dos que trouxeram da cidade.
Fig. 7: imagem retirada de frame do filme Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise, de Dai Sijie. Para seguir esta pista vá para a página 63 desta
dissertação.
36
quando moda e cidade se encontram
Esta condição de matéria (o resto) é resultado de uma temporalidade cada vez
mais efêmera, do desejo pelo novo, pela renovação, o consumo e o desprendimento
material (LIPOVETSKY, 2009). Foi a partir da Revolução Industrial que o acelerar da
produção fez mudar a relação das pessoas com os objetos e espaços; a facilidade, os
preços, as novidades, tudo passou a favorecer o crescimento do consumo de roupas, de
objetos decorativos, de utensílios para casa, de carros, espaços, tecnologias, serviços e
ideias. A facilidade crescente de comunicação e transporte fez promover ainda mais essa
temporalidade apressada e “a sedução e o efêmero tornaram‐se, em menos de meio
século, os princípios organizadores da vida coletiva moderna” (LIPOVETSKY, 2009, p.13).
Esse sistema produtivo insano e polarizado em poucos pontos do globo, ganha potência
quando se trata especialmente de um objeto: a roupa14. Afinal, “o que poderia ser mais
efêmero e mutante que a moda?” (JACQUES, 2012, p.132). Na moda, como por nós
descoberto anteriormente através da Maison Martin Margiela, essa lógica é bastante
importante e aparente. É na cidade e sobre os corpos que as vestimentas têm seu ponto
auge, o qual acaba bastante rápido. As roupas, espaços vestíveis, cambiáveis e móveis,
que podem ser intervalo entre corpo e ambiente estão talvez entre os objetos mais
efêmeros15 desta cidade contemporânea que “ordena‐se sob a lei da renovação
imperativa, do desuso orquestrado, da imagem, da solicitação espetacular, da
diferenciação marginal” (LIPOVETSKY, 2009, p. 182).
14 Entre 1998 e 2005, a China investiu 800 bilhões de dólares em estruturas produtivas (JABBOUR,
2006), desde então a fabricação de diversos produtos, inclusive roupas, acabou sendo transferida e polarizada para este país, bem como para a Índia e a Tailândia. “A China já responde por 60% das confecções e 35% dos produtos têxteis importados vendidos no Brasil”. (MAWAKDIYE, 2010). De acordo com estimativa da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT), o custo da mão de obra brasileira na indústria têxtil é 367% superior ao da chinesa e nossos direitos trabalhistas bem mais rígidos quanto ao tempo de trabalho e volume de produção, o que faz com que o país não seja capaz de competir financeiramente, temporalmente e em volume com países como a China (MAWAKDIYE, 2010).
15 Uma ressalva deve ser feita neste ponto, onde incluímos na “lista da efemeridade”, em primeiro lugar, os gadgets. Uma palavra inglesa que significa dispositivo, aparelho, engenhoca, é o termo usado para definir aparelhos eletrônicos portáteis, como celulares, pagers, tablets e smartphones. Para Marcela Antelo, os gadgets são “produtos do casamento da ciência e do capital” e “marcam com inutil idade o excesso da produção capitalista”. São objetos extremamente desejados, mas descartados frente à sua primeira atualização tecnológica. Para se aprofundar no tema ver: ANTELO, Marcela. Os Gadgets. Rev. Estud. Lacan, 2008, vol.1, n. 1, p.1‐16. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rel/v1n1/v1n1a14.pdf
37
A hegemonia de valores que identificamos na moda se repete e amplifica quando
falamos de cidade. Sob esses valores e poderes hegemônicos, a cidade contemporânea
é entendida como este local de caráter descartável onde, “por natureza, o novo é
superior ao antigo” (LIPOVETSKY, 2009, p.185). A produção atual permite ver cada vez
com mais clareza o volume exagerado não só de objetos, mas de edifícios, espaços e até
ideias lançadas e descartadas a todo o momento. As diversas mudanças produtivas que
vem ocorrendo desde a Revolução Industrial e principalmente o caráter não controlável
deste processo, interferem intensamente no uso e na produção do espaço urbano.
Neste sentido, a partir do acontecimento do processo de urbanização dessa cidade
desordenada que estava a se formar, novos limites são determinados e os excessos
produtivos acabam por sobrar por suas beiradas. Eletrodomésticos, comida, edifícios,
espaços, ruínas, móveis, bairros, pessoas e roupas. Tudo que não cabe dentro dos limites
urbanos, sobra. Escolhemos seguir e refletir sobre o que resta à beira da cidade, o que
sobra e ainda assim sobrevive, porque acreditamos que está nos restos, no que é quase
invisível, uma resistência potente à essa hegemonia de valores.
Está dentro dessa lógica hegemônica o desejo pelo novo, pela novidade e,
portanto, o descarte do que já parece ultrapassado. A lógica econômica atual deixou de
lado o ideal de permanência e durabilidade, sendo a produção e o consumo dominados
pelo efêmero (LIPOVETSKY, 2009). A necessidade de se individualizar dos sujeitos
encontra no crescente aumento de modelos das mercadorias esta possibilidade, mesmo
que os produtos sejam fabricados em série e em monstruosa quantidade. A clara
separação do trabalhador, tanto do produto resultante de seu próprio trabalho, quanto
do processo de produção de mercadorias como um todo, vem promovendo mais
rapidamente a cultura do efêmero, pois sem o conhecimento dos processos de
fabricação dos objetos, estes acabam se tornando alienados e sem valor. A roupa, este
artefato que se encontra entre a necessidade e o desejo dos indivíduos, acaba se
tornando só mais um produto para o descarte. Para nós, que caminhamos na tentativa
de entender e seguir essa lógica do que já passou do prazo e é deixado de lado, o lugar
do resto vai parecendo suspeito: ele reside nas beiradas?
38
A beirada16
Estar à beira, à margem é estar fora? A fronteira é entendida aqui enquanto
espaço poroso, por onde se pode entrar e sair, onde se pode estar, viver, sobreviver. É
ainda um espaço móvel, que transita e se modifica. Seguimos vestígios que nos levam a
ultrapassar fronteiras, caminhar por elas, sair e entrar. A beirada seria então a fronteira
enquanto emaranhado de relações porosas e permeáveis, mesmo que não lineares ou
contínuas. A fronteira permite passagem, deixa entrar e não se fixa (HISSA, 2006). Na
cidade a fronteira pode se tornar invisível, já que ela margeia geralmente ilhas
“luminosas” 17, bairros espetaculares e sobrevive nessa condição de invisibilidade. O
resto, estado de matéria que está entre o novo e o lixo18 é beiradeiro e invisível. É,
portanto, fronteiriço. Enquanto beirada e fronteira, o lugar do resto é sem limites
lineares, poroso, permite o entrar e sair, o transitar pelos espaços outros e ainda assim
é capaz de delimitar lugares. O resto seria então aquilo que não coube dentro dos limites
da cidade e foi sobreviver na fronteira, na beirada?
o resto
Este caráter efêmero identificado na cidade, necessário para a existência de
nosso objeto, o resto, é uma propriedade importante para a configuração do macro
sistema que incorpora a cidade contemporânea. A renovação constante de paradigmas
sociais e estéticos faz com que os antigos padrões desapareçam neste espaço, a partir
16 No ano de 2012, nos juntamos a alguns amigos e seguimos por uma deriva pelo sertão baiano.
Essa ideia de deriva partiu dos estudos de duas mestrandas do PPGAU‐UFBA, Jurema Moreira e Priscila Risi. A viagem resultou em uma grande aventura pelas cidades inundadas pela represa de Sobradinho / BA e em inúmeros encontros e conversas entre amigos pesquisadores. Jurema nos apresentou certa vez o conceito de territórios de beirada e seus “beradeiros”, que queria dizer dos moradores da beirada do lago de Sobradinho. Nos util izando de nosso método antropofágico, digerimos os termos trazidos por Jurema e os juntamos a nossas novas experiências.
17 Conforme termo de Milton Santos: “chamaremos de espaços luminosos aqueles que mais acumulam densidades técnicas e informacionais, ficando assim mais aptos a atrair atividades com maior conteúdo em capital, tecnologia e organização. Por oposição, os subespaços onde tais características estão ausentes seriam os espaços opacos” (SANTOS; SILVEIRA, 2002, p.264).
18 Gostaríamos de deixar claro que não consideramos resto e l ixo a mesma categoria de matéria. Entendemos o resto enquanto objeto que ainda pode ter uso, mas foi descartado pelos fatores de efemeridade dos quais já falamos no texto. O l ixo, para nosso entendimento, é uma categoria de matéria que já não tem nenhuma possibil idade de retorno socialmente falando, chegou ao seu fim extremo (aqui entram possibil idades de fim como incineração e aterro sanitário, que, a depender da maneira que são feitas, ainda podem permitir o retorno da matéria de alguma forma – energia, adubo, etc.).
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de uma suposta necessidade e do desejo das pessoas pelo novo; o espaço, as vontades,
as crenças, tudo pode ser renovado. O resto é o resultado material e concreto deste
processo, mas mesmo sendo palpável é de alguma forma invisível. E é este “estado de
eminente desaparecimento” do antigo que dá ao cotidiano sua “potência de
estranhamento” (JACQUES, 2012, p.131). Mas tudo que desaparece deve residir em
algum lugar e neste lugar fica até que possa ser percebido e explorado seu potencial
desviante dentro desta cadeia de processos molares19 (GUATTARI, 1985). Será este lugar
uma possível cidade resto onde os valores hegemônicos podem ser, de certa
forma, transgredidos? E essa cidade resto existe enquanto beirada do sistema? É
porosa, tortuosa e não se fixa?
Desalinhavo#3
Fig. 8: Ticket de entrada para o Ahsan Manzil Museum, em Bangladesh. O ticket foi encontrado no bolso de um casaco usado do Parque Novo Mundo. Siga esta pista indo para a página 70.
De certa forma, o que nos intriga é o fato de ser o resto quase sempre um corpo
escondido, na tentativa de ser invisível, perambulando pelas fronteiras da cidade,
fazendo da invisibilidade uma tática de sobrevivência, sendo a própria fronteira.
Se o que é promovido pelo sistema é o gosto pelo novo, o limpo, o esteticamente
padronizado, o resto seria matéria desgostosa de se ver, tortuosa, deformada e suja, por
isso, para que sobreviva, deve se esconder. Resto pode então falar de diversos tipos de
19 Processos molares e moleculares são termos tratados por Guattari em seu livro Revolução
Molecular (1985) para falar de processos macro e micro políticos, processos grandiosos e pequeninos, que não são dicotômicos ou binários, mas existem em função um do outro; permeando, atravessando e penetrando um ao outro.
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matéria: eletrodomésticos, gadgets, roupas, embalagens, alimentos e espaços urbanos.
Tudo que parece não ter mais serventia funcional ou social, ou o que simplesmente não
é mais novo, e é descartado. Mas é preciso então frisar que o descarte não é a
transformação da matéria diretamente em lixo. Muitas mãos passam pelos objetos
fazendo a triagem do que ainda pode ser útil e do que parece não ter serventia antes
que possa chegar efetivamente ao fim. Enquanto os artefatos não são escolhidos para
serem transformados ou efetivamente descartados, são o que chamamos aqui de resto.
O resto se configura então enquanto uma matéria em espera?
A espera parece definir um tempo lento e de ócio, um tempo de desperdício,
onde o olhar e o gesto do outro é necessário para que ela acabe ou se modifique. Ao
perceber o resto enquanto matéria que sobra e espera, que sobrevive à beira do sistema
e da cidade, questionamos: não seria então o morador de rua um “corpo‐resto”? Das
primeiras indagações desta pesquisa, interpeladas pelos desvios que a cidade impôs, ele
volta à nossa história, esse corpo moldado pelas calçadas das cidades. Volta como o
primeiro personagem dessa trama de restos, o .
Cabe ao termo “resto” englobar, nesta pesquisa, a situação do homem enquanto
morador de rua. Um corpo que vagueia pela cidade, ocupando fronteiras, tentando
sobreviver em sua camuflagem diária, na lentidão da busca pela sobrevivência e
no ócio cotidiano. Um corpo que resta do sistema, que não segue padrões, e que,
através de seus caminhos tortuosos e desregrados se insere na cidade formal e
urbanizada. Mas que fio puxamos para pensar o corpo do enquanto corpo‐
resto? O multifacetado Flávio de Carvalho, engenheiro, artista e provocador, traz à tona
em sua coluna “Casa, homem, paisagem”, no jornal Diário de São Paulo, em um conjunto
de textos denominados “A moda e o novo homem”, um corpo‐resto, vestido de resto
que ele chama de homem em farrapos. Ele enxerga este corpo que está à margem
e vê nele um sujeito capaz de imaginar e criar para além do que seria a subjetividade
capitalística trazida por Guattari (2005)20 devido a sua condição de “pária social” e sua
20 Para Félix Guattari, o capitalismo, apoiado por uma série de equipamentos coletivos ‐ a escola, a igreja, a família, a mídia, os partidos políticos, as empresas, sindicatos, revistas, programas de televisão, centros de saúde, etc – produz uma certa subjetividade que é hegemônica em nossa sociedade. Ou seja, essa
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necessidade de inventar outros modos de sobrevivência na cidade (JACQUES,
2012).
Flávio de Carvalho, ao falar do homem em farrapos, fala do morador de rua,
dos loucos, deste “Outro urbano radical” (JACQUES, 2012, p. 135) onde reside o
extremo, a necessidade de inventar por sobrevivência; o homem em farrapos,
enquanto morador de rua, ou inventa uma maneira de estar no espaço urbano ou é
engolido por ele.
“De tempos imemoráveis o homem em farrapos é um desclassificado, um posto de lado pela sociedade. Ele é o totalmente sem classe e sem hierarquia por ser o último, é o homem para o qual todas as portas se fecham. É ele um ser submetido permanentemente à dor, à miséria e ao desprezo. O homem em farrapos é o contrário do homem investido de autoridade, pela disciplina. A sua situação de último dos últimos o concede uma forma de libertação da disciplina hierárquica e por ser o último, está em estado semelhante a um estado anti‐hierárquico de começo” (CARVALHO, 2010, p.85, grifo nosso).
É este corpo em farrapos que lida diariamente com os restos da cidade, sobrevive
entre eles e tira deles seu alimento, sustento e, portanto, sobrevivência. Uma
pergunta nos intriga: será somente o o que trata dos restos na cidade
diariamente?
o corpo e o resto ou o “corpo‐resto”
Para Flávio de Carvalho,
“é pelo movimento que se processam as alterações nas formas fundamentais da moda. As formas fundamentais seriam forças latentes e adormecidas dentro da eternidade que conhecemos. O movimento desperta o homem do seu sono filogenérico, coloca‐o frente às exigências conscientes; é só pelo movimento que ele percebe e compreende a necessidade de mudar” (apud JACQUES, 2012, p. 136).
produção de subjetividade capitalística, pretende o assujeitamento dos desejos dos sujeitos aos valores intrínsecos ao capitalismo, padronizando esses desejos.
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Movimento tal que pode ser a errância do ou o movimento insistente do
corpo de um catador ou até de uma costureira para permanecer. Enquanto o morador
de rua erra para encontrar sobrevivência, os outros trabalhadores insistem pelo
mesmo objetivo. Entendemos então que devemos aceitar o desafio que a pesquisa
coloca, o de encontrar no corpo do trabalhador informal, do lumpemproletário21, o que
seleciona os farrapos e vive deles, essa corpografia dos restos, do corpo que se
implica na seleção ou na renovação principalmente de tecidos e vestimentas através da
catação ou da costura. Para Jacques (2007, p.95),
“a cidade é lida pelo corpo e o corpo descreve o que podemos passar
a chamar de corpografia urbana. A corpografia seria um tipo de
cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória inscrita no
corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia
urbana, da própria cidade vivida, no corpo de quem a experimenta”.
(Grifos nossos)
É através do trabalho não normatizado com os restos que o corpo se insere nessa
cadeia maior e se coloca no desvio, na produção de outro sentido para estar na cidade,
de uma ressignificação do corpo, do objeto e do lugar.
Desalinhavo#4
Agnès Varda: “Les Glaneurs et la Glaneuse” (2000),
que em português se traduz como “Os Catadores e
Eu”; um documentário onde a diretora encontra
vários catadores e catadoras que por necessidade,
acaso ou escolha, vivem de catar e recuperar os
restos de outras pessoas. Na verdade, a palavra
glaneur significa respigar, que é um ato muito
comum na França, o de recolher as espigas que
21 O termo lumpemproletariado foi trazido por Karl Marx para definir pejorativamente uma
categoria de trabalhadores que estaria abaixo dos operários assalariados, para ele esses trabalhadores eram danosos às intenções socialistas, já que ao invés de lutarem pela causa encontravam desvios para conseguir sobreviver na cidade. Este mesmo termo relido por Walter Benjamin é tomado enquanto desvio, potência positiva diante da monotonia do trabalho produtivo e burocrático. Para aprofundamento no termo ler BENJAMIN, W. “Paris do Segundo Império. Obras Escolhidas III”. São Paulo: Brasil iense, 1989, p.9‐101 e RAMIREZ, P. N. “A revolução vagabunda: Baudelaire, Walter Benjamin e o fim da história”. Revista eletrônica Ponto e Vírgula, São Paulo: PPGCS PUC‐SP, 2010, n.8, disponível em: http://www.pucsp.br/ponto‐e‐virgula/n8/artigos/htm/pv8‐15‐pauloramirez.htm
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sobram após a colheita no campo. Ou seja, é o ato
de recolher as sobras, os restos. O próprio filme
parece uma compilação de diversos personagens e
situações encontradas pela diretora que trabalha
a partir de associações e deslocamentos onde uma
descoberta leva a outra e, mesmo que distantes,
quando colocadas lado a lado, dão sentido a um
discurso construído por ela.
Fig. 9: imagem retirada de frame do documentário Les Glaneurs et la Glaneuse, de Agnès Varda. Para encontrar vínculos com esta pista vá para a
página 63.
O resto é ressignificado através desses sujeitos que selecionam, usam o corpo
como ferramenta de trabalho, quase numa coreografia de catar e restaurar. Assim como
uma costureira transforma a roupa que seria jogada fora para que seja usada
novamente, sobrevivendo deste trabalho diariamente, o vê no que sobra às
margens da cidade, nos farrapos, uma possibilidade de transformação e
sobrevivência. A imagem do homem em farrapos vai então se confundindo
com a do trapeiro, de Baudelaire, trazida por Walter Benjamin. Figura que mesmo
mergulhada na fugacidade do espaço urbano consegue ver nos trapos, nas sobras, nos
restos da cidade, algo de valor.
“Tudo que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as
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coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis” (BAUDELAIRE, apud BENJAMIN, 1989, p. 78).
Este corpo configurado a partir do gesto diário de quem “compila os anais da
devassidão” (BENJAMIN, 1989, p.78), num ato quase heróico dentro da cidade grande
(PIGNATON, 2011), reúne, seleciona e classifica tudo o que cata. A figura do trapeiro,
do e até mesmo da costureira nos remetem à imagem do trabalhador que se
move pelo objeto que separa, cata ou costura. Em movimentos repetitivos, o atrofiar
dos músculos e dos tendões modifica a postura do corpo do sujeito. O corpo se molda
através do trabalho. O separar e tratar dos restos imprime uma corpografia
particular em cada um, a corpografia gerada a partir dos restos urbanos. Mas
também se modifica no contato com a cidade. O corpo do andarilho, do , do
homem em farrapos deixa clara a transformação que ele faz na cidade e que a
cidade faz nele. O corpo que afeta o espaço, geograficamente ou socialmente, com suas
vestes improvisadas, suas amarrações e trocas. Seus usos fora de padrão. É também a
transformação do corpo pela cidade. A cor da pele que vai se acinzentando pelo ar
poluído, a poeira das calçadas, a estrutura do corpo que vai perdendo gordura,
enrijecendo os músculos, mudando a postura. Os hábitos que se tornam públicos: o
sexo, o banheiro, o sono. As táticas de sobrevivência – caixas de papelão, sacos de
lixo, jornais 22. O corpo transforma a matéria, mas a matéria também transforma o
corpo. E mais, essa transformação pode ser percebida também socialmente: “(...) as
coisas fazem as pessoas tanto quanto as pessoas fazem as coisas” (MILLER, 2013, p.200).
E é socialmente que Flávio de Carvalho coloca a transformação do homem em
farrapos através dos objetos. Para ele, é
“nos estados agudos do individuo que alcança o limiar de um mundo próprio, [que] aparecem as sobrevivências compensadoras graciosamente apoiadas no ornamento e no desejo de criação.
22 Para se aprofundar sobre os corpos que restam na cidade, em um texto cheio de analogias
muito interessantes do corpo modificado na rua com o corpo modificado a partir de intervenções corporais como piercings, tatuagens e todo tipo de body modification; um “compilar” de histórias de corpos na rua, com reflexões profundas sobre a materialidade e a sobrevivência na cidade, ler: BORGES, Fabiane Moraes [dissertação]. Domínios do Demasiado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.
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Encontramos pateticamente, nas ruas de toda parte, exemplares de homens e mulheres que perderam o controle dos seus desejos e das suas angustias e que se apresentam vagando pela rua, discursando histericamente para um publico, às vezes imaginário. Exibem profuso aparato e ornamento, cobrem‐se com flores e fitas, e cores e panos diversos que se desdobram, agradavelmente. Marginais descontrolados que falam a um mundo próprio, o mundo da loucura e do sonho. São estes os detentores da grande imaginação e da grande moda. São os supremos criadores da fantasia humana...e tão desprezados pelo povo que passa...” (CARVALHO, 2010, p.16, grifo nosso)
O desprezo de que fala Flávio de Carvalho nos remete novamente a invisibilidade
desse estado resto, invisibilidade que, veremos ao longo de nosso trajeto, permite a
sobrevivência dos corpos e matérias que se encontram enquanto sobra. Se
pudéssemos classificar o resto em uma linha categórica de diferentes nuances, o
estaria em um ponto extremo dessa categorização, sendo ele o que lida com as sobras
no intuito de sobreviver diretamente delas na cidade. Isso quer dizer que depois dele,
após o uso e reinvento da matéria o resto encontra um fim, vira lixo. Veremos adiante
(principalmente no desenrolar do fazer campo), que os outros personagens dessa
trama, que se aproximam do trapeiro ou da costureira, trabalham com o resto
enquanto mercadoria, moeda de troca. Na maioria das vezes revalidam os objetos no
intuito de tirar dele seu sustento23. O , ao contrário, vive dos trapos, é um homem
em farrapos, come e veste restos, sendo ele por isso possivelmente categorizado
socialmente enquanto o próprio resto. Para além das questões sociais imbricadas nessa
condição de sobrevivência através do resto, o que nos encanta neste pequeno
mundo encontrado até agora é a possibilidade de ter essa matéria transformada e
trazida de volta, neste jogo entre macro e micropolítica. O resto articulado aos corpos e
ao que é novo, nessa zona fronteiriça porosa, onde nada é fixo. Outras perguntas surgem
frente aos restos: se eles estão à espera, estão à espera do que ou de quem? Quem os
agencia? Onde estão? Porque são descartados? Porque perdem ou ganham valor?
23 Veremos adiante, que em algumas situações nossos outros personagens também vestem os restos, mas fica clara a diferença de sua relação com eles. Enquanto o morador de rua trata esta matéria como sua, os outros personagens a tratam como mercadoria.
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o espaço (da) roupa
Esta hipotética cidade resto, imperada pela espera e o tempo lento, é aqui
buscada através das roupas usadas, estas que aguardam para serem vendidas,
utilizadas, catadas, separadas ou reformadas. Estes lugares resto poderiam ser
categorizados enquanto espaços opacos (SANTOS, 1994), “espaços do aproximativo, da
criatividade, da lentidão, abertos, movediços e compartilhados, as zonas opacas dos
habitantes ordinários, os anônimos da cidade, considerados, pela lógica do espetáculo,
‘perdedores’” (OLIVIERI, 2011). Habitantes estes que podem ser “homens lentos”
(SANTOS, 1994), esses que vivem uma temporalidade substancialmente diferente da
imposta pelo poder hegemônico, diferente do pensamento que domina a lógica das
grandes cidades: a da velocidade, da higiene, das formas e caminhos determinados.
Por isso, quando assumimos a postura de digerir o campo antropofagicamente,
em um tempo não maquinal ou virtual, permitimos que nosso olhar fosse atravessado
pela cidade e seus restos. Restos estes que, como nosso olhar, tentam sobreviver na
subversão do hegemônico, mesmo impregnados por ele e somente existindo dentro e
por causa dele.
Quando nosso olhar foi atravessado pela cidade e seus restos, caminhávamos
por um bairro chamado Baixa dos Sapateiros, que fica em Salvador, na Bahia. No
momento em que viu uma loja que não tinha placa, apenas uma faixa com os dizeres:
“QUASE TODA A LOJA de 1 à 5 Reais”, tivemos estalada nossa curiosidade, seguimos o
que nos pareceu uma primeira pista e entramos. Dentro da loja vimos sacos cheios de
roupas com inscrições feitas à caneta piloto. Era a segunda pista, que levou nossa
memória a viajar alguns quilômetros e anos, até chegar ao Parque Novo Mundo, em
meados de 2009.
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Fig. 10: Loja da Baixa dos Sapateiros , em Sa lvador, onde a primeira pista da pesquisa foi encontrada. Foto de arquivo pessoal , 2012.
Este bairro, que beira a Rodovia Presidente Dutra e está localizado no distrito de
Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, se faz espaço de trabalho para algumas pessoas
que sobrevivem fazendo a “triagem” de roupas usadas. Estas roupas que se empilham
em montes de 2 a 3 metros de altura chegam ao bairro quase diariamente, vindas de
diversas instituições de caridade que recebem mais doações do que podem cuidar e
colocar em seus bazares ou distribuir para os que estão sob seus cuidados. Os
separadores das roupas as selecionam por tipo e estado de conservação, as colocam em
fardos que serão levados por caminhões para a distribuição em pequenas lojas de itens
usados espalhadas pelo país e em fazendas, nas quais as roupas são utilizadas pelos
trabalhadores rurais para proteção do próprio corpo e o não desgaste de suas roupas
pessoais24. Os sacos vistos por nós na loja de roupas usadas da Baixa dos Sapateiros
chegaram até ali de caminhão, vindos de São Paulo, embalados pelas mãos dos
separadores do Parque Novo Mundo25.
Estes lugares, de certa forma beiradiços, possibilitam o trafegar da roupa resto
pela cidade. Enquanto responsáveis pelo fim da espera do resto, os dois bairros e seus
24 Baseado em conversa com um separador, em uma ida ao Parque Novo Mundo, em 2011. 25 Informação obtida em conversa com a dona de uma loja de roupas usadas na Baixa dos
Sapateiros, em 2012.
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trabalhadores são a ligação dessa matéria que sobra com a cidade formal, regida pelo
novo e pelos padrões de poder hegemônico discutidos aqui anteriormente. Estes
lugares, associados a outros, onde a roupa também está, como shoppings e lojas de
departamentos, são lugares que chamamos aqui de espaços da roupa.
A Baixa dos Sapateiros, bairro que abriga muitos desses espaços, é
basicamente formada pela longa Avenida J. J. Seabra, rua esta que está localizada ao
lado do Centro Histórico da cidade e é um local de grande importância histórica para
Salvador. Já no século XVI, esta área, localizada em ponto estratégico da cidade, teve
importante função defensiva, já que sua geografia configurava‐se numa vala
acompanhada por um rio que volteava por trás a colina do alto da Bahia de Todos os
Santos. Este rio era chamado rio das Tripas e servia principalmente como esgoto e local
de descarte dos restos gerados por um matadouro que se encontrava no bairro de São
Bento, próximo ao local onde hoje se encontrar o terminal da Barroquinha. A rua, que
beirava o rio foi chamada primeiramente de Rua das Hortas, já que era nela que grande
parte da cidade se abastecia de frutas e legumes. Mas foi somente a partir da drenagem
do rio, feita na primeira metade do século XIX, que a rua pôde ser realmente habitada.
Passou a ser então chamada Rua da Vala e pode ser considerada a primeira das ainda
futuras avenidas de vale da cidade (NASCIMENTO, 2007). As casas construídas nesse
momento eram “casas modestas e pobres, térreas geralmente, raramente com um
andar, moradia de artesãos, principalmente sapateiros, que terminaram por transferir à
rua o nome que ela possui atualmente (…)” (SANTOS, 1959, p. 171). O nome popular
desta área associa a geografia e a profissão mais exercida por ali durante muitos anos:
Baixa dos Sapateiros. Oficialmente, depois das mudanças urbanas propostas por José
Joaquim Seabra para a cidade de Salvador, a rua passa a ter seu nome. O homem que
dá nome a rua foi governador do estado da Bahia por duas vezes, de 1912 a 1916 e de
1920 a 1924, mas foi em sua primeira gestão que desenvolveu os projetos que marcaram
seu governo. Influenciado pela urbanização do Rio de Janeiro de Pereira Passos, o então
governador fez importantes intervenções urbanas na capital. Na Cidade Baixa, o projeto
constituía na construção de uma nova urbanização e na Cidade Alta na inauguração de
“largas avenidas, numa tentativa de romper com seu passado” (PINHEIRO, 2011, p.213).
49
É na Avenida J. J. Seabra, que se tornou importante centro comercial para a
cidade, que encontramos então os primeiros espaços da roupa desta investigação.
Tendo sido local de grande movimento no passado, foi através dos processos de
revitalização do seu bairro vizinho26, da instalação do terminal de ônibus da Lapa, que
desviou o trajeto de muita gente, da abertura de Shoppings como o Piedade aos
arredores da região, nos anos 1980, que o bairro passou a ser uma localidade que
sobrevive do que remanesce dessa revitalização e dos poucos transeuntes que ainda se
aventuram pelas ruas vazias da Baixa. A queda da frequência de transeuntes fica clara
com o passar dos anos27.
Desde sempre enquanto beirada, primeiro de um rio que se fazia fronteira da
cidade antiga, depois de um Centro Histórico que, ao mesmo tempo em que ofusca sua
existência, permite que muitos processos aconteçam livremente por suas ruas, não seria
a Baixa dos Sapateiros um bairro resto? Suas lojas, que vendem desde artigos
importados da China a artigos para festas, incluem araras cheias de roupas novas e
iguais, vendidas por preços baixos; prateleiras cheias de bolsas e mochilas; calçados de
plástico, borracha ou lona; camisetas esportivas penduradas nos toldos; manequins
vestidos com roupas justas ocupando as calçadas; nichos de madeira cheios de roupas
usadas vendidas a 1 ou 2 reais; e muitas outras coisas que vão configurando este
espaço onde a roupa está à espera. O espaço da roupa se estabelece enquanto
lugar que abriga a roupa.
Espaço que também é encontrado, de outra forma, no Parque Novo Mundo.
Este trecho de bairro, que está entre dois subdistritos que oficialmente se chamam Vila
Maria Baixa e Jardim Andaraí, ficou conhecido por esse nome e é assim chamado pelos
moradores há muito tempo28. O bairro começou a se formar na década de 70, quando
ainda era um lugar cheio de chácaras, pequenas lagoas e terrenos alagadiços. À beira
das lagoas aconteceram as primeiras ocupações informais, de barracos feitos de
26 Reconhecido como patrimônio histórico pela UNESCO em 1985, o Centro Histórico de Salvador,
mais conhecido como Pelourinho, começou a receber recursos financeiros para revitalização, reformas e investimento em turismo a partir da década de 1990, o que acarretou em inúmeras mudanças que transformaram muitas das casas coloniais do bairro em empreendimentos de cultura e lazer.
27 Baseado em conversa com a uma trabalhadora do local, em 2012. 28 Oficialmente, segundo mapeamento do plano diretor da cidade de São Paulo, o bairro com
nome de Parque Novo Mundo fica a algumas quadras das ruas aqui util izadas enquanto lugar de fazer campo.
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madeira, papelão e todo material estruturante que pudesse ser encontrado na rua. Ali,
em 1972, podia‐se comprar um barraco construído em palafita por mais ou menos 4 mil
reais29. Mas foi no fim da década de 80, quando o bairro já estava densamente ocupado,
que o governo de Luiza Erundina urbanizou algumas ruas, soterrou áreas alagadiças e
deu estruturas de alvenaria aos barracos30. O bairro, que beira a Rodovia Presidente
Dutra, está localizado no distrito de Vila Maria, Zona Norte de São Paulo. Os espaços
da roupa encontrados ali estão principalmente em um trecho de bairro delimitado
pela Rua Amadeu Conrado Marti e a Avenida Berimbau. São pequenas garagens cheias
de roupas usadas, amontoadas, que estão ali para serem separadas por inúmeros
trabalhadores. Quando se está passando pelas vias próximas ao bairro é muito difícil
conseguir vislumbrá‐lo, ele está escondido entre fronteiras, invisível – tática de
sobrevivência. O espaço da roupa está protegido.
Se configuram então, estes espaços, enquanto lugar de espera, de comércio,
de transformação do resto em mercadoria. É o entre, uma fronteira porosa e sem limites
claros onde se encontra a possibilidade de que agenciamentos micropolíticos
aconteçam a partir do encontro dos corpos – dos personagens a serem apresentados a
seguir – com essas roupas. A vestimenta descartada, que volta à tona, está fora de
moda, já despadronizada e por isso pode ser desviante, um artifício de
desterritorialização. É um objeto que permite ao sujeito, nos conceitos de Guattari
(1986, p.45) o “atrevimento de se singularizar” (apud PRECIOSA, 2012). É quando a
roupa reencontra o corpo que entendemos sua nova função, a de espaço. Temos
então o que chamamos aqui de espaçoroupa.
29 Informação obtida em conversa com trabalhador do bairro, em 2013. 30 Idem.
51
Fig. 11: Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores . Foto reti rada do Google Maps , em setembro de 2012.
Pensando sobre o espaço como uma sobreposição de camadas, platôs
(ROLNIK, 2011) ou até mesmo peles, encontramos o conceito das cinco peles,
sobre o qual trabalhou o artista austríaco Hundertwasser. Para ele cada corpo é cercado
por cinco peles: a epiderme, a roupa, a casa, a identidade social e o meio global –
incluindo aí fatores como ecologia e humanidade.
A primeira pele, a epiderme, é invólucro, camada sensível, viva, constituinte do
corpo, inspira e expira as necessidades mais básicas do ser humano. É a ligação entre o
“Eu” e o mundo (RESTANY, 2003). É a camada que coloca o sujeito em contato com os
espaços que o envolvem. A epiderme tem ligação direta com a segunda pele, a
vestimenta. Para Hundertwasser, o vestuário é um meio de expressar a criatividade e
deve ultrapassar as barreiras da “uniformidade, da simetria e da tirania da moda”
(RESTANY, 2003, p.38). A segunda pele cobre, protege e abriga a primeira e é
diretamente ligada a quarta pele, o meio social. Podemos considerar nesse estudo o
meio social como a cidade por onde o corpo vagueia, onde a roupa é fronteira
52
delimitadora de espaços que ora se expandem, ora contraem, regulando o vínculo entre
o corpo e seu entorno. Cada tecido e forma transmite para o corpo e para o mundo
alguma coisa. A roupa torna‐se um ambiente duplo, que se projeta para dentro e para
fora. Para dentro, é o primeiro e mais próximo contato da epiderme, provocando os
sentidos e, para fora, ilude os olhos do observador, revela ou esconde o corpo, cria
estruturas e sensações visuais (SALTZMAN, 2007).
Fig. 12 ‐ I lustração de Hundertwasser representando as cinco peles . Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser: o Pintor‐Rei das Cinco Peles. Köln: Taschen, 2003, p.15.
Para Jacques, “a diferença entre prédio e vestimenta estaria nos diferentes
níveis da ideia de habitar, e sobretudo do abrigar, em todos os envolvimentos possíveis
da interioridade, da pele às fronteiras” (2008, p.162). A roupa é abrigo, a proteção mais
simples, envolvimento têxtil do corpo. Objeto que se difere do edifício, para além do
“nível da ideia de habitar”, através do tempo: é mais efêmera, se sugere passageira,
cambiante, tem uma temporalidade diferente do “habitar”. E, se a roupa é abrigo, é
também um espaço móvel, movido pelo corpo que cobre. É então afetada e modificada
a cada mudança de entorno e, dependendo do contexto – paisagem, ambiente,
temperatura, luz, cultura, sociedade, tecnologia, recursos e economia ‐ tem a
capacidade de adaptar‐se e desempenhar funções distintas (SALTZMAN, 2007).
Enquanto espaço e objeto, a roupa também se deixa afetar e modificar pelos corpos.
53
Traça caminhos, é levada pelo corpo, mas também o leva. Porque “a roupa é capaz de
carregar o corpo ausente, a memória (...)” (STALYBRASS, 2008, p.26, grifo nosso). “As
roupas recebem a marca humana e (...) duradouras, elas ridicularizam nossa
mortalidade” (STALYBRASS, 2008, p.11), porque continuam, duram mesmo após a
morte do corpo que a carrega. “Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses
corpos sobrevivem” (STALYBRASS, 2008, p.10). E essa sobrevivência é carregada
de marcas e histórias, o espaçoroupa é, portanto, abrigo temporário dos corpos e,
como casas, se desgastam, sujam e fissuram através do tempo e do sujeito que a habita.
No mesmo sentido, são modificadas e transformadas para abrigar o corpo da maneira
que melhor o agrade. As casas são pequenos mundos particulares fixos, as roupas, um
tanto mais efêmeras, são este espaço particular que se carrega diariamente. “As
roupas são, pois, uma forma de memória” (STALYBRASS, 2008, p.33). Um local onde
se sedimentam camadas de acontecimentos.
O espaçoroupa se configura a partir da roupa vestida, da união entre corpo,
vestimenta e cidade, fato que só é possível de acontecer através de mãos como as do
, do trapeiro, do homem em farrapos e dos outros personagens
conceituais ainda a serem descobertos nessa trama (no caso dos restos), que trabalham
em lugares como o Parque Novo Mundo e a Baixa dos Sapateiros, aqui entendidos como
espaços da roupa. Assim, através dos usos e descartes, a trama do resto urbano
vai se complexificando, outros corpos e locais se ligam a ela, numa construção
tentacular, especialmente em se tratando, neste caso, dos restos das roupas. Vamos
descobrindo então, percorrendo esses espaços, que ao fazê‐lo transitamos por uma
“(...) sociedade da roupa, pois a roupa é tanto uma moeda quanto um meio de incorporação. À medida em que muda de mãos, ela prende as pessoas em rede de obrigações. O poder particular da roupa para efetivar essas redes está estreitamente associado a dois aspectos quase contraditórios de sua materialidade: sua capacidade para ser permeada e transformada tanto pelo fabricante quanto por quem a veste; e sua capacidade para durar no tempo”. (STALYBRASS, 2008, p.13)
E é a partir deste entendimento, que nos infiltramos nesta rede de relações,
descobrindo seus personagens conceituais, seus segredos e suas pistas. Vamos à rua.
54
capítulo II
ALINHAVANDO TRAPOS:
QUANDO SE VAI À RUA
“Para conhecer os vaga‐lumes, é preciso observá‐los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê‐los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista: é preciso cerca de cinco mil vaga‐lumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela”.
(DIDI‐HUBERMAN, 2011, p. 52, grifo nosso)
Não seria nas ruas que a cidade acontece efetivamente? No encontro e na troca?
Não seriam as pessoas as responsáveis por “fazer a cidade” a cada passo que dão por
suas vias tortuosas ou planejadas? E nesse sentido, quais seriam as “possibilidades de
experiência da alteridade urbana” (JACQUES, p. 11, 2012)? Como essas possibilidades
de experiência podem se tornar potentes “na construção e na (contra)produção de
subjetividades, de sonhos e de desejos” (JACQUES, p. 11, 2012) na cidade?
Em nosso caminho trapeiro, encontramos diversos sujeitos que retiramos de sua
condição de sujeito para serem aqui personagens conceituais, alguns dos quais já
apareceram anteriormente neste texto, que nos encaminham, através das trocas, da
abertura de seus pequenos mundos aos nossos dentes devoradores, ao encontro de
nossas questões centrais e à possível descoberta de outras formas de estar na cidade e
produzir subjetividades, sonhos e desejos. Antes de serem claramente apresentados tais
personagens conceituais, é preciso fazer algumas observações sobre eles e sobre sua
relação conosco. Primeiro, em nosso trajeto investigatório, uma questão aflora e é
55
reforçada pelas palavras de Gilles Deleuze e Félix Guattari: seria o “outrem (...)
necessariamente segundo em relação a um eu?” (2010, p.23).
O outrem, “sempre percebido como um outro”, se faz condição para que o eu
passe do mundo em que se encontra a um distinto (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.26). É
o outro que se faz condição para a percepção de si e do meio e, consequentemente, é
necessário para a mudança e o movimento destes. Os “outrens” encontrados por nosso
caminho estão aqui colocados enquanto condição de nossa existência (enquanto autor
/ pesquisador) e movimento. Esses personagens podem ser configurados enquanto
“personagem conceitual” e “figura estética” (DELEUZE, G.; GUATTARI,
F., 2010), em um possível “lugar de encontro entre” (MESQUITA, 2008, p.31) os dois
conceitos. Ambos se diferem por ser o primeiro “potência de conceitos” e o segundo
“potência de afectos e perceptos” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.80). Para Deleuze
e Guattari, o personagem conceitual não é histórico, é sim um acontecimento,
existe em trânsito e tem contornos irregulares (MESQUITA, 2008). Ele tem ainda o papel
de “manifestar os territórios, desterritorializações e reterritorializações absolutas do
pensamento” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.84). Enquanto que as figuras
estéticas, “são sensações: perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires”
(DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.209). Devires tais que também se encontram nos
personagens conceituais. No entanto, “o devir sensível é o ato pelo qual algo
ou alguém não para de devir‐outro (continuando a ser o que é), (...) enquanto que o
devir conceitual é o ato pelo qual o acontecimento comum, ele mesmo, esquiva o que
é” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.209). Os personagens desta dissertação ora são
sensações, ora acontecimentos. Ora são personagens conceituais, ora figura
estética. Ora são algo entre os dois conceitos, como se fosse possível que se
produzissem entre eles “não somente alianças, mas bifurcações e substituições”
(DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.81).
56
Os personagens31 encontrados não pretendem aqui ser explicados ou
categorizados. Eles não são metáforas nem a generalização de pessoas reais. Eles
acontecem, portanto, enquanto conceito e sensação. Não falamos então dos sujeitos
em si, mas sim da potência conceitual encontrada neles ou através deles e que nos
aproximou do que é para nós o espaçoroupa.
Apresentamos a seguir os encontros urbanos pelos quais nos deixamos levar, os
sujeitos que vieram a ser personagens e que afetaram nossas reflexões e caminhos
nessa jornada. Através das posturas metodológicas descobertas durante o próprio
trajeto, uma suposta cartografia vai se fazendo e parece não ter fim. É a partir daqui que
nossos caminhos vão para além dos livros e conceitos, é entre ruas e múltiplos encontros
que nos deparamos com nossos aliados e ganhamos nossas valiosas pistas. É através de
nossos cadernos de campo que seguimos com essas reflexões.
vestígios e vínculos
primeiras pistas
Algumas páginas de nosso caderno de campo serão transcritas a seguir a fim de
trazer ao leitor uma proximidade dos acontecimentos da pesquisa. A primeira página
apresentada fala do momento em que o caminho da pesquisa mudou, através de
algumas conexões entre acontecimentos do presente e do passado.
Caminho por um dos quarteirões da Avenida J.J. Seabra, na Baixa dos
Sapateiros, em Salvador, vejo pelo menos três lojas de roupas usadas. A
descoberta dessas lojas resulta na imediata vontade de entrar, tocar as
31 Deve‐se deixar claro que a palavra personagens a partir daqui pode querer dizer de
personagem conceitual e/ou figura estética, já que os dois conceitos se apresentam imbricados nesse texto.
57
roupas, sentir o cheiro gasto, desvendar os mistérios daqueles
estabelecimentos; continuar a perseguir a roupa – ato este inevitável e
recorrente mim. Com as memórias ativadas, passam por meus olhos
anos passados, em que roupas usadas eram meu objeto de trabalho e se
transformavam em figurinos para personagens de filmes e peças de
teatro.
Passados alguns minutos dentro de uma dessas lojas, uma atendente
chega mais perto e oferece seus serviços. A pergunta que eu faço,
desconcerta‐a: “Essas roupas são usadas?”. Ela, uma senhora que
imagino ser uma das donas da loja, dá voltas nas palavras e responde que
parte delas é usada, mas a maioria é nova, justifica que isso só acontece
pelo fato de comprarem as peças pelo telefone, de um lugar em São
Paulo, que lhes envia sem escolherem o que vem. É visível pelos puídos,
as cores e as formas que todas
as roupas são usadas. Eu sei!
Caminhando mais um pouco
pela loja, meus pés quase
tropeçam em grandes fardos de
roupas escondidos debaixo das
araras. Neles se pode ler uma
inscrição em caneta piloto:
“NOME DO DESTINATÁRIO
SALVADOR – BA
SSA MULHER”
Fig. 13: Manequins da loja de roupas usadas na Baixa dos Sapateiros , em Sa lvador – BA, onde a vimos os fardos de roupa pela primeira vez. Atrás dos manequins se lê: não efetuamos troca. Foto de arquivo pessoal , 2012.
58
Memória
“Tudo que não invento é falso” (BARROS, 1996)
Um lampejo aceso a partir do encontro do passado e do presente, a memória é
estratégia de investigação, atividade intelectual. É uma faculdade paradoxal que é, ao
mesmo tempo, ligada a um acontecimento voluntário do lembrar e a algo involuntário:
lembranças, imagens que afetam quem lembra. Portanto, quando se lembra
voluntariamente de algo, outras lembranças surgem, coisas que talvez não se pretendia
lembrar. Assim sendo, muitas vezes “o lembrar e a lembrança se contradizem”32. A
lembrança é capaz de trazer de volta sensações e acontecimentos passados, produz
imagens, imaginação. Possibilita uma transformação do passado, uma vez que a
lembrança ocorre num momento presente e é, de certa forma, influenciada por esse
momento. Esse encontro do “Outrora” com o “Agora” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.62)
configurado em imagens mentais involuntárias, transforma a lembrança do passado e
pode colaborar para a mudança do presente (GAGNEBIN, 2006). Nesse sentido,
“se a imaginação – esse mecanismo produtor de imagens para o pensamento – nos mostra o modo pelo qual o Outrora encontra, aí, o nosso Agora para se liberarem constelações ricas de Futuro, então podemos compreender a que ponto esse encontro dos tempos é decisivo, essa colisão de um presente ativo com seu passado reminiscente” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p. 62).
É decisivo, pois é através desse encontro, desse acontecimento mental, que se
passa à narrativa, ao discurso, seja ele histórico ou não. Para Gagnebin, a memória é
acaso, não enquanto “irrupção estatística de coincidências”, mas por ser algo que “não
depende de nossa vontade ou de nossa inteligência, algo que surge e se impõe a nós e
nos obriga, nos força a parar, a dar um tempo, a pensar” (GAGNEBIN, 2006, p.153). “Não
se trata de um resgate voluntário do passado, senão um passado que se apossa
involuntariamente de nosso presente e de nossos atos” (RAMIREZ, 2011, p. 120), nos
fazendo reconhecer no presente elementos remanescentes do já acontecido.
32 Frase retirada de entrevista com Jeanne Marie Gagnebin sobre a memória. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=Dr7jJoqxFfU
59
Trazendo outra vez a discussão já posta anteriormente, quando falávamos da
metodologia de Ginzburg, o paradigma indiciário, esse acaso
“só pode ser percebido se há como um treino, uma ascese da disponibilidade, uma “seleção”, umas “provas” que tornam o espírito mais flexível, mais apto a acolhê‐lo, esse imprevisto, essa ocasião – kairosl – que, geralmente, não percebemos, jogamos fora, rechaçamos e recalcamos” (GAGNEBIN, 2006, p.153).
Como diz Ginzburg, é necessário prestar atenção e “ouvir” as pistas com cuidado,
aflorando a intuição e aguçando os sentidos. Talvez as pistas só funcionem quando, de
alguma forma, causam esse lampejo de memória. A ocasião é então aproveitada, não
criada (CERTEAU, 1994). A memória traz para o momento a pequena peça de encaixe
que faltava, “como os pássaros que só põe seus ovos no ninho de outras espécies, a
memória produz num lugar que não lhe é próprio” (CERTEAU, 1994, p. 162), realoca
imagens do passado no presente, obtém sua força de intervenção de “sua própria
capacidade de ser alterada – deslocável, móvel, sem lugar fixo” (CERTEAU, 1994, p. 162).
“Longe de ser o relicário ou a lata de lixo do passado, a memória vive de crer nos
possíveis, e de esperá‐los, vigilante, à espreita” (CERTEAU, 1994, p. 163). Ela fica a espera
da ocasião, do momento em que aparecerá em forma de lembrança para trazer a tona
o acaso, o lampejo, o “clique”. Sem se limitar ao passado, essa capacidade intelectual
vive em uma pluralidade de tempos não lineares (CERTEAU, 1994), por isso, essa
memória involuntária seria capaz de anular distâncias temporais entre o passado e o
presente, como se fez em nós. É por meio da lembrança estalada através de um
acontecimento presente que a Salvador de 2012 e a São Paulo de 2008 se encontram.
Voltando ao questionamento de Guinzburg sobre a impossibilidade do
historiador reviver um momento histórico, nos deparamos com o pensamento de
Walter Benjamin sobre o manejar do passado através da história. Para ele, "articular
historicamente o passado não significa conhecê‐lo 'tal como ele propriamente foi'.
Significa apoderar‐se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo" (In
GAGNEBIN, 2006, p.40), assim sendo, a memória nos parece outra vez intrinsecamente
ligada à narrativa histórica. Novamente afirmando, porém, que não nos interessa fazer
um levantamento histórico dos dois bairros em questão ou até mesmo criar uma
narrativa histórica, falar sobre a memória e sua narrativa pode colaborar para o maior
60
entendimento do próprio fazer campo e da maneira como ele é colocado para o
leitor. Afinal, o que garante a fidelidade das imagens lembradas? E da narrativa criada?
Voltamos aqui a pensar no estado ficcional do texto, no encontro com os personagens,
na criação de um discurso a partir de acontecimentos verdadeiros. A memória ajuda a
preencher nossos cadernos de campo e a articular nossas vivências do presente com
acontecimentos do passado. Ela nos ajuda a “ficcionar” (FOUCAULT, 1977 apud.
ARAÚJO, 2011, p.58).
(Sobre São Paulo, se não me falha a memória, em meados de 2008)
A primeira vez que fui ao Parque Novo Mundo, fui de carro, por um
caminho que não se poderia errar (o erro me daria alguns quilômetros de
pista até o próximo retorno). Fui até lá para selecionar roupas para o
figurino de um longa‐metragem. Beirando a Rodovia Presidente Dutra, o
bairro localizado no distrito de Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, tem
apenas um acesso pela Marginal Tietê que, se fosse perdido, faria com
que eu desse uma grande volta de alguns quilômetros de Rodovia. É
preciso estar atento para encontrar o bairro. Se fosse conhecedora da
área, poderia ter chegado também por dentro de outros bairros, ou de
ônibus, por uma linha que me deixaria em uma de suas ruas internas. Me
lembro que quando cheguei ao bairro pensei: “se são tantos caminhos,
como nunca passei por aqui”?
Mas foi caminhando por suas pequenas vias deterioradas e passando
entre a Rua Amadeu Conrado Marti e a Avenida Berimbau que eu
realmente me surpreendi. Em um quadrado de ruas que abriga vários
quarteirões, estão os vestígios do processo de industrialização, vestígios
dos restos que a urbanização preferiu tirar das vistas. Eu estremeci
surpresa: garagens e cômodos inteiros cheios de montes de roupa, com
2 ou 3 metros de altura, onde imagino que 40 ou 50 pessoas trabalham
separando as peças por qualidade e tipo. Vi o Catador pela primeira vez,
61
ele escrevia nos fardos com uma caneta piloto, sinalando da seguinte
forma:
“NOME DO DESTINATÁRIO “ABREVEATURA DA CIDADE CIDADE – ESTADO” CATEGORIA DA ROUPA”
Fig. 14: Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores. Foto reti rada do Google Maps, em setembro de 2012.
das desculpas e táticas
Nos vemos sozinhos na Baixa dos Sapateiros, um território desconhecido, mas
temos vontade de estar ali, de descobrir os segredos dessa trama que começa a se
apresentar diante de nosso estômago33. Queremos correr o risco e pagar o preço da
descoberta de novas pistas que possivelmente nos levarão a descobrir outras ligações
entre Salvador e São Paulo além dos fardos de roupas usadas. Nos lembramos então
de uma longa conversa com outros pesquisadores34 e da necessidade de todos, ao
chegar em um local desconhecido, de criar uma tática, descobrir uma desculpa
33 Brincando com as palavras: Já que nossa metodologia é antropófaga e não visual, tudo se
devora, tudo se digere, nada simplesmente se vê ou se apresenta diante dos olhos. 34 Conversa ocorrida em outubro de 2012 com pesquisadores do Laboratório Urbano, grupo de
pesquisa do Programa de Pós‐graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, sobre trabalhos de campo.
62
possível para se estar neste lugar. Se lembra que “criar é resistir” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p.133) e vai em busca da brecha necessária para essa invenção que,
espera, possibilitará sua efetiva entrada na Baixa dos Sapateiros.
A tática, segundo Michel de Certeau, está presente e diversas camadas
estruturais de nossas cidades e opera em diversas situações enquanto instrumento de
sobrevivência social, principalmente enquanto ferramenta para os “fracos” e está
mais ligada ao tempo que ao lugar. É como o lampejo da memória, trabalha sobre
ocasiões, brechas, chances de ação, associações que podem ser capazes de gerar outra
coisa.
“(...) Ela (a tática) opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não‐lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia” (CERTEAU, 1994, p. 100).
A tática que encontramos para frequentar o bairro está baseada nos mesmo
princípios táticos cotidianos de convívio na cidade. “Muitas práticas cotidianas (falar,
ler, circular, fazer compras ou preparar as refeições etc.) são do tipo tática” (CERTEAU,
1994, p. 47).
Quando a memória entra na história, vem com ela a necessidade da
investigação. Como ligar os vestígios? Como estabelecer vínculos entre
memórias e pistas? Eu preciso encontrar uma maneira de manter minha
presença na Baixa dos Sapateiros. Preciso chegar mais fundo. Preciso
estar ali para continuar a investigar a roupa usada.
63
Saindo da loja em que estava e continuando meu trajeto, atento o paladar
e algumas lojas depois encontro meu passe de entrada. Vejo duas placas
penduradas em uma pequena porta que dá para um corredor bem fundo:
VENDESE DUAS MÁQUINAS
INDUSTRIAL E
COSTUREIRA ACEITASE ENCOMENDAS
CONSERTOS DE BOLSAS EM GERAL
Fig. 15: Entrada do atel iê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Sa lvador – BA. Foto de arquivo pessoal , 2012.
No fim do corredor vejo uma mulher séria sentada em frente a uma
máquina de costura. A desculpa se apresenta: “quero comprar uma
máquina de costura”, parece funcionar. Percebo então que sem a
desculpa não poderia estar ali, porque não tenho a permissão de
ultrapassar essa fronteira, de conversar com aquela mulher. A
desculpa me deixa entrar, depois dela a conversa toma outros rumos.
A me abre as portas da Baixa dos Sapateiros.
64
Fig. 16: Misterioso corredor de entrada do atel iê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal , 2012.
Desalinhavo#5
“Na Baixa do Sapateiro”, música de Ary Barroso
Na Baixa do Sapateiro eu encontrei um dia
A morena mais frajola da Bahia
Pedilhe um beijo, não deu
Um abraço, sorriu
Pedilhe a mão, não quis dar, fugiu
Bahia, terra da felicidade
[...] Ô Bahia
Bahia que não me sai do pensamento...
Para seguir esta pista vá para a página 94. Ou
procure escutar a canção de Ary Barroso.
65
A brecha se apresenta em forma de placa, indicando um caminho escuro por
um pequeno corredor onde, no fundo, se encontra a luz: a . A associação
feita para chegar ao impulso da desculpa passa pela memória e pela tática. Para se usar
da tática tem‐se “constantemente que jogar com os acontecimentos para os
transformar em ‘ocasiões’” (CERTEAU, 1994, p. 46), jogo este que não pretende
configurar um “discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’”
(CERTEAU, 1994, p.46).
É a partir de então que passamos a frequentar esse trecho da Avenida J. J. Seabra
algumas vezes por semana, com a desculpa de visitar a e conhecer
seu trabalho e seu dia‐a‐dia. Todos os dias, antes de chegar ao ateliê de nossa álibi,
passamos pelas lojas de roupas usadas para descobrir qualquer novidade e levamos
conosco um pequeno caderno para anotações e uma câmera fotográfica analógica35
para registrar eventuais situações.
Peço para passar algumas tardes com ela durante um tempo, para vê‐la
trabalhar, aprender com ela. Conto que faço um trabalho nessa região
para a faculdade, uma pesquisa de campo. Ela parece não se importar, o
que a interessa é ter minha companhia, alguém para conversar. Não me
pergunta nada sobre a pesquisa, mas conversamos sobre igreja, televisão
e o pé de Araxá na casa dela.
Desta vez decido conversar com o , contar que estou fazendo
uma investigação sobre a roupa usada e pedir para ficar ali convivendo
com ele durante alguns dias. Sua esposa está na loja, mas ele não.
Converso primeiro com ela, conto meu interesse sobre a roupa usada,
35 A escolha pelo sistema analógico se dá exatamente pelo tempo de maturação deste material.
Só se vai rever a fotografia muito tempo depois do momento fotografado, o que traz novas reflexões e reaviva certas memórias. É o tempo de deglutição da antropofagia. Um registro lento e que possibil ita diferentes ponderações sobre o momento.
66
aqui a desculpa é a própria investigação, a Universidade, as
orientadoras, a bolsa Capes. O chega no meio da conversa, volto
ao início e lhe conto a mesma coisa que contei à sua esposa. Ele me olha
com ares de dúvida e me diz que pode me contar tudo: preços, como
chegam e como saem as roupas, como separam, quem traz, quem leva,
quem compra. Eu lhe digo que isso tudo me interessa, mas me interessa
mais estar ali, convivendo com eles, vendo o trabalho que eles fazem
diariamente e é então que sua esposa me ajuda a definir a pesquisa e
resume em uma pequena frase tudo que eu mesma queria dizer: “ela
quer conhecer o dia‐a‐dia da roupa usada”. É isso! Quero conhecer o dia‐
a‐dia desse resto urbano que se reinventa através das mãos desses
trabalhadores. O se dispõe a me ajudar.
Qual a diferença de se estar em campo com a certeza da desculpa? Que
segurança ela pode trazer à pesquisa? Vivemos situações diferentes nos dois bairros:
um é bastante central e, por isso, parece comum que alguém passe por ali todos os dias,
mesmo que sem se relacionar com ninguém, ao contrário, ficar parado ali poderia
parecer estranho para os trabalhadores e moradores locais. O outro bairro, periférico,
não é passagem comum para pedestres e qualquer pessoa desconhecida que passe por
ali é notada e, possivelmente, corre riscos. Ter aliados, os protetores de nosso portal de
entrada aos bairros, nos garantem a segurança da pesquisa e a possibilidade de seguir a
diante e conhecer outros personagens participantes dessa trama.
os aliados
Estamos agora seguros ao lado de nossos personagens. É preciso então explica‐
los. A , o e o , principais agenciadores dessa trama,
podem ser a costureira de qualquer bairro, o catador de qualquer rua, o rueiro da praça
de qualquer cidade. Eles são o nosso encontro com os restos urbanos, eles são os
principais agentes dessa trama complexa, são a profusão de acontecimentos do fazer
campo, que não necessariamente aconteceram do nosso contato com um único sujeito.
Enquanto acontecimento e sensação, esses personagens podem ocorrer em qualquer
67
sujeito que esteja imbricado na rede dessa suposta “cidade resto”. São
personagens criados para traduzir e levantar questões, conceitos, “afectos”. A
, como a de Balzac (veja desalinhavo#2, na página 26 desta dissertação),
costura de forma a modificar o entorno, a desviar das imposições do sistema, do poder
hegemônico, porém com o propósito de sobreviver e resistir na cidade. Costura para
contar histórias de livros revolucionários ou para fazer sua própria história
revolucionária. O separa o que são para ele pequenos tesouros que a cidade
deixou de lado, como o trapeiro, ou como os próprios Catadores de Vardá (ver
desalinhavo#4, na página 34 desta dissertação), que veem nos restos uma possibilidade
de recomeço, desvio ou construção de uma outra forma de estar na cidade.
fardo de miudezas ou
o “dia‐a‐dia da roupa usada”
Ele termina de colar um coturno, se levanta e me chama para entrar. Vai
explicando cada monte de roupa já separada e dobrada. Calças sociais de
primeira, calças sociais de segunda, camisas masculinas, lençóis, roupas
femininas, ‘fardo de miudezas’. Ele me explica que as roupas de primeira
ele vende mais caro, geralmente para lojas, as de segunda ele vende mais
barato e até onde sabe são roupas usadas por trabalhadores de lavoura.
As roupas de segunda tem bastante aceitação também no Paraguai. As
camisas masculinas tem boa saída e geralmente são vendidas em um saco
que vai metade calça social, metade camisa. Mas as camisas brancas
geralmente saem bem pouco, pouca gente quer. As roupas femininas
também saem menos e geralmente vão organizadas em um ‘fardo misto’
que leva 300 peças e custa R$100, também podem ser classificadas como
de primeira ou de segunda. O ‘fardo das miudezas’ é um saco menor que
68
é cheio de peças miúdas: roupas de bebe, meias, roupa intima. Esses
fardos não tem quantidade de peça certa, o preço é dado no fardo cheio,
‘socado’ como diz o .
Esta catação de trapos, acontecimentos fragmentados pela memória e
configurados em ficção é como o fardo de miudezas do Pequenos fatos
(meias, sutiãs, cuecas) ‘socados’ em um saco que, quando aberto, é desencadeador de
surpresas e desterritorializações. Não se sabe que peça será tirada do fardo, não se sabe
a cor, o estado de conservação, a matéria prima, o valor comercial. Mas cada peça traz
consigo uma história, um possível desencadear da memória, um possível “acaso”, um
puxar de fios.
Desalinhavo#6
Receita de moqueca de peixe, feijão de leite e peixe
frito. Presente da Costureirinha para nós, escrita por
sua sobrinha.
Para seguir esta pista, compre os ingredientes e vá para a cozinha. Ou siga para a página 103 dessa dissertação.
69
A está encurtando algumas calças jeans, transformando‐
as em bermudas.
‐ Nossa, mas essas calças são novas, não são? Porque te pediram para
fazer isso?
‐ Aqui faz muito calor, eles compram essas calças baratas e vale a pena
pra eles me pedirem pra reformar. Assim vende mais. Eu faço um preço
pelo pacote e fica bom pra eles.
Pergunto ao qual é o preço de uma bota de couro marrom. Ela
está praticamente nova. Ele me olha com certa desconfiança e me
responde:
‐ Essa bota é boa, por isso é mais cara. Tá conservada. Custa R$2,50.
No solado e na palmilha da bota posso ler sua marca, que provavelmente
ele desconhece. Essa mesma bota deve custar em torno de R$300,00 na
loja oficial. Compro‐a.
Chego e encontro a remendando e colocando etiquetas
de diferentes marcas nas roupas usadas que são vendidas na loja ao lado.
A está colocando zíperes novos e trocando cursores de
zíperes de mochilas da loja de bolsas chinesas da rua. Muitas delas já
chegam na loja quebradas, outras estouram na primeira vez que são
abertas.
70
Fig. 17 e 18: Loca l de trabalho da Costureirinha e ela mostrando um de seus muitos truques: a tesoura imantada que atra i a l finetes , em Sa lvador / BA. Fotos de arquivo pessoal , 2012.
Fig. 19: Corredor do atel iê da Costureirinha cheio de bolsas e mochi las consertadas por ela , em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal , 2012.
As ações executadas pela e pelo passam pela
necessidade de estar na cidade, é preciso resistir e sobreviver diariamente, para isso
aprendem, apreendem, desenvolvem e se utilizam de táticas e truques. Através do
trabalho, do remendo, do uso de retalhos e da invenção de uma nova categoria de
objeto essa maneira de estar na cidade vai contra o caminho normatizado do trabalho
formal.
Se a vida urbana impõe a pergunta: “que possibilidades restam de criar laço, de
tecer um território existencial e subjetivo na contramão da serialização e das
reterritorializações propostas a cada minuto pela economia material e imaterial atual”
(PELBART, 2003, p. 22), o Parque Novo Mundo e a Baixa dos Sapateiros com seus sujeitos
agentes, aqui trazidos enquanto personagens, exibem sorrateiramente uma resposta, e
é essa própria trama de cidade resto uma das possibilidades,
71
“em que o desperdício, longe de figurar como resíduo irracional, recebe uma função positiva, substituindo a utilidade racional numa funcionalidade social superior e se revela, no limite, como a função essencial – tornando‐se o aumento da despesa, o supérfluo, a inutilidade ritual do “gasto para nada”, o lugar de produção de valores, das diferenças e do sentido – tanto no plano individual como no plano social”. (BAUDRILLARD, 2008, p. 40)
Estes espaços e corpos resistem, resistem por serem resto? Muitas vezes
aparentam ser como um morador de rua: estão em ruínas, escondidos por uma parede
social e invisível, são homens lentos, errantes, em farrapos, vagabundos36. Habitam uma
beirada e configuram sua existência em outro tempo, que não o fugaz e efêmero da
cidade hegemônica. Há tempo para olhar, esperar, analisar, investigar e catalogar. Ali
onde as regras são ditadas mais vezes pela sobrevivência que por outros fatores
de natureza mais normativa, essas roupas resto são então objetos desterritorializados e
desviantes, pois instigam outros universos de referência, estão permeando o sistema,
quase invisíveis, mas com muita potência. Micro potência.
O que está em voga é o desvio, pois quando a roupa, o espaço e o corpo são
resto, as regras que se configurem enquanto macropolítica nem sempre são seguidas.
Por isso ao perguntar ao sobre o preço da bota ele categoriza‐a como “boa” e
por isso justifica seu alto preço de R$2,50, não sabendo ele, que a mesma bota, no
shopping mais próximo deve custar em torno de R$300,00, devido à marca que leva
impressa em seu solado. Da mesma forma, em Salvador, a é contratada
pelo dono da loja de roupas usadas para costurar etiquetas nas roupas na tentativa de
referenciá‐las como novas ou importantes dentro da lógica capitalista, o dono da loja
subverte e boicota o sistema, se inserindo nele, de uma maneira quase contraditória.
Tudo é reapropriado e ressignificado rapidamente. O mesmo se dá quando alguém
decide vestir uma roupa que era resto, pois ao vesti‐la deve adaptá‐la ao corpo, agir de
improviso usando os recursos que estiverem à mão; assim, estará de alguma forma indo
contra os padrões estabelecidos pelo sistema, provocando os olhos alheios pelas ruas
36 Termos util izados respectivamente por Milton Santos, Paola Berenstein Jacques, Flávio de Carvalho e
João do Rio para falar de homens e mulheres que vagueiam pela cidade sem compromisso com a velocidade e as imposições da contemporaneidade.
72
da cidade e possibilitando que a partir de seu improviso criado aconteça o
estranhamento e, consequentemente, o desvio. O espaçoroupa vai se
apresentando para nós em todas estas situações: é fazer corpo, fazer vestimenta e fazer
cidade, acontece em diversas camadas. Assim como pensado por Hundertwasser, várias
peles se sobrepõe neste nosso conceito, peles do espaçoroupa resto.
Reformulação dos desejos, inversão de valores, possibilidade de resistência,
invisibilidade, desvio, ressignificação. Micro fatores que funcionam para despistar a
cidade como sistema capitalista, de macro acontecimentos. O que incide entre Parque
Novo Mundo e Baixa dos Sapateiros é uma sorrateira ação micropolítica, mesmo que
não consciente, uma ação de “microcombate” ao hegemônico, ao pré‐estabelecido. É a
construção de outros modos de existir na cidade.
Ele me mostra um dos sacos que chegaram hoje com roupas novas, ainda
dentro do saco transparente da loja, com etiqueta de preço e tudo. Vejo
uma blusa feminina: R$27.
Fig. 20 e 21: O Catador mostra peça de roupa a inda sem uso e etiquetada, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013.
73
Eu pergunto se ele usa as roupas que aparecem ali, ele me diz que sim,
que sempre aparece roupa boa e ele pega pra usar. Tem muita roupa que
chega nova e ele pega. Começa a contar que tem gente que tem medo de
usar roupa usada (se diverte com isso, ri) porque pensa que a pessoa que
era dona da roupa já morreu. Ele ri e diz que temos que ter medo de gente
viva, gente morta não faz mal pra ninguém. A única coisa é que tem que
lavar a roupa direitinho, porque vai que a pessoa tinha uma doença
transmissível? Aí é só lavar e passar bem e pronto, pode usar.
Ajudo o a arrumar algumas roupas. Uma das funções é olhar
dentro dos bolsos. Em um deles encontro um pequeno papel que parece
um ingresso para museu de algum país do oriente. Mostro o papel para
ele com surpresa, ele não se importa tanto com a descoberta, pergunto
então se ele encontra muita coisa nos bolsos, ele conta que antes
encontravam mais, mas que ele próprio nunca encontrou muita coisa,
que um parente já encontrou uma joia que vendeu por 3 mil reais. Ele
acha que agora as próprias instituições já olham os bolsos, a roupa passa
por muitas mãos antes de chegar ali.
Fig. 22: Em frente à loja do Catador roupas são jogadas na calçada para serem recolhidas pelo Rueiro ou pelo caminhão de l ixo da Prefeitura, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013.
74
vão‐se os dedos, ficam os anéis
Qual seria, afinal, a lógica dessa relação que se constrói diariamente com os
objetos? O desapego, o desconhecimento de seus processos e origens, a carga
sentimental que depositamos sobre eles. As coisas carregam em si camadas e camadas
de acontecimentos, que persistem desde o início de sua existência ou até mesmo antes
de se tornarem matéria, quando ainda eram apenas ideias.
Depois de serem separadas pelas mãos de gente como o , o que seria
resto é revertido e mandado de volta para ser comercializado e reutilizado. O ,
o motorista do caminhão, o lojista ou o trabalhador que recebe as roupas, a
, o futuro usuário, o figurinista e os atores do filme que usarão o
figurino, o que pegou na rua as roupas que o considerou ruins a roupa
e os corpos formam uma rede de relações. A roupa é um objeto que traça caminhos, é
levada pelo corpo, mas também o leva. Porque “a roupa é capaz de carregar o corpo
ausente, a memória (...)” (STALYBRASS, 2008, p.26, grifo nosso) (não só ela, mas o mapa,
a cartografia, a dissertação e até mesmo a cidade) A roupa vai alinhavando e
desalinhavando territórios através de pessoas. Territorializa o espaço‐roupa que, por
sua vez, territorializa os espaços das cidades. É através da roupa, dos corpos e espaços
com os quais ela interage, sendo vestida ou não, que uma série de tramas urbanas se
revelam, ou o avesso delas.
E é passeando por essas tramas, tocando as roupas, vestindo‐as ou colocando as
mãos em seus bolsos, encontrando vestígios e pistas do passado que se pode tocar a
memória da matéria, imaginar a história da roupa e dos corpos que já passaram por ela.
As roupas (ou as coisas) são também uma forma de memória (STALYBRASS, 2008). Peter
Stalybrass, em seu livro O casaco de Marx: roupas, memória, dor, fala sobre a
experiência de vestir o casaco de um velho amigo que faleceu:
“Eu vesti a jaqueta de Allon. Não importa quão gasta estivesse, e la sobreviveu àqueles que a vestiram e, espero, sobreviverá a mim. Ao pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas uma meia‐verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem” (STALYBRASS, 2008, p.10).
75
Esse é, segundo ele, o “terror do traço material”, essa capacidade da matéria de
carregar em si estes extratos da existência. Essa capacidade de ser, ela mesma,
memória. Memória que carrega os traços de quem lidou com ela.
Desalinhavo#sem número (ou ‘escolhe‐se não categorizar a morte’)
Há um momento em que o desvio e o burlar diário
não são suficientes para garantir a sobrevivência na
cidade. A Costureirinha adoece. Tem o corpo mais
magro, a barriga inchada e não consegue se
alimentar. Ela vai ao pronto socorro, nós a
acompanhamos. Vamos de ônibus e ao desembarcar
temos que andar uma certa distância, pela qual a
pede nosso braço como apoio.
Chegamos ao pronto socorro e as portas estão
fechadas, um guarda informa que o hospital está
em reforma e não está fazendo atendimentos de
urgência. Indica outro pronto socorro pertencente
a um posto de saúde distante umas duas quadras
dali. A se sente fraca e quer
desistir, mas insistimos e seguimos a diante.
Chegando ao outro pronto socorro há uma fila de
aproximadamente 30 pessoas que esperam da maneira
que podem, sentadas nas poucas cadeiras da sala
de espera, em pé, sentadas no chão ou na sarjeta
do lado de fora. As que sentem ânsia, vomitam, as
que salivam, escarram. Uma situação
constrangedora em uma sala de espera pequena e
escura. Depois de uma espera de 3h a Costureirinha
é atendida.
________
Descobrimos que a Costureirinha está internada e
decidimos visitála para saber os detalhes da sua
situação. Ela está no Hospital do Subúrbio, um
hospital novo e bem equipado, porém muito
distante. Para chegar do centro da cidade é
necessário tomar dois ônibus e o trajeto leva
aproximadamente 2h. A Costureirinha está deitada
76
em uma maca no corredor. Parece melhor, mas ainda
não consegue comer.
________
A Costureirinha não resiste.
Sai de cena.
________
Para seguir esta pista vá para a p. 90 dessa
dissertação.
Começa então a analisar ternos pretos, separa‐os e dobra‐os com muito
capricho. Olha dentro dos bolsos, coloca a calça dobrada ao meio dentro
do paletó e fecha os botões do paletó. Dobra os braços do paletó em ‘X’
e então o dobra ao meio. Antes de separar e dobrar as peças elas estão
amontoadas em uma grande caixa de madeira, as calças estão enfiadas
nas mangas de seu respectivo paletó.
O corpo de quem lida com a matéria, dos trabalhadores, está completamente
ligado a essa estratificação de acontecimentos sobreposta nos objetos. O do
Parque Novo Mundo, que separa, organiza e cataloga as roupas que antes eram resto é
como o trapeiro e, enquanto lida com os trapos, seu próprio corpo se estende a eles
e vira trapo. Da mesma forma, a da Baixa dos Sapateiros, ao remendar
e renovar os trapos têm seu corpo estendido à máquina, ao tecido e à roupa. Nossos
personagens trabalham com farrapos e assim se tornam o próprio farrapo? Lidando com
restos, estas profissões, corpos e finalmente essa cidade construída para além das
fronteiras formais poderiam ser também consideradas resto?
77
o lugar e o tempo
Um bairro formado por ocupações irregulares bastante recentes e densas, o
outro com uma história antiga, a cada dia tem mais edifícios abandonados, ruindo.
Bairros bastante diferentes e com uma dinâmica cotidiana bastante parecida. A
convivência diária entre moradores e trabalhadores dá às duas localidades um ar
parecido, onde vizinhos de trabalho ou de moradia, compartem as necessidades e se
ajudam dentro do possível. É o tempo o fator crucial para a percepção dessa dinâmica.
É ele também o que propicia a existência da mesma. Costureirinha e Catador, por
exemplo, construíram amizades, parcerias e relações de vizinhança vivendo e
convivendo durante muitos anos nesses bairros.
De um lado um lugar que, por sobrar à beira da cidade, possibilitou a densa
ocupação de suas ruas com edificações irregulares; do outro, um lugar que sobrevive na
invisibilidade de suas ruínas, moradias abandonadas por diversos fatores. Seriam esses
bairros restos de uma cidade formal?
Quando ele chegou ali onde hoje é a R. dos Figos tinha uma lagoa onde
se jogava muito lixo, era como um lixão mesmo. Chegou e comprou um
barraco por mais ou menos R$4 mil. O barraco ficava em cima do lago e
era bem simples, construído com madeira e papelão. Depois de um
tempo ele mudou para um barraco melhor, com chão de cimento,
construído com Madeirit. Em 1980, ele comprou o terreno onde hoje é
sua loja e sua casa e em 1981 já tinha terminado de construir a casa e se
mudou, tudo com o dinheiro das roupas. Ele diz que ganhou muito
dinheiro com as roupas.
78
A me conta que tem 65 anos e trabalha na Baixa dos
Sapateiros há pelo menos 50. Primeiro foi vendedora, depois ajudante
em um ateliê que trabalhava com couro, do outro lado da rua. O mesmo
ateliê se mudou para onde ela trabalha hoje, ali ela aprendeu algumas
coisas sobre costura, mas não trabalhou como costureira. Foi a morte de
seu patrão, que tinha como pai, que a possibilitou aprender a costurar
para permanecer ali. A família dele deixou o espaço e as máquinas para
que ela cuidasse e ela teve que aprender de tudo para ganhar a vida.
Costura desde sapatos até roupas delicadas, passando por mochilas,
barras de calças jeans, troca de zíperes e ajustes em geral. O que não sabe
fazer tenta mesmo assim. Improvisa. Pede ajuda aos vizinhos e à
sobrinha, que a ajuda com alguns ajustes mais delicados em casa.
Uma mulher sai da portinha que fica ao lado da loja e vem conversar com
o , ela pede dinheiro emprestado para colocar crédito no celular,
precisa de R$13, o diz que só tem R$10, que foi o que ele vendeu
no dia, mas empresta pra moça e diz pra ela pedir o resto do dinheiro
para outra mulher. Ela vai pedir. O me conta que ela é sua
inquilina e que paga tudo direitinho. Entrando naquele corredor ele tem
11 aluguéis, o que lhe rende 5mil reais por mês. Ele construiu vários
apartamentinhos no terreno para poder alugar.
79
Desalinhavo#7
O me conta que existe um projeto para
demolir algumas casas naquela rua para fazer a
ligação direta do Viaduto Curuça com a Marginal
Tietê, cortando o bairro ao meio. Então, quem
comprar essas casas corre o risco de ter que sair
depois e a prefeitura paga mais ou menos R$5 mil
por andar. Sua vizinha, por exemplo, que poderia
vender a casa agora por 150 mil, ganharia da
prefeitura cerca de 15 mil reais sem indenização,
porque o terreno já é da prefeitura e a construção
irregular.
Para seguir esta pista vá para a página 97 dessa
dissertação.
Dentre as funções que ela me dá, encomendo o lanche ou a marmita para
o almoço, vou comprar botões na loja da Ladeira da Praça, busco mochilas
na loja do chinês, entrego as reformas já feitas e a acompanho no fim do
dia até o ponto de ônibus, quando no caminho, ela vai me apresentando
para os funcionários das lojas vizinhas:
‐ sua sobrinha?
‐ não, não, ela é minha amiga.
A vizinha veio tirar satisfação com a esposa do porque ela disse
para um amigo que ela estava pedindo 250 mil pela casa dela, mas ela
está pedindo 150. Depois da intriga resolvida, a esposa mostra uma
planta para ela pelo celular e ela diz que acha que tem uma planta dessas,
80
vai até sua casa, que fica bem na frente da loja, para buscar a planta.
Enquanto isso a esposa me fala da vizinha, que ela sabe que dessa casa
não sai escritura, por isso não pode vender mais caro (a casa tem 3
andares e está completamente reformada, com varanda e porta
comercial de aço no térreo). Porque ali as únicas casas que tem escritura
são as casas “de Cohab” que ficam “pra lá da R. dos Figos”, porque ali foi
a prefeitura que construiu. O resto é ocupação irregular. A vizinha volta
com a planta e ambas vibram por ser a mesma. Trocam informações
sobre o cuidado da planta. A vizinha vai embora.
Fig. 23 e 24: Loca l de trabalho da Costureirinha na Ba ixa dos Sapateiros , em Sa lvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2013.
o e suas múltiplas facetas
O , em sua existência ambulante, se desdobra em múltiplas facetas que
vão se revelando a depender da necessidade momentânea de seu estar na cidade. O seu
corpo resto, que caminha pelas brechas e beiradas da cidade formal redesenhado pelas
próprias ruas, nos aparece algumas vezes, sempre transformado. Como numa
brincadeira sobre sua própria vida, ele troca de máscaras a todo o tempo, desvia, se
esconde em suas próprias aparições. É como se ele se configurasse enquanto múltiplos
espectros dos quais, mesmo os olhos mais atentos, poderiam duvidar. É ele mesmo a
imagem do “ficcionar”.
81
Enquanto conversamos chega um e pede uma calça. O
fala que não tem, que já conhece ele e que ele pede ali todo dia, que não
vai dar nada. O insiste e ele continua negando. Entra na loja e se
aproxima de mim procurando alguma coisa por traz, como se fosse pegar
algo e correr. Não faz isso. Pergunta pela última vez:
‐ não tem não, né?
‐ não rapaz, eu te conheço, não vou te dar nada.
Ele sai e vai pedir na loja da rua em frente. O me conta que o
pede roupas para trocar por droga.
‐ Pega a roupa e vai lá trocar por pedra. Conheço ele.
Logo um rapaz sai da portinha que fica ao lado da loja com um saco nas
mãos, entrega ao sem falar nada e vai embora. Ele deixa o saco
ali enquanto conversamos mais um pouco. Depois resolve abrir o saco e
me explicar:
‐ esse é o rapaz do quintal, ele morava na rua, agora ele mora ai atrás. Eu
comecei pedindo pra ele me dar 150 reais em roupas por mês, ele faz
direitinho e ainda ajuda a varrer, botar o lixo. Essas roupas as pessoas dão
pra ele e ele me vende em troca da moradia. Mas as roupas dele eu já
nem conto mais, ele traz e eu aceito. Ele come na casa dos outros, porque
ai não tem nem fogão. Eu acolhi ele da rua, sabe?
82
Chega um com uma sacola na mão, o , sempre muito
direto:
‐ fala meu rapaz!
‐ bom dia.
‐ ah! Que bom que ele falou! Bom dia!
O tira da sacola uma colcha vermelha com escritos japoneses,
oferece ao e ele diz que paga R$3. Tira então outro tecido da
sacola. É um lençol de solteiro. O se adianta:
‐ dá R$5?
‐ olha! Já está por dentro dos preços, né? (para mim) Nesse aqui eu pago
R$2 porque é de solteiro.
O tira os R$5 da carteira para dar para ele, que tira do bolso duas
notas de 4 e uma moeda de 1 e coloca sobre o :
‐ tem nota de R$10?
O dá a nota e fica com os trocados.
O vai embora e o diz que com aquele dinheiro já “dá
duas pedras”. Segundo ele o é um usuário de crack e no ponto de
venda não se aceita moeda, por isso queria a nota de R$10. Assim que
eles conseguem algumas peças que dão R$5 eles correm pra vender.
‐ eu não tô vendendo droga, nem me drogando, tô fazendo meu trabalho.
Quer se matar, se mata.
83
Caminho pelas ruas do Parque Novo Mundo, muitos montes de roupas
estão nas calçadas, os lançam das portas de suas garagens as
peças que não lhes interessa. O lixeiro passa e leva tudo. Os
continuam na mesma função mesmo depois do caminhão passar. Vejo
então alguns selecionando roupas e acessórios.
É ele que nos dá então essa clareza da percepção do resto enquanto moeda de
troca clandestina. Ao utilizar dessa matéria para financiar seu consumo de drogas ou
simplesmente para conseguir algum dinheiro, ele se alinha com o e com a
nessa possível categoria de agenciador do resto. Se antes ele se
apresentava enquanto usuário, explorador da matéria para vestir o próprio corpo, agora
faz às vezes de negociador, do que tem a necessidade de utilizar o resto para o seu
sobreviver dentro do sistema capitalista.
Suas ações de troca se caracterizam enquanto táticas de sobrevivência, ou
até mesmo táticas do consumo, o que para Certeau são “engenhosidades do fraco para
tirar partido do forte” (CERTEAU, 1994, p. 45). Tais artifícios são capazes, então, de
provocar uma certa “politização das práticas cotidianas” (CERTEAU, 1994, p. 45). Estas
práticas acontecem diariamente, de diversas formas, agenciando diversas situações,
porém, elas estão invisíveis diante dos olhos do poder hegemônico, pois tudo o que ele
contabiliza é “aquilo que é usado, não as maneiras de utilizá‐lo” (CERTEAU, 1994, p.98).
É por isso que, para Certeau, essas práticas cotidianas se tornam invisíveis, já que as
ferramentas utilizadas para “mapear” as ações cotidianas são do universo da codificação
e da estatística. Para ele, “a enquete estatística só encontra o homogêneo. Ela reproduz
o sistema ao qual pertence e deixa fora do seu campo a proliferação das histórias e
operações heterogêneas que compõe o patchwork do cotidiano” (1994, p.46). Em se
tratando dos restos, matéria que já nos parece bastante invisível diante da configuração
urbana que encontramos, essa negociação, de certo modo clandestina e de valores
diversos, acontece de forma bastante heterogênea. Os valores dados à matéria tem
parâmetros divergentes daqueles com os quais o poder hegemônico está acostumado a
tratar. Nesta economia da roupa usada, “as coisas adquirem vida própria, isto é, somos
84
pagos não na moeda neutra do dinheiro, mas em material que é ricamente absorvente
de significado simbólico e no qual as memórias e as relações sociais são literalmente
corporificadas” (STALYBRASS, 2008, p.15). Neste caso, o tempo, a estratificação de
acontecimentos, o gosto e o afeto podem ser também fatores de influência na
negociação.
A me conta que só tem R$4,00 na carteira, que espera
que no dia seguinte o pagamento (aposentadoria?) caia, se não vai ficar
sem dinheiro. Estou pronta a oferecer alguma coisa quando um cliente
entra. Ele é muito simpático com a , parece ser cliente
antigo. Tira uma calça de dentro de uma sacola e pede para que ela faça
a barra na medida que ela sempre faz. Não prova a calça para que ela
meça. Diz que quer pagar adiantado (vibro por ela!), tira R$10,00 da
carteira e pergunta se o serviço ainda custa R$5,00 ou se subiu. Ela
reponde rápido que agora subiu para R$6,00. Ele paga, ela dá os R$4,00
que tinha. Esperta, varia o preço do serviço a depender dos trocos que
traz na carteira.
Ele me fala que as roupas que ele vende ali vão com transportadora e
levam nota de um imposto bem baixinho, já que, segundo ele, essas
roupas já tiveram seu imposto pago e o governo deve achar até bom que
se pague duas vezes pelo mesmo produto.
E a negociação acontece também enquanto tática, pois vai influenciar a
resistência do “fraco” para estar em seu lugar. Assim, a Costureirinha modifica o preço
de seu serviço devido a sua disponibilidade de troco e o Catador paga menos impostos
do que deveria para poder manter‐se trabalhando. “Em suma, a tática é a arte do fraco”
(CERTEAU, 1994, p.101), que se utiliza dela para continuar e persistir.
85
É perpassando tais táticas, costuras diárias de resistência, que nossos
personagens insistem, desejam sobreviver na cidade através dos restos que agenciam e
parecem ser eles próprios. Permanecer em seu lugar ou em seu nomadismo37 é questão
de sobrevivência.
37 Ser nômade é não ter habitação fixa, viver frequentemente mudando de lugar. Mesmo depois da formação das cidades e das sociedades sedentárias, ainda existem sujeitos que vivem o nomadismo, como o , dentro do contexto de nossa pesquisa. Pode‐se ler mais sobre o nomadismo no espaço urbano em JACQUES, Paola. Elogio aos errantes: breve histórico das errâncias urbanas. Salvador: EDUFBA, 2012.
86
capítulo III
COSTURAS:
QUANDO SE COLOCAM AS AGULHAS À PROVA
“Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito”
BARROS, Manoel de.
As coisas e os espaços parecem perder o mistério e o interesse a medida em que
os usamos. Os espaços sem gente parecem mais perfeitos, assemelhados ao seu projeto,
ao ideal desenhado por um sujeito. Ao ser ocupado, ao ter as paredes manchadas, o
piso desgastado, os móveis improvisados, os aparatos diários fora de seus lugares
certos, o espaço parece perder valor. As rachaduras nas paredes, golas puídas, as
manchas dos vazamentos e dos suores, a pele suja do asfalto, o bolso furado, o cinto
inventado, o ventilador empoeirado, a panela furada, as unhas sujas. “[...] Em meio à
avalanche de propósitos, à avareza minuciosa incrustada na fracção circular de cada dia”
(RAMOS, 2008, p.170), o desgaste, a poeira, o desuso e o tempo são elementos
perturbadores.
O uso, esse relacionar de corpo‐objeto, corpo‐espaço, corpo‐corpo, objeto‐
espaço, é o que define a cidade. A cidade resto é resto, portanto, pelo seu uso. É
esse lugar subjetivo da existência de objetos, pessoas e espaços que levam consigo o
peso de uma temporalidade que muitas vezes transgride o proposto ou imposto pela
vivência nas grandes cidades. Ela existe no vazio do interesse urbanístico hegemônico,
político e capitalístico e carrega em si o questionamento desse modo de existir nesses
espaços, o questionamento da própria existência e da vida enquanto ciclo. A cidade
resto sobrevive entre os interesses que regem o urbanismo e é também uma das
forças que age sobre ele. Existe dentro e fora dessa camada invisível que se instaura
87
sobre todos os sujeitos e domina pensamentos e vontades, é às vezes agente dessa
camada, outras vezes infringe suas regras.
Os caminhos irregulares ou tortuosos, a falta de calçada, a cusparada dada no
chão ao lado do banco onde se senta diariamente, outra noção de higiene que não priva
o corpo de experiências necessárias, como separar roupas de pessoas completamente
desconhecidas, muitas vezes já mortas, ou revirar sacos de lixo na rua. E ao mesmo
tempo a transformação de sua existência na cidade resto em uma possibilidade de
transgredir esse viver, de acompanhar os desejos capitalísticos comuns, uma
possibilidade de, através dos agenciamentos que faz na cidade resto, poder
participar de um consumo pacificado, se inserindo de alguma forma na sociedade do
espetáculo (DEBORD, 1997) na qual o resto não é bem‐vindo. A cidade resto
possibilita a sobrevivência de sujeito resto de formas capitalísticas, assim, apesar de
usarem as roupas que separam ou costuram, os sujeitos agentes da cidade resto
que encontramos pelo caminho, consomem televisores de última geração, celulares
touch, câmeras fotográficas, assistem filmes da sessão da tarde e não leem livros, a não
ser a bíblia. Fazem de seu trabalho resto, a possibilidade de estarem inseridos na esfera
do pensamento hegemônico. É, portanto, um lugar transgressor, que carrega em si
valores outros que não os padronizados pelo pensamento hegemônico. Apesar disso, é
esse pensamento dominante que possibilita sua existência; e é essa existência que, por
sua vez, possibilita a sobrevivência de espaços, objetos e indivíduos “descartados”,
garantindo através deles a sobrevivência da própria cidade resto, a qual possibilita
à esses sujeitos, espaços e objetos uma certa participação renovada nesse lugar do que
predomina, nessa cidade formal, hegemônica, formatada para satisfazer as vontades de
um poder dominante. A constatação da existência dessa cidade resto é a
percepção da existência de muitas camadas porosas que compõe nossas cidades e de
um ciclo que não se encerra na transgressão nem na participação do hegemônico, é
contínuo e sem fronteiras delimitadoras.
Nesse sentido, o resto se configura, em meio a esse desejo de “não‐vida”
(RAMOS, 2008, p.160), de esterilidade do espaço e das coisas, de repetição simultânea,
enquanto um intervalo, “pequenas células de inutilidade ou de utilidade
88
incompreensível” (RAMOS, 2008, p.170), capaz de trazer a memória à tona, tornando
sua própria sobrevivência única e singular, transformando o meio onde está e logo
sendo absorvido novamente pelo ciclo do qual faz parte.
Como o pão, que embolora aleatoriamente, em diversas partes de seu “corpo”,
sem ordem ou lógica perceptível, o resto vai se alojando e sobrevivendo dentro dos
limites desse hegemônico, e é o próprio hegemônico que embolorou. Não existe
delimitação ou corte entre esses retalhos, eles se tocam, são costurados lado a lado e
sobrepostos, suas tramas se confundem, se misturam.
Desalinhavo#8
“Manifesto do Mofo contra o racionalismo em
Arquitetura”, Hundertwasser (1958)
“Quando a ferrugem ataca a lâmina de barbear,
quando o mofo formase num muro, quando o musgo
nasce num canto e atenua os ângulos, nós
deveríamos nos alegar de que a vida microbiótica
entra na casa e nos damos conta que somos
testemunhas das mudanças arquitetônicas em que
temos muito a aprender. [...] Para salvar a
arquitetura funcionalista da ruína moral uma
substância corrosiva deveria ser jogada nos muros
de vidro e superfícies de concreto liso para
permitir ao mofo que se fixe sobre eles. É tempo
de que a indústria reconheça que a missão
fundamental é a produção do mofo criativo!”.
Para seguir essa pista continue lendo o Manifesto
no livro Hundertwasser Architecture: for a more
human architecture in harmony with nature.
Alemanha: Taschen, 1997. p. 4648. Ou acesse
(traduzido) em:
http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresen
tacao.php?idVerbete=41&langVerbete=pt
89
ferramentas e ofícios
As tesouras e agulhas da e de Margiela são ferramentas para
cortar, alinhavar, desalinhavar, alinhavar outra vez e, por fim, costurar uma roupa ou
um tecido que venha a se reconfigurar a partir dessas ações listadas acima. Como uma
cartografia em movimento, nas mãos desses costureiros, a roupa pode traçar diversos e
inúmeros caminhos, pode ser desfeita e refeita, costurada e descosturada, mas cada
decisão e movimento realizado neste processo pode deixar marcas sobre o material
costurado, marcas estas que afetam o todo da peça, que ferem o tecido, que ficam como
cicatrizes sobre a matéria. O urbanismo se faz ferramenta feito as tesouras e agulhas de
nossos aliados e é através do urbanista, de outros profissionais que pensam a cidade e
do Estado que se pronuncia sobre a cidade: cortando, alinhavando, desalinhavando,
alinhavando outra vez e, por fim, costurando.
Porém, ao pensarmos sobre o poder dessa ferramenta e o que ela possibilita a
quem a utiliza, encontramos outros fatores e camadas que podem vir a influenciar o
peso da mão de quem a emprega. Vemos como o grande desafio na gestão de nossas
cidades a sua ordenação “por parâmetros socialmente mais justos” (WHITAKER, 2014),
a necessidade urgente de modificar a “dinâmica segregadora de produção de cidade”
(WHITAKER, 2014) dentro da qual nos encontramos hoje. Em forma de projeto ou de
planejamento, o urbanismo no Brasil acontece a princípio e principalmente como forma
de controle de uso do solo urbano. A maneira segregadora de crescimento das grandes
cidades é resultado de um problema que, pode se dizer, se resume à falta de terra. Ou
melhor, a falta de terra com valor acessível. Esse problema, por sua vez, é resultado de
um conflito de interesses: “de um lado, a cidade, o espaço urbano da maioria e, de outro,
os interesses imobiliários” (VILLAÇA, 1995, p.50), turísticos ou comerciais, ou seja,
capitalísticos. Esses interesses divergentes acabam por fazer do urbanismo uma
ferramenta contraditória, já que, quando é utilizada, acaba sendo para “favorecer a
ordem atual das coisas” (WHITAKER, 2014). Assim, quem tem poder, seja ele financeiro
ou político, acaba impondo seus interesses para favorecer suas próprias necessidades.
Desse modo, se uma cidade já está dividida em zonas elitizadas e não elitizadas,
industriais e não industrias, de interesse social e de interesse do capital imobiliário, a
90
tendência é que essas zonas sejam cada vez mais bem definidas e separadas, primeiro
pelo valor agregado a cada zona, possibilitando a moradia em certas áreas apenas para
quem “pode pagar”, depois pelos próprios interesses dos quais já falamos acima, que
parecem querer construir uma cidade ainda mais valorizada do ponto de vista
imobiliário. Nosso trajeto de campo nos possibilitou vivenciar essa segregação que
acontece tanto em São Paulo, pela valorização imobiliária de certos pontos da cidade,
quanto em Salvador, pelo mesmo motivo, mas somado aí um interesse turístico de
supervalorização de algumas áreas históricas ou privilegiadas pela natureza.
Assim, esses espaços produzidos pela racionalização do urbano, resultado desses
interesses dominadores, tem o intuito de manter separados elementos centrais e
marginais, ou seja, os espaços luminosos e opacos (SANTOS, 1997), os espetacularizados
e os invisíveis. Porém, como temos visto aqui, são as práticas ordinárias e cotidianas dos
sujeitos (SANTOS,1997; CERTEAU,1994) que possibilitam essa articulação não desejada
por esse urbanismo e, o tempo e a vivência dessas pessoas no espaço, dão a ele uma
outra atmosfera, construindo nele um sentido de lugar. Para Certeau (1994), o lugar só
passa a sê‐lo pela multiplicidade de pessoas e acontecimentos que o habitam e pelo
tempo que possibilita a segmentação de camadas de história e memória num espaço. A
articulação entre espaço e tempo nos parece ser a responsável por essa construção de
sentido.
Para entender essa produção de espaço urbano, voltamos a olhar para as roupas
e a costura e percebemos que o arremate da costura, seu ponto final, representa o
estágio no qual ela, aparentemente, persistirá. Porém, a roupa desafia os moldes em
que foi feita e até mesmo o sistema ao qual pertence e se modifica através do uso. Com
as cidades é a mesma coisa. Elas se apresentam como a água que se diz ser Manoel de
Barros no trecho que citamos no início do capítulo, escorrem pelos espaços que lhes
sobram e constroem seus próprios caminhos através do tempo e das intervenções de
uso dos sujeitos. Essas interligações entre a costura e esse urbanismo nos levam a
pensar sobre seus moldes, que passados pelos ares de um racionalismo modernista,
ligado a industrialização e ao capitalismo, se esforçam por padronizar corpos e espaços.
91
O sistema da moda deseja facilitar e acelerar a produção, desenvolvendo modos
e moldes de padronizar tamanhos e cortes. O urbanismo tenta encontrar a fórmula
espacial perfeita para abrigar estes corpos padronizados, estabelecer limites e descobrir
maneiras de construir cidades coerentes com os modos de produção que se
desenvolveram, mais acelerados e ambiciosos, permitindo seu funcionamento sem
interrupções.
Atuando entre isso tudo, o espaçoroupa, principalmente em seu estado
resto, se mostra como potente possibilidade de desvio a esses moldes intrínsecos ao
sistema da moda, ao urbanismo e a outras diversas disciplinas com bases no
pensamento moderno. Ao abrigar corpos, o espaçoroupa é capaz de desconstruir
tendências de moda, transformar os modos de interação nas cidades, tensionar a
temporalidade imposta por elas e questionar suas regras se utilizando de ferramentas
próprias do sistema capitalista. Como já falamos acima, os espaços sem gente parecem
mais perfeitos, assemelhados ao seu projeto. Assim, o encontro do espaço com o
corpo, já é transgressão, pois sendo o corpo uma superfície que não tem padrões e varia
de sujeito a sujeito, tudo o que é projetado segundo generalizações deve ser adaptado,
principalmente se a matéria de construção do espaçoroupa é o resto.
Nesse sentido, qual seria o alcance desses moldes urbanistas nessa “cidade
resto”? Seriam capazes de atingir os micro acontecimentos percebidos e encontrados
através dessa pesquisa? E essa “cidade resto”, configurada através de uma
temporalidade mais lenta, como cabe e se adapta a esse urbanismo de tempo rápido,
de planejamento imponente e padronizado?
O tempo lento e antropofágico descoberto no decorrer desta pesquisa passa a
ser uma reflexão que deve ser considerada em diversos âmbitos e que, em nosso caso,
é uma brecha para pensar o urbanismo. Está claro que o tempo se apresenta para nós
enquanto uma questão de enorme importância. Levando em consideração algumas das
palavras‐chave trazidas nesse texto, entendemos que muitas delas dependem do tempo
para se configurarem de uma maneira ou outra. A sobrevivência, a memória, a
desculpa e a brecha só acontecem da maneira que propomos aqui devido a ação
92
de um tempo que difere do tempo capitalístico (GUATTARI, 1985) e que, portanto, não
é linear nem cronológico. A memória se apresenta enquanto uma artimanha do tempo
para nos propor associações, acasos e descobertas, é construída em camadas móveis,
que se sobrepõe, se acumulam e comparecem aparentemente sem coerência. A
desculpa é sempre apresentada para que o tempo se estenda e que o jogo do fazer
campo tenha seu fim adiado. E a brecha nos parece ser um intervalo de tempo que
segue outra velocidade, um buraco que nos permite ver acontecimentos e coisas que
durante um tempo linear e rápido estariam invisíveis. Estas três pequenas palavras
estariam ligadas à sobrevivência, enquanto instância temporal e espacial de
continuidade. Sobreviver quer dizer de um corpo ou um fator subjetivo que persiste em
um lugar e um tempo, muitas vezes, como vimos em toda a pesquisa, a depender da
ajuda dessas pequenas palavras: memória, desculpa e brecha.
A “cidade resto” sobrevive feito vaga‐lume. Sendo o resto um estado de
matéria errático por não ter local delimitado ou fixo, é muitas vezes intocável e, por isso,
resistente. Se mostra a uma luz fraca, emanada de sua própria existência. E é esse
intervalo vazio, essa falta de intervenção e de vislumbre em meio às estruturas vigentes.
Sua sobrevivência, assim como a dos vaga‐lumes, está garantida por seu pequeno
lampejo, visto apenas em um certo momento do dia ou da noite, por sujeitos que devem
estar atentos às minúcias do momento. Didi‐Huberman, em seu livro Sobrevivência dos
vaga‐lumes, traz, através do cinema e dos escritos de Pier Paolo Pasolini, questões
bastante importantes sobre o domínio cultural e político na época do fascismo italiano.
Diante dos holofotes iluminados desse pensamento que se fez hegemônico e
persistente, a sobrevivência dos pequenos pirilampos, apesar de “fugaz e frágil”, se fazia
potente:
“[...] ainda era possível, nos tempos do fascismo histórico, resistir, ou
seja, iluminar a noite com alguns lampejos de pensamento, por
exemplo, relendo o Inferno de Dante, mas também descobrindo a
poesia dialetal ou simplesmente observando a dança dos vaga‐lumes
em Bolonha, em 1941” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.28)
93
Diante dos holofotes que iluminam amplas áreas das nossas grandes cidades, da
experiência de espaço e troca que nos é dada como única, baseada em moldes
modernos, arriscamos dizer que os restos são esses pequenos lampejos que,
diariamente, assombram nossos olhos com sua existência e, principalmente, com sua
capacidade de sobrevivência. A poeira, o mofo, o desgastado, o engordurado e tantas
das qualidades naturais do tempo que age sobre os objetos e corpos são definidas como
inaceitáveis dentro desses moldes iluminados do espetacular. Porém, é quando nos
deparamos com essas condições que, muitas vezes, somos atingidos pela reflexão de
nossa própria existência na cidade, porque vislumbrando o tempo que age sobre as
coisas temos a possibilidade de perceber o tempo da própria vida e nos encontramos,
por alguns instantes enquanto dentro desse pensamento, resistentes às imposições
desse poder político, midiático e mercadológico que muitas vezes nos toma por inteiro.
Assim como Didi‐Huberman, não podemos nos conformar com o desaparecimento dos
vaga‐lumes “na ofuscante claridade dos ‘ferozes’ projetores: projetores dos mirantes,
dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão” (DIDI‐HUBERMAN,
2011, p.30), porque isso seria
“[...] agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a
máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. É não
ver mais nada. É, portanto, não ver o espaço – seja ele intersticial,
intermitente, nômade, situado no improvável – das aberturas,
dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo”. DIDI‐
HUBERMAN, 2011, p.42)
O resto é para nós, “aquilo que aparece apesar de tudo” (DIDI‐HUBERMAN, 2011,
p.65) diante dos olhos atentos, enquanto uma pequena contemplação diária, feito vaga‐
lumes, e que revela um mundo.
Por isso, nossas reflexões feitas aqui sobre esse urbanismo dominado por
diversos interesses e baseado em moldes modernos nascem a partir do vivido, desse
fraco cintilar luminoso que os restos nos possibilitaram ver mesmo sob a ofuscante luz
desse cotidiano não inventivo. O urbanismo, assim como a moda e outras disciplinas
com bases na racionalização moderna, desejam transformar o tempo em algo acelerado,
94
linear, controlado e estabilizado, produzindo subjetividade nesse sentido e não
prevendo nem desejando intervalos, brechas ou lentidão; afetando (de muitas
formas) a experiência cotidiana, a memória coletiva, a estratificação dos
acontecimentos e subjetividades dos diversos segmentos sociais. Esse pensamento, não
deseja conviver com surpresas, mas projeta para desenvolver espaços controlados e
normatizados. Em uma cidade fragmentada como Salvador, por exemplo, utilizar a
ferramenta do urbanismo na tentativa que construir um espaço totalitário e luminoso
pode ser, de certa forma, agressivo com seus moradores. Foi através da morte da
que nos deparamos com reflexões importantes neste sentido, na
descoberta de um urbanismo segregador, já que a morte é o retrato mais palpável do
tempo e nos faz pensar as condições da própria sobrevivência.
o clarão da morte
A morte apareceu no meio do caminho para mostrar que o descontrole do
campo e da vida é completo. Ela é um acontecimento que faz parte do trajeto da
pesquisa, do caminho trilhado por nós e que, surpreendentemente, nos esclarece
muitas coisas. Trazer à tona a morte de um personagem é uma escolha como todas as
outras. Aqui esse evento nos permite vislumbrar um universo de questões ainda não
discutidas, que estão envolvidas com o urbanismo e sua maneira de agir nas cidades.
A , moradora de um bairro periférico chamado Mussurunga,
todos os dias pegava duas conduções para chegar ao seu trabalho, um ateliê na Baixa
dos Sapateiros, área central da cidade de Salvador. Certo dia, já bastante doente, chegou
em casa, depois de pegar suas duas conduções diárias e achou que deveria chamar uma
ambulância. A ambulância veio, socorreu‐a e levou‐a para a internação. Devido aos
poucos leitos vagos e as condições ruins de muitos hospitais, a foi
levada ao Hospital do Subúrbio que é um ótimo e novo hospital, porém está do outro
lado da cidade em relação à casa dela e de seus familiares, que também moram em
Mussurunga.
95
A foi morar em Mussurunga por ter se inscrito em um programa
habitacional da prefeitura, em meados da década de 1970. Havia um escritório na
Avenida Sete, no centro da cidade, onde a população podia se inscrever no programa
para ter sua casa no conjunto habitacional. A antes morava na Baixa
dos Sapateiros, de aluguel, a algumas quadras do trabalho. Logo que se mudou para
Mussurunga, a cidade se modificou para ela. O trajeto casa‐trabalho, que antes fazia a
pé, tomou outra dimensão: duas conduções diárias para ir e duas para voltar, o que lhe
tomava em torno de 4 ou 5 horas diárias. Próximo a sua casa, que tem um grande quintal
com árvores como Araxá, das quais ela tira frutas para o lanche da tarde, não havia
nenhum ponto de ônibus, por isso ela e os outros trabalhadores do bairro caminhavam
aproximadamente dois quilômetros até chegar ao lugar onde a condução passava. Com
os anos, a estrutura do bairro se modificou e por isso, de alguma forma, acabou se
aproximando do centro da cidade, o transporte chegou até mais perto, o comércio do
bairro se desenvolveu, escolas e hospitais foram sendo construídos38. Porém, mesmo
com o desenvolvimento do bairro, quando uma de suas moradoras necessita, ela precisa
ser internada no outro extremo da cidade.
Para facilitar a compreensão espacial do cotidiano da após sua
mudança para Mussurunga, achamos interessante mapear tais distâncias. A princípio a
melhor forma que encontramos foi utilizar um mapa, localizando os pontos principais
de seu convívio: sua casa e seu trabalho, bem como o hospital onde foi internada
quando doente. Logo percebemos que assim fazíamos uma abordagem segundo os
moldes desenvolvidos pelo urbanismo, já que uma de suas principais ferramentas é o
mapa, que distancia o observador da realidade da localidade, colocando seu olhar de
maneira verticalizada. Dessa forma, todo o nosso esforço para que os acontecimentos
emergissem do fazer campo através de fatores como tempo, convivência e memória, se
esvaiam ao localizarmos por pequenos pontos uma estrutura muito mais complexa de
vivência. Outro motivador de duvidarmos do mapa foi lembrar que a
nunca nos dava dados de distâncias espaciais, mas sempre temporais ou relativas à
38 Estas informações sobre o bairro de Mussurunga foram obtidas em conversa com a Costureirinha, em 2012.
96
quantidade de ônibus que utilizava para realizar tais distâncias. Dessa forma, o mapa
que trazemos abaixo é aqui colocado para tensionar os modos de fazer de disciplinas
como o urbanismo.
Fig. 25: Lei tura das loca l idades da aos moldes urbanísticos, baseada em uma concepção espacial. Mapa reti rado do s i te: http://www.meuclub.net/wp‐content/uploads/2012/03/mapa‐de‐salvador‐veja‐aqui.jpg, com a l terações e marcações nossas .
97
Ao nos depararmos com essa dúvida, e entendermos que uma atitude
cartográfica de outro tipo poderia se fazer muito mais coerente com nossa abordagem
teórica e conceitual, decidimos utilizar materiais e técnicas encontrados em nosso fazer
campo traduzindo as distâncias espaciais em distâncias temporais. A feitura da
cartografia com a técnica do bordado se faz também com a intenção de trazer o
questionamento sobre a velocidade com que se levantam diagnósticos e resultados
sobre a população e suas necessidades. Toda essa reflexão sobre o encontro do tempo
com o espaço e o que emerge disso resulta em algumas cartografias que serão
apresentadas ao longo do texto.
Fig. 26: Cartografia bordada da dimensão da cidade de Salvador para a Costureirinha baseada em sua concepção
temporal . Foto de acervo pessoal .
Munidos dessas ponderações, nos questionamos sobre o que deseja atingir esse
urbanismo que constrói conjuntos habitacionais distantes do centro da cidade, de uma
infraestrutura básica e do transporte, afastando as pessoas de suas realidades, sua
vizinhança e atingindo sua memória e sua produção de subjetividade.
Em nossas cartografias inventadas a partir da busca de pistas, percebemos algo
importante em nosso trajeto logo após a morte da . A reflexão mais
98
pertinente que nos veio, caminhando pela Baixa dos Sapateiros foi principalmente sobre
a quantidade de edifícios em ruinas ou abandonados nas cercanias do Centro Histórico
de Salvador. Não é difícil chegar à pergunta que chegamos: porque escolas, hospitais e
moradias não são estruturadas nesses edifícios à espera? E estes edifícios estão à espera
de que? Serão estes espaços, espaços resto? Da mesma forma que nosso conceito de
espaçoroupa somente se mostra e se configura quando abriga um corpo ou é por
ele agenciado, as outras camadas, as outras peles de Hundertwasser, só acontecem em
relação ao corpo, à primeira pele, à epiderme. Nesse sentido falar de objetos e espaços
à espera é também falar do vazio. E vazio não somente pela falta de preenchimento,
mas também pela falta da relação da qual falamos acima: corpo‐objeto, corpo‐espaço,
corpo‐corpo, objeto‐espaço, relação tal que é um agenciamento social e político, o qual
só pode acontecer através de sujeitos. Esse vazio é onde sobrevive a cidade resto,
que muitas vezes é o vazio do interesse urbanístico hegemônico.
o mapa e o mapeado
“Mas os vaga‐lumes desapareceram nessa época de ditadura industrial e consumista em que cada um acaba se exibindo como se fosse uma mercadoria em sua vitrine, uma forma justamente de não aparecer. Uma forma de trocar a dignidade civil por um espetáculo indefinidamente comercializável”. (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.37)
Em junho de 2013, o então governador do estado da Bahia, Jaques Wagner,
assinou a ordem de serviço para o início de obras de requalificação da Baixa dos
Sapateiros. A obra, que foi orçada em R$13,8 milhões para a primeira fase e R$12,8 para
a segunda, visa, a princípio fazer uma “vala única, por onde passarão redes de
infraestrutura subterrâneas (energia elétrica, telefonia, operadoras de internet), a
pavimentação das vias, recuperação de praças e passeios” (CONDER, 2013), fazendo
melhorias na iluminação e limpeza pública. A ação pretende valorizar o comércio local e
preservar o patrimônio histórico, já que a Baixa dos Sapateiros também faz parte do
Centro Antigo da cidade e tem grande importância histórica. A segunda parte do projeto
almeja fazer melhorias nas fachadas dos antigos casarões, “serviços de limpeza, pintura
99
e recuperação das coberturas da edificações, remoção de estruturas, revestimentos e
demolição de marquises” que, supostamente, “contribuem para a degradação da área”
(CONDER, 2013). O projeto prevê ainda a criação de uma praça a ser nomeada Ary
Barroso, em homenagem ao compositor de música popular que fez uma canção em
homenagem à Baixa. Além disso, o Governo do Estado vai reformar o prédio do Quartel
dos Bombeiros, que fica na esquina da Avenida J. J. Seabra com a Ladeira da Praça e o
Mercado de São Miguel. Para a Conder (Companhia de Desenvolvimento Urbano do
Estado da Bahia), responsável pelas obras, e o governador do estado, o novo aspecto
urbanístico a ser trazido para a Baixa, já atrai investimentos privados e vai melhorar as
vendas de todo o comércio local. Segundo reportagem da Tribuna da Bahia (2012), a
falta de infraestrutura, limpeza urbana, iluminação e o transporte público precário
fizeram com que muitos comerciantes deixassem o local onde, na década de 1990, ainda
tinha as ruas disputadas pelos transeuntes e consumidores principalmente perto de
datas festivas, como São João e Natal. Ainda segundo a mesma reportagem, a Baixa dos
Sapateiros gera cerca de 3 mil empregos diretos e 2 mil indiretos e há a preocupação
em mantê‐los. Além disso, outra grande preocupação que estimula a efetivação do
projeto é a J. J. Seabra ser “uma importante artéria do Centro Histórico, que pode servir
inclusive como entreposto durante a Copa do Mundo de 2014”, já que a avenida dá
acesso à Arena Fonte Nova, ao Pelourinho, à Praça da Sé e adjacências.
Todos os esforços demonstrados para olhar em direção a essa região não
parecem conseguir ver o potencial do que já existe ali.
Muitos projetos de revitalização do Centro Antigo e das cercanias do já
revitalizado Centro Histórico, mais conhecido como Pelourinho, tem sido divulgados,
propostos e inicializados nos últimos meses. Suas intenções são de melhorar a visão que
os próprios moradores da cidade e os turistas tem desses locais, estimulando o
crescimento do comércio e do turismo. Para isso, algumas desapropriações devem ser
feitas e algumas lojas, moradores, empresas e escritórios terão de deixar seus locais a
pedido da Conder. Na Avenida J. J. Seabra, por exemplo, segundo reportagem do Correio
24 Horas (2013), 27 imóveis serão esvaziados para que possam ser reformados. Segundo
Nilson Sarti, Presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado
100
Imobiliário da Bahia (ADEMI‐BA), a “arrecadação desses imóveis é um grande benefício”
(2014) para a cidade de Salvador, já que a maioria deles estão “abandonados por falta
de pagamento dos tributos ou não cumprimento da função social”. Ainda segundo Sarti,
esses edifícios tendem a ser utilizados para a instalação de órgãos municipais que ainda
não tem sedes próprias, para a instituição de parcerias na utilização do espaço e para a
venda dos mesmos. “Ocupar uma região hoje abandonada é uma maneira de gerar
movimentação financeira e estímulo ao desenvolvimento do mercado imobiliário e do
setor de serviços local” (SARTI, 2014) e, principalmente, fazer crescer o valor do solo na
região, limitando o uso da área para aqueles “que podem pagar”.
Nesta “região abandonada” uma série de acontecimentos enchem as ruas todos
os dias. Os moradores das localidades próximas confiam a ida dos filhos à escola aos
amigos que trabalham nas lojas da Avenida; os lojistas, passam mais tempo ali do que
em suas próprias casas, dividem almoços, conversas e afetos; entre um ônibus e outro
que passa pela rua alguém grita de uma calçada para que do outro lado outra pessoa
continue a conversa. Ali, os trabalhadores das lojas vizinhas viam a Costureirinha chegar
e ir embora, o rapaz da padaria já sabia qual era o lanche diário dela e o morador da vila
de casas próxima ao seu ateliê confiava seu cágado aos cuidados dela. Na loja de roupas
usadas, onde alguns fiéis clientes passam pelo menos uma vez por semana, as
vendedoras dão conselhos de moda, de como vestir‐se bem para uma festa ou de que
sapato combinar com a roupa provada. Este trecho aparentemente abandonado está
apenas configurado, de certa forma, fora dos padrões desejados para que possa ser
considerado espetacularizado, para que possa atender os interesses de uma minoria.
Suas lojas de roupas baratas vindas da China, suas fachadas tradicionais escondidas por
letreiros e placas já gastos, os manequins que ocupam as ruas, os moradores de rua e
consumidores de crack que circulam por ali pedindo dinheiro ou alguma mercadoria:
tudo colabora para que, diante dos olhos do hegemônico, esse lugar seja resto. E resto,
apesar de sua capacidade de burlar regras e transgredir fronteiras, não tem lugar
pensado diante dos holofotes.
101
Em nenhum momento as propostas citadas acima parecem privilegiar melhorias
habitacionais e de transporte ou a implementação de hospitais, pronto socorros e
escolas, iniciativas estas que poderiam fazer aumentar a frequência de pessoas no
bairro, principalmente se houvesse o estímulo da chegada de novos moradores na
região. Nesse caso, se as propostas não tocam nesses pontos e parecem apenas ter a
intenção de espetacularizar a área e privilegiar alguns, qual seria o propósito de
“revitalizar” um local que, nos parece, já tem vida?
O espaçoroupa, agenciado pela na Baixa dos Sapateiros se
faz interlocutor dos corpos dos sujeitos. É, portanto, um fazer corpo, fazer vestimenta e
fazer cidade. É ele o responsável pela vida que nos foi possível conhecer e vivenciar ali,
mas que existe de outras formas em todos os lugares. Ali o espaçoroupa era resto
ou vinha da China, em outros lugares é importado, de luxo ou sustentável. De qualquer
forma, quando o espaçoroupa está ativo e presente, existe para os sujeitos a
possibilidade de se transformar, socializar e dar vida a uma série de acontecimentos,
pois o simples ato de vestir uma roupa possibilita sua própria (re)invenção e, apesar de
parecer contraditório quando se pensa na produção em massa da indústria, potencializa
a possibilidade do sujeito de se singularizar.
Outra vez, a necessidade de cartografar o agenciamento desse espaçoroupa
pelas mãos da nos levam, como antes nos levou a necessidade de
dimensionar seus espaços, a pensar um modo de trazer as relações de nossa
personagem com os outros trabalhadores e espaços da Baixa dos Sapateiros e seus
arredores. Outra vez o bordado se apresentou como técnica mais coerente para tal
narrativa, a qual trazemos abaixo:
102
Fig. 27: Cartografia bordada da Baixa dos Sapateiros a partir das relações da Costureirinha. Foto de arquivo pessoal .
em outro canto, o mesmo conto?
Cabe ao urbanismo ser ferramenta, instrumento a ser usado nesse fazer cidade.
Porém, como toda ferramenta, ele está a serviço de quem o carrega, a serviço da força
que rege sobre ele. Nesse sentido, de certa forma, o urbanismo corre o risco de ser ele
próprio o responsável por “engessar” o espaço urbano. Empunhado pelo poder dos
grandes investidores do mercado imobiliário, o urbanismo está a serviço de interesses
financeiros. Enquanto que a dinâmica da cidade, o quanto ela é para todos ou não, o
quanto ela é democrática ou não fica comprometida, levada a diante com preocupações
tão especificas que impossibilitam a visualização do espaço urbano como um todo.
Nas estreitas ruas do Parque Novo Mundo por onde circulamos, onde carros
passam lentamente e com cuidado por causa do pouco espaço, o tempo da cidade de
São Paulo parece parar, ou pelo menos desacelerar. No miolo do bairro, a vida acontece
nas ruas, entre vizinhos, nas trocas diárias e cotidianas. Porém, o bairro parece estar
como um obstáculo que dificulta a passagem dos carros que vêm do viaduto Curuçá para
103
a Marginal Pinheiros. Pela Rua Queirós Veloso, os carros e caminhões passam um pouco
mais rápido, por ser a via de acesso principal, porém em relação a grandes vias
expressas, é ainda muito lenta e segue os padrões do bairro. Acontece que o ,
em uma conversa casual, nos contou que essa rua está visada para virar uma via
expressa que conduziria os carros da Vila Maria para a Marginal Pinheiros. Para que essa
via exista é preciso que um dos lados da rua seja desapropriado, demolido e asfaltado.
Tal projeto, que circula boca‐a‐boca pelo bairro, assusta alguns moradores que, como a
vizinha do , decidem se desfazer do imóvel onde vivem antes que tenham que
ser desapropriados, o que os daria bem menos retorno financeiro, já que, segundo ele,
o valor da indenização por desapropriação pagaria bem menos do que realmente vale o
imóvel. A via expressa que cortaria o bairro, cortaria também as relações já
estabelecidas ali e transformaria a área onde antes era uma lagoa, em uma espécie de
ilha de ocupações irregulares, porém atenderia as necessidades de grandes empresas
que almejam facilitar a saída de seus produtos da cidade de São Paulo.
Por outro lado, outros projetos também estão sendo planejados para a área,
através de um programa de urbanização de favelas chamado Renova SP, da Secretaria
Municipal de Habitação (SEHAB) de São Paulo. Segundo o diagnóstico desse projeto, a
área onde está o e seus espaços da roupa usada está dentro de um
perímetro chamado Jardim Japão e nos documentos do levantamento está nomeada
“Marconi Curuçá / Vila Maria III”, tendo como área de assentamento 18675m² e
comportando 700 domicílios. Metade dessa área está categorizada como “Favela” e a
outra metade como “Empreendimento”. Dentre as propostas do projeto em relação a
nossa área de maior interesse, está a “qualificação dos assentos habitacionais precários
através da inserção de áreas livres associadas à implantação de equipamentos públicos
de pequeno porte; novas conexões e percursos entre pontos e centralidades
identificados.” (SEHAB, 2012) Para a realização das propostas, o pequeno trecho de
bairro teria cerca de 140 remoções, ou seja, 20% dos domicílios.
Essas famílias retiradas provavelmente receberiam da Prefeitura o seguro
aluguel que, segundo o , vale mais ou menos R$500, até que conseguissem ser
privilegiadas por algum programa de habitação social do governo. Novamente algumas
104
questões nos surgem. Imaginando para onde iriam tais famílias que vivem ali há pelo
menos alguns anos, não conseguimos encontrar algum local próximo ao bairro onde
pudessem alugar uma moradia em boas condições por esse valor, levando em conta o
suposto interesse em melhorar a qualidade de vida dessas pessoas, já que as famílias
retiradas, imaginamos, devem ser compostas em média por, pelo menos, quatro
pessoas. Suponhamos então, que essas famílias logo consigam sua moradia própria
através de algum programa do governo. Nos perguntamos: onde estão sendo
construídas as habitações de interesse social para onde serão destinadas essas pessoas?
Quem serão seus futuros vizinhos? Onde comprarão pão, pegarão ônibus para ir ao
trabalho ou beberão cerveja no fim da tarde?
Essas relações sócio espaciais, muitas vezes desconsideradas pelos
levantamentos urbanísticos, emergiram de nosso fazer campo e a maneira cartográfica
que encontramos de apresenta‐las segue a baixo:
Fig. 28: Cartografia bordada do Parque Novo Mundo a partir das relações do Ca tador. Foto de arquivo pessoal .
105
Nesse sentido, o espaçoroupa vem a ser um conceito que direciona nosso
olhar para outros tipos de acontecimentos na cidade, que ocorrem de forma espraiada,
pequena e nômade, possibilitando o exercício de olhar para o que também existe na
cidade além do que se pode ver à primeira vista. O espaçoroupa nos leva a enxergar
a cidade através de suas tramas e desvia nossos olhos do espetacular, surpreendendo
nossa percepção de cidade. A construção desse espaço se faz em relação ao corpo que
abriga e a seu entorno, a sua casa, ao bairro onde vive, as ruas pelas quais caminha. Por
isso o espaçoroupa do morador de rua é acinzentado, sujo, desgastado, por que se
constrói diariamente nas ruas. Por isso o espaçoroupa de um morador do Parque
Novo Mundo quando deslocado ou removido da área onde se configurou, sofre
alterações muitas vezes violentas. Ao servir aos interesses de uma minoria que tem o
poder em mãos, o urbanismo fica cego às necessidades reais da maioria da população
da cidade e ai é que sobram pelas beiradas trechos de cidade, sacos de roupas, grupos
de gente. Essas sobras, que em toda sua potência não se deixam vitimizar, se configuram
enquanto resto e driblam fronteiras e regras para sobreviver de alguma forma. O
urbanismo deixa escapar as sobras e, uma vez que permite isso, já não as pode alcançar
para inseri‐las nessa cidade que utopicamente deseja construir, uma cidade que seja
para todos por direito. Desse modo, o urbanismo que vem regido por esse poder
hegemônico, permite que um sujeito viaje 4 horas por dia em transporte público para
servir a alguém que mora ou tem sua empresa em localidades centrais ou elitizadas. Ao
servir ao capitalístico, esse fazer cidade cai em uma emboscada: perde entre seus limites
temporais, espaciais e sociais um tanto de matéria que poderia lhe servir na construção
dessa cidade.
Todo nosso trajeto de catação de conceitos, descobertas de pistas, encontro
com sujeitos que transformamos aqui em personagens conceituais, alinhavos,
desalinhavos e costuras nos fazem refletir sobre as condições das dinâmicas em locais
como Salvador ou São Paulo que, mesmo muito diferentes entre si, sofrem com as
mesmas questões que envolvem o urbanismo e a construção de cidade. Nas duas
cidades, conversando apenas com as pessoas dos bairros em questão, vivenciando seu
cotidiano, flagrando suas táticas de sobrevivência, experimentando um pouco de
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sua maneira de existir na cidade em relação ao espaçoroupa, percebemos que
questões muito maiores do que as que podem alcançar esses sujeitos é que controlam
a ferramenta do urbanismo. Questões maiores não em importância, mas em influência
e poder. Questões que privilegiam os interesses de poucos e com isso levam o
urbanismo a deturpar toda uma cidade.
O espaçoroupa resto se mostra para nós o tempo todo enquanto matéria
potencializadora do existir no espaço urbano, transgredindo a cidade resto e, até
mesmo, essa construção de cidade segregadora. Através das mãos de nossos
personagens conceituais, que nos ajudaram o tempo todo a encontrar o caminho dessa
pesquisa e de tantos outros sujeitos que poderiam ser inseridos nessa configuração da
cidade resto, entendemos a importância dessa micro resistência na cidade que, ao
infringir certas regras e desejos hegemônicos garante a sobrevivência de pequenos
vaga‐lumes que vagueiam ao anoitecer pelas ruas, deixando persistir a magia da vida
nas grandes cidades.
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O ARREMATE FINAL:
cidade resto ou resto de cidade?
“Se não formos capazes de enlouquecer o ocorrido – entendê‐lo como louco (não incompreensível, mas louco) –, de injetar variantes nele, mostra‐los sempre à beira do apagamento, sempre à borda de outra interpretação, se o que ficar de um fato não for a borra de múltiplos fatos possíveis, se o efetivo não prestar homenagem a tudo que não subiu à superfície, se não cantar o réquiem dos acontecimentos que morreram, as notas inaudíveis de seus berros, bem, então será melhor recitar alto, todos os dias, as manchetes que a gente lê nos jornais, porque isso vai se resumir a nossa vida.” (RAMOS, 2008, p.167)
Talvez ainda estejamos em processo. Um processo longo e lento em busca de
uma maneira de fazer cidade, urbanismo e roupa. Maneira essa que talvez dependa do
aprender a ver e sentir o espaço e sua temporalidade, que precise do olhar para o que
sobra por suas beiradas não como sobra, mas como parte desse todo fragmentado,
como possibilidade de existência, como uma outra maneira, diferente apenas, não
errada ou subversiva. Talvez ainda estejamos em busca de entender esse corpo que
habita o espaço e que o constrói e o modifica, em busca de perceber novas e velhas
necessidades que podem ser atendidas em prol da construção de um lugar mais
articulado e que preze pelo tempo da própria existência e da memória. Esse tempo que
é lento, como o tempo da vida, que fica visível quando se planta em uma horta ou se
vive do tempo da natureza. Talvez estejamos em uma crise de velocidade e na rapidez
em que andamos não damos brecha para que as coisas que estão à nossa volta emerjam
e nos mostrem as reais necessidades das cidades, dos corpos e da própria vida.
É como se houvesse na cidade espaços que sobram. Como terrenos baldios.
Lugares que restam mesmo não sendo vazios. Eles tem um motivo qualquer para
estarem ali. Especulação, esquecimento, abandono, descaso, desgaste ou simplesmente
falta de uso. A cidade resto existe às beiradas desse urbanismo orgânico (OLIVIERI,
2011) porque ele não deseja vê‐la, não pode alcançá‐la. Quando o faz, é ainda deixando
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rebarbas, refugos espalhados pelos cantos. O urbanismo, que guiado por mãos
poderosas, tenta construir uma cidade totalitária, acaba por fragmentar territórios,
segregar pessoas, deixa escapar pedaços.
Nesse caminho nos ocorreu diversas vezes acabar esse texto de outras formas
além da escrita, nos deu vontade de sair do papel, virar tecido, roupa. Deu vontade de
que a dissertação seguisse esse seu tempo antropofágico, ruminante, do deglutir do boi
que passa os dentes sobre o alimento muitas vezes antes de realmente engoli‐lo, em
outras plataformas. Ruminar. Essa palavra é o resumo desse processo todo. Um vai e
vem, um mastiga e engole e mastiga de novo. E esse processo todo, que se fez na
lentidão necessária para sua concretude nos fez refletir sobre o fazer roupa e as linhas
que possibilitam esse processo. Linhas não enquanto categorias, mas enquanto matéria
que costura, que junta retalhos, que dá nó, se emaranha, arrebenta e borda. Linhas que
são como as relações entre pessoas e espaços, que vão se embolando, entrecruzando,
cada qual continuando a ser ela mesma, mas em função da outra, amarrada nela, sendo
apoio ou dependendo dela. Costurar, esse ato milenar de construir o abrigo diário se
transforma diariamente e, o tempo lento que antes se abrigava nesta prática, vai se
distanciando dela. As costureiras recebem por quantidade de peças produzidas e isso
faz com que precisem aumentar a velocidade da produção. Os alfaiates, aqueles que se
encontravam em todo centro de cidade, vão virando uma lenda escondida entre as
camadas dos ternos industrializados vendidos a cada esquina. Mas apesar de toda
mudança estrutural, de velocidade e de valores, ainda persistem algumas mãos lentas.
Essas como a da Costureirinha, do Catador ou do Rueiro, que fazem a vida como se faz
o espaçoroupa: abrigo, fronteira, espaço e ainda pode ser outras coisas. Pode ser
potência política de transformação cotidiana, pode ser a possibilidade do sujeito de se
singularizar e de modificar seu modo de existir.
Esses fios encontrados através dessas mãos lentas e emaranhados,
configurações provisórias do se relacionar, foram nos dando as pistas, táticas de
pesquisa, para encontrar caminho por onde seguir. Como se um fio puxasse o outro,
essa pesquisa se fez em um tricotar conjunto, de muitas mãos, que guiaram a escrita em
busca do compreender desse espaço urbano por vias vestíveis e espaços têxteis. Não
falamos apenas de espacialidades, mas de tempo, como se um não pudesse existir sem
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o outro, já que não há construção de espaço sem estratificação de acontecimentos e
memória.
Pelas mãos do , do e da , personagens
conceituais extraídos de sujeitos encontrados por nosso caminho, encontramos os
restos, sua potência transformadora do cotidiano e algumas reflexões sobre uso da
ferramenta do urbanismo. Costurando essas reflexões aos conceitos do homem em
farrapos, de Flávio de Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco
peles, de Hundertwasser, da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros
autores, do paradigma indiciário, de Carlos Ginzburg, chegamos ao encontro
da cidade resto, onde pudemos notar que, pelas mãos de diversos sujeitos e sua
maneira de inventar o cotidiano (CERTEAU, 1994), é possível tensionar os limites
impostos pelo poder e pensamento hegemônico.
Seguimos puxando os fios dessa costura tentacular e sem fim e descobrindo
diariamente potenciais transformadores da cidade que, mesmo sem formação ou
estudo, sabem como fazê‐lo, como construir algo em sua micro potência, dentro do raio
de seu alcance: uma cidade mais justa e aberta, quase sem fronteiras, cidade esta que
encontramos a cada porta aberta, café servido e história de família compartilhada
durante esse fazer campo. Cada um revolucionando sua existência e seu entorno dentro
da pequenez de sua capacidade política, de sua potência humana. Afinal, qual deve ser
o tamanho das ações que realmente vão transformar as cidades? Quem será que
empunha realmente a ferramenta do urbanismo?
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