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Cientificismo e reflexões acerca do ato de punir no início da República brasileira Pedro Ricardo Moreira de Souza 1 Resumo: Este artigo fora produzido a partir de uma análise da crônica “O assassinato de Thimoteo” publicada no periódico Cidade do Rio, em 1893, propriedade de José do Patrocínio. Numa primeira leitura trata-se de uma história cuja narrativa bem-humorada entretêm o leitor ou leitora, contando a trajetória de um liberto que fora acusado injustamente de cometer uma atrocidade. No entanto, com uma análise minuciosa, certos elementos começam a aparecer e evidenciam possíveis denúncias em relação às ideias penalógicas que se constituíram através de critérios físicos, sobretudo raciais. O objetivo desta pesquisa é compreender a relação entre perspectivas cientificistas na penalogia do início da República brasileira e a formação de um critério racial blindado em seu sistema judiciário, para a punição de criminosos e até mesmo de inocentes. Tal interpretação da crônica fora possibilitada através da observação de como se interpretava o crime no Rio de Janeiro em fins do século XIX, das questões que a abolição da escravatura impôs à sociedade carioca do mesmo período e de referenciais teóricos que compreendem a literatura como produção sensível às pulsões de uma determinada realidade e, portanto, viabilizam sua utilização como fonte histórica. O presente artigo se propõe, num âmbito mais amplo, a analisar a forma como o Estado brasileiro no período da Primeira República, sob a égide do progresso e da ordem, começa a se articular e a produzir artifícios a fim de controlar, evitar e até 1 Graduando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica.

Cientificismo e reflexões acerca do ato de punir no início ... · interpretava o crime no Rio de Janeiro em fins do século XIX, das questões que a abolição da escravatura impôs

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Cientificismo e reflexões acerca do ato de punir no

início da República brasileira

Pedro Ricardo Moreira de Souza1

Resumo:

Este artigo fora produzido a partir de uma análise da crônica “O assassinato de

Thimoteo” publicada no periódico Cidade do Rio, em 1893, propriedade de José do

Patrocínio. Numa primeira leitura trata-se de uma história cuja narrativa bem-humorada

entretêm o leitor ou leitora, contando a trajetória de um liberto que fora acusado

injustamente de cometer uma atrocidade.

No entanto, com uma análise minuciosa, certos elementos começam a aparecer e

evidenciam possíveis denúncias em relação às ideias penalógicas que se constituíram

através de critérios físicos, sobretudo raciais.

O objetivo desta pesquisa é compreender a relação entre perspectivas

cientificistas na penalogia do início da República brasileira e a formação de um critério

racial blindado em seu sistema judiciário, para a punição de criminosos e até mesmo de

inocentes.

Tal interpretação da crônica fora possibilitada através da observação de como se

interpretava o crime no Rio de Janeiro em fins do século XIX, das questões que a

abolição da escravatura impôs à sociedade carioca do mesmo período e de referenciais

teóricos que compreendem a literatura como produção sensível às pulsões de uma

determinada realidade e, portanto, viabilizam sua utilização como fonte histórica.

O presente artigo se propõe, num âmbito mais amplo, a analisar a forma como o

Estado brasileiro no período da Primeira República, sob a égide do progresso e da

ordem, começa a se articular e a produzir artifícios a fim de controlar, evitar e até

1 Graduando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica.

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mesmo punir a existência negra, especialmente pobre, no pós-abolição. Dessa maneira,

a utilização de categorias que tendem a ser interpretadas como irrefutáveis são

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amplamente funcionais para a viabilização de ideias, ações e políticas institucionais de

cunho profundamente racista sob a proteção de serem apenas racialistas ou científicas.

É neste sentido que o trabalho pretende através da crítica feita pelo texto “O

assassinato de Thimoteo”, colocar em questão a comumente adotada irrefutabilidade da

ciência, principalmente quando ligada a fundamentação de políticas públicas e ideários

que rondam as organizações sociais e judiciárias, demonstrando o quão longe fora, no

contexto estudado, a utilização do argumento científico na defesa de lógicas punitivas

que estavam muito mais interessadas nos agentes sociais que os crimes possibilitariam

encarcerar do que propriamente nos atos criminosos.

Palavras-chave: CRIME – RAÇA – JUSTIÇA – ABOLIÇÃO - CIÊNCIA

INTRODUÇÃO

Em fins do século XIX, no periódico de José do Patrocínio chamado Cidade do

Rio, é publicada a crônica “O assassinato de Thimoteo”. A primeira impressão do texto

pode ser a de uma narrativa muito bem escrita e de caráter cômico sobre os infortúnios

de mais um negro liberto acusado de um crime que possivelmente não cometera. Porém,

ao olharmos com um pouco mais de atenção, é possível notar temáticas como injustiça e

críticas a uma suposta conduta policial/jurídica específica em relação a acusados ou

criminosos.

O objetivo desta pesquisa é, mediante a uma leitura sensível da fonte e de

questões extraídas dela, analisar a influência de certas correntes cientificistas sobre

reflexões a respeito do ato de punir, que valorizaram peculiaridades do indivíduo ao

invés do ato criminoso propriamente.

LITERATURA E HISTÓRIA

Especialmente no que é relativo à literatura brasileira, verifica-se que, através de

crônicas, os jornais serviram de veículos de muitas ideias importantes – em fins do

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século XIX e XX – que por muitas vezes reverberaram questões e embates dos tempos

em que os autores se encontravam 2.

Estes textos produzidos através de uma ótica menos racional e mais sensível da

realidade, como propõe a professora Cristiane da Silveira3, graças aos debates que

surgiram a partir da década de 1960 acerca da viabilidade das fontes históricas e de suas

representações, foram incluídos na pesquisa histórica por conta de um foco maior para

novos objetos como os sentimentos dos sujeitos históricos em determinados contextos,

e, por conseguinte, suas contribuições para a historiografia. 4

Essa nova possibilidade de utilização da literatura como fonte histórica, ocorreu,

sobretudo, por conta de pesquisas da chamada “virada linguística” e suas conexões com

o estudo da História, de estudos ligados às relações entre texto e contexto, das críticas

de Hayden White e Paul Veyne e da contribuição de Quentin Skinner, que demonstrou

haver um espaço extratextual que permite ao historiador compreender as intenções e

motivações do produtor de um texto durante o seu desenvolvimento. 5

UM QUADRO DA CRIMINALIDADE NO RIO DE JANEIRO: FIM DO XIX

Indubitavelmente, os anos iniciais do período republicano brasileiro, revelam-se

como um tempo de efervescentes mudanças das mais variadas dimensões, que – como

propõe José Murilo de Carvalho – já estavam sendo geradas há algum tempo.

Nos campos: econômico, político, social e cultural, verifica-se nitidamente o

efeito da Proclamação da República, que os fez resultarem em febril agitação

ocasionando uma série de impactos para a cidade do Rio de Janeiro.6

Consequentemente, todo este fervor produziu efeitos também sobre os apontamentos

acerca da criminalidade.

2 PIRES, Maria Isabel Edom. A crônica como gênero mediador na formação/atuação do intelectual

brasileiro no entresséculo XIX-XX. Diálogos Latinoamericanos, n. 8, p. 40-48, 2003, p. 3. 3 Doutora em História Social pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo. 4 SILVEIRA, Cristiane da. Entre a história e a literatura: a identidade nacional em Lima

Barreto. História: Questões & Debates, v. 44, n. 1, 2006, p. 117. 5 SALGUEIRO, Eduardo de Melo. História e Literatura: discussões teóricas e possibilidades de

estudo. Diálogos-Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em

História, v. 17, n. 2, 2013, p. 2-3. 6 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 15.

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Como demonstra Bóris Fausto7, a Capital da República foi utilizada até mesmo

como parâmetro pela imprensa paulista para estabelecer São Paulo como uma cidade

relativamente tranquila. O autor traz inclusive o dado de que “com certa frequência, a

imprensa considera alguns assaltos inusitados obra de ladrões cariocas, perseguidos pela

polícia”8, já que o Rio de Janeiro seria um “valhacouto natural da malandragem, que lá

tem seus núcleos constitutivos e quase, por bem dizer, sua escola primária de vício”9.

Como responsáveis por esta percepção, além da mudança do regime político,

observa-se a forma com que a abolição da escravatura alterou o cotidiano das camadas

mais pobres, sobretudo em termos demográficos. Taxas relativas à imigração,

nupcialidade, estrutura ocupacional e, sobretudo, à mão-de-obra escravizada que há

pouco havia sido jogada no mercado do trabalho livre, foram alteradas afetando os

números de pessoas subempregadas e empregadas.10

Através destes dados é possível começar a formular um panorama que ajude a

compreender o contexto em que a fonte em questão foi produzida e suas referências às

estruturas policial e jurídica da Primeira República.

Outro aspecto da sociedade carioca da primeira década do pós-abolição - já

começando a sentir as referidas alterações demográficas – que auxilia na reconstrução

do contexto, é a conexão feita entre classes pobres e classes perigosas.

Encontra-se, logo após a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888,

debates acerca da repressão à ociosidade que seria uma consequência da abolição. Neste

contexto, era possível observar, sobretudo em meio aos Deputados do Império do

Brasil, uma associação entre pobreza e vício que fora amplamente utilizada como

argumento para a marginalização de populações pobres, sob a égide de que mesmo

quando não estava aliado ao crime no indivíduo, apenas o fato de o vício estar ligado à

pobreza já era suficientemente ameaçador, pois faria com que o pobre se deteriorasse

através do ócio. 11

7 Doutor em História pela Universidade de São Paulo. 8 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo, 1880-1924. Edusp, 1984, p. 15. 9 A nação, 14.12.1898, apud FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo,

1880-1924. Edusp, 1984, p. 15. 10 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 16. 11 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. Companhia das Letras,

1996, p. 20-21.

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Sidney Chalhoub levanta duas hipóteses acerca da associação feita pela elite

política no fim do período imperial. Ambas giram em torno da tentativa de compreender

se, nas discussões da Câmara dos Deputados do Império do Brasil, as palavras “pobres”

e “viciosas” eram sinônimas. Caso sim significaria que todo pobre seria

necessariamente vicioso, porém, no caso oposto, implicaria em haver uma distinção

entre “bons” pobres, e pobres viciosos.

Porém, o autor também apresenta que, para os deputados em questão, o gosto

pelo trabalho seria a principal virtude do bom cidadão, fazendo necessariamente com

que ele criasse o hábito da poupança o que, por conseguinte, o tiraria da pobreza.

Assim, considerando o caráter capitalista-burguês e meritocrático desta

concepção, o trabalhador que não alcançasse o acúmulo de riquezas seria o mau

trabalhador, onde faltaria a virtude e sobraria o vício, o que implica tomar como mais

plausível a hipótese de que “classes pobres” e “classes viciosas” seria a mesma coisa

para a referida elite política. 12

A essência da ideia de “classes perigosas” está no fundo das discussões a

respeito do combate a suposta ociosidade oriunda do fim da escravidão. Anunciava-se

através de uma pergunta a elite política, que era: como organizar o trabalho sem as

medidas coercitivas e as dinâmicas paternalistas aplicadas no cotidiano da dominação?

Considerando esta preocupação, aparece aquilo que Chalhoub denomina “teoria”

da suspeição generalizada, que partia do princípio de que todo e qualquer cidadão era

suspeito de algo até que o contrário fosse provado.

Este subterfúgio foi bastante útil para que houvesse a possibilidade da

manutenção do controle sobre o trabalhador, tendo em vista o desmonte – trazido pela

abolição – do antigo método escravocrata que se dava através do estabelecimento do

próprio sujeito escravizado como propriedade de um senhor. Assim, com este novo

princípio, o controle poderia continuar sendo exercido para além dos limites do local de

trabalho, mas não mais pela mão privada e sim pela própria máquina estatal.

No entanto, por conta de uma ideia que circulava entre os antigos senhores e na

Câmara de que os recém-libertos estariam mais propícios à ociosidade ou à conduta não

12 Op. Cit., p. 22.

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onerosa, a população negra foi certamente preferida para a aplicação da “teoria” da

suspeição generalizada, o que evidencia que alguns indivíduos eram mais suspeitos que

outros. 13

AUTORIA DA CRÔNICA

Como já mencionado, o periódico em que “O assassinato de Thimoteo” foi

publicado era propriedade de José do Patrocínio. Um jornalista, escritor, filho de pai

branco e mãe negra, reconhecido como alguém de grande influência no meio

abolicionista por sua enorme eloquência e por conta de sua cor de pele, que o tornava

um autêntico porta-voz da causa, considerado de alguma forma mais próximo da

população afrodescendente. 14

Autor de dois romances, é possível observar que para o proprietário do jornal a

literatura foi certamente arma em sua luta pela abolição dos escravizados, como

comprova Marcos Teixeira Souza15:

Ao se utilizar do discurso literário, Patrocínio, com seu ímpeto pela causa

abolicionista, vê-se na oportunidade de ousar em sua fala quanto a uma

evidente dominação por parte de uma elite branca e detentora de latifúndios,

contra uma população negra, reduzida a trabalhos forçados. 16

A autoria da crônica analisada permanece uma questão aberta, já que a única

palavra presente na posição de assinatura é “Fantasio”, o que de forma plausível

permitiria supor a autoria como de José do Patrocínio, uma vez que o texto é carregado

de críticas a uma possível injustiça com o personagem principal, um liberto.

Porém, é preciso salientar que Olavo Bilac foi um colaborador do periódico

Cidade do Rio e chegou a ocupar o cargo de “redactor-secretário”17. Além disso, há no

13 Op. Cit., p, 23-24. 14 SOUZA, Marcos Teixeira. José do Patrocínio: um abolicionista na ficção e na vida. Revista de Letras,

v. 15, n. 17, 2014, p. 2. 15 Doutor em Sociologia pela IUPERJ. 16 SOUZA, Marcos Teixeira. José do Patrocínio: um abolicionista na ficção e na vida. Revista de Letras,

v. 15, n. 17, 2014, p. 7. 17 Cidade do Rio, 28. 06. 93 - Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/085669/3764

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acervo digital da Biblioteca Nacional, um poema chamado Em custódia18 que está

registrado como da autoria do poeta parnasiano. Ao fim do manuscrito, está apenas a

mesma palavra - “Fantasio” – o que poderia ser, em alguma instância, um indício para a

autoria da crônica “O assassinato de Thimoteo” ser de Bilac.

“EXPERIMENTAÇÃO POLICIAL” E JURÍDICA

Para além da questão que se impõe relativa à autoria do texto analisado, outra

interrogativa que comparece é a ideia de “experimentação policial” mencionada na

fonte. Ao que parece, o autor aponta - através do caso fictício de Thimoteo - para um

incômodo com a situação jurídica de alguns acusados, que se daria em prol de uma

concepção de inspiração positivista voltada para a transformação do preso em objeto de

estudo,

cuja vida e em cujo socego os delegados novatos fazem

experiências de pespicacia e de tino..., (...) o pobre Thimoteo

era uma bella cabeça de turco em que podiam experimentar

forças. A justiça da terra, que é tão boa como a polícia fez o

mesmo. 19

A partir desta proposição, a fonte nos direciona para os trabalhos de

profissionais ligados de alguma forma ao sistema penitenciário - principalmente os

juristas - envolvidos com teorias científicas que em fins do século XIX, estabeleceram

novas formas de pensar e lidar com condutas criminosas ou apenas desviantes de um

ideal pré-determinado. Passaram a enxergar os espaços prisionais quase como

laboratórios para a produção de saber, no que tange a necessidade e possibilidade do

Estado em punir e produzir o melhora pessoal do indivíduo. 20

18 Disponível em:

http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss_I_07_11_029/mss_I_07_11_029.pdf 19 Cidade do Rio, 28. 06. 93 - Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/085669/3764 20 SANT’ANNA, Marilene Antunes. Discursos sobre presos e prisões no início da República brasileira. In:

SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 25., 2009, Fortaleza. Anais do XXV Simpósio Nacional de

História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009, p. 5-6.

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Segundo Marilene Antunes Sant’Anna21, é neste contexto que encontramos a

Escola Positiva ou Nova Escola Penal, responsável por produzir uma teoria que

acreditava na possibilidade de extrair o conhecimento acerca do crime, não através do

ato propriamente, mas sim do estudo do indivíduo criminoso. Esta perspectiva valorizou

compreender causas físicas, psicológicas e sociológicas que poderiam ter sido

responsáveis por conduzir o indivíduo ao desvio de conduta.

A partir desta lógica, o crime deixa de ser uma ruptura do senso moral

estabelecido socialmente para se tornar fruto de uma conduta patológica, deslocando o

foco do ato para o indivíduo. O efeito desta perspectiva é a aplicação de penas

estabelecidas através de peculiaridades do criminoso22, que variam de caso para caso

assim como a dosagem de um medicamento para diferentes enfermos que possuam uma

mesma doença.

INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA E IDENTIDADES SOCIAIS

Em seu livro “Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais”,

Mariza Corrêa oferece uma percepção teórica que viabiliza compreender a dinâmica de

processos penais através da concepção de modelos de culpa e de inocência, constituídos

a partir de fragmentos da realidade que entram em jogo no debate jurídico e são

utilizados pelos atores envolvidos da forma que lhes é mais útil. 23

A construção destes dois modelos - de culpa e de inocência – acontece não de

forma arbitrária, mas através de normas sociais que incluem aquelas cuja transgressão

produz sanção penal ao indivíduo que as viola, assim como as que traduzem apenas

conformidade com identidades sociais.

Segundo Bóris Fausto, a concepção de conformidade com identidades sociais –

uma conduta “adequada” para determinados papéis que o indivíduo venha a ter na

21 Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 22 SANT’ANNA, Marilene Antunes. Discursos sobre presos e prisões no início da República brasileira. In:

SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 25., 2009, Fortaleza. Anais do XXV Simpósio Nacional de

História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009, p. 5-6. 23 CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Graal, 1983, p.

40, apud FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo, 1880-1924. Edusp, 1984,

p. 1

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sociedade – poderia em caso de transgressão de normas penais, se transformar em

“preceito penal”, constituindo um critério para a condenação ou até mesmo para a

intensificação a pena.

O CRITÉRIO RACIAL

Consequentemente, por conta da abolição da escravidão em 13 de maio de 1888,

evento que gerou uma série de mudanças para a Capital da República, as ideias que

possuíam em seu âmago um pano de fundo racialista, parecem ter sido recorrentes desde

pelo menos 1891, ano da criação da Revista Academica da Faculdade de Direito do

Recife. Além disso, na fonte, é salientada a condição de negro e de liberto do

personagem principal, o que torna pulsante a necessidade de investigar a existência de

especificidades nas reflexões jurídicas pautadas em critérios de raça.

O veículo de responsabilidade dos docentes da Faculdade de Direito do Recife,

desde suas primeiras publicações demonstrava seu intuito de estimular de alguma forma

a produção científica no país e estabelecer vínculos entre intelectuais de outros núcleos

nacionais e internacionais, como demonstra Lilia Schwarcz no livro de sua autoria, “O

espetáculo das raças”. 24

Os teóricos presentes na revista, que defendiam um direito penal autônomo e

científico e foram especialmente influenciados pelas obras de Cesare Lombroso e

Enrico Ferri, ambos pensadores da chamada “escola italiana” – representando uma

enorme influência da antropologia criminal -, são os mesmos que temiam

indiscriminadamente uma “anarquia das raças”, já que através do método científico

conheciam a idiossincrasia defeituosa dos malfeitores, isto é, a suposta maior

predisposição de alguns ao ato criminoso. 25

Apesar de tratar-se de uma revista científica, observa-se que há grande ênfase na

veiculação de problemas políticos e sociais do país. 26 Isto aponta para a possibilidade de

24 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no

Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 155. 25 Op. Cit., p. 156-157. 26 Ibidem.

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a preocupação com a raça como um elemento determinante de propensão à conduta

criminosa não estar retida apenas num horizonte teórico, e sim confirmando a ideia

apresentada por Fausto, da existência na estrutura jurídica de uma individualização das

penas, especialmente no referente a especificidades étnicas do criminoso.

Dessa forma, reiterando o que propõe Chalhoub em sua análise de alguns

discursos da Câmara dos Deputados do Império do Brasil, a ideia herdeira do legado da

escravidão que rondava a elite política no Distrito Federal parece ter ido de encontro

com o determinismo racial presente nas reflexões jurídicas acerca da aplicação de

penas, já que se referia a uma ociosidade intrínseca ao indivíduo negro, sobretudo o

recém-liberto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A influência do Escola Positiva parece ser, portanto, um dos grandes pilares para

todo este debate sobre o ato de punir que favoreceu a percepção das prisões como

laboratórios, onde o criminoso – concebido como objeto de estudo - deveria ser

submetido a exames médicos e antropométricos, apesar de, como demonstra Marilene

Antunes Sant’ Anna, esta ideia tratar-se quase de uma inviabilidade no sentido prático,

vide as dificuldades estruturais das prisões no Rio de Janeiro. 27

Todavia, no campo das ideias, é possível observar que a presença deste olhar

positivista - da pessoa do criminoso como objeto de estudo e não exatamente o ato

desviante - compareceu, principalmente, nas reflexões que contaram com a já citada

antropologia criminal, dando grande ênfase ao tipo físico em suas análises28 e

revelando-se com um forte determinismo racial defendido sob a égide de uma

cientificidade profunda.

27 SANT’ANNA, Marilene Antunes. Discursos sobre presos e prisões no início da República brasileira. In:

SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 25., 2009, Fortaleza. Anais do XXV Simpósio Nacional de

História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009, p. 6. 28 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no

Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 166.

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BIBLIOGRAFIA

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