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Cinema e história: elementos para um diálogo Roberto Abdala Junior é Mestre em Educação (UFMG) e Doutorando em História (UFMG).

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Cinema e história:elementos para um diálogo

Roberto Abdala Junior é Mestre em Educação (UFMG) e Doutorando em História (UFMG).

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Introdução

Às vezes, basta estar alerta, ter uma lúcidacompreensão da linguagem cinematográfica,para que todos os noticiários de tevê setransformem num interessante exercício dedecodificação. Podemos olhar, então, comnovos olhos, para as imagens que nosbombardeiam... Nossa habitual passividadepode dar lugar à observação, à curiosidade, aum olhar crítico. Uma atitude necessária,salutar e – sem dúvida, por essa mesma razão– permanentemente ameaçada.(Jean-Claude Carrière)1

Imagens vêm sendo criadas eempregadas pelos homens, nas mais diversasesferas da cultura, desde tempos imemoriais.Ao longo do tempo, novas técnicas deprodução e consumo de imagens foram criadaspermitindo que, no curso dos últimos séculos,elas tomassem características e significadossingulares, ao serem empregadas emprocessos que se tornavam mais sofisticadose diversificados. Um dos mais importantesdesses processos foi, certamente, o empregodas chamadas imagens-movimento naconstrução de narrativas, permitindo o

nascimento de uma nova linguagem. Umalinguagem – cinemáticas (?) - que floresceudevido ao empenho, engenhosidade etrabalho de profissionais ligados ao cinema, àtelevisão e, mais recentemente, ao vídeo e àinformática. Assim, ao longo do último século,as novas técnicas de construção de narrativasaudiovisuais floresceram e contribuíram paraque essas linguagens – especialmente acinematográfica e televisiva – passassem afazer parte do cotidiano contemporâneo.

Numa perspectiva mais pertinente aospropósitos do presente trabalho é precisosalientar que as inserções do cinema e depoisda televisão nas práticas culturais da sociedadeocidental instauraram novos regimes devisibilidade; recriaram estratégias narrativas;fundaram novos padrões de sociabilidade, deinteração e participação social; engendraramnovos padrões de tempo e espaço;configuraram uma esfera pública comcaracterísticas diversas daquelas existentes atéentão que, em decorrência disso, levaram asrelações entre a esfera pública e privada atransformarem-se. Nesse sentido, o cinema ea televisão, mais do que se fazerem presentesna história contemporânea, converteram-seem agentes sociais de importância decisiva nas

1 CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 61.

2 A afirmação se ancora, principalmente, em Baczko(BACZKO, Bronislaw. Los imaginarios sociales. BuenosAires: Nueva Visión, 2005) e Thompson (THOMPSON,John P. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia.Petrópolis: Vozes; 1998/2002. 4ª ed.) Nunca é demaislembrar que desde a vitória de John Kennedy sobreRichard Nixon nas eleições para presidência dos EstadosUnidos, muitos analistas têm atribuído um papel quasedemiurgo à televisão. No Brasil, por exemplo, a eleiçãodo ex-presidente Collor de Melo tem sido tributada àação da Rede Globo de Televisão. (Ver, entre outros,BOLAÑO, César. Mercado brasileiro de televisão, 40anos depois. In: BRITTO, Valério C. & BOLAÑO, CésarR. C. Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo:Paulus, 2005; p. 24)

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sociedades ocidentais, envolvendo-se naspráticas de construção da realidade,participando ativamente da configuração deidentidades individuais e coletivas, dosprocessos políticos, sociais, econômicos eculturais da história do último século.2

Além de registrar transformaçõesocorridas em quase todas as esferas da vidacontemporânea, o cinema e a televisãorefletiram e até mesmo interviram na formaçãodo imaginário coletivo das massas que secomprimiam nas metrópoles, em busca deentretenimento e identidade ao longo doséculo XX. 3 O cinema e a televisão tambémvisitaram o passado, criaram ou reescreverampersonagens, acontecimentos e processoshistóricos; enfim, instauraram “discursos sobrea história”. 4 Nesse contexto, os historiadoresnão puderam negar o significado das novaslinguagens e, como vinham fazendo outrospesquisadores, passaram a considerar e incluiro cinema e a televisão nas suas ponderações;5

reconhecendo reflexos provocados tanto naformulação do conhecimento histórico,6

quanto na construção dos discursos daHistória.7

A questão que instigou o trabalho queora apresentamos emergiu, portanto, de um

contexto no qual houve uma crescenteampliação e diversificação das técnicas deconstrução de narrativas, criando diversasreferências e múltiplos discursos audiovisuaissobre o passado. Assim, apresentamos umtrabalho cuja principal pretensão consiste embuscar o emprego de bens culturais que usama linguagem audiovisual 8 – cinema e televisão– nos processos de construção deconhecimentos históricos. Noutras palavras,pretendemos propor uma abordagem teóricaque venha assegurar o uso escolar – pois,pedagógico eles já possuem, como veremos– de filmes, telenovelas, etc. nos processosde ensino-aprendizagem da história.

O texto procura enfrentar tambémuma questão bastante importante no campoaudiovisual: como o uso corrente dalinguagem “cinematográfica” – pois estamosnos referindo ao cinema e a televisão – tendea convertê-la em “natural”, essa atitude temlevado seus códigos e estratégias a seremnegligenciados em muitas análises. Nessesentido, a linguagem cinematográfica é objetode nossa atenção, mesmo porque, além deter sido a pioneira nas realizações queempregam os recursos audiovisuais, elatambém serviu (e, em certa medida, ainda

3 Os argumentos de Sklar (SKLAR, Robert. HistóriaSocial do Cinema Americano. São Paulo: Cultrix, 1978),Meneguello (MENEGUELLO, Cristina. Poeira de estrelas:o cinema hollywoodiano na mídia brasileira das décadas de 40 e50. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996), Ortiz(ORTIZ, Renato. A moderna civilização brasileira: culturabrasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988),Pollack (POLLAK, Michael. Memória, esquecimento esilêncio. In: Estudos Históricos. São Paulo: Vértice; Revistados Tribunais, 1989; Associação de Pesquisa eDocumentação Histórica – CPDOC/FGV; pp. 3-15.) e,principalmente, Ferro em toda sua obra, entre muitosoutros e sob aspectos diferentes, corroboram asafirmações que tecemos.

4A definição é defendida por Marc Ferro em todasua obra. O historiador inscreve os filmes na categoriade discursos não autorizados sobre a história e, porisso, defende que sejam incorporados como fontehistórica. A defesa dos discursos audiovisuais comofontes está presente, especialmente, em Cinema e História,uma publicação que data de 1977 na sua primeira ediçãoem francês (FERRO, Marc. Cinema e História. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1992). Rosenstone, masrecentemente, chegou a propor que se pensasse naspossibilidades de “se escrever a história” por meio dalinguagem cinematográfica. A esse respeito consultar,especialmente, a introdução da obra El pasado en imágenes(ROSENSTONE, Robert. El pasado en imágenes: el desafíodel cine a nuestra idea de la historia. Barcelona: EditorialAriel; 1997).

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serve) como modelo às experimentaçõesnarrativas e estéticas, convertendo-se emobjeto de pesquisa e fonte para reflexõesteóricas que se fizeram e fazem nesse campo.

Assim, estaremos buscandoestabelecer bases teóricas que iluminemalgumas estratégias da linguagem audiovisualcomo premissa para avançarmos em nossasreflexões. Observe-se que formular umaestratégia de abordagem não significa, demodo algum, esgotar possibilidades. Nossohorizonte de expectativas é bem maisconcreto: fornecer uma ferramenta conceitualque permita o trabalho de apreensão de umbem cultural tão complexo como um filme ouuma novela nos processos de construção deconhecimentos históricos escolares. A esserespeito, importa enfatizar que oconhecimento da historia nacional e aconstrução da cidadania tem sido, cada vezmais, fruto de processos que se configuramfora dos espaços escolares – fato que ampliao significado das reflexões aqui desenvolvidas.

A nomenclatura, se importa menos naargumentação que se segue, não deixou derecorrer e buscar explicar termos e expressõescorrentes no campo do cinema. Umaobservação também importante é que, ao

contrário de uma tradição que tem seperpetuado, estaremos evitando analogiascom outras linguagens. Nosso argumento éque, se por um lado as linguagens podem sercomparadas, 9 por outro, cada uma delascarrega uma especificidade que,necessariamente, a distingue das demais demaneira radical. Nesse sentido é que nossaatenção se voltou, particularmente, para alinguagem cinematográfica, antecedida,propositalmente, pela epígrafe esclarecedorade um dos mais respeitados cineastas domundo e eminente professor de cinemafrancês. Enfim, pretendemos contribuir paraesclarecer algumas estratégias que umalinguagem baseada em imagens pode lançarmão para configurar uma narrativa queinterfere em processos históricos de todaordem. Assim, pretendemos tambémcontribuir para que, progressivamente, sejamdesvendados os processos e situaçõesanteriormente enumeradas, lançando outraluz sobre os fenômenos que se constituíramnos últimos tempos, forjados, sobretudo emimagens de um “real” – existente ou criado,é bom frisar – que tem participado, de formacrescente, na configuração da sociedadecontemporânea.

5 Segundo Peter Burke observa, “já em 1916 foipublicado um livro na Inglaterra com o título A câmeracomo historiadora.” (BURKE, Peter. Testemunha Ocular: históriae imagem. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004; p.199)

6 Estamos nos referindo principalmente aostrabalhos de Ferro (op.cit.1992) e Nora (NORA, Pierre.O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre.História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1995, pp. 179-193.), entre outros.

7 O historiador Peter Burke chegou a afirmar que“Se os historiadores estão procurando modelos denarrativas... podem muito bem ser aconselhados a voltarà ficção do século vinte incluindo o cinema...” (BURKE,Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:UNESP,1992; p. 347). Mais contundente, entretanto, éLeGoff quando afirma: “Penso que a escrita dohistoriador está mais próxima da montagem de um filmedo que, por exemplo, da narrativa de um romancista.”(LEGOFF, Jacques. Uma vida para a história. São Pulo:Unesp, 1997; p.62)

8 A denominação audiovisual se refere àquelalinguagem que, historicamente, foi empregadainicialmente pelo cinema e mais tarde veio a ser tratada,de forma diferenciada, pela televisão e pela internet.

9 Outras analogias podem ainda ser enumeradas, taiscomo: as linguagens pretendem comunicar, se valemde códigos socialmente compartilhados; exigem orecurso a um tipo de suporte, demandam oconhecimento de técnicas, de processos de realização;submetem-se ainda a limitações em relação à realidadeque pretendem representar, às restrições técnicasoferecidas pelo meio, etc.

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O cinema e sua linguagem:considerações preliminares

Um filme é, antes de tudo, imagens e imagensde algo. (Jean Mitry) 10

Atendendo a pretensão de formularuma ferramenta teórica para abordar bensculturais que empregam linguagemcinematográfica, nossa argumentação seancorou em tradições acadêmicas distintas: aHistória Cultural, segundo as reflexões deRoger Chartier11 e a Psicologia Sociocultural,conforme James Wertsch12 a concebe, alémdas teorias do cinema. Apesar da diversidade,os quadros teóricos dessas disciplinas, elas nosoferecem algumas referências para refletirmossobre a linguagem audiovisual que mais asaproximam que distanciam. Uma das maisimportantes conclusões que é possívelapreender, depois de uma leitura atenta dasobras destes autores, é que a análiselinguagem cinematográfica não pode estararraigada numa compreensão isolada doselementos que a compõem. Noutras palavras,os diversos elementos que a compõem só têmsentido quando considerados no conjunto, nomomento em que todos entram na

construção do bem cultural que se buscaanalisar, pois todos os elementos, de umamaneira ou de outra, entram na configuraçãodos significados que a linguagem pretendeconstruir.

Há também um consenso de que alinguagem cinematográfica13 é mais fácil de sercompreendida do que as demais linguagensque povoam a cultura. Mas se assim é, asestratégias de construção da narrativa e assignificações atribuídas ao mundo nos filmesdevem ser esclarecidas, pois, como qualqueroutra linguagem, a cinematográfica tambémexige um exercício para que os processos desua elaboração possam ser, mesmo que muitoparcialmente, desvendados (MITRY, 1989).Jean Mitry é categórico em afirmar:

Resulta evidente que um filme é uma coisamuito distinta de um sistema de signos esímbolos. Ao menos, no que se apresentacomo somente isso. Um filme é, antes detudo, imagens e imagens de algo. É umsistema de imagens que tem por objetivodescrever, desenvolver, narrar umacontecimento ou uma sucessão deacontecimentos qualquer. (MITRY, 1989, VolI, p. 52; tradução e grifo nossos).

10 MITRY, Jean. Estética y psicología del cine. Madri: SigloXXI de Espanha Editores, S/A, 1989. Volume I e II.

11 CHARTIER, Roger. A história cultural: Entrepráticas e representações. São Paulo: Difel, 1989.

12 WERTSCH, James V. Voces de la mente. Madrid:Visor Distribuciones S/A, 1993; ___ Vygotsky y laformación social de la mente. Barcelona: Ediciones PaidósIberica S/A, 1988; ___ V. Voices of Collective Remembering.Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

13 Ou pelo menos é isso que se depreende, aofazermos uma leitura sobre a vasta literatura sobre ocinema: apresenta-se um panorama marcado por umaabstenção quase absoluta sobre aspectos importantes dalinguagem. Se no campo da comunicação e da literaturatal postura seria previsível, apesar de não indicada,considerando publicações que pretenderam desvendara linguagem, como os trabalhos de Metz, Barthes e Ecoentre os mais citados e pesquisados, além daqueles queterão suas idéias aqui exploradas.

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A questão consiste, pois, emreconhecer artimanhas e estratégias quepermitem às imagens empregadas em um filme“descreverem, desenvolverem, narraremacontecimentos”. As inúmeras estratégias quea l inguagem cinematográfica permite,merecem, portanto, uma atenção mais detida.Veremos que muitas delas podem seresclarecidas e apreendidas recorrendo-se àsproposições do pensador russo Mikhail Bakhtin.Entretanto, este exercício exige algunsesclarecimentos básicos sobre a linguagemcinematográfica.

Elementos básicosda linguagem cinematográfica

A linguagem cinematográfica éresultado da composição ou consiste doemprego orquestrado de muitas outraslinguagens. No filme, todas essas linguagensestão imbricadas, numa composição complexa,de empregos diversificados de cada uma delas.Assim, as análises realizadas sobre o cinemaestão, muitas vezes, vinculadas a uma dessaslinguagens, raramente procurando lidar comtodos os seus elementos. As abordagens, emgeral, estão circunscritas ou privilegiam umdesses elementos, tratando de forma

periférica os demais, evitando lidar com oresultado da imbricação que a transforma emuma nova linguagem. Não raro, tais análisesdeixam escapar o componente especifico quecaracteriza o fazer cinematográfico: omovimento.

Uma abordagem da l inguagemcinematográfica – composta por tantoselementos – num contexto conceitual tãofragmentário como o contemporâneo nãopoderia ser de outra forma. Mas, se assim é,para os objetivos deste trabalho, nos voltamospara uma abordagem que privilegie o resultadofinal da composição desses elementos, quandoempregados na construção de um discursocinematográfico e considerados na imbricaçãoque lhe é conferida no filme. Assim, otratamento que daremos a cada um desseselementos pretende, não aprofundar suacompreensão, mas antes esclarecer ascaracterísticas básicas de cada um, naarticulação com que compõem com os outros.Nessa medida, estaremos inicialmente lidandocom cada um deles separadamente,procurando relacioná-los entre si.

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TextosOs textos, escritos ou recitados

apresentados nos filmes são frutos de umaescolha e/ou obedecem a uma funçãonarrativa: os prólogos nos inserem nocontexto em que se desenrola a trama, comona literatura. Letreiros, placas, cartazes, cartas,são elementos que contribuem para aestruturação do fi lme ou podem estarrelacionadas com outros discursoscontemporâneos a ele ou ainda com outroselementos que entram construção danarrativa. Remetem-nos à própria narrativafílmica e/ou a significados que a culturaconsolidou no imaginário social com os quaisos realizadores pretendem “dialogar”. 14

A análise pode voltar-se para oemprego que foi dado aos textos no filme,pois constituem elementos problematizadoresmais evidentes – quando não obedecemsomente a uma função narrativa – por seremexpressos numa linguagem menos ambíguaque as demais utilizadas pelo cinema. Ostextos, em geral, expressam relaçõespropostas pelos realizadores com os discursosde seu tempo e/ou seu horizonte conceitual(ideológico) frente ao tema abordado pelofilme; apresentam uma apreciação acerca do

tema, podendo ser considerados comoexpressão do ponto de vista dos realizadores.

SomO som tem sido empregado nos filmes

com intenções bastante conhecidas, comoprovocar uma emoção no público –recorrendo às trilhas sonoras, por exemplo. Oseu emprego, quando simula sons da realidade– passos, trote de cavalos, ranger de portas,choros, gritos – “vai no sentido do reforço edo aumento dos efeitos de real.”15 Mas, o somtambém pode ter a função de promover aimbricação de dois planos e/ou seqüências16

diferentes que se articulam ao compor anarrativa, assegurando o entendimento doespectador, daquilo que é chamado dediegese17 fílmica. O dispositivo é muitoempregado nos processos narrativos do filme,ao se referir ao par romântico ou para sugerira concomitância de dois acontecimentosdistintos ao longo da película. O som podeainda ser um artifício que pretende atribuirum significado diferenciado ao realapresentado na tela. Assim, os recursossonoros podem ser empregados também como fito de se contrapor a uma emoção que odiscurso imagético provoca.

14 A palavra se refere ao conceito central de Bakhtincom o qual estaremos lidando a seguir.

15 AUMONT, Jacques et. all. A estética do filme.Campinas: Papirus, 1995; p. 48.

16 Segundo a definição de “seqüência” propostapor Aumont: “o cinema utilizou a colocação de muitasimagens “em seqüência” com fins narrativos.”(AUMONT, 1995, p. 63), ampliando a explicação anteriorde “plano-sequência”, pela qual se designa “um plano[que corresponde a uma parte da filmagem “sem corte”– com cortes unicamente técnicos, não observáveis naexibição] longo o suficiente para conter o equivalentefactual de uma seqüência (isto é, de um encadeamento,de uma série, de vários acontecimentos distintos).”(Idem,p. 41).

17 Para Aumont “A diegese seria, assim, a históriatomada na plástica da leitura, com suas falsas pistas, suasdilatações temporárias, ou, ao contrário, seusdesmoronamentos imaginários, com seusdesmembramentos e remembramentos passageiros,antes de se congelar em uma história que posso contardo começo ao fim de maneira lógica.” (AUMONT, 1995,p. 115).

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Ao observarmos no filme que o som sepresta a um emprego diferenciado ou queobedece a finalidades outras que não a dereforço dos efeitos de real, seja a intençãode estimular emoções ou relaciona-se àsimagens apresentadas na tela – acentuando-as ou confrontando-as – há uma indicação deque a atenção dos realizadores voltou-se parauma cena em especial e que ela deve ter umaoutra finalidade e/ou significado na construçãodo discurso ou uma função narrativaimportante.

Imagem e a diegese fílmicaA construção imagética é, sem dúvida,

o recurso cinematográfico mais importante naconstituição do discurso cinematográfico – ofilme. A imagem-movimento do cinema temo poder de “materializar” uma realidade paraa percepção da assistência. O elementoimagético em movimento é, sem dúvida, amatéria-prima principal18 a que os realizadoresrecorrem para construírem suas narrativas eelaborarem seus filmes; constitui, enfim, ofundamento da linguagem.

As imagens-movimento realizam, commais eficácia, a “impressão de realidade” quecaracteriza o cinema, sugerindo que foram

capturadas diretamente do acontecimento,do real. Vejamos cada uma destes elementosimagéticos, lembrando que ao figurarem napelícula eles são imbricados, configurando-senaquilo que denominamos l inguagemcinematográfica.

A “impressão de realidade” é herdadada idéia (errônea é verdade) de que afotografia captura a realidade, por ser umregistro “mecânico” do real. Sabemos que essenão é o caso; mesmo a fotografia jornalísticacarrega um ponto de vista do fotógrafo, temuma intencionalidade imbuída na sua realização,fato que nos impede de a considerarmosassim.

Além disso, no caso do cinema,estamos nos referindo à imagem fotográficaprojetada na tela a 24 ou 26 quadros porsegundos, provocando uma impressãoperceptiva de movimento que, certamente,não deve ser confundida com a fotografia.Edgar Morin, comparando a imagemcinematográfica à fotográfica, nos oferece umargumento contra o qual não parece haverpossibilidade de permanecer qualquer dúvidaquanto à diferença:

A projeção do movimento restitui aos serese às coisas a sua mobilidade física e biológica.

18 A esse respeito consultar: ANDREW, J. Dudley. Asprincipais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1989.

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... O movimento é a força decisiva darealidade: é nele e através dele que o tempoe o espaço são reais. ... O movimentorestitui-nos a corporalidade e a vida que afotografia congelara. Traz consigo umairresistível sensação de realidade.19

A afirmação de Morin, além deesclarecer a diferença entre a imagemfotográfica e cinematográfica, lança luz sobrea outra questão: o “registro” doacontecimento no filme, ao “trazer umairresistível sensação de realidade”, torna quaseincontestável a “realidade” apresentada emimagens pelo discurso cinematográfico,“naturalizando-o” para a assistência. Suasobservações tornam patente a importância defazer que esse seja um dos focos principaisdas análises de filmes de ficção, mas tambémde documentários e cinejornais: desconstruira impressão de realidade que os filmespretendem instaurar na sua relação com opúblico – “dispositivo” que, enfim, caracterizaessa relação. Segundo Aumont, a impressãode realidade é resultado da riqueza perceptivatípica do cinema que se deve

... igualmente à presença simultânea daimagem e do som ... dando assim aimpressão de que o conjunto de dados

perspectivos da cena original foi respeitado.A impressão é muito mais forte quando areprodução sonora tem a mesma “fidelidadefenomenal” que o movimento. ... ela é maisreforçada pela posição psíquica na qual oespectador se encontra no momento daprojeção. ... definida por dois de seusaspectos. Por um lado, o espectador passapor uma baixa de seu limiar de vigilância;consciente de estar em uma sala deespetáculo, suspende qualquer ação erenuncia parcialmente a qualquer prova derealidade. Por outro lado, o f i lmebombardeia-o com impressões visuais esonoras. (AUMONT, 1995, p. 150)

A fruição do filme sugere, então, queele é um “registro” da realidade: como se arealidade estivesse sendo “capturada” eapresentada, como ela é. Não podemos nosesquecer de que a intenção dos realizadoresé, exatamente, a de conceber um simulacrotão fiel ao real que o processo derepresentação seja imperceptível aoespectador, 20 assegurando, de um lado, afruição do filme, e de outro, evitando odistanciamento objetivo da assistência.

Uma atitude diferente daquelatacitamente pactuada entre os realizadores e

19 MORIN, Edgar. O cinema e o homem imaginário. Lisboa:Moraes Editores, 1970, p. 141, 142, 155.

20 Segundo Aumont, essa tendência tem sidocriticada, a partir da década de 1970, mas isso não fezque a maioria dos filmes deixasse de se pautar por ela.AUMONT, Jacques et. all. A estética do filme. Campinas:Papirus, 1995, p. 151.

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os expectadores de filmes (e que pode serestimulada pelo professor) levaria o público ater um olhar mais crítico sobre o discursocinematográfico, desvendando aintencionalidade que matizou sua realização.Se o processo de assistir ao filme faz oespectador reduzir naturalmente a crítica paraassegurar a fruição da narrativa, como sugereAumont, a leitura crít ica do discursocinematográfico, entretanto, não deveobedecer às determinações impostas pelaprodução. Nesse sentido, seria proveitosogeneralizarmos o argumento de Chartier(1989) e considerar a “leitura” ou“apropriação” 21 do filme como uma outraprodução, pois as significações não sãopermanentes, mas construídas pelas leiturashistóricas concretas que sujeitos e agentessociais realizam dos bens culturais.

Nesse contexto, as idéias de Bakhtintornam-se essenciais, pois sugerem umasolução – sempre parcial e limitada – para oimpasse com o qual nos deparamos: comoempregar ou apreender um bem cultural cujossignificados são, além de fugazes, marcadospela descontinuidade que caracteriza a própriahistória? Vejamos então, mesmo quesumariamente, as teses desse pensador russo

e consideremos as possibilidades que elasparecem abrir à uma análise. 22

Bakhtin, discursos e diálogosem contextos definidos

As teses de um pensador não devemser resumidas de maneira tão esquemática,sob o risco de que os deslizes que certamenteocorrerão, venham a ser comprometedores.No entanto, torna-se essencial sumariar algunsdos mais importantes conceitos bakhtinianospara darmos continuidade as nossas reflexõese lançarmos luz à operacionalidade teórica emetodológica de suas teses. 23 Na nossaargumentação esperamos demonstrar que asteses de Bakhtin abrem uma possibilidade desurpreender os sujeitos (e/ou agentes sociais)no momento em que realizam,concretamente, a atribuição de significadosao real, permitindo a análise do horizonteconceitual (ideológico) e o sentido históricoque pretenderam conferir aos discursos que“apreendem e estruturam” esse mesmo real,em contextos socioculturais definidos. Vamosentão a esses conceitos centrais proposto porBakhtin, com o cuidado de observar comoseus argumentos têm um carátersubstancialmente dialético. 24

21 Aqui poderíamos considerar o termo“apropriação” empregado por Certeau que segundoChartier “visa uma história social dos usos e dasinterpretações, referidas a suas determinaçõesfundamentais e inscritas nas práticas específicas que asproduzem.” (CHARTIER, Roger. O Mundo comorepresentação. In: Estudos Avançados 11 (5) 1991; 173 –191; p. 180)

22 Vale lembrar que Sahlins também recorre ásreflexões de Bakhtin para argumentar sobre sua visãoantropológica (SAHLINS, Marshall David. História e cultura:apologias a Tucídides. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2006).

23 Valer conferir os argumentos e procedimentospropostos por Bakhtin e compararmos com aquelespropostos por Koselleck, mesmo reconhecendo adiversidade dos campos de conhecimento e objetos aque ambos se dedicaram. (KOSELLECK, Reinhart. Umahistória dos conceitos: problemas teóricos e práticos.Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p.134-146).

24 Lembrando as observações de historiadores dosconceitos, considere-se que Bakhtin formou-se no calorda Revolução Russa de 1917 e esteve, portanto,submetido às importantes influências do contextosociocultural e histórico da época que também matizoua formação de pensadores inovadores como Vygotskye Eisenstein.

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O pensador russo caracteriza todos osdiscursos como dialógicos. O conceito dedialogismo é central nas proposições do autorporque é ele que converte o foco da análisedos discursos para o enunciado. A partir dapremissa de que o significado do discursosomente pode ser apreendido no contextode enunciação, Bakhtin reflete sobre a açãode enunciação, pretendendo esclarecer asrelações que se estabelecem entre texto econtexto, e afirma:

Um sentido definido único, uma significaçãounitária, é uma propriedade que pertence acada enunciação como um todo. Conclui-seque é determinado não só pelas formaslingüísticas que entram na composição (aspalavras, as formas morfológicas ousintáticas, os sons, as entonações), masigualmente pelos elementos não verbais dasituação. 25

Sob a ótica bakhtiniana, portanto, ocontexto de enunciação modela ossignificados dos discursos. No entanto, salientaBakhtin, é preciso reconhecer que acomposição dos contextos de enunciação nãose restringe somente aos elementos verbais,mas, igualmente, aos

elementos não verbais da situação. Assim,a análise bakhtiniana do significado dodiscurso retorna ao contexto, pois a açãode enunciação não ocorre em situaçõesideais, mas, ao contrário, em contextossocioculturais e históricos concretos nosquais circulam outros discursos – que podemrecorrer a outras linguagens – sujeitos,idéias. Nessa perspectiva, Bakhtin definedois contextos discursivos diferentes nosquais se realizam os “diálogos”: um maiscomplexo e amplo, da “comunicação cultural”– dos discursos científicos, artísticos,políticos, etc. – e outro, mais concreto, comos quais dialoga mais imediatamente – ocontexto dos interlocutores do grupo oumeio. 26

O autor, além de voltar o foco de suaanálise para o contexto, também argumentaque os discursos apresentam duas formas deapreciação: a entonação expressiva e a voz.Mas, a apreciação mais significativa, aquela queé própria de cada discurso é a “voz”. A vozbakhtiniana do discurso expressa um juízo devalor do autor, seu horizonte conceitual (sócio-ideológico). A essa apreciação do mundo etomada de posição frente aos múltiplos

25 Bakhtin emprega o conceito “tema” para se referirao significado de uma enunciação historicamentesituado, mas como a abordagem historiográfica vem sedefinindo como um elemento fundamental para analisarobras culturais, preferimos evitar o emprego de maisum conceito, mantendo o termo enunciação.(BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia dalinguagem. São Paulo: Hucitec, 1997, p.128)

26 BAKHTIN, Mikhail. Gêneros do discurso. In:Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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discursos de uma época é que Bakhtindenomina “voz”.27

Segundo Bakhtin, a voz do discurso seconstitui e está articulada ao seu contextode enunciação na medida em que formula uma“reação responsiva” aos outros discursos,enunciados e/ou supostos, com os quais entraem diálogo nesse contexto. A esse processode reação responsiva e recíproca entre osdiscursos Wertsch denominou “interanimaçãodialógica das vozes dos discursos” ousimplesmente, “interanimação dialógica”.

Assim, um discurso representa umaescolha, uma tomada de posição do autor,frente aos múltiplos discursos que pretendemapreender a realidade de uma época, com osquais está em interanimação dialógica. Aenunciação deve ser analisada considerando-se o contexto sociocultural determinado –saturado de elementos não verbais com osquais também dialoga. Assim, podemosconsiderar que nos contextos dialógicos amplosou restritos, verbais e não verbais da situaçãode enunciação, os discursos pretendempromover uma reação responsiva em seusinterlocutores.

As reflexões de Bakhtin, entretanto,tiveram a literatura como foco privilegiado ou

seja, o autor se refere a um texto escrito.Nesse contexto torna-se fundamental parauma abordagem do cinema, entender comoa linguagem cinematográfica atribui umdeterminado significado à realidade. Assim,faremos uma investida em teorias que lidamcom o cinema e buscam apreender asestratégias que são próprias de sua linguagem,para cotejá-las com as consideraçõesbakhtinianas.

As teorias do cinemaAs teorias que versam sobre o cinema

baseiam-se em premissas diversas,dependendo da formação do pensador queas formulou e/ou do enfoque que foiprivilegiado na análise e assim, é precisoreconhecer que “Não pode haver uma teoriado cinema, mas, ao contrário, algumas teoriasdo cinema.” (AUMONT, 1995, p.15). Além deteóricos específicos de cinema, muitos outrospensadores buscaram analisar e reconheceras estratégias utilizadas em filmes, porcineastas e/ou escolas de cinema. Nãoobstante reconhecermos a diversidade deproposições acerca do tema, nossas reflexõesse pautam, principalmente, em duas obras:Estética y psicología del cine (MITRY, 1989),

27 BAKHTIN, Mikhail. O discurso no romance. In:Questões de literatura e de estética. São Paulo: Unesp / Hucitec,1998, p. 106.

AUMONT, Jacques et. all. A estética do filme. Campinas:Papirus, 1995

MITRY, Jean. Estética y psicología del cine. Madri: SigloXXI de Espanha Editores, S/A, 1989. Volume I e II.

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por discutir e procurar articular as principaisteorias dos primeiros cinqüenta anos docinema e A estética do filme (AUMONT, 1995),por ser uma obra composta por pensadoresmais contemporâneos – especialistas que sepropuseram a estudar a l inguagemcinematográfica e seus “dispositivos”. Nossaexposição acerca dessas teorias se faz à luzdas teses de Bakhtin porque, segundo RobertStam,28 “sua contribuição para oenriquecimento do campo dos estudoscinematográficos é imensa”, apontando umamaneira de “transcender algumas dasinsuficiências percebidas em outrosenquadramentos teóricos”.

As idéias de Jean Mitry nos ajudam aesclarecem algumas das regras que devem serobedecidas para uma construção eficaz dodiscurso cinematográfico e desvendamalgumas das relações que a linguagemcinematográfica estabelece com o real. Mitryconsidera que a linguagem cinematográfica éprincipalmente imagética, constituída porelementos que o cineasta capta no mundo eprojeta na tela. Por isso, “O cinema, aocontrário, [da l iteratura] passaconstantemente do concreto ao abstrato.Oferece diretamente seu objeto, quer dizer,

a representação concreta do mundo e dascoisas. Logo se serve desses dados imediatoscomo instrumentos de mediação.” (MITRY,1989, Vol I, p. 166, tradução nossa).

O argumento de Mitry esclarece queum filme não precisa recorrer,obrigatoriamente, a códigos de signosconvencionalizados que traduzem uma língua,para se expressar. Um filme não exigeconhecimento prévio de um código lingüísticopara se fazer compreender, pois recorre aoscódigos de percepção e apreensão do mundoda experiência e, daí, oferece dados imediatos– apresenta o mundo em imagens. A(re)apresentação cinematográfica do mundocarrega muito de seus significados, ou seja,podemos considerar que, em linhas gerais, nocinema “a significação e o significado são amesma coisa”, já que a representação seidentifica com a coisa representada” (MITRY,1989, Vol I, p. 132 ss, tradução nossa).

Mas, se Mitry considera que o cinemarecorre aos códigos de leitura culturalmenteestabelecidos por uma sociedade, Aumontargumenta que:

apenas o fato de representar, de mostrarum objeto de forma que ele sejareconhecido, é um ato de ostentação ...28 STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de

massa. São Paulo: Ática, 1992.

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[ou seja, indica que] se quer dizer algo apropósito desse objeto ... deixatransparecer a ostentação e a vontade defazer com que o objeto signifique algo alémde sua simples representação. [Assim,]qualquer objeto já é um discurso em si. [epode então ser considerado] uma amostrasocial que, por sua condição, torna-se uminiciador de discurso, de ficção, pois tendea recriar em torno dele (mais exatamente,aquele que o vê tende a recriar) o universosocial ao qual pertence. (AUMONT, 1995,p. 90; grifo nosso).

A linguagem cinematográfica não pode,portanto, ser considerada como um simplesexercício de apreensão mecânica do real ouum processo de “captação” da realidadeconcreta. Apesar de empregar as imagensoferecidas por uma realidade concreta (dadaou criada), o cinema realiza uma apreciaçãosobre ela. A linguagem cinematográfica atribuià realidade um sentido diferenciado daqueleque está vinculado ao universo social na qualela – realidade existe concretamente. Importaobservar que essas reflexões nos remetem aum “mundo como representação” – expressãotão cara ao historiador Roger Chartier – e àsdificuldades de todas as formas de construção

dos discursos que pretendem apreender eexpressar esse mundo – desde a literatura,passando pela pintura, escultura e fotografia,chegando ao cinema e a televisão.

As imagens cinematográficas podemser consideradas, portanto, signos de umarealidade que traduzem os significados do realcomo as palavras. Mas, se os significados dosdiscursos somente podem ser compreendidosno seu contexto de enunciação, como afirmaBakhtin, qual seria então a estratégia paraapreender os significados das imagens em umfilme? As palavras de Mitry podem nos orientara esse respeito:

Toda imagem fílmica possui necessariamenteas estruturas das coisas que reproduz. Mas,como essas coisas se organizam num quadro,a imagem fílmica não pode ser inorgânica,impessoal. Por si mesmo, o quadro(necessariamente eleito pelo cineasta) cria,entre as coisas que apresenta, um conjuntode relações precisas inferidas de sua própriaexistência. Converte-se, pois, num fatordeterminante cuja importância e significaçãoteremos que estudar. (MITRY, 1989, Vol I,p. 167, tradução e grifo nosso).

O significado que as imagens do mundoadquirem no cinema resulta, segundo Mitry,

AUMONT, Jacques et. all. A estética do filme. Campinas:Papirus, 1995

MITRY, Jean. Estética y psicología del cine. Madri: SigloXXI de Espanha Editores, S/A, 1989. Volume I e II.

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das relações estabelecidas entre essas mesmasimagens. Ao serem escolhidas para figuraremno fi lme, recebem um enquadramento(estético)29 atribuído pelos realizadores. Oenquadramento atribuído às imagens domundo da experiência pelas escolhas dosrealizadores revela apenas um aspecto dessemundo, evidencia algo que pode nos escaparna realidade concreta. As imagenscorrespondem a uma apreciação, ao um juízo,ao ponto de vista do outro (dos realizadores)e à sua compreensão das coisas do mundo,dos processos socioculturais e históricos queconstroem as relações nesse mesmo mundo.

Nesse sentido, pode-se considerar quea imagem captada pela câmera converte-seem representação. Assim, um mesmo objeto,um mesmo fato pode adquirir tantossignificados quanto os contextos nos quaisestão inseridas as suas imagens. O argumentode Mitry sobre o significado das imagens nosremete, portanto, às teses de Bakhtin. Aoconsiderar que a imagem fílmica carrega ossignificados que foram atribuídos a realidadepela cultura, mas um significado que estáarticulado ao contexto no qual ela éempregada, relaciona-se às outras imagensapresentadas no filme como afirma Mitry

(MITRY, 1989), então elas se configuramcomo uma apreciação conferida pelosrealizadores às imagens concretas encontradasno mundo.

As imagens escolhidas pelosrealizadores, segundo esse argumento,tornam-se signos ao passarem a figurar no filmee os significados que elas tomam no discursocinematográfico devem ser reconhecidos, nãoas tomando isoladamente, mas no contextoem que foram empregadas. Assim, as imagensfílmicas configuram-se como elementosdecisivos para reconhecermos uma entonaçãoe/ou uma voz bakhtiniana expressa pelosrealizadores, dependendo da maneira pela qualelas estão sendo empregadas.

Os argumentos que tecemos a seguirdevem ser tomados mais como diretrizesanalíticas do que como definições, pois comojá afirmamos anteriormente, um filme é uma“obra aberta”. No entanto, ao arriscarmosalgumas conjecturas, poderíamos dizer que,em geral, ao se tratar apenas da(s) imagem(s)de elementos mais materiais do cenário, oenquadramento atribuído pelos realizadorestende a corresponder às “entonaçõesexpressivas”.

As imagens fílmicas, entretanto, nãosão estáticas – são imagens-movimento que

29 Segundo Andrew (ANDREW, J. Dudley. As principaisteorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor, 1989).

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constituem seus significados em um contextode enunciação também em movimento. Osrealizadores podem recorrer a imagens-movimento mais prolongadas – os “planos-seqüências” ou as “seqüências” –dependendo da necessidade de coerência,coesão, inteligibi l idade exigida para aconstrução do discurso cinematográfico. Nessesentido, é possível considerar que umaseqüência de imagens que pretendem narraro desenrolar de acontecimentos e/ou no qualfiguram construções culturais mais elaboradas–– tendem a expressar as “vozes” bakhtinianasdos realizadores: o seu horizonte conceitual(ideológico). Assim, nas “seqüências” e/ou nos“planos-seqüências” podemos apreender, demaneira mais segura, as vozes dos realizadores– apreendendo os significados que receberamao entrarem na composição do filme.

Uma estratégia para apropriaçãode filmes nas aulas

Uma premissa fundamental que deveser evidenciada em nossa argumentação serefere às teses de S. L. Vygotsky. O pensadorrusso que se debruçou sobre a psicologia daaprendizagem e cujas reflexões têmrevolucionado as formas de se conceber os

processos de construção de conhecimento,tem uma compreensão semiótica da cultura– de resto, compartilhada com Bakhtin, Geertze Chartier. A partir dessa idéia central, aspesquisas que ele realizou (que muitosconsideram como sendo complementares àsde Piaget) demonstram que os processos deensino-aprendizagem resultam de avançoscognitivos30 que os homens realizam.Ancorado nessas considerações e empesquisas empíricas, Vygotsky defende que aaprendizagem depende fundamentalmentede dois processos: a resolução de problemase as interações sociais (ou intersubjetivas) –que ocorrem em contextos socioculturais ehistóricos definidos.

Vygotsky argumenta que o processoque permite aos homens realizarem os avançoscognitivos que constituem a aprendizagem,somente ocorre porque eles, diferentementedos outros animais, são capazes de empregar“mediadores semióticos” (aqui chamados“ferramentas culturais”) e explica

A invenção e o uso de signos como meiosauxiliares para solucionar um dado problemapsicológico (lembrar, comparar coisas,relatar, escolher, etc.) é análoga à invençãoe uso de instrumentos, só que agora no

VYGOTSKY, Lev Semyonovich. A formação social damente. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

30 Estamos nos referindo ao conceito cunhado porVygotsky de Zona de Desenvolvimento Proximal – ZDP.

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campo psicológico. O signo age como uminstrumento da atividade psicológica demaneira análoga ao papel de um instrumentono trabalho. (VYGOTSKY, p.70)

Nesta pequena citação o pesquisadorrusso já oferece estratégias para o trabalhodo professor. Uma delas seria a formulação deproblemas para serem solucionados pelosalunos. Outra estratégia de ação é empregaros filmes como instrumentos mediadores paraque se configurem representações sobre opassado – empregando elementos imagéticos,mas também discursivos, sociais, políticos eeconômicos ocorridos nas disputas queconfiguraram o contexto histórico da época.A questão é como fazê-lo, explorando oselementos do discurso cinematográfico naescola. As reflexões de James Wertschcontribuem para encontrarmos uma respostapara a questão.

Os trabalhos de Wertschdemonstraram que muitas aproximaçõespodem ser encontradas entre as teses deVygotsky e Bakhtin. Nesse sentido, suasreflexões asseguram o emprego de muitosconceitos bakhtinianos de forma articulada aosargumentos de Vygotsky. Nos seus trabalhose pesquisas sobre os processos de ensino-

aprendizagem Wertsch enfatiza que a inserçãode uma nova “ferramenta cultural” nosprocessos cognitivos humanos o transformade maneira essencial, tal como um novoinstrumento transforma um processo detrabalho. 31

Ancorados nos argumentos dessesautores podemos afirmar então que um filme– tomado como discurso cinematográfico –pode ser considerado como “ferramentacultural”. Nesse sentido o filme – seja eleexibido no cinema ou apresentado numa salade aula – pode cumprir uma função cognitivadecisiva: de elemento auxiliar na construçãode conhecimentos. No entanto, numa salade aula o filme pode ter um desempenhodiferente no processo de ensino-aprendizagem, pois os significados dos discursossão modelados pelos contextos socioculturaise históricos. As teses bakhtinianas têm,novamente, um papel decisivo, na medida emque nos fornecem elementos paraapreendermos os processos de construção deconhecimentos que vão ser engendrados emsala de aula. Apliquemos, pois, às tesesbakhtinianas.

Inicialmente é preciso considerar osdiscursos como “dialógicos”, situação que exige

31 WERTSCH, James V. Estudos Socioculturais da Mente.In: Pablo del Rio, Amelia Alvares. Porto Alegre: ArtMed,1998, p. 29.

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um levantamento apurado e a compreensãodo contexto sociocultural e histórico da “ação”de enunciação/exibição do filme. Observamosainda que a idéia de “dialogismo”32 aplicado aum bem cultural nos leva a reconhecer queuma obra é construída com a finalidade deestabelecer “diálogos”. Nesses diálogos, filmese/outros bens culturais têm um caráter retórico(que talvez seja melhor considerar“pedagógico”, suavizando o termo) eprovocam sempre uma “reação responsiva” emseu público. Assim, considerando essesargumentos, seria possível apontar algumaschaves para a apropriação de um filme empelo menos dois contextos diferentes: oshistóricos – relacionados a suas época deprodução – e os escolares.

A aplicação articulada das proposiçõescom as quais lidamos até aqui nos permiteconsiderar que as representações às quais osrealizadores recorrem para constituírem seusfilmes são resultado de múltiplos diálogos,travados com os discursos da “comunicaçãocultural” de um dado contexto histórico eexpressam uma tomada de posição frente aeles. Os discursos realizados em linguagemcinematográfica – os filmes – podem sertomados como quaisquer outros discursos33

e, nesse sentido, o conhecimento dasestratégias narrativas do cinema contribui, demaneira decisiva para a realização de uma

abordagem dos discursos cinematográficos.Assim, inicialmente, seria interessante observaras iniciativas deliberadas dos realizadores: tantode estabelecerem diálogos e responderem aosdiscursos da “comunicação cultural” de suaépoca; como a posição de omitirem outrosdiscursos e argumentos, ancorados nodispositivo que é próprio do cinema, ou seja,no fato de o interlocutor não ter “voz”, a nãoser de forma privada.

A idéia do cinema como um fenômenocultural de massa é decisivo nessa análise, umavez que a “voz” dos realizadores pode ser aúnica que se faz ouvir na esfera pública, pelomenos no contexto de enunciação no qual ofilme foi exibido (ou mesmo numa aula na qualoutros discursos dissonantes sobre o mesmotema não tenham sido oferecidos ao público/estudantes). Também aqui encontramos umaabertura para que se possa inserir umelemento analítico, seja ele um discursodiferente daquele oferecido pelos realizadores,seja uma questão que enfatize as intençõese posições destes.

Nosso argumento é que as teses dopensador Mikhail Bakhtin articuladas às deVygotsky oferecem uma ferramenta teóricaque pode ser empregada em dois processosdiferentes: a) nas possibilidades de interaçãoentre o público e a obra cinematográfica; b)na leitura/apreensão da diegese fílmica,

32 Estamos empregando o conceito de dialogismocomo sugere o argumento de Stam: “Bakhtin,caracteristicamente, estende o sentido de interaçãoverbal, que é apenas outra denominação para “diálogo”,no sentido primário do discurso entre duas pessoas aoutros domínios até mesmo metafóricos. Essaconcepção ampla de dialogismo, considerada como omodo característico de um universo marcado pelaheteroglossia, oferece inúmeras implicações para osestudos sobre cultura. A concepção de“intertextualidade” (versão de “dialogismo”, segundoJulia Kristeva) permite-nos ver todo texto artístico, mastambém com seu público. Esse conceitomultidimensional e interdisciplinar do dialogismo, seaplicado a um fenômeno cultural como um filme, porexemplo, referir-se-ia não apenas ao diálogo dospersonagens no interior do filme, mas também aodiálogo do filme com filmes anteriores, assim como ao“diálogo” de gênero ou de vozes de classe no interiordo filme, ou o diálogo entre as várias trilhas (entre amúsica e a imagem, por exemplo). Além disso, poderiareferir – se também ao diálogo que conforma o processode produção especifico (entre produtor e diretor,diretor e ator), assim como às maneiras como o discursofílmico é conformado pelo público, cujas reaçõespotencias são levadas em conta.” (STAM, Robert. Bakhtin:da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992. p.33, 34)

33Acreditamos estar construindo uma abordagemmais “cinematográfica” do discurso que pretendemosesclarecer, ao procurarmos evitar uma analogia com otexto escrito. Isso não significa que a analogia não sejapossível, mas estaremos buscando escapar a“aproximações” já realizadas e consideradas por Staminsuficientes.

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buscando compreender o texto fílmico a partirdas interações entre elementos do filme,privilegiando os imagéticos. Ao aplicarmos asproposições de Bakhtin, concluímos tambémque os filmes exigem que a apreensão dossignificados seja realizada no seu contexto deenunciação/exibição. Os contextos deenunciação propostos por Bakhtin são dois:um mais próximo, dos interlocutores imediatose outro, mais amplo, o da comunicaçãocultural. Nesse sentido a análise pode retornarao diálogo de época – sociocultural ehistoricamente definido ou a própria obra comoobjeto de analise, dependendo da intençãodo professor: se estudar o filme como “sinal”34

de uma época ou como uma representaçãode processos e/ou acontecimentos históricos– um discurso sobre a história.

No quadro analítico que apresentamosexistem então três possibilidades de seremconsiderados os contextos dialógicos deenunciação/exibição dos filmes – um ligado àabordagem da diegese fílmica e dois outrosvoltados para as relações entre os filmes eseu público, conforme eles estejam em diálogocom os contextos socioculturais e históricosde produção ou de exibição:

a) Cinematográfico – (mais próximo) apartir do próprio filme, esclarecendo asrelações nas quais os elementos

(principalmente imagens) estão empregadosna construção do discurso, apreendendo ossignificados atribuídos ao mundo que eleprocura representar. Nesse aspecto, podem-se analisar os diálogos entre as imagens eoutros elementos cinematográficos que o filmeemprega.

b) Histórico – (mais amplo) da épocahistórica e da situação sociocultural daprodução, buscando esclarecer o lugarsociocultural e histórico dos realizadores,procurando esclarecer como esse discursodialoga com outros discursos da “comunicaçãocultural” contemporânea à realização do filme,definindo possibilidades de sua apropriaçãohistórica, ou seja, historicizando o contextodo qual o filme emergiu. Nesse caso, podemosconsiderar que a análise estaria fazendo umenfoque historiográfico.

c) Educacional – (também mais amplo)considerando a época em que está sendoexibido, esclarecendo os diálogos queestabelece com os discursos envolvidos na salade aula no momento da exibição. A análiseestaria mais focada nos aspectos ligados àrecepção e, portanto, privi legiando aspossibilidades de diálogos voltados para aconstrução de conhecimento (escolar).

Salientamos que as categorias acima seprestam unicamente à organização formal dasidéias e que essas formas de abordagem não

34 No sentido que lhe atribui Carlo Ginzburg(GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo:Cia das Letras, 1989).

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são, de maneira alguma, excludentes. Aocontrário, consideramos que, atendendo aoprocesso de construção do conhecimentoescolar, deve-se privi legiar, entre aspossibil idades apresentadas pelo filme,aquela(s) mais adequada(s) ao tema com oqual o filme deve dialogar segundo a intençãodo professor.

Outras possibilidadespara questões freqüentes

Os elementos imagéticos da linguagemcinematográfica podem estar, ainda, fora doscontextos históricos que caracterizam a épocaa que a narrativa se propõe representar. Aoserem empregados assim, denunciam ahistoricidade do filme, demonstrando comoas disputas de interesses dos agentes sociaisenvolvidos no contexto matizam os bensculturais em qualquer época. Assim, um deslizede um fi lme “de tema histórico” querepresenta uma “realidade” contemporâneano passado (representações imagéticas e/oulingüísticas como textos, falas, cenários,figurinos, conceitos, cenas completas, entreoutras) evidencia a historicidade quecaracteriza qualquer bem cultural. Tais deslizespodem também ser considerados comoexpressão das próprias concepções (horizonteconceitual - ideológico) daqueles queestiveram envolvidos na sua realização.

Uma questão que venha questionaralgum desses deslizes na sala de aula, viriailuminar a deliberada intencionalidade quecarrega qualquer produção cultural,promovendo um distanciamento objetivo doespectador-aluno, esclarecendo a condição desimulacro do filme e, por extensão, de todosos discursos audiovisuais. Ela distancia aassistência da “impressão de realidade”,colocando-a numa posição mais crítica, quecontribui para o trabalho do educador queprocura desvendar a “visão de mundo” que ofilme constrói.

Voltando-nos para as proposições deChartier, uma questão voltada para essesdeslizes esclarece a motivação que promoveua enunciação do discurso fílmico, o lugar socialque os sujeitos e/ou agentes sociais ocupam,as disputas históricas nas quais estãoenvolvidos. Em termos bakhtinianos, esclareceos diálogos que o filme estabeleceu com ocontexto histórico da comunicação cultural doqual emergiu e/ou orienta as interaçõesdiscursivas que pode promover com ocontexto no qual está sendo exibido, pois odiscurso fílmico está em diálogo com outrosdiscursos da comunicação cultural da época ecom seu contexto de enunciação/exibiçãoimediato.

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Nas nossas considerações, evidencia-secomo a construção do discurso fílmico exige acomposição complexa de uma infinidade deelementos. Sendo assim, seria arbitrárioestabelecermos, rigidamente, categorias nasquais poderia se pautar a expressão das “vozes”dos realizadores. Uma incursão nesse universopara que possamos esclarecer como osdiscursos do cinema e os outros que circulamna cultura – do “mundo comorepresentação”, como prefere Chartier –dialogam. Nesse sentido, ainda é possívelsugerir alguns sinais que podem contribuir paraorientar uma análise de filme.

A nossa argumentação demonstra quenão existe uma maneira única de expressãodas vozes no discurso fílmico. O filme comouma expressão artística e a complexidademultidiscursiva própria da l inguagemcinematográfica fazem com que estejamsempre “abertos” a múltiplas apropriações.Mesmo assim, não podemos esquecer que umfilme deve ser considerado, principalmente,no seu conjunto, pois exige a construção deuma narrativa que atribua coerência einteligibilidade aos elementos multidiscursivosque o constituem. Assim, mesmoconsiderando que a composição imagética éo principal recurso narrativo dos filmes, outrasformas de expressão das vozes dos realizadoresdevem ser consideradas.

Uma forma recorrente, tanto nasanálises de fi lmes como nos recursosempregados pelos realizadores é o foco naconstrução e expressão dos personagens,através dos quais é possível expressar umaposição sócio-ideológica (horizonteconceitual), como acontece na literatura. Talrecurso, como é recorrente na literatura, nosparece dispensar uma apreciação maisdetalhada: ao interpretarem, enunciarem umdiscurso dentro do filme, os personagenspodem expressar a voz dos realizadores.

No entanto, no cinema como naliteratura, uma outra possibil idade deexpressão das vozes dos autores se configura:a formulação de um diálogo entre horizontesconceituais diferenciados que oferece “umadiversidade social de linguagem organizadaartisticamente, às vezes de línguas e de vozesindividuais.” diante das quais vai ressoar a vozdos realizadores.35 Uma análise apurada aí setorna fundamental, pois os realizadores estãousando de um recurso retórico conhecido, noqual o autor não se posiciona abertamente,sugerindo ao público que houve isenção emseu trabalho. Somado aos dispositivos quecaracterizam o cinema, como o de “impressãode realidade”, tais recursos tornam-separticularmente perigosos sem uma análise,mas, significativamente esclarecedor sob umolhar crítico.

35 A esse respeito consultar o texto de BAKHTIN,“O discurso do romance”. In: Estética da criação verbal.São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 74.

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Considerações finaisTodas as situações discursivas

apresentadas anteriormente na nossaargumentação podem ser enfatizadas pelaintervenção do professor: formulandoquestões que esclareçam os contextossocioculturais e históricos nos quais osdiscursos se realizam e atribuem significadossociais ao mundo da experiência, evidenciandoa “voz” dos realizadores em relação a ele.Assim, nos processos de diálogos sociaispermanentes que constroem o “mundo comorepresentação”, o professor estaráesclarecendo a posição (ideológica) dosrealizadores no seio da “comunicação cultural”– dos discursos científicos, artísticos, políticos– no qual eles têm “voz” e pretendem interferircom o seu discurso.

Ao colocarem em questão,problematizarem os discursos apresentadospela mídia, os professores estarão permitindouma compreensão mais complexa dosprocessos históricos, esclarecendo as maneirassociais de se construir “o mundo comorepresentação” e iluminando também asformas de institucionalização e legitimação dasforças sociais, políticas, econômicas ouculturais, as relações de poder, as disputas de

interesses, enfim, os processos que instauramcontextos socioculturais e constroem ahistória. Nessa medida, os processos históricosde construção do “mundo comorepresentação” nos quais os agentes sociaislançam mão de estratégias, discursos e “ações”de toda ordem podem adquirir significado, aoserem objeto das abordagens disponíveis nacultura de uma dada sociedade.

Ao procurarmos romper com omutismo que impera na maioria dos trabalhosque analisam o emprego de filmes no processode ensino-aprendizagem, apontamos somentealgumas questões que, certamente, podemser muito ampliadas. Entretanto, fica evidenteque o envolvimento de filmes nos processosde ensino-aprendizagem de história que nãotenham claro como poderiam ser exploradosos recursos da linguagem cinematográfica quecontribuam na leitura que os educandosconstroem do mundo, dos processossocioculturais e históricos, enfim que ajudema desvendar o contexto no qual eles estãoinseridos e no qual buscam referências paraerigirem suas identidades, certamente, nãoestaria mesmo indo muito além doentretenimento.