Clarice Santos - Por uma educação do campo

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    Por uma educaodo campo

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    Campo - Polticas Pblicas - Educao

    Organizadora

    Clarice Aparecida dos Santos

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    Por uma educaodo campo

    Organizadora

    Clarice Aparecida dos Santos

    Campo - Polticas Pblicas - Educao

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    Educao do Campo

    Campo - Polticas Pblicas - Educao

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    POR UMA EDUCAO DO CAMPO - Nmeros anteriores1 - Por uma educao bsica do campo (memria)

    2 - A educao bsica e o movimento social do campo

    3 - Projeto popular e escolas do campo

    4 - Educao do Campo: identidade e polticas pblicas

    5 - Contribuies para a Construo de um projeto de Educao do Campo6 - Projeto Poltico-Pedaggico da Educao do Campo - 1 Encontro do Pronera

    na regio Sudeste.

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    Educao do Campo

    Campo - Polticas Pblicas - Educao

    Bernardo Manano FernandesCesar Josde oliveira

    ClariCe apareCidados santos (organizadora)ClariCe seixas duarte

    Fernando MiChelottiMniCa Castagna Molinaroseli salete Caldart

    inCra/MdaBraslia, 2008

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    LUIZ INCIO LULA DA SILVAPresidente da Repblica

    GUILHERME CASSELMinistro de Estado do Desenvolvimento Agrrio

    MARCELO CARDONA ROCHASecretrio-Executivo do Ministrio doDesenvolvimento Agrrio

    ROLF HACKBARTPresidente do Instituto Nacional de Colonizaoe Reforma Agrria

    ADONIRAM SANCHES PERACISecretrio de Agricultura Familiar

    ADHEMAR LOPES DE ALMEIDASecretrio de Reordenamento Agrrio

    JOS HUMBERTO OLIVEIRASecretrio de Desenvolvimento Territorial

    CARLOS MRIO GUEDES DE GUEDESCoordenador-Geral do Ncleo de EstudosAgrrios e Desenvolvimento Rural

    ADRIANA L. LOPESCoordenadora-Executiva do Ncleo de Estudos

    Agrrios e Desenvolvimento Rural

    CSAR JOS DE OLIVEIRADiretor de Desenvolvimento de Projetos deAssentamentos

    CLARICE APARECIDA DOS SANTOSCoordenadora-Geral de Educao do Campo eCidadania

    MARIA MARTA ALMEIDA SARMENTOChefe da diviso de Educao do Campo

    NEAD ESPECIAL 10

    Copyright 2007 by MDA

    PROJETO GRFICO, CAPA E DIAGRAMAO

    Versal DesignREVISO E PREPARAO DE ORIGINAIS

    RS Produes

    MINISTRIO DO DESENVOLVIMENTOAGRRIO (MDA)www.mda.gov.br

    INSTITUTO DE COLONIZAO EREFORMA AGRRIA (Incra)www.incra.gov.br

    NCLEO DE ESTUDOS AGRRIOS EDESENVOLVIMENTO RURAL(Nead)SBN, Quadra 2, Edifcio Sarkis - Bloco D loja10 sala S2 - Cep: 70.040-910 - Braslia/DFTelefone: (61) 3961-6420 - www.nead.org.br

    PCT MDA/IICA Apoio s Polticas e Participao Social no Desenvolvimento RuralSustentvel

    E24e Educao do Campo: campo- polticas pblicas educao / Bernardo

    Manano Fernandes ... [et al.] ; organizadora, Clarice Aparecida dos

    Santos. -- Braslia : Incra ; MDA, 2008

    109 p. ; 19cm -- (NEAD Especial ; 10).

    ISBN 978-85-60548-30-9

    1. Educao do campo Brasil. 2. Polticas pblicas Brasil.

    I. Santos, Clarice dos. II. Fernandes, B Ministrio do DesenvolvimentoAgrrio. II. Incra. III. Srie.

    CDD 370.1734

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    Sumrio

    Apresentao..................................................................................................... 11

    Educao na perspectiva de um novo modelo de desenvolvimento nareforma agrriaCsar Jos de Oliveira e Clarice Aparecida dos Santos.......................................... 15

    A Constitucionalidade e a Justicibilidade do Direito Educao dos Povos do Campo

    Mnica Castagna Molina..................................................................................... 19

    A Constitucionalidade do Direito Educao dos Povos do CampoClarice Seixas Duarte.......................................................................................... 33

    Educao do Campo e Territrio Campons no BrasilBernardo Manano Fernandes.............................................................................. 39

    Sobre Educao do CampoRoseli Salete Caldart............................................................................................ 67

    Educao do Campo: refexes a partir da trade produo Cidadania PesquisaFernando Michelotti.............................................................................................. 87

    Balano Poltico e Linhas de Ao do Pronera Rumo aos 10 anos ......... 97

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    Apresentao

    A efetiva proteo dos direitos humanos demanda noapenas polticas universalistas, mas especfcas, enderea-das a grupos socialmente vulnerveis, como vtimas prefe-renciais da excluso. Isto , a implementao dos direitoshumanos requer a universalidade e a indivisibilidade des-ses direitos, acrescidas do valor da diversidade.

    Ao processo de expanso dos direitos humanos, soma-se oprocesso de especifcao de sujeitos de direitos.

    (PIOVESAN, 2006. In.HADDAD, 2006, p.26).

    O Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA) realizou, por meiodo Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra), de 2

    a 5 de outubro de 2007, na cidade de Luzinia/GO, o III SeminrioNacional do Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria(Pronera).

    O Programa uma poltica pblica de educao dirigida a trabalha-dores e trabalhadoras das reas de reforma agrria, que se realiza pormeio de parcerias com diferentes esferas governamentais, instituiesde ensino mdio e superior de carter pblico ou civil sem ns lucra-tivos, movimentos sociais e sindicais de trabalhadores e trabalhadorasrurais para qualicao educacional dos assentados e assentadas.

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    Seu principal objetivo o fortalecimento da educao dos beneci-rios do Programa Nacional de Reforma Agrria, estimulando, pro-pondo, criando, desenvolvendo e coordenando projetos, utilizando,

    para isso, metodologias voltadas especicidade do campo. Almdisso, o Pronera visa contribuir para a promoo do desenvolvimen-to, com base nos princpios da sustentabilidade econmica, social eambiental dos homens e mulheres que ali vivem.

    Suas principais aes esto voltadas garantia de alfabetizao e edu-cao fundamental de jovens e adultos acampados e acampadas eassentados e assentadas nas reas de reforma agrria; garantia deescolaridade e formao de educadores para atuarem naquelas reas; formao continuada e escolaridade mdia e superior aos educadoresde jovens e adultos (EJA) e do ensino fundamental e mdio; e ga-rantia de escolaridade/formao prossional, tcnico-prossional denvel mdio e superior em diversas reas do conhecimento.

    Nestes 10 anos de existncia, o Pronera alfabetizou, escolarizou, ca-

    pacitou e graduou cerca de 500 mil jovens e adultos atendidos peloPrograma Nacional de Reforma Agrria. Sempre em parceria commais de 60 universidades pblicas federais e estaduais, escolas tcni-cas, escolas-famlia agrcola, alm de secretarias estaduais e munici-pais de educao. Atualmente, mais de 50 mil jovens e adultos estu-dam nos cursos do Pronera, seja em processo de alfabetizao, nvelfundamental e mdio, seja nos cursos tcnico-prossionalizantes deagroecologia, agropecuria, sade, formao de educadores, nos cur-sos superiores de Direito, Pedagogia, Agronomia, Geograa, Hist-ria, ou ainda em cursos de ps-graduao em Educao do Campo eAgroecologia.

    O III Seminrio Nacional buscou reunir todos os sujeitos que atuamna Educao do Campo a partir das aes do Pronera desde a es-pecicidade, o acmulo terico, at a prtica social de cada um dos

    agentes envolvidos , a m de realizar um balano de suas aes aocompletar uma dcada. O evento foi uma oportunidade para projetar

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    o futuro e oferecer aos camponeses, ao governo e s universidadesuma atualizao do debate acerca da educao na reforma agrria,alm de trazer as novas questes que tal debate enseja para a Educa-

    o do Campo e para a construo/renovao/atualizao das polti-cas pblicas de educao da populao rural.

    A Constituio Federal de 1988, no seu artigo 206, estabelece o prin-cpio da igualdade das condies de acesso e permanncia na escolapara todos. Historicamente, essa no tem sido a realidade da popula-o rural em nosso Pas. Temos altos ndices de analfabetismo, baixosnveis de escolaridade, altas taxas de evaso, repetncia e distoroidade-srie. Sofremos ainda com a excluso absoluta do acesso ao co-nhecimento cientco, que se consolida nos cursos de nvel superiorde graduao e ps-graduao. Pela primeira razo, o governo fede-ral investe no Pronera. No Brasil, os assentamentos correspondem a56% da rea que compreende o conjunto dos territrios camponeses,isso envolve 123 milhes de hectares1.

    Trata-se, ento, de assegurar aos camponeses que habitam o imensoterritrio brasileiro o direito educao. E educao escolar, emtodos os nveis.

    O Seminrio abordou uma compreenso dos direitos humanos comoalgo em permanente construo. A Educao do Campo e sua com-preenso sobre o papel do conhecimento na vida dos camponeses uma novidade histrica porque nasce das experincias como assenta-dos, agricultores familiares, quilombolas, enm, da diversidade, his-tria e cultura como modo de produo e reproduo da vida dessessujeitos.

    O Pronera constitui-se em um espao de estmulo ao debate sobre odesenvolvimento territorial nos diferentes nveis de ensino, nos di-versos cursos/espaos de formao. Trata-se de uma ao do Estado

    1 Segundo FERNANDES, no artigo Educao do Campo e Territrio Campons no Brasil,

    constante deste Caderno.

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    que se realiza desde a compreenso de desenvolvimento territorial emsua totalidade poltica, social, cultural, ambiental e econmica.

    So esses os grandes desaos a serem incorporados pelo Pronera nes-tes 10 anos. A comear pela iniciativa desta publicao que socializaum debate realizado por homens e mulheres, trabalhadores e traba-lhadoras rurais, professores e professoras universitrias e agentes doEstado. Todos envolvidos nas experincias de Educao de Jovens eAdultos, de cursos tcnico-prossionalizantes e superiores no mbitodo Pronera. Para que sigamos fazendo da Educao do Campo umdireito de todos e de todas que vivem no meio rural brasileiro e umdever nosso, do Estado e da sociedade.

    Braslia, abril de 2008.

    Rolf Hackbart

    Presidente do Incra

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    Educao na perspectiva de umnovo modelo de desenvolvimento na

    reforma agrria

    Contribuir para a promoo de um novo modelo de desenvolvimen-to do campo, a partir de uma nova matriz tecnolgica e de novasformas de organizao da produo e do trabalho, de modo a pos-sibilitar a elevao da produtividade da terra e do trabalho, o eixoprogramtico das polticas desenvolvidas com os sujeitos da reformaagrria no Brasil atual.

    1 Diretor de Desenvolvimento de Projetos de Assentamentos do Instituto Nacional de Colo-

    nizao e Reforma Agrria (Incra).2 Coordenadora-geral de Educao do Campo e Cidadania do Instituto Nacional de Coloni-

    zao e Reforma Agrria (Incra).3

    TalarmaofoifeitadurantepalestraporPaulSinger,porocasiodoSeminrioQues-to Agrria e Desenvolvimento, organizado pelo Ministrio do Desenvolvimento Agr-

    rio (MDA)/Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural (NEAD), em julho de

    2007.

    Cesar Jos de Oliveira1

    Clarice Aparecida dos Santos2

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    Se, conforme armou o Professor Paul Singer3 , a reforma agrriano mais uma condio para o desenvolvimento do Pas, uma vezque o Brasil optou por um modelo de desenvolvimento que pres-

    cindiu da desconcentrao da terra, preservou o latifndio, e ainda,incorporou-o ao modelo do agronegcio, ela agora uma escolhapara aqueles que debatem sobre qual modelo de desenvolvimento oPas adotar, se quiser inserir-se soberanamente no contexto mundial,preservando o meio ambiente e os recursos naturais. Alm de contri-buir decisivamente na conteno da tragdia social e ambiental queassola o planeta.

    Tragdia esta provocada por um modelo de desenvolvimento trans-nacionalizado, que intensicou profundamente o esgotamento dosnossos recursos naturais, principalmente nos biomas Cerrado e Ama-znia, e impediu a ampliao de postos de trabalho no campo aoimpor um modelo agrcola que tem como base o latifndio, a mo-nocultura, o trabalho precrio e uma matriz tecnolgica intensiva emuso de capital. Essa estratgia revelou a opo do Estado brasileiro,

    no passado, pelos interesses das transnacionais agroindustriais, agro-orestais e agroalimentares.

    Tal escolha recai sobre nossas polticas, na medida em que estas abri-gam um componente essencial de induo de um modelo agrcolanuma ou noutra direo. A escolha do Estado brasileiro, nos ltimosanos, por avanar no processo de reforma agrria, por meio de umconjunto de instrumentos de arrecadao de terras, se inscreve na di-reo do rompimento com a secular condio de coadjuvante daque-les interesses. E atua na constituio de homens e mulheres, sujeitosdo campo, como protagonistas das polticas. Isso quer dizer que aopo por um novo modelo est diretamente vinculada reterritoria-lizao do solo brasileiro, assegurando aos camponeses as condiespelas quais possam produzir alimentos, gerar renda e desenvolverem-se como cidados de direitos, na perspectiva da sustentabilidade.

    Os assentamentos de reforma agrria, bem como as polticas necess-

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    rias ao seu desenvolvimento, devem perseguir uma estratgia comum,cujos pressupostos bsicos so, no mbito da produo: garantir aproduo destinada segurana alimentar, possibilitando a obteno

    de uma renda mensal, renda sazonal, alcanando escala na produovia organizao em cooperativas, integrando-se s cadeias produtivaspredominantes na rea reformada.

    No mbito social e ambiental, assegurar condies de moradia digna,em projetos arquitetnicos e de infra-estrutura que dialoguem com osconceitos da sustentabilidade ambiental no campo. E ainda, associar atais condies, aquelas que efetivamente concorrem para o desenvol-vimento integral das famlias, dos homens e mulheres, da juventude eda velhice dignas, como os espaos de lazer, de convivncia comuni-tria e de expresso da cultura local e universal.

    No mbito cultural e educacional residem grandes desaos no quese refere formao de sujeitos de direitos. Entre eles, o acesso aosmeios pelos quais lhes permita conhecer os complexos processos de

    conhecimento, embutidos nos processos de produo econmica, po-ltica e cultural. Esses meios nos so dados num processo continuadode educao, que vai desde a famlia, passando pelo trabalho nos quaisestes sujeitos esto envolvidos, e tambm pela escolarizao.

    Tais meios foram sistematicamente sonegados populao do cam-po, desde os primrdios da nossa histria e persiste seu trgico legadoat os dias de hoje. Basta observar os altos ndices de analfabetismo eos baixos nveis de escolaridade registrados no campo brasileiro.

    O Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria (Pronera)se prope a enfrentar este grande desao da alfabetizao e elevaodos nveis de escolaridade dos jovens e adultos das reas de reformaagrria, excludos deste direito na idade prpria.

    Por meio de suas aes Educao de Jovens e Adultos (EJA), For-mao de Prossionais de Nvel Mdio e Superior adaptados Re-

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    forma Agrria, e Concesso de Bolsas de Capacitao e FormaoProssional em Assistncia Tcnica , o Pronera j formou mais de300 mil pessoas, nos 10 anos de sua atuao.

    Trazer presente as reexes realizadas por ocasio do III SeminrioNacional do Pronera, realizado em Luzinia, no Estado de Gois, emoutubro de 2007, por meio desta publicao, cumpre com o objeti-vo de socializar e publicizar, com os sujeitos parceiros do Programa governo, universidades e movimentos sociais , os desaos e asnovas perspectivas colocados pela histria e pelas experincias e ini-ciativas que geram histria, para abrir as comemoraes que marcaroos seus 10 anos.

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    A Constitucionalidade e a Justicibilidade doDireito Educao dos Povos do Campo

    A escolha desse fragmento da obra de Celso Furtado para fazer aabertura desta exposio deve-se ao fato de ser emblemtica para oPrograma Nacional de Educao na Reforma Agrria (Pronera) e parao movimento da Educao do Campo, j que sintetiza a importn-cia do binmio educao desenvolvimento. Mudar estruturalmen-te nosso Pas exige a redistribuio destes dois ativos fundamentais:Terra e Educao.

    Parte signicativa da luta dos sujeitos organizados do meio rural paraconstruo da Educao do Campo tem se dado por meio do Prone-ra. Os 10 anos de prticas concretas de escolarizao dos assentadosa completarem-se em 2008, que garantiram a materialidade do Pro-

    A educao interfere no tempo e melhorando-se a qualidade do fator humano modica-se por completo o

    quadro do pas, abrem-se possibilidades de desenvolvimento muito maiores. No h pas que tenha conseguindose desenvolver sem investir consideravelmente na formao de gente. Este o mais importante investimento a

    fazer, para que haja, no s crescimento, mas autntico desenvolvimento.Celso Furtado

    1 Doutora em Desenvolvimento Sustentvel pela Universidade de Braslia (UnB) e co-

    ordenadora do Centro Transdisciplinar de Educao do Campo (Cetec/UnB).

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    grama, foram fundamentais para construo da bandeira da Educa-o do Campo. Iniciamos em 1998 as primeiras aes do Proneracom cursos de alfabetizao; depois avanamos para escolarizao;

    cursos tcnicos prossionalizantes; chegamos aos cursos superiores;e hoje, desenvolvemos, a partir do Pronera, e das articulaes dasdiferentes parcerias dos movimentos sociais, sindicais, das universi-dades, das superintendncias, cursos superiores em muitas reas doconhecimento: Pedagogia da Terra; Agronomia; Direito; Licenciaturaem Histria; em Cincias Agrrias; Geograa, Artes, entre outros.Avanamos, tambm, para as especializaes: Administrao de Co-operativas; Educao do Campo e Educao de Jovens e Adultos.

    na perspectiva de entender por que essa ao, embora tenha umvolume de recursos to pequeno no Oramento Geral da Unio, temtanto impacto, que ns, da Comisso Pedaggica Nacional, pauta-mos este tema para o III Seminrio Nacional do Pronera: Constitu-cionalidade e Justiciabilidade do Direito Educao dos Povos doCampo.

    Normalmente, comeamos os encontros do Pronera pensando qualo campo da Educao do Campo, quais so as prticas pedaggicas,que modelos de campo. Invertemos esse foco e agora comeamospor essa discusso, porque entendemos que exatamente este momen-to histrico do Pronera e da Educao do Campo est a nos exigiressa reexo. preciso conseguir informar para o conjunto da so-ciedade quais so os fundamentos legais, os fundamentos jurdicos, e

    mais os fundamentos loscos que garantem nossa ao.

    necessrio que possamos debater aqui a ao educativa que vimospromovendo. Ela tem mais que fora, legitimidade. Mais que isso:tem legalidade. Por isso, zemos questo de pautar esta mesa: enfren-tarmos o debate que se tem posto nas diferentes aes impetradascontra o Pronera. A intencionalidade dessa mesa nos fortalecer,

    a todos e a cada um, para que em nossas aes nas universidades,nas superintendncias, nos movimentos, no dilogo com a sociedade

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    local onde estamos inseridos, tenhamos elementos jurdicos para fun-damentarmos nossas prticas.

    Para fazermos esta reexo, estruturamos a exposio em trs mo-mentos: no primeiro tpico abordaremos as implicaes de, confor-me est estabelecido na Constituio Federal Brasileira, vivermossob o regime de um Estado Democrtico de Direito, analisando doisconceitos fundamentais: direito e democracia. O segundo tpico irtratar do tema da Educao como um direito social, do qual derivao debate sobre a justiciabilidade do direito educao dos povos docampo. E, no terceiro momento, encerrando esta reexo, a proposta

    pensarmos juntos sobre a materializao dos direitos sociais, pormeio das polticas pblicas.

    I. A lsofa Marilena Chau nos ensina a diferenciar o direito de ou-tras categorias, exaltando o peso e a importncia da construo desseconceito. Um direito difere de uma necessidade ou carncia e de um interesse.Uma necessidade ou carncia algo particular e especco. Existem diferentes

    carncias tanto quanto grupos sociais. Interesses tambm so parti-culares a diferentes grupos. Explica ainda a autora que necessidades ecarncias podem ser conitantes entre si. Interesses tambm podemser conitantes. Chau enfatiza que um direito, ao contrrio de necessida-des, carncias e interesses, no particular e especco, mas geral e universal, vlido

    para todos os indivduos, grupos e classes sociais. (2002, p. 334)

    Esta a principal caracterstica da idia de direito: ser universal, ou

    seja, referir-se a todos os seres humanos, independentemente da suacondio social. A educao um direito. E como tudo que diz res-peito a ns, seres humanos, a idia da educao como um direitohumano e, mais que isso, a idia dos direitos humanos fruto de umalonga construo histrica da luta de milhares pessoas at ns che-garmos a essas conquistas. Como nos lembra BOBBIO, os direitoshumanos no nascem todos de uma vez, nem se instituem todos ao

    mesmo tempo. Eles no so dados, eles so construdos, so umainveno humana, e esto em permanente processo de construo,desconstruo, reconstruo.

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    Essa idia importante porque h atualmente, com fora tanto nadoutrina como na jurisprudncia dessa rea, pluralidade de vises so-bre o tema de direitos humanos. Nesta reexo adotamos a concep-

    o contempornea, introduzida a partir da Declarao Universal dosDireitos Humanos, de dezembro de 1948, e reiterada pela Declaraode Viena, de 1993.

    A compreenso contempornea de direitos humanos defende que es-tes so universais, indivisveis e interdependentes entre si. Na obra AEducao entre os Direitos Humanos, PIOVESAN (2006) observaque estes so universais exatamente porque a condio de pessoa orequisito nico para a titularidade desses direitos. Indivisveis porque a

    garantia dos direitos civis e polticos condio para observncia dos direitos so-ciais, econmicos e culturais. Quando um deles violado os demais tambm so.O autor apresenta ainda argumento fundamental para o debate destamesa e para a compreenso da luta social dos trabalhadores ruraispara terem garantido seu direito terra e educao: no h direitoshumanos sem democracia e tampouco democracia sem Direito Humanos. Vale

    dizer, o regime mais compatvel com proteo dos direitos humanos a democra-cia. (2006, p.13).

    Os direitos humanos tm como m ltimo, como principal objetivo,garantir a dignidade humana, que est inscrita na Constituio Fede-ral, logo no seu artigo 1, como um dos fundamentos que integram oEstado Democrtico de Direito no Brasil.

    Quais implicaes jurdicas de termos na Constituio Federal, nottulo que trata dos Princpios Fundamentais da Repblica Brasileiraa inscrio de vivermos num Estado Democrtico de Direito e determos, como fundamento deste Estado, a dignidade da pessoa hu-mana?

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    CHAU (2002, 344) nos ensina que o essencial de democracia :

    que o poder no se identica com os ocupantes de governo, no lhes pertence,

    sempre um lugar vazio que os cidados periodicamente preenchem com um repre-sentante, podendo revogar seu mandato se no cumprir o que lhe foi delegado pararepresentar. As idias de situao e oposio, maioria e minoria, e cujas vontadesdevem ser respeitadas e garantidas pela lei, vo muito alm dessa aparncia.Signicam que a sociedade no uma comunidade uma e indivisa, voltada para

    o bem comum obtido por consenso; mas, ao contrrio, que esta internamentedividida e que as divises so legtimas e devem expressar-se publicamente. Ademocracia a nica forma poltica que considera o conito legal e legtimo, per-mitindo que seja trabalhado politicamente pela prpria sociedade.

    As idias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidados vo muitoalm de sua regulamentao jurdica formal. Signicam que os cidados so

    sujeitos de direitos, e que onde no existam tais direitos, nem estejam garantidos,

    tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. este o cerne da democracia.

    Esta idia central do fundamento da ao coletiva dos sujeitos sociaisdo campo na luta pela construo do seu direito educao: a igual-

    dade declarada na Constituio no se restringe mera disposioformal. Garante e, mais, exige aes concretas do Estado no sentidode materializar o exerccio concreto dos direitos a todos os cidados.

    a compreenso da idia do direito a ter direitos que fundamenta aao dos movimentos sociais como demandantes do que est previs-to na lei, mas no materializado na realidade social. Exatamente pelofato de vivermos numa democracia, regime poltico que tem comoprincpio a instituio de direitos, que se fundamenta a legitimidade,a possibilidade da ao de virmos a materializar aqueles princpiosque historicamente, como humanidade, construmos como valoresuniversais, que so os direitos, ou seja, independem da classe social;da situao socioeconmica; de vivermos no campo ou na cidade; desermos brancos ou negros; no importa a questo racial, de classe,de sexo: o fato de sermos pessoa humana nos faz portadores des-

    ses direitos. a possibilidade de lutarmos para transformar o queest estabelecido como princpio, para a vida real que caracteriza a

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    democracia. Pois, conforme ressaltado anteriormente, ela o nicoregime poltico no qual o conito legal e legtimo, e cabe socieda-de instituir formas de politizar esses direitos. CHAU enfatiza que a

    mera declarao de direito igualdade no faz existir os iguais, masabre campo para a criao de igualdade por meio das exigncias edemandas de sujeitos sociais. Em outras palavras, declarado o direito igualdade, a sociedade pode instituir formas de reivindicao paracri-lo como direito real. O que nos leva reexo sobre o signicadoda inscrio dos direitos sociais na Constituio Federal Brasileira.

    Por que o Pronera pautou a justiciabilidade do direito educaodos povos do campo? Como sabemos, a justiciabilidade refere-se possibilidade de demandar em juzo, de cobrar do Poder Judicirio aefetiva garantia de um direito. sobre esta perspectiva que queremospensar aqui: o Pronera tem sido vtima de uma srie de aes civispblicas. Ser que estamos nos posicionando corretamente peranteeste debate? Ser que estamos tendo a postura mais adequada em re-lao defesa do direito educao dos povos do campo? A inteno

    desta mesa cogitar a perspectiva de olharmos para esse problemasobre outra tica.

    II. H grande polmica na jurisprudncia sobre o fato dos direitossociais serem ou no passveis de justiciabilidade, ou seja, pode-seou no demandar esses direitos em juzo? Parte dessa polmica sematerializa justamente pela considerao dos direitos sociais comodireitos imprecisos, que se apresentam na Constituio sob forma deprincpios, o que faz com que parte dos juristas questionem essa pos-sibilidade. Outro aspecto que tambm fundamenta essa desconana a compreenso de muitos tribunais da impossibilidade da materiali-dade destes direitos apresentao judicial, j que necessariamente atraduo dos direitos sociais se d por meio de polticas pblicas. Ofato de submeter ao Judicirio essa apreciao implicaria necessaria-mente na anlise deste Poder das aes do Executivo e Legislativo,

    por serem os responsveis pela concepo, nanciamento e execuodestas polticas, o que caracterizaria interferncia no mbito de com-

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    petncia destes. Parte relevante dos tribunais e da doutrina alega essaperspectiva do conito de competncias como principal argumentopara no aceitar a justiciabilidade dos direitos sociais.

    H parte da doutrina que questiona essa viso tradicional, e ao contr-rio no v nenhum bice de submeter ao Judicirio a apreciao dosdireitos sociais. Nessa perspectiva, PIOVESAN (2006, 19) defende quea partir da compreenso da indivisibilidade dos direitos humanos,

    h que ser ter denitivamente afastada a equivocada noo de que uma classe

    de direitos (a dos direitos civis e polticos) merece inteiro reconhecimento e respeito,

    enquanto outra classe de direitos (a dos direitos sociais, econmicos e culturais),ao revs, no merece qualquer observncia. Pela tica normativa internacional,est denitivamente superada a concepo de que os direitos sociais, econmicos

    e culturais no so direitos legais. A idia da no-acionabilidade dos direitossociais meramente ideolgica e no cientca. So eles autnticos e verdadeiros

    direitos fundamentais, acionveis, exigveis, e que demandam sria e responsvelobservncia. Por isso, devem ser reivindicados como direitos e no como generosi-

    dade, caridade ou compaixo.

    O fato de estar inscrito na Constituio Federal a existncia dos di-reitos sociais faz com que essa determinao passe a orientar todo oordenamento jurdico. Conforme alerta Eros Grau, no se examina aConstituio em tiras, aos pedaos. O fato de estar inscrito nos princpiosfundamentais da Carta Magna, os direitos sociais exigem que toda aanlise da Constituio seja orientada a partir dessas determinaes,ou seja, o que seria suciente para garantir o constrangimento pelo

    Judicirio para exigir o cumprimento desses direitos. A materialidadedesses direitos exige que o Estado construa polticas pblicas parasua oferta. A partir desses argumentos nos quais se baseiam partesignicativa da doutrina e da jurisprudncia, que consideram os di-reitos sociais passveis de submisso Justia, no deveramos inver-ter o plo da relao do Pronera nas aes civis pblicas? Ao invsde termos impetrada contra o Programa uma sria delas, como por

    exemplo, quando comeamos os cursos de Agronomia e de Direito,no deveramos pensar que as organizaes dos trabalhadores e oprprio Ministrio Pblico deveriam questionar e constranger o Es-

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    tado judicialmente, em funo das mais de 700 mil pessoas nas reasde reforma agrria que no tiveram garantido o acesso educaofundamental, direito pblico subjetivo?

    Convm ressaltar que entre os defensores da justiciabilidade dos di-reitos sociais, h, no tocante garantia do direito educao, con-trovrsias em relao ao grau de escolaridade que pode se exigirprestao jurisdicional. Entre os defensores, no dvidas quanto possibilidade de se constranger judicialmente o Estado para se exigira garantia do ensino fundamental. A polmica refere-se aos outros n-veis de escolarizao. H diversos autores que entendem que no so direito pblico subjetivo, ou seja, o ensino fundamental passvelde prestao jurisdicional. O artigo 206 da Constituio Federal aoreferir-se ao direito de garantia da igualdade das condies de acessoe permanncia educao no o faz para nveis especcos, e sim paratoda a educao.

    claro que ns no podemos ter a iluso de que submetendo essa de-

    manda ao Poder Judicirio o direito educao aos sujeitos do campoestar garantido. Vale a pena destacar aqui pesquisa muito interessanterealizada pela Ao Educativa, que analisou, entre o perodo de 1996a 2005, todas as aes civis pblicas relacionadas educao impetra-das pelo Ministrio Pblico do Estado de So Paulo. A concluso dapesquisa que, apesar de todos os problemas existentes no Judicirio,como morosidade, corrupo, etc., a justiciabilidade deste direito temsido uma fora importante no sentido de politizar o debate sobre aeducao. De fazer com que o conjunto da sociedade e mais, os po-deres pblicos, ajam com mais eqidade sobre as condies de ofertada educao.

    Corroborando esta pesquisa, o relator da Organizao dos EstadosAmericanos (OEA) para os Direitos Humanos, VERNOR MUOZ(2006, p.48), arma que: a justiciabilidade do direito educao no um

    m em si mesmo, seno uma garantia atual para o exerccio pleno da cidadania,que deve vir acompanhada de polticas pblicas coerentes e de outros mecanismos

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    de realizao dos direitos humanos, como amparo de um sistema de indicadoresque permita avaliar os progressos e as limitaes dos resultados. Ou seja, entreas diferentes lutas necessrias para a garantia do direito educao

    dos povos do campo, a apresentao das demandas ao Poder Judi-cirio pode ser mais uma fora importante no sentido de rearmarperante a sociedade brasileira a legitimidade do direito educao dossujeitos camponeses.

    III. Entramos aqui no terceiro ponto da nossa exposio, que exa-tamente a materializao dos direitos sociais por meio das polticaspblicas. No incio da reexo, armamos que os direitos so uni-versais, que ao Estado compete universalizar direitos, e que estes vose materializar por meio das polticas pblicas. Como fazer para oEstado implementar polticas pblicas, que de fato, garantem o res-peito s diferenas no tocante ao acesso aos direitos? Se quisermosdisputar fraes do Estado, ainda que no regime capitalista, a servioda classe trabalhadora, preciso avanar na compreenso do papelque a luta por polticas pblicas especcas pode signicar em termos

    de perspectiva do avano do direito educao.

    Lutar por polticas pblicas signica lutar pelo alargamento da esferapblica, lutar para que a educao no se transforme, como queremmuitos hoje, em mercadoria, em um servio, que s tem acesso quempode comprar, quem pode pagar. Lutar por polticas pblicas paraEducao do Campo signica lutar para ampliar a esfera do Estado,para no colocar a educao na esfera do mercado. Neste momento,entra novamente a questo da justiciabilidade do direito educaodos povos do campo. Porque no se institui polticas enquanto elasno esto muito presentes no conjunto do imaginrio da sociedade.

    O Poder Pblico, a quem compete a obrigao jurdica de viabili-zar direito educao, deve garantir a oferta deste direito a todos,considerando o conjunto dos princpios estatudos na Constituio.

    Conforme nos lembra ARROYO, uma das tenses que hoje vivemosna defesa dos direitos serem defendidos apenas como direitos abs-

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    tratos e negados como direitos concretos:

    Temos que defender o direito educao como direito universal, mas comodireito concreto, histrico, datado, situado num lugar, numa forma de produo,neste caso da produo familiar, da produo agrcola no campo; seus sujeitostm trajetrias humanas, de classe, de gnero, de etnia, de raa, em que vose construindo como mulheres, indgenas, negros e negras, como trabalhadores,produtores do campo... Os movimentos sociais nomeiam os sujeitos dos direitos.Esses sujeitos tm rosto, tm gnero, tm classe, tm identidade, tm trajetrias deexplorao, de opresso. Os movimentos sociais tm cumprido uma funo his-trica no avano dos direitos: mostrar seus sujeitos, com seus rostos de campons,

    trabalhador, mulher, criana. Sujeitos coletivos concretos, histricos.

    A elaborao de polticas pblicas educacionais no pode prescindirdos dispositivos consagrados tambm no artigo 206 da Constituio.O princpio da igualdade de condies de acesso e permanncia naescola, informado por este ditame constitucional, constitui diretrizque deve informar o conjunto das polticas educacionais. Ele toma-do como base para proposio de polticas armativas para efetiva

    garantia do direito educao. Conforme alerta DUARTE, em umpas de imensas desigualdades sociais e regionais, torna-se impera-tivo a implementao de polticas pblicas voltadas reduo dascondies que levam aos altos ndices de abandono (evaso ou no-permanncia na escola), reprovao e distoro idade-srie. S assimser possvel garantir a permanncia, o reingresso e o sucesso escolarde grupos que apresentam maior vulnerabilidade.

    A complexidade das condies socioeconmicas e educacionais daspopulaes rurais exige maior coerncia na construo de estratgiasque visem alavancar a qualidade da Educao do Campo. Desenharpolticas que busquem suprir as enormes desigualdades no direito aoacesso e a permanncia na escola para este grupo faz parte desta es-tratgia, dito de outra forma: o que se busca no somente a igual-dade de acesso tolerada pelos liberais, mas, fundamentalmente a

    igualdade de resultados.

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    Encontramos aqui questo central para reexo: este modelo de po-lticas generalistas ser suciente para suprimir as histricas exclusessofridas pelos sujeitos do campo? Como fazer para reverter este qua-

    dro e garantir que as diferenas sejam tratadas, como propugna BOA-VENTURA SOUZA SANTOS ao armar que os sujeitos sociais tmo direito igualdade quando a diferena os inferioriza; e tm o direitoa serem diferentes quando a igualdade os descaracteriza?

    Reetindo sobre o tema, VINHAES GRACINDO observa que osentido e o respeito diferena adquirem centralidade nesta reexo.Por ter origem no liberalismo clssico, o respeito diferena, to propalado nasaes do Estado e de governos, muitas vezes interpretado como um direito indivi-dual e, portanto, garantido pela oferta de oportunidades iguais a todos: sujeitos docampo e da cidade. Ocorre que a oferta de oportunidades iguais pressu-pe nveis e condies semelhantes, para garantir o mesmo patamarde direitos, o que no o caso encontrado entre a cidade e o campobrasileiros. Portanto, o direito diferena, aqui trabalhado, indica anecessidade de garantia de igualdade e universalidade, sem desrespei-

    tar a diversidade encontrada no trato das questes culturais, polticase econmicas do campo. O respeito diferena pressupe, assim, aoferta de condies diferentes. O que, no limite, garante a igualdadede direitos. Vale ressaltar que a dialtica da igualdade e da diversidadeevidencia elementos bsicos e comuns a todos os sujeitos sociais: aunidade na diversidade. Mas, tambm indica as diferenas entre ocampo e a cidade. Alm disso, os sujeitos sociais do campo possuemuma base sociohistrica e uma matriz cultural diferentes, o que os fazdemandantes de polticas pblicas especcas.

    Esse o caso do Pronera. a especicidade das condies de aces-so e as desigualdades histricas no acesso educao que necessa-riamente demandam aes armativas do Estado para corrigir essasdistores. Apenas para ilustrar o tamanho dessas desigualdades, importante apresentar os dados da pesquisa da Pesquisa Nacional por

    Amostra de Domiclios (Pnad) que indicam que a escolaridade mdiada populao de 15 anos ou mais, moradora em zonas rurais (3,4

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    anos), metade da estimada para a populao urbana (7 anos). Estu-do do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep)ressalta que se for mantido esse padro de evoluo, sem nenhuma

    forte interveno por parte do Estado, a populao rural levar maisde 30 anos para atingir o atual nvel de escolaridade da populaourbana.

    Os resultados obtidos pelas avaliaes esto a indicar que o padroatual de polticas pblicas, constitudo com a caracterstica central detratamento generalizado para diversas situaes, ser insuciente paraenfrentar a gravidade do panorama educacional no campo. Recupe-rarmos o tempo perdido exigir a elaborao de polticas armativas,que sejam capazes de acelerar o processo de supresso das intensasdesigualdades no tocante garantia de direitos existentes no meiorural. Conceber essas polticas impe-nos o desao da produo denovos saberes inter e transdiciplinares, que sejam capazes de articulardiferentes dimenses da vida dos sujeitos do campo, aliadas ao seuprocesso educacional, ou seja, uma escola colada ao cho da vida,

    ligada aos processos da produo da existncia social destes sujeitos.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ARROYO, M. Que Educao Bsica para os povos do Campo? * In

    *Educao Bsica de Nvel Mdio nas reas de Reforma Agrria.Textos de Estudo.Boletim da Educao n. 11. MST/ ITERRA. RS,2006.

    CHAUI, M. A Sociedade Democrtica In, MOLINA, M.C; TOURI-NHO, F.C; SOUZA JNIOR, J.G. Introduo Crtica ao DireitoAgrrio. Braslia. Ed. UnB;IOESP. 2003.

    FREITAS, L. C. Eliminao Adiada: o ocaso das classes popularesno interior da escola e a ocultao da (m) qualidade do ensino.*Educao e Sociedade*, Campinas, v. 28, 2007 .

    GRACINDO, R. V. et al. Conselho Escolar e Educao do Campo .Braslia,MEC/SEB 2006.

    PIOVESAN, F.Concepo Contempornea de Direitos HumanosIn HADDAD,S.A e GRACIANO,M.(orgs). A Educao entre os

    Direitos Humanos. Campinas, SP:Autores Associados; So Paulo,SP: Ao Educativa, 2006.

    MUNZ, V. Do Direito Justia In HADDAD,S.A eGRACIANO,M.(orgs). A Educao entre os Direitos Humanos.Campinas,SP: Autores Associados; So Paulo, SP:Ao Educativa,2006.

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    A Constitucionalidade do Direito Educao dos Povos do Campo

    I A educao na Constituio Federal de 1988 (CF/88)

    A educao est prevista em nossa Constituio como um direito fun-damental de natureza social (art. 6). Como um direito social, est sub-metida ao regime jurdico prprio, pautado por princpios e diretrizesa serem observados pelo Poder Pblico para sua implementao.

    Os objetivos, os princpios e a estrutura de funcionamento do sistemaeducacional brasileiro esto detalhados no artigo 205 e seguintes. luz da CF/88, a educao deve visar ao pleno desenvolvimento dapessoa, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualicaopara o trabalho.

    1 DoutoraemFilosoaeTeoriaGeraldoDireitopelaUniversidadedeSoPaulo(USP)e

    Coordenadora do Curso de Especializao em Direitos Humanos da Escola Superior da

    ProcuradoriaGeraldoEstadodeSoPaulo.

    Clarice Seixas Duarte1

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    Alm disso, o Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociaise Culturais, adotado no mbito da Organizao das Naes Unidas(ONU) em 1966 e raticado pelo Brasil em 1992, estabelece o obje-

    tivo de capacitar a todos a participar de uma sociedade livre. No mbitoregional, ou seja, no mbito do Sistema Interamericano de Proteodos Direitos Humanos, o Protocolo de San Salvador, de 1998, acres-centa, em relao aos objetivos educacionais, o pluralismo ideolgicoe inclui, entre as suas metas de capacitao, a participao de todosnuma sociedade democrtica e pluralista.

    Todos esses objetivos esto atrelados ao fundamento especco dosdireitos sociais, qual seja, o princpio da igualdade. Isso signica ques tem sentido pensar a educao, assim como os demais direitos so-ciais se a sua concretizao tiver como diretriz fundamental a reduodas desigualdades sociais existentes na sociedade.

    A igualdade, fundamento dos direitos sociais, subdivide-se em igual-dade formal e igualdade material.

    II O princpio da igualdade como fundamento dos direitossociais

    O princpio da igualdade formal, previsto no artigo 5, caput daCF/88, diz respeito igualdade de todos perante a lei e constitui oprincpio fundamental do Estado Liberal de Direito. Consiste no re-conhecimento da noo de que todos os seres humanos so sujeitosde direitos, independentemente de quaisquer caractersticas que osespeciquem ou diferenciem.

    Como conseqncia da aplicao desse princpio, o Poder Executi-vo, ao implementar polticas educacionais, tem como obrigao nonegar direitos a quem quer que seja por algumas de suas caracters-

    ticas (gnero, etnia, religio, orientao sexual, convices polticas).Trata-se do dever de no estabelecer privilgios ou discriminaes

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    injusticadas. Tal princpio vincula o Poder Legislativo que deveproduzir legislao que trate da mesma forma a todos que estonuma mesma situao ou categoria. J o Judicirio deve aplicar a mes-

    ma norma jurdica a casos semelhantes.

    Se o artigo 5 traz a proibio genrica da discriminao (princpio daigualdade formal), em vrios de seus incisos arma igualdades espe-ciais. Isso porque nem sempre a lei feita para atingir a todos in-distintamente, de forma genrica, independentemente de sua origem,gnero, raa, condio social, etc. Da a importncia do princpio daigualdade material.

    O princpio da igualdade material, ou igualdadefeitapela lei, visa criarpatamares mnimos de igualdade no campo do acesso aos bens, ser-vios e direitos sociais. Constitui o fundamento do Estado Social deDireito. No dizer de Luiza Frischeisen2:

    a igualdade material consiste no acesso real aos bens e servios para uma vidadigna, e leva, por seu turno, idia de redistribuio. O acesso aos bens e serviosem patamares mnimos por todos importa no reconhecimento de direitos sociais,como a sade, a educao, o acesso justia, pois esses devem ser direitos de todos,independentemente do poder econmico. Os direitos sociais esto, portanto, na

    esfera da cidadania, e no do mercado.

    Quais as conseqncias do reconhecimento do princpio da igualdadematerial? Tal princpio obriga o administrador a atuar para o cumpri-

    mento dos objetivos da Repblica Federativa do Brasil (CF/88, artigo3, especialmente III e IV). Obriga o legislador a elaborar programasde ao concretos para reduzir as desigualdades existentes na socie-dade. Tais programas so as polticas pblicas, verdadeiro objeto pri-mrio dos direitos sociais. J o Judicirio dever julgar demandas queiro apreciar a omisso dos demais poderes na elaborao e imple-mentao de polticas pblicas, matrias tradicionalmente relegadaspara o campo poltico e no jurdico.

    2 FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. A construo da igualdade e o sistema de

    justia no Brasil. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007, p. 41.

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    possvel conciliar o princpio da igualdade em seus aspectos formale material luz da CF/88? Sim, desde que se interprete o artigo 5caputem conjunto com o artigo 3, III e IV. S assim ser possvel

    compreender o verdadeiro alcance do princpio da igualdade em seusdois aspectos. Como nem todos esto no mesmo patamar (diferenas quantos condies sociais e econmicas), tratamentos diferenciados para determinados

    grupos so no apenas permitidos, como absolutamente necessrios para que sepossam reduzir as desigualdades dos pontos de partida3.

    A conjugao de ambos os aspectos do princpio da igualdade leva oEstado a criar polticas universalizantes, garantindo a todos o aces-so universal aos bens e servios em patamares mnimos, mas levatambm necessidade de criao de polticas especcas, que tmcomo alvo prioritrio determinados grupos vulnerveis dentro dasociedade.

    III As polticas pblicas como concretizao do princpio da

    igualdade material

    Segundo a denio de Maria Paula Dallari Bucci, polticas pblicasso programas de ao governamental que resultam de um conjunto de proces-sos disciplinados pelo Direito voltados realizao de ns socialmente relevantes

    e juridicamente determinados. Em outras palavras, as polticas pblicaspodem ser denidas como formas concretas de implementar as dire-trizes constitucionais para a efetividade de um determinado direito.

    A organizao de aes complexas e heterogneas do ponto de vistajurdico para garantir o direito educao exige planejamento. Talplanejamento deve considerar que alguns grupos em situao desfa-vorvel devem ser tratados de forma diferenciada. Isso um princpiodo direito, ou seja, o princpio da igualdade material.

    3 FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. A construo da igualdade e o sistema de

    justia no Brasil. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007, p. 35.

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    No Estado Social de Direito no basta tratar a todos como se ti-vessem a mesma facilidade de acesso s prestaes que concretizamdireitos sociais. Se um grupo social tem mais diculdade de acesso a

    direitos educacionais, o Estado tem a obrigao de assegurar polticasdiferenciadas para assegurar o direito a essas pessoas, como o queocorre com a educao no campo.

    No basta, assim, que o Estado garanta apenas direitos universais for-mais, pois dessa forma as desigualdades j existentes na sociedade voser acirradas. O Estado deve ter uma postura ativa, intervencionista,para poder pensar em polticas especcas para os grupos em situaodesfavorvel. A base jurdica que fundamenta isso a leitura no frag-mentada da Constituio, ou seja, levando-se em conta os princpiosconstitucionais que fundamentam o prprio Estado Social de Direito,dentre os quais merece destaque o princpio da igualdade material.

    As polticas pblicas educacionais devem ser universalizantes, masdevem tambm ser especcas, para que determinados grupos vulne-

    rveis da sociedade possam ter acesso aos direitos previstos nos do-cumentos ociais. nesse contexto que se pode armar a constitu-cionalidade do Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria(Pronera), que tem tido papel fundamental na reduo das desigual-dades sociais e regionais em nosso Pas, assegurando a formataode polticas pblicas diferenciadas que visem a garantir o acesso educao.

    No se est aqui falando de direito de acesso a uma universidadeespecca ou a um curso determinado, mas garantia maior de umasociedade que espelhe todo o seu pluralismo. No caso da Educaodo Campo, isso a manuteno e transmisso de valores, de modosde vida, que so importantes para a pluralidade da sociedade.

    A garantia de acesso diferenciado educao no um privilgio,

    mas sim uma poltica que pode ser justicada racionalmente a partirde uma situao de desigualdade. A construo das polticas pblicas

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    percorre etapas, sendo que a primeira deve ser a realizao de umdiagnstico da situao, o que justica a proteo especial a determi-nados grupos alvos prioritrios da ao estatal que visa garantia de

    direitos. Depois disso, sero denidos metas, planos de ao, meiosde execuo e nanciamento.

    A escolha de qual poltica dever ser priorizada, , sem dvida umaquesto poltica. Os diagnsticos podem apontar inmeras necessi-dades. O fato de uma ser escolhida como prioritria, no faz dela umprivilgio, mas um caminho justicado decorrente de determinadacorrelao de foras na sociedade.

    claro que as escolhas de polticas prioritrias signicam que outras,tambm importantes, no sero priorizadas. No entanto, o importan-te garantir a implementao progressiva dos direitos, assegurandoo avano das conquistas de forma a alargar cada vez mais o acessoaos direitos.

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    Educao do Campo e TerritrioCampons no Brasil

    Bernardo Manano Fernandes1

    Introduo

    H 10 anos estamos trabalhando na construo da realidade e da teoriada Educao do Campo. Os assentamentos de reforma agrria comoparte dos territrios camponeses tm sido o espao mais amplo de re-

    alizao dos projetos do Programa Nacional de Educao na ReformaAgrria (Pronera), que nasceu em 1998. Em parceria com universida-des pblicas e movimentos camponeses, o Pronera tornou-se um es-pao de excelncia para a reexo terica e da prtica da Educao doCampo. Por meio de projetos de alfabetizao, escolarizao e de nveismdio e superior, milhares de pessoas assentadas esto participandodos processos de desenvolvimento de seus territrios.

    1 Do Ncleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrria (Nera). Universidade Estadual Paulista(Unesp) campus de Presidente Prudente, e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientco

    e Tecnolgico (CNPq).

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    E nesse processo, a questo que tem nos desaado : qual o campoda Educao do Campo? Para responder essa pergunta, apresen-tamos este ensaio terico, que resultado de dois tipos de trabalho:

    a participao como membro da Comisso Pedaggica Nacional doPronera e na realizao de um conjunto de pesquisas sobre os territ-rios do campesinato e do agronegcio no Brasil, Guatemala, EstadosUnidos, Canad, Portugal, Espanha e Cuba, a partir do estudo doprocesso de formao da Via Campesina e os modelos de desenvol-vimento rural nos respectivos pases. Em todos esses trabalhos temosanalisado que a diferenciao econmica entre o campesinato produzdiferentes formas de organizao do territrio campons e que asrelaes sociais camponesas por serem distintas das relaes sociaiscapitalistas, cuja expresso atual o agronegcio, produzem diferen-tes territrios. Embora esse processo seja to evidente, ele poucopercebido. As diferenciaes das dimenses dos territrios produzemterritrios distintos. Para demarcar bem, estamos armando que ocampesinato e o agronegcio produzem territrios distintos, de modoque temos dois campos: o campo campons e o campo do agroneg-

    cio. Neste artigo, apresentamos uma breve anlise dos territrios docampesinato e do agronegcio no territrio brasileiro.

    Aqui temos uma primeira reexo sobre a questo que ser apro-fundada neste texto. Temos dois campos, porque os territrios docampesinato e os territrios do agronegcio so organizados de for-mas distintas, a partir de diferentes relaes sociais. Um exemplo im-portante que enquanto o agronegcio organiza seu territrio paraproduo de mercadorias, o grupo de camponeses organiza seu terri-trio, primeiro, para sua existncia, precisando desenvolver todas asdimenses da vida.

    Essa diferena se expressa na paisagem e pode ser observada nasdistintas formas de organizao dos dois territrios. A paisagem doterritrio do agronegcio homogneo, enquanto a paisagem do ter-

    ritrio campons heterogneo. A composio uniforme e geom-trica da monocultura se caracteriza pela pouca presena de pessoas

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    no territrio, porque sua rea est ocupada por mercadoria, que pre-domina na paisagem. A mercadoria a expresso do territrio doagronegcio. A diversidade dos elementos que compem a paisagem

    do territrio campons caracterizada pela grande presena de pes-soas no territrio, porque nesse e desse espao que constroem suasexistncias, produzindo alimentos. Homens, mulheres, jovens, meni-nos e meninas, moradias, produo de mercadorias, culturas e infra-estrutura social, entre outros, so os componentes da paisagem dosterritrios camponeses. Portanto, a educao possui sentidos com-pletamente distintos para o agronegcio e para os camponeses. Evi-dente se est falando que o territrio campons deve continuar sendosempre territrio campons. Isso signica compreender o territriocampons como uma totalidade, de modo que o seu desenvolvimen-to no venha a destruir a sua estrutura. Essa uma compreenso doparadigma da questo agrria. Outra leitura do paradigma do capi-talismo agrrio, que v o territrio campons como uma possibilida-de de transformao em territrio do capital. Essa reexo terica desenvolvida neste artigo.

    A educao uma das dimenses fundamentais para o desenvolvi-mento territorial. Neste artigo, pretendemos oferecer um embasa-mento para discusso dos conceitos de territrio e de Educao doCampo. Aqui, importante diferenciar mais uma vez a Educao doCampo da Educao Rural. Edla de Arajo Lira Soares elaborou umarica anlise da subalternidade do campesinato na histria da Educa-o Rural, como relatoria das Diretrizes Operacionais para a Educa-o Bsica nas escolas do campo (CONSELHO NACIONAL DEEDUCAO, 2001). Outro exemplo esclarecedor o trabalho deClaudia Moraes de Souza a respeito do lugar da Poltica na EducaoRural e a representao do campons analfabeto. (SOUZA, 2006).Enquanto a Educao Rural um projeto externo ao campesinato, aEducao do Campo nasce das experincias camponesas de resistn-cia em seus territrios.

    Neste artigo, apresentamos algumas reexes a respeito da questo

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    agrria atual e seus territrios para discutir a reforma agrria a par-tir da disputa territorial entre a agricultura camponesa ou agriculturafamiliar e a agricultura capitalista ou agronegcio. Reunimos esses

    temas que, por estarem fortemente presentes em nosso cotidiano,exigem uma reexo mais profunda, especialmente, uma leitura terri-torial dos problemas.

    Denominamos de leitura territorial a opo terica e poltica que mui-tos estudiosos e diferentes instituies tm feito ao utilizarem o terri-trio como conceito-chave para anlise de diversas regies, em espe-cial do mundo rural. A leitura territorial desenvolvida neste trabalhodifere das leituras territoriais convencionais como demonstraremosna referida parte deste artigo. Apresentamos nosso contraponto compreenso do territrio uno discutindo o territrio como diferentestotalidades, evitando a armadilha do discurso consensual.

    Nessa leitura territorial, estamos atentos s diculdades polticas emetodolgicas que enfrentamos, por causa de algumas inconsistn-

    cias dos dados de propriedades de terra e estabelecimentos agrope-curios no Brasil. O Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e oCenso Agropecurio do Instituto Brasileiro de Geograa e Estatstica(IBGE) so as duas nicas fontes que nos possibilitam as anlisesreferentes s unidades territoriais: propriedade da terra e estabeleci-mentos agropecurios. Muitas crticas so feitas a essas fontes, porcausa da repetio de dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural edo aumento e diminuio dos nmeros de estabelecimentos no casodo Censo Agropecurio, por exemplo. Todavia, a utilizao dessasfontes tambm uma forma de acompanharmos as mudanas de seusresultados e as decises polticas para aprimor-las.

    Essa experincia histrica da construo da Educao do Camponos trouxe mais desaos com a criao do Curso Especial de Geo-graa da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Presi-

    dente Prudente, com alunos de assentamentos de diversas regiesbrasileiras. Eu tenho vivido essa experincia desde 1997, quando da

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    realizao do Encontro Nacional de Educadores e Educadoras daReforma Agrria. Neste texto, apresento um acmulo dos ensaiostericos que z com o objetivo de contribuir para a construo de

    uma teoria da Educao do Campo. Esse trabalho foi apresentadono III Seminrio do Programa Nacional de Educao na ReformaAgrria (Pronera), realizado em Luzinia, GO, de 2 a 5 de outubrode 2007, cuja conferncia foi compartilhada com a Professora Ro-seli Salete Caldart, do Instituto Tcnico de Capacitao e Pesquisada Reforma Agrria (Iterra).

    Este artigo est organizado em quatro partes: a questo agrria atual;o agronegcio: a construo do conceito e da ideologia; conhecendoos dois campos; entrando nos territrios do territrio. Por meio deuma anlise crtica, procuramos demonstrar a disputa territorial entreo campesinato e o agronegcio no Brasil, enfatizando a luta pela terrae a reforma agrria como polticas essenciais para a territorializaodo campesinato.

    A questo agrria atual

    Em primeiro lugar, ressalto que para uma melhor reexo a respeitoda Educao do Campo, fundamental partir do debate paradig-mtico que est relacionado com todos os temas de pesquisas domundo rural.

    Em FERNANDES (2001), apresentei minha compreenso da ques-to agrria como um problema estrutural do modo capitalista de pro-duo. Esse problema criado pela lgica da reproduo ampliadado capital, que provoca o desenvolvimento desigual, por meio daconcentrao de poder expresso em diferentes formas, por exemplo:propriedade da terra, dinheiro e tecnologia. Esta lgica produz a con-centrao de poder criando o poder de concentrar, reproduzindo-se

    innitamente. A reproduo inndvel da natureza do modo ca-pitalista de produo, portanto, para garantir sua existncia, o capi-

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    tal necessita se territorializar sem limites. Para sua territorializao,o capital precisa destruir outros territrios, como, por exemplo, osterritrios camponeses e indgenas. Esse processo de territorializao

    e desterritorializao gera conitualidades diferenciadas que se mo-dicam de acordo com a conjuntura da questo agrria. Todavia, aquesto agrria no uma questo conjuntural, como muitos pensam.A questo agrria estrutural, portanto no h soluo para a questoagrria a partir do modo capitalista de produo.

    O que estou relatando aqui muito prximo ao que KAUTSKY(1985) e LNIN (1986) armaram no nal do sculo XIX com suasobras seminais que fundaram o paradigma da questo agrria.A diferena que naquela poca existia a perspectiva da revoluosocialista como possibilidade de superao da questo agrria. Hoje,no incio do sculo XXI, a perspectiva do sculo XIX tornou-se umnovo desao de reconstruo das possibilidades de superao domodo capitalista de produo. Na manuteno dessa perspectiva, osmovimentos camponeses so alguns dos poucos espaos, no qual se

    acredita nessa possibilidade.

    Rearmar que a questo agrria insupervel no modo capitalista deproduo pressupe tomar uma posio paradigmtica, que nasce comas obras de Kautsky e Lnin, e que continua hoje com as novas con-junturas. Todavia, a questo estrutural se mantm rgida, ou seja, a con-centrao de poder expresso em terra (territrio), dinheiro e tecnologia.Essa rearmao necessria para que possamos distinguir oparadig-ma do capitalismo agrrio que nasceu na segunda metade do nal dosculo XX, tendo MENDRAS (1984) como referncia seminal, e queprocura encontrar soluo a partir do modo capitalista de produo.

    O problema e a soluo esto colocados para os dois paradigmas.O problema se expressa pela concentrao de poder pelo capital eexpanso da misria por meio da excluso dos camponeses no acesso

    terra, capital e tecnologia. A respeito do problema, os paradigmass diferem na nfase. Enquanto o paradigma da questo agrria de-

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    nuncia a violncia da excluso e da expropriao, o paradigma docapitalismo agrrio apenas constata. Todavia, no que se refere pers-pectiva da soluo, os dois paradigmas diferem estruturalmente. Para

    o paradigma da questo agrria, a soluo est no enfrentamento como capital e, por essa razo, o mercado amplamente renegado pelosestudiosos desse paradigma, que o compreendem, em sua maior par-te, apenas como mercado capitalista. Para o paradigma do capitalismoagrrio, a soluo est na integrao com o capital e, por essa razo,o mercado capitalista venerado pelos estudiosos desse paradigma.Essas duas vises esto presentes nas teorias e nas polticas pblicase se expressam na construo de diferentes realidades.

    Os dois paradigmas analisam os processos de destruio do campesi-nato de acordo com suas lgicas. Embora em suas origens, KAUTSKYe MENDRAS tenham discutido o m do campesinato, o tema hojeest superado. Esse debate foi multiplicado em teses e dissertaesat seu esgotamento. Embora o tema do m do campesinato te-nha ganhado nova verso, j que o paradigma do capitalismo agrrio

    optou pela crena na metamorfose do campons em agricultor fami-liar. O problema do m do campesinato mudou de foco. Agora, om no est na expropriao gerada pela desigualdade, mas sim naintegrao do campesinato na economia capitalista, que o destruiriapara transform-lo em agricultor familiar.

    Essa uma interpretao equivocada em que o campons quandoinserido no mercado capitalista utilizando-se de novas tecnologias setransformaria em agricultor familiar. Na verdade, criou-se um novonome para se falar do mesmo sujeito. Mas, a criao do conceito deagricultor familiar gerou uma enorme confuso. H entre os movi-mentos camponeses a percepo que campons o pequeno agricul-tor pobre e o agricultor familiar o pequeno agricultor rico, conside-rando as inmeras interpretaes do que ser pobre ou rico. Mesmoentre os intelectuais essa questo ainda um tabu e a confuso impe-

    ra. Mas, h outras interpretaes.

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    Se compararmos o campesinato do nal do sculo XIX quandoKAUTSKY e LNIN formularam suas teorias que geraram o para-digma da questo agrria com o campesinato do nal do sculo XX,

    quando se consolidaram os estudos sobre o paradigma do capitalismoagrrio , observamos que o processo de concentrao de poder pelocapital, expresso em propriedades, capital e tecnologia ampliou-se,como de sua natureza. Por essa razo, os problemas do campesinatoexpresso na excluso e expropriao permaneceram. Todavia, no o mesmo campesinato. Esse tambm mudou com as transformaesque ocorreram no territrio no mbito da tecnologia, principalmen-te.Esses dois paradigmas criaram pelo menos duas leituras do campe-sinato. Ele pode ser compreendido como moderno nas anlises deBARTRA (2007), como pode ser visto como agricultor familiar nasanlises de ABRAMOVAY (1992), por exemplo. Essas possibilidadesde denir conceitualmente so prprias da diversidade e da diferen-ciao do campesinato. Mas tambm h intencionalidades diferentes

    em cada um dos paradigmas com relao s perspectivas desse sujeitopoltico. Esse o grande desao, pois no processo de diferenciaoeconmica provocado pela desigualdade gerada pelo modo capitalistade produo, se expropriados tornam-se assalariados, se consegui-rem se inserir no processo de reproduo ampliada do capitaltornam-se capitalista.

    Portanto, no a participao do campons no mercado capitalistaque o torna capitalista. Como tambm no o uso de novas tecno-logias ou a venda para a indstria que o torna capitalista. a mudan-a de uma relao social organizada no trabalho familiar para umarelao social organizada na contratao do trabalho assalariado emcondio que supere a fora de trabalho da famlia em determina-das condies espaciais e temporais. Essas condies dependem dasinstituies que as determinam. Evidentemente, no existe consenso

    sobre um parmetro para essas condies.

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    Agronegcio: construo do conceito e da ideologia

    Nesta parte, desenvolvemos uma reexo a respeito dos territrios

    materiais e imateriais: o espao fsico e a ideologia. Aqui, discutiremosa construo do conceito do agronegcio e a forma de modernizaodo territrio capitalista, o que amplia suas condies da dominaodo territrio campons. A primeira formulao do conceito de agro-negcio (agribusiness) de John Davis e Ray Goldberg, publicado em1957. Para os autores, agribusiness um complexo de sistemas quecompreende agricultura, indstria, mercado, capital e trabalho. Desdea construo do conceito, um novo elemento passou a fazer partedo complexo: a produo de tecnologias para atender a todos os sis-temas. O movimento desse complexo e suas polticas formam ummodelo de desenvolvimento econmico controlado por corporaestransnacionais, que trabalham com um ou mais commoditiese com di-versos setores da economia. Essa condio confere s transnacionaisdo agronegcio um poder extraordinrio que possibilita a manipula-o dos processos em todos os sistemas do complexo.

    Agronegcio , portanto, o novo nome do modelo de desenvolvi-mento econmico desse conjunto de sistemas que contm, inclusive,a agropecuria capitalista. Esse modelo no novo, sua origem estno sistemaplantation, em que grandes propriedades so utilizadas naproduo para exportao. Desde os princpios do capitalismo emsuas diferentes fases, esse modelo passou por modicaes, amplia-es e adaptaes, intensicando a explorao da terra e do homem.Agronegcio uma palavra nova, da dcada de 1990. Nos trabalhossobre a modernizao da agricultura da dcada de 1980, observamosque esse conceito no existia na traduo para a lngua portuguesa. Umexemplo o livro Agribusiness in the Americas, de Roger Burbache Patricia Flynn, de 1980, que foi publicado no Brasil em 1982 com ottulo Agroindstria nas Amricas. Durante essa dcada, at meados

    do dcada de 1990, o conceito de complexo agroindustrial dominou aliteratura dos estudiosos da modernizao do campo. A partir de me-

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    ados da dcada de 1990, ainda houve a tentativa de associar a idia decomplexo idia de redes, mas no decolou e o conceito de agroneg-cio ganhou fora, tornando-sefashion, expresso que a maior parte das

    pessoas que a utiliza no sabe o que .O conceito de agronegcio tambm uma construo ideolgica paratentar mudar a imagem latifundista da agricultura capitalista. O lati-fndio carrega em si a imagem da explorao, do trabalho escravo, daextrema concentrao da terra, do coronelismo, do clientelismo, dasubservincia, do atraso poltico e econmico. , portanto, um espa-o que pode ser ocupado para o desenvolvimento do pas. Latifndioest associado com terra que no produz, que pode ser utilizada parareforma agrria. Embora tenham tentado criar a gura do latifndioprodutivo (sic), essa ao no teve xito, pois so mais de 500 anos deexplorao e dominao, que no h adjetivo que consiga modicar ocontedo do substantivo.A imagem do agronegcio foi construda para renovar a imagem

    da agricultura capitalista, para moderniz-la. uma tentativa deocultar o carter concentrador, predador, expropriatrio e excluden-te para dar relevncia somente ao carter produtivista, destacando oaumento da produo, da riqueza e das novas tecnologias. Da escravi-do colheitadeira controlada por satlite, o processo de exploraoe dominao est presente, a concentrao da propriedade da terrase intensica e a destruio do campesinato aumenta. O desenvolvi-mento do conhecimento que provocou as mudanas tecnolgicas foiconstrudo a partir da estrutura do modo de produo capitalista. Detal maneira que houve o aperfeioamento do processo, mas no a so-luo dos problemas socioeconmicos e polticos: o latifndio efetuaa excluso pela improdutividade, o agronegcio promove a exclusopela intensa produtividade.A agricultura capitalista ou agricultura patronal ou agricultura empre-

    sarial ou agronegcio, qualquer que seja o eufemismo utilizado, nopode esconder o que est na sua raiz, na sua lgica: a concentrao e a

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    explorao. Nessa nova fase de desenvolvimento, o agronegcio pro-cura representar a imagem da produtividade, da gerao de riquezaspara o pas. Desse modo, se torna o espao produtivo por excelncia,

    cuja supremacia no pode ser ameaada pela ocupao da terra. Se oterritrio do latifndio pode ser desapropriado para a implantao deprojetos de reforma agrria, o territrio do agronegcio apresenta-secomo sagrado, que no pode ser violado. O agronegcio um novotipo de latifndio e ainda mais amplo, agora no concentra e dominaapenas a terra, mas tambm a tecnologia de produo e as polticasde desenvolvimento.A fundao do agronegcio expandiu sua territorialidade, ampliandoo controle sobre o territrio e as relaes sociais, agudizando as in-justias sociais. O aumento da produtividade dilatou sua contradiocentral: a desigualdade. A utilizao de novas tecnologias tem possi-bilitado, cada vez mais, uma produo maior em reas menores. Esseprocesso signicou concentrao de poder conseqentemente deriqueza e de territrio. Essa expanso tem como ponto central o con-

    trole do conhecimento tcnico, por meio de uma agricultura cientcaglobalizada.

    Conhecendo os dois campos

    O agronegcio procura manter o controle sobre as polticas e sobreo territrio, conservando assim um amplo espao poltico de domi-nao. Tudo o que est fora desse espao sugado pela ideologiado agronegcio. Um exemplo a reforma agrria. Para combater asocupaes de terra, a poltica criada pelo agronegcio foi a reformaagrria de mercado. Depois de denominada de Cdula da Terra virouBanco da Terra e hoje chamada de Crdito Fundirio. uma tenta-tiva de tirar a luta popular do campo da poltica e jog-la no territriodo mercado, que est sob o controle do agronegcio.

    As ocupaes de terra ferem profundamente a lgica do mercado e

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    por essa razo o agronegcio investe ferozmente na criminalizaoda luta pela terra, pressionando o Estado a impedir a espacializaodessa prtica de luta popular. Para tentar evitar o enfrentamento com

    os camponeses, o agronegcio procura convenc-los que o consenso possvel. Todavia, as regras propostas pelo agronegcio so semprea partir de seu territrio: o mercado. O controle do territrio e dasformas de acesso terra objetivo da mercantilizao da reformaagrria, fazendo com que o acesso seja por meio das relaes de mer-cado, de compra e venda. O controle da propriedade da terra umdos trunfos do agronegcio. fundamental que a terra esteja dispo-nvel para servir lgica rentista.

    Por essa razo, as ocupaes de terra so uma afronta ao agronegcio,porque essa prtica secular de luta popular encontra-se fora da lgicade dominao das relaes capitalistas. Assim, o sacro agronegcioprocura demonizar os movimentos socioterritoriais que permanen-temente ocupam a terra. Na ltima dcada, o espao poltico maisutilizado foi o Poder Judicirio. Recentemente tem ocorrido a judi-

    ciarizao da luta pela terra, em que o Poder Judicirio se apresentacomo uma cerca intransponvel aos sem-terra. Para no manchar suaimagem, o agronegcio procura desenvolver polticas de crdito e/oubolsas de arrendamento, de modo a trazer os ocupantes de terra parao territrio do mercado.

    A cada ano, o agronegcio se territorializa com maior rapidez e des-territorializa a agricultura camponesa. O empobrecimento dos peque-nos agricultores e o desemprego estrutural agudizam as desigualdadese no resta resistncia camponesa outra sada a no ser a ocupa-o da terra como forma de ressocializao. As ocupaes de ter-ras do agronegcio j comearam nas regies onde esse modelo dedesenvolvimento controla a maior parte do territrio, concentrandoriqueza e aumentando a misria. Esse o novo contedo da questoagrria nesta primeira dcada do sculo XXI.

    O campesinato uma classe que, alm das relaes sociais em que

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    est envolvido, tem o trunfo do territrio. A cada ocupao de ter-ra, ampliam-se as possibilidades de luta contra o modo capitalista deproduo. E pode se fortalecer cada vez mais se conseguir enfrentar

    e superar as ideologias e as estratgias do agronegcio, se conseguirconstruir seus prprios espaos polticos de enfrentamento com oagronegcio e manter sua identidade socioterritorial. Essas condiesso fundamentais para o desenvolvimento da agricultura camponesa.

    Entrando nos territrios do territrio

    Para se conhecer o poder dos territrios imateriais, um bom exemploso as polticas neoliberais. O avano das polticas neoliberais e seusajustes estruturais provocaram pelo menos duas mudanas signicati-vas na sociedade: a minimizao do Estado e a maximizao do capi-tal na tomada de decises a respeito das polticas de desenvolvimento.Essa realidade mais bem compreendida com a crise do socialismoe conseqentemente dos governos de esquerda, cujas polticas de de-

    senvolvimento esto atreladas expanso do mercado capitalista glo-balizado como a possibilidade econmica para o desenvolvimento.O capital maximizado determina ainda mais os rumos das polticasde desenvolvimento, enquanto o Estado minimizado assiste, muitasvezes passivo, criao de leis e polticas que beneciam muito maisos interesses das empresas capitalistas nacionais/transnacionais doque os interesses da sociedade. Especialmente no campo, as toma-das de decises para o desenvolvimento tm sido determinadas pelosinteresses das empresas nacionais/transnacionais. Por meio de suasthink tanks, so elaborados projetos de desenvolvimento e leis queviabilizam sua execuo, contando com o apoio poltico e, muitasvezes, com o apoio econmico do Estado. Essa realidade tem geradoe intensicado as desigualdades sociais, por meio da excluso, expro-priao territorial e controle social da maior parte da populao rural,com a precarizao das relaes de trabalho, desemprego estrutural e

    destruio de camponeses e de comunidades indgenas.

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    muito interessante observar que nesse contexto que o conceitode territrio usado como instrumento de controle social para subor-dinar comunidades rurais aos modelos de desenvolvimento apresen-

    tados pelo capital. O territrio como categoria geogrca tem umalonga histria terica. Em suas diferentes concepes, o territriosempre foi estudado a partir das relaes de poder, desde o Estadoao capital, desde diferentes sujeitos, instituies e relaes. Na es-sencialidade do conceito de territrio esto seus principais atributos:totalidade, multidimensionalidade, escalaridade e soberania. Portanto, impossvel compreender o conceito de territrio sem conceber asrelaes de poder que determinam a soberania. Quando nos referi-mos ao territrio em sua escalaridade, ou seja, em suas diversas esca-las geogrcas, como espao de governana de um pas, de um estadoou de um municpio, o sentido poltico da soberania pode ser expli-citado pela autonomia dos governos na tomada de decises. Quandonos referimos ao territrio como propriedade particular individual oucomunitria, o sentido poltico da soberania pode ser explicitado pelaautonomia de seus proprietrios na tomada de decises a respeito do

    desenvolvimento desses territrios.

    Sempre importante enfatizar a relao entre os territrios como es-pao de governana e como propriedades. Essa relao determina-da por polticas de desenvolvimento, portanto quem determina a po-ltica dene a forma de organizao dos territrios. Aqui, necessriolembrar seus atributos: cada territrio uma totalidade, por exemplo:os territrios de um pas, de um estado, de um municpio ou de umapropriedade so totalidades diferenciadas pelas relaes sociais e es-calas geogrcas. Essas totalidades so multidimensionais e s socompletas neste sentido, ou seja, relacionando sempre a dimensopoltica com todas as outras dimenses: social, ambiental, cultural,econmica, etc. Compreender essas relaes essencial para conhe-cermos as leituras territoriais realizadas por estudiosos de diversasreas do conhecimento e por diferentes instituies que impem seus

    projetos de desenvolvimento s comunidades rurais.

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    Cada instituio, organizao, sujeito etc. constri seu territrio e con-tedo de seu conceito, desde que tenha poder poltico para mant-los.Esses criadores de territrios podero explorar somente uma ou algu-

    mas de suas dimenses. Isso tambm uma deciso poltica. Todavia,ao explorar uma dimenso do territrio, ele atinge todas as outraspor causa dos princpios da totalidade, escalaridade e multidimensio-nalidade. A compreenso de cada tipo de territrio como totalidadecom sua multidimensionalidade e organizado em diferentes escalas, apartir de seus diferentes usos, nos possibilita entender o conceito demultiterritorialidade. Considerando que cada tipo de territrio temsua territorialidade, as relaes e interaes dos tipos nos mostram asmltiplas territorialidades. por essa razo que as polticas executa-das no territrio como propriedade atingem o territrio como espaode governana e vice-versa. A multiterritorialidade une todos os ter-ritrios por meio da multidimensionalidade e, por meio das escalasgeogrcas, podem ser representados como camadas (layers), em queuma ao poltica tem desdobramento em vrios nveis ou escalas:local, regional, nacional, internacional.

    Nesse sentido, ao se pensar polticas territoriais necessrio com-preender sua escalaridade e sua multidimensionalidade. Quando oterritrio concebido como uno, ou seja, apenas como espao degovernana, e se ignora os diferentes territrios que existem no in-terior do espao de governana, temos ento uma concepo redu-cionista de territrio, um conceito de territrio que serve mais comoinstrumento de dominao por meio das polticas neoliberais. Nessacondio, uma determinada regio escolhida para a aplicao de po-lticas de desenvolvimento, em grande parte, a partir dos interesses docapital. Evidente que pelo fato das comunidades camponesas teremmenor poder poltico tero pouco poder de deciso na determina-o das polticas, por mais que o discurso das instituies defenda oempoderamento das comunidades rurais. Desse modo, as polticaspromovem o fortalecimento das relaes capitalistas em detrimento

    das relaes no-capitalistas ou familiares e comunitrias. Intensica-se, dessa forma, as polticas de expropriao das comunidades rurais,que perdem seus territrios para o capital que necessita se apropriar

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    continuamente dos territrios camponeses para se expandir.

    Temos ento uma disputa territorial entre capital e campesinato. As

    propriedades camponesas e as capitalistas so territrios distintos,so totalidades diferenciadas, onde se produzem relaes sociais di-ferentes, que promovem modelos divergentes de desenvolvimento.Territrios camponeses e territrios capitalistas como diferentes for-mas de propriedades privadas disputam o territrio nacional. Parase compreender essa disputa, importante uma anlise dos nveise escalas territoriais: o primeiro territrio e o segundo territrio. Oprimeiro territrio formado pelos espaos de governana em di-ferentes escalas: nacional, regional, estadual, municipal, distrital. Osegundo territrio composto pelos diferentes tipos de propriedadesparticulares.

    A partir dessa tipologia, pode-se compreender as conitualidades en-tre modelos de desenvolvimento que disputam territrios, condioessencial para sua expanso. Estamos nos referindo especialmente

    aos modelos de desenvolvimento do agronegcio resumidamentea partir da produo de monoculturas em grande escala, com traba-lho assalariado, intensamente mecanizado e com utilizao de agro-txicos e sementes transgnica; e ao modelo de desenvolvimento docampesinato ou agricultura familiar, em sntese, a partir da produode policulturas, em pequena escala, com predominncia do trabalhofamiliar, com baixa mecanizao, em sua maior parte, com base nabiodiversidade sem a utilizao de agrotxicos. Esses modelos dispu-tam territrios, produzindo o segundo territrio no interior do pri-meiro territrio. A disputa do segundo territrio tambm a disputado primeiro territrio. Embora sejam diferentes, esto no mesmoespao geogrco municipal, que est no espao geogrco estaduale este, por sua vez, est no espao geogrco nacional, formando amultiterritorialidade. Esses modelos de desenvolvimento determinama organizao do espao geogrco, por meio da produo de territ-

    rios, gerando e intensicando conitualidades que so insolveis porcausa da hegemonia do modo capitalista de produo.

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    Rearmamos, o territrio uma totalidade, mas no uno. Concebero territrio como uno compreend-lo como espao de governan-a, que um tipo de territrio, e ignorar os outros tipos. Mais uma

    vez, importante lembrar que compreender o territrio como tota-lidade fundamental para se entender sua multidimensionalidade emultiterritorialidade. Enfatizamos que todas as unidades territoriaisformam totalidades por conterem em si todas as dimenses do desen-volvimento: poltica, econmica, social, cultural e ambiental. Comoos territrios so criaes sociais, temos vrios tipos, que esto emconstante conitualidade. Considerar o territrio como uno umaopo para ignorar suas conitualidades.

    Para superar a compreenso do territrio como uno, tomamos dife-rentes formas do territrio. Temos territrios materiais e imateriais.Os materiais so formados no espao fsico e os imateriais no espaosocial a partir das relaes sociais por meio de pensamentos, concei-tos, teorias e ideologias. Territrios materiais e imateriais so indisso-civeis, porque um no existe sem o outro. A construo do territrio

    material resultado de uma relao de poder que sustentada peloterritrio imaterial como pensamento, teoria e/ou ideologia.

    H trs tipos de territrios materiais: o primeiro territrio formado pelopas, estados e municpios; o segundo territrio formado pelas proprie-dades privadas capitalistas ou no-capitalistas; o terceiro territrio pordiferentes espaos que so controlados por relaes de poder. Essesso territrios-uxos controlados por diferentes sujeitos e so produzi-dos nos territrios-xos do primeiro e do segundo territrio.

    Primeiro territrio o Estado-nao e suas unidades territoriais in-ternas: pas, estados e municpios. So nestes que se organizam to-dos os outros territrios: propriedades particulares individuais epropriedades comunitrias, que so territrios-xos. Nos territriosdos municpios so organizados territrios-uxos, cujas fronteiras se

    movimentam de acordo com as aes institucionais e as conitua-lidades. Exemplos de territrios-uxos so os espaos controlados

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    por diferentes formas de organizao, como por exemplo, redes denarcotrco, prostituio, etc.

    Para discutirmos a questo agrria, vamos tomar como referncias oprimeiro e o segundo territrios. Com a Tabela 1, iniciamos nossa an-lise sobre o primeiro territrio e os diferentes espaos que o compem,entre eles, o segundo territrio. De acordo com OLIVEIRA (2003, pp.126-127), com base nos dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural,em 2003, o territrio brasileiro de 850,2 milhes de hectares teria aseguinte composio: 15% ou 128,5 milhes de hectares eram terrasindgenas; 12% ou 102,1 milhes de hectares eram unidades de con-servao ambiental; 3,5% ou 29,2 milhes de hectares formavam reasurbanas e reas ocupadas por rios, rodovias e posses. Ainda, 69,5%ou 590 milhes de hectares eram ocupados por propriedades rurais,sendo 49,5% ou 420,4 milhes de hectares dos imveis cadastrados noInstituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra) e 20%ou 170 milhes de hectares formados por terras devolutas.

    Tabela 1 Brasil: ocupao das terras em milhes de hectares

    Terras indgenas 128,5 15,0%

    Unidades de conservao ambiental 102,1 12,0%

    Imveis cadastrados no Incra 420,4 49,5%

    reas urbanas, rios, rodovias e posses 29,2 3,5%

    Terras devolutas 170,0 20,0%

    Ttal 850,2 100%

    Fonte: Adaptado de OLIVEIRA (2003, pp. 126-127).

    Como informamos na introduo deste artigo, sabemos dos proble-mas do Sistema Nacional de Cadastro Rural, todavia, inegvel queseja uma referncia importante para termos noo dos diferentes ti-pos de territrio em escala nacional.

    Na Tabela 2, nos deteremos anlise do segundo territrio, ou seja,os imveis rurais cadastrados, para compreendermos melhor as mu-danas ocorridas na estrutura fundiria entre 1992 e 2003. Conside-

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    rando o cancelamento 93 milhes de hectares de ttulos de terras gri-ladas em 1999, conforme anunciado no Livro Branco da Grilagem deTerra no Brasil, a rea das propriedades rurais cresceu 89 milhes de

    hectares entre 1992 e 2003.

    Tabela 2 Brasil: mudanas na estrutura fundiria 1992-2003

    1992 % 2003 %

    Imveis em hectares rea em milhes rea em milhes de ha. de ha.

    Com mais de 200 (capitalista) 245 74 297 71

    Com menos de 200 (familiar) 86 26 123 29

    Ttal 331 100 420 100

    Fonte: Atlas Fundirio Brasileiro, 1996; II PNRA, 2003.(Organizao: Bernardo Manano Fernandes)

    Como defendemos neste artigo, os imveis cap