CLASTRES, Pierre. a Sociedade Contra o Estado

Embed Size (px)

Citation preview

  • Pierre Clastres

    A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO

    (INVESTIGAES DE ANTROPOLOGIA POLITICA)

    AFRONTAMENTO/PORTO 1979

    , ... ' ..

  • .ifii:e~ \\,oo 'Q: \ ~ ~~ \?:,

    JH~-7 Direitos de traduo reservados para Portugal por Publicaes Escorpio/ /Edies Afrontamento, Porto, 1975.

    ,r- 'I ' -.. /. '-" ' - ; '- ..1

    Traduo de Bernardo Frey

    Reviso de Miguel Serras Pereira

    Capa de Joo B.

    EDIOES AFRONTAMENTO R. Costa Cabral, 859 - 4200 Porto

    CAPITULO I

    COPllRNICO E OS SELVAGENS

    On di8oit Socrates que qnelqu'on ne s'estit aucuuement amend en son voyage: Je croy Dien, di.t-U, il s'estoit emport avecqnea soy.

    Montai.gne

    Poder-nos-emos interrogar seriamente a propsito do poder? Um fragmento de PaTia alm do bem e do maJ comea da seguinte maneira: Se verdade que ao longo de todos os tempos, desde que os homens existem, existiram tam-bm rebanhos humanos (confrarias sexuais, comunidades, tri-bos, naes, Igrejas, Estados) e sempre um grande nmero de homens obedecendo a um pequeno nmero de chefes; se, por conseguinte, a obedincia o que melhor e durante mais tempo foi exercido e cultivado entre os homens, estamos no direito de presumir que, por princpio, cada um de ns possui em si a necessidade inata de obedecer, como uma espcie de conscincia jormal que ordena: 'Tu fars isto, sem dis-cutir; tu abster-te-s daquilo, sem discutir'; resumindo, de um 'tu fars' que se trata. Pouco preocupado, como habitual-mente, com o verdadeiro e o falso dos seus sarcasmos, Nietzs-che, sua maneira, no obstante isola e circunscreve exacta-

  • mente um campo de reflexo que, dantes confinado unicamente aos horizontes do pensamento especulativo, se v desde h dois decnios, aproximadamente, ligado aos esforos de uma inves-tigao de vocao a bem dizer cientfica. Referimo-nos ao espao do poTitico, no centro do qual o poder coloca a sua questo: temas novos, em antropologia social, estudos cada vez mais numerosos. Que a etnologia no se tenha interessado, seno tardiamente, pela dimenso poltica das sociedades arcai-cas- seu objecto preferencial, no entanto- eis o que de resto no estranho, tentaremos demonstr-lo, prpria proble-mtica do poder: ndice sobretudo dum modo espontneo, ima-nente nossa cultura e portanto OI:'temente tradicional, de apreender as relaes polticas tais como se ligam em culturas outras. Mas o atraso ultrapassa"se, as lacunas preenchem-se; h doravante textos e descries suficientes pare que possa-mos falar de uma antropologia politica, medir os seus resul-tados e reflectir sobre a natureza do poder, sobre a sua origem, sobre as transformaes que a histria lhe impe consoante os tipos de sociedade em que ele se exerce. Projecto ambicioso, mas tarefa necessria que a obra considervel de J. W. Lapierre Ensaio BObre o fundamento do poder poltico leva a cabo' Trata-se de um trabalho tanto mais digno de interesse, quanto neste livro se encontra antes do mais reunida e explorada uma massa de informaes respeitantes no ape-nas s sociedades humanas, mas tambm s espcies animais sociais, e em seguida porque o autor um filsofo cuja refle-xo se exerce sobre os dados fornecidos pelas disciplinas modernas que so a sociologia animal e a etnologia.

    Estamos portanto perante a questo do poder politico e, muito legitimamente, J. W. Lapierre interroga-se antes do mais sobre se este facto humano corresponde a uma neces-sidade vital, se ele se desenvolve a partir de uma raiz biol-gica, se, noutros termos, o poder encontra o seu local de

    1 J. W. Laplerre, Essal sur Ie fondement du pouvoir politique, Publicao da Faculdade de A'ix-en-Provence, 1968.

    6

    nascimento e a sua razo de ser na natureza e no na cultura. Ora, no termo de uma discusso paciente e sbia dos traba-lhos mais recentes de biologia animal, discusso nada acad-mica, de resto, se bem que o seu resultado fosse previsvel, a resposta clara: 0 exame critico dos conhecimentos adqui-ridos sobre os fenmenos sociais entre os animais e nomea-damente sobre o seu processo de autoregulao social eviden-ciou-mos a ausncia de toda a forma, mesmo embrionria, de poder poltico ... (pg. 222). Ultrapassado este problema, e perante a certe21a de nada mais ter a investigar nesse campo, o autor volta-se para as cincias da cultura e da histria, na inteno de interrogar- na seco que rpelo volume a mais importante da sua investigao- as formas 'arcaicas' do poder poltico nas sociedades humanas. As reflexes que se seguem encontraram a sua inspirao mais particularmente na leitura destas pginas consagradas, por assim dizer, ao poder entre os Selvagens.

    O leque das sociedades consideradas impressionante; suficientemente amplo, em todo o caso, para afastar o leitor exigente de qualquer eventual duvida quanto ao carcter exaus-tivo da aferio, j que ,a anlise Se exerce sobre exemplos recolhidos em frica, nas trs Amricas, na Oceania, Sib-ria, etc. Resumindo, uma recolha quase completa, pela sua variedade geogrfica e tipolgica, daquilo que o mundo pri-mitivo podia oferecer de diferenas relativamente ao hori-zonte no arcaico, sobre cujo fundo se desenha a figura do poder poltico na nossa cultura. Isto , o alcance do debate e a seriedade que requer o exame da sua conduo;

    Facilmente se imagina que estas de21enas de sociedades arcaicas nada possuem em comum para alm precisamente da determinao do seu arcasmo, determinao negativa, como o indica Lapierre, estabelecida pela ausncia de escrita e pela economia dita de subsistncia. As sociedades arcaicas podem portanto diferir profundamente entre si, nnhuina se assemelha de facto a outra e estamos longe da dbil repetio que tornaria iguais todos os Selvagens. :m portanto necessrio

    7

  • introduzir um minimo de ordem nesta multiplicidade a fim de permitir a comparao entre as unidades que a compem, e esta a razo que leva Lapierre, aceitando quase inteira-mente as clssicas classificaes propostas pela antropologia anglo-saxnica relativamente a frica, a imaginar cinco gran-des tipos partindo das sociedades a:reaicas nas quais o poder poltico se encontra mais desenvolvido at chegar finalmente s que apresentam... uma quase ausncia deste, e at um vazio absoluto de poder propriamente poltico (pg. 229). Ordenam-se portanto as culturas primitivas numa tipologia fundada, em suma, sobre a maior ou menor quantidade de poder poltico que cada uma de entre elas oferece observa-o, podendo esta quantidade de poder tender para o zero, ... certos grupos humanos, em condies de vida determina-das que lhes permitiam subsistir em pequenas 'sociedades fechadas', puderam passar Aem poder poltico (pg. 525).

    Reflictamos na prpria natureza desta classificao. Qual o seu critrio? Como se define aquilo que, presente em maior ou menor quantidade, permite assinalar tal lugar a tal socie-dade? Ou, noutros termos, que se entende, mesmo que a ttulo provisrio, por poder poltico? A questo , admitir-se-, de importncia j que, no intervalo que se supe separar sociedades sem .poder e sociedades com poder, se deveriam evidenciar simul-taneamente a essnda do poder e o seu fundamento. Ora, no se fica com a impresso, seguindo as anlises, minuciosas no entanto, de Lapierre, de assistir a uma ruptura, a uma des-continuidade, a um salto radical que, arrancando os grupos humanos sua estagnao prepoltica, os transformaria em sociedade civil. Deveremos portanto concluir que entre as sociedades de signo + e as sociedades de signo - a passagem progressiva, continua e da ordem da quantidade? Se assim , a prpria possibilidade de classificar as sociedades desapa-rece, pois entre os dois extremos- sociedades com Estado e sociedades sem poder- figurar a infinidade de graus intermedirios, definindo no limite cada sociedade particular como uma classe do sistema. Este , de resto, o destino de

    8

    qualquer projecto taxinmico desta espcie, medida que se aprofunda o conhecimento das sociedades arcaicas e que, em consequncia, melhor se desvendam as suas diferenas. Por conseguinte, tanto num caso oomo noutro, na hiptese da des-continuidade entre no-poder e poder ou na da continuidade, parece correcto pensar que nenhuma classificao das socie-dades empiricas nos pode esclarecer nem sobre a natureza do poder politico nem sobre as circunstncias do seu advento, e que o enigma persiste no seu mistrio.

    0 poder realiza-se numa relao social caracterstica: /I comando-obedincia (pg. 44). Daqui resulta que as socie-

    dades onde no se observa esta relao essencial so socie-dades sem poder. Voltaremos a este assunto. O que convm desde j revelar o tradicionalismo desta concepo que exprime com bastante fidelidade o espirita da investiga-o etnolgica: a certeza nunca posta em dvida de que o poder poltico existe unicamente numa relao que se resolve, em definitivo, numa relao de coero. De modo que, sobre este ponto, entre Nietzsche, Max Weber (o poder do Estado como monoplio do uso legitimo da violncia) ou a etnologia contempornea, o parentesco mais intimo do que parece, e as linguagens diferem pouco, pois partem dum mesmo principio: a verdade e o ser do poder consistem na violncia e no se pode pensar no poder sem o seu predicado, a violncia. Talvez seja efectivamente assim, e nesse caso a etnologia no rigo-rosamente culpada de aceitar sem discusso aquilo que o Oci-dente pensa desde sempre. Mas, precisamente, necessrio que nos asseguremos disso e verifiquemos sobre o prprio terreno -o das sociedades arcaicas- se quando no existe coero o violncia deixamos de poder falar de poder.

    Que acontece com os tndios da Amrica? Srube-se que excepo das altas culturas do Mxico, da Amrica Central e dos Andes, todas as sociedades indias so arcaicas: ignoram a escrita e subsistem, do ponto de vista econmico. Por outro lado, todas, ou quase todas, so dirigidas por lfderes, chefes e, caracterstica decisiva digna de reter a ateno, nenhum

    9

  • destes caciques possui poder. Encontramo-nos portanto con-frontados com um enorme conjunto de sociedades onde os detentores do que noutro lado se designaria por poder esto de facto sem poder, onde o poltico se determina como campo fora de toda a coero e de toda a. violncia, fora de toda a subordinao hierrquica, onde, numa palavra, no se pro. cessa nenhuma relao de comando-obedincia. li: esta a grande diferena do mundo ndio e o que permite falar das tribos americanas como dum universo homogneo, apesar da extrema variedade de culturas que o habitam. Portanto e de acordo com o critrio retido por Lapierre, o Novo Mundo cairia na sua quase-totalidade no campo prepoltico, quer dizer, no ltimo grupo da sua tipologia, aquele que engloba as socie-dades onde o poder poltico tende para o zero. No entanto nada se passa assim, j que exemplos americanos pontuam a classificao em causa, que sociedades ndias so includas em todos os tipos e que poucas de entre elas pertencem justa-mente ao ltimo tipo que as deveria normalmente agrupar a todas. Existe a algum mal-entendido, porque das duas uma: \\ ou bem que encontramos em certas sociedades chefias no impotentes, quer dizer, chefes que, dando uma ordem, a vem executada, ou ento isso no existe. Ora a experincia directa no terreno, as monografias dos investigadores e as mais anti-gas crnicas no permitem dvida alguma a este respeito: se alguma coisa h de totalmente estranho a um Indio, a *" ideia de dar uma ordem ou de ter que obedecer, salvo em circunstncias muito especiais como durante uma expedio guerreira. Como figuram neste caso os lroqueses no primeiro tipo, ao lado das realezas africanas? Poder-se- assemelhar o Grande Conselho da Liga dos Iroqueses a um Estado ainda ru-dimentar mas j nitidamente constitudo? Pois que se O pol-tico respeita ao funcionamento da socidade global (pg. 41) e se exercer um poder, decidir pele grupo inteiro (pg. 44). ento no se pode afirmar que os cinquenta sachems que com-punham o Grande Conselho iroqus formavam um Estado: a Liga no era uma sociedade global, mas uma aliana pol-

    10

    tica de cinco sociedades globais que eram as cinco tribos iro-quesas. A questo do poder entre os Iroqueses deve portanto pr-se, no ao nvel da Liga, mas ao nvel das tribos: e a esse nvel, no haja dvidas, os sachems no estavam certamente mais investidos de poder do que o resto dos chefes ndios. As tipologias britnicas das sociedades africanas so talvez per-tinentes para o continente negro; no podem servir de modelo para a Amrica dado que, reincidamos neste ponto, entre o sachem iroqus e o lder do roais pequeno bando nmada no existe diferena de natureza. Indiquemos por outro lado que se a confederao iroquesa suscita, a justo ttulo, o interesse dos especialistas. houve noutros lados ensaios, menos not-veis porque descontnuos, de ligas tribais, nomeadamente entre os Tupi-Guarani do Brasil e do Paraguai.

    As observaes acima expostas quereriam problematizar a forma tradicional da problemtica do poder: no evidente para ns que coero e subordinao constituam a essncia do podeT poltico em toda a parte e em todo o sewpre. De tal modo que se abre uma alternativa: ou o conceito clssico de poder adequado realidade que ele pensa, e nesse caso necessrio apontar-lhe o no-poder, justamente onde foi assi-nalado; ou ele no adequado, e ento necessrio abando-n-lo ou transform-lo. Mas convm que antes disso nos inter-roguemos sobre a atitude mental que permite elaborar uma tal concepo. E, nessa perspectiva, o prprio vocabulrio da etnologia susceptvel de nos indicar o caminho.

    Consideremos antes do mais os critrios do arcasmo: ausncia de escrita. e economia de subsistncia. Nada h a dizer sobre o primeiro, pois trata-se de um dado :!)actual: uma sociedade ou conhece a escrita ou no a conhece. A pertinn-cia do segundo parece pelo contrrio menos segura. Coro efeito, o que subsistir? 1!: viver na fragilidade permanente do equilibrio entre as necessidades alimentares e os meios de as satisfazer. Uma sociedade de economia de subsistncia aquela que consegue aUmentar os seus membros apenas o estrita-mente necessrio, e que se encontra assim merc do mnimo

    11

    -----------------------,------------------~

  • acidental natural (seca, inundao, etc.), j que a diminuio dos recursos se traduziria mecanicamente pela impossibilidade de alimentar toda a gente. Ou, noutros termos, as sociedades arcaicas no vivem, mas sobrevivem, a sua existncia um combate interminvel contra a fome, pois so incW[J(12es de produzir excedentes, por carncia tecnolgica e tambm cul-tural. No h nada mais obstinado do que esta viso da sociedade primitiva, e ao mesmo tempo nada mais falso. Se se pde falar recentemente dos grupos de caadores-colectores paleolticos como primeims sociedades de a:bundncia ', o que no ser dos agricultores neolticos'? No nos podemos alO'lJ.-gar aqui sobre esta questo de importncia decisiva para a etnologia. Indiquemos somente que um grande nmero destas sociedades arcaicas com economia de subsistncia, na Am-rica do Sul por exemplo, produziam uma quantidade de exce-dente alimentar por vezes equivalente ao necessrio ao con-sumo anual da comunidade: produo portanto capaz de satis-fazer duplamente as necessidades, ou de alimentar uma popu-lao duas vezes mais importante. Isto no significa eviden-temente que as sociedades arcaicas no so arcaicas trata-se . '

    srmplesmente de mostrar a fatuidade Cientfica do conceito de economia de subsistncia, que traduz muito mais as atitudes e hbitos dos observadores ocidentais face s sociedades pri-mitivas do que a realidade econmica sobre a qual repousam estas culturas. No foi, em todo o caso, pelo facto de a sua economia ser de subsistncia que as sociedades arcai-cas Sobreviveram em estado de extremo subdesenvolvimento at aos nossos dias (pg. 225). Parece-nos mesmo que, nestes termos, antes o proletariado europeu do sculo XIX, iletrado e subalimentado, que seria conveniente qualificar como arcaico. Na realidade, a ideia de economia de subsistncia remonta ao

    : M. Shalins, A primeira sociedade de abundncia:., Les Temps Modernes, Outubro 1968.

    1 Sobre os problemas que uma definio 'do neoltico coloc-a, ver o ltimo capitulo.

    12

    campo ideolgico do Ocidente moderno, e no ao arrsenal con-ceptual duma cincia. E paradoxal ver a prpria etnologia ser vtima duma mistificao to grosseira, e tanto maiS peri-gosa quanto contribuiu para orientar a estratgia das naes industriais relativamente ao mundo dito subdesenvolvido.

    Mas, objectar-se-, tudo isto tem pouco a ver com o pro-blema do poder poltico. Pelo contrrio: a mesma perspectiva que leva a falar dos primitivos como homens vivendo difi-cilmente em economia de subsistncia, em estado de subdesen-volvimento tcnico ... (pg. 319) determina tambm o sentido e o valor do discurso familiar sobre o poltico e o poder. Fami-liar pelo facto de, desde sempre, o encontro entre o Ocidente e os Selvagens ter sido a ocasio de repetir sobre eles o mesmo discuvso. Testemunha-o, por exemplo, o que diziam os pri-meiros descobridores europeus do Brasil a propsito dos 1ndios Tupinamba: Gentes sem f, sem lei, sem rei. Os seus mburu-vicha, os seus chefes, no gozavam com efeito de nenhum poder. Que poderia haver de mais estranho para os que che-gavam de sociedades onde a autoridade culminava nas monar-quias absolutas de Frana, de Portugal ou de Espanha? Vinham encontrar brbaros que no viviam em sociedade policiada. A inquietao e a irritao de se encontrarem na presena do anor-mal desapareciam pelo contrrio no Mxico de Moctezuma ou no Peru dos Incas. A os conquistadores respiravam uma atmos-fera habitual, para eles a mais tnica das atmosferas a das hierarquias, da coero, numa palavra, do verdadeiro' poder. Ora, observa-se uma admirvel continuidade entre este dis-curso sem variaes, ingnuo, poder-se-ia dizer selvagem, e o dos sbios ou investigadores modernos. O juzo o mesmo se for enunciado em termos mais delicados, e encontramos sob a pena de Lapierre numerosas expresses conformes obser-\>ao mais corrente do poder poltico nas sociedades primi-tivas. Exemplos: OS 'chefe,:/ Trebriamdeses au Tikopianos no detm um poder social e um poder econmico muito desen-volvidos, contrastando com um poder propriamente poltico muito embrionrio?. (pg. 284). Ou ainda: Nenhum povo

    13

  • niltico se pde elevar ao nivel das organizaes polticas cen-tralizadas dos grandes reinos bantos (pg, 365). E ainda: A sociedade lobi no pde dar-se uma organizao poltica> (pg. 435, nota 134) ' Que significa de facto este tipo de voca-bulrio onde os termos embrionrio, nascente, pouco desen-volvido, aparecem muito frequentemente 7 No se trata eviden-temente da nossa parte de declarar guerra a um autor, pois sa;bemos bem quanto esta linguagem prpria da antropo-logia. Tentamos aceder ao que se poderia chamar a arqueolo-gia desta linguagem e do saber que cr atravs dela dar-se a ver, e perguntamo-nos: que que esta linguagem diz exacta-mente e a partir de que lugar diz aquilo que diz?

    Constatamos que a ideia de economia de subsistncia queria ser um julgamento de facto, mas envolve ao mesmo tempo um julgamento de valor sobre as sociedades assim qualifica-das: avaliao que destri imediatamente a objectividade que para si reclama. O mesmo preconceito- pois, em ltima an-lise, de um preconceito que se trata- perverte e vota ao falhano o esforo para julgar o poder poltico nessas mes-mas sociedades. Sabendo que o modelo ao qual relacionado e a unidade que o mede so wntecipadamente constitudos pela ideia do poder tal como foi desenvolvida e formada pela civi-lizao ocidental. A nossa cultm"a, desde as suas origens, pensa o poder poltico em termos de relaes hierarquizadas e autori-trias de comando-obedincia. Qualquer forma, real ou pos-svel, de poder por conseguinte redutvel a esta relao pri-vilegiada que exprime a priori a sua essncia. Se a reduo no possvel, porque nos encontramos aquem do poltico: a ausncia da relao comando-obedincia acarreta ipsofacto a ausncia do poder politico. Existem no apenas socieda-des sem Estado, como ainda sociedades sem poder. De~de h muito reconhecemos o adversrio sempre desperto, o obs-tculo constantemente presente na investigJao antropolgica, o etnocentrismo que mediatiza todo o olhar sobre as diferenas

    ' O sublinhado nosso.

    14

    para as identificar e finalmente as abolir. Existe uma espc1e de ritual etnolgico que consiste em denunciar vigorosamente os riscos desta atitude: a inteno louvvel, mas nem sempre impede os etnlogos de a ela sucumbirem por sua vez, mais ou menos tranquilamente, mais ou menos distraidamente. Evi-dentemente que o etnocentrismo , como muito justamente o sublinha Lapierre, a coisa mais bem partilhada do mundo: toda a cultura , poder-se-ia dizer por definio, etnocentrista na sua relao narcsica consigo prpria. No obstante, uma diferena considervel separa o etnocentrismo ocidental do seu homlogo primitivo; o selvagem de qualquer tribo ndia ou australiana considera a sua cultura superior a todas as outras sem se preocupar em assegurar sobre elas um discurso cientfico, enquanto que a etnologia pretende situar-se duma s vez no elemento da universalidade sem se dar conta de que permanece em muitos pontos solidamente instalada na sua particularidade, e que o seu pseudo-discurso cientfico se degrada rapidamente em ideologia. (Isto reduz sua justa medida algumas afirmaes afectadas sobre a civilizao oci-dental como nico lugar cap3)z de produzir etnlogos). Decidir que certas culturas so desprovidas de poder poltico porque nada oferecem de comparvel ao que a nossa apresenta no uma proposta cientfica: antes denota, no fim de contas, uma pobreza evidente do conceito.

    O etnocentrismo no portanto um ilusrio entrave reflexo e as suas implicaes so de maiores consequncias do que poderamos supor. No pode deixar subsistir as dife-renas cada uma por si na sua neutralidade, mas quer com-preend-las como diferenas determinadas a partir do que lhe mais familiar, o 'POder tal como experimentado e pensado na cultura do Ocidente. O evolucionismo, velho compadre do etnocentrismo, no est longe. A diligncia a este nivel dupla: primeiramente recensear as sociedades segundo a maior ou menor proximidade a que o seu tipo de poder est relativa-mente ao nosso; afirmar em seguida explicitamente (como ontem) ou implicitamente (como hoje) llli!a continuidade entre

    15

  • todas estas diversas formas de poder. Por ter, a seguir a Lowie, abandonado wmo ingnuas as doutrinas de Morgan ou Engels, a antropologia j no pode (pelo menos no que ~ "refere questo do poltico) exprimir-se em termos 180C!i0logwos. Mas como, por outro lado, a tentao de continuar a pensar segundo o mesmo esquema demasiado forte, existe o recurso a metforas bwZgicas. Donde o vocabulrio anteriormoote salientado: embrionrio, nascente, pouco desenvolvido, etc. H aproximadamente meio-sculo, o modelo perfeito que todas a~ culturas, atravs da histria, tentavam realizar, era o adulto ocidental so de esprito e letrado (se possvel doutor em cincias fsicas). Isto pensa-se ainda hoje, sem dvida, mas j no se diz. No entanto, se pelo seu lado a. linguagem mudou, o discurso permaneceu o mesmo. O que e um poder embrionrio seno o que poderia e deveria desen'!Xilver-se at atingir o estado adulto? E qual esse estado adulto de que se descobrem, aqui e ali, as premissas embrion-rias? 11:, bem entendido, o poder a que o etnlogo est acos-tumado o da cultura que produz etnlogos, o Ocidente. E porque

    ' . se encontram sempre votados desgraa estes fetos culturais do poder? Qual a razo por que a.~ 'Sociedades que os con-cebem abortam regularmente? Esta fraqueza congnita facil-mente explicvel pelo seu arcasmo, pelo seu subdesenvolvi-mento, pelo simples facto de elas ,no serem o Ocidente. As sociedades arcaicas seriam assim axolotles sociolgicos inca-pazes de aceder, sem ajuda exterior, ao estado adulto norm~l.

    o biologismo da expresso no evidentemente mais que a mscrura furtiva da velha convico ocidental, de facto muitas vezes partilbada pela etnologia, ou pelo menos por numerosos dos seus praticantes, de que a histria possui um sentido nico, que as sociedades sem poder so a inlagem do que j no somos e que a nossa cultura para elas a imagem do que necessrio ser. E no apenas o nosso sistema de poder

    * Ax.olotles: formas larvares de batrquios urod.elos anfibios do gnero ambllstomo, orlgin.rlos do MlOioo (NdT).

    16

    considerado como o melhor, como se chega mesmo ao ponto de atribuir s sociedades arcaicas uma certeza anloga, Por-que dizer que nenhum povo niltico se pode elevar ao nvel da organizao poltica centralizada dos grandes reinos bantos ou que a sociedade lobi no conseguiu dar-se uma organi-zao poltica, num certo sentido afirmar acerca destes povos o esforo para se darem um verdadeiro poder poltico. Que sentido teria dizer que os ndios Sioux no conseguiram rea-lizar o que haviam atingido os .A:ztecas, ou que os Bororo foram incapazes de se elevar ao nvel poltico dos Incas? A arqueo-logia da linguagem antropolgica conduzir-nos-ia, e sem que fosse necessrio perfurar um solo na realidade bem pouco espesso, a pr a nu um parentesco secreto entre a ideologia e a etnologia, votada esta, se no estivermos atentos, a mer-gulhar no mesmo pntano lamacento da sociologia e da psi-cologia. Ser possvel uma antropologia poltica? Pod

  • preciso ento que nos perguntemos: em que condies o poder poltico pensvel? Se a antropologia faz finca-p porque se encontra no fundo num impasse, torna-se portanto neces-srio tomar outra via. O caminho pelo qual ela se extravia o mais fcil, o que podemos seguir cegamente, o que indica o nosso prprio mundo cultural, no pelo facto de se desdobrar no universal, mas antes por se revelar to particular como qualquer outro. A condio renunciar asceticamente, dire-mos ns, concepo extica do mundo arcaico, concepo que, em ltima anlise, determina massivamente o discurso pretensamente cientfico sobre este mundo. A condio ser neste caso a deciso de tomar finalmente a srio o homem das sociedades primitivas, sob todos os seus aspectos e em todas as suas dimenses: tambm sob o ngulo do poltico, mesmo e sobretudo se este se realiza nas sociedades arcaicas como negao daquilo que no mundo ocidental. 1l: preciso aceitar a ideia de que negao no significa o nada, e que quando o espelho no nos devolve a nossa imagem isso no prova que nada haja para olhar. Mais simplesmente: da mesma maneira que a nossa cultura acabou por reconhecer que o homem pri-mitivo no uma criana, mas, individualmente, um adulto, poder tambm ela progredir um pouco se lhe reconhecer uma equivalente maturidade colectiva.

    Os povos sem escrita no so portanto menos adultos que as sociedades letradas. A sua histria to profunda como a nossa e, a menos que seja por racismo, no h razo alguma para os julgar incapazes de reflectir na sua prpria experincia e de inventar para os seus problemas as solues a.propriadas. Eis porque no poderamos contentar-nos em enunciar que nas sociedades onde no se observa a relao de comando-obedincia (quer dizer, nas sociedades sem poder poltico), a vida do grupo como projecto colectivo se mantm por meio do controle social imedia!to, imediatamente qualifi-cado de apoltico. Que se entende ao certo por isto? Qual o referente pOltico que permite, por oposio, falar de apol-tico? Mas, justamente, no h poltico visto tratar-se de

    18

    sociedades sem poder: como se pode ento falar de a poltica? Ou bem que o poltico est presente, mesmo nestas sociedades ou e~to a e:'~r:sso de controle social imediato apoltico em _si contraditoria e de qualquer maneira tautolgica: que nos ensma ela, com efeito, relativamente s sociedades s quais a aplicamos? E que rigor possui a explicao de Lowie, por ex~mplo, segundo a qual, nas sociedades sem poder poltico, exi~te Um poder no oficial da opinio pblica? Se tudo politico, nada o , dizamos; mas se em algum lado existe 0 apoltico, porque num outro lugar o poltico se manifesta! Em ltima anlise, uma sociedade apoltica no teria sequer 0 seu lugar na esfera da cultura, mas deveria estar colocada a par das sociedades animais regidas pelas relaes naturais de dominao-submisso. . Ta!vez se ~eja confrontado a com a barreira que se pe a. reflexao cl~s~ea sobre o poder: impossvel pensar 0 a pol-tico sem o politico, o controle social imediato sem a mediao n~a palavra a sociedade sem o poder. O obstculo epistemo~ ~ogico que a politicologia no soube at aqui ultrapassar, Ju~gamos detect-lo no etnocentrismo cultural do pensamento ocidental, ele prprio ligado a uma viso extica das socie-dades no ocidentais. Se nos obstinarmos em reflectir sobre o poder partindo da certeza de que a sua forma verdadeira se encont11a realizada na nossa cultura, se persistirmos em fazer desta forma o molde de todas as outras, inclusivamente 0 seu telos, ento seguramente renunciaremos coerncia dos disc~rs~s e deixarmos que a cincia se degrade em opinio. A Ciencia do homem no talvez necessria. Mas a partir do momento em que a queremoR constituir e articular o discurso etnolgico, ento convm mostrar um pouco de respeito pelas culturas areaicas, e interrogarmo-nos sobre a validade de cate-gorias como as de economia de subsistncia ou de controle social imediato. A no ser efectuado este trabalho crtico, expo-mo-~os desde l~go a deixar escapar o real sociolgico, e em seguida a. desviarmo-nos da prpria descrio emprica: che-gamos assim, segundo as sociedades ou segundo a fantasia dos

    19

  • seus observadores, a encontrar o poltico por todo o lado ou a no o encontrar em lado nenhum.

    O exemplo anteriormente evocado das sociedades ndias da Amrica ilustra perfeitamente, estamos em crer, a impos-sibilidade efectiva de falar de sociedades sem poder poltico. No este o lugar prprio para definir o estatuto do poltico neste tilpo de culturas. Limitar-nos-emos a recusar a evidncia etnocentrista segundo a qual o limite do poder a coero, para alm ou para aqum da qual nada mais haveria; que o poder existe de facto (no somente na Amrica mas em muitas outras culturas primitivas) totalmente separado da violncia e exte-rior a toda a hierarquia; que, por conseguinte, todas as socie dades, arcaicas ou no, so polticas, mesmo se o poltico se diz em sentidos mltiplos, mesmo se esse sentido no imedia-tamente decifrvel e se necessrio desvendar o enigma de um poder

  • no h poder que no seja coercivo. O alcance da tese do senhor Lapierre est limitado a um certo tipo de sociedade, a uma modalidade particular do poder poltico, j que significa impli-citamente que onde no h inovao social o poder poltico no existe. Ela traz-nos, no obstante, um ensinamento pre-cioso: a saber, que o poder poltico como coero ou como violncia a marca das sociedades histricas, quer dizer, das sociedades que trazem consigo a causa da inovao, da mu-dana, da historicidade. E poderamos assim dispor as diversas sociedades segundo um novo eixo: as sociedades de poder pol-tico no coercivo so as sociedades sem histria, as socieda-des de poder poltico coercivo so as sociedades histricas. Disposio bem diferente daquela que implica a reflexo actual sobre o poder, que identifica sociedades sem poder e socieda-des sem histria.

    11: portanto da coero e no do poltico que a inovao o fundamento. Daqui resulta que o trabalho de Lapierre no realize seno metade do programa, visto no ter respon-dido questo do fundamento do poder no coercivo. Questo que se enuncia mais sucintamente e de forma mais virulenta: .porque existe poder poltico? Porque h poder poltico em vez de coisa nenhuma? No pretendemos trazer a resposta, quisemos apenas dizer porque que as respostas anteriores no so satisfatrias e em que condies uma resposta justa possvel. Trata-se em suma de definir a tarefa de uma antro-pologia poltica geral, e no mais regional, tarefa que se divide em duas grandes interrogaes:

    1) O que o poder poUtico? Quer dizer: o que a sociedade?

    2) Como e porqu se passa do poder poltico no coer-civo ao poder poltico coercivo? Quer dizer: o que a histria?

    Limitar-nos-emos a constatar que Marx e Engels, apesar da sua grande clllltura etnolgica, nunca conduziram a sua reflexo neste sentido, mesmo supondo que tenham formulado correctamente a questo. Lapierre nota que a verdade do marxismo que no haveria poder poltico se no houvesse

    22

    conflitos entre as foras sociais~. 11: uma verdade sem dvida, mas vlida unicamente para as sociedades em que foras sociais esto em conflito. Que no se pode compreender o poder como violncia (e 'a sua forma ltima: o Estado cen-tralizado) sem o conflito social, indiscutvel. Mas que se passa nas sociedades sem conflito, naquelas onde reina o comunismo primitivo? E poder o marxismo dar conta (e nesse caso constituiria com efeito uma teoria universal da sociedade e da histria, e portanto da antropologia) desta passagem da no-histria historicidade e da no-coero violncia? Qual foi o primeiro motor do movimento histrico? Talvez conviesse procur-lo precisamente naquilo que, nas sociedades arcaicas, se dissimula ao nosso olhar, no prprio poltico. Nesse caso seria necessrio inverter a ideia de Dur-kheim (ou coloc-la no seu devido lugar) segundo a qual o poder poltico pressupunha a diferenciao social: no seria justa-mente o poder poltico que constitui a diferena absoluta da sociedade? No encontraramos por este meio a ciso radical enquanto raiz do social, o corte inaugural de todo o movi-mento e de toda a histria, o desdobramento original como matriz de todas as difeTenas?

    11: de uma revoluo coprnica que se trata. No sen-tido em que, at agora, e sob certos aspectos, a etnologia deixou as culturas primitivas rodar em torno da civilizao ocidental, num movimento centrpeto, poder-se-ia dizer. Que uma inverso completa das perspectivas seja necessria ( con-tanto que estejamos realmente empenhados em enunciar sobre as .sociedades arcaicas um discurso adequado ao seu ser e no ao ser da nossa), o que nos parece demonstrar amplamente a antropologia poltica. Ela confronta-se com um limite, que menos o das sociedades primitivas do que aquele que traz consigo prpria, a prpria limitao do Ocidente do qual ela exibe a marca ainda gravada em si. Para escapar atraco da sua terra natal e se elevar verdadeira liberdade de pensa-mento, para se arrancar evidncia natural onde continua a chafurdar, a reflexo sabre o poder deve operar a converso

    23

  • heliocntrica: com isso ela beneficiar talvez de uma melhor compreenso do mundo dos outros e, por conseguinte, do nosso. O caminho da sua converso -lhe de resto indicado por um pensamento do nosso tempo que soube tomar a srio o dos Selvagens: a obra de Claude Lvi-Strauss prova-nos a rectido da diligncia pela amplitude (talvez ainda insuspei-tada) das suas conquistas, e convida-nos a ir mais longe. :El tempo de mudar de sol e de se pr em movimento.

    Lapierre inicia o seu trabalho denunciando a justo ttulo uma pretenso comum s cincias humanas, que julgam asse-gurar o seu estatuto cientfico rompendo todos os laos com aquilo a que elas chamam a filosofia. E, de facto, tal refern-cia no necessria para descrever cabeas ou sistemas de parentesco. Mas trata-se antes de uma outra coisa, e de temer que, sob o nome de filosofia, seja muito simplesmente o prprio pensamento que se procura abandonar. Deve-se ento dizer que cincia e pensamento se excluem mutuamente, e que a cincia se edifica a partir do no-pensado, ou mesmo do antipensado? As tolices, por vezes tmidas e hesitantes, por vezes decididas, que por todos os lados proferem os militantes da cincia parecem ir neste sentido. Mas neste caso neces-srio saber reconhecer ao que conduz esta vocao frentica para o antipensamento: sob a capa da cincia, de servilis-mos epigonais ou de empreendimentos menos ingnuos, ela leva directamente ao obscurantismo.

    Ruminao triste que afasta de todo o saber e de toda a jovialidade: sendo menos fatigante descer do que subir, no ser, no entanto, mais eficaz e leal o pensamento que se ins-tala nas vertantes mais abruptas ?

    * Estudo inicialmente publicado na revista Critique (n.0 270, Nov. 1969).

    24

    CAPITULO II

    TROCA E PODER: FILOSOFIA DA CHEFIA lNDIA

    A teoria etnolgica oscila, deste modo, entre duas ideias, opostas e no entanto complementares, do poder poltico: se-gunda uma, as sociedades primitivas so, no limite, desprovi-das na sua maior parte de qualquer forma real de organizao poltica; a ausncia de um orgo aparente e efectivo do poder conduziu a que se recusasse a prpria funo desse poder a essas sociedades, a partir da consideradas como tendo estag-nado num estdio histrico prepoltico ou anrquico. Para a segunda, pelo contrrio, uma minoria de entre as sociedades primitivas ultrapassou a anarquia primordial para aceder a esse modo de ser, que o nico autenticamente humano, do grupo: a instituio poltica; mas ento v-se o defeito, que caracterizava a massa das sociedades, converter-se aqui em excessO, e a instituio perverter-se em despotismo ou tira-nia. Tudo se passa portanto, como se as sociedades primi-tivas se encontrassem colocadas perante uma alternativa: ou a falta da instituio e o seu horizonte anrquico, ou, ento, o excesso dessa mesma instituio e o seu destino desptico. Mas esta alternativa constitui de facto um dilema, porque, para aqum ou para alm da verdadeira condio poli-tica, sempre esta ltima que escapa ao homem primitivo. E justamente na certeza do falhano quase fatal a que eram ingenuamente condenados os no-ocidentais pela etnologia nas-

    25

  • I '

    cente que se detecta essa complementaridade dos dois extre-mos, acordados cada um pelo seu lado, um por excesso, outro por defeito, em negar a justa medida do poder poltico.

    A Amrica do Sul oferece a este respeito uma ilustrao marcada dessa tendncia para inscrever as sociedades primi-tivas no quadro dessa macrotipologia dualista: ao separa-tismo anrquico da maioria das sociedades ndias, ope-se a massividade da organizao inca, imprio tot!l!litrio do passado>. De facto, a consider-las segundo a sua organiza-o politica. essencialmente pelo sentido da democracia ~ pelo gosto da igualdade que se distinguem a maior parte das sociedades ndias da Amrica. Os primeiros viajantes do Brasil e os etngrafos que se lhes seguiram por muitas vezes o subli-nharam: o atributo mais notvel do chefe ndio consiste na sua carncia quase completa de autoridade; a funo politica parece ser. no seio dessas populaes, s muito tenuemente diferenciada. Apesar da sua disperso e insuficincia, a docu-mentao que possumos vem confirmar essa viva impresso de democracia a que foram sensveis todos os americ8111istas. De entre a enorme massa das tribos recenseadas na Amrica do Sul, a autoridade da chefia no foi explicitamente atestada seno no caso de a>lguns grupos, tais como os Taino das ilhas, os Caquetio, os Jirajira, ou os Otomac. Mas convm notar que estes grupos, quase todos Arawak, esto localizados no noroeste da Amrica do Sul, e que a sua organizao social apresenta uma ntida estratificao em castas: no se encontra este ltimo trao seno entre as tribos Guaycuru e Arawak (Guana) do Chaco. Pode-se alm disso supor que as sociedades do noroeste esto ligadas a uma tradio cultural mais pr-xima da civilizao Chibcha e da rea andina do que das cul-turas ditas da Floresta Tropical. Portanto sobretudo a ausn-cia de estratificao social e de autoridade do poder que se deve reter como trao pertinente da organizao poltica do maior nmero das sociedades indias: a>lgumas de entre elas, como os Ona e os Yahgan da Terra de Fogo. no possuem

    sequer a instituio da chefia; e diz-se dos Jivaro que a sua lngua no possua termo algum para designar o chefe.

    Para um esprito formado por culturas em que o poder poltico dotado de poderio efectivo, o estatuto particular da chefia americana impe-se portanto como sendo de natu-reza paradoxal; o que pois esse poder privado dos meios de se exercer? Atravs de qu se define o chefe, uma vez que a autoridade lhe falta? E imediatamente nos sentiramos incli-nados, cedendo s tentaes de um evolucionismo mais 011 menos consciente, a concluir por um carcter epifenomenal do poder poltico nessas sociedades, cujo arcasmo impediria a inveno de uma autntica forma poltica. Resolver assim o problema s pode conduzir no entanto a ter de recoloc-lo de uma maneira diferente: onde vai buscar uma tal institui-o sem Substncia a fora para subsistir? J que o que se trata de compreender bi'zarra persistncia de um poder praticamente impotente, de uma chefia sem autoridade, de uma funo que funciona no vazio.

    Num texto de 1948, R. Lowie, analisando os traos dis-tintivos do tipo de chefe acima evocado, a que chamou titular cMef, isola trs propriedades essenciais do lder ndio, cuja recorrncia ao longo das duas Amricas permite tomar como condio necessria do poder nessas regies:

    1.'-O chefe um fazedor de paz; a instncia mode .. radora do grupo, tal como o atesta a diviso frequente de poder em civil e militar.

    2.'- Tem de ser generoso com os seus bens, e no pode permitir-se, sob pena de se desautorizar, repelir os incessantes pedidos dos seus administrados.

    3.' -Apenas um hom orador pode aceder chefia. Este esquema da tripla qualificao necessria ao deten-

    tor da funo poltica evidentemente to pertinente para as sociedades sul- como norte-americanas. Com efeito, antes do mais notvel o facto de as atribuies da chefia serem muito opostas em tempo de guerra e em tempo de paz, e que com muita frequncia a direco do grupo seja assumida por dois

    27

  • indivduos diferentes, como por exemplo entre os Cubeo, ou nas tribos do Orenoco: existe um poder civil e um poder mili-tar. Durante a expedio guerreira, o chefe dispe de um poder considervel, por vezes mesmo absoluto, sobre o con-junto dos guerreiros. Mas, uma vez refeita a paz, o chefe de guerra perde todo o seu poderio. Portanto, o modelo do poder coercivo no aceite seno em casos excepcionais, quando o grupo se v confrontado com uma ameaa exterior. Mas a conjuno do poder e da coero cessa assim que o grupo passa a estar em relao apenas consigo mesmo. Era assim que a autoridade dos chefes tupinamba, incontestada durante as expedies gueiTeiras, se encootrava estreitamente subme-tida ao controle do conselho dos ancios em tempo de paz. Do mesmo modo, os Jivaro no teriam chefe seno em tempo de guerra. O poder normal, civil, fundado no cansen81U8 omnium e no na coaco, assim de natureza profundamente pacfica; a sua funo igualmente pacificadora: o chefe tem a seu cargo a manuteno da paz e da harmonia no grupo. Assim, a ele que compete apaziguar as querelas, regular os diferen-dos, no pelo uso de uma fora que no possui e que no lhe seria reconhecida, mas valendo-se apenas das virtudes do seu prestgio, da sua equidade e da sua palavra. Mais do que um juiz que sanciona, um rbitro que procura reconciliar. No por-tanto surpreendente constatar que as funes judicirias da chefia sejam to raras: se o chefe falha a reconciliao das partes adversas, no pode impedir que o diferendo se trans-forme em hostilizao mtua prolongada *. E isto revela cla-ramente a disjuno entre o poder e a coero.

    O segundo trao caracterstico da chefia ndia, a gene-rosidade, parece ser mais do que um dever: uma servido. Com efeito, os etnlogos notaram no seio das mais diversas

    No original, a palavra fend, termo ingls que designa uma hostUizao mtua prolongada (be at feud with), entre duas tribos, rammas, etc., com ataques sangrentos Inspirados pelo desejo de vingana de uma injria feita anteriormente (NdT).

    28

    populaes da Amrica do Sul que essa obrigao de dar,_ a que o chefe est vinculado, de facto vivida pelo~ ndws como uma espcie de dTeito de o submeter a uma pilhagem permanente. E se o infeliz lder procura refrea~ e_ssa ~uga de presentes, todo o prestgio, todo o poder lhe sao ~~edatamente denegados. Francis Huxiey escreve a propos1to dos Urubu: 0 papel do chefe ser generoso e dar tudo o que lhe pedem: em certas tribos ndias pode sempre reconhecer-se o chefe pelo facto de ele possuir menos que os outros e usar os ornamentos mais pobres. O resto foi-se, em presentes ' A situao perfeitamente anloga entre os Nambikwara, descritos por Claude Lvi-strauss: ... A generosidade desem-penha um papel fundamental na determinao do grau de popu-laridade de que gozar o novo chefe ... ' Por vezes, o chefe, Uiltrapassado pelos repetidos peddos, exclama: Acabou-se! Basta de dar! Que um outro venha ser generoso em meu lugar!'. E intil multiplicar os exemplos, dado q~e esta rela-o dos ndos com o seu chefe constante atraves de todo o continente (Guiana, Alto-Xingu, etc.). Avareza e poder no so compatveis; para ser chefe, preciso ser generoso.

    Pwra alm deste to vivo gosto pelas posses do chefe, os ndios apreciam verdadeiramente as suas palavras: o talento oratrio ao mesmo tempo uma condio e um meio do poder politico. Grande o nmero das tribos cujo chefe deve quoti-dianamente, ora ao amanhecer ora ao crepsculo, gratificar com um discurso edificante as suas gentes: os chefes pilaga, sherent, tupinamba, todos os das exortam o seu povo a viver segundo a tradio. Porque a temtica do seu discurso est estreitamente ligada com a sua funo de fazedor de paz. ... O tema habitual dessas arengas a paz, a harmonia e a honestidade, virtudes recomendadas a toda a gente da tribo .

    1 F. Hwcley, Amables Sauva.ges. 2 c. Lvi-Strauss, La vie familiale et sociale des lndiens Nam-

    blkwa.ra. lbld.

    B8Jidi>Ook f South American lndia.Ds, vol. V, p. 343.

    29

  • No h dvida de que por vezes o chefe prega no deserto: os Toba do Cbaco ou os Trumai do Alto-Xingu no prestam, as mais das vezes, a menor ateno ao discmso do seu lder, que fala assim no meio da indiferena generalizada. Que no entanto isto no nos oculte o amor que os lndios tm pela palavra: no era um Chiriguano que explicava o acesso de uma mulher chefia dizendo: 0 seu pai tinha-lhe ensinado a falar?

    A literatura etnogrfica atesta pois claramente a pre-sena destas trs caractersticas essenciais da chefia. No en-tanto, a rea sul-americana ( excepo das culturas andinas, de que no se ir aqui tratar) apresenta uma caracterstica suplementar a juntar s outras trs referenciadas por L>wie: quase todas essas sociedades, quaisquer que sejam o seu tipo de unidade scio-,poltica e a sua estatura demogrfica, reconhe-cem a poligamia; mas, do mesmo modo, quase todas a reco-nhecem como sendo, as mais das vezes, privilgio exclusivo do chefe. A dimenso dos grupos varia fortemente na Am-rica do Sul, consoante o meio geogrfico, o modo de aquisio dos alimentos, o nvel tecnolgico: um bando de nmadaS: guayaki ou siriono, povos sem agricultura, raras vezes conta com mais de trinta pessoas. Em 'Contrapartida, as aldeias tupinamba ou guarani, agricultores sedentrios, agrupavam por vezes mais de mil pessoas. A grande casa colectiva dos Jivaro abriga entre oitenta e trezentos residentes, e a comu-nidade witoto compreende cerca de cem pessoas. Por conse-guinte, segundo as reas culturais, o tamanho mdio das uni-dades scio-polticas pode sofrer variaes considerveis. O que mais impressionante constatar que a maior parte destas culturas, desde o miservel bando guayaki at enorme aldeia tupi, reconhecem e admitem o modelo do casamento plural, alis frequentemente sob a forma da poliginia sororal. Por conseguinte, preciso admitir que o casamento polgino no funo de uma densidade demogrfica mnima do grupo, uma vez que essa instituio possuda pelo bando guayak! assim como pela aldeia tupi, trinta ou quarenta vezes mais

    30

    numerosa. Como se pode, calcular, a poliginia, quando posta em prtica no seio de uma massa populacional importante, no acarreta perturbaes demasiado graves para o grupo, Mas 0 que dizer quando ela atinge unidades to fracas con:o 0 so os bandos nambikwara, guayaki ou siriono? Ela nao pode deixar de afectar fortemente a vida d? grupo, e so. por certo bem slidas as razes que este mvoca para amda assim a aceitar razes essas que importa tentar elucidar.

    A este res~eito interessante interrogar o material etno-grfico, apesar das suas numerosas lacunas: evid~temente, no possu.mos, acerca de um grande nmero de tnbos, ma1_s do que algumas magras informaes; em certos casos ate, no se reconhece de uma tribo mais do que o nome sob o qual era designada. Parece no entanto ser possvel outorgar a certas recorrncias uma verosinlhana estatstica. Se retivermos o montante aproximado, mas [lTOvvel, de um total de cerca de duzentas etnias para toda a Amrica do Sul, apercebemo--nos de que, sobre esse total, a informao de que podemos dis-por no estabelece formalmente uma estrita m~ogamia para mais do que uma dezena de grupos, se tamto: e por exemplo 0 caso dos Palikur da Guiana, dos Apinay e dos Timbira do grupo G, ou dos Yagua do norte do Amazonas. s:m conceder a estes clculos uma exactido que por certo nao possuem, eles no deixam no entanto de ser indicativos de uma ordem de grandeza: apenas uma em cada vinte das ~ociedades nd~as pratica a monogamia rigorosa. O que quer d1zer ~ue a mawr parte dos grupos reconhece a poliginia e que esta e quase con-tinental na sua extenso.

    Mas, do mesmo modo, preciso notar que a poliginh ndia est estritamente limitada a uma pequena minoria de indivduos, quase sempre os chefes. E alis c~mpreende-se que no possa ser de outra maneira. Se~ com ~f~1to, se consi-derar que a sex-ratio natural, ou a ,relaao numeriCa dos ~e:'os, no poderia nunca ser suficientemente baixa para pe:'mbr a cada homem desposar mais do que uma mulher, ve-se que uma po!iginia generalizada biologicamente impossvel: ela

    31

  • I: I

    portanto culturalmente limitada a certos indivduos. Esta determinao natura.l confirmada pelo exame dos dados etno-grficos: em 180 ou 190 tribos praticantes da poliginia, uma dezena apenas no lhe estabelece um limite; o que signi-fic~ que qualquer homem adulto dessas tribos pode desposar ma1s do que uma mulher. So, por exemplo, os Achagua, Ara-wak do noroeste, os Chibcha, os Jivaro, ou os Roucouyenes, Carib_ ~ Guiana. Ora os Achagua e os Chibcha, que perten-cem a area cultural conhecida por circum-carib, comum Venezuela e Colmbia, eram muito diferentes do resto das populaes sul-americanas; envolvidos num processo de pro-funda estratificao social, reduziam escravatura os seus viZinhos menos poderosos e beneficiavam assim de uma entrada constante e importante de prisioneiras, imediatamente toma-das como esposas complementares. No que se refere aos Jivaro, era por certo a sua paixo pela guerra e pela caa de cabeas que, acaiTetando uma forte mortalidade dos jovens guerreiros permitia maior parte dos homens a prtica da poliginia: Os Roucouyenes, e com eles vrioa outros grupos Carib da Venezuela, eram igualmente populaes muito belicosas: as ~uas expedies militares visavam, as mais das vezes, a!:Tan-JRr escravos e mulheres secundrias.

    Antes do mais, tudo isto nos demonstra a raridade, natu-ralmente determinada, da poliginia geral. Por outro lado vemos que, quando se no limita ao chefe, essa possibilidade se funda sobre determinaes culturais: existncia de castas, prtica da escravatura, actividade guerreira. Aparentemente estas ltimas sociedades parecem mais democrticas do ~ue as o~t_ras, dado ?u~ a poliginia deixa, nestes casos, de ser o privi-legiO de um umco. E, de facto, parece mais funda a oposio cavada entre esse chefe iquito, possuidor de doze mulheres. e os seus homens atreitos monogamia, do que entre 0 chef~ achagua e os homens do seu grupo, a quem a poliginia igual-mente permitida. Lembremos no entanto que as sociedades do noroeste estavam j fortemente estratificadas e que uma aristocracia de nobres ricos detinha, atravs da sua prpria

    32

    riqueza, o meio de ser mais poliginos, por assim dizer, do que os plebeus menos favorecidos: o modelo do casamento por compra permitia aos homens ricos adquirir um maior nmero de mulheres. De modo que, entre a poliginia como privilgio do chefe e a poliginia generalizada, a diferena no de natu-reza mas de grau: um plebeu chibcha ou achagua no podia em caso algum desposar mais do que duas ou trs mulheres, enquanto, pelo seu lado, Guaramental, um clebre chefe do noroeste, possua duzentas.

    Assim, da anlise precedente legtimo reter que para a maior parte das sociedades sul-americanas a instituio matrimonia.! da poliginia est estreitamente articulada com a instituio poltica do poder. A especificidade deste lao no poderia ser abolida sem que se processasse um restabele-cimento das condies da monogamia: uma poliginia de igual extenso para todos os homens do grupo. Ora, o breve exame dessa meia dzia de. sociedades que possuem o modelo genera-lizado do casamento plural, revela que a oposio entre o chefe e o resto dos homens se mantm, e que at se refora.

    Era igualmente porque estavam investidos de um poder real que certos guerreiros tupinamba, os mais felizes no com-bate, podiam possuir esposas secundrias, muitas das vezes prisioneiras arrancadas ao grupo vencido. Porque o Conselho>>, a que o chefe devia submeter todas as suas decises, era com-posto precisamente em parte pelos guerreiros mais brilhantes ; e era entre estes ltimos, geralmente, que a assembleia dos homens escolhia o novo chefe quando o filho do lder morto se revelava inapto para o exerccio desta funo. Se por outro lado certos grupos reconhecem a poliginia como privilgio do chefe, e tambm dos melhores caadores, porque a caa, enquanto actividade econmica e actividade de prestigio, se reveste para eles de uma importncia particuJar, sancionada pela influnia que confere ao homem hbil a sua destreza em a.panhar muita caa: no seio de certas populaes, como os Puri-coroado, os Caingang, ou os !purina do Jurua-Purus, a caa constitui uma fonte decisiva da alimentao; por con-

    3 33

  • seguinte, os melhores caadores adquirem um estatuto social e . um pesO politico conformes sua qualificao profissio na!. Sendo a principal .tarefa do lder velar pelo bem-estar do. seu grupo, ao chefe . .ipurina ou caingang compete ser um dos melhores caadores, com que o grupo fornece geralmente os homens elegveis para a chefia. Assim, para alm do facto de .apenas um bom caador estar altura de responder s exigncias de uma fanlia polgina, a caa, actividade econ-mica essencial sobrevivncia do grupo, confere queles que nela. so mais bem sucedidos uma .importncia poltica segura. Permitindo a polginia aos mais eficazes dos seus fornece-dores .de .alimentos, o grupo, de algum modo fazendo uma hipo-teca sobre o .futuro, .reconhece-lhes, .implicitamente, a .quali, dade .de. lideres. possveis. No entanto, necessrio assinalar que.essa .poliginia, longe .de. ser igualitria, favorece sempre o chefe. efectivo do grupo.

    O modelo po!iginico do casamento, encarado .segundo es.tas diversas. extenses: geral ou. :restrito, seja . apenas ao chefe, seja ao chefe e a uma fraca minoria de homens, reme-teu-nos portanto constantemente para a vida poltica do grupo; sobre este horizonte que a poliginia desenha a sua figura, e :provavelmente esse o lugar em que se poder ler o sentido da sua funo.

    portanto por quatro caracteristicas que na Amrica do Sul se .distingue o chefe. Como tal, ele um pacificador profissio:nal; alm disso .deve ser generoso e bom orador; finalmente, a poliginia seu privllgo.

    Todavia, impe-se uma distino entre o primeiro destes critrios e os .trs seguintes. Estes ltimos definem o con-junto das prestaes e contra-prestaes pelas quais se man-tm .o equilbrio entre a estrutura social e a instituio pol-tica: o lder exerce um direito sobre um nmero amormal de mulheres do grupo; este ltimo, em contrapartida, est no seu direito de exigir do seu chefe generosidade nos bens e talento oratrio, Esta relao de ruparncia cambista determina-se assim a um nvel essencial da sociedade, um nvel propriamente socio-

    34

    lgico, que tem a ver-com a prpria estrutura do grupo como tal. A funo moderadora do chefe desdobra-se, pelo contrrio, no elemento .diferente da prtic. estritamente poltica. No se pode com efeito, como o. parece fazer. Lowie, situa!! -no mesmo plruno de realidade sociolgca, por um lado o que se. define, nos termos da anlise precedente, como-o conjunto das condi-es de possibilidade da esfera politica, e por outro lado o que constitui o pr em prtica efectivo, vivido como tal, das fun-es quotidianas da instituio. '!'ratar como elementos homo-gneos o modo de constituio do poder e o modo de operar do poder constitudo, de certo modo poderia conduzir a con-fundir o ser e o fazer da chefia, o transcendental e o emprico da instituio. Humildes embora no seu alcance, as funes .do chefe . no so por isso menos controladas pela opinio pblica. Planificador das actividades econmicas e cerimoniais do grupo, o lder no possui qua;Jquer poder de deciso; . nada lhe asse-gura que as suas ordens~ so executadas: esta fragilidade permanente de um poder que no cessa de ser contestado d o seu tom ao exerccio da funo: o poder do chefe depende unicamente do muito bem querer do grupo. Compreende-se a partir da o interesse directo do chefe em manter a paz: a irrupo de uma crise destruidora da harmonia interna obriga interveno do poder, mas suscita ao mesmo tempo essa inteno de contestao para cuja superao o chefe no pos-sui os meios.

    A funo, exercendo-se, indica assim aquilo cujo sentido aqui se procura: a impotncia da instituio. Mas no plano da estrutura, isto , a um outro nivel, que reside, mascarado, esse sentido. Como actividade concreta da funo, a pr-tica do chefe no remete portanto para a mesma ordem de fenmenos que os trs outros critrios; ela deixa-os subsistir como uma unidade estruturalmente articulada prpria essn-cia da sociedade.

    , com efeito, notvel coostatar que esta trindade de predicados: dom oratrio, generosidade, poliginia, ligados pessoa do lder, est relacionada com os mesmos e:Jementos de

  • entre os quais a troca e a circulao c~stituem a sociedade como tal, e sancionam a passagem da natureza cultura. li: antes de mais pelos trs nveis .fundamentais da troca dos bens. das mulberes e. das palavras que se define a sociedade; igual-mente por referncia imediata a esses trs tipos de Sinais que se constitul a esfera poltica das sociedades indias .. O poder est pois aqui em relao (desde que se reconhea a essa con-corrncia um valor outro que no o de uma coincidncia sem significao) com os trs nveis estruturais .essenciais da socie-dade, isto , com o prprio cerne do universo da comunicao. portanto em elucidar a natureza desta relao que nos deve-mos doravante esforar, para tentar extrair dela as impli-caes estruturais.

    Aparentemente, o poder fiel lei de troca que funda e rege a sociedade; tudo se passa, pare:e, como se o chefe r~ebesse uma parte das mulheres do grupo, em troca de bens econmicos e de sinais lingusticos, resultando a nica dife-rena do facto de aqui as unidades cambistas serem por um lado um indivduo e por outro o grupo tomado globa)mente. Uma tal interpretao, no entanto, fundada sobre a impresso de que o princpio da reciprocidade determina a relao entre poder e sociedade, rapidamente se revela insuficiente: sabe-se que as sociedades ndias da Amrica do Sul no possuem em geral uma tecnologia mais do que relativamente rudimentar, e que, por conseguinte, nenhum indivduo, nem sequer o chefe, pode concentrar entre as suas mos uma grande quantidade de riquezas materiais. O prestgio de um chefe, como j vimos, depende em grande parte da sua generosidade. Mas, por outro lado, as exigncias dos lndios ultrapassam frequentemente as possibilidades imediatas do chefe. Este portanto obrigado, sob pena de se ver rapidamente abandonado pela maior parte das suas gentes, a tentar satisfazer os seus pedidos. Sem dvida que as suas esposas podem, em grande medida, apoi-lo na sua tarefa: o exemplo dos Nambikwara ilustra bem o papel deci-sivo das mulheres do chefe. Mas certos objectos- arcos, fle-chas, ornamentos masculinos-, de que so gulosos os caa-

    36

    dores e guerreiros, no podem ser fabricados seno pelo ~eu chefe; ora, as suas capacidades de produo so muito redu-zidas e isso limita de imediato o alcance das prestaes em bens do chefe ao grupo. Sabemos tambm, por outro lado, que, para as sociedades primitivas, as mulheres so os valores por excelncia. Como pretender, neste caso, que essa troca aparente ponha em jogo duas massas equivalentes de valores, equivalncia essa que seria no entanto de esperar, uma vez que 0 princpio da reciprocidade funciona para articular a sociedade com o seu poder? evidente que para o grupo, que se desapossa, em benefcio do chefe, de uma quantidade impor-tante dos seus valores mais essenciais- as mulheres-, as arengas quotidianas e os magros bens econmicos de que pode dispor o lder no constituem uma compensao equivalente. E isto assim tanto mais que, apesar da sua falta de autori-dade, o chefe goza no entanto de um estatuto social invejvel. A desigualdade da troca impressionante: ela no se pode-ria explicar seno no seio de sociedades em que o poder, munido de uma autoridade efectiva, estivesse por isso mesmo nitida-mente diferenciado do resto do grupo. Ora, precisamente essa autoridade que falta ao chefe ndio: como compreender ento que uma funo gratificada com privilgios exorbitantes seja por outro lado impotente em se exercer?

    Ao analisar em termos de troca a relao do poder com o grupo, mais depressa se consegue destruir este para-doxo. Consideremos pois o estatuto de cada um dos trs nveis de comunicao, tomado em si mesmo, no seio da esfera. poli-tica. claro que, no que se refere s mulheres, a circula-o se faz em sentido nico: do grupo para o chefe; porque este ltimo seria, como evidente, incapaz de repor em circuito, em direco ao grupo, um nmero de mulheres equivalente quele que dele recebeu. Evidentemente, aR esposas do chefe dar-lhe-o filhas que mais tarde sero outras tantas esposas potenciais para os jovens do grupo. Mas deve-se considerar que a reinsero das filhas no ciclo das trocas matrimOIIIiais no chega paia compensar a po!iginia do pai. Com efeito, na

    37

  • ! t

    !

    maior parte das sociedades sul-americanas, a chefia herda-se patrilinearmente. Assim, e tendo em conta as aptides indi-viduais, o filho do chefe, ou, falta deste, o filho do irmo do chefe, ser o novo lder da comunidade, E ao mesmo tempo que o cargo, ele receber o privilgio da funo; a saber, a poliginia. O exerccio deste privilgio anula pois, em ca;da gerao, o efeito do que poderia neutra,lizar, por intermdio das filhas, a poliginia da gerao precedente. No sobre o plano diacrnico das geraes sucessivas que se desenrola o drama do poder, mas sobre o plano sincrnico da estrutura do grupo. A subia ao poder de um chefe reproduz sempre a mesma situao; essa estrutura de repetio no pode-ria ser abolida seno na perspectiva cclica de um .poder que percorresse sucessivamente todas as famlias do grupo, .sendo o chefe- escolhido,- em cada gerao, numa. familia diferente, at reencontrar a primeira famlia, inaugurando assim um novo ciclo. Mas o cargo hereditrio: no se trata pois aqui -de troca;, mas de ddiva pura e simples do grupo ao seu lder, ddiva sem contrapartida, aparentemente destinada a sancionar o estatuto social do detentor de um cargo institudo para no -se exercer.

    Se nos voltarmos para o nvel econmico da troca, apercebemo-nos de que os bens sofrem o mesmo tratamento; unicamente do -chefe para o grupo que se efectua o seu movimento; As sociedades ndias da Amrica do Sul so. com efeito, raramente obrigadas a prestaes econmicas para com o seu chefe e este ltimo; como qualquer outra :pessoa, deve cultivar a-sua: mandioca e .matar a sua caa. Excepo feita para certas sociedades do noroeste da Amrica do Sul, os privilgios da chefia no se situam geralmente sobre o plano material, e apenas algumas tribos fazem da ociosidade a marca de um estatuto social superior: os: Manrasi da Bolvia ou os Guarani -cultivam os -jardins dp chefe e fazem as sua:s colhei-tas,l!) preciso aln\lafazer notar que; -entre os Guarani, o uso destedireito honratalvez.menosochefe do que-o xamane. Seja como for, a maioria dos Uderes ndios est longe de ofe-

    recer a imagem de um rei preguioso: muito pelo contrrio, o chefe, obrigado a responder generosidade que dele se espera, deve incessantemente pensar em arranjar presentes para ofe-recer ao seu povo. O comrcio com outros grupos. -pode ser uma fonte de bens; mas, mais frequentemente, no seu engenho e no seu trabalho pessoal que o chefe confia. De modo que, curiosamente, o lder quem, na Amrica do Sul, tra;balha mais duramente.

    Finalmente, o estatuto dos sinais lingusticos ainda mais evidente: em sociedades que souberam proteger a lin-guagem da degradao que lhe i:tfligem os nossos, a palavra , mais do que um privilgio, um dever do chefe: nele que recai o domnio das pa1avras, ao ponto de se ter podido eser-ver, a propsito de uma tribo norte-americana: Pode dizer-se, no que o chefe um homem que fala, mas que aquele que fala um chefe>>, frmula facilmente aplicvel a todo o continente sul-americano. Porque o exerccio deste quase monoplio do chefe sobre a linguagem se refora ainda pelo facto dos ndios no o apreenderem de modo algum como motivo para uma frustrao. A diviso est to nitidamente estabelecid, que os dois assistentes do lder Trumai; por exemplo, embora go-zando de um certo prestgio, no podem falilr como o chefe: no em virtude de uma interdio exterior, mas por causa do sentimento de que a actividade falante seria uma frOlta tanto ao chefe como linguagem; porque, diz um informador, qual-quer outro que no o chefe teria vergonha de falar como ele.

    Na medidaem que, recusando a ideia de uma trocadas mulheres do grupo contra os bens e as mensagens do chefe, se examina por conseguinte o movimento de cada sinal segundo o seu circuito prprio, descobrimos que esse triplo movimento apresenta uma dimenso negativa comum que con~ fere a estes trs tipos de sinais um destino idntico: no a;parecem mais como valores de troca, a reciprocidade deixa de regular a sua circulao, e -cada um deles cai a partir de ento no exterior do universo da comuniao. Portanto, revela"

  • do grupo: o poder mantm uma relao privilegiada com os elementos cujo movimento recproco funda a prpria estrutura da sociedade; mas esta relao, denegando-lhes um valor que de troca ao nvel do grupo, instaura a esfera poltica no apenas como exterior estrutura do grupo, mas, mais do que isso ainda, como negadora desta: o poder est contra o grupo, e a recusa da reciprocidade, como dimenso ontolgica da sociedade, a recusa da prpria sociedade.

    Uma tal concluso, articulada premissa da impotn-cia do chefe nas sociedades ndias, pode parecer paradoxal; nela no entanto que se desfaz o problema inicial: a ausncia de autoridade da chefia. Com efeito, para que um aspecto da estrutura social esteja medida de exercer uma influncia, seja ela qual for, sobre essa estrutura, preciso, no mnimo, que a relao entre esse sistema particular e o sistema global no seja inteiramente negativa. 11: na condio de ser de alguma maneira imanente ao grupo que se poder desdobrar efectiva-mente a funo poltica. Ora, esta, nas sociedades ndias, encon-tra-se excluda do grupo e mesmo exclusiva dele: pois na relao negativa mantida com o grupo que se enraza a impo-tncia da funo poltica; a rejeio desta para o e:>cterior da sociedade o prprio meio de a reduzir impotncia.

    Conceber assim a relao do poder e da sociedade nas populaes ndias da Amrica do Sul pode parecer implicar uma metafsica finalista, segundo a qual uma vontade miste-riosa usaria de meios desviados a fim de denegar ao poder poltico precisamente a sua qualidade de poder. No se trata no entanto de modo algum de causas finais; os fenmenos aqui analisados dizem resneito ao camoo da actividade in~ ciente neJa qual o grppo elabora os seus modelos: e o modelo estrutural da relaco do grupo social com o poder pol~ gue estamos a tentar descobrir. Este modelo permite integrar dados recebidos como contraditrios numa primeira abordagem. Nesta etapa da anlise, damo-nos conta de que a impotncia do poder se articula directamente com a sua situao de margem, relativamente ao sistema total; e essa situao

    40

    resulta ela prpria da ruptura que o poder introduz no ciclo decisivo das trocas de mulheres, de bens e de palavras. Mas ver nessa ruptura a causa do no-poder da funo pdltica no esclarece no entanto a sua razo de ser profunda. Deve-remos interpretar a sequncia: ruptura da troca- exteriori-dade- impotncia, como um desvio acidental do processo cons-ti:tutivo do poder? Isso deixaria supor que o resultado efectivo da operao (a falta de autoridade do poder) apenas contin-gente relativamente inteno inicial (a promoo da esfera politica) . Mas seria preciso aeeitar ento a ideia de que esse erro coextensivo ao prprio modelo e que se repete inde-finidamente atravs duma rea quase continental: nenhuma das culturas que a ocupam se mostraria assim capaz de se dar uma autntica autoridade poltica. Est aqui subjacente o postulado, completamente arbitrrio, de que essas culturas no possuem criatividade: , ao mesmo tempo, o retorno ao preconceito do seu arcasmo. No se pode portanto conce-ber a separao entre funo poltica e autoridade como o fracasso acidental de um processo que visava sua sntese, como o resvalar>> de um sistema apesar de tudo desmen-tido por um resultado que o grupo seria incapaz de corrigir.

    Recusar a perspectiva do acidente conduz a supor uma certa necessidade inerente ao prprio processo; a procurar ao nvel da intencirmalidade sociolgica -lugar de elaborao do modelo- a razo ltima do resultado. Admitir a confor-midade deste com a inteno que preside sua produo no pl.E(].e siguificar outra coisa que no a implicao deste resul-to jo na inteno original: o poder exactamente o que estas socieiiades quiseram que ele fosse. E como esse poder no a, para o dizer esquematicamente, nada, o grupo revela, ac proceder assim, a sua recusa radical da autoridade, uma nega-o absoluta do poder. Ser possvel dar conta dessa deciso das culturas ndias? Deveremos julg-la como fruto irracio-nal da fantasia, ou poderemos, pelo contrrio, postular uma racionalidade imanente a esta escolha? A prpria radicali-dade da recusa, a sua permanncia e a sua extenso, sugerem

  • talvez a perspectiva na qual a situar. A relao do poder com a troca, por ser negativa, no deixou por isso de nos mostrar que ao nvel mais profundo da estrutura social, lugar da constitui:o inconsciente das suas dimenses, que advm e se esconde a problemtica desse poder. Para o dizer noutros ter-mos, a prpria cultura, como diferena maior da natureza, que se investe totalmente na recusa deste poder. E no jus-tamente na sua relao com a. natureza que a cu~tura mani-festa um desmentido duma igual profundidade? Esta identi-dade na recusa leva-nos a descobrir, nestas sociedades, uma identificao do poder e da natureza: a cultura a negao de um e da outra, no no sentido em que poder e natureza seriam dois perigos diferentes, cuja identidade no seria seno aquela- negativa -de uma i!'elao idntica ao terceiro tel!'mo, mas justamente.no sentido em que a cultura apreende o poder como a prpria ressurgncia da natureza.

    Tudo se passa, com efeito, como se estas sociedades constitussem a sua esfera poltica em funo de uma intui:o que lhes asseguraria o lugar de regra: a saber, que o poder na sua essncia coero; que a actividade unificadora da funo politica se exerceria, no a partir da estrutura da socie-dade e confol!'memente com ela, mas a partir de um alm incontrolvel e contra ela; que o poder na sua natui!'eza no seno um alibi furtivo da natureza no seu poder. Longe por-tanto de nos oferecer a imagem tema de uma incapacidade pai!'a resolver a questo do poder politico, estas sociedades espantam-nos pela subtileza com que o colocal!'am e o re;at !aram. Desde muito cedo pressentiram que a transcedncia.l!_ poder esconde um risco 'mortal para o grupo, que o princpio de uma autoridade exterior e criadora da sua prpria legali-dade uma contestao da prpria cultum; foi a intuio dessa ameaa que detel!'minou a. profundidade da sua filosofi pol-tica. Porque, descobrindo o grande parentesco do poder e da natureza, como dupla limitao do universo da 'cultura, as sociedades ndias souberam inventar um meio de neutralizar a virulncia da autoridade poltica. Escolheram ser elas prp-is

    42

    as suas fundadoras, mas de maneira a no deixar aparecer o poder seno como negatividade imediatamente dominada: elas instituemcno segundo a sua essncia (a negao da cul-tura), mas justamente para lhe denegar todo o poderio efec-tivo. ne modo que a emergncia do poder, tal como , se ofe-rece a essas sociedades c.omo o prprio meio de o anulai!'. A mesma operao que instaura a esfera poltica proibi-lhe o seu desdobramento: assim que a cultura utiliza contra o poder a prpria al!'madi:lha da natureza; por isso que se chama chefe ao homem em quem se vem quebrar a ti!'oea das mulheres, das palavras e dos bens.

    Enquanto devedor de riquezas e de mensagens, o chefe no traduz outra coisa seno a sua dependncia l!'elativamente ao grupo, e a obrigao em que se encontra de manifestar em cada instante a inocncia da sua funo. Poder"se,ia com efeito pensar, sefossemos a medir a confiana com que o grupo cre-dita o seu chefe, que atravs dessa liberdade vivida pelo grupo na sua relao com o poder se toma evidente, como que subrep-ticiamente, um controle, tanto mais profundo quanto menos avarente, do chefe sobre a comunidade. Porque; em certas circunstncias, singulai!'mente em perodo de escassez, o grupo volta-se totalmente para o chefe; quando a fome ameaa, as comunidades do Orenoco instalam-se na casa do chefe, a cujas expensas, doravante, decidem viver; at chegada de melho-res dias. no mesmo modo, o bando Nambikwara, com falta de alimentao depois duma dura etapa, espera do chefe e no de si prprio que a situao melhore. Parece neste caso que o grupo, no podendo passar sem chefe, depende integralmente dele. Mas essa subordinao apenas aparente: ela mascara de facto uma espcie de chantagem que o grupo exerce sobre o chefe. Porque, se este ltimo no faz aquilo que se espera dele, a sua aldeia ou o seu bando muito simplesmente abando-nam-no para se irem juntar a um !dercmais fiel para com os seus deveres. li) somente por meio desta dependncia real que o chefe pode manter o seu estatUto; Isso aparece muito niti-damente na relao do poder e da palavra: porque, se a lin-

    43

  • ...

    guagem o prprio oposto da violncia, a prulavra deve inter-pretar-se, mais do que como privilgio do chefe, como o meio que o grupo se oferece de manter o poder no exterior da vio-lncia coerciva, como que a garantia cada dia repetida de que essa ameaa est afastada. A palavra do lder oculta em si a ambiguidade de estar desviada da funo de comunicao imanente linguagem. :m to pouco necessrio ao discurso do chefe ser escutado que os tndios as mais das vezes' no lhe prestam ateno alguma. linguagem da autoridade, dizem os Urubu, um ne eng hafftt(Jlfl: uma linguagem dura, que no espera resposta. Mas essa dureza no compensa de modo algum a impotncia da instituio poltica. exterioridade do poder responde o isolamento da sua palavra que carrega, por ser dita duramente justamente para no se fazer ouvir, o testemu-nho da sua doura.

    A poliginia pode interpretar-se da mesma maneira: para l do seu aspecto formal de dom puro e simples destinado a colocar o poder como ruptura da troca, desenha-se uma fun-o positiva, anloga dos bens e da linguagem. O chefe, pro-prietrio de valores essenciais do grupo, por isso mesmo responsvel diante dele, e por intermdio das mulheres, de algum modo o prisioneiro do grupo,

    Assim, este modo de constituio da esfera poltica pode compreender-se como um verdadeiro mecanismo de defesa das sociedades indias. A cultura afirma o prevalecimento daquilo que a funda- a troca'--- precisamente ao visar no poder a negao deste fundamento. Mas preciso para a1m disse, notar que estas culturas, privando os Sinais do seu valor de troca na regio do poder, tiram s mulheres, aos bens e s palavras justamente a sua funo de sinais para trocar; e ento como puros valores que so apreendidos esses elementos, porque a comunicao deixa de ser o seu horizonte. O estatuto da linguagem sugere com uma fora singular essa converso do estado de sinal ao estado de valor: o discurso do chefe, na sua solido, lembra a palavra do poeta para quem as pala-vras so valores aind mais do que sinais. Que pode pois

    s1gnificar esse duplo processo de des-siguificao e de valori-zao dos elementos da troca? Talvez exprima, mesmo para alm da ligao da cultura aos seus valores, a esperana ou a nostalgia de um tempo mtico em que cada um pode-ria aceder plenitude de uma fruio no limitada pela exigncia da troca.

    Culturas ndias, culturas inquietas por recusar um poder que as fascina: a opulncia do chefe o sonho acordado do grupo. E justamente por exprimir ao mesmo tempo a preo-cupao que tem de si a cultura e o sonho de se ultrapassar, que o poder, paradoxal na sua natureza, venerado na sua impotncia: metfora da tribo, imago do seu mito, eis o chefe indio *.

    * Estudo inicialmente publicado em L'Bomme II (1), 1962.

  • I

    I

    I !

    CAPTULO III

    INDEPENDNOA E EXOGAMIA 1

    A oposio to constrastada entre culturas dos altos planaltos . andinos e culturas da Floresta Tropical, posta em relevo por narraes e. relatos dos missionrios, soldados,. via-jantes dos sculos XVI e XVII, foi em seguida acentuada at ao exagero: pouco a pouco desenhou-se a imaginria popular de uma Amrica pr-colombiana completamente entregue sel-vajaria, excepo da regio andina onde os Incas tinham conseguido fazer triunfar a civilizao. Estas concepes ape-nas na aparncia simplistas e ingnuas - porque estavam em completo acordo com os objectivos da colonizao branca -cristalizaram-se numa verdadeira tradio cujo peso se fez

    1 Sem dvida que .uma ausncia ir surpreender; a das numerosas tribos pertencendo ao importante stock lingustico G. No se trata evi-. dentemente de retomar aqui a olassif-icao do HSAI (Handbook of South American lndians) ' que confere a es~a.S populaes um estatuto de Mar-ginais, quando a sua ecologia, comportando a agricultura, deveria inte-gr-los na rea ~cul,tural da Floresta Tropical. Se no tratamos dele neste trabalho precisamente por causa da complexidade parttcular dais suas organiZaes sociais em cls, mltiplos sistemas de metades, associaes, etc. Os G, a este titulo, merecem um estudo especial. E no al-is um dos paradoxos menores do Handbook o associar ecologia ,muito desenvolvida,. da Floresta modelos scio-polticos 'muito rudimentares, enquanto os G, de sociologia to rica, estagnariam a um nvel nitidamente .pr~agri-cola.

    47

  • !

    sentir fortemente sobre a etnologia americanista nos seus prin-cpios. Porque se esta, ao escolher e ao colocar os problemas em termos cientificas, se confonnou com a sua vocao, as solues propostas no deixavam por isso transparecer mens uma persistncia certa dos esquemas tradicionais, de um estado de esprito que, independentemente da vontade dos seus pr-prios autores, determinou parcialmente as suas perspectivas de investigao. Por que se caracterim esse estado de esprito? Antes do mais por uma certeza: os primitivos, de uma maneira geral, so incapazes de realizar bcms modelos sociolgicos; em seguida por um mtodo: levar at carica-tura o trao mais aparentemente perceptvel das culturas con-sideradas. Foi assim que o imprio inca espantou os antigos cronistas, essencialmente pela forte centralizao do poder e por um modo de organizao da economia at ento desco-nhecido. Ora estas dimenses da sociedade inca so transfor-madas pela etnologia moderna em totalitarismo com R. Kars-ten' ou em socialismo com L. Baudin ' Mas um exame menos etnocntrico das fontes conduz correco destas imagens demasiado modernas de uma sociedade apesar de tudo arcaica; e Alfred Mtraux ', numa obra recente, ps em relevo a exis-tncia, no Tahuantinsuyu, de foras centrfugas que os cls do Cuzco no pensavam sequer em quebrar.

    No que toca s populaes da Floresta, no foi em esque-mas anacrnicos que se procurou inscrev-las; pelo contrrio, e na prpria medida em que se tentava dilatar os traos OCi-dentais do imprio inca, os quadros sociolgicos das socie-dades da Floresta no pareciam desse modo seno mais pri-mitivos, mais fracos, menos susceptveis de dinamismo, estrei-tamente limitados a pequenas unidades. Sem dvida que s assim se explica a tendncia em insistir sobre o aspecto divi-

    " R. Karsten, La Civilisation de l'Emrp:ire Inca., Pari.s, Payot, 1952. 1 L. Baudin, L'Empire SociaUste des Inka, Paris, Inst. d'Ethno--

    logie, 1928. 4 A. Metraux, Les Incas. Paris, ed du Seuil, 1961.

    48

    dido, separatista ', das comunidades ndias no andinas, e sobre a consequncia necessria dessa situao: uma guerra quase permanente. E a Floresta, enquanto rea cultural, apre-senta-se assim como uma poeira de micro-"Sociedades, todas elas mais ou menos semelhantes entre si, mas todas igualmente hostis umas s outras. bm certo que se, com L. Baudin, se pensa do ndio Guarani que ... a sua mentalidade a de uma criana 6 no se pode de modo algum esperar descobrir tipos de organizao social adultos. Esta sensibilidade ao ato-mismo das sociedades ndias detecta-se tambm em Koch--Grundberg ou Kirchhoff, por exemplo no uso frequentemente excessivo do termo tribo para designar toda a comuni-dade, o que os conduz noo surpreendente de exogamia tri-bal a propsito das tribos Tucano do Uaups, e a tentar sobrepor de algum modo as tribos da Floresta Trapical s dos Andes. Parece no entanto que o quadro mais corrente das sociedades em questo nem sempre o mais exacto; pois com o escreveu Murdock, The warlikeness and atomism of simple societies have been grossly exaggerated ', o que inteiramente verdadeiro para a Amrica do Sul. O reexame Caqueta, por-tanto uma tarefa que se impe'

    Sem dvida que no se trata aqui de pegar na contra-partida do material etnogrfico e de reavaliar as unidades scio-polticas da Floresta Tropical, simultaneamente na sua natureza e nas suas relaes.

    A informao etnogrfica est em grande parte contida no monumental Hambook of South American Indians, cujo volume Ill consagrado s culturas da Floresta. Esta rea cul-tural comporta uma quantidade muito importante de tribos, de entre as quais muitas pertencem aos trs principais stocks

    5 Of. Uowie, The Journal of the Royal ~thropotlogicaJ Insti-titute, 1948.

    ' L. Baud.in, Une Theoeratie Socialiste: l'Etat jsuite du Paraguay, Paris, Gn'in, 1962, pg. 14.

    ' HSAI, t. m, P 780. Cf. Sooia.I Structure, p. 85.

    49

  • .,

    lingusticos: Tupi, Carib, Arawak. Pode-se agrupar sob uma categoria comum todas estas populaes: a sua ecologia submete-se, com efeito, sob reserva de variaes locais, a um mesmo modelo. O modo de subsistncia das sociedades da floresta essencialmente agrcola, de uma agricultura limi-tada jardinagem, certo, mas cuja contribuio , quase por toda a parte, pelo menos to importante com a da caa, da pesca e da colecta. Por outro lado, as plantas cultivadas so mais ou menos constantemente as mesmas, as tcnicas de produo so semelhantes, assim como os hbitos de tra-balho. A ecologia fornece pois aqui uma valiosa base de clas-sificao, e somos confrontados com um conjunto de socie-dades que apresentam, deste ponto de vista, uma real homo-geneidade'. No pois surpreendente constatar que a identidade ao nvel da infraestrutura se encontra iguahnente ao nvel das superstruturas, isto , dos tipos de organizao social e poltica. .A!ssim, o modelo sociolgico mais comum na rea considerada parece ser, a acreditar pelo menos na docu-mentao geral, o da famlia alargada, que constitui alis, muitas vezes, a comunidade politicamente autnoma, ao abrigo da grande casa colectiva ou maloca; nomeadamente, o caso das tribos das Guianas, da regio do Jurua-Purus, dos Witoto, dos Peba, dos Jivaro, de numerosas tribos Tupi, etc. A dimenso demogrfica destes hauseholds pode variar entre quarenta e vrias centenas de pessoas, embora a mdia pthna parea si tuar~se entre cem e duzentas pessoas por cada nuiloca. Assin:lilveis excepes regra: as grandes aldeias apiaca, guarani, tupinamba, que reuniam at cerca de mil indivduos ''

    Mas coloca-se ento uma dupla srie de problemas. A primeira dificuldade diz respeito natureoo das unidades scio-po!Hicas da Floresta Tropical. A sua caracterizao sociol-gica como comunidades constitudas por uma famlia alar-gada no se ajusta sua dhnenso demogrfica mdia. Com

    Cf. HSAI, t. III, Lowie, Introdul!.o. " Cf. Zeitscbrift fur Ethnolgie, vol. LXIll, pp. 85-193.

    50

    efeito Lowie retm a definio dada por Kirchhoff deste tipo de organizao social n : trata-se de um grupo composto por um homem, a sua mulher -ou as suas mulheres se ele for polgino -, os seus filhos e as esposas ~estes se a residncia ps-marital patrilocal, as suas filhas nao casadas, ~ os filhos dos seus filhos. Se a regra de residncia for matrilocal, um homem est rodeado das suas filhas e dos seus maridos, dos seus filhos no casados, e dos filhos das suas filhas. Os dois tipos de famlia alargada existem na rea da Floresta, o segundo menos expandido do que o primeiro, e n~ pre-valecendo nitidamente seno nas Guianas ou na reg~ao do JuruaoPurus. A dificuldade provm do facto de uma famlia alargada, definida stricto sensu, no poder atingir a dimenso habitual das comunidades da Floresta, isto , uma centena de pessoas. Uma famlia alargada no engloba co~ efeit~ mais do que trs geraes de parentes ligados em lmha directa; e alm disso, tal como o afirma Kirchhoff, um processo de segmentao submete-a a uma transformao permanente que a impede de ultrapassar um certo nvel de populao. Por con-seguinte, hnpossvel que as unidades scio-polticas da Flo-resta sejam compostas por uma nica famlia alargada, e que ao mesmo tempo elas agrupem cem ou mais pessoas. preciso pois admitir, para esclarecer a contradio, a inexactido dos nmeros avanados ou ento um erro na identificao do tipo de organizao social. E como sem dvida mais fcil enga-nar-se sobre a medida> de uma sociedade do que sobre a sua natureza, a propsito desta que ser necessrio interro-garmo-nos.

    A comunidade ndia da Floresta descrita, tal como vhnos como sendo uma unidade autnoma de que um atributo

    essencial a independncia poltica. Haveria ento, ao longo de toda essa imensa rea, uma multido de estabelecimentos existindo cada um por si, cujas relaes recprocas seriam fre-quentemente negativas, isto , guerreiras. E aqui que surge

    u Cf. Cap. IV, ~tElments de Dmographie Amrind.ienne.

    51

  • .i;-

    i'

    a segunda dificuldade. Porque, para alm de uma maneira geral as sociedades primitivas serem abusivamente condena-das a um esboroamento, revelador de uma primitividade que no se manifestaria seno sobre o plano estr1tamente politico, o estatuto etnolgico das .populaes ndias da Flo-resta Tropical apresenta uma particularidade suplementar: se estas esto com efeito agrupadas no seio de um mesmo con-junto cultural, na medida exacta em que so diferentes das outras populaes no andinas, isto , das tribos ditas margi-nais e sub-marginais". Estas ltimas so culturalmente deter-minadas pela ausncia mais ou menos geral e completa da agricultura; so pois constitudas por grupos nmadas de caadores, pescadores e colectores: Fuegianos, Patagnios, Guayaqui, etc. E claro que essas populaes no podem subsis-tir seno em pequenos grupos dispersos sobre vastos territ-rios. Mas esta necessidade vital de disperso no incomoda as gentes da Floresta que, enquanto agricultores seden-trios, poderiam, ao que parece, pr em prtica modelos socio-lgicos diferentes dos dos seus vizinhos marginais menos favo-recidos. No ser estranho ver coexistir num mesmo conjunto uma organizao social de tipo nmada e uma ecologia de agricultores para os quais, por outro lado, as S'Uas capacidades de trrunsporte e deslocao por navegao fluvial permiti-riam uma intensificao das relaes exteriores? Ser real-mente possvel que se desvanea assim o benefcio, de certo modo enorme, da agricultura e da sedentarizao? Que populaes ecologicamente marginais possam inventar mode-los sociolgicos muito sofisticados no oferece impossibili-dade nenhuma: os Bororo do Brasil central, com a ~ua organizao clnica recortada por um duplo sistema de meta-des, ou os Guaycuru do Chaco, com a sua hierarquia de castas. do-nos disso a melhor prova. Mas o inverso de populaes agrcolas organizadas segundo os esquemas marginais mais dificilmente concebvel. A questo que se coloca pois a de

    u HSAI, t. V. pp. 669 segs.

    52

    saber se o isolamento poltico de cada comunidade um trao pertinente para a etnologia da Floresta Tropical.

    Mas antes de mais necessrio elucidar a natureza destas comunidades. Que esta seja efectivamente problemtica, justamente o que parece resultar da ambiguidade terminol-gica que se encontra ao longo de todo o Handbook. Se, no volume m, Lowie chama famlia alargada unidade scio-[Joltica mais corrente na rea estudada, Stewart, no tomo V, chama-lhe -linhagem, indicando assim a inadequao do termo proposto por Lowie. Mas, embora as unidades consideradas sejam dema-siado povoadas&g