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Os artigos publicados nos são indexados por The Philosopher’s Index, Clase e Geodados cadernos Nietzsche São Paulo – 2007 N o 22 ISSN 1413-7755 cadernos Nietzsche

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Os artigos publicados nos

são indexados porThe Philosopher’s Index,

Clase e Geodados

cadernosNietzsche

São Paulo – 2007

No 22ISSN 1413-7755

cadernosNietzsche

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no 22 – São Paulo – 2007ISSN 1413-7755

Editor / Publisher: GEN – Grupo de Estudos NietzscheEditor Responsável / Editor-in-Chief

Scarlett Marton

Editor Adjunto / Associated EditorAndré Luís Mota Itaparica

Secretário Editorial / Editorial SecretaryLuis Eduardo Xavier Rubira

Conselho Editorial / Editorial AdvisorsErnildo Stein, Germán Meléndez, José Jara, Luis Enrique de Santiago Guervós,Mónica B. Cragnolini, Paulo Eduardo Arantes, Rubens Rodrigues Torres Filho

Comissão Editorial / Associate EditorsAdriana Belmonte Moreira, Alexandre Filordi de Carvalho, Clademir Luís Araldi,

Fernando de Moraes Barros, Ivo da Silva Júnior, Márcia Rezende de Oliveira,Márcio José Silveira Lima, Vânia Dutra de Azeredo, Wilson Antônio Frezzatti Júnior

Endereço para correspondência / Editorial Officescadernos Nietzsche

Profa. Dra. Scarlett MartonA/C GEN – Grupo de Estudos Nietzsche

Departamento de Filosofia – Universidade de São PauloAv. Prof. Luciano Gualberto, 315

05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTel.: 55-11-3091.3761 – Fax: 55-11-3031.2431

e-mail: [email protected] – Home page: www.fflch.usp.br/df/gen/gen.htm

Endereço para aquisição / Administrative OfficesAv. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Sala 1005

05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTel./FAX: 55-11-3814.5383

[email protected]

cadernos Nietzsche é uma publicação do

Projeto gráfico e editoração / Graphics Editor: Guilherme Rodrigues NetoCapa / Cover: Camila Mesquita

Foto da capa / Front Cover: C. D. Friedrich – Der Wanderer über dem Nebelmeer, 18181.000 exemplares / 1.000 copies

GEN

cadernosNietzsche

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Fundado em 1996, o GEN – Grupo de EstudosNietzsche – persegue o objetivo, há muito acalenta-do, de reunir os estudiosos brasileiros do pensamen-to de Nietzsche e, portanto, promover a discussão acer-ca de questões que dele emergem.

As atividades do GEN organizam-se em torno dosCadernos Nietzsche e dos Encontros Nietzsche, que têmlugar em maio e setembro sempre em parceria comdiferentes departamentos de filosofia do país.

Procurando imprimir seriedade aos estudos nietzschia-nos no Brasil, o GEN acolhe quem tiver interesse, porrazões profissionais ou não, pela filosofia de Nietzsche.Não exige taxa para a participação.

Scarlett Marton

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GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – was founded in1996. Its aim is to gather Brazilian researchers onNietzsche’s thinking, and therefore to promote the dis-cussion about questions which arise from his thought.

GEN’s activities are organized around its journal andits meetings, which occurr every May and Septemberin different Brazilian departments of philosophy.

GEN welcomes everyone with an interest in Nietzsche,whether professional or private. No fee for member-ship is required.

Scarlett Marton

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Sumário

Giuliano Campionie a arte de ler Nietzsche 7Sergio Sánchez

Friedrich Nietzsche:paixão e críticada moral heróica 23Giuliano Campioni

Nietzsche e o cinismo grego:elementos para a críticaà “vontade de verdade” 65Adriana Belmonte Moreira

Friedrich Nietzsche: “ideal clássico”e “ideal romântico” na tradição alemã 93Luzia Gontijo Rodrigues

O niilismo extáticocomo instrumentoda Grande política 127Yannis Constantinidès

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Giuliano Campioni e a arte de ler Nietzsche

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Giuliano Campionie a arte de ler Nietzsche*

Sergio Sánchez**

Resumo: Para apresentar a leitura de Giuliano Campioni, destacam-seaqui dois aspectos centrais de seus trabalhos sobre Nietzsche: em primeirolugar, a perspectiva de leitura filológica. Em segundo lugar, os resultadosespecíficos alcançados por essa leitura de Nietzsche, resultados esses quecontribuíram para o estabelecimento do perfil do Nietzsche histórico, colo-cando em crise aspectos-chave das imagens mais difundidas do filósofo.Palavras-chave: interpretação – filologia – filosofia

(…) um leitor como eu o mereço, que me leia comoos bons filólogos de outrora liam o seu Horácio(EH/EH, “Por que escrevo tão bons livros”, §5)1.

Para apresentar Giuliano Campioni aos leitores de língua por-tuguesa e, de forma mais geral, aos leitores da América Latina, tal-vez seja útil destacar dois aspectos centrais de seus trabalhos sobreNietzsche: em primeiro lugar, uma perspectiva de leitura que, embo-ra possua grande relevo no âmbito da Nietzsche-Forschung [pesqui-sa Nietzsche] internacional, ainda constitui para nós uma novidade,um território ainda a se descobrir. Em segundo lugar, os resultadosespecíficos alcançados por essa leitura de Nietzsche, resultados es-

* Tradução: André Luís Mota Itaparica. ** Professor da Universidade Nacional de Córdoba (Argentina).

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ses que contribuíram para o estabelecimento do perfil do Nietzschehistórico, colocando em crise aspectos-chave das imagens mais di-fundidas do filósofo.

1. A perspectiva de leitura

Em uma página de Aurora, Nietzsche solicitou explicitamenteque seus textos fossem lidos em chave filológica, caracterizando talleitura em termos de uma arte e de uma disciplina que deviam obri-gatoriamente desesperar os leitores apressados, leitores modernosde uma época “que se lê em demasia” e na qual, como nos é ditono Zaratustra, “o espírito se converteu em um jogo de palavras”,rebaixando a escrita à sua forma jornalística.

(...) ambos somos amigos do lento, tanto eu como meu livro. Não fuifilólogo em vão, talvez o seja ainda, isto é, um professor da lenta leitu-ra: – afinal, também escrevemos lentamente. Agora não faz parte ape-nas de meus hábitos, é também de meu gosto – um gosto maldoso, tal-vez? – nada mais escrever que não leve ao desespero todo tipo de genteque “tem pressa”. Pois filologia é a arte venerável que exige de seuscultores uma coisa acima de tudo: pôr-se de lado, dar-se tempo, ficarsilencioso, ficar lento – como uma ourivesaria e saber da palavra, quetem trabalho sutil e cuidadoso a realizar, e nada consegue se não forlento. (...) ela ensina a ler bem, ou seja, lenta e profundamente (...).Meus pacientes amigos, este livro deseja apenas leitores e filólogos per-feitos: aprendam a ler-me bem! –” (M/A, Prefácio, § 5)2.

Se há uma tradição de leitura de Nietzsche que levou a sério eem todo seu inequívoco alcance essa exigência do filósofo alemão,essa é a tradição italiana, que tem em Mazzino Montinari seu mes-tre e iniciador e da qual Giuliano Campioni é hoje o mais destacado

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expoente3. Como se sabe, os estudiosos de Nietzsche devem ao la-bor de Montinari e de seu amigo Giorgio Colli uma contribuição damaior magnitude: a Edição Crítica, que revolucionou a base filo-lógica e os parâmetros de interpretação dos textos de Nietzsche, aoponto de tornar caducas a maior parte das reconstruções sistemáti-cas da primeira metade do século XX. Contudo, a contribuição dessatradição ao conhecimento de Nietzsche não se reduziu ao carátermeramente “filológico e editorial” – como estranhamente sugeriuum intérprete à la mode –, de modo que não se pudesse encontrarem suas produções uma “imagem filosófica” de Nietzsche com ple-nos diretos e relevância teórica no espectro das interpretações con-temporâneas da obra do filósofo.

A leitura “filológica”, tal como o próprio Nietzsche a entendia ecomo essa tradição a desenvolve e pratica, está longe de ser “mera-mente” filológica, e mais ainda de excluir a “interpretação filosófi-ca”, que é concebida em íntima relação de complementaridade coma história. Naquele momento, Montinari veio de encontro a posi-ções que pretendiam legitimar um suposto trabalho “filosófico-teó-rico” de leitura apartado do trabalho “filológico”, assinalando quea perspectiva filológica não podia ser senão uma perspectiva histó-rica (não historicista). Com isso, ele defendeu um ponto de vistaque assumiu aquele “sentido histórico” cuja carência Nietzsche re-provava nos filósofos, dados a ler obras e fatos sub specie aeternitatis.

Montinari falava de verdadeiras “partenogêneses”, ao caracte-rizar interpretações aistóricas que evitam pensar a partir do terrenodos fatos e que “não fazem mais do que sempre tecer uma discutí-vel trama de filosofemas sem nenhuma referência concreta à vidaintelectual real de Nietzsche”4. Nesse sentido, entendia que “o tra-balho histórico sem compreensão filosófica é cego, o pensamentofilosófico sem conteúdo histórico é vazio”5. Ler Nietzsche segundoessas premissas exige “ampliar ao máximo a própria capacidade deassimilação crítica de seus pensamentos, conseguir inclusive não

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sobrepor nossas preocupações às dele, mas sim, antes, levar as delecorretamente às nossas, graças à extensão de nosso sentido para ahistória: partir de Nietzsche até nós”6.

Produtos de uma laboriosa investigação ligada a tais pressu-postos, os livros publicados por Campioni não são, portanto, traba-lhos que oferecem ao leitor novos estímulos e motivos para desper-tar e manter viva a devoção acrítica diante da figura e da obra deNietzsche, como ainda é freqüente. Campioni busca possibilitar queemerja, em toda sua complexidade, o vasto mundo cultural comque Nietzsche discute, e ao qual, de maneira original, reage emtermos de uma dupla relação de assimilação e rechaço: relação com-plexa, estratificada em vários níveis, cuja marca se faz sentir no tex-to de Nietzsche, exigindo que a atenção do intérprete se dirija aoextratexto (o mundo de leituras do filósofo, o “caldo cultural” emque ele esteve imerso), como operação inevitável para compreendê-lo plenamente.

Trazer à luz a trama de tais relações entre o texto e o extratexto,com o conseqüente efeito de contraste que se cria entre ambos, nãosignifica, nas palavras de Campioni “reduzir o texto a outros fatoresque lhe são externos, dissolvendo-o em uma simples rede de remis-sões ou de influências, mas sim, ao contrário, conferir-lhe a espes-sura específica que lhe é própria, logrando de tal modo lê-lo naprofundidade histórica que lhe corresponde”7.

Essa leitura atenta à minuciosa documentação das fontes deNietzsche não nega a originalidade do filósofo alemão, mas sim,desmentindo e transcendendo o “conceito filisteu de originalidade”– mistificação propícia às mitificações –, busca “sair de Nietzschecomo individuo” para restituí-lo “como parte da história”8, opera-ção que pressupõe a plena consciência de que seu pensamento nãonasceu de iluminações geniais imprevistas; pelo contrário, é um frutomaturado na investigação paciente e ao calor da constante confron-tação crítica com sua época.

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Enfim, diria que a perspectiva de leitura histórico-filológica pra-ticada por Campioni é uma perspectiva temperada pela vontade demaior respeito ao texto de Nietzsche. Um respeito não fetichista,que, reconhecendo sua alteridade, é refratário a toda simplificação,tantas vezes produzida por uma assimilação que faz o texto virarparte de nossas preocupações, despojando-o de sua singularidadehistórica, apagando a complexidade de seu caráter aberto e de suarelação constitutiva com o texto plural da cultura do século XIX.

Esse respeito é conseqüência imediata da vontade primária econfessa de compreender Nietzsche e de assumir todas as tarefasnecessárias para tal fim. Perspectiva histórica e não atualizadora,filológica e não ideológica, na qual a cautela adota a forma de umadupla desconfiança: desconfiança, primeiro, para consigo mesmocomo leitor situado em um presente que não é o do texto que se lê– consciência, pois, do caráter diferenciado da leitura que se prati-ca – e desconfiança, portanto, para com o texto mesmo, na medidaem que o seu sentido nunca é imediato, nunca diz o que à primeiravista parece dizer e que uma leitura desprevenida ou apressada podeconfundir e deixar escapar.

Juan José Saer expressou com precisão o caráter desse respeitopresente nos grandes filólogos do passado e que vive hoje nos her-deiros de Montinari, “(...) o escrúpulo dos maiores filólogos em es-tabelecer a realidade textual”, diz, “não se devia somente a umasimples curiosidade histórica ou a uma mania de erudito, mas sima seu respeito pelo sentido. O amor pela palavra não é outra coisaque o amor pela verdade”9.

2. Os resultados

Há tempos se pode verificar que o resultado mais evidente dainvestigação de Campioni – resultado que se foi incrementando e

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consolidando no curso de seu trabalho – é a redefinição, em umaóptica histórico-filológica, do pensamento de Nietzsche e de suaposição na história da filosofia e da cultura. Isso põe radicalmenteem crise as imagens majoritariamente difundidas do filósofo e desua obra, frutos de leituras de uma maneira ou outra instrumentais,ou prioritariamente comprometidas em oferecer material para oconsumo ideológico imediato. Resultam particularmente ilustrativosdisso seus trabalhos mais recentes – em especial Nietzsche y elespíritu latino, no qual confluem e se articulam os resultados delongos anos de investigação –, destinados a mostrar a falsidade es-sencial da imagem do filósofo como representante típico do espíritogermânico e antilatino. Nietzsche foi entendido largamente assim,ao ser alocado em um esquema estereotipado em que se contra-põem o espírito latino, caracterizado pela claridade e pela análise,cujo representante emblemático é o “racionalista” Descartes, e oespírito germânico, caracterizado pelo misticismo e por um peculiar“sentimento de devir” que se confunde com o “caráter” e o “seralemão”, tornando-o essencialmente “contraditório” e “incalculá-vel” (segundo a caracterização de Bertram, em quem a germanizaçãode Nietzsche alcança uma expressão nítida e paradigmática)10.

Essa caracterização de Nietzsche como “fenômeno especifica-mente alemão”, acentuada nas leituras dos dois lados do Reno noforjamento dos nacionalismos exacerbados pela Guerra Mundial,encontra certa justificação textual no Nietzsche wagneriano de Onascimento da tragédia, no qual ele sonha com a ressurreição dio-nisíaca da Antigüidade grega por meio da música do maestro11 –“idealista germânico” e antifrancês –, chamada a “regenerar” acultura alemã. Atento às mudanças e à evolução do pensamento deNietzsche em relação a sua vida intelectual concreta, Campioni iden-tifica a base dessa leitura em um equívoco, ainda hoje recorrentenas interpretações de Nietzsche, que Montinari qualificava de “insop-portabile”, a saber, o equívoco “que tende a minimizar a virada

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representada por Humano, demasiado humano na obra de Nietzschee o desenvolvimento de sua filosofia”12. Com efeito, essa viradaimplica a separação e o abandono definitivos da ideologia românti-ca germânica do Wagner antilatino e de toda garantia metafísica atéentão postulada à sombra de Schopenhauer. A partir dessa obra (ejá desde 1876, se se seguem os póstumos), a opção de Nietzscheestá determinada, radicalmente e sem concessões, pela “paixão doconhecimento” que “implica a destruição de todos os mitos, todosos ideais, toda fonte privilegiada de conhecimento (do gênio, dosanto, do artista) e toda intuição metafísica ou mística”13. Campionimostra claramente como o caminho do “espírito livre” que agoraNietzsche empreende é, ao mesmo tempo, em boa parte, o “cami-nho a Cosmópolis”, o caminho que se afasta do “lamaçal deBayreuth” até do céu aberto do midi e da clarté da melhor tradiçãofrancesa de análise, tutelados pelas figuras emblemáticas de Des-cartes e Stendhal, nos quais encontra o modelo e as chaves parauma práxis filosófica liberada de toda hipoteca mítica e ideológica.

Já em seu primeiro livro, escrito em colaboração com SandroBarbera, Campioni dedicava especial atenção à figura de Renancomo o pólo oposto de Nietzsche, no centro de uma constelação deautores entre os quais se sobressaem também outros franceses, comoTaine, Stendhal, Bourget, os quais o filósofo alemão havia lido aten-tamente seguindo sua vontade de traçar um mapa da decadência ede seus tipos psicológicos. Mais tarde, em Sulla strada di Nietzsche,debruçava-se sobre as leituras francesas do filósofo (especialmenteno último capítulo, dedicado à relação entre “fisiologia da arte” e adécadence), somando, aos anteriormente mencionados, novos nomesde parisienses: Balzac, os Goncourt, Brunetière, Fouillée, Desprez,Ribot, etc. e oferecia em apêndice uma contribuição à Quellen-forschung [pesquisa de fontes] ligada ao trabalho de edição do Catá-logo da biblioteca póstuma de Nietzsche, constituída quase toda portextos franceses. Confirmava assim o elenco de referências assina-

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lado inicialmente por Montinari como prioritário na investigaçãosobre Nietzsche14 e dava os primeiros passos decididos pelo caminhodo estudo daqueles que Montinari havia considerado “os verdadei-ros interlocutores” do filósofo: “todos de Paris, nunca alemães”15.

Desse modo, ganha progressivamente força e nitidez, na inves-tigação de Campioni, a centralidade que a cultura francesa tem paraa formação do pensamento de Nietzsche, especialmente a partir de1883, ano em que descobre os Essais de psychologie contemporainede Bourget. Assim, Campioni dedica sucessivos trabalhos à identi-ficação e à pesquisa minuciosa da trama francesa e, mais generica-mente, “latina” das obras do filósofo. Os resultados de tais traba-lhos, enriquecidos e ampliados consideravelmente, confluem e searticulam em Nietzsche e el espíritu latino, obra por meio da qual sepode avaliar quanto o pensamento do filósofo deve a esse filão dacultura européia, no qual, a seus olhos, se conjugam a superabun-dância de força e a energia vital implicada nos valores do Renasci-mento italiano e o caos incandescente que é a Paris da decadência,verdadeiro laboratório experimental de novos valores e formas devida, que dá à luz “indivíduos híbridos, estranhos aos furores nacio-nalistas”, que prefiguram o novo europeu. Desse modo, ao lançarluz sobre a centralidade dessa trama francesa e latina do texto deNietzsche, chamando atenção para a grande simpatia que ele ex-pressa pela multiforme França fin de siècle e o Renascimento italia-no, Campioni dissolve a persistente simplificação ideológica quesupõe um Nietzsche germânico antilatino; com isso, permanece fielà orientação fundamental da tradição de leitura de Montinari e aoobjetivo básico com que contribuiu a Edição Crítica: a saber, não adesnazificação de Nietzsche – que não foi nem a principal nem,muito menos, a exclusiva finalidade desse empreendimento, comosurpreendentemente sugere Vattimo16–, mas sim sua liberação dasmúltiplas e recorrentes falsificações de que havia sido objeto, entre

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as quais se conta, certamente uma das mais vulgares e nefastas, arealizada por Baeumler e seus seguidores.

A apaixonada atenção que Nietzsche dedica ao Renascimentoitaliano, oposto do Renascimento alemão de cunho wagneriano, leva-o a apreciar suas naturezas mais fortes, entre as quais se destaca agrande figura de Leonardo, com sua rara capacidade de conter emsi uma vasta pluralidade de forças sem sufocar suas diferençasmediante a imposição tirânica de uma forma rígida e monolítica.Esta e outras figuras renascentistas, vistas inicialmente a partir daóptica de Burckhardt e logo integradas em um marco de referênci-as francesas, oferecem-lhe exemplos da complexidade e do carátermúltiplo de uma cultura superior, preparando a exploração “emfiligrana” dos movimentos e contradições da alma moderna queencontrará nos “psicólogos” franceses Bourget, Taine e Stendhal,nas obras de refinadas sensibilidades como Baudelaire, ou nas deespíritos estragados pela crise da morte de Deus, vontadesenfraquecidas e enfermas, que não sabem fazer frente às mil for-mas que assume a decomposição da decadência senão pela reabili-tação de velhas crenças e rígidas ideologias, receitando narcóticose impondo os meios tirânicos mais exasperados, como é o caso deRenan, a quem Nietzsche julga como seu antípoda17.

Campioni põe em evidência como os indivíduos decadentes quetanto atraem a atenção de Nietzsche possuem mais de uma qualida-de que ele valora positivamente. Os homens superiores que Zaratustraencontra em seu caminho são todos eles indivíduos formidáveis quenão acharam, entre seus contemporâneos, as condições de sua exis-tência. Nietzsche admira esta veracidade e esse não saber viver de-les; porém, na óptica do filósofo, falta-lhes uma coisa: falta-lhes aforça no grau em que é veracidade límpida e decisão de compro-meter-se radicalmente com o rechaço aos ídolos protetores da me-tafísica. O leitmotiv onipresente na crítica que Nietzsche faz a mui-

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tos de seus contemporâneos decadentes assinala a inconseqüênciadestes, inconseqüência que revela debilidade, auto-engano, má-fé,etc., já que implica a cisão entre um conhecimento que deslegitimatodo ideal e uma vontade que continua, no entanto, perseguindoideais, afetivamente ligada que está às mesmas instâncias que a re-flexão crítica esvaziou de toda sustentação argumentativa. Um casoparticular dessa cisão “sacrifical” é sublinhado por Campioni naspáginas dedicadas a mostrar a falsidade da imagem de Nietzschecomo defensor de uma “moral heróica” que só por matizes difeririadas posições de Carlyle (paradigmáticas para tantos românticos).A partir de Humano, demasiado humano e em passagens centraisde seus escritos da maturidade, em consonância com o “aconteci-mento” da morte de Deus, trata-se, para Nietzsche, de “experimen-tar perigosamente novas formas de vida, distantes da falsa seguran-ça metafísica do ‘herói’ idealista de Carlyle, que, segundo sua fé,‘caminha com Deus’ e expressa a divindade do mundo”18. A moralheróica aparece a seus olhos como uma “moral de animais de sacri-fício” em que o entusiasmo da vítima nasce do sentimento de uni-dade com um “ser poderoso, seja este um Deus ou um homem” aoqual ela é consagrada. O primado do heroísmo é portanto incompa-tível com o declínio das convicções e das garantias metafísicas eteológicas. Insistir em sua validade e vigência, como faz Carlyle,cedendo apenas à “certeza subjetiva” de caráter religioso, inimigada busca da verdade e do “ceticismo viril” que Nietzsche valoracomo signo de honestidade, não é convincente senão como sintomada falta de fé, da debilidade moderna que se expressa em uma “con-tínua e apaixonada desonestidade para consigo mesmo”; em todo ocaso, uma forma de impotência, a impossibilidade de um viver li-vre: livre inclusive das “sombras” do deus morto.

Seguindo minuciosamente a complexa trama das leituras do fi-lósofo, Campioni põe em relevo o caráter aberto e experimental dopensamento de Nietzsche, um pensamento dominado pela tensão

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constante que é produzida pela vontade de ser fiel à complexidadee à riqueza infinitas do mundo e da vida em devir, evitando fixá-losnas rígidas malhas do sistema e da ideologia. Estes, caros a nossanecessidade de segurança e consolo, são contrários às exigênciasda Leidenschaft der Erkenntnis [paixão do conhecimento], queNietzsche identifica com a Leidenschaft der Redlichkeit [paixão daprobidade]: vontade de “ser probo até a dureza nas coisas do espí-rito”19, decisão de “aliar-se com a honestidade contra si mesmo”20,que terminará por conceder o primado da busca sobre os resulta-dos, fazendo da filosofia um exercício de constante skepsis queobstaculiza e apaga, na obra madura do filósofo, a definitiva concre-ção de uma pars construens [parte construtiva].

Não é minha intenção repetir aqui, em poucas linhas, os resul-tados que Campioni expõe em suas análises. Tais resultados – dosquais o leitor encontrará em “Friedrich Nietzsche: paixão e críticada moral heróica” uma mostra eloqüente –, ricos em descobertasque abrem um vasto horizonte para a compreensão do pensamentode Nietzsche, requerem por sua vez uma leitura paciente, felizmen-te não impedida por nenhum dos jargões que são freqüentes emmuita literatura filosófica atual. Basta assinalar, para concluir, queuma peculiar síntese de erudição e probidade filológicas, uma finu-ra na análise filosófica e um atento sentido histórico fazem dos tex-tos de Campioni contribuições de inestimável valor para o conheci-mento de Nietzsche.

Abstract: In order to introduce the reading of Giuliano Campioni, twoaspects of his work about Nietzsche are stressed here: firstly, the perspec-tive of a philological reading. Secondly, the specific results obtained bysuch reading, which contributed to establish the knowledge of the portraitof historical Nietzsche, putting into question key aspects of the diffusedimage of the philosopher.Keywords: interpretation – philology – philosophy

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notas

1 Tradução de Paulo César de Souza (São Paulo: Companhiadas Letras, 1995) (NT).

2 Tradução de Paulo César de Souza (São Paulo: Companhiadas Letras, 2004) (NT).

3 As contribuições de Campioni à Nietzsche-Forschung sãotão importantes quanto variadas, já que não apenas abar-cam o campo de suas publicações, mas também o da pro-moção do estudo do pensamento do filósofo e da culturaeuropéia do século XIX. Entre as primeiras, além de nu-merosos artigos publicados nos Nietzsche Studien, dos quaisé um colaborador permanente, e em distintas revistasespecializadas da Itália e da Europa, contam-se os seguin-tes volumes: El genio tiranno. Milão: Franco Angelli, 1983(em co-autoria com Sandro Barbera); Sulla strada diNietzsche. Pisa: ETS, 1992; La “biblioteca ideale” diNietzsche. Nápoles: Guida, 1992 (Edição de trabalhos his-tórico-filológicos de diversos autores, realizada conjunta-mente com Aldo Venturelli); Leggere Nietzsche. Alle originidella Edizione critica. Pisa: ETS, 1992; Le lectures françaisesde Nietzsche. Paris: PUF, 2001; Nietzsche y el espíritu lati-no. Buenos Aires: El cuenco de plata, 2004. No sentido dapromoção do estudo das obras do filósofo alemão, cabedestacar a edição crítica (Colli-Montinari) das Obras e dasCartas de Nietzsche em italiano (atualmente em curso coma reedição dos fragmentos póstumos com aparato críticorevisado e ampliado) e a direção do projeto da persönlicheBibliothek, que culminou na publicação do catálogo com-pleto da biblioteca pessoal do filósofo (Nietzsches persönlicheBibliothek, herausgegeben von Giuliano Campioni, PaoloD’Iorio, Maria Cristina Fornari, Francesco Fronterotta undAndrea Orsucci, unter Mitarbeit von Renate Müller-Buck.

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Berlim/Nova Iorque: Walter de Gruyter, 2003). Como par-te de um trabalho mais geral, sustentado no âmbito dediversas universidades e instituições italianas, são rele-vantes a criação em 2002 do Centro interdipartamentale“Colli-Montinari” di studi su Nietzsche e la cultura europea,com sede da Universidade de Lecce (Itália), a direção doGruppo di Ricerca Interuniversitario Nazionale, que desen-volve o projeto “Il lascito di Schopenhauer e di Nietzsche:testi d’archivio, edizioni a stampa e digitali, la bibliotecapóstuma” com participação de quatro universidades ita-lianas, e a direção, junto a Sandro Barbera e Franco Vol-pi, da coleção “Nietzscheana” publicada pela editora ETSde Pisa, que reúne investigações especialmente de jovensestudiosos.

4 Montinari, Mazzino. Nietzsche. Roma: Editori Riuniti, 1996,p. 59.

5 Texto inédito citado por Campioni em: Campioni, Giuliano.Leggere Nietzsche, op. cit., p. 148.

6 Montinari, Mazzino. Nietzsche, op. cit., p. VII e 88-9.7 Campioni, Giuliano e Venturelli, Aldo. La “biblioteca ideale”

di Nietzsche, op. cit., p. 10.8 Campioni, Giuliano. Leggere Nietzsche, op. cit., p. 127.9 Saer, Juan José. “Retrato del artista filólogo”. Conferência

lida na inauguração da Exposición Archivos 1971-2002,no Museu de Arte Rainha Sofía, Espanha, 2002.

10 Bertram, Ernst. Nietzsche. Versuch einer Mythologie. Bonn,1965.

11 Em espanhol, maestro significa tanto regente quanto mes-tre. Mantivemos a palavra em espanhol justamente pelaambigüidade que ela suscita no caso de Wagner, músico emestre de Nietzsche (NT).

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12 Montinari, Mazzino. “Nietzsche contra Wagner: estate1878”. In: Belfagor, XXXIX, 1984, p. 1.

13 Idem.14 Cf. Montinari, Mazzino. “Compiti della ricerca nietzscheana

oggi: il confronto di Nietzsche con la letteratura francesedel XIX secolo” in: Campioni, Giuliano e Venturelli, Aldo.La “biblioteca ideale” di Nietzsche, op. cit., pp. 269-282.

15 Montinari, Mazzino. “Prefazione” a Campioni, Giuliano eBarbera, Sandro. Il genio tiranno, op. cit., p. 14.

16 Vattimo, Gianni. “Il Nietzsche “italiano” in: Dialogo conNietzsche, Saggi 1961-2000. Milão: Garzanti, p. 274.

17 JGB/BM § 48, KSA, 5, p. 70.18 Nietzsche y el espíritu latino, op. cit., p. 220. Mas veja-se

sobretudo a contribuição do autor neste volume dos cader-nos Nietzsche.

19 AC/AC, “Prefácio”, KSA, 6, p. 167.20 IX, 7 [53], KSA, 9, p. 328.

referências bibliográficas

1. BERTRAM, E. Nietzsche. Versuch einer Mythologie. Bonn,1965.

2. CAMPIONI, G. & BARBERA, S. El genio tiranno. Milão:Franco Angelli, 1983.

3. CAMPIONI, G. & VENTURELLI, A. La “biblioteca ideale”di Nietzsche. Nápoles: Guida, 1992.

4. CAMPIONI, G. Sulla strada di Nietzsche. Pisa: ETS, 1992.

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5. CAMPIONI, G. Leggere Nietzsche. Alle origini dellaEdizione critica. Pisa: ETS, 1992.

6. ________. Le lectures françaises de Nietzsche. Paris: PUF,2001.

7. ________. Nietzsche y el espíritu latino. Buenos Aires: Elcuenco de plata, 2004.

8. MONTINARI, M. Nietzsche. Roma: Editori Riuniti, 1996.

9. ________. “Nietzsche contra Wagner: estate 1878”. In:Belfagor, XXXIX, 1984.

10. NIETZSCHE, F. Ecce homo. São Paulo: Companhia dasLetras, 1995.

11. ________. Aurora. São Paulo: Companhia das Letras,2004.

12. Nietzsches persönliche Bibliothek, herausgegeben vonGiuliano Campioni, Paolo D’Iorio, Maria CristinaFornari, Francesco Fronterotta und Andrea Orsucci,unter Mitarbeit von Renate Müller-Buck. Berlim/NovaIorque: Walter de Gruyter, 2003.

13. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studien-ausgabe. Berlim/Munique: Walter de Gruyter/dtv,1988.

14. SAER, J. J. “Retrato del artista filólogo”. Conferêncialida na inauguração da Exposición Archivos 1971-2002, no Museu de Arte Rainha Sofía, Espanha, 2002.

15. VATTIMO, G. “Il Nietzsche ‘italiano’”. In: Dialogo conNietzsche, Saggi 1961-2000. Milão: Garzanti, 2000.

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Giuliano Campioni**

Resumo: Em contraste com a figura consolidada do mito “heróico” deNietzsche, o presente artigo mostra que, a partir de Humano, demasiadohumano, a reflexão sobre o heroísmo parece contínua e central, permi-tindo ao filósofo diferenciar a própria posição das muitas “morais herói-cas”. Seguir-se-á alguns traços a partir da primeiríssima apaixonada ade-são aos mitos heróicos até a radical crise do agonismo ligado a crenças ouilusões metafísicas.Palavras-chave: moral – heroísmo – filologia

1. Por uma leitura antimítica de Nietzsche

“Eu sou o oposto de uma natureza heróica”1. Assim Nietzscheconclui, em Ecce homo, o excerto que mostra, com método genea-lógico, “como se torna aquilo que se é”, reassumindo o percursoque o levou à perfeita maturidade da forma. O filósofo caracteriza aprópria pessoa, naquela particular exposição de si no fim da suaaventura de pensamento, com traços fortemente anti-heróicos eantifanáticos. Sobre seu livro ele declara: “Eu o escrevi para des-

* Tradução: Carlos Augusto Sartori. Revisão técnica: Vânia Dutra de Azeredo.** Professor da Universidade de Pisa (Itália).

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truir pela raiz qualquer mito sobre mim”2 e, numa carta a HeinrichKöselitz, de 30 de outubro de 1888, “Não gostaria absolutamentede me apresentar à humanidade como profeta, monstro, espantalhomoral”3. Nietzsche conta-se a si mesmo através da própria minúsculacotidianidade feita de “pequenas coisas, segundo o juízo comum”:longe qualquer fundo grandioso, longe também a coroa de espinhosque caracteriza a iconografia da lenda, longe qualquer pathos deatitude (“Quem tem necessidade de atitude é falso... Atentos aoshomens pitorescos!”)4. A grande tarefa pressupõe a grande sagaci-dade nas pequenas coisas: “Alimentação, lugar, clima, distrações,toda a casuística do egoísmo – são inconcebivelmente mais importan-tes do que tudo aquilo que até hoje foi considerado importante”5.

Ecce homo é também a ostentação de um corpo – que se realizaessencialmente como corpus de obras – na auto-superação da doençae da decadência numa forma superior. Não ao esplendor da saúdeda “besta loura” ou de “Siegfrieds cornudos” [gehörnte Siegfriede]6,cuja estupidez se acompanha como a sombra, mas à repetida práti-ca da dor e da paciência de um corpo que viveu muito tempo erepetidamente nos ângulos da doença, Nietzsche manifesta a suagratidão. A doença libertou o seu espírito, deu-lhe “a capacidadepsicológica de ‘ver atrás da esquina’”, à doença Nietzsche deve aprofundidade e as nuances: “Devo a ela minha filosofia”7. A fisiolo-gia é o pressuposto da escrita: o ter estado são “como summa summa-rum” tornou possível o Zaratustra que põe um novo início: a verda-deira prova de força está na distância de todo profetismo e fanatismodas convicções (Zaratustra é “diferente”, “aqui não fala um ‘profe-ta’, um daqueles assustadores híbridos de doença e vontade depotência”8). “Ser bem sucedido” se caracteriza por autodetermina-ção na medida, contra toda afetação heróica e extrema que seduzsem argumentar.

As claras afirmações de Ecce homo exprimem a coerência deum comportamento teorizado a partir de Humano, demasiado hu-

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mano, em que, junto ao gênio e ao santo, congela o herói. Isso emcontraste certamente com a figura consolidada do mito “heróico”de Nietzsche que, em muitas direções e em diversos momentos, emmais modos e acentuações, caracterizou entretanto a sorte do filó-sofo e de vez em quando até o culto a ele. Há tempo o trabalhohistórico e filológico, ligado sobretudo às edições Colli-Montinari,está fornecendo instrumentos para uma colocação sempre mais ar-ticulada, uma melhor definição de categorias filosóficas centrais dareflexão de Nietzsche, do seu estilo de pensamento, dos movimen-tos internos ao seu percurso. Emerge o duplo comportamento, quecaracteriza a originalidade de Nietzsche, de assimilação e de afas-tamento das imagens propostas por sua época. E todavia não faltamabordagens ideológicas e imediatistas à sua filosofia, novas leiturasinstrumentais e também a crua reproposição, ao fim de um percur-so que queimou rapidamente as máscaras da “liberação” e do jogoestético, da terrível simplificação que liga como um destino oNietzsche heróico e o nazismo.

A reflexão sobre o heroísmo parece contínua e central e permi-te ao filósofo diferenciar a própria posição das muitas “morais he-róicas” da sua época: aqui pretendo seguir alguns traços a partir daprimeiríssima apaixonada adesão aos mitos heróicos até a radicalcrise do agonismo ligado a crenças ou ilusões metafísicas.

2. As “inquietas” e “mutáveis” inclinações do jovem Nietzsche

De nenhuma grande personalidade, e assim em larga medidatambém de Nietzsche, se conhece o material póstumo relativo aosanos de infância e adolescência: desenhos, esboços de dramas, po-esias, poemas, composições musicais, reflexões autobiográficas ecríticas sobre os mais variados assuntos, etc. Na casa paroquial dovilarejo natal, o pequeno filho do pastor é fascinado particularmen-

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te pela sala do pai: “As filas de livros, muitos dos quais ilustrados,os pergaminhos, tornavam aquele lugar um dos meus lugares favo-ritos”9. Assim era também no vilarejo de Pobles, que ficava ali per-to, onde morava a família do pastor David Ernst Oehler: “A minhasala favorita era o estúdio do avô, onde o meu maior passatempoera folhear os velhos livros e os cadernos”10. As cadernetas daque-les anos nos restituem contínuos projetos e anotações de leituras; oslivros, dos quais é contínuo o pedido nas cartas, constituem nutri-mento vital para a sua formação. A relação com a leitura se torna epermanecerá um contínuo objeto de reflexão. Há em Nietzsche umaprecoce vontade de não sofrer as fortes paixões do seu tempera-mento: a necessidade de transformá-las, dominá-las com consciên-cia crítica e sabedoria. Daí a contínua assimilação, quase incorpo-ração, de leituras em uma reflexão crítica e intelectual móvel, emuma contínua experimentação de escritas e de estilos que perten-cem inteiramente à voluntária construção de si.

Foi natural e comum para o menino ser atingido pelos aconteci-mentos da guerra da Criméia: a emoção movimenta os previsíveis evivazes jogos infantis com tropas de soldadinhos, frotas eterraplenagens para reproduzir fielmente as batalhas. A paixão nãose desafoga somente nos ruidosos jogos (“com bolas de pez, enxofree salitre”)11 sustentados pela mínima sabedoria técnica das vicis-situdes de guerra e registrados e regulados por escrito. Nos cader-nos encontramos também uma poesia sobre a queda de Sebastó-polis, mais Orakularia e outros complexos jogos de dados, umFestungsbuch com intermináveis e prolixas catalogações, desenhoscom planos detalhados e em movimento do assédio e a presençafantasiosa de um invencível guerreiro que ele chamava, no seu latimincerto, o expungnator invictus. “Saqueávamos tudo quanto podía-mos encontrar sobre a arte militar (...) as nossas coleções se enrique-ciam seja de léxicos, seja de livros militares novíssimos, e já projetá-vamos escrever juntos um grande dicionário militar”12 lê-se no

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esboço autobiográfico de 1858: as fantasias heróicas do rapaz di-recionam-se imediatamente para a erudição, e não sem pedantismo.

Aos contemporâneos soldados das crônicas de guerra, “os he-róis que encontraram a morte” no assédio de Sebastópolis – sobreos quais Nietzsche derrama lágrimas e aos quais, na poesia a elesdedicada, endereça uma solene saudação final – sucedem, nos in-teresses do jovem, os heróis da tradição clássica e das sagas da mi-tologia nórdica e germânica. Encontramos, desde os primeiros anosjuvenis, o forte fascínio pelas figuras de herói de primitiva e selva-gem grandeza, caracterizados por metáforas que exprimem o seuvigor animal e, certo, pelo termo “sobre-humano”. Tal o olhar danatureza superior, capaz de incutir terror, ou então o olhar deSwanhilde, filha de Gudrum (“das übermenschliche Glänzen ihrerAugen”)13. Em 1858, num esboço de reflexão crítica Sobre Medéia,Nietzsche põe em confronto Medéia e a Chrimhilde da saga nibe-lúngica: em Chrimhilde, “domina a rusticidade alemã, que se abai-xa até ao animalesco, enquanto Medéia permanece sempre no âm-bito ideal do mundo grego”. Mas também as personagens gregasprimitivas, como as origens “rústicas e violentas” de todas as civili-zações, carregam em si as paixões selvagens que se exprimem nas“enormes empresas e aventuras heróicas” como aquelas da lendados Argonautas14. Sobre as origens primitivas da humanidade o jo-vem se exercita também em duas reflexões críticas: Jäger und Fishere Die Kindheit der Völker.

Jasão e Medéia, uma composição poética escolástica de 1858,acompanha outras composições que revelam o interesse de Nietzschepelas figuras heróicas do imaginário nacional-romântico, como aque-las dedicadas à execução do jovem “herói” Corradino em Nápoles,ou a lenda do Barbarossa, que dorme embaixo da terra à espera deum despertar que traga “a idade áurea” a todas as terras unidas“em paz e bênção” (a lenda, retomada também por Heine, emNietzsche é derivada diretamente de Friedrich Rückert).

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Em torno das figuras dos heróis, se unifica a multiformeatividade do jovem: as várias tentativas de composições dramáticas,poéticas, musicais, de caráter heróico são logo sustentadas por umaanálise crítica, histórica e filológica. O interesse é prevalentementepelos materiais épicos da saga nibelúngica: um exercício poético édedicado à morte de Siegfrid, uma composição escolástica à carac-terização da figura de Chrimhilde, cuja paixão violenta e demonía-ca não pode ser compreendida por naturezas pequenas e débeis,capazes de espelhar a própria impotência somente na limitação desuas ações. Numerosos são os esboços e as anotações para um co-mentário crítico do Nibelungenlied, dedicado a individuar dele osaspectos genéticos (a relação entre os “elementos pagãos” e as “res-sonâncias cristãs” na ética e na mitologia, a influência dos ideaiscavalheirescos sobre a formação do mito, o distante fundo históri-co, as características estéticas, a oposição às personagens homéri-cas, etc.)15.

Nietzsche é fascinado sobretudo pela primeira figura da histó-ria germânica, Ermanarich, o rei dos Ostrogodos, cujo domínio seestendia do Mar Negro ao Báltico e cuja lenda se desenvolve, a par-tir da crônica latina de Jordanes, De origine actibusque Getarum,escrita em torno de 552, pelo menos por sete séculos, contaminan-do-se com lendas nórdicas, dinamarquesas e com a saga nibelúngica.Desse modo, a morte por suicídio de Ermanarich, em 375, teste-munhada por Ammiano Marcellino, transforma-se, em A saga dosVolsungos e no cancioneiro édico (Incitamento de Gudrum e O can-to de Hamdhir), num sanguinário e sombrio assassinato por vingan-ça. Isso leva o jovem a pôr em verso A morte de Ermanarich, a pro-jetar e esboçar uma tragédia e a compor um poema sinfônico paradois pianos (tendo como modelo a Sinfonia Dante, de Liszt), dedi-cados à figura do “último e maior herói dos Godos”16. Os interessespor Ermanarich persistem, com vários intervalos, do verão de 1861até agosto de 1865, quando Nietzsche esboça um último e breve

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esquema de tragédia. Tudo quanto resta dessas elaborações estáfortemente impregnado de um ingênuo excesso romântico feito depaixões selvagens e primitivas, traições noturnas, tempestades, fo-gueiras, sangue, etc. Mais significativa do que o irromper desenfre-ado da fantasia é a fria e decidida autocrítica sobre a sinfoniaErmanarich. Nietzsche, de fato, um ano depois da primeira partitu-ra (então “não estava ainda em condições de analisar imparcial-mente o fluxo de sentimentos que animava toda a obra”17), em ou-tubro de 1862 modifica o poema sinfônico e analisa os resultados.A música lhe parece capaz de exaltar, mais do que a poesia, a forçade suas paixões pela lenda sombria e heróica de Ermanarich. To-dos os aperfeiçoamentos acrescentados (o “ímpeto louco” do novofinal), o recuperado vigor totalizante, porém, não redimem a suacomposição da “aspereza e dos excessos”. A influência decisiva enegativa de Liszt é confessada: “Os meus personagens não são cer-tamente os godos, os alemães, mas antes – não hesito em afirmar –figuras húngaras; (...) ardentes almas magiares”18. E sobretudo batea plena consciência autocrítica do jovem, que parece antecipar – nadeclarada impossibilidade de uma poesia “ingênua” – alguns movi-mentos de sua crítica madura aos pretensos heróis germânicos deWagner: “Faltam aos personagens os primitivos, poderosos traçosgermânicos; os sentimentos são mais estudados e modernos, muitareflexão e muito pouco vigor natural”19. Nem a via da tragédia enem aquela da música parecem satisfazer o jovem que, em vez dis-so, decanta definitivamente todo material da lenda de Ermanarichantes num estudo histórico “muito seco” (julho de 1861), e depoisnum trabalho de caráter filológico de outubro de 1863 (A lenda dorei dos Ostrogodos, Ermanarich. Sua evolução até o século XII), so-bre cujos resultados exprime uma “quase” satisfação.

Este é o primeiro trabalho filológico de Nietzsche, que precedea composição da licença de Pforta, em latim, sobre o poeta Teogni-des de Megara, à qual foi dedicada, por parte da literatura crítica,

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maior atenção. Fruto da rigorosa lição de seus valentes mestres emPforta (“Steinhart, Keil, Corssen, Peter, homens de olhar aberto eímpetos frescos”) é também um significativo exemplo daquela contí-nua vontade do jovem de encontrar no rigor da ciência um “contra-peso às inclinações inquietas e mutáveis”. Ambos os ensaios preten-dem recuperar o núcleo originário, histórico, da figura “germânica”de Ermanarich – a partir das crônicas, Jordanes, Saxo Grammaticus– liberando e explicando as muitas incrustações e contaminaçõesdo mito nórdico (o Jörmurenck do Edda), do qual Nietzsche senteplenamente o fascínio terrível e sublime “que arrebata o ouvinte”.

É algo conhecido: o norte dirige ao bárbaro atroz tudo aquilo que naAlemanha fica no domínio da clareza histórica e da humanidade (...).A natureza solitária, ousada do Norte grava seus poemas; são cantosque estão como rochedos elevados ao céu, inimitáveis na sua força titâ-nica, gigantescos na sua forma. Toda a caracterização é concisa: cadapalavra cai como um relâmpago, poderosa, plena de sentido, na ação20.

O ensaio filológico percorre analiticamente, em todas as ramifi-cações e variantes, os momentos e as escansões da tradição quetransfiguram negativamente a figura histórica de Ermanarich (origi-nalmente comparado, por causa de seus grandes feitos, a Alexandre)numa lenda deformada pelo ódio contra os conquistadores e queempresta a Ermanarich os traços do próprio Átila (já em O canto doerrante, Ermanarich é “furioso”, “traidor”, e o manuscrito de Exetero compara ao lobo). Segundo Nietzsche, Ermanarich é inicialmenteestranho à tradição nórdica nibelúngica, e somente o nome comumde Gudrum (a maga) põe em relação dois ciclos de lendas. Enquantoas lendas nórdicas se interessam somente pelo grave fim (e não peloprecedente poder e pelas vicissitudes do vasto reino), para a tradiçãogermânica Ermanarich está no centro de um ciclo de lendas que seinteressam pela sorte do rei antes da catástrofe. O valor e depois a

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crueldade do herói pertencem ao desenvolvimento do seu caráter.Entretanto – afirma Nietzsche – “as fortes paixões violentas, na tra-dição popular, à medida que sejam ainda puras e próximas das ori-gens, são talvez objeto de horror, mas não de reprovação”21.

O jovem acredita poder recuperar, sobretudo em Jordanes, ostraços originais da figura histórica do herói ostrogodo à qual se fixaa lenda. A catástrofe final, a morte e talvez o suicídio diante daaproximação dos hunos de Átila, pressupõem um rei já velho, abati-do pela doença devido a um ferimento no lado: uma natureza “fisi-camente despedaçada e aniquilada para tornar possível o suicídio”22.Nietzsche também vê bem a articulação das personagens heróicasno mundo da saga nibelúngica, não homologáveis num único para-digma. Na Völsungasaga e no Canto de Hamdir, dos três filhos deGudrum que devem se vingar de Jörmurenk (Ermanarich) pela morteda irmã, Swanhilde, Hamdir, “de grande coração” tem um típicocaráter de herói (ein Heldencharakter) “áspero e violento amor pelaguerra, dignidade, desprezo por qualquer conciliação e cegueira peloorgulho”23. Perto dele, Sörli, de “espírito sábio” e nobre, reconhe-ce a força do destino: “Conquistamos uma grande glória; hoje ouamanhã morreremos. Ninguém chega à tarde de sua vida se asNornas se opõem”24. Erp, chamado, por desprezo, de “bastardo” ede “anão moreno” pelos irmãos que o matarão, acaba assassinado– é a hipótese de Nietzsche, rejeitando as motivações apresentadaspor Simrock – por inveja da sua “superioridade intelectual” e dasua coragem, reunindo em si as características dos outros dois.

3. Titanismo e crepúsculo dos deuses

Nietzsche sofre o fascínio sublime desses heróis violentos e de-terminados no destino de morte, figuras sobre-humanas que agemsobre o fundo sombrio da anunciada morte dos deuses. Esse fim,

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que é acompanhado por revoluções e catástrofes cósmicas, é descritocom um naturalismo cru pelo cancioneiro édico e pelo Edda deSturluson Snorri. Já na composição poética A morte de Ermanarich,os corvos negros na “bruma sanguinária” anunciam “a pira domundo, o sufocante esplendor do crepúsculo dos deuses”25. No seuprimeiro ensaio histórico, Nietzsche afirma:

Aquele crepúsculo dos deuses, no qual o sol fica escuro, a terra afun-da no mar e o ímpeto das chamas abraça a árvore do mundo que dá avida e as labaredas lambem os céus, é a mais grandiosa invenção quejamais pensou o gênio de um homem, insuperada na literatura de todosos tempos, infinitamente ousada e terrível e, no entanto, resolvida emencantadoras harmonias26.

Nietzsche cita, para confirmar, os versos da Völospà (Profeciada Vidente), na qual a descrição do novo início de uma idade deouro, depois das horríveis vicissitudes do aniquilamento do mundo,é confiada à leve imagem de encontrar as pecinhas de ouro no meiodas ervas, com as quais os deuses jogavam outrora: o ciclo da vidarecomeça.

O uso do termo Götterdämmerung27 e o forte interesse deNietzsche pela mitologia heróica germânica se devem também àsprimeiras apaixonadas informações sobre Wagner que o amigo Kruglhe fornecia. Com ele e com Pinder, Nietzsche tinha fundado, noverão de 1860, a associação cultural “Germânia”, “para estimulare, ao mesmo tempo, pôr um freio” nos impulsos culturais juvenis.Ali, Krug deu mais conferências sobre Wagner: sobre Tristão e Isolda(março de 1861), sobre a abertura Faust (fevereiro de 1862) e,enfim, sobre O ouro do Reno (março de 1862)28.

O tema do heroísmo se conecta, desde o início, com aquele damorte de Deus, com o crepúsculo dos deuses. Nessa mesma direçãovai, também, o interesse inicial pela figura de Prometeu. Já numa

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carta do fim de abril ou início de maio de 1859, endereçada aoamigo Pinder, num plano comum de estudos sobre a figura de Pro-meteu, Nietzsche está fascinado sobretudo pelo tema do

fim de Zeus (em relação com as sagas alemãs) (...) Ali se encontra o fimde Zeus, conhecido em precedência por Prometeu, o único em condiçõesde evitá-la, em relação com a derrocada das divindades alemãs, queacabam aniquiladas pelas forças da natureza (as quais, nos Gregos,são justamente os Titãs)29.

O caminho do “espírito livre” encontrará nas reações mesqui-nhas do ambiente doméstico um motivo contínuo de sofrimento atéa afirmar, em Ecce homo, a “disharmonia praestabilita” com a irmãe com a mãe, aquelas perfeitas máquinas infernais capazes de feri-lo nos “momentos supremos”, e a ver na existência delas “a maisprofunda objeção contra o ‘eterno retorno’”30. A Bíblia conservadaem Weimar, na biblioteca póstuma de Nietzsche31, com os muitossinais de leitura do pai, traz anotado, junto ao nome do pastorLudwig, com a data de aquisição do volume (1820), o nome dofilho Friedrich, com a data de 1858, ano em que o jovem deixa afamília para estudar em Pforta e herda, como viático para uma con-tinuidade ideal, o volume paterno. É este o símbolo visível de umalonga corrente familiar, difícil de quebrar, feita de gerações de pas-tores, de uma severa e restrita fé luterana que se exprime nas an-gústias da “virtude de Naumburg”. Nas cartas dos anos oitenta, emum período de profunda crise, se lê todo peso do cotidiano vivido:“Considere que venho de um ambiente que tem como reprovável eabjeta toda a minha maturação; e foi somente em conseqüência dis-so que minha mãe, no ano passado, me definiu como ‘vergonha dafamília’ e ‘desonra ao túmulo do meu pai’” (carta a Malwida vonMeysenbug, de 20 de abril de 1883). A liberação não podia deixarde assumir, dado o temperamento do jovem e o peso dos vínculos,

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o caráter “heróico” de uma rebelião radical, que precisava de umaforça sobre-humana para chegar à afirmação da morte de Deus.

Tais impulsos para libertar-se da tradição e da fé são nutridospelas leituras secretas, nos anos em Pforta, dedicadas às figurasprometéicas e até mesmo satânicas: do Manfred, de Byron, aosBandoleiros, de Schiller. A tal propósito Nietzsche escreve já no verãode 1859: “Li mais uma vez Os Bandoleiros (...). As personagens meparecem quase sobre-humanas, parece-me assistir a uma luta detitãs contra a religião e a virtude”. Nietzsche chega a caracterizar aqueda do herói em Schiller, em um confronto interno entre umapoesia juvenil do poeta e um passo do drama, com a imagem doesplendor do sol no crepúsculo32. A metáfora, presente também emByron e Hölderlin, voltará mais vezes em Nietzsche, sobretudo noZaratustra. Karl Moor quer repetir no seu heroísmo extremo a vir-tude dos grandes homens de Plutarco e assume o espírito rebeldedo Satanás de Milton contra a mediocridade da época, contra a leie a moral comuns: “A centelha do fogo de Prometeu se apagou efoi substituída por uma chama de teatro (...). A legalidade jamaisgerou um grande homem, enquanto a liberdade produz colossos eeventos memoráveis”. O filósofo mesmo se exercita em breves es-critos, num jogo estilístico marcado por um satanismo romântico,nada original, logo levado ao grotesco. Dessa maneira se exprime ese exorciza de uma só vez a inquietação juvenil: é o caso do esboçoda “repugnante” novela Euforião33, que desde o título lembra a fi-gura de Byron (este é o nome do poeta inglês no Faust, de Goethe),e de outras composições remanescentes ou das quais se tem notíciaatravés de breves anotações (“Satanás se ergue do inferno”, insa-tisfação: dificuldade de obter o satânico e representá-lo”).

É conhecida a paixão juvenil de Nietzsche pelo poeta inglês,visto como expressão de uma hybris titânica, prometéica, que rom-pe qualquer limite desafiando os céus. Os seus heróis – em particu-lar Manfred – não fazem pacto com nenhuma força superior, confi-

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ando somente na energia da própria vontade. Por três vezes, a pro-pósito de Manfred, o jovem Nietzsche (outubro de 1861) usa o ter-mo Übermensch34 – usado mais vezes pelo próprio poeta inglês –para definir a personagem, o caráter do seu desespero e para conotara obra de Byron. A crise profunda de fé e o desafio nos confrontoscom a tradição tinham encontrado, no mesmo período, outros ins-trumentos de liberação: da crítica filológica aos Evangelhos da es-cola liberal à filosofia de Feuerbach e de Emerson. De fato, com asanotações e os ensaios da primavera de 1862, o filósofo se aproxi-ma da afirmação de uma plena imanência, que vê na fé cristã, con-tra a força dos antigos que acreditavam no destino, uma escolha dedebilidade, “uma incapacidade de plasmar por si, com decisão, opróprio destino”. Citando A essência do cristianismo de Feuerbach,Nietzsche instaura o caminho para recuperar-se da alienação (“Deustornou-se homem”), como expressão de um novo heroísmo: “A hu-manidade conquista sua virilidade através de graves perplexidadese árduas batalhas; ela reconhece em si ‘o início, o centro e o fim dareligião’”35.

Em abril de 1859 Nietzsche escreve um breve drama em umato dedicado a Prometeu, cujas referências são a Teogonia, deHesíodo (c. 521-564), e o hino Prometeu, de Goethe, de 1773: oprimeiro, pelo engano a Zeus durante o sacrifício; o segundo, pelascaracterísticas do titã solitário que desafia os deuses, cobrindo-osde desprezo e recusando-se a compartilhar os céus com eles. Pro-meteu quer governar os homens por ele criados: a criação dos ho-mens à própria imagem, por parte do Prometeu goethiano, é o tra-ço mais revolucionário/super-hominal do hino. Mas também tem umareferência à composição poética Das Göttliche, no qual Goethe afir-ma o valor normativo dos imortais, que podem ser “em grandeza”aquilo que o homem é “em pequenez”, e postula uma espécie deconciliação e necessária colaboração entre o mundo humano e odivino. E no fundo está a hostil insensatez da natureza, que não

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distingue bons de maus e que aprisiona todos num ciclo eterno. OPrometeu de Nietzsche recusa a aliança “de terror”, proposta pelopai Jápeto (“Quero ser livre e soberano destes homens a quem deia existência (...) não tolero qualquer senhor”36). Depois do enganodo sacrifício, do qual os deuses oniscientes logo se dão conta e peloqual punem o titã, o coro dos homens resolve ingenuamente a ten-são – e a solução estética certamente não é feliz – acolhendo a con-ciliação do hino goethiano. O impulso edificante permite a colabo-ração dos homens com os deuses que servem a eles, somente, denorma e espelho: “Infeliz é aquele / cujos deuses não são / livres deculpa e erro / privados de qualquer mácula”37. A tentativa poética,ainda uma vez, é seguida de uma reflexão autocrítica, um diálogohumorístico/satírico que evoca um registro estilístico completamen-te diferente: o modelo explícito é Jean Paul. Põe-se em cena aincompreensão e o contraste entre o poeta e vários representantesdo público: um capitão, um estudante, um professor, um conselhei-ro, uma velha senhora. O público que afunda, de modo diferente,na estupidez – a grosseria, a ignorância, o pedantismo, etc. – tornaimpossível um retorno, no mundo contemporâneo, à linguagem doclassicismo: o diálogo satírico de Nietzsche parece anular naautocrítica toda possibilidade de tentativa épica.

4. Ilusão vital e heroísmo

Alguns fragmentos do final de 1874 contêm o esboço de umdrama alegórico sobre Prometeu no qual Nietzsche pretendia en-frentar a crítica da civilização moderna na sua relação com o mun-do grego. Os temas indicados nos fragmentos sobre Prometeu – e aforma com a qual ele quer exprimi-los – são, como também a maisarticulada tentativa de tragédia sobre Empédocles, prenúncios dis-tantes do Zaratustra. Enquanto a figura de Empédocles depende

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fortemente de Hölderlin, este esboço faz lembrar Goethe, em parti-cular a Pandora, que exprime a Sehnsucht pela beleza e a felicida-de do passado.

No centro está ainda a morte de Zeus, arruinado por causa dofilho e do fato de que Prometeu não quis revelar o segredo do fimdo deus. Zeus, querendo a destruição dos homens, tinha inventadoa esplêndida civilização grega: os homens teriam dessa forma per-dido o gosto pela vida devido à impossível tentativa de igualar-seaos gregos e à absoluta saudade daquela inatingível beleza. O filhode Zeus trata então de tornar os homens estúpidos e temerosos damorte: por isso o ódio deles pelo mundo grego e a fixação a uma“pequena” sobrevivência. Prometeu mandará Epimeteu para con-trastar a vontade do filho de Zeus, desejoso ele também de aniqui-lar os homens de outra maneira. Epimeteu suscita Pandora (“a his-tória, a lembrança”) e com ela “o fabuloso mundo grego”. Ela, numprimeiro momento, seduz os homens para a vida; num segundomomento, tendo-se revelado “terríveis e inimitáveis” os fundamen-tos reais daquela cultura, os distancia da vida. Prometeu, depois deter reduzido os homens a um amálgama (uma “massa”, uma “pas-ta”) pode criar um novo homem, “o indivíduo do futuro”. Para re-nascer numa nova forma superior, os homens “devem, antes de tudo,morrer”. Nesses fragmentos aparece também Dioniso, “aquele quesupera o mundo”, destinado, entretanto, como Zeus, a arruinar-se.Há alguns indícios que permitem compreender como, nas inten-ções de Nietzsche, o drama deveria ter personagens grotescos e sa-tíricos: “Os deuses são estúpidos (o abutre tagarela como um papa-gaio) (...) O abutre não quer mais devorar. O fígado de Prometeucresce demais (...). Prometeu e seu abutre foram esquecidos”38. Talabutre, à luz das afirmações do escrito póstumo sobre O Estado gre-go, poderia ser entendido como a verdade da afirmação: “A escra-vidão entra na essência de qualquer cultura”. Nietzsche de fato es-creve que a violência exercitada sobre a casta dos escravos (terrível

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e necessária para a criação de uma cultura), é a realidade “que nãodeixa nenhuma dúvida sobre o valor absoluto da existência. Talverdade é o abutre que devora o fígado do sustentáculo prometéicoda cultura”39. Dessa verdade, o homem moderno se esquiva, es-condendo, de si mesmo e dos outros, a escravidão geral do mundoque o circunda, privada de sentido e finalidade superiores, atravésda “alucinação conceitual” da dignidade do homem e do trabalho.

Nietzsche, em outros lugares, retoma a página onde Schopen-hauer ataca a “dignidade do homem” como uma fórmula vazia queesconde a ausência do conceito. A concepção metafísica deNietzsche, que vê como finalidade última e necessária da realidadea produção do gênio, propõe uma dimensão, mais dura e heróica,da dignidade: “Todo homem, com toda sua atividade, adquire umadignidade enquanto for, consciente ou inconscientemente, um ins-trumento do gênio (...) somente como ser plenamente determinado,a serviço de objetivos desconhecidos, o homem pode justificar suaprópria existência”40. O dever aparece como “obediência a um ins-tinto, que se apresenta na figura de pensamento”41. No instinto seexprime diretamente uma vontade que submete o indivíduo com oengano. A vergonha, que acompanha no mundo grego também aprodução artística como sedução à vida, é a expressão de uma cons-ciência do homem grego de ser apenas um instrumento dos fenô-menos da vontade que o transcendem infinitamente com indivíduo.Os verdadeiros motores da vontade são escondidos por representa-ções do dever e se impõem como instinto. A estrutura do engano éaquela individuada por Schopenhauer na metafísica do amor se-xual: o instinto é ilusão (Wahn) que perpetua a vontade de viver, éo engano por parte do “gênio da espécie” às custas do indivíduo.O postulado inicial de Nietzsche da impossibilidade prática da ne-gação da vida comporta a aceitação desses mecanismos de ilusãofuncionalizados para a construção de uma civilização superior. Aarte e o mito são a imagem ilusória mais alta de sedução para a

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vida: “Corrigir o mundo – eis a religião ou a arte. Como o mundodeve parecer para que valha a pena viver?”42. A trama das ilusõesestá nas mãos do gênio trágico que, por amor e compaixão pelacomunidade, favorece o engano do Uno originário. A escolha domundo grego está longe do puro dionisíaco (letárgico), assim comodo nefasto otimismo alexandrino do mundo moderno: a civilizaçãogrega é uma construção piramidal que tem no seu cume a realidadedo gênio, e está firmemente vinculada à vitalidade do instinto. Des-sa forma se mantém uma relação não destrutiva (velada e protegidapelo mito) com o fundo trágico que no gênio satisfaz de modo poten-cializado a sua capacidade artístico-representativa. O adequar-se àinconsciente teleologia da natureza significa subordinar-se de modoabsoluto ao gênio.

5. Uma “consolação metafísica” para o herói que morre.

Em Nietzsche, a metafísica do artista impõe a necessária des-truição da individualidade do herói a fim de que seja possível al-cançar uma nova forma. A tragédia atinge, com a morte do herói, aconsolação metafísica que permite, também para a filosofia deSchopenhauer, a afirmação heróica da vida: apesar da morte e dacaducidade de todas as coisas individuais, cada ser que quer existirtem assegurada a existência sem fim e interrupção. “O herói, a maisalta aparência da vontade, é negado com a nossa alegria, porque ésomente aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada pelasua destruição”43. Depois da morte da tragédia, a dissonância trági-ca – o herói martirizado pela sorte – perde a superior consolaçãometafísica e procura uma solução terrena, um deus ex machina parao alegre fim de uma recompensa terrena: “O herói tinha se tornadoo gladiador aquém, depois de ter sido completamente dilacerado ecoberto de feridas, se dava de vez em quando a liberdade”44.

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Em O nascimento da tragédia – cujo frontispício tinha comovinheta a figura de Prometeu libertado das correntes, feita porLeopoldo Rau – é central a referência à hybris como “pecado ativo”do titã Prometeu a partir do hino goethiano (“Verdadeiro e própriohino da impiedade”). Aqui foi utilizada a duvidosa categoria inter-pretativa de “ariano” (para o mito “masculino” de Prometeu), di-fundida em trabalhos de lingüística e história da linguagem45 entãoem voga, ainda que assinalados de grandes confusões (a caracteri-zação ariana correspondia, para muitos, ao princípio primordial fe-minino, materno). Recordemos como Michelet, na sua Bible del’humanité (a Bíblia solar que nasce junto aos Arianos “filhos daluz”) vê em Prometeu “o emancipador primitivo” contra as trevasdo oriente, “toute énérgie libre a procede de lui” [toda energia livreprocedeu dele], a sua lição “est directement contraire aux Sauveursténébreux, aux faux libérateurs” [é diretamente contrário aos Sábiostenebrosos, aos falsos libertadores]. Prometeu é a expressão de umahumanidade que não se dobra: “on sent que l’héroisme en l’hommeest la nature” [sente-se que o heroísmo no homem é a natureza]46.Certamente a contraposição entre o mito ariano de Prometeu e “omito semítico do pecado original”, no qual predomina uma “sériede afetos eminentemente femininos”, podia comprazer o anti-semi-tismo do seu interlocutor privilegiado, Wagner, mas não parece es-sencial à construção metafísica que dá sentido ao mito.

Prometeu representa o “heróico impulso” do indivíduo parasuperar os limites da individuação numa tensão contra o universal.A sua vontade de ser “a única essência do mundo” comporta o ônussobre si da contradição originária: o Titã “comete um delito e so-fre”. A interpretação de fundo é ligada à estrutura metafísica daarte e ao tema shopenhaueriano da “justiça eterna”: a vontade ori-ginária que cometeu a culpa da individuação recebe o sofrimento.Também Prometeu que, como os vários heróis da cena trágica, apa-rece preso na rede da vontade individual e que como indivíduo

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“erra, luta e sofre”, é, na realidade, a máscara apolínea de Dioniso-Zagreus dos mistérios, sofredor, despedaçado pelos Titãs e que as-pira a um renascimento que ponha fim à individuação. A soluçãoda tragédia pessimista que justifica o mal humano eticamente, nadireção schopenhaueriana, é superada, em Nietzsche, pela aceita-ção trágica da realidade: “Tudo aquilo que existe é justo e injusto,e em ambos os casos igualmente justificado”. Tal afirmação da ino-cência do vir-a-ser, em Nietzsche, é ainda obstaculizada pela acei-tação de categorias metafísicas shopenhauerianas, ainda que pro-fundamente modificadas à luz da reflexão teórica de Wagner.

Nietzsche afirma que o olhar do expectador trágico, poten-cializado pela força da música, não se firma às belas ilusões plasti-camente vivas na cena: deve refugiar-se de novo no seio da verda-deira e única realidade através da destruição do herói-indivíduo.“A um outro ser e a uma alegria superior, o herói combatente, cheiode presságios, se prepara com a sua ruína, não com as suas vitóri-as”47. O mundo transfigurado da cena é visto com um olhar que“deseja ser cego”, isto é, aspira à superior clarividência musical (o“sonho verdadeiro” do coração do mundo capaz de comunicar-sesomente através de imagens despotencializadas do sonho alegórico,da manhã). Nietzsche utiliza de modo semelhante para sua reflexãoas temáticas do Beethoven, de Wagner, no qual o músico reformula,em termos completamente novos e coerentes com o primadoschopenhaueriano da música, a teoria do drama musical. A unida-de do drama é garantida não mais, como nas teorias juvenis, pelaconjunção das artes irmãs divididas e degradadas a técnai sob odomínio da civilização, mas pela visão romântica da música comouma linguagem privilegiada capaz de produzir visões.

A mudança de Wagner tinha sido radical. Como Nietzsche ad-vertirá polemicamente: o músico se torna, agora, porta-voz privile-giado do em-si das coisas, oráculo, sacerdote, “ventríloquo de Deus”.A tentativa de Nietzsche é aquela de valorizar em Wagner a afirma-

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ção trágica da música, o sério “jogo” com a realidade, contra osperigos niilistas implícitos nas escolhas do músico. Isso comporta aacentuação dos elementos de continuidade e uma leitura anticristãdo tema do heroísmo wagneriano.

6. Siegfried, o filósofo em devir

A reflexão e a paixão de Nietzsche pelo tema do heroísmo étambém, imediatamente, uma reflexão sobre os dramas musicaisde Richard Wagner. O nascimento da tragédia é também “renas-cimento” da tragédia e “ação” extemporânea sobre o presente afavor da cultura. Na posição do jovem Nietzsche, prevalece a inter-pretação metafísica da destruição da individualidade heróica (enten-dida como aparência) que aspira à dissolução na unidade superior(“O gênio é aparência que aniquila a si mesma. Serpens nisi serpentemcomederit, non fit draco”)48. Junto com o primado schopenhauerianoda música (“O músico absoluto: o solitário desprezador do mundoda aparência”) que é o pressuposto desta interpretação, Nietzschedesenvolve temas ligados à reflexão juvenil de Wagner, tais como acentralidade da mímica e da dança, “o mais material dentre todosos gêneros de arte”, que tem como matéria o corpo humano, o ho-mem físico na sua inteireza. Na música dionisíaca, o indivíduo aspi-ra a exprimir-se como ser pertencente à espécie [Gattungswesen], ocoro dos sátiros o representa simbolicamente como “homem da na-tureza entre homens da natureza”. A tragédia grega era para Wagnerum modelo, não somente artístico, capaz de realizar a unidade dasartes, mas também um ato de bela “religião humana”: o indivíduoencontrava imediatamente no herói da cena “a parte mais nobre desi”, a si mesmo potencializado na verdade do elemento humanogenérico. No drama antigo, como festa popular, o indivíduo via rea-lizada a sua destinação comunitária: a arte era então “alegria de si,

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da existência, da humanidade inteira”. Motivos da filosofia da his-tória hegeliana (a liberdade dos poucos como limite do mundo gre-go, a “escravidão recíproca e universal” do império romano, o Cris-tianismo como expressão da “consciência infeliz”, etc.), massobretudo o materialismo e universalismo de Feuerbach, estão for-temente presentes na reflexão juvenil de Wagner. Ainda em 1853,no comentário sobre a terceira sinfonia de Beethoven, Wagner des-creve o herói como “o homem completo a quem são próprias todasas sensações puramente humanas – amor, dor, energia – na suamáxima plenitude e potência”49. A posição do jovem Wagner é for-temente anticristã: o Cristianismo aparece como expressão de re-núncia à vida, negação da arte, “horror à comunidade”, alienação50.Nietzsche vai opor ao Wagner ascético do último período as expres-sões literais sobre a “sã sensualidade” como redenção, por ele usa-das na juventude, diretamente derivadas de Feuerbach51. Wagner,no seu perfil autobiográfico de 1843 e na sucessiva A minha vida,lembra justamente como, contra o “misticismo abstrato”, tinhaaprendido através do Ardinghello, de Heinse, e A jovem Europa, deLaube, a “amar a matéria”, a “gozar a vida”, “olhar o mundo comolhos serenos”. Na sua obra juvenil Proibição de amar, “a livre,aberta sensualidade – escreve Wagner – vence com suas própriasforças a hipocrisia puritana”52.

Mais vezes Nietzsche liga a sua superior fidelidade ao Wagnerateu e anticristão: ainda nos fragmentos póstumos para a atormen-tada quarta Extemporânea, o filósofo insiste, num confronto comÉsquilo, livre diante dos vários Zeus53, sobre o caráter irreligiosodos poetas e sobre o ateísmo específico de Wagner, homem moder-no que “crê em si mesmo”. Nietzsche retoma a forte ligação entreheroísmo, amor e morte presente nos dramas wagnerianos, inter-pretando-os à luz das teorias juvenis do músico e insistindo no ele-mento vitalístico:

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A morte é a confirmação de toda grande paixão e heroísmo: sem elaa existência não tem nenhum valor. Estar maduro para a morte é acoisa mais suprema que se poderia alcançar, mas também a coisa maisdifícil, que se conquista através de lutas e sofrimentos heróicos. Todamorte dessa natureza é um evangelho de amor54.

O tema do amor estava no centro, em particular, da reflexão eda poética wagneriana nos anos 1848-1854: o amor é o mediadorentre a força e a liberdade. Não imposto do alto, como o amor cris-tão, ele é a manifestação mais ativa da natureza humana. É forte ainfluência de Feuerbach, sobretudo dos Pensamentos sobre a mortee a imortalidade: o amor encontra a sua realização na morte comoúltima redenção, que vai do egoísmo ao alcance da unidade maisreal. Os traços cheios de embriaguez de morte no final de Tristão eIsolda, a vitória definitiva sobre as mentiras do dia que separa osamantes (o eu e o tu), se devem muito, mesmo que através da Von-tade de Schopenhauer, à teoria juvenil de Wagner sobre o amor.Nietzsche escreve: “O amor no Tristão deve ser entendido no senti-do não mais schopenhaueriano, mas empedocleano: falta completa-mente o elemento pecaminoso: o amor é um sinal e uma garantiade unidade eterna”55. Wagner conscientemente, desde o fim de1857, sobre este ponto, acredita dever corrigir e completar o filóso-fo pessimista: o amor que ultrapassa a vontade individual manifestauma via de salvação, que traz a possibilidade de uma purificaçãoda vontade.

Analogamente, a morte significa o fim da individualidade e acontinuação da vida na plenitude da espécie, “o último anulamentoseguro do egoísmo”. É também o sentido do sacrifício e da reden-ção de muitos heróis e, sobretudo, heroínas wagnerianas. “Cadaforte passo da vida sobre o palco é acompanhado do eco sombrioda morte” – comenta Nietzsche. A morte por amor é, então, buscado “puro humano”, superação dos limites individuais e dos obstá-

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culos de uma vida dominada pelos arbítrios da lei: “o pecado con-tra a propriedade é determinado unicamente pela lei da proprieda-de”. Essas palavras se encontram no esboço Jesus de Nazaré, noqual o Cristo é expressão da “consciência infeliz” do artista na situ-ação degradada do mundo moderno. A “fuga diante desta vida”, oauto-aniquilamento, parece ser a única solução possível para rom-per as ligações com uma sensualidade baixa e para realizar umanatureza purificada, não podendo destruir, através da revolução, asleis e convenções de “uma sociedade sem amor”. Os eleitos – osheróis – restauram a ordem pacificada, regida pelo amor contra apropriedade, representam o futuro e a vida contra o domínio dopassado e das coisas mortas. Na carta endereçada a Röckel em 25de janeiro de 1854, Wagner afirma que “o medo da morte” carac-teriza as “ações, leis, instituições” atuais: “Devemos aprender amorrer, e morrer no sentido mais pleno da palavra. O medo do fimé a fonte de toda falta de amor”. Nietzsche, nos anos setenta, leva asério até o fundo as intenções de Wagner e o caráter filosófico dassuas afirmações. Em particular, valoriza o Anel dos Nibelungos en-quanto “imenso sistema de pensamento” expresso numa “forma visí-vel e sensível”56. O músico soube extrair das filosofias o elementoagonístico: “Maior coragem e decisão, e não seivas narcóticas”.“Wagner é um filósofo sobretudo lá onde é mais resoluto à ação emais heróico”57. Na anotação preparatória desse trecho de Wagnerem Bayreuth, Nietzsche faz uma significativa referência, pelo ousa-do simbolismo, ao gesto e às palavras de Siegfried em resposta àsfilhas do Reno58. Jogando, por sobre a cabeça, um pedaço de terra,aludindo à sua vida, Siegfried afirma: “Assim eu a jogo fora, longede mim”. É o tema do herói que vive na leveza e na plenitude doamor da imediata vitalidade instintiva e, por isso, não conhece omedo. A filosofia que exprime Siegfried é aquela que “destrói osdeuses, contra a qual se despedaça a lança de Wotan”. Nietzschecontinuará a valorizar Siegfried, dando-lhe um papel filosófico cen-

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tral, insubstituível também quando cobrirá de sarcasmos os outrosheróis e heroínas wagnerianas. Em Para além de bem e mal (afo-rismo 256), valoriza contra Parsifal a criação de um Siegfried“antilatino”, totalmente livre, alegre e inocentemente bárbaro eanticatólico, decididamente anti-romântico. Afirma em mais pontosque somente a própria filosofia é adequada àquela figura e queSchopenhauer falsificou a direção da arte wagneriana, decididamen-te anticristã59. Ainda mais extrema é a sibilina afirmação: “Siegfriedo filósofo em devir [Der werdende Philosoph Siegfried]”60. Certamen-te, nas intenções de Nietzsche, Siegfried significava a recuperaçãopor parte de Wagner das fontes naturais: ainda “o homem não foiesgotado”. Wagner “dissipa a representação segundo a qual o mun-do teria ficado organicamente velho”. O dummer Siegfried afirma aforça da criação através do inconsciente, contra o conhecimento dosdeuses que traz o aniquilamento. O conhecimento abstrato encon-tra somente no próprio fim a redenção possível. No herói nibelúngicose lê a possibilidade do artista/artesão livre, capaz de forjar para si,contra a impotência da técnica de Mime, por puro prazer, a espada(uma retomada do mito de Wieland, o ferreiro). Siegfried é livreporque não foi tocado pela maldição da posse: “Único legado é omeu próprio corpo; vivendo, o consumo [einzig erb’t ich / den eignenLeib; / lebend zehr’ich den auf]”61. Não possui, não é possuído. So-bretudo o livre jogo é o elemento que caracteriza Siegfried como“überfroher Held [herói supremamente alegre]”62, na sua relação deantítese/complementariedade com Wotan, “o deus triste”, “de to-dos, o menos livre”63.

O herói se caracteriza pela brincadeira, pela serenidade e pelaleveza em que é imerso e que exorcizam o mundo da tragédia e domito. Nietzsche parece colher o aspecto de fábula (a definição é deDalhaus) da segunda jornada do Anel quando insiste sobre o caráter“idílico”, no sentido schilleriano, de Siegfried: “A natureza e o idealsão reais, e isso dá alegria”64. O mesmo pessimismo de fundo, de

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matriz schopenhaueriana, não consegue eliminar mas somente mo-dificar o tema da redenção/regeneração que permanece semprepossível (o drama é profecia de uma vida mais pura, contraposto aodrama antigo, que é retrospectivo)65. “O idílio trágico: a essênciadas coisas não é boa e deve perecer, mas os homens são de talforma bons e grandes que os seus delitos nos comovem no modomais profundo, já que eles sentem que são incapazes de tais deli-tos. Siegfried é o ‘homem’, e nós, ao contrário, somos os brutossem paz e sem meta”66. Essa referência ao “homem” leva pontual-mente à auto-reflexão de Wagner em Uma comunicação aos meusamigos, na qual a figura do herói caracterizado pelo amor (quasevisível na sua corporeidade) e pela plena “alegria de viver”, repre-sentava “a palpitante manifestação sensível do homem na sua naturale serena plenitude [...] o ‘homem’ na plenitude de sua força maiselevada e mais imediata e da sua mais indiscutível amabilidade”67.

O tema do anticristianismo de Siegfried, na valorização deNietzsche, não pode entretanto limitar-se a esses elementos: sobre-tudo não deverá se confundir nunca com a saúde pagã da “bestaloura” ou do primitivo germânico. Nietzsche toma a devida distân-cia, sarcasticamente, quando com desprezo fala de “adolescentesalemães, cornudos Siegfrieds e outros wagnerianos” que têm ne-cessidade do “sublime”, do “profundo”, do “exagerado”. O ele-mento revolucionário de Wagner, para além dos travestimentos,remete à França e às decisivas experiências filosóficas juvenis:“Wagner era um revolucionário – se distanciava dos alemães”68.

Em O Anel dos Nibelungos, a estrada dos homens é empreendi-da primeiramente pelo ignaro e inocente Siegmund, cuja sorte éprogramada sem espaços de liberdade, que está disposto a renun-ciar a condição de herói no Wahalla oferecida por Brunhilde a favorda vida humana ligada ao amor de Sieglinde: “Onde vive Sieglinde,/ em prazer e sofrimento / lá também Siegmund quer permanecer”[Wo Sieglinde lebt / in Lust und Leid, / da will Siegmund auch

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säumen]69. A mesma renúncia, por motivo de amor, acontece porparte de Brunhilde no III ato de Siegfried. Wagner retoma o motivomusical traçado em 1851 para Achilleide: a Tétis que promete aimortalidade a Aquiles, para que ele renuncie a vingar o amigoPátroclo, o herói opõe uma desdenhosa recusa. A deusa se inclinareconhecendo a superioridade do homem sobre deus: “Os eternosdeuses são elementos que dão vida ao homem. No homem, a cria-ção atinge seu ápice”70, o homem é o aperfeiçoamento de Deus.

Nietzsche, em Ecce homo, afirma: “Um deus que viesse sobre aterra, não poderia fazer outra coisa senão cometer erros – tomarpara si a culpa, não o castigo, isso seria verdadeiramente divino”71.O tema volta mais vezes em Nietzsche e é desenvolvido, em antíteseao cristianismo, em páginas centrais da Genealogia da moral. O Deusredentor cristão se sacrifica, inocente, pela culpa dos homens, le-vando à hipérbole o sentido de dívida com os antepassados e com adivindade e tornando impossível qualquer ressarcimento e expia-ção. “Um débito com Deus: esse pensamento torna-se para ele [ohomem de má consciência] instrumento de tortura”. Os instintosanimais são reinterpretados pelo homem, a “insensata triste besta”,como uma culpa em relação a Deus. Toda negação de si se tornaafirmação de um contrário, projetado fora de si: o sofrimento e oremorso, o sentimento de culpa, não encontram escapatória. Osdeuses gregos, invenção de uma vida afirmadora, mantêm, ao con-trário, distante a má consciência, têm a função de tirar a culpa doshomens para assumi-la eles mesmos:

“Um deus deve tê-lo enlouquecido”... Desse modo então os deusesserviam para justificar, até certo ponto, o homem também no mal, servi-am como causa do mal – naquele tempo eles não assumiam o castigo,mas antes, como é mais nobre, a culpa72.

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Nietzsche, na Genealogia, desenvolve esse tema confortado pelaleitura de Die Ethik der alten Griechen (1882), do filólogo LeopoldSchmidt73, a que Nietzsche se refere, implicitamente, sobretudo paraa análise da origem e das transformações dos termos bom e mau.O tema já estava, entretanto, presente na reflexão sobre os gregose, sobretudo, encontrava na caracterização inicial de Wagner dafigura de Siegfried bem explicitado esse aspecto decisivamente anti-cristão. No Mito dos Nibelungos, o esboço em prosa para a Morte deSiegfried (a Heldenoper de 1848 que Nietzsche, como resulta dosDiários de Cosima, em junho de 1871, tinha mesmo reproduzidopara a imprensa), o final trazia: “Escutai, pois, vós Deuses podero-sos: o vosso erro foi anulado; agradecei ao herói que assumiu parasi a vossa culpa”. Isso comporta, com a restituição do anel às filhasdo Reno, o fim da servidão dos Nibelungos, a liberação do próprioAlberich, o reino pacificado de Wotan, distante da maldição daposse. Parece quase que Wagner tenha presente o fim do mito dePrometeu com o retorno de Zeus (Wotan) e de suas leis num mun-do purificado. Esse tema, central, é explicitado em mais pontos:“Sem culpa, tomou para si a culpa dos deuses” [Er hat schuldlosdie Schuld der Götter übernommen]74. O próprio Wotan não podeapagar a injustiça “sem cometer uma nova injustiça: somente umavontade livre, independente dos próprios deuses, que está em con-dições de assumir para si toda a culpa e expiá-la, pode romper oencanto; e os deuses reconhecem no homem a capacidade de umatal vontade livre”. O homem redentor da culpa divina comporta aautodestruição dos deuses:

Para essa alta destinação, isto é, para que ele expie a própria culpadeles, os deuses cuidam do homem e a intenção deles seria realizada se,criando os homens, eles aniquilassem a si mesmos, se fossem, na li-berdade da consciência humana, obrigados a renunciar a sua influên-cia imediata75.

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A culpa dos deuses, também para Nietzsche, é a fixação enri-jecida num céu distante de valores e morais que perderam o seucaráter de mobilidade e experimento vital, que pesam como coisasestranhas sobre o homem. A liberdade é o fim da alienação: o ho-mem transforma a si mesmo adquirindo uma “nova inocência”.O ensinamento que Nietzsche recebe de Wagner, com referênciaprecisa às palavras com as quais Wotan exprime a sua aspiração ao“outro”, o herói que é o único que pode redimir76, é que “quemquer que queira se tornar livre, deve tornar-se por si mesmo, e quea ninguém a liberdade cai no colo como um dom miraculoso”77.

Os longos tempos da realização do Anel conhecem profundasmudanças em Wagner, na teoria musical como nas referências cul-turais. A linearidade da proposição que leva da morte de Deus aohomem, se joga depois na complexidade das relações e na contínuaambigüidade a respeito dos temas iniciais. O protagonista efetivo, oherói, torna-se sempre mais Wotan, o deus “schopenhaueriano” darenúncia e da vontade do fim. O crepúsculo dos deuses mostra a pro-funda perversão da naturalidade: o mundo que tem no seu centro amaldição é um mundo desnaturado, e o final, na sua ambigüidadeconfiada à força sugestiva da música, acentua o motivo niilista daredenção, possível somente como aniquilação de toda a realidade,e não apenas dos deuses e da sua culpa. A música dos Leitmotivequer exprimir máscaras não rígidas ou enfatizar situações: atravésdo uso das variantes, das ligações e derivações dos motivos um dooutro, como foi posto à luz, a linearidade do percurso se complica ese contradiz. Palavra e música seguidamente se relacionam, diale-ticamente ou por contraste, produzindo novas e inéditas conexõesde sentido. O mito heróico de Wagner assume os caracteres daambigüidade: a sua música mais do que suplantar e violentar, nasua “festa de relações” (Thomas Mann), quer ser entendida por uma“reflexão integralmente consumada” que por si só pode dar “um

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sentimento e uma faculdade de percepção musical que vão paraalém do aturdimento acústico” (Carl Dalhaus).

7. A superação do heroísmo no último Nietzsche

“Mais alto do que o ‘tu deves’ está o ‘eu quero’ (os heróis);mais alto do que o ‘eu quero’ está o ‘eu sou’ (os deuses dos Gre-gos)”78. Nessa anotação de 1884, Nietzsche reassume, aplicando-oao tema do heroísmo, o percurso traçado por Zaratustra na parábo-la das três metamorfoses: da aceitação de todo peso insuportávelcomo experimento e prova de uma força que isola (o camelo quecorre no deserto) à luta pela liberdade, contra o costume rígido dacomunidade e os valores milenares (o eu quero do leão luta contrao tu deves). Mesmo no leão é dureza, por “criar-se a liberdade poruma nova criação”. E enfim a criança como “inocência e esqueci-mento” e “jogo da criação”, como resultado.

Antes de publicar o Zaratustra, o filósofo se confronta, de ma-neira radical tomando a distância devida, com a moral “heróica”proposta por Heinrich von Stein no seu escrito Helden und Welt,Dramatische Bilder. Nesse texto, enviado a Nietzsche em últimosrascunhos, Stein se referia ao modelo dos afrescos dramáticos deA Renascença, de Gobineau, e às teorias do último Wagner e deseu mestre Dühring, interpretado como expressão de “pessimismoheróico”. Stein é representante do “idealismo germânico”, ligado àprospectiva anti-semita comum aos seus mestres. A pureza do san-gue, a purificação do cristianismo de elementos hebraicos, o con-fronto simpático com muitos temas da sombria filosofia da históriade Gobineau, a ligação forte entre ascetismo e heroísmo caracteri-zam a última filosofia de Wagner. Nietzsche, com segurança, to-mou distância do anti-semitismo a tempo (os contrastes com Wagner

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e Dühring – como depois com os Förster, irmã e cunhado – têmtambém em si esse elemento crítico) e são débeis e inconsisten-tes as tentativas (em diversos níveis, das mais vulgares às maisrespeitáveis) de ler na sua filosofia uma contraposição ao elemento“semítico”. Se poderiam multiplicar nos passos, mais ou menosconhecidos, que vão na direção de uma luta ao anti-semitismo daépoca. Prefiro remeter aos ataques que a Antisemitische Corres-pondenz reserva ao “filósofo do vir-a-ser” no fim de 1887, e ao de-cisivo – pela sua virulenta clareza – de uma anotação inédita doNachlaâ, de Eugen Dühring79:

Nietzsche. Tipo judaico, e certamente um dos mais fedorentos e inso-lentes. Não há quase nenhuma frase na qual ele não derrube tudo. Nãose trata apenas de coisa aforística, mas de coisa realmente desconexa edespedaçada. Essa desconexão de pensamento é solidária à típica vio-lência hebraica. Ademais, obtuso até à demência, e com isso já preparaa verdadeira e própria, literal, completa demência, na qual o estado dopaciente acaba sendo incurável. A sua doença consistia, a prescindirda loucura já de antes crônica, em uma espécie de febril e vaidosaexaltação, que o conduziu enfim à catástrofe, deixando-o na mais ob-tusa demência. Um caso exemplar dos manuais psiquiátricos.

A crítica de Dühring põe em jogo todos os elementos do delírioanti-semita para caracterizar a personalidade e a filosofia deNietzsche. O seu sucesso – “uma colossal mise-en-scène” – só seobteve quando “o escravo fugiu de seu patrão” Wagner, para agi-tar-se a favor dos Hebreus. Nietzsche não foi prejudicado nem mes-mo por ter sido hóspede do manicômio de Jena, porque era susten-tado pelos interesses e pela imprensa “hebraicos”. Dühring, alémdisso, acusa Nietzsche de ter “saqueado” as suas obras e de terdistorcido completamente o seu sentido, dirigindo seus ataques, car-regados da “afronta de todo judaica”, contra tudo aquilo que é “res-

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peitável e nobre ao mundo” e contra os mais altos representantesda moral. Os anti-semitas contemporâneos bem reconheciam emNietzsche um ativo opositor a eles, que até o fim, já tomado pelaloucura, manifesta nos apontamentos de Turim a vontade de man-dar fuzilar a todos.

A oposição a Stein é decisiva para esclarecer a posição maisprofunda sobre o heroísmo, adquirida a partir de Humano, demasia-damente humano. Na carta que escreveu em Gênova nos primeirosdias de dezembro de 1882, Nietzsche afirma: “Quanto ao herói, eunão penso sobre ele tão bem quanto o Senhor. Certamente, essa ésempre a forma de existência mais aceitável, sobretudo se não setem outra escolha”. O ascetismo é caráter essencial do heroísmoenquanto sacrifício da coisa mais cara imposto pelo tirano que estáem nós (que estaríamos dispostos a chamar ‘o nosso eu superior’)”.“Aquilo de que o Senhor trata – afirma Nietzsche contra Stein –são quase unicamente questões de crueldade”. Se o filósofo senteter dentro de si e no seu percurso alguma coisa desse caráter “trá-gico”, assume também como necessária a sua superação: “Gosta-ria de liberar a existência humana daquilo que ela tem de dolorosoe de cruel”80. Nietzsche insiste, em mais pontos centrais dos seusescritos da maturidade, contra essa “moral de animais de sacrifí-cio”, na qual o entusiasmo da vítima nasce do sentir-se uma só coi-sa com “o poderoso ser, seja ele um Deus ou um homem” a quem éconsagrada. A sua potência é testemunhada e verificada justamen-te pelo sacrifício: “Não pareceis tanto imolar-vos, quanto, ao invés,transmutar-vos, com o pensamento na divindade e, como tais, go-zar de vós mesmos”81. Com o fim das convicções entra em crise oprimado do heroísmo que pressupõe entretanto uma fé e pretendeuma garantia metafísica ou teológica. Em alguns casos, como noromântico Carlyle, a vontade de fé esconde a falta de fé própria dadebilidade moderna, uma “contínua e apaixonada desonestidadecontra si mesmo”.

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O heroísmo se liga sempre mais, na ótica crítica de Nietzsche, àcerteza subjetiva, que é própria da religião e que é inimiga doquestionamento e da verdade. Seguindo Taine, Nietzsche criticaradicalmente Carlyle, cujo “fanatismo” se conjuga com aquele dospuritanos. “A fé é sempre tanto mais ardentemente desejada, quantomais urgentemente necessária, lá onde falta a vontade”82. Nietzschepercebe bem o caráter de religiosidade e de fé no programa herói-co e de “culto aos heróis” do romântico inglês Carlyle, de quem sedistancia com veemência.

O heroísmo é a disposição da vítima para deixar-se usar parafins que a transcendem, que não são os seus: se contrapõe à forçados grandes espíritos, capazes de “ceticismo” e de uma grande pai-xão que subordina aos seus fins também as “convicções”, sem se-rem a eles subordinados. A liberdade dos horizontes é o pressu-posto do “indivíduo soberano” que se apóia sobre si mesmo. NoZaratustra se reconhece grande heroísmo à figura do padre por causado “sofrimento” que inflige a si mesmo e aos outros e cuja estupi-dez inventou o testemunho de sangue (o pior testemunho) a favorda verdade. O heroísmo é a boa vontade do crepúsculo absoluto denós mesmos e pertence ao “homem superior”, a figura do “deca-dente” depois da morte de Deus que com o seu fim prepara o des-mantelamento dos valores e a via para o indivíduo soberano83.

A essa categoria extrema, agonística, que caracteriza a vontadeheróica, própria dos “sublimes”, Nietzsche contrapõe, no Zaratus-tra, a forma pacificada, a beleza que aprendeu o sorriso. Ao “subli-me” cristão, idealístico, Nietzsche opõe o sublime ligado à plenitu-de da energia, em consonância com a fisiologia da paixão, própriade Stendhal.

É a última, mais difícil forma de heroísmo, aquela que caracte-riza o super-herói: contra o idealismo que “transfigura” a si mesmoe as suas metas, o heroísmo está em “não lutar sob a bandeira daabnegação, da dedicação, do desinteresse; consiste simplesmente

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em não lutar”. O herói sublime “subjugou monstros, resolveu enig-mas: mas ele deveria liberar também os seus monstros e os seusenigmas e transformá-los em filhos do céu”84.

Abstract: In contrast with the well-known figure of the “heroic” myth ofNietzsche, this paper shows that since Human, all-too human the reflec-tion about heroism seems uninterrupted and central, allowing Nietzsche tosee differences between his own position and other kinds of “heroicmorals”. It is considered the way from the first and passionate adhesion toheroic myths until the radical crisis of agonism based on metaphysicalbeliefs or illusions.Keywords: morals – philology – philosophy

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notas

1 Nietzsche, F. Werke. Kritische Gesamtausgabe. Hrsg. vonG. Colli und M. Montinari. Berlim: de Gruyter, 1967 sgg,VI, III: Ecce homo, p. 292. Para os escritos de Nietzsche,quando não for indicado diferentemente, a referência serásempre à edição alemã citada (daqui em diante KGW, segui-do de um número romano para o volume, de um númeroromano em maiúscula reduzida para o tomo, de uma even-tual especificação da obra ali contida e de um número arábi-co para as páginas). Quando me pareceu oportuno, indiqueio número do fragmento ou do aforismo entre parênteses.

2 KGW, VIII, III: Nachgelassene Fragmente (1888-1889), 453.As aulas, com platéia lotada, sobre o “radicalismo aristo-crático” de Nietzsche, dadas em Copenhage em abril emaio de 1888 por Georg Brandes, o crítico dinamarquêscosmopolita, representam o primeiro contato do filósofocom um público mais vasto, para além do círculo restritoem que até então ele era valorizado. Nietzsche, entretanto,colhia os sinais de perigosos mal-entendidos e “mitificações”dessa devoção acrítica de alguns seguidores que busca-vam novas crenças, na leitura germânica, idealística, “he-róica”, efetivamente “anti-semita”, e naquela biológico-darwiniana do além-do-homem. “A palavra ‘além-do-ho-mem’ (...) foi compreendida, quase em toda parte, comtotal inocência, no sentido próprio daqueles mesmos valo-res cujo oposto se manifestou na figura de Zaratustra”(KGW, VI, III: Ecce homo, 298). Veja-se também a carta aFranz Overbeck, de 24 de março de 1887: “Há um fatocurioso do qual fico cada dia mais consciente. Tenho um‘influxo’, muito subterrâneo, entenda-se bem. Em todos ospartidos radicais (socialistas, niilistas, anti-semitas, cristãosortodoxos, wagnerianos) gozo de uma extraordinária, qua-se misteriosa, consideração. A extrema pureza da atmosfe-

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ra, na qual me coloquei, seduz”. “Zaratustra, o ‘homemdivino’, agradou aos anti-semitas. Existe mesmo uma in-terpretação especificamente anti-semita que me fez rirmuito” (Briefwechsel. Kritishe Gesamtausgabe. Hrsg. vonG. Colli und M. Montinari. Berlim: de Gruyter, 1975 sgg,III, V, p. 48: daqui em diante KGB, seguido do númeroromano para o volume, do romano em maiúscula reduzidapara o tomo e de um número arábico para as páginas).

3 KGB, III, V, 462.4 KGW, VI, III: Ecce homo, 294.5 KGW, VI, III: Ecce homo, 293.6 KGW, VIII, II, 252.7 KGW, VI, III: Ecce homo, 434.8 KGW, VI, III: Ecce homo, 257.9 KGW, I, I, 283.10 KGW, I, I, 303.11 KGW, I, I, 290-291.12 ibidem.13 Nietzsche, F. Historisch-Kritische Gesamtausgabe. Werke.

Munique: Beck, 1933 sgg., II, p. 293 (daqui em dianteBAW, seguido de um número romano para o volume, daeventual especificação da obra ali contida e de um númeroarábico para as páginas). Na reproposição em rima do po-ema heróico Der grimmer Bogdam (O feroz Bogdam), tra-duzido do eslavo por Talvj von Jacob, Bogdam é caracteri-zado como “der starke, grimme, wutherfüllte Held” (KGW,I, II, 249).

14 KGW, I, I: Nachgelassene Aufzeichnungen, 255-256.15 BAW, II, 225-247.16 BAW, II, 282. A composição Hermanarich, referida por

Campioni, foi gravada no Brasil no ano de 2000. A versão

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para piano feita por Nietzsche, e uma para orquestra decordas de autoria do maestro Ronel Alberti da Rosa, cons-tam no CD ‘Nietzsche pelos ouvidos’ elaborado por LuísRubira e Ronel Alberti. A mesma composição, ao lado deoutras de autoria de Nietzsche, foi incluída posteriormen-te no CD ‘A dissonância trágica’, de autoria de Ronel Al-berti” (N.E.).

17 BAW, II, 101.18 ibidem.19 ibidem.20 BAW, II, 297.21 BAW, II, 307.22 BAW, II, 310.23 BAW, II, 295.24 Ibidem.25 KGW, I, II, 370.26 BAW, I: Ermanarich, Ostgothenkönig. Eine historische

Skizze, 297.27 Götterdämmerung é a tradução de Ragnarøkkr, do Edda,

de Sturluson Snorri: mesmo que o termo mais antigo sejaragnarøk, “o destino dos deuses”. Wagner certamentecontribuiu de maneira determinante para o sucesso daexpressão.

28KGW, I, II, 481 e 483.29 KGB, I, I, 61.30 KGW, VI, III: Ecce homo, 266.31 Cf. Nietzsches persönliche Bibliotek (BN), aos cuidados de

Giuliano Campioni, Paolo D’Iorio, Maria Cristina Fornari,Francesco Fronterotta, Andrea Orsucci. Berlim/NovaIorque: Walter de Gruyter, 2002, pp. 671-72.

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32 KGW, I, II, 119-120.33 KGW, I, II, 446-447.34 KGW, I, II: Über die dramatischen Dichtungen Byrons, 345,

348, 349.35 BAW, II, 63. Cf. Feuerbach, L. Das Wesen des

Christenthums, cap. XIX, em Sämtliche Werke, Bd. VI.Stuttgart/Bad Cannstatt: Frommann, 1960, p. 222. Em umanota de livros para o aniversário, conservada entre os pa-péis de Nietzsche no Goethe-Schiller Archiv, em Weimar,encontra-se indicado, de Feuerbach, além desse escrito,também Gedanken über Tod und Unsterblichkeit (KGW, I,II, 307).

36 KGW, I, II: Prometheus, 36.37 KGW, I, II: Prometheus, 42.38 KGW, III, III/2: Nachgelassene Fragmente (1869-1874),

461-463. Lembremos as poucas linhas dedicadas por FranzKafka a um Prometeu esquecido: “Todos esqueceram: osDeuses, as águias, ele mesmo (...). Cansaram-se dele quenão havia mais motivo de ser. Os deuses se cansaram, aferida – cansada se fechou” (Prometeu, 1918). Até mesmoa lembrança do herói supremo caiu. Parece a definitivasanção de uma impossibilidade – na condição moderna –de um heroísmo prometéico: o heroísmo está na obscuravida cotidiana.

39 KGW, III, II:Der griechische Staat, 261.40 KGW, III, II: Der griechische Staat, 270. Veja-se como

esta abnegação absoluta é vista como expressão de “subli-midade moral, o instinto para o heroísmo e o sacrifício”:KGW, III, II, 222.

41 KGW, III, III: Nachgelassene Fragmente (1869-1874), 151.42 KGW, III, III: Nachgelassene Fragmente (1869-1874), 105.43 KGW, III, I: Die Geburt der Tragödie, 104.

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44 KGW, III, I: Die Geburt der Tragödie, 110.45 Cf. Von Reibnitz, B. Ein Kommentar zu Friedrich Nietzsche

“Die Geburt der Tragöedie aus dem Geiste der Musik” (Kapitel1-12). Stuttgart: Metzler, 1992, p. 246.

46 Michelet, J. Bible de l’humanité. Paris: Chamerot, 1861,pp. 260-264. [N. do T. No texto em italiano, aparecemapenas as citações em francês].

47 KGW, III, I: Die Geburt der Tragödie, 130.48 KGW, III, IV: Nachgelassene Fragmente (1869-1874), 209.

A citação é retirada de Schopenhauer, A. Die Welt als Willeund Vorstellung, § 27.

49 Wagner, R. Beethovens “heroische Symphonie”, in: Wagner,R. Dichtungen und Schriften, 10 vol., aos cuidados deD. Borchmeyer. Frankfurt a. Main: Insel, 1983, vol. IX,p. 29.

50 Veja-se, em particular: Wagner, R. Kunst und die Revo-lution, in Dichtungen und Schriften…, vol. V, p. 273 ss.

51 KGW, VI, II: Zur Genealogie der Moral, III, 360.52 Wagner, R. Autobiographische Skisse, in: Ausgewählte

Schriften, aos cuidados de D. Mack. Frankfurt a. Main:Insel, 1974, pp. 101-102. Cf. também: Wagner, R. MeinLeben, aos cuidados de Martin Gregor-Dellin. Munique:Bruckmann, 1911, Vol. I, p. 91.

53 KGW, IV, I: Nachgelassene Fragmente (1875-1876), 351.54 KGW, IV, I: Nachgelassene Fragmente (1875-1876), 280.55 KGW, IV, I: Nachgelassene Fragmente (1875-1876), 267.56 KGW, IV, I: Richard Wagner in Bayreuth, 56. Cf. KGW,

IV, I: Nachgelassene Fragmente (1875-1876), 11[18], 280.57 KGW, IV, I: Richard Wagner in Bayreuth, 17. Cf. KGW,

IV, I: Nachgelassene Fragmente (1875-1876), fragmento11[38], 306.

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58 Cf. Wagner, R. O crepúsculo dos deuses, Ato III, Prelúdio eCena I, versos 1600-1602.

59 KGW, VI, II: Jenseits von Gut und Böse, 209. Mas é tam-bém significativa a aproximação com a filosofia de Spinoza:“‘Tudo isso é muito mais de Spinoza do que meu’ – diria,talvez, Shopenhauer’”(KGW, V, II: Die fröhliche Wissen-schaft, (99), 129).

60 KGW, III, IV: Nachgelassene Fragmente (1872-1874), 409.61 Wagner, R. O crepúsculo dos deuses, Ato I, Cena II, versos

405-407.62 Wagner, R. O crepúsculo dos deuses, Ato III, Cena II. No

ensaio póstumo Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, Nietzsche designa como “herói supremamente ale-gre” o homem intuitivo que, diferentemente do homemracional que enfrenta as mais prementes necessidades ar-mado de “previdência, prudência, regularidade”, não vêcontudo aquelas necessidades e “considera como real so-mente a vida transformada pela ficção em aparência e be-leza” (KGW, III, II, 383).

63 Wagner, R. As Walkirias, Ato II, Cena II, verso 879.64 KGW, III, III: Nachgelassene Fragmente (1869-1872), 339.65 KGW, IV, I: Nachgelassene Fragmente (1875-1876), 331.66 KGW, III, III: Nachgelassene Fragmente (1869-1872),

342-343.67 Wagner, R. Eine Mitteilung an meine Freunde in Dichtungen

und Scriften…, vol. VI, p. 308.68 KGW, VI, III: Ecce homo, 286.69 Wagner, R. As Walkirias, Ato II, Cena IV, versos 1349 ss.70 Wagner, R. Entwürfe. Gedanken. Fragmente. Aus nach-

gelassenen Papieren zusammengestellt. Leipzig: Breitkopf

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& Härtel, 1885, p. 59 (o volume está presente na bibliote-ca de Nietzsche).

71 KGW, VI, III: Ecce homo, 269.72 KGW, VI, II: Zur Genealogie der Moral, (II, 23), 349.73 Veja-se KGW, VII, I: Nachgelassene Fragmente (1882-1883/

84), fragmento 7[160], 303. Sobre a importância desseautor como fonte para a Genealogia ver Orsucci, A.“Nietzsche, Wundt e il filólogo Leopold Schmidt. A propó-sito di una fonte della Genealogia della morale” in: Giornalecritico della filosofia italiana (LXX), 1991.

74 Wagner, R. Der Nibelungen-Mythus, Als Entwurf zu einenDrama (1948), in: Dichtungen und Schriften…, vol. II, p.284 e p. 281.

75 Id. Pp. 275-276.76 Cf. Wagner, R. As Walkirias, Ato II, Cena II, versos 1062-

1063.77 KGW, IV, I: Richard Wagner in Bayreuth, 77.78 KGW, VII, II: Nachgelassene Fragmente (1884), 101.79 A anotação, resgatada por Andrea Orsucci, encontra-se

conservada no Nachlaâ Dühring (caixa número 5) da “seçãode manuscritos” da Staatsbibliothek de Berlim. AgradeçoOrsucci por ter permitido a utilização de tal inédito paraeste meu trabalho.

80 KGB, III, I, 287-288.81 KGW, V, I: Morgenröthe, 193.82 KGW, V, II: Die Fröhliche Wissenschaft, 263.83 Sobre esse tema, ver Campioni, G. “L’uomo superiore’

dopo la morte di Dio. Appunti di lettura” in: Teoria (XVI),1996, pp. 31-53.

84 KGW, VI, I: Also sprach Zarathustra, 147.

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referências bibliográficas

1. CAMPIONI, G. “L’uomo superiore’ dopo la morte di Dio.Appunti di lettura” in: Teoria (XVI), 1996.

2. FEUERBACH, L. Das Wesen des Christenthums in:Sämtliche Werke, Bd. VI. Stuttgart/Bad Cannstatt:Frommann, 1960.

3. MICHELET, J. Bible de l’humanité. Paris: Chamerot,1861.

4. NIETZSCHE, F. Werke., Kritische Gesamtausgabe. Hrsg.von G. Colli und M. Montinari. Berlim: de Gruyter,1967.

5. ________. Briefwechsel. Kritishe Gesamtausgabe. Hrsg.von G. Colli und M. Montinari. Berlim: de Gruyter,1975.

6. ________. Historisch-Kritische Gesamtausgabe. Werke.Munique: Beck, 1933.

7. Nietzsches persönliche Bibliotek (BN), aos cuidados deGiuliano Campioni, Paolo D’Iorio, Maria CristinaFornari, Francesco Fronterotta, Andrea Orsucci.Berlim/Nova Iorque: Walter de Gruyter, 2002.

8. ORSUCCI, A. “Nietzsche, Wundt e il filólogo LeopoldSchmidt. A propósito di una fonte della Genealogiadella morale” in: Giornale critico della filosofia italia-na (LXX), 1991.

9. VON REIBNITZ, B. Ein Kommentar zu Friedrich Nietzsche“Die Geburt der Tragöedie aus dem Geiste der Musik”(Kapitel 1-12). Stuttgart: Metzler, 1992.

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Campioni, G.

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10. WAGNER, R. Dichtungen und Schriften, 10 vol., aoscuidados de D. Borchmeyer. Frankfurt a. Main: Insel,1983.

11. ________. Autobiographische Skisse, in: AusgewählteSchriften, aos cuidados de D. Mack. Frankfurt a. Main:Insel, 1974.

12. ________. Mein Leben, aos cuidados de Martin Gregor-Dellin. Munique: Bruckmann, 1911.

13. ________. Entwürfe. Gedanken. Fragmente. Ausnachgelassenen Papieren zusammengestellt. Leipzig:Breitkopf & Härtel, 1885.

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Nietzsche e o cinismo grego: elementos para a crítica à “vontade de verdade”

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Nietzsche e o cinismo grego:elementos para a críticaà “vontade de verdade”

Adriana Belmonte Moreira*

Resumo: Este artigo procura apresentar as articulações possíveis entreas coordenadas gerais do cinismo grego e a filosofia nietzschiana, comintuito de apontar como o recurso ao cinismo auxilia Nietzsche em suatarefa crítica. Para tanto, ele tem por horizonte de análise algumas “estra-tégias” nietzschianas de crítica à “vontade de verdade”, nas quais se per-cebe a apropriação de certas características da filosofia cínica da Antigüi-dade, bem como de sua recepção posterior pela via da ironia.Palavras-chave: cinismo – perspectivismo – genealogia – vontade deverdade

Nietzsche, em O caso Wagner, afirma: “É preciso ser cínico paranão se deixar seduzir: é preciso ser capaz de morder, para não cairem adoração (...) O cínico te adverte – cave canem... (cuidado como cão)” (WA/CW, Pós-escrito). Não uma única vez, o filósofo recor-re à “mordida” cínica para criticar a décadence de seu tempo e de-nunciar a disseminação das valorações décadents nos aparentemen-te mais apartados ramos do conhecimento, das artes à ciência, dagramática às teorias políticas. Todavia, mais precisamente, pode-seentrever que é a crítica à “vontade de verdade” a todo custo, prin-

* Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo.

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cipalmente, a denúncia de sua expressão mais rematada na tábuade valorações morais do ocidente cristão, que se coloca no horizon-te do filósofo. Com efeito, na tentativa de elucidar em que se anco-ra tal “adoração” pela verdade, Nietzsche percorre uma trilha queparte do questionamento sobre o que seria essa incondicionada “von-tade de verdade”, traduzida na afirmação “nada é mais necessárioque a verdade, e em proporção a ela todo o resto só tem um valor desegunda ordem” (FW/GC § 344), e que finda com a pergunta pelovalor dessa “vontade de verdade”, sob a perspectiva do proce-dimento genealógico. Ao denunciar a “vontade de verdade” comoum “princípio destrutivo, hostil à vida” (idem) ou uma “velada von-tade de morte” (idem), Nietzsche enceta sua tarefa de transvalo-ração dos valores e anuncia a necessidade de criação de novas va-lorações para o tempo vindouro, em graus mais consoantes a umavida ascendente.

Se à criação de novos valores é necessária a tarefa de destrui-ção das valorações gregárias, a filosofia a golpes de martelo podeencontrar nos golpes de cajado de Diógenes um importante aliado,na luta contra um inimigo comum: a filosofia platônica. No contextodo cinismo grego, são conhecidas as querelas entre Platão eDiógenes. No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche apresenta Platão comomarco inaugural da longa história de um erro, que foi a trajetóriada filosofia no Ocidente (GD/CI, “Como o ‘verdadeiro mundo’ aca-bou por se tornar em fábula”, História de um erro). Com efeito,vale recordar, em Nietzsche, a estratégia de filiação a uma dadafilosofia para potencializar a crítica é corrente, mesmo que em ou-tro momento esta mesma filosofia passe a ser o alvo de ataque dofilósofo. Desse modo, não deve causar espanto se ora Nietzsche secoloca entre os “cínicos”, ora lhes faz objeções. Ao fim, o queNietzsche visa é exposição de sua própria filosofia. Somente agora,reconhecido um inimigo comum, é possível ensaiar cotejos entre asprincipais coordenadas de compreensão do cinismo grego e alguns

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Nietzsche e o cinismo grego: elementos para a crítica à “vontade de verdade”

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pontos da trajetória desenhada pelo filósofo alemão para a crítica à“vontade de verdade”. De igual modo, refletir em que medida ci-nismo e ironia, como modos indiretos de enunciação da verdade,podem auxiliar Nietzsche a operar um outro regime de discursosobre a verdade, que encontra no perspectivismo sua divisa.

* * *

Do que se tem registrado sobre o cinismo grego, o episódio dorebate de Diógenes à definição platônica de homem, como bípedeimplume, com o arremesso de um galo depenado é célebre. Desdeentão, comenta-se, à definição de homem de Platão, como animalbípede sem asas, foi acrescentado “tendo unhas chatas” (Laêrtios,VI, p. 162). Da crítica nietzschiana, Platão também não sairá incó-lume. Mas, ao tempo que Diógenes considera as preleções platônicasuma “perda de tempo” (idem, p. 158), Nietzsche enxerga da filoso-fia de Platão as conseqüências, a seu ver, bem mais funestas doque um tempo despendido com arengas1. Para ele, Platão foi o pri-meiro a acender o fogo da crença incondicional na verdade, quemajudou a construiu a “fogueira” onde, mais tarde, o pensamentocristão colocou mais lenha. Ora, platonismo e cristianismo compar-tilham “aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, deque Deus é a verdade, de que a verdade é divina” (FW/GC, §344).Por isso, no prólogo de Para além de bem e mal, Nietzsche esclare-ce que sua luta contra Platão é, de igual modo, a luta contra a pres-são cristã-eclesiástica de milênios, uma vez que “cristianismo é pla-tonismo para o ‘povo’” (JGB/BM, Prólogo).

Por diversas vezes, o filósofo alemão assevera que a crença pla-tônica na “alma” é o primeiro alicerce das construções filosofais doocidente, bem como é a separação entre alma e corpo a matriz paratodo modo de pensar e valorar dualista da tradição dogmática. Nes-sa trilha, em Para além de bem e mal, Nietzsche diz: “bastava pou-

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co para construir o alicerce das sublimes e absolutas construçõesfilosofais que os dogmáticos ergueram – alguma superstição popu-lar de um tempo imemorial (como a superstição da alma, que, comoa superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos)” (JGB/BM, Prólogo). De fato, Nietzsche considera o pior, o mais persis-tente e perigoso dos erros dogmáticos a invenção platônica do “puroespírito e do bem em si” (JGB/BM, Prólogo). Sendo assim, ele pas-sa a ter por tarefa desferir contundentes golpes à “alma” platônica,em todos os seus refinamentos, seja como “puro espírito”, res cogi-tans, Eu, sujeito, razão, consciência e, de igual modo, a toda cons-telação de dualismos que, desde então, gravitam nessa órbita: comoessência, em oposição à aparência, mundo inteligível, em oposiçãoao sensível, mundo verdadeiro, em oposição ao aparente, verdade,em oposição ao erro, e no âmbito dos valores, o bem, em oposiçãoao mal.

Sob outra perspectiva, no Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche inscre-ve a filosofia de Platão no “longo erro” que foi a trajetória da filo-sofia no ocidente: “1. O verdadeiro mundo, alcançável ao sábio, aodevoto, ao virtuoso – eles vivem nele, são ele (Forma mais antigada idéia, relativamente esperta, singela, convincente. Transcrição daproposição ‘eu Platão, sou a verdade’)” (GD/CI, “Como o ‘verda-deiro mundo’ acabou por se tornar em fábula”, História de um erro).No quadro traçado por Nietzsche, vê-se que, malgrado todas as con-tendas da tradição filosófica, há um ponto de ancoragem comum,no qual se fiaram, até então, os filósofos: a divisão de mundos, em“verdadeiro” e “aparente”. Além disso, deste par, eles comparti-lham a consideração do mundo “aparente” como sinônimo de enga-no, superficialidade, mendacidade, ilusão. Nietzsche, deslocando o“erro” para a trajetória da filosofia no Ocidente, ao abordar o pro-blema da aparência, esclarece que se outrora a alteração, a mudan-ça, o vir-a-ser eram provas de aparência e, conseqüentemente, eramsigno de que há algo que nos induz ao erro (GD/CI, A “razão” na

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filosofia, §5), de modo antagônico, ele assevera: “O mundo “apa-rente” é o único: o mundo verdadeiro é apenas um mundo acres-centado de maneira mendaz...” (idem, §2). Com efeito, pode-se afir-mar que uma das estratégias das quais Nietzsche lança mão paracriticar o “mundo verdadeiro” é a filiação ao “mundo aparente”.Na mesma direção, em Para além de bem e mal, dirigindo-se aosfilósofos, ele dispara: “abolir inteiramente o ‘mundo aparente’, en-tão, suposto que vós o pudésseis – pelo menos, com isso, nada maisrestaria também de vossa ‘verdade’!” (JGB/BM § 34).

De modo geral, o que Nietzsche procura aclarar é que foi naesteira da “superstição” da alma platônica que transcorreu a fabula-ção de um “mundo verdadeiro”, em detrimento do “mundo aparen-te”. De modo mais preciso, na trajetória iniciada pela filosofia dePlatão, o que se vislumbra é um longo processo de negação dessemundo, através da fabulação de um outro mundo, o “mundo verda-deiro”. Por conta disso, no Crepúsculo dos ídolos, como primeiraproposição de sua nova perspectiva, Nietzsche apresenta: “os funda-mentos, em vista dos quais ‘este’ mundo foi designado como aparen-te, fundam, em vez disso sua realidade – uma outra espécie de rea-lidade é absolutamente indemonstrável” (GD/CI, A “razão” nafilosofia, §6). Como é a protestação de um “mundo verdadeiro”, emdetrimento desse mundo, o que Nietzsche entrevê na economia geralda tradição filosófica, em sua perspectiva, será o “mundo aparente”o único mundo identificado à realidade2. Com efeito, colocada emquestão a divisão de mundos, na qual a um deles cabia sediar asessências, o dualismo essência e aparência será revisto: “O que éagora para mim, ‘aparência’! Na verdade, não o contrário de algumaessência – o que eu sei dizer de qualquer essência, a não ser justa-mente, apenas os predicados de sua aparência!” (FW/GC § 54).

Estrategicamente, é pela afirmação da aparência que Nietzscheacusa a irrealidade do “mundo verdadeiro”. Logo, qualquer idealde “ascese” a um outro mundo torna-se inviável, visto ser possível

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afirmar somente a realidade desse mundo, o chamado “mundo apa-rente”3. Ora, uma vez que à ascese da alma platônica a um “mundoverdadeiro”, sede das essências, é possível contrapor o manto in-festado de carrapatos e piolhos de Antístenes e Diógenes4, as possi-bilidades de aproximação entre o cinismo grego e alguns elementosda crítica de Nietzsche à “vontade de verdade”, gradativamente,ficarão mais claras.

* * *

De imediato, guardadas as diferenças filosóficas, não seria detodo impreciso estabelecer aproximações entre o modo cínico decrítica ao nomos, através da afirmação de uma moral naturalistaassentada na physis, e a crítica de Nietzsche aos valores moraisdécadents de seu tempo, bem como sua reivindicação por valoraçõesconsoantes a uma vida ascendente.

Validamente, o cinismo pode ser compreendido como uma filo-sofia moral eudemonista, que encontra na physis uma resposta aoconvencionalismo que guia o nomos. Ora, Antístenes, alcunhado“cão puro e simples”, assevera que o sábio “não deve viver de acor-do com as leis vigentes na cidade, e sim segundo as leis da excelên-cia” (Laêrtios, VI, p. 155). Também, Diógenes critica os que com-petem esmurrando-se, sem se preocupar em competir por excelênciamoral, os que estudam os males de Odisseu e ignoram seus pró-prios males, os músicos que afinam a lira, sem cuidar da harmoniade suas almas. Não obstante, aos cínicos, ao ensino da virtude nãohaveria necessidade de “muitas palavras nem de muitos conhecimen-tos” (idem, p. 155), visto que a autenticidade do comportamentoanimal poderia servir de exemplo claro à conduta moral. Por isso,Diógenes corrigiu aquele que declarou que a vida é necessariamenteum mal: “Não a vida, mas viver erradamente” (idem, p. 166). Se,comumente, o “exemplo animal” servia para desqualificar os apeti-

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tes humanos5, na leitura cínica, este, longe de desqualificar a con-duta do homem, é apresentado como caminho para uma vida virtu-osa e, conseqüentemente, feliz.

Não obstante, a adoção da autenticidade do comportamentoanimal como parâmetro de conduta não significa que os cínicosadotavam uma moral naturalista pautada no desregramento e noexcesso, na liberdade absoluta de gozo de apetites e paixões. Aocontrário, a moralidade cínica tem por norte a apatia e a domina-ção de si (autarkeia), o adestramento do corpo e da alma visando àliberdade em relação aos objetos sensíveis e paixões. Pode-se en-trever que não é uma “liberdade completa de ação” que aqui secoloca, mas uma “liberdade negativa” em relação aos vínculos donomos. Em última análise, o recurso à physis, como princípio deconduta moral dos cínicos, não pode ser entendido pelo viés doexcesso e da liberdade incondicional, mas, fundamentalmente, pelorompimento dos vínculos com as convenções da polis, pela “nega-ção” do nomos6.

Entretanto, ao tempo que os cínicos buscam a autenticidade doagir através dos referenciais do comportamento animal e, assim,realizam sua crítica ao convencionalismo moral do nomos, Nietzscheenxerga na sociedade de seu tempo mais “animalidade” do que seuscontemporâneos gostariam de admitir. Ao longo de sua trajetóriafilosófica, o filósofo alemão lança mão de paralelos entre os homense os animais com vários intentos. Em Aurora, no âmbito da investi-gação moral, ele aproxima as práticas exigidas na “sociedade refi-nada” e os móbeis animais e, por fim, conclui que todo “fenômenomoral” pode ser considerado como “animal”: “o evitar cuidadosa-mente o ridículo, o que dá na vista, o pretensioso, o preterir suasvirtudes assim como seus desejos mais veementes, o fazer-se igual,pôr-se na ordem, diminuir-se (...) isso tudo o animal sabe igual aohomem, também nele o autodomínio brota do sentido efetivo (daprudência)” (M/A § 26). Na contramão de um racionalismo no

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âmbito moral, ele completa: “tudo o que designamos com o nomede virtudes socráticas, é animal: uma conseqüência daqueles impul-sos que ensinam a procurar por alimento e escapar dos inimigos”(M/A § 26). Nessa passagem, o sentido de “verdade” encontra-seatrelado exclusivamente à segurança, a uma prudência necessáriapara escapar de perseguidores e obter vantagens na busca de pre-sas. Perspectiva que Nietzsche irá manter e desenvolver em escri-tos posteriores, prestando-se basicamente à conservação dos indiví-duos em coletividade, imbricadas, “verdade” e “virtude” serãoinvestidas de caráter pragmático. Ora, sob esse ponto de vista, se,para Nietzsche, “o cinismo é a única forma sob a qual as almasvulgares se aproximam do que seja a honestidade” (JGB/BM § 26)é porque os cínicos são os únicos que reconhecem a “animalidade”como modelo de conduta moral, enquanto os membros da “socie-dade refinada” se ocultam “sob a generalidade do conceito ‘ho-mem’” (M/A § 26).

Destarte, se é possível objetar que aos cínicos falta uma filoso-fia da natureza, como princípio “positivo” de orientação de condu-ta, ao menos, ao ver de Nietzsche, não é possível lhes imputar faltade probidade. Agora, para a filosofia de Nietzsche, não seria válidaa mesma objeção. Pode-se afirmar que o filósofo alemão, no con-junto de seus escritos, procurou, por diversas vezes, aclarar suaperspectiva sobre o mundo efetivo7. Em Para além de bem e mal,Nietzsche procurar se afastar do protocolo de demarcação de mun-dos e supõe que “nada outro está dado como real, a não ser o nossomundo de apetites e paixões (...) não podemos descer ou subir anenhuma outra ‘realidade’, a não ser precisamente à realidade denossos impulsos” (JGB/BM § 36). Grosso modo, para o filósofo, omundo pode ser interpretado a partir de uma multiplicidade deimpulsos8 que, em uma luta sem termo por precedência, estabele-cem distintas ordenações hierárquicas. Nesse processo, ao tempoque são formadas distintas ordenações de impulsos, são impostas

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diferentes perspectivas, das quais emergem interpretações. Sendoassim, o mundo não encerraria uma única “verdade”, mas infinitasinterpretações9. E as interpretações humanas seriam apenas algu-mas delas. Ora, nós, limitados que estamos às nossas possibilidadesperspectivas, “não podemos enxergar além de nossa esquina: é umacuriosidade desesperada querer saber que outros tipos de intelectoe de perspectiva poderia haver” (FW/GC § 374). No limite, somen-te uma singularidade perspectiva e interpretativa poderia ser apre-sentada como traço distintivo entre homens e animais. Decerto, soba óptica dos impulsos, nem mesmo a “razão” ou consciência nãopoderia transcender esse domínio: “‘estar consciente’ não se opõede algum modo decisivo ao que é instintivo” (JGB/BM § 3).

É nessa mesma trilha que, em O Anticristo, Nietzsche coloca ohomem entre os animais, com vistas a abalar a prepotência dos queatribuem à razão um estatuto privilegiado, uma prova da origemmais elevada do homem em relação às demais “criaturas”. Não sempropósito, o filósofo afirma que na natureza, homem e animal en-contram-se lado a lado, em um “idêntico grau de perfeição” (AC/AC § 14). Nessa passagem, colocar o homem entre os animais sig-nifica despojar a razão, o “espírito puro” ou a chamada “consciên-cia” do estatuto privilegiado outorgado pela tradição metafísica.Nessa mesma direção, na Genealogia da Moral, ao vislumbrar ostempos em que o homem passou a viver de forma gregária e pacífi-ca, o filósofo apresenta a razão sob a perspectiva dos impulsos quese interiorizaram: “isto é o que chamo de interiorização do homem:é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua ‘alma’”(GM/GM II, §16). A “alma”, ou consciência, não ultrapassa o cam-po da necessidade de obstrução da descarga dos impulsos, dadapelas injunções da vida em comunidade. Portanto, longe de qual-quer racionalismo de base metafísica, na contramão daqueles queadvogam um estatuto privilegiado ao homem, pautado na razão en-quanto um dom de ordem superior, Nietzsche assevera: não há nada

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para além de um efetivar-se de impulsos, em suas múltiplas possibi-lidades de ordenação hierárquica. Mesmo o pensar é “apenas a re-lação desses impulsos entre si” (JGB/BM § 36).

Além disso, do mesmo modo que Nietzsche revela que na ori-gem da consciência está um processo de interiorização de impul-sos, e que mesmo o pensar deve ser remetido a esse domínio, ofilósofo ainda esclarece que o pensamento consciente é somente a“parte mais superficial, a parte pior – pois somente esse pensamen-to consciente ocorre em palavras, isto é, em signos de comunica-ção” (FW/GC § 354). Por conseguinte, com a consciência, “é oinstinto de rebanho que, com ela, afinal, toma a palavra (e tambémas palavras)” (GM/GM I, §2). Segundo o filósofo, a linguagem, ou opensamento que se expressa em palavras, em sua origem, foi o quepossibilitou a comunicação entre os homens. Ela tornou inteligíveisnecessidades e possibilitou a criação de estratégias para a conser-vação daqueles que, isolados, decerto sucumbiriam. Ora, consciên-cia e linguagem têm procedência comum no solo da gregariedade.Formadas para estabelecer uma ponte de comunicação entre oshomens, elas carregam a marca do genérico e do superficial, domediano e do inteligível a todos. Portanto, a linguagem ordináriapresta-se exclusivamente ao comunicar-se e isso somente é possívelpor seu caráter convencional: “desviar-se teimosamente da conven-ção significa: não querer ser entendido” (WS/AS § 122).

Mas, se a linguagem, enquanto pensamento consciente, traduzo mundo de modo “raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo,marca de rebanho” (FW/GC § 354), foi esse mesmo carátersimplificador e generalizador da consciência que possibilitou a con-servação dos indivíduos. Com efeito, Nietzsche acredita que tive-ram vantagem na conservação aqueles que fixaram “verdades”como: “existem coisas duráveis, que existem coisas iguais, que exis-tem coisas, matérias, corpos, que uma coisa é aquilo que parece,que nosso querer é livre, que o que é bom para mim também é

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bom em si” (FW/GC § 110). O problema apontado pelo filósofo éque esses “erros” que se revelaram úteis e conservadores da espé-cie, passado um enorme intervalo de tempo, se petrificaram em“verdades” de valor inquestionável: “agora, com efeito, é fixadoaquilo que doravante deve ser ‘verdade’, isto é, uma designaçãouniformemente válida das coisas, e a legislação da linguagem dátambém as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeiravez o contraste entre verdade e mentira” (VL/VM §1). Da utilidadepara conservação da espécie à “expressão adequada” da efetivida-de, a linguagem passou a alicerçar a crença na qual há verdadesinscritas no mundo, passíveis de serem expressas em palavras, ouseja, “com eles (a palavra e o conceito) não nos limitamos a desig-nar as coisas, pensamos captar originalmente, através deles, o ver-dadeiro nelas” (WS/AS §11). Desprezado o caráter simplificadorda consciência e o convencionalismo da linguagem, conceitos e pa-lavras passaram a expressar a verdade das coisas, através da iden-tificação da designação da coisa com o que a coisa é efetivamente.

Vê-se que, do ponto de vista nietzschiano, bem faz Diógenes aolimitar-se ao cajado como instrumento de toda designação possí-vel10. Com efeito, ao ouvir as preleções de Platão sobre as idéias,com referências à “mesidade” e à “tacidade”, Diógenes contra-ar-gumentava: “A mesa e a taça eu vejo, Platão, porém tua ‘mesidade’e ‘tacidade’ não posso ver de forma alguma” (Laêrtios, VI, p. 165).Diógenes também saía às ruas, em plena luz do dia, com uma lan-terna na mão, à procura do “homem universal” e, efetivamente,não o encontrava. Pode-se entrever que a resposta cínica ao genéri-co do conceito é, sem passar pelo universal da linguagem, operaruma indexação direta do ser individual, único que possuiria reali-dade objetiva. Destarte, toda designação seria dada por uma“mostração pura” ou uma “ação exemplar”, o que esclarece por-que Diógenes realizou a prova da existência do movimento ao cami-nhar: “Diógenes deu a seguinte resposta a alguém que sustentava

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que não existe o movimento: levantou-se e começou a caminhar”(Laêrtios, VI, p. 162). A nosso ver, é na mesma vereda dos cínicosque, em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, Nietzschediz que unicamente a “desconsideração do individual e do efetivonos dá o conceito” (VL/VM, §1).

De fato, para o filósofo alemão, simplificadoras, consciência elinguagem não dão conta de expressar o vir-a-ser próprio à efetivi-dade e nos coagem à crença no ser: “A linguagem pertence, por suaorigem, ao tempo da mais rudimentar forma de psicologia: entra-mos em um grosseiro fetichismo, quando trazemos à consciência aspressuposições fundamentais da metafísica da linguagem, ou, ditoem alemão, da razão” (GD/CI, A “razão” na filosofia, §5). Nietzschemostra-se atento às “seduções” da linguagem metafísica e denunciaque é somente o caráter simplificador da consciência, que “nos co-age a pôr unidade, identidade, duração, substância, causa, coisida-de, ser” (idem). Em última análise, são os “preconceitos da lingua-gem metafísica” que introduzem sub-repticiamente a crença no ser,“vemo-nos, de certo modo, enredados no erro, necessitados ao erro(...): pois esse erro tem a seu favor cada palavra, cada proposiçãoque nós falamos” (idem). Para Nietzsche, é somente do eu da lin-guagem metafísica ou, mais precisamente, de um encadeamento lógi-co-gramatical, que se segue o conceito de ser: “somente da concep-ção ‘eu’ se segue, como derivado, o conceito ‘ser’...” (idem).

Portanto, pode-se afirmar que Nietzsche e os cínicos, cada quala seu modo, realizam a crítica às pretensões universalizantes da lin-guagem, denunciam o convencionalismo do genérico do conceito.E, mais do que isso, eles estabelecem uma necessária relação entrelinguagem e crítica moral. Com efeito, a visada cínica não se res-tringe a colocar às vistas públicas quão artificiosa é a linguagem dosuniversais. Para os cínicos, linguagem e crítica moral encontram-seenredadas. Por isso, “Antístenes aconselhava os atenienses a de-cretarem que os asnos são cavalos, e como seus concidadãos consi-

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deraram o conselho absurdo, sua justificativa foi: ‘Mas os generaisnão parecem ter experiência alguma e são eleitos com um simpleslevantar de mãos’” (Laêrtios, VI, p. 154). No domínio da lingua-gem, toda “eleição” dos casos particulares que recaem sob a gene-ralidade de um conceito é arbitrária, em outros termos, há sempreum “descompasso” entre a universalidade do conceito e a particu-laridade dos casos. Desse ponto de vista, justifica-se a permuta dosnomes. No entanto, para além de uma crítica à linguagem, o que ocínico tem por mira é a “inexperiência dos generais” ou, mais pre-cisamente, uma crítica moral. Não sem propósito, para a troca dosnomes, de cavalos para asnos, são os generais as figuras exempla-res do discurso cínico.

De igual modo, em Nietzsche, linguagem e moral encontram-seenleadas. Para o filósofo, o genérico do conceito expressa unica-mente a estreita perspectiva do rebanho e a vulgaridade que lhe éprópria: “palavras são sinais sonoros para conceitos: mas conceitossão sinais imagens, mais ou menos determinadas para sensaçõesrecorrentes e associadas, para grupos de sensações. (...) Quais osgrupos de sensações que dentro de uma alma despertam mais rapi-damente, tomam a palavra, dão as ordens; isso decide a hierarquiainteira de seus valores, determina por fim a sua tábua de bens.”(JGB/BM § 268). Para o filósofo alemão, a linguagem é expressãode um conjunto de valorações morais que, longe de aspirarem àuniversalidade, são produto das necessidades particulares, a partirdas quais foram engendradas. Nesse contexto, em oposição aos queadvogam a universalidade no domínio moral, o filósofo protesta:“onde quer que nos deparemos com uma moral, encontramos umaavaliação e hierarquização dos impulsos e atos humanos (...)moralidade é o instinto de rebanho no indivíduo” (FW/GC § 116).Ora, para o filósofo, cada moral encontra-se de acordo com as con-dições de preservação de diferentes comunidades, constitui a ex-pressão das distintas necessidades de um grupo, desse modo, “pode-

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se profetizar que ainda aparecerão morais muito divergentes” (FW/GC § 116). Para ele, na tábua de valorações morais gregárias ésempre o “instinto de rebanho” que toma a palavra.

Vê-se aqui a proposta da genealogia: avaliar as distintas valo-rações morais, em outros termos, colocar em questão o valor dosvalores morais: “enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamosde uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores de-verá ser colocado em questão – para isso é necessário um conheci-mento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob asquais se desenvolveram e se modificaram (moral como conseqüên-cia, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido, mastambém moral como causa, medicamento, estimulante, inibição,veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foidesejado” (GM/GM, prólogo, §6). No entanto, para avaliar as valo-rações morais, é necessário estabelecer um “critério”, este mesmoimpossível de ser avaliado. Ora, somente a vida se furta a qualqueravaliação, pois “seria preciso ter uma posição fora da vida e, poroutro lado, conhecê-la tão bem quanto um, quanto muitos, quantotodos que viveram, para poder em geral tocar o problema do valorda vida: razões bastantes para se compreender que esse problemaé um problema inacessível a nós” (GD/CI, Moral como contrana-tureza, §5). Portanto, em Nietzsche, é a vida como dinamismo deimpulsos, em seus processos de ascensão e declínio, que passa aser critério de avaliação dos valores. Sendo assim, toda moral é ex-pressão de determinado tipo de ordenação hierárquica de impul-sos, cada conjunto valorativo é sinal de declínio ou crescimento daatividade de impulsos vitais. Mais precisamente, cada estimativa devalor apresenta-se como “sintoma” de determinada espécie de vida,uma vez que: “se falamos de valores, falamos sob a inspiração, soba óptica da vida: a vida mesma nos coage a instituir valores: a vidamesma valora através de nós, quando instituímos valores” (GD/CI,Moral como contranatureza, §5).

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Agora, instaurado o procedimento genealógico, é possível per-guntar pelo valor da vontade de verdade: “A vontade de verdadeprecisa de uma crítica – determinemos com isso nossa própria tare-fa – o valor da verdade deve ser alguma vez, experimentalmente,posto em questão...” (GM/GM III, §24). Ora, como visto, somentecom vistas à “preservação” de determinado grupo que as valoraçõesgregárias tomaram precedência, exclusivamente com fins de “con-servação” que dada comunidade atribuiu valor a um determinadoconjunto de valorações morais. Por isso, Nietzsche diz: “a verdadeé uma espécie de erro, sem a qual uma determinada espécie de servivo não poderia viver” (XI, 34 (253)). E qual seria essa espécie devida, Nietzsche aclara: “de que vida? De que espécie de vida? –Mas eu já dei a resposta: da vida declinante, da vida enfraquecida,cansada, condenada. Moral, como foi entendida até agora (...) é opróprio instinto de décadence” (GD/CI, Moral como contranatureza,§5). Destarte, as valorações morais gregárias são “sintomas” dedeterminado tipo de vida: uma vida em declínio, uma vida décadent.Nesse horizonte, o valor da vontade de verdade se inscreve em umaperspectiva de conservação de uma vida declinante. Ela não estáem consonância a uma vida ascendente, a um crescimento vital, aocontrário, se revela como um “princípio destrutivo, hostil à vida”ou mesmo uma “velada vontade de morte” (FW/GC § 344).

Retomada nossa questão inicial, é nesse mesmo registro quetambém se inscreve a “fabulação” de um “mundo verdadeiro”:“Dividir o mundo em um ‘verdadeiro’ e um ‘aparente’ (...) é so-mente uma sugestão da décadence – um sintoma de vida decli-nante...” (GD/CI, A “razão” na filosofia, §5). Agora, a divisão demundos, em “verdadeiro” e “aparente”, na qual se ancorou a tra-dição filosófica do Ocidente, pode ser apresentada como “sintoma”de décadence e os filósofos a mais rematada expressão do “instintode rebanho” que tomou a palavra. O que Nietzsche procura revelarde modo mais veemente é que, de modo subjacente ao amplo uni-

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verso conceitual da tradição, existe um ponto em comum aos filóso-fos: um profundo “mal-estar” em relação aos processos da efetivi-dade: “Mas com isso está tudo explicado. Quem é que tem razõespara se mentir para fora da efetividade? Quem sofre com ela. Massofrer com a efetividade significa ser uma efetividade malograda...”(AC/AC § 15). Para uma efetividade malograda, diz o filósofo, “amorte, a mudança, a idade, do mesmo modo que a geração e ocrescimento são para eles objeções e até refutações. O que é nãovem-a-ser: o que vem-a-ser não é... Agora, eles acreditam todos,mesmo com desespero, no Ser” (GD/CI, A “razão” na filosofia, §1).Em última análise, a protestação de um “mundo verdadeiro”, oapego ao ser são “sintomas” de recusa dos processos dinâmicos davida, do vir-a-ser próprio à efetividade, sendo a melhor expressãoda condição vital daqueles que, na iminência do perecimento, ne-cessitam de todo modo “conservar-se”.

Assim, no Crepúsculo dos ídolos, a filosofia nietzschiana queprenuncia o fim do “mais longo erro”, representado pela trajetóriada filosofia no Ocidente: “(Meio dia: instante da mais curta sombra:fim do mais longo erro; ponto alto da humanidade; INCIPITZARATHUSTRA)” (GD/CI, “Como o ‘verdadeiro mundo’ acabou porse tornar em fábula”, História de um erro). Contudo, para uma novafilosofia, alerta o filósofo, em oposição ao “instinto de rebanho” que“tomou a palavra”, é necessária uma nova linguagem, em maiorconsonância ao dinamismo da efetividade e que possa operar umoutro regime de discurso sobre a “verdade”, que encontre no pers-pectivismo sua divisa. Com efeito, denunciada a “inadequação” dalinguagem metafísica, em seu apelo ao ser, Nietzsche opõe o discur-so de Zaratustra, no qual “todo ser quer vir a ser palavra, todo vir-a-ser quer (...) aprender a falar” (EH/EH, Assim falava Zaratustra,§3). Afinal, é somente no registro do “perspectivismo”, do vir-a-serpróprio à efetividade, que a “verdade” poderá ser enunciada. EmPara além de bem e mal, Nietzsche esclarece: “Serão novos amigos

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da ‘verdade’ os filósofos do futuro? Muito provavelmente: pois atéagora todos os filósofos amaram suas verdades. Mas com certezanão seriam dogmáticos (...) ‘Meu juízo é meu juízo: dificilmente umoutro tem direito a ele’ – poderia dizer um tal filósofo do futuro.(...) o que pode ser comum sempre terá pouco valor” (JGB/BM§ 43). Vê-se que “verdade” aqui não encontra esteio na universali-dade. Não obstante, o perspectivismo nietzschiano não resvala emum “relativismo” perspectivo, na medida em que o filósofo toma avida por critério de avaliação dos juízos: “a falsidade de um juízoainda não é para nós nenhuma objeção contra esse juízo: é nisso,talvez, que nossa língua nova soa mais estrangeira. A pergunta éaté que ponto é propiciador da vida, conservador da vida, conser-vador da espécie, talvez mesmo aprimorador da espécie” (JGB/BM§ 4). Indo mais longe, ao ver do filósofo, é somente a partir de umalinguagem afinada aos processos dinâmicos da vida que se tornapossível expressar novas valorações para o tempo vindouro, em grausmais consoantes a uma vida ascendente.

Desse modo, pode-se, por fim, refletir em que medida a parresia,característica maior do cinismo grego, pode auxiliar Nietzsche aoperar um outro regime de enunciação da “verdade”. No registrocínico, ao perguntarem a Diógenes “qual a coisa mais bela entre oshomens, esse filósofo respondeu: ‘A liberdade de palavra’” (Laêrtios,VI, p. 169). Validamente, a parresia cínica pode ser compreendidacomo a franqueza e a liberdade da palavra para enunciar a verdadee se posicionar contra as imposturas do poder, a lisonja e os falsosproblemas filosóficos. Inscrita em uma filosofia moral, tal forma detransmissão da verdade é sempre articulada a um outro ethos doenunciador. Nesse aspecto, a aproximação da parresia cínica com afilosofia nietzschiana mostra-se assaz pertinente. Em Nietzsche, paraa filosofia do futuro, é a transvaloração dos valores que está colocadacomo tarefa. Além disso, se a parresia está sempre vinculada aohumor e ao riso, como melhor forma de enunciação da verdade, o

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uso que Nietzsche faz do riso, em seu potencial desestabilizadordas aspirações dogmáticas, não deixa de guardar, de certa forma,algum grau de parentesco com o recurso cínico. Com efeito, sãomuitos os exemplos nos quais os cínicos articulam o humor e a críti-ca ao nomos, entre eles é ilustrativo o episódio no qual “um serviçalque roubara uma taça do tesouro sagrado é arrastado pelos guardiãesde um templo” e, ao ver o fato, Diógenes profere: “os grandes la-drões arrastam o pequeno ladrão” (LAÊRTIOS, VI, p.163). Aqui,vê-se que o humor e desmascaramento das imposturas do poderinstituído mostram-se indissociáveis. De igual modo, são inúmerosos exemplos de uso do humor contra os falsos problemas filosófi-cos. Como visto, a filosofia platônica é um dos alvos freqüentes.

Na vereda aberta pelo cinismo, a filosofia experimentalnietzschiana faz uso do riso como recurso à crítica. Em Nietzsche, éa impossibilidade do riso, da postura irônica em relação a seus pró-prios posicionamentos, às suas perspectivas, a seus pontos de vista,que denuncia a estreiteza do filósofo. Não à toa, o filósofo alemãopode realizar uma hierarquia dos filósofos de acordo com a quali-dade de seu riso – “colocando no topo aqueles capazes da risadade ouro” (JGB/BM § 294). Pode-se conjeturar que somente a possi-bilidade de rir de si mesmo, em seu potencial desestabilizador, podepromover a abertura para a experimentação de uma nova gamaperspectiva. Com efeito, Nietzsche abre a Gaia Ciência com os se-guintes versos: “Inscrição sobre minha porta: Vivo em minha pró-pria casa / Jamais imitei algo de alguém / E sempre ri de todo mes-tre / Que nunca riu de si também”. Vê-se que o riso pode ser umantídoto contra o ater-se a um único ponto de vista, pode impedir oparalisar-se em um único viés perspectivo. Ora, ao contrário da“petrificação” perspectiva, é exatamente todo tipo de “andança peloproibido”, a adoção de perspectivas banidas pela moralidade deseu tempo e até mesmo certo flerte com a décadence, o que caracte-riza o experimentalismo nietzschiano. Experimentalismo sem o qual

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uma transvaloração dos valores não poderia ser realizada. Por isso,em Ecce homo, sobre sua “experimentação” da décadence, dizNietzsche: “está agora em minha mão – tenho mão para isso –transtrocar perspectivas: primeira razão pela qual para mim, somen-te, talvez, é possível em geral uma ‘transvaloração dos valores’” (EH/EH, Por que sou tão sábio, §1).

No âmbito da crítica à “vontade de verdade”, o riso apresentapotencial desestabilizador das aspirações dogmáticas. Em Para alémde bem e mal, Nietzsche ironiza: “supondo que a verdade seja umamulher – não seria bem fundada a suspeita de que todos os filóso-fos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco demulheres. De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência comque até agora se aproximaram da verdade foram meios inábeis eimpróprios para conquistar uma dama?” (JGB/BM, Prólogo). De fato,os dogmáticos entenderam pouco de “verdade”. A seriedade nãolhes permitiu a abertura à experimentação de novas perspectivas, ainsistência na adesão incondicional à “verdade” os condenou aodogma. Ora, o que Nietzsche desmascara e do que ele pode rir éque os dogmáticos tomaram por verdades “sólidas, canônicas, obri-gatórias” um “batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropo-morfismos, enfim, uma soma de relações humanas que foramenfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas” (VL/VM §1) e procuraram endereçá-las a algum ser no mundo. Nãoobstante, o que os dogmáticos nem ao menos imaginam é que aspi-ram à “verdade” porque o vir-a-ser lhes é insuportável. Em últimaanálise, nem sequer suspeitam que a “vontade de verdade” é o im-perativo de uma condição vital décadence, da qual não poderiamescapar: “É um auto-engano dos filósofos e moralistas pensar quejá saem da décadence ao fazerem guerra contra ela. O sair está forade sua força: mesmo aquilo que escolhe como remédio, como sal-vação, é apenas, outra vez, uma expressão de décadence” (GD/CI,O problema de Sócrates, §11).

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Não obstante, a nosso ver, a crítica de Nietzsche à décadencede seu tempo não resvala em um pessimismo ou niilismo suicidas.Ao contrário, ao denunciar a vontade de verdade como um “princí-pio destrutivo, hostil à vida” (FW/GC § 344) ou uma “velada von-tade de morte” (idem), o filósofo enceta sua tarefa de transvalora-ção dos valores e anuncia a necessidade de criação de novas valo-rações para o tempo vindouro, em graus mais consoantes a umavida ascendente. Com efeito, Nietzsche esclarece: “uma filosofia ex-perimental, tal como eu a vivo, antecipa experimentalmente atémesmo as possibilidades do niilismo radical; sem querer dizer comisso que ela se detenha em uma negação ou não, em uma vontadede não” (XIII, 16 (32)). Isso significa dizer que, longe de ater-seexclusivamente à demolição do ideário moderno, a filosofia a gol-pes de martelo não deixa de ser também um prelúdio a uma filoso-fia do futuro. Como bem apresenta o filósofo, somente uma vontadede criar pode impelir um martelo à pedra (Za/ZA, Nas ilhas bem-aventuradas). Ora, tal como os golpes de cajado dos cínicos tinhamtambém por intento a afirmação de um novo ethos, o martelonietzschiano tem por tarefa a transvaloração dos valores de seu tem-po. Em outros termos, a crítica de Nietzsche ao ideário modernonão o conduz a um “jogo infinitamente ligeiro com o nada”11 ou auma ironização absoluta das idéias, ante a impossibilidade da razãode sustentar quaisquer verdades. Ao contrário, ao apresentar a vidacomo critério de imposição de valores, o filósofo alia a enunciaçãoda “verdade” ao perspectivismo e coloca em jogo a emergência deum distinto conjunto de valorações, agora, em harmonia a uma vidaque cresce.

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Abstract: This paper aims to present the possible links between the gen-eral orientations of Greek cynicism and Nietzsche’s philosophy. Its goal isto point out how the cynicism helped Nietzsche in his critique. It is ana-lyzed some of the Nietzschean techniques of criticizing the “will to truth”,which partakes some characteristics of the cynical philosophy of Antiq-uity, as well as its further reception by means of irony.Keywords: cynicism – perspectivism – genealogy – will to truth

notas

1 No Crepúsculo dos Ídolos, vê-se que Nietzsche concordariacom Diógenes sobre o fato de Platão ser “enfadonho” eacrescentaria, além disso, “trapaceiro” e “covarde”: “Platãoé enfadonho. – Por último, minha desconfiança, com Platão,vai até o fundo: acho-o tão extraviado de todos os instintosfundamentais dos helenos, tão moralizado, tão preexisten-temente cristão – ele já tem o conceito ‘bom’ como concei-to supremo –, que, sobre o inteiro fenômeno Platão, euusaria antes a dura palavra ‘alta trapaça’ ou, se preferemouvir, idealismo – do que qualquer outra. (...) Na grandefatalidade do cristianismo, Platão é aquela ambigüidade efascinação, chamada ‘ideal’, que tornou possível às natu-rezas mais nobres da antiguidade o mal-entendido sobre simesmas e o primeiro passo na ponte que conduzia à ‘cruz’...E quanto de Platão há ainda no conceito Igreja, no edifí-cio, no sistema, na praxe da Igreja! – (...) Platão é umcovarde diante da realidade, conseqüentemente refugia-seno ideal” (GD/CI, O que devo aos antigos, §2).

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2 Sobre a identificação do “mundo aparente” à “realidade”,Marton esclarece que, na filosofia de Nietzsche, “em algu-mas ocasiões, (...) ‘verdadeiro’ ou ‘real’ é o domínio dosupra-sensível e ‘aparente’, o campo da experiência huma-na: é quando se aplica a criticar a distinção entre mundosensível e inteligível. Em outras, opera exata inversão nouso dessas expressões: ‘real’ é o mundo que se vive aqui eagora, e ‘aparente’, o que a ele se justapõe e se postulaerroneamente existir: é quando se dedica a explicitar suaposição a respeito dessas questões. Existem ainda aquelasem que afirma ser este mundo aparente e, por isso mesmo,o único real; é quando se empenha, a partir doperspectivismo, em deixar claro o que entende por conhe-cimento” (MARTON 5, p.185). Essa nota apenas procuraapontar que os usos dos termos “verdadeiro”, “real” e “apa-rente”, em Nietzsche, não são unívocos e figuram de mo-dos distintos, de acordo com o registro de discussão e aestratégia do filósofo.

3 Não podemos esquecer que Nietzsche, no Crepúsculo dosídolos, em “História de um erro”, afirma que com a expul-são do “mundo verdadeiro” ocorreu, também, a expulsãodo “mundo aparente”. Acompanhamos Müller-Lauter quan-do mostra como a concepção de mundo nietzschiana, emsua “insuprimível perspectividade” decorrente do plura-lismo da vontade de potência, pode levar à dissolução doproblema de sua suposta aparência: “Podendo-se falarapenas em mundos perspectivos, dissolve-se o problemade sua suposta aparência: ‘O mundo não é para nós ape-nas um resumir relações sob uma medida?’ A proposiçãoseguinte contém a resposta afirmativa: ‘Tão logo falte essaarbitrária medida, nosso mundo se derrete’. Se não há qual-quer ‘medida absoluta’, então não resta mais nenhumasombra de direito de se falar em aparência (Schein)”(MÜLLER-LAUTER 6, p.100).

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4 Lembramos de Deleuze, na Lógica do Sentido, ao opor aascese da alma platônica, como um “pássaro” que se elevaao mundo das idéias, às dobras do manto de Antístenes,Diógenes, infestadas de “carrapatos” e “piolhos” In:DELEUZE, G. Logique du sens. Paris, Minuit, 1969(Collection Critique).

5 Foucault, na História da Sexualidade, sobre o regime dosprazeres (aphrodisia), comenta: “o exemplo animal que tãofreqüentemente tinha servido para desqualificar os apeti-tes do homem pode, pelo contrário, constituir um modelode conduta. É que em seu regime sexual os animais se-guem as exigências do corpo, mas nunca nada a mais, nemnada de diferente, o que os conduz, explica Rufo, e por-tanto deve também guiar os humanos, não são os doxaimas “os prelúdios da natureza que necessitam de evacua-ção”. Assim também para Galeno os animais não são im-pulsionados para a conjunção sexual pela “opinião” – doxa– de que “o gozo é uma coisa boa”, eles só são levados àsrelações sexuais “para expulsar o esperma que o fatiga”(...) Tal é de fato a lição que Galeno retira do célebre gestode Diógenes: sem mesmo esperar a prostituta a quem ti-nha pedido para vir, o filósofo liberou-se a si próprio dohumor que o embaraçava: ao fazer isso, ele queria, deacordo com Galeno, evacuar seu esperma ‘sem buscar oprazer que acompanha essa emissão’” (FOUCAULT 3,p. 138-140).

6 Há quem possa objetar que falta aos cínicos uma filosofiada natureza, de modo a estabelecer as bases para umafilosofia moral, que não a negação do nomos que lhe servi-ria sempre de contra-face. Nesse aspecto, valeria a objeçãohegeliana de que o cinismo encontra problemas na medidaem que suas orientações morais encontram esteio naquilomesmo que deve negar, no nomos. Na mesma direção,Nietzsche, em Humano, demasiado humano, apresenta os

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cínicos, em termos de cultura, unicamente restritos à “ne-gação” das opiniões dominantes: “o epicúrio utiliza suacultura superior para se tornar independente das opiniõesdominantes, eleva-se acima destas, enquanto o cínico ficaapenas na negação” (MAI/HHI § 275).

7 De modo mais preciso, Nietzsche prefere o termo “efe-tividade”, ao uso do conceito “natureza”. Em O Anticristo,ao inscrever o conceito de natureza entre as “ficções” dareligião e da moral, no cristianismo, ele aclara ‘“depoisque o conceito natureza foi inventado como contra-concei-to para ‘Deus’, ‘natural’ tinha de ser a palavra para ‘repro-vável’ – aquele inteiro mundo de ficções tem sua raiz noódio contra o natural (– a efetividade! –), é expressão deum profundo mal-estar com o efetivo...’” (AC/AC § 15).Com efeito, podemos entrever certo “ranço metafísico” noconceito de natureza, seja quando remetido ao chamado“mundo natural” – ainda no registro de um dualismo demundos – ou mais diretamente quando usado em referên-cia a uma suposta “natureza humana”. Nessa passagem,ao optar por “efetividade”, Nietzsche procura marcar seuafastamento em relação à tradição metafísica.

8 Ao longo de sua obra, para referir-se ao dinamismo vital,Nietzsche faz uso dos termos impulso (Trieb), afeto (Affekt)e, por vezes, instinto (Instinkt), de modo intercambiável.O termo força (Kraft) Nietzsche faz figurar, de modo maiscorrente, na exposição de sua tese cosmológica. O concei-to vontade de potência (Wille zur Macht) aparece na obrapublicada e, em grande parte, em fragmentos póstumos.Em nossa argumentação, será utilizado somente o termoimpulso (Trieb), em uma acepção genérica, em referênciaaos processos da efetividade.

9 Embora não seja nossa intenção desenvolver mais esse con-ceito, em um fragmento póstumo, diz Nietzsche: “Que ovalor do mundo está em nossa interpretação (...) que as

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interpretações até agora existentes são avaliações perspec-tivas por meio das quais nós nos conservamos na vida, (...)que cada elevação do homem traz consigo a superação deinterpretações mais estreitas, que todo fortalecimento al-cançado a todo alargamento de potência abre novas pers-pectivas e faz crer em novos horizontes – isso percorremeus escritos. O mundo, que em algo nos importa, é falso,ou seja, não é nenhum fato, mas uma composição (Ausdich-tung) e arredondamento (Rundung) sobre uma magra somade observações. O mundo é ‘em fluxo’, como algo que vema ser, como uma falsidade que sempre novamente se des-loca, que jamais se aproxima da verdade – pois não existenenhuma verdade” (XII, 2 [108]).

10 Novamente aqui, acompanhamos Deleuze, na Lógica doSentido, ao considerar o bastão “comme instrument de toutedésignation possible” (DELEUZE 2, p. 159).

11 Cita-se aqui a afirmação de Kierkegaard, em sua disserta-ção sobre o conceito de ironia de 1841, tendo em vista aanálise de Paulo Arantes: “o jogo infinitamente ligeiro como nada a que se resume a ironia é um pouco a meditaçãoentre burlesca e melancólica ante o espetáculo da ruínamoderna cifrada na caducidade precoce das idéias”(ARANTES 1). O autor desenvolve longamente, no cená-rio alemão, a relação entre a consciência da nulidade dasidéias, a “autodissolução dos ideais”, e o “sentimento devazio” que daí advém. O mote “quando tudo se equivale,nada vale nada” indica que a meditação sobre a caducida-de precoce das idéias pode conduzir à suspensão da tesenatural da seriedade do mundo e, de igual modo, fazerdespontar o niilismo ante a percepção da instabilidade detodo e qualquer ideário.

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referências bibliográficas

1. ARANTES, P. E. Ressentimento da dialética. São Paulo:Paz e Terra, 1996.

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3. FOUCAULT, M. História da Sexualidade III: o cuidadode si (trad: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Graal, 7ªedição, 1985.

4. LAÊRTIOS, D. Vida e Doutrinas dos filósofos ilustres (trad:Mário da Gama Kury). Brasília: Editora UnB, 1988(Coleção Biblioteca Clássica UNB).

5. MARTON, S. Nietzsche: das forças cósmicas aos valoreshumanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG 2ª ed. 2000.

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9. ________. Crepúsculo dos ídolos. (trad: Paulo César deSouza). São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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11. ________. Genealogia da Moral (trad: Paulo César deSouza). São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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12. NIETZSCHE, F. Obras Incompletas. (trad: RubensRodrigues Torres Filho). Coleção Os Pensadores. SãoPaulo: Nova Cultural, 1999.

13. ________. O caso Wagner / Nietzsche contra Wagner (trad:Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia dasLetras, 1999.

14. SAFATLE, V. P. “Nietzsche e a ironia em música”. In:cadernos Nietzsche (21), São Paulo, 2006, p. 7-28.

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Friedrich Nietzsche: “idealclássico” e “ideal romântico”na tradição alemã

Luzia Gontijo Rodrigues*

Resumo: O presente artigo apresenta um panorama sobre a relação entrea cultura alemã e o ideal de grecidade, tal como este será instituído porWinckelmann em meados do século XVIII. Pretende-se estabelecer osvínculos do pensamento de Nietzsche sobre os gregos com essa tradição esimultaneamente esboçar a tese de que sua reflexão sobre a cultura esta-ria atravessada pelo mesmo conflito entre “ideal clássico” e “ideal român-tico” que alimentara a obra de toda uma linhagem de “grandes criado-res”, a partir de Winckelmann, aí incluídos Hölderlin, Goethe, Schiller eos irmãos Schlegel.Palavras-chave: cultura – romantismo e classicismo – estética – Grécia

O pensamento de Friedrich Nietzsche está fortemente marcadopela associação de seu nome ao fenômeno do dionisíaco e à críticada tradição filosófica e religiosa ocidental, especialmente como elase configura em Platão e no cristianismo. A farta divulgação de suafilosofia ao longo do século XX apenas serviu para reforçar umamística em torno desse pensador, comumente interpretado comosigno de contestação, crítica e não aceitação dos paradigmas vigen-

* Professora da Escola Guignard da Universidade Estadual de Minas Gerais.

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tes na tradição cristã ocidental. A partir dessa leitura dominante,torna-se quase impossível problematizar a identificação incontesteentre Nietzsche e a defesa do fenômeno dionisíaco ou entre sua crí-tica à cultura e a correlata recusa da filosofia socrático-platônica,crítica esta entendida de forma pouco nuançada, como defesa in-condicional dos instintos artísticos dionisíacos e como ataque à tra-jetória da razão na filosofia.

Em um texto sobre Nietzsche e o fenômeno do dionisíaco, MaxBaeumer faz um longo levantamento de artigos publicados ao longodas décadas de 1960 e 1970 nos EUA e na Alemanha, tanto emrevistas especializadas como naquelas dirigidas a um público maisamplo, sempre abordando o tema do par conceitual apolíneo-dio-nisíaco (Baeumer 1). A conclusão do autor serve-nos aqui de ilus-tração: mesmo sendo apreendido dentro de um amplo espectro defigurações, predomina sempre a identificação do dionisíaco às idéi-as de contestação ao sistema, de liberação da ordem instituída edos limites impostos ao indivíduo ou a uma determinada classe opri-mida, como chegaram mesmo a defender interpretes alemães quecontrapunham a dominação imposta pelo Estado à libertação ofere-cida pela idéia desse princípio ou força extática. O apolíneo serialido, nesse registro, como símbolo da opressão exercida sobre o in-divíduo por parte da racionalidade burocrática do status quo impe-rante nas sociedades marxistas do leste europeu e da própria Ale-manha, enquanto o dionisíaco traria a promessa de um elementoirracional revitalizador, saudado em nome da revolução cultural.

Concomitantemente a essa leitura política da contraposição deapolíneo e dionisíaco, predominaria, segundo o autor, aquela quemediria todos os produtos culturais de nossa época a partir de cita-ções extraídas da obra de Nietzsche, disseminando todo um voca-bulário e conceitos com os quais a arte extática dionisíaca passa aser designada e empregada como modelo de autenticidade, criativi-dade e renovação. O autor chama atenção para o fato de que o pró-

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prio Nietzsche teria contribuído para a disseminação dessa místicaque liga seu nome ao do deus da embriaguez quando, por exemplo,afirma reiteradamente ter sido apenas com ele que o fenômenomaravilhoso do dionisismo grego teria sido levado a sério (Baeumer1, p. 132-3)1. Não apenas isso, mas Nietzsche teria construído detal forma seu discurso em defesa da originalidade de suas teses eda ruptura que estas representariam na história da filosofia e mes-mo da cultura cristã ocidental, transformando em tarefa hercúleauma interpretação que vise a estabelecer seus vínculos com a tradi-ção e seus pontos em comum ou mesmo sua inserção no contextodos debates travados pelo Romantismo do século XVIII/XIX.

Baeumer conclui suas observações sobre a autopromoção deNietzsche, no que diz respeito à questão do trágico-dionisíaco, res-saltando dois pontos de especial interesse para leituras que preten-dam escapar do insistente lugar-comum de sempre associarNietzsche a rupturas e à crítica da tradição filosófica. Destaca tersido essa empresa tão brilhantemente conduzida pelo filósofo que,ainda hoje, pouco se conhece e divulga da pré-história do dionisía-co no século XIX e da força desse conceito para o primeiro Roman-tismo alemão (Baeumer 1, p. 133). Seu artigo toma a tarefa de fa-zer uma exposição da questão do dionisíaco-apolíneo partindo deWinckelmann, passando pelo embate entre defensores do clássicoe do romântico, até os mais ilustres contemporâneos e colegas deNietzsche. Nessa exposição, o texto demonstra que muito dos equí-vocos correntes que se perpetuam na leitura de O nascimento datragédia, deve-se ao descuido de não se inserir essa obra e suasquestões no debate travado na cultura alemã, especialmente desdeWinckelmann e ao longo do século XIX, em torno da cultura gregae de seu papel como modelo para a cultura alemã da época.

Pode-se acrescentar à observação de Baeumer sobre a bem-sucedida empresa de autopromoção levada a cabo por Nietzsche,que talvez tenha sido ela igualmente responsável pela pouca aten-

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ção dos pesquisadores ao que se poderia classificar de tendência eambição clássicas do pensamento do filósofo. O estilo de sua escri-ta, por vezes excessivamente teatral e sedutoramente literário, cer-tamente em muito contribuiu para sua fácil assimilação e larga di-vulgação, o que de forma alguma tornou mais compreensível eimediatamente acessível toda a complexidade de seu pensamento.Mais grave ainda do que isso, o arrebatamento produzido porNietzsche sobre seus admiradores parece ter produzido uma espé-cie de atmosfera sagrada em torno de seus escritos, por vezes impe-dindo mesmo uma investigação que questionasse ou contestasse osparadigmas com os quais aquela divulgação se disseminou. Esseparece em especial ser o caso da identificação quase inconteste en-tre o nome do filósofo e a afirmação do impulso dionisíaco. No en-tanto, não seria despropositado lançar a pergunta por que o séculoXX leitor de Nietzsche precisou tanto dessa imagem do filósofo re-belde à tradição e defensor do contra-ideal do dionisíaco?

Este artigo pretende lançar um breve olhar sobre a importânciada tradição germânica de reflexão sobre a cultura para o pensa-mento de Nietzsche. Devido aos limites a serem observados parauma publicação como essa, não será possível nem seria convenien-te pretender abordar cada nome de envergadura nesse contexto.Estarão excluídos, entre outros, os já muito discutidos Schopenhauere Wagner, os quais mereceriam certamente um estudo à parte, as-sim como Jakob Burckhardt, tema de dois textos de envergadurapublicados nestes cadernos Nietzsche (Large 12; Chaves 8). Impor-tante ressaltar ainda que o texto ora apresentado faz parte de umapesquisa maior sobre Nietzsche e a tradição filosófica, em cujo cen-tro encontra-se a tese que defende existir uma persistente “ambi-ção clássica” impulsionando o projeto nietzschiano para a cultura,“classicidade” essa em constante tensão com as tendências român-ticas do filósofo. Tal conflito, por sinal, seria mais um dos elemen-tos a unir Nietzsche a toda uma linhagem de pensadores que, de

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Winckelmann em diante, não apenas traça novos rumos para a his-tória do pensamento alemão como também define parâmetros iné-ditos para a filosofia e a reflexão sobre a cultura como um todo.

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Em um fragmento póstumo da primavera de 1888, que ressoa-rá depois no capítulo “O que devo aos antigos” de Crepúsculo dosídolos, Nietzsche critica Goethe e Winckelmann por não terem tidoolhos para o fenômeno dionisíaco grego, afirmando que o conceitode “clássico” que eles estabeleceram não apenas não esclarece oelemento dionisíaco como também o excluiria (XIII, 14 [35], daprimavera de 1888; GD/CI, O que devo aos antigos, § 4). ErnstBehler, em um texto sobre os vínculos entre Nietzsche e os irmãosSchlegel no que diz respeito à interpretação do dionisíaco, lembraque, no entanto, teria sido justamente Goethe em seu tempo de ju-ventude, na obra Wandrers Sturmlied, de 1772, um dos primeirosa exaltar Dioniso sob o nome de Bromius, enquanto Winckelmann,ainda antes disso, em sua Geschichte der Kunst des Altertums, de1764, teria feito a distinção entre Apolo e Baco por suas diferentesvisões estéticas (Behler 2, p. 336-7). Mais ainda, seria preciso con-siderar que desses autores e até Nietzsche se desenvolveu uma lon-ga linhagem de pesquisadores que, no contexto do Romantismo ale-mão, se debruçou sobre as temáticas correlatas do dionisíaco, doconfronto e aproximação entre Dioniso e Apolo, do drama ático esuas origens.

A percepção de Nietzsche sobre a importância do fenômeno dodionisismo grego deve ser considerada em relação a essa herançade sua cultura. Nietzsche teria seguido uma tradição do pensamen-to alemão que desaguaria no próprio Romantismo, entrelaçandonomes como os de Friedrich Ritschl, mestre de Nietzsche em Bonn,Erwin Rohde, seu amigo próximo, Richard Wagner, influência

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marcante em toda sua vida, assim como eminentes pesquisadores epensadores do porte de Johan Georg Harmann (1730-1788), doaluno deste, Johan Gottfried Herder e de Georg Creuzer. A obradeste último, Symbolik und Mythologie, em quatro volumes, de1810-1812, embora nunca citada explicitamente por Nietzsche, foratomada de empréstimo por ele à época da preparação de O nasci-mento da tragédia, em junho de 1872, da biblioteca da universida-de de Basiléia, encontrando-se ainda hoje entre os livros de seuacervo pessoal em Weimar (Baeumer 1, p. 142).

Na verdade, teria sido justamente J. J. Winckelmann (1717-1768), o afirmador do pensamento clássico e dos ideais clássicosna Alemanha do século XVIII ainda fortemente marcada pelo irra-cionalismo espiritualista pietista, por um lado, e pela reação do Lute-ranismo contra a força de atração do pensamento humanista latino,por outro (Bornheim 5), quem cunhou a máxima “nobre simplici-dade e calma grandeza”, exatamente em contraposição ao dionisía-co. Em sua obra Gedanken über die Nachahmung der griechischenWerke, de 1755, ele defende tal princípio estético de nobre distan-ciamento em oposição a Parentirsus, como ele o chama, em oposi-ção às “violentas paixões”, em seu excesso desmedido e selvagem(Baeumer 1, p. 134; Winckelmann 23, p. 53-54).

Referindo-se à escultura grega Laocoonte, Winckelmann fará adefesa do princípio que, segundo ele, distinguiria as obras gregasem sua nobre simplicidade e serena grandeza, tanto na atitude comona expressão. “Assim como as profundezas do mar permanecemsempre calmas, por mais furiosa que esteja a superfície, da mesmaforma a expressão nas figuras dos gregos mostra, mesmo nas maio-res paixões, uma alma magnânima e ponderada”, justamente essaalma revelada na fisionomia de Laocoonte, e não somente na face,em meio ao mais intenso sofrimento. Não apenas na face, frisa ele,mas em todo seu corpo contraído de dor, mas que não manifesta aviolência própria esperada em tal extremo sofrimento. E mais adi-

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ante acrescenta: “todas as ações e atitudes das figuras gregas quenão possuíam este caráter de sabedoria, mas eram por demais fo-gosas e violentas, incorriam num defeito que os pintores da Anti-güidade chamavam de Parentirsus. Quanto mais calma é a atitudedo corpo, tanto mais apta está para mostrar o verdadeiro caráter daalma (...) a alma se reconhece mais facilmente e é mais característi-ca em paixões violentas; mas ela é grande e nobre no estado deharmonia, no estado de repouso” (Winckelmann 23, p. 53-4)2.

Em sua obra Geschischte der Kunst des Alterthums, de 1764,Winckelmann avança ainda mais para uma conceituação e contra-posição do apolíneo e dionisíaco que fará dele, à revelia do reco-nhecimento explícito de Nietzsche, um dos precursores de O nasci-mento da tragédia. Ele estabelece dois tipos ideais mais elevadosda beleza grega: Apolo seria “o mais elevado conceito da juventudemasculina ideal” e Dioniso estaria associado à sexualidade femini-na, à irrupção primaveril da natureza e a um ideal de beleza sexualhíbrida. Segundo Baeumer, Winckelmann teria sido o primeiro, ain-da antes de Schelling ou Nietzsche, a exprimir uma conceituaçãopsicológico-estética do par apolíneo-dionisíaco e a conduzir estaoposição para a esfera das considerações estéticas (Baeumer 1,p. 134-5). Mais ainda, precisamos olhar para Winckelmann comoo desbravador da grecidade para o pensamento alemão e, extra-polando a Alemanha, como o afirmador do conceito de clássico vol-tado para a arte e cultura gregas e não mais, como ocorrera atéentão, firmado sobre Roma e a interpretação romana e latina daarte grega.

A idéia de que a arte grega dos séculos IV e V a.C. traduziria oideal do clássico, este entendido como ideal de perfeição digno deser imitado, surgiu em Roma no primeiro século de nossa era. Nes-se momento, pela primeira vez na história da arte, estilos são repro-duzidos e obras copiadas para adornar jardins e salas da burguesiaromana, produzindo um efeito de deslocamento da obra de arte

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que será reencontrado apenas mais tarde com a sua incorporaçãopela economia de mercado, em expansão no século XVI. A maiorparte da estatuária dita grega que chegará até a modernidade é decópias romanas de originais gregos, executadas sob encomenda, coma finalidade de serem apreciadas. A imagem é retirada do contextoprático para o qual fora concebida, geralmente vinculado a rituaisreligiosos ou a festividades civis comemorativas de acontecimentosimportantes para a cidade, passando a ser admirada e desejada porsua beleza e fama (Gombrich 11, p. 103-28; Fabris 9). Inaugura-se uma visão da Antigüidade como referência estética para um ide-al de beleza inspirada em Roma e sua interpretação da arte grega,passando pelo Renascimento italiano e indo até o início do séculoXVIII. Roma passa a ser o principal museu da Europa, e suas ruí-nas a oferecer inspiração para gerações de artistas que nela se ins-talam para estudar viver.

O exemplo de Giambattista Piranesi (1720-1778) é significa-tivo. Formado em arquitetura em Veneza, ele se estabelece em Romaem 1744 e passa a divulgar a imagem dessa cidade para toda Eu-ropa, apresentando suas ruínas como vestígios de grandeza domilenar e extinto império. Sua obra gozava de larga reputação edefendia a glória da cidade, fazendo apologia da grandiosidade daarte romana barroca e da monumentalidade do passado históricode Roma. Em obras como Antichità Romane, de 1756 e DellaMagnificenza ed Architettura dei Romani, de 1761, Piranesi pro-punha a criação de um novo estilo inspirado na arquitetura roma-na, recusando a tese da filiação grega da arte romano-italiana. As-sim que termina suas Reflexões3, em 1755, Winckelmann vai paraRoma, onde deparará com um contexto de exaltação da arte antigaque tinha ao centro uma figura como Piranesi, fato que o conduziráa se colocar na defesa veemente da tese de que não era possívelcompreender os romanos sem os gregos (Bornheim 6, p. 13-4; Fa-bris 9, p. 290). Winckelmann marca um novo momento no debate

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sobre o classicismo, na medida em que com ele surge uma “verda-deira ciência do clássico” (Fabris 9, p. 272; Silk & Stern 22, p. 4ss.). Clássico e classicismo têm suas definições circunscritas nessemomento, justamente em torno da disputa travada entre os defen-sores do modelo grego e os do modelo romano.

Como se trata aqui da leitura de Nietzsche e de sua “invenção”do par conceitual apolíneo-dionisíaco colocados no contexto de uma“ambição clássica”, Winckelmann e sua defesa do clássico se tor-nam objetos de especial atenção. Tem-se em vista a tese de quetambém o autor de O nascimento da tragédia alimentará, ao longode sua vida, a persistente ambição de oferecer para a cultura deseu tempo um modelo de educação (Erziehung; Bildung) fundadoem princípios clássicos, a partir da lição grega. Cabe lembrar a de-fesa feita por Winckelmann da linha simples, do contorno nobre;sua identificação das criações gregas como exemplos de “uma no-bre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude como naexpressão”, assim como sua concepção da alma como um terrenosujeito a violentas paixões, que apenas se torna grande e nobre noestado de harmonia e repouso (Winckelmann 23, p. 53-4). Todasprecisam ser contextualizadas como parte da luta por ele empreen-dida contra o barroco, estilo visto como uma forma de degeneraçãoda arte clássica (Bornheim 6, p. 14).

Um primeiro sinal de afinação entre o defensor do clássico eNietzsche se encontra logo no início de Reflexões sobre a arte anti-ga, quando seu autor defende a “formação do bom gosto”, comouma lição grega a ser apreendida pelo presente, uma lição que osgregos legaram através de sua arte, mas que diria respeito à criaçãoda excelência humana e grandeza da cultura como um todo. Umatarefa de titãs, assegura o autor, é conquistada não na imitação dasobras, produzindo-se meras cópias menores, mas sim imitando aatitude, pois “o único meio de nos tornarmos grandes e, se possí-vel, inimitáveis, é imitar os antigos”. Tomando o corpo como refe-

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rência de um ideal de unidade e perfeição em oposição à impossi-bilidade de seu tempo presente para alcançar “uma mais nobre li-gação das partes, uma plenitude mais acentuada, sem as tensõesproduzidas pela magreza, sem as concavidades e as depressões dosnossos corpos modernos” (Winckelmann 23, p. 46), Winckelmannergue seu ideal de excelência nobre como a grandeza que reúneperfeição física e força moral heróica:

A influência de um céu sereno e puro se fazia sentir nos gregos desdea mais tenra idade, mas os exercícios físicos, praticados em boa hora,davam forma nobre à sua estrutura corporal. Tome-se um jovemespartano, posto no mundo por um herói e uma heroína, que jamais nasua infância esteve apertado por cueiros, que a partir dos sete anos dor-miu no chão e desde sua infância foi treinado na luta e em natação.Coloque-se ao lado dele um jovem sibarita de nossa época e julgue-seem seguida qual dos dois o artista escolheria para modelo de um jovemTeseu, de um Aquiles ou mesmo de um Baco. Um Teseu segundo o mo-delo moderno seria um Teseu entre rosas; feito segundo o modelo antigoseria um Teseu entre músculos, segundo o julgamento expresso por umpintor grego sobre duas representações diferentes deste herói (Winckel-mann 23, p. 41).

Percebe-se mesmo em um pequeno trecho como esse o quantotal ideal de perfeição estética estaria fortemente impregnado porvalores morais, se entendemos estes como guias para a ação huma-na e estruturas norteadoras da cultura. O belo, seja o percebido nanatureza seja o produzido pelo artista, expressaria uma hierarquiade valores em cujo topo se encontraria a vida heróica marcada, porum lado, pelo agón e, por outro, pelo poder da inteligência. Todojovem grego, acrescenta o autor, tinha nos grandes concursos umpoderoso estímulo para os exercícios corporais, existindo mesmoleis que prescreviam a preparação de dez meses para os jogos Olím-

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picos. O objetivo maior era o de se igualar ao modelo do divinoDiágoras. A comparação com sua época salta aos olhos: em lugarde estímulo para alcançar nobres ideais; em lugar das rígidas pres-crições da lei e da exigência de perfeição, encontramos a imagemda corrupção de uma juventude descrita como “sibarita”. Síbarisera uma antiga cidade da Magna Grécia da qual se dizia que, porser dominada pelo excesso de riqueza, viu seus habitantes entre-gues a todo tipo de desregramentos, à indolência e voluptuosidade.No entanto, diz-nos Winckelmann: “examinai o jovem grego perse-guindo o cervo numa corrida veloz: seu corpo ágil, nervos e múscu-los flexíveis, estrutura leve!” (Winckelmann 23, p. 40-1).

Deve-se ter em vista o fato de que Winckelmann escreveu suasReflexões como uma espécie de manifesto em defesa de um idealclássico fundado na grecidade, mas também como um panfleto con-tra o gosto barroco e um de seus maiores divulgadores, o escultor earquiteto italiano Bernini. O efeito fora alcançado, pois o autor doescrito passa a ser reconhecido, a partir dele, como o nome domovimento anti-barroco na Europa (Bornheim 6, p. 13). Um dosargumentos do defensor do clássico contra o artista italiano era ode que ele se equivocava profundamente ao acreditar que o proces-so de criação artística e seu aprendizado deveriam provir da natu-reza, quando, na verdade, defendia ele, nesta o artista encontraráapenas dispersão e ausência de formas definidas.

Em lugar do olhar voltado para a natureza, pretendido pelo ar-tista barroco, “os conhecedores e imitadores das obras gregas en-contram em suas obras-primas não somente a mais bela natureza,mas mais ainda do que a natureza”. Nesta depara-se apenas com adispersão e a indefinição de contornos, enquanto nas grandes obrasda estatuária grega o artista poderá encontrar “a inteligência quedesenha”, a realização do longo e penoso caminho que alcança aunidade em meio à dispersão e à multiplicidade. Em lugar da natu-reza, que não pode ensinar a concentração de objetivos e a conten-

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ção de possibilidades em uma síntese harmoniosa, a imitação dasobras gregas seria o que permitiria um rápido e fundamental apren-dizado para a cultura e a afirmação do indivíduo autônomo e cria-dor, já que nelas o artista encontraria tanto a soma do que estariadisperso na natureza quanto o ponto pelo qual esta pode elevar-seacima de si mesma, com coragem e sabedoria (Winckelmann 23,p. 40-8).

Compreende-se assim a extensão do combate empreendido porWinckelmann contra o ideal barroco de uma arte livre dos ditamesimpostos pelo modelo de beleza calcado em obras da Antigüidade.O olhar voltado para a natureza, pregado por Bernini, significava,no contexto do barroco, o repúdio à contenção imposta pelas nor-mas clássicas. Para o seu crítico alemão, esse olhar implicava o aban-dono justamente de um aprendizado pelo qual o homem é conduzi-do a “pensar e conceber com firmeza” (idem, p. 48), aprendizadoesse insistentemente associado por ele ao “domínio do nobre contor-no”, ao respeito pelo traçado dos nítidos limites (idem, p. 49-52).Segundo o autor das Reflexões, aquilo que, através da arte, torna-seinstrumento para a elevação do humano é conquistado exemplar-mente quando o artista constrói sobre essa base de firmeza, permi-tindo que a regra grega da beleza passe a guiar sua mão e seussentidos: “As noções da Antigüidade sobre o todo indiviso e doperfeito na natureza se purificarão e tornarão mais sensíveis para oartista as noções do dividido em nossa natureza. Descobrindo assuas belezas, saberá então ligá-las ao belo perfeito e, com auxíliodas formas sublimes, sempre presentes a seus olhos, ele se tornaráuma regra para si mesmo”. Com o legado da cultura, construiráregras para si próprio, descobrirá em suas obras de arte exemplodo domínio sobre a dispersão que dela extrai unidade, regra, dese-nho, projeto. Citando Miguelangelo, Winckelmann oferece-nos, emuma sentença, o objetivo para-além-do-estético de seu manifestosobre a estética grega. A natureza deve estar a serviço da cultura e

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nela o artista deve buscar apenas o seu caminho para se tornar elemesmo, pois “aquele que constantemente se põe a reboque de ou-tros, nunca chegará em primeiro lugar e quem não sabe produzirnada de bom por si mesmo não saberá também aproveitas as cria-ções alheias” (Winckelmann 23, p. 48).

A insistência de Winckelmann em contrapor dois tipos de apren-dizado artístico, um que lança o olhar para a natureza, e o outroque se dirige às obras gregas, extrapola de forma evidente a esferado puramente artístico, deixando-nos entrever sua preocupação coma problemática da cultura e da formação humana, através dessa.Fazer a defesa da imitação dos antigos não significa para ele pregara cópia de obras de arte ou de métodos artísticos – como se poderiapensar –, mas sim defender um modelo de educação, pela arte,para se alcançar os mais altos ideais da excelência humana, os quegarantem, para além dos talentos individuais, a verdadeira indivi-dualidade autônoma, com o domínio sobre as infinitas possibilida-des oferecidas pela natureza. Para além do talento individual doartista, o gosto pela Antigüidade pode oferecer a ele algo semelhan-te ao que Rafael alcançara no seu aprendizado por meio dela, tor-nar-se possuidor de uma certa “transformação química”, capaz detornar mesmo a imitação da natureza comum em um produto seu,submetido à suas mais próprias leis. Assim, o processo educativo-artístico seria distinguido por redimir a natureza do que nela é ocomum e a indiferença, imprimindo-lhe o selo do único, do ser doartista, de sua alma (Winckelmann 23, p.48-9).

Antecipando a contraposição tornada explícita em sua obra se-guinte, História da arte da Antigüidade (Winckelmann 24; Baeumer1, p. 134-5), de 1764, Winckelmann já nos deixa entrever clara-mente nestas Reflexões o lugar do par apolíneo-dionisíaco para suainterpretação da cultura, quando insere o conceito de Parentirsus,em oposição ao efeito almejado e alcançado, segundo ele, pelo es-cultor do Laocoonte. Essa escultura serve-lhe como exemplo do que

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até aqui ele vinha defendendo ser a “nobre simplicidade e grande-za serena” próprias da arte grega, a qual mostraria inevitavelmentefiguras cuja expressão sempre evidenciaria, mesmo nas maiorespaixões, uma alma magnânima e ponderada. Ainda que trucidadopor serpentes marítimas, junto a seus filhos, o sacerdote de Apoloseria mostrado pelo artista com uma fisionomia que, apesar do so-frimento intenso, revelaria aquela magnanimidade de alma. E nãosomente sua fisionomia nos daria esse testemunho, “a dor que serevela em todos os músculos e tendões do corpo e que, se não exa-minarmos a face e outras partes, cremos quase sentir em nós mes-mos, à vista apenas do baixo ventre dolorosamente contraído, estador, digo, não se manifesta por nenhuma violência, seja na face ouno conjunto da atitude” (Winckelmann 23, p. 53).

A dor do corpo e a grandeza da alma mantêm aqui, aos olhosde Winckelmann, um equilíbrio no todo, repartidas que estão comigual vigor, mas sobretudo expressando o poder do auto-domíniosobre os mais dilacerantes sofrimentos, em oposição àquelas figu-ras cujas ações e atitudes eram por demais fogosas e violentas, in-correndo em um defeito denominado como Parentirsus pelos pinto-res da Antigüidade. Este expressaria todas as posições que seafastam demais da do repouso, nas quais a alma não se encontrariano estado que lhe é mais próprio, mas sim tomada por um estadode violência e constrangimento. Essa é justamente a crítica passívelde ser estendida aos artistas de sua época, salienta Winckelmann,quando eles considerassem o efeito grandioso e apenas soubessemexaltar, em suas obras, atitudes e ações extraordinárias, acompa-nhadas por um “ardor sem medida”. O domínio sobre as paixõesmais violentas, sobrepujar o efêmero para atingir aquela “nobre sim-plicidade e serena grandeza” ensinada pelos gregos, isso exige tempoe maturidade. Um feito alcançado apenas pelos grandes mestres,como vemos em Rafael (Winckelmann 23, p. 53 ss.).

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Após essa breve exposição sobre Winckelmann e a defesa doclássico, um ponto que precisa ser colocado em destaque é o lega-do de suas reflexões para a leitura que Nietzsche faz dos gregos,sobretudo para sua crítica da cultura de seu tempo. Ambos os pensa-dores estão irmanados tanto nessa crítica quanto no desejo de ofe-recer a sua época um modelo superior de cultura. Sem dúvida, po-der-se-ia dizer o mesmo de uma série de outros pensadores alemãesnesse período que compreende da defesa do clássico por Winckel-mann até a crítica de Nietzsche ao Romantismo. Cabe insistir naaproximação entre esses dois, pois se pretende exatamente perseguiro projeto clássico de Nietzsche, o qual revela escassos porém ine-quívocos sinais de sua acordança com as preocupações de Winckel-mann. No entanto, não foi apenas sobre Nietzsche que a força deste“inventor da grecidade” exerceu seu enorme poder de sedução,tendo sido enorme sua influência sobre Lessing, Goethe, Hölderlin,Herder e mesmo, uma geração depois, sobre Friedrich Schlegel,segundo este mesmo o reconhece, um tributário da concepção dehistória da arte criada por Winckelmann (Silk & Stern 22, p. 6).

O ideal grego fundado por este pesquisador implicava uma con-cepção do conhecimento sobre a Antigüidade, sobre o passado deforma mais ampla, que carregava em si uma rejeição a toda formaerudita de fazer ciência, restrita ao detalhismo técnico e dedicadaao acúmulo de saber. A ciência da Antigüidade, tal como esse estu-dioso a cria, busca meios de acesso ao passado pela reconstituiçãode todos os aspectos da vida, interpretando o termo “estética”(Ästhetik) como uma forma de saber que abarca e aspira à totalida-de da vida, como uma verdadeira “filosofia da vida como uma tota-lidade”. Será a partir de tal parâmetro e dentro dessa esfera amplia-da de intersecção entre vida e pensamento que surgirão, por exem-plo, Richard Wagner e seu interesse pela revolução da culturaatravés da arte, assim como Schiller e sua proposta da educação

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estética do homem, cujos reflexos podem ser percebidos em especialna obra de juventude de Nietzsche e em sua relação com a filologia.

Apenas a título de exemplo, poderíamos acompanhar os relatosfeitos por este a seus amigos mais próximos, em cartas que atraves-sam o período que vai entre seus estudos em Leipzig com Ritschl esua experiência como professor dessa disciplina na Universidadede Basiléia, nas quais deparamos com a insatisfação do então filó-logo com a forma limitada e compartimentada dessa ciência de suaépoca lidar com a Antigüidade, em especial com a grecidade (Born-mann 7). Ao contrário disso, Nietzsche expõe através de relatos apai-xonados sua “ambição a uma ciência da totalidade”, na qual filoso-fia e arte estejam irmanadas para, em um só movimento, criar oquadro de uma totalidade harmoniosa que, paradoxalmente, deve-ria conservar as tensões próprias à complexidade de seu objeto, oqual nada mais seria do que a vida como um todo.

Se a “cultura de especialistas”, o filisteísmo moderno, se apos-sou da ciência da Antigüidade pretendendo escavar aí minúcias dig-nas de uma topeira voraz por deglutir porções de vermes pululantes,sempre indiferentes aos verdadeiros e mais sérios problemas daexistência, a ciência da Antigüidade ambicionada e defendida porNietzsche deveria, ao contrário, pretender a investigação que con-duza a uma “formação para a totalidade”: “nós não queremos ne-gar que aos filólogos falta aquela visão total da Antigüidade queeleva [jene erhebende Gesammtanschauung des Alterthums], porqueeles se posicionam perto demais do quadro e examinam uma man-cha de tinta em vez de admirar e – mais do que isso – desfrutar dosgrandes e ousados traços da pintura como um todo. Quando enfimpodemos desfrutar de uma forma pura nossos estudos da Antigüi-dade, dos quais nós sempre falamos infelizmente tanto?” (Nietzsche15, carta a Gersdorff, KSB II, p. 208-212)4. A demanda insistente-mente repetida por Nietzsche nessa época – inclusive explicitadaem sua aula inaugural na Universidade de Basiléia, intitulada “Ho-

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mero e a filologia clássica” (Nietzsche 18, vol III, p. 155-74) –por uma forma renovada de aproximação da Antigüidade, ou seja,da grecidade, nada mais faz do que insistir no ideal criado porWinckelmann, unindo em uma só ciência estética, moral, psicolo-gia e filosofia em um só movimento.

Apesar da insistência aqui na necessidade de uma leitura maisminuciosa da inserção de Nietzsche nessa linhagem do pensamentoalemão, sabe-se que sua dedicação ao tema da cultura surgeexplicitada já em sua primeira obra sobre os gregos, no início dadécada de 1870, um momento em que predomina a força de doisgrandes românticos sobre seu pensamento e sua vida: ArthurSchopenhauer e Richard Wagner. Uma leitura da obra de juventu-de de Nietzsche que nela busque evidenciar os traços – ainda queprematuros e pouco nítidos – de um projeto para a cultura já carre-gado de ambição clássica, não pode ignorar a influência destes e aforça gravitacional poderosa do ideal romântico através deles ex-pressa. Não sendo o interesse aqui abordar os dois nomes, já tãoamplamente estudados pelos intérpretes da obra de juventude deNietzsche, seria pertinente uma breve apresentação do contexto his-tórico do pensamento alemão da época, no qual ambos estão inseri-dos, assim como o próprio autor de O nascimento da tragédia.

Um primeiro ponto digno de destaque seria o embate espiritualvivido pela cultura alemã desde Lutero, e exatamente por conta dasua influência, entre a latinidade e a grecidade. Como lembraBornheim em seu estudo introdutório à leitura de Winckelmann, aforte oposição do reformador alemão ao humanismo latino será umgrande empecilho à revolução Renascentista, adiando essa retomadados antigos no seio da germanidade. A índole anti-humanista da Re-forma com sua forte inclinação irracionalista de apelo sobrenatural,enfatizando a contraposição e mesmo incompatibilidade entre razãoe natureza, contribuirá para o isolamento da cultura alemã e para osentimento de sua inferioridade. Segundo o comentador da obra de

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Winckelmann, precisamos colocar sob essa perspectiva a grande ta-refa a que este estudioso se propõe, a de contribuir para a reinte-gração de sua cultura no cenário europeu, assim como de oferecerum modelo para sua elevação e distinção (Bornheim 6, p. 7-8).

Como se viu pelas análises do próprio Bornheim e na interpreta-ção dada aqui ao escrito de Winckelmann, o aspecto polêmico einovador deste consistiria exatamente em oferecer uma nova con-cepção da Antigüidade clássica e de formação (Bildung) voltada paraa Grécia, e em defender a importância de seu influxo sobre a culturaeuropéia, em especial sobre a Alemanha. De fato, resume Bornheim,“antes de Winckelmann, por maior que tenha sido nos países lati-nos a preocupação com os gregos, pode-se afirmar que toda a cul-tura aquém dos Pirineus permaneceu sob o signo de Roma, e issodesde a Renascença até o Barroco. Característica fundamental per-manece, devidamente glosada a contribuição cristã, a coincidênciada Humanitas com a Romanitas. Mesmo antes da Renascença, du-rante mais de mil anos, Roma mantém-se como centro do Ociden-te, seja do ponto de vista católico-romano, seja do ponto de vista dohumanismo clássico, ciceroniano”. Graças a Winckelmann, pelasegunda vez a Renascentia Romanitatis seria impossível na Alema-nha (Bornheim 6, p. 8-9).

Irmanados na mesma busca de Winckelmann, estão dois ou-tros grandes nomes do embate em torno da questão da cultura naAlemanha do século XVIII e XIX: J. G. Herder (1744-1803) e J.W. Goethe (1749-1832). Bornheim situa o primeiro como o que,juntamente com Winckelmann, fornecerá ao classicismo alemão oseu ideal estético (Bornheim 6, p. 10). Sabe-se, no entanto, quetanto esse como Goethe têm uma trajetória que revela o quanto, nocaso da Alemanha, é difícil contrapor de forma absoluta ímpeto ro-mântico e ideal clássico. Isso explica o fato de os nomes de Goethee Herder estarem unidos na origem do primeiro Romantismo ale-mão, mais especificamente no Sturm und Drang, uma das primeiras

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manifestações importantes da cultura alemã. Teria sido justamenteHerder quem chamara atenção do jovem Goethe para a necessidadeda valorização da tradição germânica, desviando seus olhos da artefrancesa ao apontar o exemplo da catedral gótica de Estrasburgo,associando este estilo ao autenticamente germânico (Bornheim 5)5.Em 1773 Goethe escreve um ensaio intitulado Da arquitetura ale-mã, dedicado a Ervino von Steinbach, arquiteto da catedral, exal-tando a organicidade do estilo gótico e celebrando a catedral comoas bodas da natureza e da história (Bornheim 5, p. 82).

Mesmo que de forma breve, torna-se importante destacar a in-terpretação de Herder para a História, e sua concepção da poesiaditirâmbica. Aluno e amigo de J. Georg Hamann (1730-1788), se-gundo Bauemer ele será influenciado pela tese desse autor, a deque não se pode construir uma metafísica das belas artes sem seadentrar nos Mistérios Eleusinos, ao centro dos quais aparecem,para Hamann, as divindades Ceres e Baco. Herder partiria desseprincípio para afirmar a poesia ditirâmbica como uma nova poesianacional, oferecendo a primeira motivação psicológico-afetiva dapoesia na literatura alemã. Assim como seu mestre, ele conceituariaa poesia dionisíaca como “paixões do abismo da alma”, seu cântico“repleto da linguagem sensual e bestial do vinho, e do vinho ergue-se novamente a uma certa linguagem sensual e mística dos deu-ses”, sua essência sendo “aquela ampliação (Ausbreitung) da alma,a qual subsiste em Parenthyrsus da embriaguez e da contemplação(Beschauung) das coisas divinas” (Baeumer 1, p. 135, citandoHerder). Da mesma forma que Hamann, Herder vê a poesia dioni-síaca das danças selvagens (Rasen wilder Tänze) como derivação doculto da natureza, revelando-nos nesse ponto sua inegável proximi-dade com as descrições feitas por Nietzsche do dionisíaco em Onascimento da Tragédia. Não se pode, todavia, concluir uma influ-ência direta, mesmo considerando que Nietzsche se refere a ele comfreqüência (Baeumer 1, p. 136).

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Semelhante à interpretação irracional-extática da poesia cons-truída por Herder em conexão com Baco, Goethe já havia exaltadoDioniso em 1772, em Wandrers Sturmlied, sob o nome de Bromius,como o gênio poético do século. Apesar disso, Dioniso ganha seusentido pleno na poesia do Romantismo apenas com Hölderlin eNovalis, nos quais o deus aparecerá como fonte de inspiração poé-tica e do despertar da vida através dos poetas (Baeumer 1, p. 136)6.No que diz respeito a Hölderlin, deve-se atentar para o fato de suavisão idílica da grecidade, herdada de Winckelmann, ter avançadopara além deste ao reconhecer nessa cultura a harmonia como fru-to da conciliação de forças opostas, trazendo à tona uma então iné-dita apreciação pela profundeza escura do abismo grego, ao qualNietzsche mais tarde associará o nome de Dioniso. A ênfase do po-eta no caráter único dessa cultura por ter logrado uma síntese entreo material e o espiritual, assim como na crítica a sua época cris-tianizada pela perda de tal referência, estaria certamente em acor-do com a leitura feita por seu antecessor, pois também paraWinckelmann a Cristandade seria responsabilizada pela quebra deuma harmonia outrora vitoriosa. Todavia, a complexidade percebi-da pelo poeta como subjacente à nobre serenidade e à bela formagregas era ignorada pelo pesquisador e propagandista do ideal clás-sico grego (Silk/Stern 22)7.

É preciso considerar toda essa ampla tradição de pesquisa, an-terior a Nietzsche, dirigida para a grecidade e abordando os nomesde Apolo e Dioniso, inclusive para que se avalie mais adequada-mente a dimensão da estética metafísica de O nascimento da tragé-dia e suas implicações maiores no persistente projeto nietzschianode educação e formação (Erziehung; Bildung). Muito dessa pesqui-sa era publicada e difundida por meio de obras que são hoje consi-deradas “pseudocientíficas” e que circulavam principalmente entrefilólogos da Antigüidade clássica e estudiosos das religiões e da mito-logia, formando um quadro da “ciência romântica” da Antigüidade.

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Destacam-se aqui nomes como os de Georg Creuzer (1771-1858),de Joseph Görres (1776-1848), do filósofo romântico da natureza,G. H. Schubert , do então muito conhecido teólogo Ferdinand C.Baur, de Karl Otfried Müller (1797-1840), e do professor de Direi-to de Basiléia, Johann J. Bachofen (1815-1887), isso para citarapenas alguns autores de destaque nesse cenário (Baeumer 1).

Em 1808 o filósofo romântico-místico G.H. Schubert publica aobra Ansichten von der Nachtseite der Naturwissenschaft, na qualdefende a origem dos Mistérios dionisíacos na mitologia indiana eegípcia, celebrando-os como unificação de todas as forças da des-truição e da criação, da vida e da morte. A obra pretende oferecera seus contemporâneos românticos o resultado de sua visão dosMistérios de Dioniso como uma “nova religião da nostalgia da mor-te (Todessehnsucht), renascimento e imortalidade”. Apenas dois anosapós a publicação dessa obra, Joseph Görres descreverá a origemdo mundo e o desenvolvimento dos povos como uma peculiarepifania dionisíaca de procriação e nascimentos. Em Mythengeschi-chte der asiatischen Welt, ele dirá que o movimento vitorioso de ex-pansão do dionisismo da Índia para a Grécia mostra a expansão detodos os Mistérios e todas as religiões do oriente para o ocidente.Sua obra foi dedicada a Georg Creuzer, filólogo e pesquisador dosmitos, que havia publicado em 1807 uma pesquisa na mesma tra-dição de Schubert, tentando deduzir a religião dionisíaca grega e osMistérios órficos do oriente, da Índia e do Egito, onde a bem-aven-turança da morte seria um teorema dos mistérios báquicos.

Em sua obra mais importante, Symbolik und Mythologie der altenVölker, besonders der Griechen, em quatro volumes, de 1810-12,Creuzer faria uma tentativa fantástica de estabelecer uma ligaçãohistórico-cultural demonstrando que toda a mitologia e simbólicado ocidente, e sobretudo dos gregos, derivava diretamente dos cul-tos de Dioniso e dos Mistérios originários, segundo sua pesquisa,na Índia, Ásia menor e Egito. O terceiro volume dessa obra, que

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teve imenso sucesso e inúmeras edições e traduções (Baeumer 1,p. 142)8, era inteiramente dedicado às religiões báquicas, que ex-pressariam na linguagem grega todos os mitos dionisíacos asiáticos.Note-se que, sessenta anos antes de Nietzsche, Creuzer já pressupõeuma oposição entre Apolo e a religião báquica: de um lado estaria aarrebatadora e provocante flauta de Dioniso, de outro a apazigua-dora cítara de Apolo. Apesar de nunca citar o nome desse pesqui-sador, Nietzsche toma emprestada sua Symbolik und Mythologie nabiblioteca da Universidade de Basiléia, em junho de 1871, conser-vando até o final da vida um exemplar dessa obra consigo.

A obra de Creuzer teve enorme repercussão ao apresentar umainterpretação orientalizante da religião e dos mitos gregos, o que evi-denciava uma desvalorização da Grécia clássica, ou tal como ela foravista pelos classicistas. Em resposta ao que consideravam um des-vio, inúmeros escritos são publicados por defensores de uma Gréciaclássica, contra a obra de Creuzer. O mais famoso desses libelos foiuma obra de grande divulgação à época, intitulada Antisymbolik, deJohann Heinrich Voss (1751-1826), publicada em 1824. Ficará claronesse confronto até que ponto a disputa entre os “simbólicos român-ticos” e seus adversários clássicos se desenvolve preponderantementeem torno da origem mítica e do significado simbólico de Dioniso.Todos os títulos dos capítulos escolhidos por Voss para sua obra sãoelocuções contra o dionisíaco de Creuzer, evidenciando-se o métododa crítica dos filólogos racionalistas da Antigüidade, contra osincretismo da pesquisa mitológica de Creuzer e seus adeptos(Baeumer 1, p. 145)9. Esse debate ainda repercutia à época em queNietzsche era estudante de filologia e, apesar de ele não fazer ne-nhuma referência direta a Voss, sabe-se que ele tinha conhecimentoda obra do filólogo August Lobeck (1781-1860), Aglaophamus, as-sestada contra Creuzer. Nietzsche se manifesta com sarcasmo sobreela em seu Crepúsculo dos ídolos, referindo-se à explicação de Lobeckpara o fenômeno dionisíaco como uma “charlatanice depreciável”10.

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A obra Symbolik und Mythologie de Creuzer teve um continua-dor famoso no então muito conhecido teólogo e fundador da Escolade Tübingen, Ferdinand Christian Baur, que publicará em 1824/25 Symbolik und Mythologie oder die Naturreligion des Alterthums,em que é destacada a relação entre Apolo e Dioniso. Algumas dasafirmações de Baur sobre a relação entre esses dois deuses encon-traram eco em O nascimento da tragédia, especialmente quando elediz que “aquilo que em Apolo é puro entusiasmo acompanhado pelaclaridade da consciência, em Dioniso é êxtase embriagado” (citadopor Baeumer 1, p. 145)11. Em meados do século XIX a concepçãoromântica do dionisíaco torna-se corrente e aparece em inúmerosmanuais da Antigüidade grega, como o exemplificaria Handbuchder Archäologie der Kunst, publicada em 1830 pelo pesquisador KarlOtfried Müller. Além de apontar para uma reunião de apolíneo edionisíaco, Müller o descrevia como uma força penetrante e plenade prazer da natureza inteira, que captura o homem e o arranca dacalma de seu princippi individuationis para o completo auto-esque-cimento (Baeumer 1, p. 146), antecipando em mais de quarenta edois anos a descrição oferecida por Nietzsche do dionisíaco, no iníciode O nascimento da Tragédia, o que apenas acrescentaria uma neces-sária interrogação a respeito da talvez excessiva ênfase sempre dadasobre a influência de Schopenhauer na leitura que Nietzsche fazdos gregos e da tragédia grega nessa obra.

Para além dessa descrição do dionisíaco tão próxima daquelaoferecida por Nietzsche mais tarde, Müller será a fonte principalpara a concepção do apolíneo em O nascimento da Tragédia 12. Em1824, aquele publicara um estudo em dois volumes intitulado DieDorier, no qual ele destacaria Apolo como criador das artes plásti-cas e descrevendo-o com as imagens de claridade, sabedoria e har-monia de quem caberia ser guardião dos limites13. Ao modo deCreuzer ele associava esse deus à calmante e séria cítara, igualmentecontrapondo-o à flauta selvagem e excitante e a todas religiões das

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forças da natureza, representadas pelo sofrente e triunfante Dioniso.Já nessa obra Müller conecta a mitologia dionisíaca com a origemdo drama, no qual ele veria a unificação entre o coro apolíneo e aflauta e o ditirambo dionisíaco. Essa tese será desenvolvida maislongamente ainda pelo estudioso da Antigüidade em sua obra se-guinte, Geschichte der griechischen Literatur bis auf das ZeitalterAlexanders, que Nietzsche tomou por empréstimo na biblioteca daUniversidade de Basiléia à época da preparação de O nascimentoda tragédia e ainda uma outra vez em 1875.

Baeumer chama atenção para o fato de que Müller teria sido oprimeiro a dar divulgação ao adjetivo “dionisíaco”, em lugar do jámuito empregado “báquico”, em sua Handbuch der Archäologie derKunst, embora seja encontrado um registro anterior do adjetivo,justamente em notas de Goethe para sua peça Pandora, de 1808.A substantivação do adjetivo teria sido empregada pela primeiravez por Julius Klein, na obra Geschichte des Dramas, de 1865, naqual ele formula o conceito da tragédia grega dionisíaca, levandoadiante a tese de Müller da união entre o sofrente Dioniso, expres-so pelo Ditirambo e pela flauta, e a cítara calmante de Apolo comoorigem e sentido do drama grego14. A este último, Klein chama o“espírito da cultura”, purificado na tragédia pela paixão dionisíaca,fato que o coloca como precursor de Nietzsche, juntamente comSchelling, no que se refere a um tratamento estético do par apolí-neo-dionisíaco, desqualificando a observação feita por Nietzsche emseu Crepúsculo dos ídolos, de que ele teria sido quem conduziu essepar de opostos para o reino da estética (Baeumer 1, p. 149; tam-bém Nietzsche; GD/CI, Incursões de um extemporâneo, § 10).

Assim como já haviam feito antes outros proeminentes pesqui-sadores da Antigüidade, Klein contrapõe as festas dionisíacas e suamúsica excitante de flauta à música lenitiva da cítara de Apolo. Essefora, aliás, um ponto de controvérsia do qual certamente Nietzschetomou conhecimento na crítica de seu mestre, o filólogo clássico

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Ritschl, contra o colega e também professor na Universidade deBonn, Friedrich Gottlieb Welker, autor de um estudo em três volu-mes sobre os deuses gregos, publicado entre 1857 e 1862 (Baeumer1, p. 148)15. Nessa obra ele tratava não apenas da contraposiçãoentre Apolo e Dioniso, mas chega a falar da fusão de um no outro.Welker seguia Creuzer e Müller nessa avaliação que contrapunhaas festividades dionisíacas à música da cítara de Apolo, o que deveter alimentado debates com Rischl, que já em 1832 contrapunha àcítara apolínea a aulética dionisíaca, como parte essencial de todoscultos orgiásticos. Entre 1830 e 1835 Ritschl manteve um cadernode anotações para suas aulas de história da poesia grega, o qualfora constantemente retrabalhado ao longo de seus anos em Bonn,quando essa contraposição já era estudada. Surgiu então o relatode suas críticas às idéias de Welker e à tese expressa por Müller emsua Die Dörier16.

Uma última referência nesse quadro dos estudos sobre a cultu-ra grega seria a do professor de Direito da Universidade de Baseléia,Johann Jakob Bachofen, que produziu grande espanto no meio aca-dêmico da época. Aos quarenta anos, já famoso e reconhecido comofundador da Ciência do Direito, torna-se repentinamente pesquisa-dor do mito dionisíaco. Também dele pode-se dizer ter sido umtributário da Symbolik und Mythologie, de Creuzer. Em uma obrapublicada em 1859, Versuch über die Gräbersymbolik der Alten,Bachofen defende a tese de que o enlace sexual é sempre a lei fun-damental dionisíaca, pois Dioniso como poder da Terra e do Solnão se apresentaria como Apolo, bailando na mais elevada purezade luz, solitário e assexuado, mas sim sempre em conexão com se-res femininos. Bachofen conclui sua obra com um capítulo intitulado“Dioniso como fomentador da liberdade e igualdade”, no qual eledefende que o deus tudo conduziria à Philia da vida originária pro-movida em seus Mistérios, em que homens livres e escravos tomari-am parte de forma igual, já que, perante o deus do prazer material,

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todas as fronteiras erguidas pela vida do Estado desmoronariam.Sabemos que Nietzsche descreverá alguns anos depois, em O nasci-mento da tragédia, o dionisíaco com quase idênticas palavras às deBachofen, como aquele princípio diluidor de todas as fronteiras entreos homens, como força capaz de tornar o escravo homem livre enão apenas unificar, mas reconciliar cada homem com seu próximo(Baeumer 1, p. 151-2).

Tendo sido traçado esse cenário da pesquisa e dos debates emtorno da questão do embate entre apolíneo e dionisíaco, caberiachamar atenção para a necessidade de uma leitura que aponte asproximidades e distâncias entre a reflexão nietzschiana sobre a cul-tura e o pensamento de dois eminentes representantes do Roman-tismo alemão: August Schlegel (1767-1845) e Friedrich Schlegel(1772-1829). Em seus dois textos sobre a relação entre Nietzsche eo Romantismo, em especial no que diz respeito à interpretação datragédia grega e desta na cultura grega, Ernst Behler (Behler 2 e 3)sugere que a pesquisa dessa temática na obra de juventude deNietzsche deve incluir necessariamente os nomes dos irmãosSchlegel, considerando-se em especial o de Friedrich Schlegel que,em 1822, teria reeditado em suas Obras completas os estudos dejuventude sobre literatura grega, então tornados famosos e agorareelaborados sob o título de Studien des klassischen Altertum (Behler2, p. 341). A investigação demandaria ainda, segundo Behler,avaliar a real extensão da influência do pensamento dos irmãosSchlegel sobre a construção do conceito de dionisíaco na obra dejuventude de Nietzsche. Ressalte-se a interpretação de Fr. Schlegelpara o drama ático, considerado por ele como fruto da união danatureza objetiva da epopéia com o entusiasmo subjetivo da poesialírica, unificados em ação (Handlung = Epos) e no canto do coro(Chorgesang = Lyrik). Embora não empregando os conceitos deapolíneo e dionisíaco, mas sim o modelo idealista da filosofia trans-cendental expresso no antagonismo entre necessidade e liberdade,

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ou entre natureza e eu, lembra Behler, a interpretação de Schlegel,mesmo assim, poderia ser entendida como um modelo para a con-cepção mais tarde construída por Nietzsche (Behler 2, p. 344).

Embora o autor considere evidente a proximidade entre O nas-cimento da tragédia e a obra de Fr. Schlegel Über das Studium derGriechischen Poesie, de 1797, ele lembra que permaneceriam dúvi-das se Nietzsche tinha familiaridade com essa obra. No entanto,acrescenta ele, não se deveria subestimar a força de atração queteria exercido sobre ele a visão dos gregos e da cultura grega, talcomo a oferece August Schlegel em suas Vorlesungen, editadas em1808 em Viena como Über die dramatische Kunst der Literatur, ecom as quais o autor se ocupará até sua morte. Segundo Behler, tãoampla teria sido a divulgação dessa obra na Europa, devido a suasinúmeras traduções, que em 1929 Josef Kröner a intitularia como“embaixadora do romantismo alemão” no continente (Behler 2, p.349). O significado desses dois pensadores do Romantismo para atrajetória filosófica de Nietzsche, em especial para sua reflexão so-bre o papel da arte para a cultura, deve ser considerado, acredita oautor, mesmo no contexto da crítica tardia de Nietzsche ao Roman-tismo. De acordo com ele, mostra-se de fundamental importânciaque se faça distinção entre essa crítica e a comunhão que permane-ce existindo entre o filósofo e alguns dos ideais defendidos pelosprimeiros românticos, por exemplo no que se refere ao desprezopela cultura filistéia burguesa contemporânea e a busca de um maiselevado paradigma de cultura na Antigüidade (Behler 3, p. 60-1;Lovejoy 14, p. 183-205; Gerhardt 10, p. 375).

A relação do pensamento alemão com a Grécia a partir deWinckelmann marca todas as esferas da cultura, e de forma especiala filosofia e a reflexão sobre a arte. A afinidade insistentementepretendida por filósofos germânicos entre sua cultura ou sua ambi-ção de cultura e a grecidade encontra eco entre artistas e estudio-sos do mito e da religião. Em comum todos parecem ter a certeza,

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ou ao menos a intuição, de estarem inseridos em uma modernidadecujo traço mais marcante seria justamente seu distanciamento emesmo alienação frente aos valores alcançados pela cultura grega.Igualmente parecem comungar na percepção desta sua antecessoradistante como um modelo bem sucedido “totalidade”, um brevemomento no qual o ser humano pôde existir como “ser integral”,numa perfeita integração entre forças psíquicas, físicas e espirituais;entre ação e reflexão; entre saber e fazer, desconhecida pela Euro-pa cristianizada de sua época.

Simultaneamente crítica da cultura na qual se encontravammergulhados e utopia por um reencontro com a “pátria perdida”,essa ambição de totalidade fundada em sua leitura dos gregos seráa marca de um paradoxal casamento entre classicidade e romantis-mo que unirá Nietzsche a ilustres predecessores seus, comoWinckelmann, Lessing, Hölderlin, Schiller, aos irmãos Schlegel, semesquecermos de Hegel e Goethe. A “nostalgia da pátria”, como opróprio Nietzsche a define em um fragmento póstumo localizadoentre agosto e setembro de 1885 (XI, 41 [4]), configuraria a maisfundamental forma de romantismo presente na raiz da filosofia ale-mã e que irmanaria grandes nomes como Leibniz, Kant, Hegel eSchopenhauer, “apenas para nomear os grandes”: “essa ânsia pelomelhor que jamais houve. Não se está mais em casa (heimisch) emnenhum lugar, de modo que no fim se anseia estar de volta onde sepode de alguma forma estar em casa, porque esse é o único lugaronde se gostaria de estar em casa: e isso é o mundo grego!”. QueNietzsche inclua a si mesmo nessa linhagem de grandes, isso ele jádeixava implícito desde O nascimento da tragédia, quando falavada “mais nobre luta de Goethe, Schiller e Winckelmann pela cultu-ra” (Nietzsche 16, vol. I, p. 129), o que deveria incitar a que seinvestigasse com persistência essa contenda constante em sua obraentre ideal romântico e ideal clássico.

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Abstract: This paper presents an overview of the relation between Ger-man culture and the ideal of grecity, as this later was established byWinckelmann in the 18th century. It aims to highlight the links betweenNietzsche’s thoughts about the Greeks with that tradition and also to sketchthe thesis that his reflection on culture is permeated by the same conflictbetween “classical” and “romantic” ideal that feeds the work of all a lineageof “great creators”, from Winckelmann to Hölderlin, Goethe, Schiller, andthe Schlegel brothers.Keywords: culture – romanticism – classicism – aesthetics – Greece

notas

1 Quanto a essa autopublicidade levada a cabo por Nietzscheem torno de seu nome como o descobridor, cf. GD/CI,“O que devo aos antigos” § 4; EH/EH, “O nascimento datragédia”, § 3; XIII, 14 [35], da primavera de 1888. KSAXIII, p. 235.

2 Seria aqui pertinente ao menos um breve comentário sobretais considerações de Winckelmann sobre a obra Laocoonte,uma escultura do período helenístico. Não é preciso muitoconhecimento de história da arte e estética para percebera incongruência das interpretações feitas por esse teóricodo clássico e a obra em questão. O texto não faz a adequa-ção à obra tomada como objeto de análise, deixando-nosante um hiato evidente.

3 O título da tradução brasileira é Reflexões sobre a arte anti-ga. O título original, excessivamente longo, geralmente écondensando mesmo em citações de comentadores em ale-mão: Gedanken über die Nachahmung der griechischen Werkein der Malerei und Bildhauerkunst.

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4 O mesmo pensamento é desenvolvido em dezenas de ou-tras cartas da época, cf., por exemplo, Carta a Rohde denovembro de 1868, KSA II p. 344-345, da qual se extraiuaqui a imagem dos filólogos como uma “ninhada de ver-mes pululantes” alimentando-se da Antigüidade; cf. tam-bém, carta a Rohde, de janeiro/fevereiro de 1870, KSB IIIp. 93-6; também a Deussen, de fevereiro de 1870, KSAIII, p. 97-9.

5 O Sturm und Drang foi o movimento considerado precursordo Romantismo alemão, surgido na segunda metade doséculo XVIII, integrando um grupo de jovens autores quese propunha emancipar a literatura germânica, constituin-do-se na primeira manifestação coletiva do romantismoeuropeu. A denominação proveio de uma peça homônimade F. M. Klinger, um dos integrantes do grupo do qualfaziam parte também Herder, Goethe e Schiller (Cf. notade J. Guinsburg. in: Nietzsche 20, p. 145).

6 O autor lembra que Nietzsche considerava Hölderlin comoseu poeta predileto. Quanto a Novalis, deve-se acrescentarque o professor de literatura alemã de Nietzsche emSchulpforta, August Koberstein, era autor de umaabrangente história da literatura alemã e um conhecidohistoriador da Escola Romântica, sendo especial aprecia-dor de Novalis ( Behler 3, p. 70).

7 Cf. especialmente o capítulo “Germany and Greece”,p. 3-14.

8 Baeumer nota que Creuzer irá destacar, em um prefácioescrito para a terceira edição desta sua obra, sua concor-dância com Hegel e a dívida para com Schelling. O co-mentador lembra ainda que Hegel havia dirigido sua poe-sia juvenil Elêusis, de 1796, a Hölderlin, colocando osMistérios de Ceres em secreta conexão com a amizade deTübingen, onde foram colegas, junto com Schelling.

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9 O autor observa aqui que Goethe toma parte apaixonada-mente nesse debate da época “Voss contra Creuzer”. Se-gundo o comentador, Goethe afirmaria em uma carta dejaneiro de 1818 que a Antisymbolik de Voss seria o“antidioniso dos clássicos e igualmente sua última e nãopouco eficaz fortaleza contra os românticos”.

10 Cf. GD/CI, O que devo aos antigos, § 4. O tradutor espa-nhol desta obra, Andrés Sánchez Pascual é quem comentaem nota que Nietzsche lera a obra de Lobeck à época deestudante de filologia (Nietzsche 19, p. 170. KSA XIII, 14[35], p. 235).

11 Apud: Baeumer, M., op. cit., p. 145. O autor comenta arespeito de Baur, que Franz Overbeck, amigo próximo deNietzsche, venerava Baur como modelo científico.

12 Sobre a influência de Müller sobre os escritos preparatóri-os para O nascimento da tragédia, cf. López 13, especial-mente o capítulo “Los primeros escritos sobre el origem dela tragedia”, p. 131-50.

13 Baeumer remete aqui a uma informação de Charles Andlerem sua obra sobre Nietzsche, na qual ele aponta essa obrade Müller sobre os dóricos como a fonte para a construçãodo apolíneo em GT/NT. Baeumer mostra que também aobra Handburch der Archäologie, de Müller havia sido to-mada de empréstimo por Nietzsche em junho de 1870(Baeumer 1, p. 146).

14 Teria sido Karlfried Gründer quem chamara atenção parao nome de Julius Klein no que se refere à pesquisa doséculo XIX em torno do par apolíneo-dionisíaco, ressaltan-do que Nietzsche conhecia a obra de Klein (Cf. Gründer,K. “Apolinisch-dionysich” in : Ritter 21, vol. I, p. 441-5).

15 A obra de Welker, Griechische Götterlehre fora tomada deempréstimo por Nietzsche na biblioteca da Universidadede Basiléia em abril de 1871.

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16 Ernst Behler comenta que Friedrich Ritschl, mestre deNietzsche em Bonn, teve ainda contacto acadêmico comAugust Schlegel. Ritschl se dizia, por reiteradas vezes, par-tidário de Friedrich Schlegel e de Georg Creuzer. Behleracrescenta que, à época, comentava-se que a concepçãoda literatura grega de Ritschl era, na verdade, o programade Friedrich Schlegel (Behler 3, p. 71).

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O niilismo extático como instrumento da Grande política

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O niilismo extáticocomo instrumentoda Grande política*

Yannis Constantinidès**

Resumo: Ainda se cai no engano de julgar Nietzsche um niilista, nãoobstante seu esforço para curar o epidêmico “niilismo europeu” atravésde uma consciente aceleração do curso deste. Somente um niilismo “con-seqüente em ação”, extático, será capaz de evitar o perigo do desesperoestéril das diferentes formas de “niilismo incompleto” e tornará possível oalém-do-homem. Tal remédio à crise da civilização revela-se bastante di-ferente da luta defensiva de Kant contra o indiferentismo moral. Nietzschepropõe “novas Luzes”, não mais a serviço do rebanho democrático, comoas antigas, mas dos raros indivíduos sintéticos, soberanos.Palavras-chave: Niilismo – Dionisíaco – Grande política – Martelo –Budismo europeu – Além-do-homem – Eterno retorno – Grande meio-dia.

Se não fizermos da morte de Deus uma renúnciamagnífica e uma perpétua vitória sobre nós mesmos,teremos de pagar por essa perda.1

1. Superar o niilismo por ele mesmo

A crítica de Nietzsche ao “niilismo europeu” é bem conhecida;menos conhecida, no entanto, é sua vontade de acelerar-lhe o curso,

* Tradução: Francisco Edi de Oliveira Sousa. Revisão Técnica: Vânia Dutrade Azeredo.

** Professor da Universidade de Reims (França).

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Constantinidès, Y.

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irreversível segundo ele, para se chegar a um niilismo consumado,com a exigência para cada um de escolher entre elevação e declínio.De seu ponto de vista, que rejeita toda concepção linear ou pro-gressista da História, o niilismo não é obrigatoriamente uma paralisa-ção, um impasse evolutivo, por assim dizer, e poderia – sob certascondições – revelar-se uma etapa necessária rumo a um novo hori-zonte, o do homem pleno, soberano, o do além-do-homem. De qual-quer forma, é esse “perigoso poder-ser”, essa aurora possível o quemotiva a Grande política nietzschiana, concebida como um remédioadaptado à decadência (no sentido em que a entende Ecce Homo).

O remédio homeopático, phármakon prescrito aqui pelo “médi-co da civilização” que Nietzsche aspirava a ser, consiste em tomarcomo antídoto o próprio veneno, a “niilina” cristã, para com ele seimunizar. Em linguagem simbólica, isso equivale a optar pela Viada Mão Esquerda, estreitamente associada à noção de dionisíaco2,em lugar da Via da Mão Direita, ligada em parte ao elemento apolí-neo. Esse remédio é sem dúvida temerário, visto que se assume orisco de dar livre curso ao veneno para esgotar-lhe os efeitos; toda-via Nietzsche reitera preferir muito mais ver a humanidade sucum-bir pelo erro dessa terapêutica radical a deixá-la engajar-se no len-to suicídio do niilismo passivo3. Trata-se de precipitar as coisas, de“forçar a decisão”, em vez de deixar a humanidade transformar-selentamente em areia, ou seja, perecer sem mesmo ter a percepçãodisso. O “budismo europeu” designa de modo preciso essa tristeperspectiva de uma narcose generalizada, do reinado irrisório doúltimo homem, obcecado por seu conforto e sua segurança. Paraevitar esse sinistro desfecho, ele quer efetivar a incorporação dadoutrina do eterno retorno, essa provação seletiva que impõe umaescolha entre elevação e declínio e sem direito a adiá-la.

Por conseguinte, Nietzsche se propõe explicitamente o objetivode superar o niilismo por este mesmo: “Aquele que toma aqui a pa-lavra nada fez (...) até este momento senão voltar a si: (...) enquan-

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to espírito que arrisca e experimenta, que já se perdeu uma vez emcada labirinto do futuro; enquanto espírito augural que olha paratrás quando anuncia o que vai acontecer; enquanto primeiro niilistaconsumado da Europa, mas que já vivenciou em si mesmo o niilis-mo até o termo deste – que o pôs atrás de si, abaixo de si, fora desi...”4. Se ele próprio confessa, sem qualquer escrúpulo, ter sidoprofundamente niilista5, é para logo em seguida precisar que tal nii-lismo consciente e conseqüente – em particular raro, pois o senti-mento doloroso da ausência de toda finalidade e de todo sentidopermanece em geral disseminado – constitui uma espécie de provade fogo imprescindível à formação de um indivíduo resolutamenteafirmador; da mesma forma que a etapa do leão negador é indis-pensável à consecução da criança inocente, livre do antigo ideal esobretudo da necessidade de negá-lo. Diante disso, surpreende vera maioria dos intérpretes ater-se a essa confissão para inculparNietzsche de niilismo; ainda mais porque sua obra pode, sem exa-gero, ser considerada uma tentativa heróica de estender à humani-dade inteira o remédio radical que ele administrou a si mesmo comsucesso. Com efeito, é dar mostras de superficialidade, para nãodizer de desonestidade, fazer dele um grande destruidor ou um sim-ples crítico, embora brilhante, da civilização moderna, ocultando oque lhe era essencial: tornar possível um tipo supremo de humani-dade, emancipado da exigência de transcender e disposto a dizer“sim”, sem a menor hesitação, a um mundo desprovido de sentido,propósito e horizonte que não sejam humanos. Com relação a isso,o niilismo nada mais é do que uma passagem necessária, um “esta-do intermediário patológico”6, ao qual não se deve tentar se furtar(porque isso apenas o exacerba); na verdade, deve-se vivenciá-loaté o fim, com a esperança – talvez não ponderada, ele o reconhecesem constrangimento – de que essa grande provação purificadoratornará possível a inversão dos valores decadentes e o estabeleci-mento de uma “nova hierarquia”.

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Assim, o niilismo europeu apresenta-se paradoxalmente aNietzsche como uma formidável circunstância a ser explorada, ummeio involuntário de se chegar ao homem total, sintético. É fácil per-ceber que não se trata, de modo algum, de uma crença messiânicaem qualquer Redenção histórica e inelutável da humanidade, masde um jogo perigoso, de uma aposta audaciosa no futuro, de um “de-siste ou dobra”. É preciso encorajar sem abalos um “niilismo conse-qüente em ação”7, para evitar os arrecifes de um niilismo incomple-to, impotente. Quem quer que aspire, como ele, à grandeza, a uma“nova síntese de valores e finalidades” deve aceitar o preço desseprocesso e não hesitar em agravar ainda mais as grandes crisesniilistas, que já põem rigorosamente à prova o apego de qualquerum à vida. Apenas uma inversão total dos valores emolientes da mo-dernidade poderá afastar de modo duradouro o espectro do “segundobudismo” que se afigura no horizonte da Europa; contudo, enquan-to se aguarda, convém desobstruir logo o terreno suprimindo todaesperança de salvação, dando a ver sem maquiagens o fundo dioni-síaco da existência. É essa tarefa de ensombrecimento extremo davida para fins seletivos que Nietzsche nomeia niilismo extático, o quesignifica dizer dionisíaco: “Um estilo de pensar e uma doutrina pes-simistas, um niilismo extático podem, em certas circunstâncias, serprecisamente indispensáveis ao filósofo: como poderoso meio de pres-são e como martelo para destruir as raças degeneradas e em declínio,retirá-las do caminho e abrir a via a uma nova ordem de vida oupara inspirar nos seres degenerados e em declínio o desejo do fim”8.

Esse niilismo radical, sem concessão é, como se pode consta-tar, um simples instrumento nas mãos do filósofo-legislador, quedele se serve cinicamente para precipitar a formação de uma novahierarquia graças à seleção drástica operada entre aqueles que pos-suem a coragem de aquiescer a uma vida inteiramente privada desentido e aqueles que não conseguem se resolver a fazê-lo. A dou-trina dionisíaca do eterno retorno, enquanto “forma extrema do nii-

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lismo”, exerce de modo preciso esse papel do martelo9 do qual olegislador do futuro faz um duplo emprego, ao mesmo tempo cria-dor e destruidor: ele dá forma aos mais fortes e aniquila os maisfracos. Não existe, portanto, ambigüidade alguma na relação entreNietzsche e o niilismo: “aquilo que cai, é mister ainda empurrá-lo”,assim grita Zaratustra no capítulo central do livro (“Das velhas enovas tábuas”), dispondo-se ademais a indicar aos niilistas inconse-qüentes, como o Wahrsager, um mar onde poderão se afogar... Re-médio radical, mas indispensável segundo Nietzsche, que julga opor-tuno estourar o tumor, livrar o organismo sadio de seus “parasitas”.Em vista dessas considerações, cabe apenas deplorar a pusilanimi-dade dos intérpretes que procuram sempre adoçar esse aspecto –evidentemente pouco moral... – da Grande política nietzschiana.

Há de se observar de passagem como as noções essenciais dafilosofia de Nietzsche encontram-se em estreita correlação e mani-festam seu sentido integral quando inseridas no contexto do projetode instauração de uma nova hierarquia humana graças ao concursoinvoluntário do niilismo. De fato, tudo conspira: o Versuch, a dou-trina do eterno retorno, o dionisíaco, a vontade de potência comovontade de imposição de formas, o perspectivismo (que atesta odesaparecimento de toda verdade absoluta), o martelo, a Züchtung,o além-do-homem, a superação de si, a grande saúde, o amor fati,a inocência do devir, o Grande Meio-dia. Não se deve, pois, isolar apaciente reflexão nietzschiana sobre o niilismo do tecido interpreta-tivo dentro do qual ela naturalmente se enquadra.

2. Os diferentes usos do niilismo

Causa estranheza perceber como se incorre costumeiramenteem equívocos quanto à significação do niilismo para Nietzsche e,poder-se-ia acrescentar, quanto ao uso que dele esse filósofo conta

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fazer. Em vez de lamentar o caráter inelutável da decadência, comonumerosos de seus contemporâneos, Cassandras resignadas namaioria, ou de sonhar com uma improvável marcha para trás, eleesforça-se para ver o que se pode extrair do niilismo se este é leva-do com vigor a seu termo natural. No fundo, ele recrimina o cristi-anismo por ter entravado o curso do “niilismo suicida”10 e salutarque se havia declarado no final da Antigüidade. Com isso, os pa-dres-médicos cristãos nada fizeram além de retardar o advento doniilismo extático, conseqüente, que Nietzsche, por sua parte, desejaencorajar. O ambíguo “remédio” deles, o sentido moral atribuído àexistência, revelou-se no fim das contas um veneno lento e insidio-so, porque apenas adiou o inevitável dever: a conscientização geralda ausência de todo sentido totalizante. Eis uma alquimia ao inver-so do ideal ascético que permite apreciar a grande coerência dasrecriminações endereçadas por Nietzsche à interpretação moral domundo: de certa forma, a morte de Deus era previsível, uma vezque Ele estava suspenso ao desenvolvimento autônomo da moral,que acaba, segundo o autor de Aurora, ultrapassando a si própriapor zelo de veracidade. Em decorrência, a história natural da mo-ral é a do lento suicídio de “Deus”, ou seja, a da perda progressivada fé em um sentido único atribuído à existência. Não se pode fin-dar, a não ser provisória e aparentemente, uma crise niilista apenasoferecendo aos seres que sofrem com a vida, à guisa de consolação,um horizonte metafísico; nesse caso, tem-se antes uma escapatóriaque a expressão de uma real vontade de cura.

O grande mérito de Nietzsche, ao contrário dos homens religio-sos, reside em considerar o niilismo não uma maldição, mas umaetapa inevitável da vida. A lógica interna deste é a mesma da deca-dência: “O niilismo não é uma causa, mas somente a lógica da de-cadência*”11. Ele encontra sua fonte no esgotamento fisiológico12,antes de se traduzir em estados de espírito, como o preguiçoso paraquê?. Por que então insistir tanto a respeito do niilismo europeu, o

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“segundo budismo”? Não se trata, é claro, da primeira crise niilistada história, o próprio budismo teria saído do esgotamento fisiológi-co e da astenia da vontade; contudo Nietzsche lhe atribui às vezesuma importância particular porque ele representa o fim da maislonga mentira moral que a humanidade teve de sofrer e ainda umaocasião única de devolver ao homem confiança em si e no futuro.De fato, o niilismo moderno detém a especificidade de ser a “con-seqüência da interpretação moral do mundo”, de uma interpreta-ção tirânica na qual ninguém mais crê. Um horizonte virgem afigu-ra-se assim sobre as ruínas do ideal moral.

A decadência está, por assim dizer, latente em toda grande ci-vilização; isso explica, sem qualquer juízo moral, que o declínio sigaa grandeza como sua sombra: o verme já se acha no interior dofruto maduro e vicejante. Pode-se dizer então, de modo esquemático,que irrupções de saúde e crises de enfermidade do organismo socialsucederam-se normalmente, como em outras épocas, ao longo detoda a era cristã, mas desta vez com um envenenamento subterrâ-neo, com uma “depravação” sistemática do homem. Nietzsche pa-rece acreditar que o lento processo geral de decadência concluídona “modernidade” poderia ter sido interrompido por uma grandeexplosão de saúde (como o Renascimento italiano, Napoleão, Goethe)– o que prova não ser fatal a enfermidade da civilização. Isso não émais possível em sua época, sem dúvida porque a morte de Deus jáaconteceu em segredo; porém grandes reações como essas demons-tram não ser vã uma cura real e durável ao menos do esgotamentofisiológico adquirido – pois o esgotamento hereditário não pode sercurado. É para triunfar nos pontos em que essas tentativas esporá-dicas fracassaram que ele preconiza empurrar a lógica do niilismoaté seu termo, ao invés de opor-lhe resistência.

Destarte, um mundo separa o niilismo extático, experimentalde Nietzsche das diferentes formas de niilismo incompleto dos doisúltimos séculos, apesar de semelhanças aparentes. O existencialismo,

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por exemplo, ainda que chegue a invocar Nietzsche em seu favor,situa-se no pólo oposto da sabedoria trágica, dionisíaca deste filóso-fo. Com efeito, o sentimento doloroso do absurdo existencial decor-re diretamente da perspectiva moral decepcionada, à qual se pediaapenas para crer às cegas. A bem pensar, a fé já supõe o absurdo:credo quia absurdum est. Com o niilismo, o sentimento de absurdopermanece, mas sem o consolo da fé. E, de certa maneira, o existen-cialismo continua piedoso, na medida em que ele crê desesperada-mente na ausência absoluta de sentido. Acusar a existência de serabsurda trai a obstinação do julgamento moral que pesa sobre avida, criticada em definitivo por não manter as promessas que elanão fez... Por isso, Nietzsche opõe ao sentimento inibidor, nause-ante do absurdo o amor fati e a afirmação da inocência do devir.

O mesmo vale para estes outros idealistas decepcionados, osniilistas russos, os quais, a crer em Bakunin, vêem a paixão de des-truir como uma paixão criadora. O niilismo deles é de fato ativo, emesmo agressivo; porém eles traem sua conturbação, sua sensaçãode estar sobrando (bem descrita por Turgueniev), nessa fuga aluci-nada para o futuro que os conduz a um suicídio disfarçado de atopolítico. Nietzsche, no § 347 de A gaia ciência, resume perfeita-mente a dinâmica psicológica do “niilismo segundo o modelo deSão Petersburgo” falando de “crença na descrença, até chegar aomartírio”. A violência da ação direta é proporcional ao desencantodesses antigos crentes, convertidos ao catecismo revolucionário epouco preocupados com a idéia de substituir o que destroem.

Por sua vontade de agir sobre o futuro, Nietzsche se distingueenfim do “catastrofismo” de um Spengler, que pensa irreversível odeclínio da Europa e que, na conclusão de O homem e a técnica,não obstante a tonalidade claramente nietzschiana dessa obra, con-tenta-se em pregar uma atitude heróica, sinal de um certo roman-tismo: “Nascemos nesta época e devemos seguir com bravura, até otermo fatal, o caminho que nos está traçado. Não há alternativa.

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Nosso dever é nos incrustarmos nessa posição indefensável, semesperança, sem possibilidade de reforço. Suportar, suportar a exem-plo deste soldado romano cujo esqueleto foi encontrado ante umaporta de Pompéia e que, durante a erupção do Vesúvio, morreu emseu posto porque se esqueceram de vir dispensá-lo. Eis quem énobre. Eis quem é grande. Um fim honroso é a única coisa da qualnão se pode privar um homem”.

Embora também suprima toda esperança e toda possibilidadede salvação com a doutrina do eterno retorno, Nietzsche não recusaconceder à terra um sentido e abrir à humanidade novos horizon-tes, mais vastos e mais livres: “Um novo ‘por quê?’ (Wozu?) – eisdo que precisa a humanidade...”13. A “catástrofe” niilista repre-senta para ele uma transição, muito mais uma pedra de toque doque um canto de cisne da civilização14. Ele não dá razão nem àsimples volúpia de destruir nem ao pathos fim de século, cujo de-sespero gritante proíbe qualquer reforma do mundo. Em ambos oscasos, parece que se mergulha no nada por temor de nele cair eque não se divisa outra saída do labirinto da existência senão umfim trágico, no fogo e na luz... Ora, tanto o ceticismo resoluto quan-to o pessimismo absoluto são sintomas de niilismo, como Nietzschesublinha diversas vezes. Como aos “homens superiores” da quartaparte do Zaratustra, desprovidos da coragem necessária à afirma-ção, falta a esse niilismo ativo, e por isso ainda incompleto, o risolibertador do leão, que não se deixa levar pela sombria embriaguezda destruição. Verdadeiramente ativo “enquanto ideal da supremapotência do espírito, da vida superabundante”, o niilismo extáticoé, por sua parte, “meio destruidor, meio irônico”15. A destruiçãonão é em si mesma um fim, a dureza do martelo do filósofo-legisla-dor não se justifica a não ser como atividade de imposição de for-mas própria à vontade de potência criadora. A paixão mórbida dedestruir cede aqui seu lugar ao Versuch, ao jogo incerto e perigosode criação de novas formas a partir da aniquilação impiedosa das

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formas existentes. Nietzsche substitui assim a simples e convencio-nal denúncia do niilismo por uma “compreensão global”16, que oevidencia como um estado intermediário necessário, tal qual o Kali-Yuga da ciclologia hindu, preparando involuntariamente a inversãode todos os valores.

3. O niilismo consumado

“Só aquele que tem a coragem de ser absolutamente negativopode criar algo de novo”, afirma com justeza Feuerbach em suacrítica do papel da negação em Hegel, incompleta enquanto sim-ples mediação, meio de se alcançar a reconciliação. Aos niilistasrussos, como bons epígonos de Hegel, falta na realidade radicaliza-ção: eles vêem na negação uma espécie de ato redentor, ao passoque ela é um lance de dados, uma aposta arriscada. Verdadeirodestruidor, o niilismo conseqüente sabe que não domina as forçasque libera, que ele mesmo está sujeito ao “perigoso poder-ser”: elepõe em jogo a sobrevivência da humanidade e sua própria vida emum temerário desiste ou dobra. Se realmente se quer provocar adecisão, evitar qualquer meia medida e atos desesperados e inú-teis, que apenas prolongam a crise niilista, é preciso aceitar o fatode não se dominar por inteiro a negação e lhe conceder toda a li-berdade para que ela possa consumar sua obra purificadora. Oniilismo extático só poderá – na melhor das hipóteses! – nos ajudara superar a decadência se ele assumir a forma de um “grande nii-lismo contagiante”17, que varre todas as certezas imediatas, lançan-do-nos ao desafio de viver sem a menor segurança, sem o menorapoio, mesmo ilusório. Para libertar enfim a ação e o horizonte hu-manos, até então prisioneiros do “refúgio” da moral, faz-se neces-sário não apenas rejeitar toda expectativa, mas também superar tododesespero, estar pronto para viver nos confins da incerteza radical,

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sem sofrer com o absurdo da existência e sem esperança de reden-ção. Com o propósito de tornar possível essa “segunda inocência”da criança, Nietzsche conclama com seus votos a destruição inte-gral e sem dissimulações das últimas sombras de Deus18. Logo, aocontrário do que se pensa, ele não tem nada do profético ou dovisionário, com sonhos desprovidos de fundamento racional.

Não há sentido da História, exceto aquele que o filósofo-legisla-dor tenta lhe outorgar; o futuro não está de todo traçado, falta acriar, a querer19: para que o além-do-homem, ou seja, o homemsintético, soberano, possa ver o dia, é preciso que o niilismo extáticotenha antes aberto a via à inversão dos valores decadentes. O além-do-homem não é, pois, nem um ideal nem um Messias que se deveesperar do futuro – a expectativa messiânica, como se viu, não passade uma “niilina” administrada pelos padres ascéticos para fazer malao niilismo suicida que então ameaçava. A doutrina do eterno retornoopõe-se assim a qualquer soteriologia, seja ela confessa ou disfar-çada. Na verdade, essa “religião das religiões”20 é uma espécie deaposta pascaliana invertida, uma vez que se trata de renunciar aoalém-mundo e de aspirar apenas à eternidade da vida terrena. Comisso, o mundo imanente reencontra toda a profundidade que lhetinha sido subtraída para ser projetada em um além-mundo ilusório.A Grande política possui um conteúdo definitivamente positivo: reen-cantar o mundo “ensombrecido” pelo ideal moral e devolver à vida,abatida e rasa após a morte de Deus, toda sua substância, a esqueci-da profundidade da imanência, da sombra dionisíaca. Esse sentidonão religioso do sagrado, tão característico dos textos “proféticos”de Nietzsche, exprime-se perfeitamente – como no final de Assimfalava Zaratustra – através da imagem essencial de um Grande Meio-dia, isto é, de uma “redenção da realidade” até então denegrida.

Com efeito, o famoso desencanto do mundo tem origem no de-clínio do sentimento do sagrado e no desaparecimento de toda von-tade de grandeza. Nesse sentido, Camus tem razão ao observar que

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o cristianismo “secularizou o sagrado”21, provocando uma lamentá-vel degradação do sentido antigo do sagrado, o que explica o enfra-quecer do instinto criador de deuses, deplorado em O anticristo22.Nietzsche revivifica esse creator spiritus fundamental do humano aolhe dar por missão o além-do-homem, comparado de forma volun-tária a um deus epicurista. Ora, o que é realmente “divino” paraNietzsche é o ser sintético, libertado da necessidade de crença23;porque o homem é ao mesmo tempo criador e criatura, martelo doescultor e matéria esculpida, como lembra o § 225 de Além de beme mal. Portanto o sentimento do divino, do sagrado não está irre-mediavelmente condenado a desaparecer em uma época de disso-lução dos valores como a moderna, ele pode persistir sob uma for-ma não religiosa, enquanto horizonte humano. O além-do-homemencarna com justeza tal persistência de uma dimensão “sagrada”,apesar da extinção de todo horizonte transcendente. Há de se ob-servar ainda que o eterno retorno do mesmo é uma espécie de “trans-cendência na imanência”, uma vez que se trata de santificar a rea-lidade terrena, a única verdadeira. Que não se caia em erro: a lutacontra a alienação religiosa não deve desembocar em uma “profa-nação” do mundo real, porque a vontade de pôr fim ao sagrado – oque se estima por engano um progresso humano em liberdade e emmaturidade – é, a bem dizer, somente um sinal dos tempos, umsintoma do niilismo.

Diante disso, compreende-se que Nietzsche, retraçando a his-tória do niilismo europeu, tome por alvo em particular o século XVIIIe a ideologia das Luzes, que ele julga paradoxalmente responsáveispelo ensombrecimento moderno do céu: “O ensombrecimento, acoloração pessimista são uma conseqüência necessária das Luzes”24.O século XVIII pode de fato ser considerado uma virada importan-te na longa história do niilismo europeu, na medida em que a fé,até então incondicional, nos valores morais do cristianismo começaa titubear, sobretudo sob as invectivas das ciências naturais. Desse

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modo, as Luzes representam um “período de CLAREZA” meramentequanto à tomada aguda de consciência da contradição entre “osantigos valores nascidos da vida em declínio” e “os novos da vidaem pleno alçar vôo”25. Todavia o espírito – Nietzsche insiste muitonesse ponto26 – encontra-se mais “ensombrecido” do que emanci-pado pela rápida multiplicação de conhecimentos que mostram ainutilidade das esperanças religiosas. O niilismo latente eclode empleno dia; o contentamento que acompanhava a ingênua fé religio-sa cede então seu lugar a uma surda inquietude diante de horizon-tes enfim desimpedidos, mas tragicamente vazios. Privados de todoalém-mundo, os homens modernos vêm-se irremediavelmente en-tregues a eles mesmos, minados pelo ceticismo. As Luzes pretendi-am decerto preencher o vazio moral assim criado graças a seus va-lores humanistas; porém estes, sem a garantia da transcendência eno fundo simples decalque dos valores cristãos, não podiam acal-mar de forma duradoura a angústia existencial do homem sem Deus.Curiosamente, os intérpretes de Nietzsche deixaram de ressaltar umelo, no entanto explícito, que ele estabelece nesse contexto: ele con-sidera as estranhas atitudes de fugas da realidade conseqüênciasdiretas, embora involuntárias, do “século do triunfo da razão”. As-sim, a seus olhos, o romantismo, a vertigem do infinito, é apenas “ocontragolpe do século XVIII”27; do mesmo modo, o niilismo passi-vo, que mostra a ponta de seu nariz no século XIX, esse relativismoinconsistente que faz Zaratustra temer a vinda do último homem, éna verdade apenas um epifenômeno, visto se situar na filiação dire-ta da morte natural de Deus. O último homem ressente-se ainda daperda do sentido de totalidade que a moral cristã dava à existência,isto é, da perda de todo centro de gravidade28. O “Nihil homo!” deCeline toma aqui o lugar do orgulhoso Ecce homo do homem sobe-rano, consumado.

Por essa razão genética, Nietzsche coloca sempre aspas dos la-dos da modernidade: muito mais do que uma época de “progres-

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so”, ela é o termo natural da involução que principia com o triunfodos valores decadentes do cristianismo sob a máscara da moral.Nada há de surpreendente no fato de toda aspiração à grandeza terdesaparecido com as “idéias modernas”, simples resíduos psíquicosde dogmas cristãos. De acordo com seu pensamento, as Luzes con-duziram paradoxalmente à “barbárie doméstica” (zahme Barbarei)29,ou seja, ao reinado do animal de rebanho que procura tão-somentese desgarrar da realidade. Nesse sentido, Nietzsche recusa a oposi-ção tradicional entre as Luzes e a barbárie e não hesita em fazer oelogio dos bárbaros que “vêm dos ápices”30 e que são por inteiro ocontrário dos homens heterogêneos, domesticados da realidade. Essaimpressionante apologia de uma barbárie superior deve ser com-preendida como um convite à renaturalização do homem, desnatu-ralizado pelos valores ascéticos do cristianismo, e ao reforço de suavontade feita enferma. Para ele, mais vale ainda a barbárie naturalque a barbárie doméstica31. Com isso, ele permanece conseqüenteem seu desejo de enobrecer o homem e de instaurar uma nova hie-rarquia humana, aproveitando-se da seleção drástica operada peloniilismo extático. Contra as Luzes, ele recomenda aceitarmos a cotade sombra que há em nós – a cota amaldiçoada para o cristianismo–, o Unterwelt dionisíaco, que participa plenamente da vida sã32. É,portanto, uma completa incoerência fazer de Nietzsche um pensa-dor das Luzes; e surpreende que alguns comentadores defendamde forma séria tal “interpretação” de sua obra.

A essas fracas Luzes unilaterais ele opõe as “novas Luzes” doGrande Meio-dia: “As novas Luzes – as antigas iam no sentido dorebanho democrático. Nivelamento de todos. As novas Luzes que-rem mostrar o caminho às naturezas dominadoras – em qual senti-do lhes é permitido tudo o que os seres do rebanho não são livrespara fazer...”33. Desse modo, o Grande Meio-dia assinala o fim dalonga mentira moral, a obrigação de ver a realidade de frente. Con-tudo, para que toda a luz possa enfim se projetar sobre o futuro da

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humanidade, é preciso antes agravar a obscuridade moderna obri-gando o pessimismo desiludido da época a se tornar conseqüente.Sabe-se que sua doutrina do eterno retorno do mesmo põe termoao indiferentismo moral impondo a escolha entre elevação edeclínio34; a partir disso, ela pode ser considerada “o novo centrode gravidade”35 em um mundo descentrado, entregue ao caos.

4. O horizonte enfim desimpedido

A luta de Nietzsche contra o indiferentismo moral o aproximade Kant, ao menos em aparência. Na obra de um e de outro, en-contra-se um “conceito cósmico” da filosofia, uma exigente defini-ção do filósofo como legislador, sem esquecer a noção decisiva dehorizonte. As semelhanças, porém, param aí; pois Kant, por suavez, quer remediar esse “indiferentismo”36, sentido como graveameaça não apenas à razão teórica, mas também (e sobretudo) àmoral, com um retorno não dissimulado aos valores cristãos, único“horizonte absoluto e universal”37 a seus olhos. Convém, todavia,sublinhar a grande lucidez de Kant ao compreender, em pleno sé-culo das Luzes, que o cepticismo nada tem de um jogo irracionalinofensivo, mas que terminará por abolir toda fé se não houver umaintervenção limitadora das pretensões hiperbólicas da razão eman-cipada. Ele encontra mesmo impressionantes acentos pascalianospara exprimir sua inquietude ao ver o homem moderno perder seuchão: “Tudo corre diante de nós como a água de um rio; e o gostoinconstante e as diversas formas do homem tornam o jogo incerto efalacioso. Onde encontrar na natureza pontos de apoio que o ho-mem não conseguiria mudar e que lhe indicariam em qual margemseria necessário se manter”38. Tais preciosos pontos de apoio Kanthá de finalmente encontrar não na natureza, mas na moral39. Coma preocupação de fazer a todo custo da lei moral o único centro de

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gravidade do homem, situado no interior deste, pois toda transcen-dência lhe é desde então interditada, Kant prescreve de certo modocomo remédio à crise niilista uma dose maior ainda do mesmo ve-neno! Ele pensava sinceramente que, purificando-o através da críti-ca, seria possível insuflar uma nova vida no ideal moral cristão,porém desenganado. Daí a conclusão um pouco melodramática deO fim de todas as coisas, em que ele brande a ameaça da vinda doAnticristo para convencer da necessidade absoluta da adoção desua fórmula “racional” da moralidade...

Nietzsche tem, portanto, razão ao ver Kant como um “retarda-tário”40, uma vez que, à imagem da famosa “ilha da verdade” daCrítica da razão pura, este nada destina à humanidade além de umestreito e fechado horizonte prático, que não difere essencialmentedo horizonte último do cristianismo. Embora o filósofo concebidopor Kant seja um legislador não apenas no sentido prático, mas tam-bém no sentido da especulação, a geografia moral importa-lhe infi-nitamente mais do que aquela do entendimento: só se pode orien-tar bem o pensamento quando se dispõe de uma bússola moralregulada em função do horizonte universal tido por substituto daantiga crença incondicional e irracional. Ora, admitindo comNietzsche que nenhum recuo pode frear a marcha irresistível doniilismo41, percebe-se que a grandiosa tentativa de Kant de restau-rar o ideal moral em sua pureza esteve desde o princípio votada aofracasso. Diante disso, Jacobi demonstra agudeza ao reputar preci-samente “niilista” a empresa crítica kantiana: o “majestoso edifíciomoral” que Kant havia erigido com tanto zelo a fim de remediar acrescente indiferença ao bem e ao mal de seus contemporâneosencarna, contra sua vontade, a essência niilista da moral cristã! Nãoé por acaso que este filósofo recusa sem ambigüidade a própria idéiade um eterno retorno da vida: segundo ele, nenhum homem de en-tendimento sadio pode se sentir disposto “a jogar outra vez o jogoda vida em sua totalidade”42.

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Nietzsche denuncia sem trégua esse tipo de julgamento pessi-mista a respeito do valor da vida; e, nessa cruzada, ele tomaSchopenhauer como alvo principal, pois este, na verdade, não vaialém de herdar a perspectiva moralizante de Kant. Com efeito, des-de sua época “schopenhaueriana”, Nietzsche rejeita o budismo deinspiração kantiana de seu “educador”, como atesta (e, aliás, recri-mina) seu amigo Paul Deussen, um discípulo mais fiel do mestrecomum: “Desde 1873, na Basiléia, Nietzsche me dizia que seu ob-jetivo não era a negação, mas o enobrecimento da vontade; e, jánessa época, eu lhe repliquei que não se compreenderia mesmo anegação da vontade se não se visse nela o maior enobrecimento”43.Contudo, longe de reconhecer seus erros, Nietzsche há de se con-sagrar inteiramente à tarefa de enobrecimento do homem e de suavida, que ele justifica, desde as Considerações extemporâneas III,evocando o espetáculo desolador de uma modernidade estreita,desprovida de centro verdadeiro.

Ele mostra assim a via da grandeza através do projeto de ins-tauração de uma nova hierarquia humana, destinada a findar aindiferençiação e o caos modernos. É que o “primeiro niilista con-sumado da Europa” não é um cético e não se resigna ao nivelamentoda humanidade: “Quanto a nós, não somos cépticos – cremos ain-da em uma hierarquia dos homens e dos problemas e esperamos ahora em que essa doutrina do alinhamento e da ordem há de seinscrever novamente, com traços fortes, no frontispício desta socie-dade plebéia de hoje. Essa hora será talvez também nossa hora”44.Para desimpedir o horizonte humano, até então obstruído, Nietzscheconvida com vigor seus leitores a renunciarem voluntariamente todoponto de apoio, todo porto seguro: “Embarcamos”, escreve ele apósPascal, e nos é preciso superar a terrível angústia do infinito quetorturava este último45. Aceitar com alegria viver na incerteza total,preferir o perspectivismo à verdade é dar mostras desta grande saú-de que permite superar o niilismo por ele mesmo, sem procurar

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dele se esquivar46. Assim, o niilismo só se manifestará involunta-riamente criador se o homem renaturalizado conseguir consumarem si a síntese máxima de elementos discordantes, se ele alcançara grande medida clássica: a forma interior substituindo com vanta-gem todo ponto de apoio exterior, toda bengala ilusória.

De qualquer forma, tal homem saberá permanecer de pé emmeio às ruínas. Em verdade, quando a vida se encontra privada decentro, a sabedoria consiste em não recuar diante do abismo dioni-síaco, mas em marchar resolutamente sobre o fio da espada, comorecomenda a Via da Mão Esquerda. O horizonte está enfim bemaberto; mas Nietzsche, para quem o romantismo é sinônimo de doen-ça, denuncia com firmeza o “prurido do infinito”47, a ausência demedida. Ele admira somente o domínio de si, a hierarquia interiorque nasce da imposição artística de formas e torna possível a se-gunda inocência da criança do Zaratustra, curada da duvidosa “ma-turidade” dos homens modernos.

Os leões risonhos do final da obra, núncios da vinda do GrandeMeio-dia, ilustram de fato a superação de si, a vitória sobre o “não”do ressentimento, sobre o niilismo agressivo, que busca apenas des-truir. A surpreendente definição do além-do-homem como “Césarromano com a alma do Cristo”48 se esclarece desta maneira: trata-se da síntese bem sucedida entre duas naturezas opostas, o modelopor excelência do domínio clássico, Júlio César, e a ausência totalde ressentimento que, segundo Nietzsche, caracteriza o Cristo. Atarefa do legislador do futuro ganha então contornos de um “cesaris-mo espiritual”49: ele é o ser criador de sentido, de horizonte, aqueleque lança uma ponte na direção do futuro. A orgulhosa exclamaçãode D’Annunzio, Aut Caesar aut nihil, exprime à perfeição a alterna-tiva apresentada pela Grande política nietzschiana, que não admiteacordos nem meias medidas: ou o além-do-homem ou o último ho-mem – com a maldição do Deus morto pesando apenas sobre aque-les que se revelam incapazes de assumir a herança dessa morte...

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Abstract: Nietzsche is still erroneously considered a nihilist, although hewanted to radically cure the epidemic “European nihilism”. He believedthat nihilism could not be overcome unless one accelerates its course. Onlyan ecstatic nihilism could go beyond the fruitless despair of many forms of“incomplete nihilism” and pave the way for the Overman. Nietzsche’s re-medy for the crisis of civilization is thus very different from Kant’s struggleagainst moral indifferentism. He advocated a new Age of Enlightenmentthat wouldn’t serve the democratic cattle, but only few synthetic and sove-reign individuals.Keywords: Nihilism – Dionysiac – Great Politics – Hammer – EuropeanBuddhism – Overman – Eternal Return – Great Noon

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notas

1 Fragmentos póstumos (FP) de A gaia ciência, 1881, 12 [9],tradução modificada.

2 A respeito dessa transmutação alquímica do veneno emremédio, ler: Evola, Julius. “Dionysos et la ‘Voie de la MainGauche’”. Explorations. Hommes et problèmes. Puiseaux:Pardès, 1989, p. 97-104.

3 Ver Aurora, § 429, por exemplo: “E afinal: se a humanida-de não perecer por uma paixão, perecerá por uma fraque-za: o que se prefere? Eis a questão essencial. Nós lhe dese-jamos um fim em fogo e luz ou em areia?”.

4 Fragmentos póstumos, tomo XIII (FP XIII), 1887-1888, 11[411], § 3. Sobre essa auto-superação (Selbstüberwindung)do niilismo, ver também ibid., 1887, 9 [127], [164] e FPXIV, 1888, 13 [4].

5 Cf. FP XIII, 1887, 9 [123].6 FP XIII, 1887, 9 [35].7 FP XIV, 1888, 14 [9].8 FP XI, 1885, 35 [82].9 Cf. FP X, 1884, 27 [80]: “A doutrina do eterno retorno

como martelo na mão dos homens mais poderosos”. Vertambém FP XII, 1885-1886, 2 [100] e [131].

10 Cf. Genealogia da moral, III, § 28. Ver também FP XII,1886-1887, 5 [71], § 1: “A moral era o grande remédiocontra o niilismo prático e teórico”.

11 FP XIV, 1888, 14 [86] (*em francês no texto).12 Cf. ibid., 1888, 17 [8]: “O movimento pessimista é unica-

mente a expressão de uma décadence* fisiológica.” (*emfrancês no texto).

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13 FP XIII, 1887, 10 [17], tradução modificada.14 Cf. ibid., 1887-1888, 11 [150]: “O período da CATÁS-

TROFE”, último estágio da história do niilismo europeu,vê o “advento de uma doutrina que passa os homens pelocrivo, que força os fracos a tomar decisões, assim como osfortes”.

15 Ibid., 1887, 9 [39].16 Ibid., 1887, 10 [22].17 FP XIV, 1888, 14 [9], já citado.18 Ver Genealogia da moral, II, § 20: “(…) não se pode mes-

mo descartar a perspectiva de que a vitória total e defini-tiva do ateísmo libere a humanidade de todo esse senti-mento de estar em dívida com seu começo, sua causa pri-ma. O ateísmo e uma espécie de segunda inocência sãoinseparáveis.”

19 Cf. FP IX, 1883, 7 [6]: “Adivinhar as condições nas quaisviverão os homens do futuro – porque adivinhar assim eantecipar têm a força de um motivo: o futuro, enquantoaquilo que desejamos, age sobre nosso presente.”

20 FP XI, 1885, 34 [199]. Essa importante caracterização doeterno retorno aparece precisamente em uma passagemdo Zaratustra a respeito da hierarquia e dos legisladoresdo futuro.

21 “Nietzsche et le nihilisme” in : L’homme révolté. Paris :Gallimard, coleção “Idées”, 1981, p. 91.

22 Cf. O anticristo, § 19: “Quase dois milênios, e nem um sóDeus novo!”.

23 Cf. FP XIII, 1887-1888, 11 [95]: “O gosto clássico e ogosto cristão propõem o conceito de ‘divino’ de um modobastante diferente”. Nietzsche acrescenta que o ideal cristãonão passa de “uma caricatura e uma degradação do divino”.

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24 FP XI, 1885, 36 [49]. Ver também ibid., 36 [48]: “AsLuzes sobre o plano do espírito constituem um meio infalívelpara tornar os homens menos seguros, para enfraquecermais sua vontade e criar-lhes uma necessidade maior deestarem agrupados e protegidos, em resumo, para desen-volver no homem o animal de rebanho”.

25 FP XIII, 1887-1888, 11 [150], já citado. Esse fragmentointitula-se “Para a história do niilismo europeu”.

26 Ver, por exemplo, FP XI, 1885, 34 [43].27 FP XIII, 1887, 9 [178].28 Cf. ibid., 1887, 9 [182] e 1887-1888, 11 [148] bem como

§ 1 de O anticristo a respeito do homem desorientado damodernidade.

29 FP X, 1884, 25 [121].30 FP XI, 1885, 34 [112]. Esses “bárbaros” são “um tipo de

personalidades conquistadoras e dominadoras que buscamuma matéria para modelar”, em outras palavras, homenssintéticos, legisladores.

31 Ver Genealogia da moral, I, § 11, in fine.32 Cf. FP XII, 1885-1886, 1 [4]: “Objetivo: a santificação

das forças mais poderosas, mais temíveis e mais denegridas,ou seja, para retomar uma velha imagem: a divinização dodiabo”. Há de se ter reconhecido aqui a Via da Mão Es-querda, estreitamente ligada ao dionisíaco.

33 FP X, 1884, 27 [80]. Esse fragmento póstumo, cujo finaljá foi citado, é um projeto de prefácio intitulado “O eternoretorno”, em que essa doutrina é caracterizada como “mar-telo” do legislador.

34 Cf. FP IX, 1883-1884, 24 [7]: “O pensamento do retornocomo princípio seletivo, a serviço da força (e da barbárie!!)”.A respeito do papel preciso que Nietzsche concede à dou-trina do eterno retorno em sua Grande política, ler meu

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estudo: “Nietzsche législateur. Grande politique et réformedu monde” in: Lectures de Nietzsche, Le Livre de Poche,coleção “Références”, 2000, p. 208-282.

35 FP de A gaia ciência, 1881, 11 [141]. Ver também FP IX,1883-1884, 24 [28]: “Meus esforços contra a decadênciae a fraqueza crescente da personalidade. Procurei um novocentro. (...) À sensação paralisante de dissolução geral e deimperfeição opus o eterno retorno!”.

36 O texto mais eloqüente acerca disso é o Prefácio da pri-meira edição da Crítica da razão pura, sobretudo A 10.

37 Cf. Logique, Vrin, 1982, p. 44.38 Observations sur le sentiment du beau et du sublime, Tre-

chos de “Remarques touchant les Observations…”, Vrin,1992, p. 71.

39 Na realidade, toda a empresa crítica tem por objetivo so-mente “aplanar e reforçar o solo destinado a acolher omajestoso edifício da moral; solo onde se encontram todosos tipos de buraco de toupeira que a razão, na caça a te-souros, cavou em vão, a despeito de suas boas intenções, eque tornarão frágil o edifício a ser construído.” (Crítica darazão pura, A 319/B 376).

40 Cf. FP X, 1884, 25 [121]. Ver também FP XIII, 1887, 9[178]: “Kant, com sua ‘Razão prática’, seu fanatismo mo-ral, pertence inteiramente ao século XVIII (...) – o retornoa Kant em nosso século é um retorno ao século XVIII...”.

41 Cf. FP XIII, 1887, 10 [42]: “As tentativas para escapar doniilismo, sem mudar esses valores, produzem o contrário,agravam o problema.”.

42 Sur l’insuccès de toutes les tentatives philosophiques en matiè-re de théodicée, in Œuvres philosophiques, Gallimard, “Biblio-thèque de la Pléiade”, 1985, tomo II, p. 1399. Ver tambéma nota de Kant ao § 83 da Crítica da faculdade de julgar.

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43 Souvenirs sur Nietzsche, Le Promeneur, Gallimard, 2002,p. 173.

44 FP XI, 1885, 35 [43]. Nietzsche rejeita no mesmo frag-mento o “criticismo” insuficientemente radical de Kant.

45 Cf. A gaia ciência, § 124 (“No horizonte do infinito”): “Aide você, se for acometido de saudade da terra, como se látivesse havido mais liberdade – e já não existisse mais ‘ter-ra’!”. No § 343 do livro V (1886), que retoma essa temáticada morte de Deus, a angústia cede lugar à “alegria de espí-rito” (Heiterkeit) e à promessa de uma “nova aurora”: “eisque enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, aindaque não esteja límpido”.

46 Cf. FP de A gaia ciência, 1881, 12 [57]: “Em que medidatodo horizonte mais desimpedido (hellere Gesichtskreis) apa-rece como niilismo”.

47 Além de bem e mal, § 224. Ver também FP XI, 1885, 44[5]: “Falta a medida ao seio de horizontes tranqüilos; –fez-se do infinito uma espécie de embriaguez”.

48 FP X, 1884, 27 [60].49 FP de A gaia ciência, 1881, 11 [294].

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referências bibliográficas

1. BALAUDÉ, Jean-François & WOTLING, Patrick (dir.).Lectures de Nietzsche. Paris: Le Livre de poche,collection “Références”, 2000.

2. CAMUS, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard,collection “Idées”, 1981.

3. KANT, Emmanuel. Œuvres philosophiques, 3 volumes.Paris: Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 1980-1986.

4. MATTÉI, Jean-François (org.). Nietzsche et le temps desnihilismes, collection “Thémis”. Paris: PressesUniversitaires de France, 2005.

5. NIETZSCHE, Friedrich. Œuvres philosophiques complètes,14 volumes. Paris: Gallimard, 1967-1997.

6. ________. Le Gai savoir. Tradução : Patrick Wotling.Paris: GF, 1997.

7. ________. Éléments pour la généalogie de la morale. Tra-dução: Patrick Wotling. Paris: Le livre de poche,collection “Classiques de la philosophie”, 2000.

8. OVERBECK, Franz. Souvenirs sur Nietzsche. Paris:Gallimard, 2002.

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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Convenção para a citaçãodas obras de Nietzsche

Os cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela ediçãoColli/Montinari das Obras Completas do filósofo. Siglas em portuguêsacompanham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o trabalhode leitores pouco familiarizados com os textos originais.

I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:

I.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:

GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:

Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I:David Strauss, o devoto e o escritor)

HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzenund Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneasII: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)

SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopen-hauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauercomo educador)

WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: RichardWagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagnerem Bayreuth)

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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MAI/HHI – Menschliches Allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiadohumano (vol. 1))

VM/OS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen(Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sen-tenças)

WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und seinSchatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e suasombra)

M/A – Morgenröte (Aurora)IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência)Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral)WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner)GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos)NW/NW – Nietzsche contra Wagner

I.2. Textos preparados por Nietzsche para edição:

AC/AC – Der Antichrist (O anticristo)EH/EH – Ecce homoDD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)

II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:

GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a tragédia)DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensa-

mento trágico)BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de

nossos estabelecimentos de ensino)

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CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefáciosa cinco livros não escritos)

PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofiana época trágica dos gregos)

WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre ver-dade e mentira no sentido extramoral)

Edições:Salvo indicação contrária, as edições utilizadas serão as organizadas

por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Sämtliche Werke. Kritische Stu-dienausgabe em 15 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1980 e Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe em 8 volumes,Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1986.

Forma de citação:Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará

o aforismo; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábicoremeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remete-rá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo,indicará o aforismo.

Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano,conforme o caso, indicará a parte do texto.

Para os fragmentos póstumos, o algarismo romano indicará o volumee os arábicos que a ele se seguem, o fragmento póstumo.

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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Contents

Giuliano Campioniand the art of reading Nietzsche 7Sergio Sánchez

Friedrich Nietzsche:Passion and critique of heroic morals 23Giuliano Campioni

Nietzsche and Greek cynicism 65Adriana Belmonte Moreira

Friedrich Nietzsche: “Classical” and“romantic” ideal in German tradition 93Luzia Gontijo Rodrigues

The ecstatic nihilismas instrument of Great Politics 127Yannis Constantinidès

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NOTES TO CONTRIBUTORS

the author’s last name, initials,followed by the year of publi-cation in parentheses, should beheaded ‘References’ and placedon a separate sheet in alphabe-tical order.

3. All articles will be strictly refer-eed, but only those with strictilyfollowed the convention ruleshere adopted for the Nietzsche’sworks.

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

1. Os trabalhos enviados parapublicação devem ser inéditos,conter no máximo 55.000caracteres (incluindo espaços) eobedecer às normas técnicas daABNT (NB 61 e NB 65) adapta-das para textos filosóficos.

2. Os artigos devem ser acompa-nhados de resumo de até 100palavras, em português e inglês(abstract), palavras-chave emportuguês e inglês e referênciasbibliográficas, de que devemconstar apenas as obras citadas.Os títulos dessas obras devem

ser ordenados alfabeticamentepelo sobrenome do autor enumerados em ordem cres-cente, obedecendo às normasde referência bibliográfica daABNT (NBR 6023).

3. Reserva-se o direito de aceitar,recusar ou reapresentar o origi-nal ao autor com sugestões demudanças. Os relatores de pa-recer permanecerão em sigilo.Só serão considerados para apre-ciação os artigos que seguirema convenção da citação das obrasde Nietzsche aqui adotada.

1. Articles are considered on theassumption that they have notbeen published wholly or inpart else-where. Contributionsshould not normally exceed55.000 characters (includingspaces).

2. A summary abstract of up to 100words should be attached to thearticle. A bibliographical list ofcited references beginning with

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Os cadernos Nietzsche visam a constituir um forum de debates em tor-no das múltiplas questões colocadas acerca e a partir da reflexão nietzschiana.

Nos cem anos que nos separam do momento em que o filósofo interrom-peu a produção intelectual, as mais variadas imagens colaram-se à sua figu-ra, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Conhecido sobretudopor filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir ídolos, Nietzsche,um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo, deixou uma obrapolêmica que continua no centro da discussão filosófica. Daí, a oportunidadedestes cadernos.

Espaço aberto para o confronto de interpretações, os cadernosNietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as idéiasdo filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se consa-gram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra, estudos quecomparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os de outros auto-res, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame dequestões precisas, trabalhos que se empenham em avaliar enquanto um todoa atualidade do pensamento nietzschiano.

Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, que atua junto aoDepartamento de Filosofia da USP, os cadernos Nietzsche contam difundirensaios de especialistas brasileiros e traduções de trabalhos de autores es-trangeiros, artigos de pesquisadores experientes e textos de doutorandos emestrandos ou mesmo graduandos.

Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os cadernosNietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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Founded in 1996, cadernos Nietzsche is published twice yearly - ev-ery May and September. Its purpose is to provide a much needed forum in aprofessional Brazilian context for contemporay readings of Nietzsche. In par-ticular, the journal is actively committed to publishing translations of contem-porary European and American scholarship, original articles of Brazilian re-searchers, and contributions of postgraduated students on Nietzsche’sphilosophy.

Cadernos Nietzsche is edited by Scarlett Marton with an internation-ally recognized board of editorial advisors. Fully refereed, the journal hasalready made its mark as a forum for innovative work by both new and estab-lished scholars. Contributors to the journal have included Wolfgang Müller-Lauter, Jörg Salaquarda, Mazzino Montinari, Michel Haar, and Richard Rorty.

Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, which takes placeat the Department of Philosophy of the University of São Paulo, cadernosNietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has a cur-rent circulation of about 1000 copies and is actively engaged in expandingits base, especially to university libraries. And it has been sent free of chargeto the Brazilian departments of philosophy, foreigner libraries and researchinstituts, in order to promote the discussion on philosophical subjects andparticularly on Nietzsche’s thought.

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