COELHO, J. P. a Originalidade Da Literatura Portuguesa

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A Originalidade Da Literatura Portuguesa, de J. P. COELHO

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  • A ORIGINALIDADE DA LITERATURA PORTUGUESA

    Biblioteca Breve SRIE LITERATURA

  • ISBN 972 566 000 5

    DIRECTOR DA PUBLICAO

    ANTNIO QUADROS

  • JACINTO DO PRADO COELHO

    A originalidade da literatura portuguesa

    MINISTRIO DA EDUCAO

  • Ttulo A originalidade da Literatura Portuguesa _____________________________________________________ Biblioteca Breve / Volume 1 _____________________________________________________ 1. edio 1977 2. edio 1983 3. edio 1992 _____________________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao _____________________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14 -1. 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases _____________________________________________________ Tiragem 4 000 exemplares _____________________________________________________ Coordenao geral Beja Madeira _____________________________________________________ Orientao grfica Lus Correia _____________________________________________________ Distribuio comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal _____________________________________________________ Composio e impresso Grfica Maiadouro Rua Padre Lus Campos, 686 4470 MAIA Janeiro 1992 Depsito Legal n. 52 074/92 ISSN 0871 - 5165

  • NDICE

    Directrizes .......................................................................... 7 Literatura versus cultura nacional ........................................ 7 O mtodo comparativo...................................................... 9 A perspectiva diacrnica .................................................. 10 Literatura e mito............................................................... 12 A autonomia do literrio relativa................................... 14 Factores da personalidade nacional.................................. 14 As teses de Tefilo Braga................................................. 16 A ascendncia celta .......................................................... 17 O mar e expanso portuguesa.......................................... 18 Aspectos do celtismo ....................................................... 19 Uma combinao feliz? ................................................. 20 Castro Osrio: o mar e a vocao herica ....................... 22 Um temperamento discreto, matizado............................. 23 A moderao do bom-senso ............................................ 24 Unamuno: a viso trgica ................................................. 26 A situao geogrfica: isolamento e cosmopolitismo ...... 27 Lisboa e provncia: dois mundos ..................................... 29 Um modo diferente de ser europeu ................................. 30 Os intelectuais culpados ou vtimas? ............................ 31 Estrangeirados.................................................................. 33

  • A insero cultural na europa........................................... 34 Subjectivismo e aco....................................................... 35 O amor portuguesa........................................................ 38 Uma literatura lacrimejante .............................................. 39 Um lirismo saudoso ......................................................... 40 Ironia e stira .................................................................... 42 Portugal tem bons ficcionistas ......................................... 44 A escassez do trgico ....................................................... 47 Um teatro pobre............................................................... 47 O escritor longe do pblico ............................................. 48 Um misticismo portugus ................................................ 50 Da influncia da Inquisio.............................................. 51 Censura e autocensura...................................................... 53 Uma literatura fradesca .................................................... 54 Fatalismo e sebastianismo................................................ 55 O pendor oratrio e barroco............................................ 57 Da pica ao realismo ........................................................ 59 A nostalgia do imprio perdido........................................ 60 Sociedade e literatura: uma relao dialctica................... 63

    TEXTOS DE REFERNCIA

    Depem os poetas... ......................................................... 66 ... e os historiadores e ensastas ........................................ 72

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    DIRECTRIZES No ignoro as dificuldades do tema, nenhum se presta

    mais ao impressionismo vago ou levianamente dogmtico, mas tambm estou certo de no se tratar dum inefvel: ser possvel cerc-lo e cingi-lo por sucessivas aproximaes. Por enquanto, damos os primeiros passos: faltam-nos pesquisas prvias que em seguida enunciarei. Para j, convm acentuar: pressuponho a interdependncia, logo a relativa independncia, de literatura nacional e de cultura nacional; rejeito in limine, pois de nada serve, o conceito essencialista de Geist ou alma ou gnio nacional; prefiro considerar a cultura dum povo (neste caso, o portugus) na sua historicidade, como pluralidade de elementos solidrios num constante devir, num permanente refazer, entre os quais a literatura ocupa lugar relevante, envolvida numa rede de relaes extremamente complexa.

    LITERATURA VERSUS CULTURA NACIONAL Em ano j distante, Jean Hankiss aduzia esta definio

    de literatura nacional, que lhe parecia, se no a mais

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    completa, a mais corrente: A literatura nacional deve ser a expresso da alma nacional, quer no que esta tem de estvel, de eterno, quer nas alteraes essenciais a que se encontra sujeita (La Littrature et la Vie, So Paulo, 1951, p. 290). Deixando de remissa o normativo dever, deslocado no contexto, fica-nos a metfora alma, de cariz mstico, e a ideia igualmente mstica duma eternidade que a Histria desmente. Apenas se aproveitam, a meu ver, os sememas totalidade e alterao. Totalidade orgnica, juntava Hankiss, encarando a literatura nacional (e aqui sim, estamos de acordo) simultaneamente como expresso e instrumento: afigura-se orgnica, quer dizer coerente e viva, porque expresso da continuidade na vida da nao [...] ao mesmo tempo que o mais eficaz instrumento de todos os renascimentos, modificaes, reformas, revolues de que esta precisa para subsistir. Ora, o organismo apresenta-nos antes de mais nada o espectculo da sua identidade atravs das mudanas e da sua prpria evoluo por adaptao ao meio que se altera (ibid., pp. 290-291). exagerar o alcance da literatura na histria dum povo. Por muito que nos lembremos da influncia exercida por autores e obras (por exemplo, da aco dOs Lusadas no reavivamento e na mobilizao da conscincia nacional, ao longo dos sculos), temos de reconhecer que muitas das grandes transformaes sociopolticas pouco ou nada dependem da literatura. A nao revela-se, existe, mais ainda pela sua literatura que pela sua lngua - eis outra afirmao discutvel de Hankiss, que tende a assimilar literatura e nacionalidade. Na mesma linha de pensamento se situava, no h muito, Fritz Teixeira de Salles: Peculiaridade nacional ,

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    para ns, a feio literria singularizante do sistema expressivo geral dum povo. a sua maneira de se expressar literariamente (Literatura e Conscincia Nacional, Belo Horizonte, 1973, p. 50). Ser prefervel abordar o problema por outro prisma: a literatura, como a lngua, o folclore, o estilo de vida quotidiano, as artes plsticas, a msica, as instituies tradicionais, etc., constituem aspectos diferentes, conjugveis (mas com mbitos prprios e relativa autonomia), do que chamamos personalidade colectiva ou cultura nacional. Historicamente, nem sempre aparecem sincronizados, submetidos ao mesmo ritmo. Entretanto, h nas reflexes do ensasta brasileiro uma ideia que merece aqui ateno: a de que a literatura nacional no s reflecte como elabora uma realidade nacional especfica, a partir das virtualidades dum sistema - o da lngua nacional - onde actua um psiquismo colectivo, uma espcie de inconsciente idiomtico integrado ao inconsciente colectivo estudado por Jung (p. 51). Teixeira de Salles liga mais precisamente a peculiaridade nacional a certas constantes estilsticas, ao afloramento, atravs dos sculos, de comportamentos semnticos, de conotaes, de funes simblicas - toda uma nova estrutura estilstica dentro da estrutura da lngua, campo vastssimo por explorar.

    O MTODO COMPARATIVO O mtodo bvio para a definio da originalidade

    duma literatura nacional consiste em compar-la com as outras literaturas nacionais. Quase todos os elementos

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    que compem uma literatura vamos encontr-los, mas com tonalidade global e doseamento diferentes, noutras literaturas. Assim, cada literatura seria uma variante dum arqutipo que poderamos formar com os traos comuns a todas as literaturas. Literatura universal e literatura nacional, conceitos complementares, traduzem-se, no concreto da Histria, por um sistema de vasos comunicantes, em que cada unidade recebe e d. S poderemos compreender e bem definir uma literatura nacional em funo da literatura universal. Mas que sabemos ns da literatura universal? Trata-se, por enquanto, dum projecto de que estamos muito distantes. At que ponto condies idnticas, sejam elas de natureza histrica (econmica, social, poltica) sejam de natureza geogrfica, tm levado a resultados semelhantes nas literaturas? A nossa viso europocntrica limitou muito, at hoje, as nossas possibilidades de conhecimento. Mas at entre culturas e literaturas nacionais pertencentes civilizao ocidental e a cada uma das suas grandes reas falta estabelecer os nexos e os contrastes reveladores. S recentemente se comearam a gizar obras de conjunto amplamente informadas sobre fases histrico-literrias como as Luzes ou o Simbolismo.

    A PERSPECTIVA DIACRNICA Por outro lado, no bastar contrapor sistemas

    literrios: ser preciso ver cada um deles luz das realidades nacionais especficas, numa perspectiva diacrnica. A vinculao da literatura nacionalidade

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    que nos obriga a reconhecer como sistemas autnomos, apesar de servidos pela mesma lngua, literaturas como a portuguesa, a brasileira, a angolana, a moambicana, a cabo-verdiana, e a procurar nos temas, nas formas, no estilo de cada uma delas as marcas distintivas duma experincia colectiva nica. As estruturas interessam-nos quando percebemos como funcionam, que sentido tm num determinado meio, isto , no caso presente, numa determinada comunidade nacional. Decerto, cultura e literatura so coisas diferentes, mas s provisoriamente, por vantagem metodolgica, podemos isolar a segunda, considerando-a como sistema independente. A literatura alimenta-se do plasma da cultura, gera-se e desempenha um papel relevante no complexo de referncias culturais que definem a especificidade nacional. Fiama Hasse Pais Brando, em Novas Vises do Passado (1975), salienta no conceito de nacionalidade a mais original e mais inovadora obra de um indivduo (p. 57); mas, em que pese ao poeta, mesmo quando inova, a Histria perdura nele, actuante: aquele conceito tambm uma herana ou estratos do passado, o histrico das sucessivas geraes. O sentimento/conscincia da nacionalidade apoia-se numa rede de referncias mentais, constantes da linguagem oral ou escrita, e particularmente da literria, que com o tempo se foram (e vo) carregando de conotaes afectivas, imaginativas, mticas, e argamassando uma Weltanschauung colectiva. So em Portugal, por exemplo, Egas como smbolo da lealdade, D. Joo de Castro e a jura sobre as barbas, o rouxinol da Menina e Moa, o desespero do Adamastor, a prudncia desenganada do Velho do Restelo, etc. H poetas em que tais referncias se adensam sob a forma de citaes

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    ou aluses, ora expressas ora implcitas: lembro Afonso Lopes Vieira, Ruy Belo, Manuel Alegre1. Deste modo na linguagem potica se fixam e transfiguram os dados que fazem da memria colectiva a transmissora do sentimento da nacionalidade. Esses dados so de vria natureza, pois abrangem o acontecido, o pensado e o imaginrio, compreendem homens, gestos, expresses tpicas. Neles nos reconhecemos enquanto portugueses. Com seus lexemas e estruturas sintctico-estilsticas, seu jogo de significantes e significados, a lngua materna a grande medianeira onde o esprito d rplica ao real, porque a palavra ao mesmo tempo grava e transforma, encruzilhada do passado e do futuro, do social e do individual, em que o ser colectivo persiste e se outra.

    LITERATURA E MITO Literatura e mitologia nacional aparecem-nos, pois,

    unidas em relao dinmica. Se o mito um elemento essencial da dimenso humana da realidade, se est na prpria raiz da criao de tal realidade, podemos consider-lo como metfora vital. E neste sentido mais se estreita o seu contacto com a literatura (Marcelino C. Peuelas, Mito, Literatura y Realidad, Madrid, 1965, p. 134). Assim o mito e a literatura se fundem na zona ambgua e obscuramente nebulosa em que o homem entra quando trata de encontrar um sentido para as coisas e para a vida (p. 135). Fazendo mitogenia em mitografia, o escritor trabalha e enriquece, pela sua contribuio pessoal, o conjunto de mitos em que um povo se projecta. Fernando Pessoa chegou a dizer a

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    criao de mitos a mais alta misso a que um escritor pode aspirar.

    Neste passo, porm, mais sentimos as dificuldades a enfrentar. Pois quem indagou seriamente alguma vez o modo como o sentimento/conscincia da nacionalidade se traduz concretamente nos Portugueses, mediante uma proviso epistemolgica, um peclio de imaginrio e um quadro de valores reconhecidos, e como foi variando atravs dos tempos, e como varia hoje nas diferentes camadas socioculturais e etrias? Para pocas passadas s h o recurso aos sinais que ficaram em documentos e monumentos; mas em relao contemporaneidade at a ponderada organizao de inquritos ajudaria a determinar os elementos fundamentais da personalidade nacional na prpria conscincia dos Portugueses. Historiografia, relatos de viagens, literatura pica, oratria poltica, literatura ulica e de circunstncia (to abundante ainda no sculo XVIII), Romanceiro e contos tradicionais, paremiologia, letras de fados e canes - eis partes da selva imensa onde valeria a pena pesquisar tpicos, lugares-comuns da elaborao duma ideia de Portugal pelos Portugueses. E no se esqueceria o papel desempenhado pela escola (programas, livros didcticos) na instilao e preservao da lusitanidade. Tendo em vista a literatura, e atendendo importncia da interaco entre autor e receptor, a indagao visaria formas de mentalidade e de sensibilidade dos pblicos, suas exigncias, seus ideais, que condicionaram em cada poca a produo duma literatura vincadamente nossa2.

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    A AUTONOMIA DO LITERRIO RELATIVA Destas consideraes prvias decorre o propsito de

    respeitar o caracter prprio e a relativa autonomia do literrio dentro do conjunto de manifestaes culturais dum povo (e, na esfera da literatura, reconhecer a margem de iniciativa do indivduo escritor, capaz de, livremente, inventar a nacionalidade, como defende Fiama Hasse Pais Brando); mas deriva tambm a necessidade de no isolar a literatura, de associar formas a contedos, de ler as obras perseguindo sentidos que podem esconder-se nos interstcios da letra, emergindo do inconsciente colectivo; de utilizar os referentes, de situar, portanto, as obras na Histria para as apreender e compreender na totalidade. Sem me deter em fronteiras entre os dois campos, tratarei de teses e testemunhos que concernem cultura (que pas somos?) e de aspectos supostamente caractersticos da nossa literatura (que literatura temos?). Simples achegas para um estudo que s bem mais tarde algum estar em condies de levar a cabo.

    FACTORES DA PERSONALIDADE NACIONAL Nada mais fluido, mais dificilmente apreensvel, que

    essa entidade metafsica chamada gnio nacional, esse quid que os estudiosos procuram captar tanto em literatura como noutras manifestaes da vida colectiva. O meu objectivo modesto: aduzir e comentar algumas interpretaes que, embora discutveis, merecem ateno pela parcela de verdade que porventura

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    encerrem ou pelo seu valor como sintomas duma problemtica e dum modo de ser nacionais. Os mitos nacionais so tambm - no verdade? - realidades dignas de estudo, quer para o socilogo, quer para o historiador3. Se, uma que outra vez, transpuser os limites propostos (ah, a oratria, o canto da sereia!), antecipadamente peo que me desculpem os errores.

    A individualidade cultural duma nao (j Hermann Gumbel criteriosamente o acentuava) no deve ser concebida como essncia mstica e absoluta mas sim como algo dinmico, mutvel. Trata-se dum resultado extremamente complexo de factores fsicos (o solo, o clima, a situao geogrfica, o substrato tnico) e de factores histricos, uns conservadores, que podemos considerar condies, pressupostos, em determinado momento, da actividade espiritual (por exemplo, a estrutura econmica, a organizao social, a lngua, a sabedoria popular), outros de renovao (as contingncias da evoluo histrica e a inventiva, a iniciativa humana, que podem mesmo superar ou modificar os aludidos factores estticos). A mentalidade positivista das ltimas dcadas do sculo XIX tendia a valorizar os elementos fsicos da nacionalidade, mas so, claro est, os factores histricos que principalmente interessam ao teorizador da literatura, e nunca deve este esquecer que a individualidade nacional se manifestou e continuar a manifestar-se dinamicamente, um constante fazer-se e no uma coisa feita, inaltervel.

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    AS TESES DE TEFILO BRAGA Tefilo Braga, ao abrir os caboucos para a Histria da

    Literatura Portuguesa, tentou repetidas vezes definir e explicar o carcter portugus, integrando a literatura no conjunto das manifestaes do tal gnio nacional. Segundo Tefilo, a vocao martima dos Portugueses, com tpicos reflexos na sua literatura, provm da convergncia de duas causas: uma tnica, a ascendncia cltica, e outra geogrfica, a situao junto ao Atlntico, no extremo ocidental da Europa: a preponderncia do elemento celto-ligrico no territrio de Portugal - escreve o autor dA Ptria Portuguesa em 1884, na Revista de Estudos Livres -, e uma maior quantidade de sangue semita no espanhol, donde comeam a diferenciao e antinomias entre estas duas naes, que no foram criadas somente por conflitos histricos: actuou tambm poderosamente a situao geogrfica. O Ligrio era o Celta martimo; o povo portugus apresenta esses dois caracteres fundamentais: o gnio amoroso e o gosto das aventuras e expedies martimas. E Tefilo relaciona a seguir com o celtismo a f messinica, na feio prpria que tomou em Portugal: o sebastianismo: O sonho das Ilhas Encantadas lanou-o [ao povo portugus] na explorao do Mar Tenebroso, e o ideal dum triunfador vindouro, personificado mais tarde em D. Sebastio, levou os seus poetas a cantarem o destino de Portugal como o Quinto Imprio do mundo4. Esto aqui os tpicos tornados lugares-comuns em posteriores congeminaes sobre Portugal e a literatura portuguesa: a definio (justificativa da existncia de Portugal como pas) em

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    contraste com a Espanha; a tese tnica, fundada em dados antropolgicos mais ou menos frgeis; a tese geogrfica; a associao de ambas caracterizao do Portugus pelo feitio amoroso e aventureiro e pelo sebastianismo, a que se liga o sonho do Quinto Imprio.

    A ASCENDNCIA CELTA Como Tefilo Braga pondera, em abono da

    explicao pela origem celta, no faltam na Idade Mdia indcios da voga alcanada pela matria bret em Portugal - indcios que Rodrigues Lapa vir de novo pr em realce: a verso da Demanda do Santo Graal, o Amadis de Gaula, cujo texto original, perdido, se julga ser portugus, as narrativas lendrias da Bretanha inclusas no Livro de Linhagens do Conde de Barcelos, os lais annimos referentes aos amores de Tristo e Iseu (a que tambm D. Dinis alude numa cantiga), as aluses aos bons cavaleiros da Tvola Redonda feitas por D. Joo I e pelos fidalgos que o rodeavam, como testemunha Ferno Lopes, a admirao de Nunlvares pelo casto Galaaz, etc. O prprio Romanceiro popular mostra a vulgarizao de histrias, temas e personagens da matria bret, e Tefilo Braga, ordenando romances e lais, organizou carinhosamente um poema de Tristo o Enamorado. Para esta surpreendente voga das lendas brets, o iniciador da nossa Histria literria no via razo que no fosse a persistncia dum grande elemento cltico no povo portugus5.

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    O MAR E A EXPANSO PORTUGUESA Tefilo secundou Herculano na antipatia pelo

    Renascimento, considerando o absolutismo e a imitao dos clssicos greco-latinos consequncia lamentvel do predomnio da aristocracia asturo-leonesa sobre a populao autctone, morabe, onde palpitaria o ldimo gnio nacional. Mas, tardiamente embora, veio a reconhecer a grandeza do sculo XVI portugus, cuja literatura reflecte a epopeia da expanso martima e da criao dum imprio, e assinalou o papel decisivo do mar, do convvio com o mar, na configurao histrica do Portugus: Pas estabelecido por uma raa sofredora e resistente sobre a orla ocidental de Espanha, e em contacto activo com o Oceano Atlntico - o mar a paisagem suprema, que nos subjuga e fascina. Se toda a nossa histria, independncia nacional e descobrimentos, deriva do mar que nunca para Portugal foi barreira defensiva, mas prolongamento do territrio e caminho de aco, a nossa vida sentimental e potica encontra no mar a mais concentrada e deliciosa emoo, a mais profunda inspirao potica, como se patenteia nos Lusadas6.

    Neste trecho h uma observao justa que convm no esquecer: ao invs do que sucede na cultura da Galiza, o mar em Portugal menos motivo de elegia que motivo de epopeia, caminho de aco.

    A evoluo da atitude de Tefilo perante o quinhentismo traduz-se, por exemplo, nos juzos expendidos sobre Joo de Barros: depois de o classificar displicentemente de historiador culto, hirto, submetido ao jugo da gramtica latina, acabou por

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    admitir que o autor das Dcadas da sia sentira a agitao dum povo inteiro e transmitira na sua obra as impresses recentes que lhe causara a aco colectiva. Os nossos historiadores, afirma com efeito Tefilo Braga7, venceram a corrente erudita, ficaram coloristas; o contacto do natural d-lhes fantasia e paixo, quebra-lhes a aridez da crnica; quando menos pensam, fazem um poema. Nem de outro modo se pode explicar a aco de Castanheda e de Joo de Barros sobre Cames.

    As tentativas posteriores de caracterizao e de explicao da originalidade cultural portuguesa insistem nestas mesmas ideias, embora possam desenvolver certos aspectos ou descer a uma anlise mais rigorosa das manifestaes literrias.

    ASPECTOS DO CELTISMO A tese do celtismo, largamente defendida por

    etnlogos, pensadores e ensastas galegos, tem partidrios em Portugal e noutros pases. Stephen Reckert atribuiu o sentimentalismo saudoso dos povos celtas no apenas predisposio tnica mas ainda s vicissitudes da emigrao, ao contacto com o mar e ao carcter melanclico da paisagem que os envolve, desde o norte da Esccia at ao Mondego8. Plcido Castro viu na saudade, em particular na saudade do impossvel, a saudade pura que nunca pode ver-se satisfeita, um sentimento tipicamente celta9. Rodrigues Lapa perfilha a ideia de ntimas relaes culturais baseadas numa comunidade tnica: Com efeito -

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    escreve ele -, a arqueologia e a etnografia, activamente cultivadas na Galiza, tm demonstrado que houve antiga comunicao e identidade cultural entre o noroeste da Pennsula e os povos bretes. Um fundo comum de remota civilizao patenteia-se na flagrante semelhana dos petrglifos, dos castros e seus despojos. Nos prprios produtos da arte crist, em que se denuncia a sobrevivncia de antigos ritos, como nas cruzes de pedra, to frequentes na Galiza, h uma dedada inconfundvel, que os aproxima estranhamente dos monumentos congneres da Bretanha, como ficou provado pelos trabalhos do grande artista galego Castelao. O substratum cltico parece, pois, um facto cientificamente provado e no apenas, como muitos cuidam, uma fantasia literria. Rodrigues Lapa evoca, a propsito, o simbolismo da fidelidade amorosa expresso no florescimento da campa dos amantes, que reaparece nos nossos romances populares; a mitologia dos contos tradicionais portugueses, povoados de fadas, feiticeiras, anes e gigantes; o profetismo do Bandarra, que sugere as predies do encantador Merlim, etc. - tudo manifestaes dum mesmo tipo de imaginao e de sensibilidade10.

    UMA COMBINAO FELIZ? Mais recentemente, Francisco da Cunha Leo, em O

    Enigma Portugus (Lisboa, 1960), deu novo arranjo tese cltica. O Portugus - aventa ele - uma criatura saudosa, mas a saudade (de acordo com a lio de Teixeira de Pascoaes) contm dois elementos, um

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    passivo, de contemplao, outro activo, herico, e estes dois elementos explicar-se-iam por um duplo substrato tnico: ao norte, no Minho, os Celtas; ao centro, nas Beiras, os Lusitanos: Os dois elementos, alm-duriense e beiro, impregnaram demograficamente o Pas ao longo da linha de fora Norte-Sul, eixo dinmico da Nacionalidade, que a partir do Porto, pela faixa da Beira Litoral, se bifurca passada Coimbra, descendo o vale do Tejo e ocidente estremenho at Lisboa (p. 152). Os ncleos mais diferenciados da nacionalidade seriam, portanto, o Minho e as Beiras: o Minho, de substrato celta, com o seu esprito potico, a sua delicada e complexa sensibilidade; as Beiras, de substrato lusitano, com o seu temperamento prtico, activo, tenaz, prprio de exploradores e de polticos. O portugus uma combinao feliz. Isolado, o elemento galaico, tanto pela base geogrfica no determinativa como por temperamento, arriscar-se-ia a perder-se nas nuvens ou num trabalho de obscuro formigueiro; isolados, os lusitanos careceriam de uma subconscincia antagnica bastante para os tornar irredutveis absoro castelhana, antes e alm dos campos de batalha11.

    Esta hiptese (como tal inculcada) de Cunha Leo mais engenhosa que bem fundada. Falta-me autoridade na matria para aqui a examinar em pormenor. Limito-me a observar que, alguns anos atrs, os trabalhos de Scarlat Lambrino haviam confirmado a ideia, j defendida por Adolfo Schulten, de os Lusitanos serem celtas tambm; os prprios nomes de Lusitanos e de Viriato o indicariam12. Por outro lado, quanto aos caracteres tpicos de minhotos e beires, tambm as

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    diferentes condies geogrficas (paisagem, solo, clima) podem ajudar a explic-los.

    CASTRO OSRIO: O MAR E A VOCAO HERICA A experincia colectiva do mar, essa foi de novo

    realada nas pginas em que Joo de Castro Osrio esboou uma teoria da literatura portuguesa. A tese vem do sculo XIX: Latino Coelho sustentara que Portugal nao desde o dia em que saiu a cruzar os mares13, Tefilo Braga dissera, categrico: A vida histrica de Portugal coincide com o perodo das expedies e descobertas martimas; ento compreendia-se a nossa situao junto do mar, reagindo-se contra a presso do continente. Fomos um povo de mareantes14. Nos nossos dias, um poeta confirmaria o historiador: O que fizemos de bom e de mau foi salgado na fora das mars vivas15. Eis, na verdade, uma das ideias-motrizes mais tenazes na cultura portuguesa: o eixo da vida histrica portuguesa est no binmio Continente-Ultramar, Portugal no encontraria justificao em si prprio, mas num movimento centrfugo, de reaco.

    Joo de Castro Osrio discorreu do mesmo modo: nos sculos XV e XVI que Portugal se realizara como nao, revelando na luta com o mar a sua vocao herica. Anteriormente, no possua uma cultura prpria. Sobretudo a partir do incio da expanso martima, quer dizer, desde os princpios do sculo XV, correspondendo na nossa Literatura primeira afirmao das verdadeiras caractersticas nacionais, h

    PinuHighlight

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    que ver quanto os descobrimentos, guerras no alm-mar e colonizao (e a fora herica, tragdias e sofrimentos que implicam) reagem sobre a nossa evoluo literria e a condicionam, despertando a conscincia do novo homem16. Mas esta tese (que tem a tonaliz-la, em Castro Osrio, o timbre pico prprio do autor; o Portugus, na sua concepo, definir-se-ia pelo herosmo) afigura-se demasiado categrica ou unilateral. Pois no descobrimos j na lrica e na stira medievais tendncias que sero constantes da literatura portuguesa? E no seria a lngua galego-portuguesa, j constituda e esteticamente elaborada, expresso e agente duma forma mentis colectiva?

    UM TEMPERAMENTO DISCRETO, MATIZADO Algumas caracterizaes sumrias, impressionistas, do

    gnio portugus firmam-se, como natural e j atrs se observou, nos contrastes com o gnio castelhano. Oliveira Martins, por exemplo, escreveu estas palavras que Jaime Corteso havia de aplaudir: H no gnio portugus o quer que de vago e fugidio, que contrasta com a terminante afirmativa do castelhano; h no herosmo lusitano uma nobreza que difere da fria dos nossos vizinhos; h nas nossas letras e no nosso pensamento uma nota profunda ou sentimental, irnica ou meiga, que em vo se buscaria na histria da civilizao castelhana [...]. E, noutro lugar: Nenhum trao profundo distingue a nossa geografia; benigno, mdio ou temperado o nosso clima, e tambm o nosso carcter17.

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    O ensasta Moniz Barreto, por seu turno, notou na literatura portuguesa, ao compar-la com as literaturas francesa, inglesa, alem e italiana, uma maior capacidade de compreender e assimilar (aspecto em que voltar a incidir Aubrey Bell), uma menor energia de afirmao e crena, uma sensibilidade mais delicada e profunda, um carcter menos vigoroso e mais nobre, mais razo e menos vontade, heris mais humanos, mulheres mais mulheres, alguma coisa de saudoso e vago, entranhas mais hmidas e o dom das lgrimas18. Palavras um tanto ingnuas e bastante discutveis, que no podemos citar perante estrangeiros sem um sorriso comprometido, mas onde valer a pena destacar alguns traos comuns definio de Oliveira Martins: o temperamento menos afirmativo, mais matizado, e a delicadeza afectiva. A fisionomia idiomtica do galaico-portugus harmoniza-se com esta interpretao, ainda hoje corrente: uma lngua discreta, de finos matizes, at no vocalismo; um castelhano sem ossos, na conhecida expresso de Cervantes. Tudo fraterniza nesta lngua de silncio, de intimidade imediata - corroborava Leonardo Coimbra num artigo dA guia (2. srie, vol. I, p. 190), reconduzindo-nos ao lugar-comum da vocao lrica nacional.

    A MODERAO DO BOM-SENSO Se temperado o nosso carcter, como pretendia

    Oliveira Martins, talvez pudssemos associar discrio afectiva a moderao do bom-senso. Diz-se que o Portugus um romntico, define-se o Portugus pela

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    emotividade, pela impulsividade. Mas sero tais atributos que o distinguem de outros povos meridionais? Ou ficar antes num meio-termo, corrigindo a emotividade pela cautela e o entusiasmo da novidade pelo apego tradio? Um misto de aventura e rotina, para repetir a frmula de Gilberto Freyre? Pelo menos na esfera da cultura, no fomos tantas vezes vagarosos e prudentes no modo como seguimos os grandes movimentos de renovao? No balizmos com firmeza o Renascimento, tentando concili-lo com uma Idade Mdia ainda vivaz no Portugal quinhentista? No mitigado e bastante razovel o nosso Romantismo, alheio a voos msticos ou de solta fantasia? No se mostram, em certo sentido, anti-romnticos os mentores do Romantismo portugus? No foi necessrio esperar pelos fins do sculo XIX ou at pelo sculo XX para assistir, na literatura portuguesa, a mais estremes manifestaes de romantismo, em poetas como Antnio Nobre e Pascoaes, em ficcionistas como Raul Brando ou Agustina Bessa-Lus? E no tem sido um trabalho de Hrcules libertar a nossa prosa literria do sensato e do retrico?

    No trato de todos os dias ainda se observa, pelo menos na alta e mdia burguesia, um formalismo, uma compostura, um apego a etiquetas (o V. Ex. e a Sr.a D. nas simples conversas) que devem remontar gravidade cortes do portugus clssico. O Presidente senegals, Lopold Senghor, mostra-se impressionado com a sisudez e mesmo a tristeza dos Portugueses: O que me impressionou, imediatamente, chegada, ao desembarcar pela primeira vez em terra portuguesa, foi, nos rostos, nas falas e nas maneiras, uma mistura de

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    seriedade, mas tambm, e importante, como que o esboo de um sorriso no canto dos lbios19.

    UNAMUNO: A VISO TRGICA Ao debruar-se, alis com viva simpatia, sobre a

    espiritualidade portuguesa, Miguel de Unamuno exagerou as facetas trgica e elegaca. Portugal seria um povo triste, angustiado, sem esperana, um purgatrio povoado de almas, ptria dos amores tristes e dos grandes naufrgios, terra de suicidas. O culto das almas do Purgatrio - nota Unamuno - aqui muito mais fervoroso que em Espanha. O culto da dor parece ser um dos sentimentos mais caractersticos deste melanclico e saudoso Portugal. Para Portugal o Sol nunca nasce: morre sempre no mar, teatro dos seus grandes feitos e bero e sepulcro das suas glrias20. Haver um fundo de verdade nestas afirmaes; mas temos de ver nelas, seja como for, no s um evidente sintoma do pendor dramatizante de Unamuno como ainda um reflexo dum momento histrico ultrapassado: o fim-do-sculo portugus, ensombrado pelo sentimento da decadncia ptria na fase de decomposio do regime monrquico e, no plano literrio, pelo pessimismo que minava simbolistas e decadentistas. Um Oliveira Martins, um Antero, um Junqueiro, um Nobre, um Laranjeira, um Soares dos Reis seriam, para Unamuno, os termos de referncia. Claro que, em novo condicionalismo poltico-cultural igualmente depressivo, podem reaparecer os traos que tanto impressionaram o pensador biscanho.

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    A SITUAO GEOGRFICA: ISOLAMENTO E COSMOPOLITISMO Voltando situao geogrfica e aos factores

    histricos, observa-se que o nosso pas, no obstante a passagem de muitos e desvairados povos, uns vindos da frica, outros do centro da Europa, e apesar das relaes martimas j em pocas remotas, foi condenado pela sua posio marginal a um relativo isolamento. Vivendo ns to no cabo do mundo, e onde to tarde nos amanhece (como dizia no sculo XVII D. Vicente Nogueira), s com aprecivel atraso vamos acompanhando a evoluo europeia na mentalidade e nos costumes; e quando, provincianamente, nos deleitamos com coisas novas, j esto a passar de moda nos pases de origem. esta uma queixa repetida. No sculo XVIII, o Cavaleiro de Oliveira comparava Portugal a um relgio sempre atrasado: nada de novo l entra que no tenha j envelhecido em outros pases21. Os Portugueses no viajavam pela Europa: um portugus em Paris, no tempo de Filinto, era avis rarissima; demandavam, sim, outros continentes, preferindo os caminhos do Atlntico.

    O gegrafo Orlando Ribeiro assinalou a importncia desta posio singular [...] que tanto colocou esta fachada atlntica da Ibria entre as finisterras do mundo antigo como fez dela uma espcie de cais, de onde partiu o movimento de expanso que garantiu Europa uma posio nica no resto do globo22. E o socilogo Gilberto Freyre ps em foco o modo original como o

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    Portugus se realizou historicamente, derramando-se pelo mundo, dissolvendo-se sempre noutros povos, a ponto de parecer ir perder-se nos sangues e nas culturas estranhas23. O que j um poeta, Alberto Osrio de Castro, dissera com palavras de poeta: a alma portuguesa comunica hoje, errante, desenganada e entristecida, mas to sensvel, to sensitiva! pelos longos caminhos do mundo, com a alma de todas as raas e de todos os pases... Em todo o mundo Portugal24.

    Assim se compreende talvez que, para Robert Ricard, a literatura portuguesa seja uma literatura solitria, fruto duma solido desconfiada e melanclica25, viso confirmada por Jorge de Sena ao falar de um mundo rural, ensimesmado em rios e montanhas, nos confins da Europa [...], espcie de Irlanda sem histria26 - enquanto, segundo Oliveira Martins, as qualidades peculiares nossas consistem na facilidade com que recebemos e assimilamos as de estranhos27 e, na opinio de Aubrey Bell, os Portugueses se distinguem por uma invulgar capacidade de encorporar o alheio (uma receptividade ateniense - dizia o lusfilo ingls) e pelo esprito cosmopolita, o gosto do desconhecido, o jeito de lidar com povos diferentes. A propsito, Aubrey Bell citava a frase dum portugus do sculo XVI, Andr de Burgos: Este desejo (de sempre ver e ouvir cousas novas) he moor que nas outras naes na gente Lusitana. Logo, a par do isolamento marginal, o impulso capaz de o superar, principalmente pela devassa do mundo escondido alm do oceano. Dualidade a desafiar os intrpretes da realidade portuguesa: provincianos bisonhos, teimosos, petrificados em hbitos e preconceitos, tornam-se espantosamente

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    plsticos, conviventes, uma vez transplantados para outros climas - e, na esteira dum Gilberto Freyre, vem, por exemplo, um Temstocles Linhares proclamar a extrema flexibilidade do Portugus como colonizador, a sua capacidade influenciadora, de integrao e humanizao28.

    LISBOA E PROVNCIA: DOIS MUNDOS Entre Lisboa e certas regies do pas, s vezes a dois

    passos daqui, deparam-se contrastes violentos. Porto sada da Europa, Lisboa de h muito local de passagem de gentes e produtos vindos de toda a parte; em relao ao resto do pas, centro de convergncia e irradiao. Muito mais caracterizados, arcaicos, certos recantos da provncia obrigam-nos, pela observao da paisagem humana, das tcnicas, dos costumes, a ascender a um passado remoto, quando o pastoreio e uma agricultura que comeava a fixar-se prenderam ao solo as populaes do fim da idade da pedra - como pondera Orlando Ribeiro ao estudar algumas povoaes megalticas de Trs-os-Montes29. Os contrastes entre Lisboa e a provncia so tambm de mentalidade, h, dum lado, certo desdm de civilizado, do outro, um orgulho ressentido. Miguel Torga pe a descoberto uma mtua hostilidade latente que os anos no suavizam, o campesino encarna o Velho do Restelo, o bom-senso telrico defende-se de um destino que nunca quis do corao, e que em Lisboa teve e tem ainda o seu aliciante embarcadoiro, real ou imaginrio30. Mas, claro, no se trata de compartimentos estanques, a provncia ,

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    cada vez mais, permevel a modas e conceitos, o turismo vai-lhe abrindo os olhos, a emigrao ajuda, por seu turno vemos formas de mentalidade provinciana instaladas em Lisboa, at nas pginas dos grandes jornais; Caarelhos continua a descer capital, os anjos (?) no cessam de cair31.

    UM MODO DIFERENTE DE SER EUROPEU Portugal partilha com a Espanha o sentimento

    estranho de estar na Europa no sendo Europa32, donde a nostalgia, a insatisfao expressas por Jos Osrio de Oliveira em O Sonho Intil, p. 91: vivemos, portanto, de certa maneira, fora de ns. E isto porque a Histria nos afastou da Europa, e a Geografia nos mantm longe dela, sem que sejamos de outra parte do mundo. Como a Espanha, sofremos a tenso, o persistente conflito entre casticismo e europesmo. Reaportuguesar Portugal tornando-o europeu, lema inculcado por Lopes Vieira, uma bonita incongruncia, como no passa de paradoxo para dar nas vistas a ideia, defendida uma vez por Fernando Pessoa, de que s os Portugueses, na Europa, so verdadeiramente europeus. O esprito de cruzada, o esprito inquisitorial, o escolasticismo, a pseudocultura retrica vieram para ficar, ganharam razes de incomum tenacidade. Desde, pelo menos, o sculo XVIII, uma escassa minoria de estrangeirados (esses poucos que viajam pela Europa de mente aberta, no raro foragidos, ou os que sonham, como Cesrio Verde, com os famosos centros cosmopolitas, Madrid, Paris, Berlim, So Petersburgo,

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    o mundo!) encontra resistncia obstinada da parte dos tradicionalistas, ferozmente suspeitosos perante novidades de alm-fronteiras.

    J mesmo no sculo XVI um isolado, Damio de Gis, to lucidamente estudado por Marcel Bataillon, personificou entre ns um esprito europeu. Nos sculos XIX e XX multiplicaram-se os esforos duma elite sempre renovada para modernizar Portugal - desde as Conferncias do Casino, de 1871, aco pedaggica da revista Seara Nova, onde se destacou o nome do racionalista-idealista Antnio Srgio. A polmica Srgio-Pascoaes nas colunas dA guia (racionalismo versus saudosismo) foi uma das expresses desse velho e permanente antagonismo. Outra, a crescente oposio entre Fernando Pessoa e os homens da Renascena Portuguesa, em que o poeta de comeo se integrara, oposio que se concretizou em 1915 no Orpheu. Pessoa e S-Carneiro chegaram a pensar em dar o ttulo de Europa revista que seria em Portugal o necessrio grito de modernidade.

    OS INTELECTUAIS - CULPADOS OU VTIMAS? Esse escol que se prope reformar a mentalidade e o

    sentir esttico dos Portugueses experimenta muitas vezes o travo do malogro. A curva de entusiasmo e de desiluso percorrida pelos componentes da gerao de 1871 oferece-nos um exemplo frisante que convida a reflectir. Homens da craveira de Antero, de Oliveira Martins, de Ea de Queirs no conseguiram penetrar

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    na grande fortaleza dos medocres e dos indiferentes, cuidadosamente protegida pelos polticos do tempo. Ouamos o testemunho isento de Carlos Malheiro Dias, ao descrever a situao dos Vencidos da Vida na sociedade portuguesa: Aqueles homens estimavam-se. Aqueles homens divertiam-se. E o que Lisboa no queria compreender era que s dela, da sua insignificncia, do seu horror intelectual, da sua ausncia de cultivo, da sua falta de esprito e de maneiras provinha a unio daqueles homens, a quem uma mesma superioridade isolara da restante gente, sentindo-se repelidos pela mesma mediocridade dominante. O grupo dos Vencidos da Vida foi a resultante de uma seleco intelectual, muito mais que um propsito altivo de isolamento, entre uma sociedade governada pelo poltico, pelo financeiro e pelo tolo33. Os renovadores entusiastas de 65 e de 71 acabaram insulados, neutralizados, reduzidos cavaqueira inteligente, diletante: vencidos.

    Nas pginas de O Sangue de Vale de Josafat (das mais infelizes que Raul Brando escreveu, inquinadas como esto do preconceito racista) atribui-se falta de elites a decadncia portuguesa: quando h chefes - diz Raul Brando - o povo portugus, o povo de pequenos labrostes, com a fidelidade do galego, a sobriedade e a obedincia, a admirao pelo fidalgo e um cachao de propsito para a canga, obedece, marcha, pronto para as grandes empresas. J Fernando Pessoa, pensando no em guerras ou conquistas mas na vida mais elevada da cultura, v as coisas doutro ngulo: queixa-se da forma endurecida da estupidez tradicionalista que mantm Portugal segregado da Europa, lamenta a ausncia dum

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    meio culto altura dos intelectuais que vo surgindo no pas34. No mesmo sentido se pronuncia Jorge de Sena, reiterando com dobrado pessimismo queixas que vm do sculo XV: No temos tradies de alta cultura, tivemos sempre grandes homens que se tinham enganado no lugar em que nasceram35.

    ESTRANGEIRADOS Certo que vrias maneiras existem de se ser

    estrangeirado, que o estrangeirado por vezes um snob (provinciano de travesti) que faz gala em depreciar tudo quanto nacional sem nada de positivo oferecer em troca. Nos seus romances, Ea de Queirs mete com razo a ridculo no s a auto-suficincia dos que, tal o conde de Ribamar no Crime do Padre Amaro, afirmam com uma petulncia idiota que o seu pas causa inveja ao mundo inteiro, mas ainda o snobismo igualmente ftil dos que, a exemplo do visconde Reinaldo no Primo Baslio, se distraem a dizer mal do que portugus e afirmam que s podem j viver num meio civilizado como Paris. Tambm o ressentimento, justo ou mal fundado, pode enegrecer a viso das coisas ou exagerar verdades duras. Continua por fazer o estudo fundamental do significado dos estrangeirados na histria da cultura portuguesa. At que ponto ser tpica a atitude dum homem superior, Alexandre de Gusmo, ao dirigir uma carta em 1750 a Antnio Freire Encerrabodes, enviado de Portugal corte de Inglaterra? No se esquea V S. dos amigos que deixou lutando com as ondas do mar da superstio e da

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    ignorncia; e agradea aos seus inimigos o mimo de que actualmente goza. Na Inglaterra, livre de animais que o molestavam, Encerrabodes gozava da liberdade que Deus conferiu ao homem - na frase de Alexandre de Gusmo36.

    A Revoluo de Abril, seguida do processo de descolonizao em 1974-75, que de certo modo vai obrigar o pas a uma definitiva europeizao, no sentido cultural como nos aspectos econmicos e polticos. A indeciso entre duas opes possveis (?) - Europa ou Terceiro Mundo - parece superada, embora se procure converter a proclamada vocao universalista numa funo de medianeiro entre a Europa, a frica e o Brasil.

    A INSERO CULTURAL NA EUROPA Do ponto de vista literrio, se cumpre reconhecer que

    a provncia se tem revelado, em inmeros autores, de inspirao regionalista, fonte copiosa de enriquecimento e factor de caracterizao (do Herculano do Proco e de Camilo at Aquilino, Torga, Nemsio, Agustina, etc.), convm, por outro lado, acentuar que uma captao literria do castio no incompatvel com um esprito europeu e que iniciativa dos estrangeirados de vrias pocas, afinal to portugueses como os outros e empenhados na real valorizao do pas, se deve em boa parte a solidariedade histrica, posta em relevo por Tefilo e Moniz Barreto, da cultura portuguesa com a Europa. A influncia francesa, como se sabe, foi dominante na Idade Mdia; as influncias italiana e

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    espanhola prevaleceram no Classicismo e no Barroco; a partir do sculo XVIII, a presena da Frana torna a ser hegemnica, e, a bem dizer, a cultura e a literatura portuguesas voltam as costas Espanha; mas os estmulos anglo-germnicos encontram-se tambm nas origens do Romantismo portugus, as cincias do Homem, na segunda metade do sculo XIX, devem muito Alemanha, e de formao predominantemente inglesa a figura cimeira e mais actuante do Modernismo portugus: Fernando Pessoa. Note-se ainda margem que, num pequeno pas como Portugal, tem havido o compreensvel desejo de cultivar as diferenas que justificam a sua autonomia, e um dos modos de se diferenciar da vizinha Espanha - mais propriamente de Castela - foi, no plano cultural, dar a primazia Frana.

    SUBJECTIVISMO E ACO Se tivermos em conta os autores que mais

    detidamente enunciaram as caractersticas da literatura portuguesa, como Fidelino de Figueiredo, Aubrey Bell, Antnio Srgio, Antnio Salgado Jnior37, e tambm algumas achegas de historiadores, etnlogos e ensastas, como Jaime Corteso, Jorge Dias, etc., poderemos talvez concluir que duas tnicas fundamentais individualizam a cultura e a literatura nacionais: o subjectivismo e a aco. No primeiro se filia, com efeito, a j proverbial inclinao lrica; e foroso reconhecer que o mais abundante caudal desta literatura de fins do sculo XII aos nossos dias, tem sido o da poesia lrica - poesia amorosa, terna ou apaixonada, obsessiva,

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    nostlgica. Em parte por esta feio literria, comum Galiza e a Portugal, e ainda porventura porque a mesma ndole se manifestava no plano da vida quotidiana, nos sculos XVI e XVII Galegos e Portugueses tinham fama, na Pennsula, de sentimentais e muito atreitos ao amor - fama que, por seu turno, havia de projectar-se na literatura. Nem valeria a pena citar os textos abonatrios j aduzidos por Tefilo Braga, a comear por Gil Vicente, em cujas Cortes de Jpiter Marte, ao elogiar os Portugueses, diz que so extremo nos amores, e Jorge Ferreira de Vasconcelos, autor da comdia Eufrosina, onde assevera uma personagem, Zeltipo: S o Portugus, mago e timbre dos Espanhis [isto , dos peninsulares], e grimpa de todas as naes, como atilado, gentil, galante e nobre esposo, compadece todos os efeitos do amor puro, no consinte mal em sua dama, no sofre ver-se ausente dela [...] nem dormindo perde dela lembrana, antes nisso se deleita, determinado em viver e morrer com ela se desespera, mata-se ou faz extremos mortais, tudo isto e muito mais se acha no bom Portugus, de sua natural constolao apurado no amor (Acto V, Cena V). No sculo XVII, nas Epanforas, D. Francisco Manuel de Melo confirma que o nosso natural entre as mais naes conhecido por amoroso; e assim o admitiam, na verdade, os Espanhis do Sculo de Ouro, divulgadores do mito: personagens de Lope de Vega declaram que nasceu amor em Portugal, e que os Portugueses amam por natureza. Porque a literatura tambm se nutre mimeticamente de literatura, escritores lusitanizantes continuam, pelos tempos fora, a glosar os extremos e finuras do amor portugus. Tefilo acumula exemplos,

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    com vista a uma definio da psique nacional: os amores de Pedro e Ins, com um fascnio que lhes deram projeco europeia; os amores lendrios de Bernardim Ribeiro, que o teriam afundado na loucura; a dedicao de Manuel de Seplveda a sua mulher, D. Leonor de S, assunto dum episdio dos Lusadas, como tambm a histria dos Doze de Inglaterra, rasgo de servio cavalheiresco para desagravo da honra feminina; o desvairo amoroso de Mariana Alcoforado, a quem se atriburam as clebres Lettres Portugaises, etc. Antnio Sardinha navega nas mesmas guas, ao definir a literatura portuguesa em contraste ( o tpico habitual j referido) com a de Castela: Portugal o Cancioneiro - a poesia lrica, o Encoberto, a vocao martima, a novela de amor. Por sua parte, Castela a vocao terrestre, o Romanceiro, D. Quixote, a novela de costumes, eternizada nos seus vrios Lazarillos, Alfaraches e C.38

    Confronto semelhante, este de Fidelino de Figueiredo, acentua o lado subjectivo do Portugus: Se a literatura espanhola fora, a portuguesa amor, intriga ertica, lirismo, subjectivismo, contemplao, devaneio, nostalgia, e, quando exprime fora, exprime-a em atenuadora aliana com o lirismo39.

    Fernando Pessoa, reagindo, denunciava a pobreza, a monotonia da emoo que se repetia na nossa literatura at ao enjoo, confrangendo a inteligncia40. A influncia que exerceu foi no sentido oposto: poesia cerebral, poesia jogo, se bem que jogo duma inteligncia angustiada. Deu o exemplo multiplicando-se nos heternimos; mas no foi alm do drama esttico,

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    partilhando assim a tendncia contemplativa dos seus compatriotas.

    Menos evidente num Miguel Torga, num Jos Gomes Ferreira ou numa Sophia de Mello Breyner, a elaborao intelectual da poesia, cujo objecto muitas vezes a prpria poesia, a prpria linguagem, marca os poetas portugueses de hoje, que avultam em nmero e qualidade - de Vitorino Nemsio a Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, Eugnio de Andrade, Antnio Ramos Rosa, Herberto Helder.

    O AMOR PORTUGUESA Entretanto, se virmos bem, o modo portugus de

    amar que se manifesta em literatura comporta variadssimos cambiantes, desde o longo sofrer do amor infeliz, resignado, inquebrantvel, at s alegrias brandas do amor correspondido, pr-nupcial. Celebrizou-se a quadra popular onde palpita a nsia de absoluto no amor: Chamaste-me tua vida,/Eu tua alma quero ser./A vida acaba com a morte./A alma no pode morrer. Jos Rgio, um crtico poeta, na introduo da antologia Poesia de Amor (Porto, 1945), assinala: O que mais nosso, porm, por ser evidente nas mais belas composies dos nossos poetas mais representativos, que os sentidos ou so violentamente anatematizados - quando ao poeta parecem conspurcar o seu ideal de amante e o seu sonho de amor - ou so redimidos e sublimados pela prpria elevao desse ideal e desse sonho. Com efeito, a tradio e os costumes aconselhavam o recato; nos nossos poetas

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    baudelairianos, por exemplo, a volpia ertica aparecia muito atenuada; maiores audcias na expresso do amor, como em Bocage, obrigaram a edies clandestinas. Antnio Botto e Jos Rgio escandalizaram. Fernando Pessoa, cautela, preferiu o ingls para os seus poemas libertinos. Eduardo Loureno, em Fernando Pessoa Revisitado (Porto, 1973, p. 120), no deixou em silncio este nosso puritanismo: Toda a nossa histria literria moderna (e a outra?), assptica de fazer vmitos, desde o fatal Garrett at ao casto Pascoaes da Elegia do Amor, passando pelo narcisismo natural do cego Castilho... E s os progressos da sociedade permissiva consentiram mulher a franca expresso do amor carnal (Natlia Correia, Maria Teresa Horta, as Novas Cartas Portuguesas).

    UMA LITERATURA LACRIMEJANTE Na citada introduo de Poesia de Amor caracteriza-se a

    lrica portuguesa por uma quase identificao do amor com o sofrimento. Aprendizado que se vai repetindo ao longo da histria literria? Reflexo da situao psicolgica duma aristocracia do esprito? Sintoma dum temperamento e dum estilo de vida colectivos? O amor dolorido, e com ele o prazer mrbido de sofrer, o gosto de estar triste e de avivar pela palavra as mgoas sofridas, contradizem a alegria do portugus comum ou so antes marcas duma sensibilidade que se denuncia em vrios nveis e facetas da vida portuguesa? Jos Rodrigues Miguis, cuja argcia de observador servida por larga experincia de povos diferentes, h cerca de

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    quinze anos, num artigo de jornal, fazia a este respeito pertinentes consideraes: Assim promovida a sistema - escrevia -, a dor infiltra e afeioa a moral, a poesia, a msica popular, a poltica, o iderio dum povo. Algures, em Lope de Vega, um personagem indaga: Acaso sois portugus, que tanto vos chorais? Palavras tais como lgrimas, tristeza, solido, saudade, fado, orfandade, infortnio, se so de encontrar em outros idiomas, nos seus equivalentes, adquiriram na nossa literatura uma frequncia inquietante [...] Um jovem compositor estrangeiro a quem, por mo pedir, fiz alguns velhos fados, comentou: msica em mal-de-fome41.

    UM LIRISMO SAUDOSO Amoroso e dolente, com a j apontada feio idealista,

    o lirismo portugus (e aqui est mais uma nota percutida infatigavelmente por ensastas e no-ensastas, um lirismo saudoso ou magoado que, como tal, alastra a outros gneros: a novela (Bernardim, Garrett, etc.), a epopeia (Os Lusadas na sua marginlia pessoal de elegia e desengano), o conto (Maria Judite de Carvalho, Maria Ondina Braga), a crnica (Irene Lisboa), o teatro (Gil Vicente, Garrett, alguns dos modernos, como Antno Patrcio). Vem de longe a interpretao da saudade como sentimento tipicamente portugus, sui generis; da a ideia de que a palavra soidade, depois saudade, intraduzvel. J Dom Duarte, no sculo XV, defendia este parecer, ponderando que no estado saudoso h um complexo de alegria e de tristeza. E o mesmo pensava, em comeos do sculo XVII, Duarte Nunes de Leo. Os

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    textos so de sobejo conhecidos. Ao buscar inspirao em valores portugueses genunos, Almeida Garrett, no limiar do Cames, invoca a Saudade mitificada: Saudade, gosto amargo de infelizes,/Delicioso pungir de acerbo espinho... Pelo oxmoro exprime a complexidade dum sentimento contraditrio, paradoxal, difcil de apreender. No sculo XX, Pascoaes, poeta-visionrio, julga encontrar na saudade no s a chave da explicao da psique portuguesa mas ainda o fermento necessrio para um ressurgimento nacional. Realidade essencial da nossa cultura, a saudade - ensinava o cantor de Marnus - tem uma face voltada para o passado e outra para o futuro: lembrana e desejo, melancolia e, simultaneamente, incentivo para a aco. E at fillogos estrangeiros, como D. Carolina Michalis de Vasconcelos, alem de nascimento, e Karl Vossler, aceitaram a ideia do carcter nico da saudade portuguesa. Nas ltimas dcadas congeminou-se bastante sobre a saudade, quer em Portugal quer na Galiza; proclamou-se a existncia duma Weltanschauung peculiarmente portuguesa, ou luso-galaica, condio para um pensamento de alcance universal cujas razes estariam mergulhadas na experincia concreta da saudade, logo na vivenda da solido radical do Homem e duma indefinida inquietude. Assim o admitiu Joaquim de Carvalho, assim o pretenderam lvaro Ribeiro, Ramon Pieiro e outros. Podemos no aderir a esta concepo, mas , sem dvida, um elemento significativo para a definio da cultura portuguesa42.

  • 42

    IRONIA E STIRA O subjectivismo, a emotividade que facilmente

    conduz a atitudes extremas, determinariam outros aspectos, positivos ou negativos, da nossa cultura e da nossa literatura. A stira, que, sob a forma de cantigas de escrnio e mal-dizer, surge nos Cancioneiros Velhos em contraponto com a linguagem amorosa, mais frequente que a ironia benevolente, subtil, de simples espectador. O mesmo contraponto se reitera em escritores modernos - um Camilo, um Junqueiro, um Toms de Figueiredo. certo que a Galiza tem sido alfobre de humoristas, a ponto de, recentemente, Celestino F. de la Vega observar: Se se pensa em Valle Incln, em Xlio Camba, em Castelao e na ascendncia galega de Cervantes e de Ea de Queirs - quase os nicos humoristas peninsulares - pode-se chegar a suspeitar que o humorismo deve ter algo que ver com a alma galego-portuguesa43. As mais das vezes, porm, parece faltar ao Portugus a capacidade, inerente ao humorista, de se olhar com serenidade, objectivando o que sente. A prpria ironia queirosiana, se nem sempre toma cariz satrico, ganha por vezes o tom mordaz dum desforo, e j alguns, generalizando, a tm definido como resultado dum ressentimento antiburgus.

    Alm disso, a literatura portuguesa denota uma escassa reflexo sobre problemas esttico-literrios, mais intuitiva, inspirada, que fruto duma aturada elaborao mental. Emoo viva - insistia Fernando Pessoa - mas simples e repetitiva, sem auxlio crtico da inteligncia ou da cultura, sem ironia emotiva ou contradio no sentimento. A camada mental

  • 43

    superior em Portugal caracterizar-se-ia pela ausncia de ideias gerais e, portanto, do esprito crtico e filosfico que provm de as ter44. Assim, os criadores literrios, mal apoiados pela crtica (e sem necessria autocrtica), eram vtimas ora do elogio balofo ora da agresso malvola, destemperada, movida no raro por factores extraliterrios. Alis, remonta ao sculo XVI o hbito de os autores portugueses se queixarem da maledicncia alheia; nos prlogos das suas obras, nesse sculo e nos seguintes, preveniam-se contra os ataques a que estavam expostos. Escritores da nossa poca descrevem em, termos idnticos a situao de desfavor em que se encontra o escritor portugus: Na sociedade portuguesa - acusa Ruben A. - h um cime indescritvel perante a coragem e perante a cultura. Que um dos seus membros se liberte pelo esprito ou pelo valor humano o maior insulto que eles, atrasados culturais, julgam que se lhes pode fazer45. Eduardo Loureno nota, por seu turno: O que a pequenez geogrfica parece determinar, como se nos impedisse a priori aquela neutralidade que nunca se pode ter com a famlia, , uma situao de criados de quarto uns dos outros, para parodiar uma clebre frase. Da a nossa singular admirao funerria e comemorativa, compensadora da falta de ateno viva e vivificante, salvo sob a forma hiperblica da lisonja ou do mais aberrante denegrimento em relao ao que nos cerca46. preciso, todavia, reconhecer que nas ltimas dcadas (e embora a actual inflao terica, pela importao de ideias, nomenclaturas e tcnicas, no envolva necessariamente a formao dum verdadeiro esprito crtico), estas condies se modificaram um tanto. So mais

  • 44

    numerosos, depois do surto presencista, os poetas ou ficcionistas que escrevem sobre literatura: Jos Rgio, Joo Gaspar Simes (este mais crtico do que ficcionista), Adolfo Casais Monteiro, Vitorino Nemsio, Verglio Ferreira, Fernando Namora... a lista seria mesmo interminvel. O ensasmo desenvolveu-se: Jorge de Sena, Eduardo Loureno, Mrio Sacramento, Antnio Jos Saraiva, scar Lopes, Eduardo Prado Coelho, etc. A prpria tradio polmica (que era, no sculo XIX, a briga em que tudo vale para derrubar o adversrio, como se v em Camilo) est hoje bastante atenuada, ou transferida para o terreno das paixes polticas.

    PORTUGAL TEM BONS FICCIONISTAS A escassez do romance na literatura portuguesa

    anterior ao sculo XIX - trao negativo dos mais evidentes - tambm tem sido imputada s limitaes do temperamento portugus (seria talvez prefervel dizer: da cultura portuguesa). Feitas as contas, h no sculo XVI uma obra notvel e precursora, a Menina e Moa, alm de vrias novelas de cavalaria e duma novela pastoril de voga europeia, a Diana, escrita em castelhano por um portugus; nos sculos XVII e XVIII, porm, tudo quanto se produziu apenas interessa os arquelogos da literatura. No sculo XIX, Camilo, no incio da sua carreira de novelista, tecia estas consideraes pessimistas: Ns, os Portugueses, no nos ajeitamos com o romance [...] As primeiras capacidades literrias desta terra, ensaiando o romance,

  • 45

    primaram na riqueza da linguagem, mas minguou-lhes o elemento da inveno. O romance histrico, entre ns, ressabe choruda gravidade das crnicas, e pesa de erudio e enfadamento; o de inventiva demora-se pouco na difcil tarefa de copiar da natureza e remonta ao sublime filosfico dos devaneios47. A prpria obra camiliana viria a desmentir tal incapacidade de observao e inventiva, fugiria tendncia predominante em meados do sculo XIX para o romance histrico, seguiria, conquanto de modo assistemtico, o exemplo balzaquiano de romancista historiador da sua poca, mas no evitaria, por um lado, o folhetinesco, pelo outro, as digresses e os devaneios.

    H uns trinta anos ainda se debatia muito o problema do romance portugus. Pretendiam uns, como Gaspar Simes, que o temperamento lrico impedia o escritor portugus de atingir a objectividade indispensvel ao romance: Lrico, o escritor portugus, para comunicar s suas criaes densidade humana, profundidade emocional, tem de identificar-se com elas, fazer delas seus retratos directos, modelando-as ao calor da evocao dos seus prprios sentimentos48. O Portugus - insistia Adolfo Casais Monteiro - gosta de falar de si e observa o mundo que o rodeia, mas no se analisa nem a si nem os outros49. No s o Portugus, ao contrrio do que se pensa e repete, dispe de frouxa sensibilidade, no s os eventos provocam nele uma ressonncia interior medocre, como tambm - explicava Jos Bacelar - em Portugal quase no se passa nada, - a vida patriarcal ou, pelo menos, caseira, duma grande monotonia, o meio social duma estreiteza imensa50. E

  • 46

    todos, ou quase todos, os crticos que versaram o tema viam no verbalismo, no culto da prosa rica, um obstculo mais para o romancista portugus dar a sensao directa, impressionante, do humano. Conquanto menos pessimista, outro crtico, Armando Martins Janeiro, que adoptou o pseudnimo de Mar Talegre, perfilhava dum modo geral as acusaes feitas ao romance portugus e a ideia de que as suas fraquezas provinham de causas sociais e da psicologia colectiva: vida social pouco intensa, tradies patriarcais, tendncia para o vago e para o abstracto51.

    Hoje, este problema das possibilidades do romance nacional passou da ordem-do-dia, certamente porque nas ltimas dcadas o gnero foi largamente cultivado, com evidente melhoria em quantidade e qualidade. Depois dum Aquilino e dum Ferreira de Castro, nomes como os de Vitorino Nemsio, Verglio Ferreira, Agustina Bessa-Lus, Rodrigues Miguis, Alves Redol, Fernando Namora, Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Fernanda Botelho, Almeida Faria, Cardoso Pires, Ruben A., lvaro Guerra, conquistaram ou esto a alcanar lugares de relevo. A par do romance social, neo-realista, militante, em torno do qual se no encerrou o debate (e que, juntamente com a poesia do mesmo cariz, se encontra em pases por igual subdesenvolvidos, como a Espanha, a Itlia o Brasil), outras directrizes se observam: o romance psicologista ou memorialista e a corrente filosfica, ensastica. Alis, se dum Portugus tpico, imutvel (abstraco pura), se pode falar, no ficara patente em Bernardim Ribeiro a sua capacidade para o realismo psicolgico e no escrevera Camilo muitas pginas insuperveis de realismo dramtico? O

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    que talvez possa apontar-se ainda hoje como trao caracterstico ser o memorialismo uma das vias de acesso mais favorveis ao romance portugus (Vitorino Nemsio, Rodrigues Miguis, Namora, etc.) - ficando assim o romance preso a um dos gneros mais cultivados entre ns - o livro de memrias -, bem como prosa reflexiva e potica. Raul Brando ou Irene Lisboa esto por estes vnculos numa zona de transio.

    A ESCASSEZ DO TRGICO Carncia por alguns imputada literatura portuguesa

    a falta de tragdia, por incapacidade ou inibio. O Portugus - notou Jorge Dias - no gosta de ver sofrer e desagradam-lhe os fins demasiado trgicos52. E Ruben A., memorialista: a falta de tragdia que torna to inspidas a nossa histria e a nossa literatura. De humano, em grande, tivemos Ins de Castro, um pouco de Frei Lus de Sousa, e pginas da Histria Trgico-Martima53. Decerto, seria injustia no lembrar, uma vez mais, Camilo, onde Unamuno exaltou aquele sentido trgico da existncia que ele prprio exuberantemente exprimiu. Mas verdade que as arestas do trgico tendem a esbater-se, na literatura portuguesa, em cambiantes do sentimental ou do elegaco - para no falar no melodrama.

    UM TEATRO POBRE Outra caracterstica negativa da literatura portuguesa,

    com esta ligada, reside na pobreza de teatro, gnero em

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    que s dois grandes nomes emergem da plancie: Gil Vicente e, a trs sculos de intervalo, Garrett. Tambm este facto se tem explicado por um subjectivismo congnito, pela incapacidade de erguer figuras-smbolos ou tipos, pela falta de dons tectnicos e de poder de sntese. Aqui, porm, o condicionalismo social tem ainda mais relevncia que no caso do romance. Ausncia de vida social intensa, ausncia dum vasto pblico educado, ausncia tambm duma crtica orientadora - eis porventura causas decisivas para esta lacuna da literatura portuguesa. Lacuna, alis, relativa, que trabalhos recentes sobre o teatro portugus (os de Claude-Henri Frches e de Luciana Stegagno Picchio) a um tempo reduzem e esclarecem. Modernamente, o teatro potico ainda o mais representativo, de Raul Brando a Jos Rgio, a Miguel Torga e a Bernardo Santareno (avultando em Santareno um sentido social e, cada vez mais, um empenhamento ideolgico). De qualquer modo, a crise do teatro continua a ser em Portugal um tema candente, e uma das facetas do problema, antes do 25 de Abril, a publicao de muitas peas que no chegavam a subir cena - entre elas Felizmente H Luar!, em que Sttau Monteiro atingiu o seu melhor.

    O ESCRITOR LONGE DO PBLICO A falta de comunicao do escritor portugus com o

    pblico fenmeno que vem de longe. Os autores cultos so, com frequncia, popularizantes; os autores clssicos, principalmente nos sculos XVI e XVII, no s desenhavam tipos e costumes populares (Gil Vicente,

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    Melo) como adoptavam ditos de sabedoria e expresses vivas, pitorescas, que andavam na boca do povo, alm de formas da literatura tradicional; Aubrey Bell considerou at o travo popular um dos encantos da literatura portuguesa; nos sculos XIX e XX a corrente popularizante, neogarrettista, mostra bastante vitalidade. Mas raras vezes os autores portugueses, popularizantes ou no, se tornam verdadeiramente populares; o sonho duma literatura feita por burgueses para o povo, inclusive o povo analfabeto, foi, em autores do sculo XIX (Castilho, Jlio Dinis), uma boa inteno divorciada das realidades; o muro que separa o escritor portugus do povo portugus continua difcil de transpor. J a literatura brasileira se abeira mais do filo folclrico e tradicional; lembro Ariano Suassuna e o movimento armorial (ideologicamente, certo, de feio conservadora) que lanou no Recife. Facto sintomtico: perante a Revoluo de Abril, os escritores portugueses, quase todos de hbitos burgueses, quase todos instalados na grande cidade, retraram-se, procuraram defender-se; no aproveitaram o momento excepcional em que lhes era possvel aproximar-se do povo concreto, viver os seus problemas, os seus lances de tragdia ou epopeia. Alguns, embora de esquerda, julgaram terminada a carreira. Isto apesar da promoo do poeta popular (na TV, por exemplo, e na leitura: Antnio Aleixo). Omito veleidades de desforra de populistas medocres, que j escreviam antes da Revoluo.

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    UM MISTICISMO PORTUGUS Sentimental, intuitivo, no conceito tornado lugar-

    comum, o Portugus distinguir-se-ia ainda pelo misticismo. Nada, porm, existe na nossa literatura que se parea com o misticismo lrico-dramtico dos Castelhanos (Santa Teresa, So Joo da Cruz), em que o homem dialoga e tende a fundir-se com um Deus pessoal. Por misticismo deveria antes entender-se, em relao ao Portugus, o sentimento duma Natureza fraterna, uma branda religiosidade, a inclinao para o devaneio, alguma coisa de saudoso e vago, como dizia Moniz Barreto, um cristianismo amorvel e naturalista, nas palavras de Jaime Corteso, autor que ps em foco a intimidade familiar do Portugus com Deus e os santos, intimidade que vai ao ponto de o severo Santo Antnio se ter metamorfoseado, na imaginao popular, num santo bonacheiro e casamenteiro, que se trata tu-c-tu-l. Eduardo Loureno igualmente ponderou o modo portugus de ser religioso, tal como se manifesta na literatura: Embora parea estranho, tratando-se de povo to catlico como o nosso, no rica de seara mstica relevante a j bem longa navegao da nossa espiritualidade. Isso se deve, sem dvida, candura um pouco rstica do nosso catolicismo, ao reinado em distrado aproblematismo com que pensado e vivido. Basta percorrer a Antologia da Poesia Religiosa, de Jos Rgio, para nos darmos conta da fragilidade e, sobretudo, do conformismo que o tema religioso tem inspirado. De relevo, nessa massa potica, que menos religiosa que simplesmente devota (e j a confuso

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    de monta), Cames, Antero, Pascoaes e o mesmo Rgio54. Jaime Corteso acrescentava: Se podemos dizer que, atravs dos sculos, perdura no catolicismo espanhol uma tradio dominicana realista e dramtica, assim a ndole religiosa portuguesa, ainda que sujeita a crises dominicanas, tem pendido e pende especificamente para o cristianismo franciscano55. Esta ideia do franciscanismo portugus outros a perfilharam e defenderam, como Leonardo Coimbra e Gilberto Freyre56.

    DA INFLUNCIA DA INQUISIO Voltando reserva de Jaime Corteso quanto s

    crises dominicanas, ela afigura-se, de facto, pertinente, porquanto no s a Inquisio desempenhou, durante trs sculos, um papel de profunda nocividade na vida mental do pas, como ainda a sua censura foi em Portugal a mais rigorosa de todas as censuras inquisitoriais. A esta concluso chegou I. S. Rvah em La Censure Inquisitoriale Portugaise au XVIe sicle, vol. I, Lisboa, 1960. No sculo XVII, como regista Hernni Cidade, os nossos cristos-novos lamentam-se de ser a Inquisio portuguesa a de mais severos estilos. No os conhece to desumanos a Itlia, a Frana, a prpria Castela. O telogo espanhol Frei Martinho de Torrecillas justifica-os com a diferena de temperamento dos climas. Naqueles pases - diz ele -, quando as sangrias passam de quatro j se teme a morte; porm em Portugal passam as sangrias de vinte para se conseguir a sade57. Do domnio religioso, a cega

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    intolerncia alastrou para a esfera poltica, independentemente, em inmeros casos, das doutrinas professadas, e para o terreno dos costumes, reputados bons ou maus segundo a tica tradicional. No estar aqui a razo histrica de os Portugueses se terem habituado discrio prudente, ao conformismo, receosa autocensura, e tambm crtica intransigente, mesquinha, no raro furiosa, de tudo quanto sai da rotina ameaando preconceitos e interesses estabelecidos? J no sculo XVII Tom Pinheiro da Veiga, encantado com a vivacidade expansiva do Castelhano, notava que os Portugueses, bisonhos, ensimesmados, mal se falavam uns aos outros, vivendo cada um para si como se vivera entre inimigos, segundo os recatos com que vive e reina a desconfiana e a hipocrisia58. E ainda hoje, a despeito da brandura afectiva e da comoo fcil que so atributos proverbiais do Portugus, homem cordial, o nosso meticuloso formalismo, patente na riqussima gama de formas de tratamento, a nossa intransigncia sapato-de-ourelo, a desconfiana com que vivemos, o medo que temos de fazer m figura ou de cometer gafes impressionam o observador atento, mormente se estrangeiro. A cerimnia - pergunta Irene Lisboa em Solido - no realmente o timbre do Portugus? Se lha negam ou lha desvalorizam fica como um corpo sem alma... Sebastio da Gama desejaria arrancar-nos nossa tristeza de retrados: A gente tem vergonha de beijar tudo, de amar as flores, de se enternecer com os animais, de dar um passeio... Portugueses, tempo de torcer o pescoo ao respeito humano! (das pginas do Dirio). Sem dvida, tudo isto passvel de objeces ou

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    correces. Dir-se-, por exemplo, que divergem no comportamento o habitante do Norte e o do Sul; que o Portugus tambm se mostra comunicativo, expansivo, sobretudo em momentos de euforia como o 1. de Maio de 1974, logo aps a libertao; que a literatura no copia necessariamente o quotidiano, funcionando por vezes como reverso da medalha, inveno compensatria.

    CENSURA E AUTOCENSURA De qualquer modo, em 1905, aps noventa anos de

    liberalismo, e muito antes de surgirem os poderosos mass media que hoje manipulam multides, fabricando e conformando a chamada opinio pblica, o meio social portugus era de reserva, adulao e malevolncia, a censura colectiva e a autocensura quase anulavam a possibilidade de cada um ser diferente e de pensar pela sua cabea. Pelo menos assim o testemunha o monrquico e tradicionalista Carlos Malheiro Dias: Uma das caractersticas da contempornea sociedade portuguesa consiste na unnime reprovao de todas as manifestaes individuais. A cada um permitido murmurar em segredo, ao vizinho, uma monstruosidade, mas a ningum consentido proclamar em voz alta uma opinio. Desse vcio resultam todos os perigos de um regime social defeituosssimo, que irremediavelmente deteriora o carcter e faz da criatura humana, nas relaes com os seus semelhantes, um animal prfido e pusilnime. [...] Elogiar , em regra, uma aco mais perigosa do que difamar, num meio

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    assim constitudo de pequenos interesses em encarniada luta, mascarados sob uma aparncia de cordialidade extrema (prembulo da 2. srie das Cartas de Lisboa). Semelhante contexto, prolongado at ao estertor do salazarismo, tende a insular e a levar ao pelourinho o intelectual, o escritor, por definio uma personalidade, um homem diferente e autnomo. NA Torre da Barbela de Ruben A. pe-se a nu a situao tpica do Cavaleiro entre esses Barbelas de todos os tempos que, por mais que lutassem e fizessem, mantinham um esprito tacanho, e, pior, tmido [...] Quantas lutas no travara o Cavaleiro para se manter vivo naquele mar morto de incultura? Quantas vezes no o quiseram exterminar por ele revelar ideias diferentes das dos outros, dos que se julgavam com o privilgio das ideias?59. E daqui o sentimento, caracterstico do intelectual portugus, de se encontrar em zona vigiada, sitiada, condenado ao herosmo duma luta desigual60.

    UMA LITERATURA FRADESCA A nossa literatura clssica - dizia Raul Brando com

    evidente exagero emocional - intragvel: o produto, com raras excepes, de frades babosos e msticos que se no podem ler de fio a pavio (Vale de Josafat, p. 275). Mas neste juzo azedo h um fundo de verdade: a nossa literatura realmente dominada, nos sculos XVI e XVII, pela oratria sacra, pelo moralismo, pela ascese e por uma historiografia apologtica - e a este facto se deve porventura que, ainda hoje, a prosa literria se mostre geralmente grave e circunspecta, inclinada ao imperativo

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    e hiprbole, apesar dos esforos renovadores de Garrett, de Ea de Queirs e dos modernos. Ilse Losa, alem de origem mas portuguesa pelo casamento e pela integrao cultural, observa num romance, ou observa por ela o seu heri, que boa parte da literatura portuguesa (no obstante a falada exuberncia latina e a alegria da luz meridional) parece escrita de testa franzida para ser lida no plpito, de dedo espetado no ar61. Tambm na poesia predominou o tom solene ou tristonho, e s graas ao Orpheu e ao surrealismo, de Almada a Alexandre ONeill, no falando j no exemplo dos modernistas brasileiros, os nossos poetas se foram atrevendo pirueta e aos jogos de humor (s vezes, mais cido que bom).

    FATALISMO E SEBASTIANISMO Misticismo pode entender-se tambm, em relao

    ao Portugus, no sentido de fatalismo e de messianismo. O Portugus, como tantas vezes se tem dito e a nossa literatura confirma (de Bernardim Ribeiro a Camilo, a Antnio Nobre, a Rgio) por ndole fatalista, por isso na adversidade paciente, resignado; aos outros, pobres ou infelizes, aconselha segundo a frmula, j esvaziada de esprito cristo: Tenha pacincia... O fado, a que se chamou cano nacional, d-nos um quadro bastante completo de experincias e modos de comportamento que desembocam no fatalismo: O saudosismo, os fumos da ndia, o sebastianismo, os espectros do passado, a petulncia marialva, a predisposio lancinante, a inrcia e a indiferena cvicas, o narcisismo

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    derrotista, a tacanhez, o desgosto da vida, a opacidade do futuro, isto tudo supura na moral do fado e na sua vivncia bsica de um Destino inelutvel62. Fado se intitula uma colectnea potica de Jos Rgio. Criatura instvel, o Portugus facilmente se entusiasma e facilmente se deixa deprimir; mas nas crises de profundo abatimento acha um antdoto na f messinica. O sebastianismo passa, com razo, por uma das manifestaes tpicas da personalidade colectiva. O mais curioso que, em pleno sculo XX, h portugueses que continuam a esperar por D. Sebastio, dois dos maiores poetas, Pascoaes e Fernando Pessoa, anunciam (com que grau de convico?) o amanhecer duma nova era de grandeza, e pensadores ou ensastas (lvaro Ribeiro, Agostinho da Silva) vaticinam que Portugal, melhor, a Lusitanidade, h-de guiar o mundo. Quando o misticismo patritico dos nossos dias no se traduz na utopia do Quinto Imprio, revela-se, ao menos, no sentimento bastante aceso duma misso nacional (providencial) a cumprir. Dos Lusadas de Cames Mensagem de Fernando Pessoa, est presente a ideia de que os feitos dos Portugueses so o cumprimento dum plano divino a que os heris obedecem: Gesta Dei per Lusos. Tudo o que o Portugus realizou - escreve Agostinho da Silva - de jeito missionrio63. Finda a sua misso ecumnica, Portugal, apesar de oito sculos de vida prpria, j no teria razo de existir.

    O hedonismo calmo, a fruio satisfeita dos prazeres terrenos raro afloram na literatura portuguesa. O Ea dA Cidade e as Serras, Teixeira-Gomes, Aquilino parecem-me excepes. Pelo contrrio, at no sculo XVI, o da euforia dos Descobrimentos e da Conquista,

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    perpassa na nossa literatura o desengano, a certeza austera de que tudo na Terra precrio, efmero. Foi com esse desengano antecipado que nos lanmos conquista do mundo? Ou eram de espcies diferentes o escritor moralista e o homem de aco - marinheiro, soldado, mercador? Talvez a insatisfao perante o adquirido, reverso da nsia dum absoluto, dum impossvel, duma ndia que no h, nos aguilhoasse para os feitos de sangue e rapina que perpassam em Mendes Pinto... O inegvel que a literatura portuguesa apresenta muitas vezes uma fisionomia descarnada, austera; a prpria stira ser nela um indcio de descontentamento e inadaptao.

    O PENDOR ORATRIO E BARROCO Em contrapartida, o Portugus habituou-se, nos

    tempos ureos, a recobrir um viver sbrio, sem confortos, ou at pelintra, duma aparncia solene e faustosa. Clenardo, Gil Vicente e tantos fidalgos pelintras do nosso teatro clssico a esto a document-lo. Em 1912 observava Antnio Arroio: As nossas expresses estticas, sempre atrasadas com relao ao movimento europeu, revelaram em ns, quer na fase etnogrfica, quer na fase erudita, uma grande necessidade de excessos de ornamentao64. E dava exemplos: a arquitectura manuelina, o mobilirio ironicamente denominado Lus I, as cermicas de Rafael Bordalo Pinheiro, a literatura, que ainda no sculo XX se ressente das redundncias gongricas. Foram os ornatos da arquitectura manuelina com

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    sugestes da devassa do Atlntico, que levaram Eugnio dOrs a intuir na civilizao portuguesa um esprito barroco. Por seu turno, Valery Larbaud, com o seu fino impressionismo, assinalou algo de faustoso, de manuelino na lngua portuguesa [...] um carcter estranho e nostlgico tal como na arquitectura portuguesa, onde as ncoras, os cabos, os mastros, os instrumentos nuticos de preciso se misturam a recordaes do Oriente, da China, da ndia, da frica negra65. Na literatura, como atrs lembrei, verifica-se uma vigorosa tendncia oratria - a que o prprio Ea de Queirs, grande renovador afrancesado, se no furtou. Alis, uma personagem queirosiana, Carlos da Maia, alude a essa tendncia nacional a preferir a beleza, o brilho duma frase ao rigor dum sistema. O cultismo barroco prolongou-se em Portugal at, pelo menos, meados do sculo XVIII; ainda os romnticos acham, por vezes, oportuno censurar o gongorismo. A eloquncia invade outros gneros, como o romance (Herculano, etc.), a poesia (Junqueiro, etc.), o teatro. No romance, o prestgio dos prosadores vernculos e de grande riqueza vocabular, como Camilo, Fialho e Aquilino Ribeiro, continua a pesar na esttica de modernos romancistas e novelistas (Urbano Tavares Rodrigues, entre outros). Jos Rgio reala o facto para o valorizar: todos os grandes escritores portugueses so estilistas66. Haver, claro, grandes estilistas sem inflao barroca: hoje, Verglio Ferreira e Maria Velho da Costa, para citar apenas dois casos diferentes.

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    DA PICA AO REALISMO Mas o Portugus, sonhador activo, na frmula

    precisa e sugestiva de Jorge Dias67, realizou-se com efeito paralelamente na contemplao e na aco, o que ter conferido nossa literatura um perfil peculiar. A pobreza do solo metropolitano, a insatisfao, a nsia do lucro, o esprito de aventura, e tambm, na camada dirigente, a busca dum equilbrio de foras na Pennsula e um sentido de misso nacional, impeliram os Portugueses a correr mundo. Dos Descobrimentos e das Conquistas nasceu uma literatura pica, na poesia (Cames, etc.) como na historiografia (Joo de Barros, etc.), alm duma vasta literatura de informao (roteiros, narrativas de viagens) de ampla repercusso europeia. A poca (sculos XV e XVI) era menos de requintes do esprito que de senso prtico, de pragmatismo. Afeitos modstia duma vida dura, primeiro na luta contra os Infiis, aqum e alm-mar, depois na preparao e execuo das expedies martimas, os fidalgos portugueses do sculo XVI, virtuais mecenas, apreciavam pouco as flores da cultura, a vantagem das artes e das letras - e disso se queixaram poetas como Cames e Diogo Bernardes e pintores como Francisco de Holanda. Inferioridade - comenta Hernni Cidade - que foi largamente compensada pelos benefcios da aco, e at, no plano literrio, por um acervo de obras de fisionomia inconfundvel. Atravs dessas obras, traduzidas em vrias lnguas, pde a Europa conhecer povos e costumes exticos e reflectir sobre a condio humana - dando assim Portugal um contributo decisivo para a cultura do Renascimento. Nelas se patenteia a

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    curiosidade infatigvel, a ateno ao diverso, o talento da reportagem viva. A Peregrinao de Ferno Mendes Pinto um vasto painel do Oriente, onde se pem a nu sem rebuo as fraquezas dos cristos que por l andavam. Lembro, por outro lado, os relatos de naufrgios que constituem a Histria Trgico-Martima - o reverso da euforia pica. Os Lusadas, poema-sntese, do superior expresso a tudo isto: o gosto da observao directa, em contraste com o saber livresco dos Antigos, o respeito pelas verdades nuas, e, por outro lado, as dores e misrias das longas viagens por mar, a luta com elementos desconhecidos em que o Homem muitas vezes se sentiu bicho da terra to pequeno. Os Lusadas, epopeia do Mar e dos Descobrimentos muito mais que da Conquista, afirmam ainda a vocao universalista da cultura portuguesa de Quinhentos: o vate canta o Homem duma nova Idade, no apenas os Portugueses mas o gnero humano, que, pela sua audcia, doma a Natureza e faz tremer os deuses mitolgicos. Com a adeso ao real que a observao e a aco implicam ser lcito relacionar a quase completa ausncia de fantstico na nossa literatura; exceptuando algumas obras de autores modernos (S-Carneiro, Jos Rgio, Ruben A., David Mouro-Ferreira), as restantes incurses no fantstico soam a falso68.

    A NOSTALGIA DO IMPRIO PERDIDO Formalismo e oratria, esses, sim, conciliam-se com

    as grandes empresas guerreiras e polticas; ou funcionam

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    como sucedneo, compensao, lenitivo. Extinguiu-se o entusiasmo colectivo de que nascem as epopeias autnticas, mas continuaram a fabricar-se poemas pseudo-picos at ao sculo XIX (que digo? at ao sculo XX!), a poesia ulica no deixou de glosar os velhos temas hericos e mticos, os Portugueses continuaram, ora desesperados de tudo, ora maquinalmente ufanos da grandeza de seus maiores. Na Relquia de Ea de Queirs, Teodoro Raposo e o sbio alemo Topsius, companheiros em Alexandria, entram no hotel das Pirmides. Topsius escreve no livro de hspedes: Topsius, da imperial Alemanha. E logo Raposo, para no ficar atrs, desenha, em curvas mais enfunadas que velas de galees: Raposo, portugus, daqum e dalm-mar. Ea de Queirs faz caricatura (o seu amor ao pas no se traduzia pelo panegrico mas pela anlise dos males sanveis); entretanto, na sua ironia adivinha-se o desencanto. Afinal, a Histria portuguesa, a sua curva de grandeza e rpida decadncia, veio acentuar a melancolia, a saudade, a insatisfao, o pendor messinico, a febre do impossvel - as tais facetas de sensibilidade que alguns atribuem herana cltica. No sculo XVII, D. Francisco Manuel de Melo tentava explicar o carcter saudosista dos Portugueses pelas demoradas separaes provocadas pelos Descobrimentos. Depois, a partir do sculo XVIII, viria o fenmeno da emigrao em massa, comum a Portugal e Galiza, com profundas incidncias no Cancioneiro popular e at na literatura culta (Ferreira de Castro, Rodrigues Miguis). A quadra exprime a fidelidade da mulher do povo ao amado ausente: Tenho o meu peito fechado,/A chave est no Brasil:/O meu peito no se

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    abre/Sem a chave de l vir. Por outro lado, a nostalgia do Imprio perdido uma constante da poesia portuguesa moderna. Anda tudo to triste em Portugal!/Que dos sonhos de glria e dambio? - gemia Antnio Nobre. Perteno a um gnero de portugueses/Que depois de estar a ndia descoberta/ Ficaram sem trabalho - declarava lvaro de Campos, heternimo de Fernando Pessoa. Sintomas, evidente, duma atitude mental que, sendo dum grupo, no se estende ao pas todo.

    NOs Fidalgos da Casa Mourisca, Jlio Dinis props-nos, pelo contrrio, o exemplo do fidalgo capaz de adaptar-se s realidades do seu tempo, e de encontrar a riqueza, no procurando o tesouro escondido de que falava a tradio, mas administrando como bom lavrador as suas terras. E h poucos anos, exilado, projectando em esperana a ptria ausente, Manuel Alegre reagia contra o veneno passadista e a miragem dos longes gloriosos: Porque tiveste o mar nada tiveste./A tua glria foi teu mal/No te percas buscando o que perdeste: /Procura Portugal em Portugal (Ptria Expatriada, in O Canto e as Armas).

    A literatura portuguesa, na verdade, no est condenada a ser o que decorreria dum conceito parado de alma ou vocao nacional. E se, at certo ponto, o passado condiciona o futuro, h sbitas metamorfoses em que ele se mostra grvido de promessas; a vemos, espalhada pelo mundo, a lngua portuguesa elevada a instrumento de novas literaturas nacionais, falada por uns cento e vinte milhes de homens, a enriquecer-se por mltiplas experincias em variadssimos contextos sociogeogrficos. Poder ser uma arma poderosa ao

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    servio da paz e da solidariedade. Pax in excelsis: lema da terceira parte da Mensagem, onde o poeta visa um imprio s do esprito.

    SOCIEDADE E LITERATURA: UMA RELAO DIALCTICA Caber ainda perguntar: at que ponto a literatura

    dum pas espelha fielmente a realidade nacional, uma sociedade, uma cultura? Ser a literatura, assim equacionada, mero reflexo ou emanao ou produto? Ou ser antes (ou ser cumulativamente) uma prtica paralela, dotada de certa autonomia, que, ao responder quela realidade, em certa medida a altera? A originalidade duma cultura no devemos busc-la na relao dialctica entre sociedade e literatura, relao mantida e transformada no decurso da Histria?

    Por vezes os escritores parecem mal enraizados, escassamente integrados na comunidade. Defrontam-na, desafiam-na, desprezam-na; reivindicam o estatuto de livres cidados do mundo. Decerto que tambm nos autores cosmopolitas se pode descobrir um casticismo latente; que, por exemplo, ao Ea afrancesado se pode opor o seu afinal entranhado portuguesismo; e que doutro modo se tem resolvido a antinomia, afirmando que quanto mais castio mais universal - o que resta provar.

    Fernando Pessoa achou na definio do Portugus o terreno instvel propcio aos juzos