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Coleção Austregésilo de Athayde Academia Brasileira de Letras

Coleção Austregésilo de Athayde - academia.org.br Brasil e o ensaio hispano... · COLEÇÃO AUSTREGÉSILO DE ATHAYDE ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Diretoria de 2010 Presidente:

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C o l e ç ã oA u s t r e g é s i l o d e A t h a y d e

A c a d e m i a B r a s i l e i r ad e L e t r a s

E D I Ç Ã O E M C O M E M O R A Ç Ã O D O B I C E N T E N Á R I O

D A I N D E P E N D Ê N C I A D A A R G E N T I N A

O Bras il e o ensa iohispano-americano

A c a d e m i a B r a s i l e i r a d e L e t r a s

Vami r e h Cha c on

� O Brasil e o ensaiohispano-americano

R i o d e J a n e i r o 2 0 1 0

C O L E Ç Ã O A U S T R E G É S I L O D E A T H A Y D E

A C A D E M I A B R A S I L E I R A D E L E T R A S

Diretoria de 2010Presidente: Marcos Vinicios Vilaça

Secretária-Geral: Ana Maria Machado

Primeiro-Secretário: Domício Proença Filho

Segundo-Secretário: Luiz Paulo Horta

Tesoureiro: Murilo Melo Filho

C O M I S S Ã O D E P U B L I C A Ç Õ E SAntonio Carlos SecchinJosé Murilo de Carvalho

Marco Maciel

Produção editorialMonique Mendes

RevisãoVamireh ChaconProjeto gráfico

Victor BurtonEditoração eletrônica

Estúdio CastellaniFoto de Capa

Casa Rosada, Buenos Aires, Argentina

Catalogação na fonte:Biblioteca da Academia Brasileira de Letras

C431 Chacon, Vamireh, 1934-.O Brasil e o ensaio hispano-americano / Vamireh Chacon ;

apresentação, Marcos Vinicios Vilaça. Rio de Janeiro: AcademiaBrasileira de Letras, 2010.

190 p. ; 21 cm. (Austregésilo de Athayde ; v. 31)

Edição em comemoração do Bicentenário da Independênciada Argentina.

ISBN 978-85-7440-148-5

1. Literatura brasileira. 2. Ensaio. I. Vilaça, Marcos Vinicios,1939-. II. Série.

CDD B869.4

Apresentação

Marcos Vinicios VilaçaPresidente da Academia Brasileira de Letras

Oensaio é um gênero literário desde Montaigne. No Brasil o en-

saísmo literário une-se ao filosófico em Tobias Barreto, patrono de

uma das Cadeiras da Academia Brasileira de Letras, e ao sociológico

em Silvio Romero, um dos seus fundadores.

Vamireh Chacon, mesmo com formação universitária de doutora-

mento no Brasil e na Alemanha e pós-doutoramento nos Estados

Unidos, permaneceu fiel às origens ibéricas, em meio às influencias

germânicas da Escola do Recife na Faculdade de Direito de Pernam-

buco, e americanas de Gilberto Freyre em Apipucos. Foi Ortega y

Gasset quem começou a revelar o pensamento hispânico e o alemão à

geração de Eduardo Portella, Nelson Saldanha e Vamireh Chacon, e

para a anterior, a de Hélio Jaguaribe e Cândido Mendes, no Nordeste

e outras partes do Brasil.

A fidelidade de Vamireh Chacon à iberidade continuou presente

no seu itinerário intelectual, como se vê em vários dos seus artigos e

ensaios resultantes de suas pesquisas principalmente em Caracas e Bo-

gotá, entre os quais os que escreveu sobre o poeta Natividade Salda-

nha e o General Abreu e Lima, pernambucanos refugiados na Vene-

zuela e na Colômbia, companheiros de Simón Bolívar em suas campa-

nhas de independência dos países hispano-americanos.

Vamireh Chacon não se esquece de sempre incluir conferências

suas nas universidades de Lisboa – desde a chamada clássica à nova e à

técnica – e Coimbra, Porto, Minho e Évora, ao lado da complutense

de Madrid e a de Salamanca, entre outras, principalmente da Alema-

nha, França, Grã-Bretanha e Estados Unidos.

Desde 1991, Vamireh Chacon participa dos colóquios do Institu-

to de Filosofia Luso-Brasileira no Brasil e em Portugal, do qual é um

dos fundadores e teve em Miguel Reale sua presidência de honra.

No seu livro A Grande Ibéria (Convergências e divergências de uma tendên-

cia), Vamireh Chacon procura aproximar as influências de Portugal e

das Espanhas – castelhana, galega, catalã e outras – no Brasil em João

Cabral de Melo Neto, Eduardo Portella, Ariano Suassuna e Nélida

Piñon. Propõe até uma aproximação prática maior entre a CPLP (Co-

munidade dos Países de Língua Portuguesa), sediada em Lisboa, e a

CIN (Comunidade Ibero-Americana de Nações), outro tanto em

Madrid.

Em O Brasil e o ensaio hispano-americano, Vamireh Chacon estuda as

afinidades e aproximações, até mesmo influências recíprocas, entre

escritores ensaístas brasileiros e os dos países nossos vizinhos. Assim

vemos o interesse de Joaquim Nabuco pelo Chile, em Balmaceda, Oli-

veira Lima em Na Argentina e Impressões da América espanola, e Jorge Luis

Borges quatro vezes no Brasil e muitos outros. Borges traduzido en-

tre nós por Ivan Junqueira e Carlos Nejar. São laços profundos que

nos unem, não só às culturas, extensivos a inúmeros outros. Livros

de poemas de Lêdo Ivo foram traduzidos ao castelhano no México,

Peru e Espanha.

VIII � Vamireh Chacon

A publicação de O Brasil e o ensaio hispano-americano de Vamireh Cha-

con situa-se no contexto das comemorações do Bicentenário da Inde-

pendência da Argentina, às quais também assim se associa a Academia

Brasileira de Letras.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano IX

Recordações

Vamireh Chacon

Oensaio implica concepção de vida, não é só estilo ou gênero lite-

rário. O ensaísmo significa a consciência da incompletude a ser grada-

tivamente preenchida por outras pesquisas e interpretações. Daí a pro-

jeção do ensaio em ensaísmo nos seus principais iniciadores, Montaig-

ne na França e Francis Bacon na Inglaterra no século XVI, mais uma

das faces do Renascimento. As próprias culturas e civilizações são su-

cessivos ensaios em permanente recriação. O ensaio pode ser sistemá-

tico, não sistêmico.

Tanto ensaio quanto ensaísmo chegam à Espanha desde o século

XVII em Benito Feijoo, daí em diante percorrendo outro longo, frutífe-

ro e largo itinerário. Desabrochando no século XX em Azorín, Ganivet,

Eugenio d’Ors e na própria filosofia através de Unamuno e Ortega y

Gasset, dentre muitos, antes e depois. No Brasil desde o século XVIII,

com Matias Aires nas suas Reflexões sobre a vaidade dos homens e Sousa Nu-

nes nos Discursos político-morais na linha do ensaísmo de ideias.

Na Hispano-América o ensaio, enquanto expressão literária mais

conteúdo de ensaísmo, foi nesta análise limitado aos séculos XIX e

XX, por mais predecessores que também tivesse. Evidentemente não

estão aqui todos os ensaístas, senão seria uma sistêmica história de-

les, em vez de ensaios sobre ensaios no contexto do geral sistemático

ensaísmo.

Não há, porém, Hispano-América e sim Hispano-Américas de va-

riadas procedências ameríndias, mais os negros trazidos escravos da

África e os muitos europeus, além dos espanhóis, ao lado até de asiáti-

cos. Fenômenos análogos, embora não idênticos, aos dos Brasis nas

também diversificantes Américas Portuguesas, unificadas politica-

mente pelo Estado unitário de Portugal, ao contrário dos espanhóis

trazendo consigo as cissiparidades projetadas em separatismos.

As suas expressões literárias em ensaios são produtos dos seus ensaís-

mos de culturas e civilizações, cada uma delas compondo uma série de

experimentos étnicos, sociais, econômicos, políticos, éticos, religiosos

e institucionais, complexos conjuntos em contradições antagônicas

e/ou reciprocamente complementares, conforme as circunstâncias em

fases, depois ciclos, no tempo e espaço.

As culturas e civilizações ibero-(luso e hispano-) americanas repro-

duziram no então chamado Novo Mundo as mais frequentes hostili-

dades, ou desconhecimentos entre si, que trabalhos em comum, das

idiossincracias herdadas de Portugal e Espanha.

Do lado brasileiro a aproximação cultural começou por Abreu e

Lima, único brasileiro general de Bolívar, e o poeta Natividade Salda-

nha, também tornado bolivariano. Em seguida, 1866, o Barão de Ja-

purá, Miguel Maria Lisboa, publicou, como enviado diplomático bra-

sileiro, sua Relação de uma viagem à Venezuela, Nova Granada e Equador. Em

princípios do século XX, outro diplomata brasileiro, Oliveira Lima,

lançou o livro Impressões da américa espanhola (1904-1906) e Na Argentina

(1918-1919). Além dos relatórios internos de diplomatas brasileiros.

XII � Vamireh Chacon

Era a época das negociações do Barão do Rio Branco, ministro

das Relações Exteriores do Brasil (1902-1912), com os vizinhos.

Entre 1912 e 1914 José Veríssimo sobre eles escrevia para o Jornal do

Commercio e Diário Ilustrado do Rio de Janeiro e de 1909 a 1919 circu-

lava no Rio a Revista Americana reunindo autores brasileiros e hispa-

no-americanos. Tanto na forma quanto na substância esses textos

eram mais ensaísticos que apenas artigos. Manoel Bomfim é pessi-

mista em América Latina (Males de origem), 1905.

O primeiro professor de ensino superior no Brasil a estudar, lecio-

nar e escrever especialmente sobre Hispano-América foi Sílvio Júlio

de Albuquerque Lima (1895-1984), que se assinava Sílvio Júlio, per-

nambucano do Recife, aos dois anos de idade transferido com o pai,

militar, ao Rio de Janeiro. Ali começa estudos no Colégio Militar, de-

pois na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais, onde foi alu-

no, entre outros mestres, de Sílvio Romero, que lhe despertou a aten-

ção para o folclore brasileiro. Aplica esses conhecimentos ao estudo

do folclore gaúcho, após bacharelar-se na Faculdade de Direito de

Porto Alegre e passar a trabalhar, como professor e jornalista, na capi-

tal e cidades do interior do Rio Grande do Sul.

Sílvio Júlio especificamente escreveu em 1924 Estudos hispano-ameri-

canos, Escritores da Colômbia e Venezuela (1942), José Enrique Rodó e o Cinquen-

tenário de seu livro Ariel (1954). Conheceu pessoalmente Rodó em

Montevidéu e correspondeu-se com Unamuno, Blasco Ibáñez e Salva-

dor Rueda entre vários escritores espanhóis, do que dá conta no livro

Nótulas de literatura espanhola para brasileiros (1962). Também da sua auto-

ria uma biografia de Bolívar (1931) e Artigas (1960).

Estende seu interesse à literatura portuguesa (Projeção universal de Eça

de Queirós, 1943), ao folclore e à dialetologia luso-brasileiros, podendo

chegar à autodefinição: “Sou brasileiro e ibero-americano, simulta-

� O Brasil e o ensaio hispano-americano XIII

neamente. Tudo que faço ou escrevo (que em mim é o mesmo) deri-

va da circunstância natural deste duplo acontecimento”. Dele foi pu-

blicado em espanhol castelhano, Del estilo en la historia, em 1969 pela

Universidade de San Marcos em Lima, Peru.

Silvio Júlio permaneceu brasileiríssimo, com se vê nos seus livros

de pesquisas sobre o folclore do gaúcho ao nordestino, seguindo as li-

ções do seu primeiro grande mestre, Sílvio Romero. Sílvio Júlio tam-

bém surge engajado na defesa do Nordeste, especialmente do Ceará,

nas épocas de grandes secas.

Na crítica literária, a influência hispânica expressou-se melhor em Edu-

ardo Portella, discípulo de Carlos Bousoño e Dámaso Alonso na Universi-

dade de Madrid da década de 1950, indo além do New Criticism da época

no Brasil. Influência hispânica também na poesia em João Cabral de Melo

Neto e Ariano Suassuna, na prosa de ficção de Nélida Piñon.

A geração brasileira, da qual faço parte, começou influenciada por

Federico García Lorca e Antonio Machado na literatura, Unamuno e

Ortega y Gasset na filosofia, ao lado do ensaísmo de Azorín, Ganivet e

Eugenio d’Ors. Eram livros editados principalmente pela Revista de

Occidente de Madrid e a também madrilenha Espasa-Calpe, esta com

filiais em Buenos Aires e Cidade do México. Convém incluir a grande

importância do Fondo de Cultura Económica do México, tradutor de

Karl Mannheim, Werner Sombart e do próprio Max Weber então au-

sente até em língua inglesa, francesa e italiana.

Continuadora dos estudos hispânicos no Brasil, outro especial des-

taque universitário é Bella Jozef com sua História da literatura hispa-

no-americana em várias edições, após a primeira em 1971, prefaciada

por Eduardo Portella.

Além dos poetas e ficcionistas, Bella Jozef aborda desde os ensaís-

tas pioneiros – o equatoriano Juan Montalvo, o cubano Enrique José

XIV � Vamireh Chacon

Varona, o mexicano Justo Sierra, o peruano Manuel González Prada,

o uruguaio Carlos Vaz Ferreira e outros – aos modernistas (o uru-

guaio José Enrique Rodó, o mexicano José Vasconcelos, o argentino

José Ingenieros) e os eruditos: o mexicano Alfonso Reyes, o domini-

cano radicado nos Estados Unidos Pedro Henríquez Ureña, o argen-

tino Ezequiel Martínez Estrada e os paraguaios Justo Pastor Benítez e

Natalicio González. Também são evocados o marxista peruano José

Carlos Mariátegui, o culturalista colombiano Germán Arciniegas e o

mexicano Prêmio Nobel de Literatura Octavio Paz. Aqui estudados

sem qualquer pretensão de esgotar a rica linhagem ensaística hispa-

no-americana. Todos eles, menos ou mais interessados também quan-

to ao Brasil, em vários textos numa ampla iberidade. Muitos deles se

conhecem e se referem.

A viagem intelectual pelo ensaio hispano-americano é viagem pela

história das suas culturas. O itinerário do ensaio hispano-americano

cruza-se várias vezes com o brasileiro.

A mim pessoalmente foi Gilberto Freyre quem iniciou nas primei-

ras leituras de ensaístas hispano-americanos, entre outras importantes

orientações dele e de outros mestres no Brasil, Alemanha, Estados

Unidos e França, desde os meus tempos de estudante e anos de forma-

ção. Os de início recomendados eram o Facundo, de Sarmiento, Radio-

grafia do pampa e A cabeça de Golias, de Martínez Estrada, ambos argenti-

nos, ademais de Eduardo Mallea (História de uma paixão argentina na fic-

ção), o colombiano Germán Arciniegas (Biografia do Caribe), o cubano

Fernando Ortiz (O furacão) e evidentemente muito de Alfonso Reyes,

a quem Gilberto Freyre conhecera pessoalmente quando Reyes foi

embaixador do México no Rio de Janeiro. Sua revista Monterrey e o

Fondo de Cultura Económica mexicano tornaram-se muito lidos

também no Brasil.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano XV

Dezenas de viagens vim a fazer ao México e países hispano-ameri-

canos diretamente vizinhos do Brasil, ao longo de décadas, paralela-

mente a viagens a outros continentes, em especial Europa e Estados

Unidos. Colhi não só bibliografias, também inúmeras importantes vi-

vências pessoais para visões das culturas hispano-americanas por den-

tro. Além da poesia e ficção, concentrei-me sobretudo nos ensaios e

ensaísmos hispano-americanos, de cujas longas leituras este livro é

uma síntese. Continuadora do meu gosto por este gênero e sentido em

outros idiomas.

Os capítulos deste livro são ensaios autônomos, têm vidas próprias

no espírito do ensaísmo em sucessivos tempos e lugares. Germán Arci-

niegas chegou até a definir que “América es un ensayo”. Outro tanto,

menos ou mais, em todas as culturas e civilizações, experiências históri-

cas também nas Ibero-Américas e, nelas, os Brasis em diversidades com-

plementares. Sem integração cultural, não há outras plenas integrações.

Os povos precisam melhor se conhecer, para melhor colaboração.

XVI � Vamireh Chacon

Sumário

Apresentação: Marcos Vinicios Vilaça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . vii

Recordações: Vamireh Chacon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xi

Abreu e Lima – ensaísta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3

Sarmiento educador e estadista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

O lopezguaísmo: mito e realidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

A historiologia peruana de Jorge Basadre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

O pensamento orgânico chileno: realismo conservador. . . . . . . . . . 43

Arciniegas, Uslar Pietri e Ortiz: dos Andes ao Caribe . . . . . . . . . . . 69

Henríquez Ureña, Haya de la Torre e Mariátegui: A utopiada América . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

Martínez Estrada: o pampa de Golias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

Jorge Luís Borges: argentino e cosmopolita . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

O ensaísmo uruguaio das ideias às realidades. . . . . . . . . . . . . . . . . 131

A presença cultural do México no Brasil do século XX. . . . . . . . . 153

Gilberto Freyre ibero-americano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

� O Brasil e o ensaiohispano-americano

Abreu e Lima – ensaísta

O ensaio, gênero literário, e o ensaísmo, visão do mundo, têm

raízes várias também no Brasil por inspirações diversas. José Inácio

de Abreu e Lima está entre os primeiros ensaístas brasileiros. Silvio

Romero foi, na sua História da literatura brasileira, algo unilateral con-

tra ele, ao só lhe ver os lados negativos, comportamento muito típi-

co de alguns exageros do próprio Sílvio, atraindo represálias extre-

madas.

O ensaísmo intelectual de Abreu e Lima, na consciência de sua au-

tolimitação diante da realidade vista como precária e provisória, seu

ensaísmo provém principalmente de ativa participação no concreto

experimento político bolivariano de construção e cissiparidade da

Grã-Colômbia.

Em carta ao Presidente José Antonio Páez, Abreu e Lima evocava

ter combatido nas principais batalhas bolivarianas da Independência:

“Tenho orgulho de chamar-me um dos libertadores de Ve-

nezuela e dos da Nova Granada, e em usar das minhas vene-

ras. Faço garbo das minhas cruzes de Boyacá e de Porto Ca-

bello, e do meu nobre escudo de Carabobo. Tenho e conser-

vo o busto de ouro do Libertador Simón Bolívar, que ele

mesmo me deu como um diploma muito honroso”.1

Um diplomata e escritor venezuelano, Diego Carbonell, é dos que

reconhecem:

“Nosso herói e vosso compatriota viu nascer a Grã-Colôm-

bia, assistiu à sua infância, à sua agonia e à sua morte. Isto é o

bastante para que a história da Grã-Colombia o considere na

falange dos Libertadores, pois quem esteve em Carabobo e

Boyacá, já sabemos que foi testemunha de um milagre...”2

Abreu e Lima teve formação humanística, com o pai o padre Roma

assim conhecido por haver estudado nesta cidade e que terminou fuzi-

lado pelos portugueses por comportamento revolucionário após ter

deixado as ordens religiosas. Abreu e Lima seguira carreira militar, até

o posto de capitão de artilharia, e fugirá aos Estados Unidos e de lá à

Grã-Colômbia em fase inicial de libertação do domínio colonial espa-

nhol, único brasileiro general de Bolívar.

Abreu e Lima teve inicial formação humanística pelo pai, que o fez

estudar, filosofia, retórica, francês, inglês e até grego, antes passando

naturalmente pelo latim.3 Foi destas preparações intelectuais e daque-

las experiências pessoais que Abreu e Lima se encaminhou para a visão

4 � Vamireh Chacon

1 � Carta do general José Inácio de Abreu e Lima ao presidente da Venezuela, ge-neral José Antonio Páez, datada de 18 de setembro de 1868 e publicada em 20 e 21de maio de 1873 no Diário de Pernambuco.

2 � Diego Carbonell, “Um herói brasileiro na guerra grã-colombiana de emancipa-ção” na edição do Resumen histórico de la última dictadura del Libertador Simón Bolívar comproba-da con documentos, publicada no Brasil pela Editora “O Norte” do Rio de Janeiro em1932, cópia do original guardado no Instituto Arqueológico, Histórico e GeográficoPernambucano, pp. 25 e 26.

e estilo ensaísticos. Seu primeiro texto no gênero foi o Resumen histórico

de la última dictadura del Libertador Simón Bolívar comprobada con documentos,4

escrito a pedido pessoal de Bolívar como resposta a acusações recebi-

das de Benjamin Constant, o liberal suíço-francês, quando da frag-

mentação da Grã-Colômbia em vários países e encaminhamento de

Bolívar ao exílio, não consumado por falecimento.

Nas apaixonadas polêmicas do tempo, Abreu e Lima chega a pu-

blicar em Cartagena, 1830, na Colômbia, os panfletos La barca de San

Pedro e La torre de Babel.

Por exemplo, a história interpretada como luta de classes:

“Que somos todos, inimigos e rivais uns dos outros na propor-

ção das nossas respectivas classes, não necessitamos de argu-

mentos para prová-lo, basta só que cada um dos que lerem este

papel, seja qual for a sua condição, meta a mão na sua consciên-

cia e consulte os sentimentos do seu próprio coração”.

O Brasil da sua época estaria dividido “em quatro famílias distintas

e tão opostas e inimigas umas das outras, como duas grandes seções

entre si”: de um lado os negros e mestiços livres, do outro os brancos

brasileiros natos e adotivos imigrantes estrangeiros, além dos índios

outrora em áreas mais distantes.5

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 5

3 � Vide o verbete “José Inácio de Abreu e Lima” (não confundir com o homônimopai) in Pereira da Costa, Dicionário biográfico de pernambucanos célebres, Recife, TipografiaUniversal, 1882, p. 549 e seguintes.4 � Vide nota 2.5 � Bosquejo histórico, político e literário do Brasil ou análise crítica do projeto do Dr. A. F. França, ofereci-do em sessão de 16 de maio último à Câmara dos Deputados reduzindo o sistema monárquico constitucional,que felizmente nos rege, a uma república democrática: seguida de outra análise do projeto do deputado Rafael deCarvalho, sobre a separação da Igreja Brasileira da Santa Sede Apostólica, Niterói, Tip. Niterói, 1835,pp. 55, 56, 74 e 177. Gilberto Freyre em Um engenheiro francês no Brasil e Amaro Quintas emO sentido social da revolução praieira ampliaram o estudo de Pereira da Costa sobre o generalAbreu e Lima, por mim biografado desde 1983 sob o título Abreu e Lima (General de Bolívar).

Ainda publicado no Rio de Janeiro, 1843, é o seu Compêndio da histó-

ria do Brasil, cronológico, sem interpretações mais profundas, porém o

suficiente para o conservador monárquico e lusófilo Varnhagen, ape-

sar de rigoroso em pesquisas, contra ele se enfurecer.

Não deve surpreender a dedicatória de Abreu e Lima ali a Dom Pe-

dro II, “em sinal de profundo respeito e da mais pura afeição e lealda-

de”. Na França, Victor Considérant, socialista na linha de Fourier,

dedicava sua Destinée sociale ao rei Luís Filipe, “o mais interessado na or-

dem, prosperidade pública e particular, na felicidade dos indivíduos e

nações”. Era tendência vindo do também socialista Saint-Simon, que,

no seu Nouveau christianisme, conclamava as classes dominantes a lidera-

rem a implantação do socialismo...

Em 1845, também no Rio de Janeiro é publicada por Abreu e

Lima sua Sinopse ou dedução cronológica dos fatos mais notáveis da história do Bra-

sil, a primeira coleção de efemérides brasileiras de 1500 a 1842, mui-

tos antes de o Barão do Rio escrever as dele.

Há intenção ensaística percorrendo estes livros, como se vê desde

os seus títulos: Bosquejo, Compêndio e Sinopse. Abreu e Lima não quer con-

clusões definitivas, as suas são tentativas de aproximação, portanto en-

saios de interpretação. Implicitamente o autor aproveita experiências

políticas pessoais brasileiras, antes e depois das que teve nas lutas da

Grã-Colômbia, para elaborar síntese própria aplicada ao Brasil. De

volta Abreu e Lima encontrava os debates sobre a recém-abdicação de

Dom Pedro I em retorno a Portugal, e os da Regência que terão no le-

vante popular da Praieira em Pernambuco, 1848, o seu último reflexo.

Insurreição já sob influências socialistas, Joaquim Nabuco as registra-

rá em Um estadista do Império.

Apesar de participar do início de 1848, quando esteve entre seus

moderados no Diário Novo do Recife, oposto aos novos radicais, tam-

6 � Vamireh Chacon

bém Abreu e Lima sentia o influxo dos socialismos em discussão.

Busca optar por uma das suas vertentes, a cristã de Lammenais com

alguns toques econômicos de outros autores em O socialismo, publica-

do no Recife em 1855, o primeiro explícito sob esse título com seu

assunto em toda a América Latina. Mais uma vez não tem pretensões

tratadísticas e sim de ensaísmo, então de idéias, sistemático porém

não sistêmico.

Abreu e Lima não estava sozinho nem em geração, nem em época.

Descendia de tradição revolucionária, também as há oriundas do Se-

minário de Olinda, tão iluminista no seu ensino que no Brasil gerando

insurrectos padres maçônicos nos princípios do século XIX, contra os

quais e para formar a administração do Império vem a ser instalada em

Olinda, depois no Recife, uma das duas primeiras Faculdades de Di-

reito do Brasil em 1827, a outra em São Paulo. Esta grande torrente,

provindo dos reformadores e revolucionários, vai se cruzar em Joa-

quim Nabuco com a dos liberais e conservadores esclarecidos. Seu

pai, o Conselheiro Nabuco de Araújo, tinha sido na juventude um dos

juízes contra os vencidos insurrectos de 1848, com o passar do tempo

aderindo ao extremo oposto, a dos liberais ditos progressistas já

naquela época.

O artigo de jornal, inclusive polêmico, e os panfletos na mesma li-

nha, predominavam sobre o ensaio mais meditado, com consciência

das suas limitações. Abreu e Lima é dos que se inserem nesta linhagem

intelectual, surgindo como o primeiro brasileiro a assim se interessar,

não só participar praticamente, dos grandes temas e questões da Amé-

rica Hispânica, outro dos seus pioneirismos.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 7

Sarmiento educador e estadista

Platão, em texto célebre, recomendava o rei-filósofo como melhor

governante. Na prática, os intelectuais nem sempre corresponderam à

expectativa, uma das raras exceções foi Domingo Faustino Sarmiento,

presidente da República Argentina de 1868 a 1874, mesmo assim po-

lêmico, menos por si próprio que pelos inevitáveis adversários na polí-

tica. Por suas ideias progressistas, ele mesmo assim as declarava, e por

seus democráticos combates de persuasão do povo para adotá-las,

Sarmiento bem merece a denominação de rei-filósofo republicano la-

tino-ibero-americano.

Numa democracia também cumpre educar o soberano, neste caso

o povo, Sarmiento preparou-se a vida inteira para esta missão e, por

isso, pode ser considerado o pedagogo nacional do seu país.

O futuro mestre das massas argentinas nasceu no interior, na então

distante San Juan de la Frontera, perto dos Andes e do Chile. Escreveu

sentidas memórias, Recuerdos de provincia (1850), onde intenso senti-

mento se alia a fino estilo literário, em força, não só na forma. Jorge

Luís Borges dizia que poética e retórica são inseparáveis, isso é tanto

mais verdade na cultura castelhana no sentido de apaixonada expres-

são em palavras, imagens, cores e sons.

Recuerdos de provincia começam por proclamações de orgulho da as-

cendência dos Conquistadores espanhóis da Ibero-América, seus an-

cestrais, “famílias antigas, que compuseram a velha aristocracia colo-

nial”, sob o signo dos jesuítas os quais, com elas, iniciaram o povoa-

mento e a evangelização do Norte e Oeste argentinos vindo dos

Andes peruanos e chilenos, trazidos pela incessante busca de minas de

ouro e prata. Daquelas tradicionais famílias proviriam descendentes

tiranos, Juan Manuel Rosas no século XIX, e escritores, Eduardo

Mallea e Tomás Eloy Martínez, no XX, muitas vezes de famílias em-

pobrecidas como os ancestrais mais próximos de Sarmiento.1

Sua decadência, em meio à perda de liderança nas hostis circuns-

tâncias do desbravamento e colonização remotos, implicou na ascen-

são e multiplicação da desordem no vácuo de poder entre os espa-

nhóis em retirada, e o ainda distante poder central de Buenos Aires, ao

lado de poucas cidades espalhadas e distantes entre si: começos do

conflito entre civilização e barbárie, subtítulo de futuro famoso livro

de Sarmiento, com o qual pretendia advertir e preparar os argentinos

para superação daquele caos inicial.

Sarmiento preocupa-se, conclama: “Vede a Inglaterra, a França, os

Estados Unidos...” Sensibiliza-se com os reformadores liberais con-

servadores daqueles países, aponta-os como exemplo, não para a cópia

e sim à emulação. Seus fantasmas são os caudilhos regionais, que o in-

sultam e perseguem até ao exílio. E explica: “As antigas famílias colo-

niais desapareceram da Argentina”; cada um dos caudilhos, que as

quis substituir, “nunca ouviu silvar as balas espanholas, porque seu

nome obscuro, seu nome de ontem não está associado aos imortais

nomes dos que se ilustraram em Chacabuco, Tucumán, Maipu, Cal-

10 � Vamireh Chacon

1 � Sarmiento, Domingo Faustino, Recuerdos de provincia (Con un apéndice sobre su muertepor Martín García Mérou), Buenos Aires, La Cultura Argentina, 1916, pp. 16, 39 e 23.

lao, Talcahuano, Junín e Ayacucho”, as grandes batalhas de libertação

nacional da Hispano-América. Depois da geração dos Libertadores –

Miranda, Bolívar, Belgrano, San Martín, Sucre, O’ Higgins – veio a

geração dos caudilhos, Facundo Quiroga escolhido por Sarmiento

como protótipo mais que simbólico, cuja tirania dá título ao seu livro

com Civilización y barbárie como sub-título.2

Sarmiento migrara da distante cidade natal conflagrada, como qua-

se todas as outras, por caudilhismos só competindo em violência. Sar-

miento, de volta do exílio, aposta em Buenos Aires aberta ao mundo,

porto transatlântico da nação inteira. Sarmiento, e tantos mais, muito

devem à metrópole do Rio da Prata. De lá vinham, desde as primeiras

letras, os mestres; assim também Sarmiento teve os seus, cedo se torna

unitário no sentido de defensor da civilizadora hegemonia da capital,

vai pagar caro por isso, os caudilhos regionais o encarcerarão e o ex-

pulsarão da Argentina.

Sem conseguir entrar no Seminário de Córdoba, torna-se autodi-

data, assim continuará em toda a vida de apóstolo da educação popu-

lar laica, obrigatória e gratuita, caminho único para a democracia

consciente. O livro que primeiro lê é a Vida de Franklin, manterá por

toda a vida admiração profunda por estes Estados Unidos. Será em

língua inglesa que lerá a Vida de Cícero de Middleton. Também aprende

italiano, alemão, francês, em meio a enormes dificuldades materiais;

chega inclusive ao português, que lhe será muito útil nos contactos

com brasileiros nas lutas contra o inimigo comum, o caudilho Juan

Manuel Rosas.

Confessa as primeiras leituras, marcantes em toda a sua vida; nas

suas próprias palavras: “Villemain e Schlegel, em literatura; Jouffroy,

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 11

2 � Idem, pp. 59, 9, 10, 33, 263 e 109.

Lerminier, Guizot, Cousin, em filosofia e história; Tocqueville, Le-

roux, em democracia; a Revista Enciclopédica como síntese de todas as

doutrinas”. Somadas estas influências a anteriores e posteriores – Síl-

vio Pellico em luta contra a tirania indo até ao cárcere e os americanos

fundadores dos Estados Unidos – vemos, em conclusão, uma interes-

sante, mesmo importante, síntese ou convergência de liberalismo con-

servador e progressismo social, era o viável na sociedade argentina do

seu tempo.3

Sarmiento percorria estas etapas da sua formação intelectual ven-

cendo as maiores dificuldades materiais. A tradicional família, da qual

provinha em meio a tantas em idêntica situação, sua família havia em-

pobrecido, passara a geração dos idealistas Libertadores; sucedia-lhes

o mais grosseiro, homicida e suicida, dos realismos: homicida contra

os outros, suicida contra a própria nação.

O jovem Sarmiento teve de exercer as mais ínfimas profissões ma-

nuais, empregado subalterno no comércio e até trabalhador no fundo

de minas. Tornar-se professor em escola primária, ensinando primei-

ras letras a crianças, foi o início da sua ascensão social e política. Criou

e dirigiu uma escola secundária. Tornou-se jornalista. Então passou a

atrair as iras dos obscurantistas caudilhescos. O jornal por ele funda-

do, El Zonda, viu-se fechado, Sarmiento preso e exilado.

Seguiu para o Chile, que abrigava, entre mais exilados, Andrés Bel-

lo, grande educador venezuelano. Em Santiago, Sarmiento chegou a

redator de El Mercurio e um dos fundadores de El Nacional, os maiores

jornais chilenos da época. Ainda em Santiago do Chile organizou a

Escola Normal, como diretor, o primeiro centro superior de forma-

ção de professores em toda América Latina, sem se afastar do jornalis-

12 � Vamireh Chacon

3 � Ibidem, pp. 110, 218, 225, 230-232 e 235.

mo. Durante os anos de 1845 a 1848 viajou pela Europa e esten-

deu-se aos Estados Unidos, coisa rara naquele tempo de hegemonia

européia excludente.

Na sua longa viagem, visitou Thiers, Cobden, Lesseps, Bugeaud,

Dumas, políticos e escritores; na Prússia foi recebido pelos ministros

do Rei e por Alexandre Humboldt em pessoa; no Vaticano pelo Papa

Pio IX; nos Estados Unidos por Horace Mann, apóstolo da educação

pública gratuita; e muitos mais “que seria prolixo enumerar, com os

quais passei horas inteiras tratando dos assuntos mais graves, tendo

merecido de todos as mais lisonjeiras distinções, com muitos deles na

maior intimidade”, enquanto os caudilhos argentinos, e seus escribas,

espalhavam cartas insultando-o como “vil” e “imundo”. Sarmiento

não esqueceu de visitar San Martín, o fundador maior da Argentina,

idoso no exílio.4 Nem a este, a geração de caudilhos aceitava.

Na Europa, Sarmiento deslumbra-se, porém enquanto déjà vu. Pre-

fere ver de perto o neocolonialismo francês na Argélia. Inevitavelmen-

te se maravilha com o exótico das paisagens e dos trajes, contudo, sem

perder a visão crítica, limitada pela pouca divulgação dos raros estu-

dos da época sobre a contemporânea cultura árabe e muçulmana.

Nos Estados Unidos, Sarmiento faz algo parecido com Tocquevil-

le: tenta a interpretação da religião, capitalismo, federalismo (o qual

não queria para a Argentina por conta dos localismos caudilhescos) e

a escola pública obrigatória, laica e gratuita, que ele pretendia também

para o seu país.5 Sarmiento virá a ser embaixador argentino em Was-

hington durante quatro anos, antes de presidente da República, sena-

dor, ministro e professor de Direito Constitucional na Universidade

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 13

4 � Ibidem, pp. 305 e 306. Sarmiento entra em pormenores sobre as chicanas e pri-sões por ele sofridas, até decidir-se pelo exílio (pp. 235-261). A descrição da visita deSarmiento a San Martín está no livro na nota 6 destas Notas Bibliográficas.

de Buenos Aires, numa sequência demonstrativa de saber de experiên-

cia feito, desde os tempos de empregado subalterno no comércio, tra-

balhador no fundo de minas, exilado, fundador de jornais, jornalista

militante, professor de escola primária a diretor de escola secundária,

todo um itinerário de baixo para cima, ardente, apaixonado, sempre

polêmico em vida e até depois de falecido, nunca morto, porque sem-

pre lembrado, pró ou contra, pelos que lêem sua obra diversificada,

engajada, testemunhal, vindo do passado mirando o futuro.

Pio IX foi o primeiro a visitar a América do Sul, antes de tornar-se

Papa. Sabendo ser Sarmiento argentino exilado no Chile, pergunta

muito pelos argentinos e chilenos que conheceu pessoalmente; ouve

horrorizado que Rivadavia, presidente esclarecido da Argentina, aca-

bara desterrado em Cádiz e na miséria; alegra-se que a república pací-

fica no Chile possa vir a servir de inspiração aos vizinhos hispa-

no-americanos. A sutil diplomacia de Pio IX, ainda na fase anterior

aos grandes conflitos que teria de enfrentar nas lutas pela unificação

italiana em parte contra o Vaticano, a fina sensibilidade do Pontífice

preferia fazer perguntas sobre a América do Sul, em vez de propor po-

líticas concretas.6

14 � Vamireh Chacon

5 � D. F.Sarmiento, Viajes por Europa, África y América (1845-1847), edição críticaorg. por Javier Fernández, Madrid: Colección Archivos, 1993. Vide os comentários“Sarmiento en los Estados Unidos” por Wiliam H. Katra e “Los Estados Unidos enSarmiento” por Jaime O. Pellicer, pp. 853-952. Há teses de mestrado e doutoramen-to em universidades dos Estados Unidos sobre a americanofilia de Sarmiento. Quan-to à sua concepção de escola pública, muito afim da de Horace Mann com quem seentrevistou pessoalmente no Massachusetts, vide o próprio Sarmiento no seu livroEducación popular e na autocrítica que dele faz em Recuerdos de provincia: “Este livro é aque-le que mais estimo”, “é fruto amadurecido” (op. cit., pp. 306 e 307).6 � Viajes, op. cit., pp. 205 e 222-224. Sarmiento era maçon, porém nesta fase, mea-dos do século XIX, ainda não haviam irrompido hostilidades oficiais entre o Papadoe a maçonaria.

O capítulo sobre o Brasil (Rio de Janeiro), em forma de carta

como os demais, é um dos mais longos do seu livro Viajes, ali Sarmi-

ento passa mais de vinte dias. Demonstra ter muito entendido o Bra-

sil, mesmo a partir de uma só cidade. Sente o impacto do langor dos

trópicos – argentino dos Andes exilado no Chile – e entende, por ex-

periências pessoais, o esforço monárquico constitucional brasileiro

ainda sem ameaça de república, naquele ano de 1846. Indignado

com a escravidão, consegue compreender a diferença da mestiçagem

no Brasil e seu crescimento como salvação: “o mulato suplanta o

branco”. Alegra-se em ver o repúdio brasileiro contra o tirano argen-

tino Rosas, que tanto fizera Sarmiento sofrer, do cárcere ao exílio.

As observações de Sarmiento são dignas de sociólogo e politólogo

sobre o Brasil e por onde mais passou.7

Pouco depois, 1852, o Exército brasileiro se incorporará à oposi-

ção contra Rosas, para depô-lo à força armada do poder. Sarmiento

entrará na Argentina em companhia dos seus compatriotas aliados do

Brasil, tropas binacionais lado a lado, com a finalidade de colocar na

presidência Justo José de Urquiza, governador da província de Entre

Rios, próxima do Brasil. O Exército de Rosas será derrotado enfim na

Batalha de Caseros, antes a esquadra dele havia sido destruída na Bata-

lha de Tonelero, nesta pela Armada brasileira. Tropas uruguaias jun-

tam-se à marcha sobre Buenos Aires, Rosas foge, abandonando a capi-

tal. As forças aliadas ocupam-na e põem Urquiza na presidência da re-

pública. Acaba este bloqueio no Prata.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 15

7 � Viajes, op. cit., pp. 56-74. Seu discípulo predileto, o diplomata Martín GarcíaMérou viverá no Rio de Janeiro larga temporada, escrevendo El Brasil intelectual (Impre-siones y notas literarias), Buenos Aires, Félix Lajouane, Editor, 1910. Ali descreve, comconhecimento próximo de causa, a vida literária brasileira de fins do século XIX aprincípios do XX.

A imprensa brasileira clamou contra tanto dinheiro e sangue brasi-

leiros para resolver um problema político estrangeiro, mas Sarmiento

mostra como o Brasil ganhou com a internacionalização do tráfego

nos amplos afluentes do Rio da Prata, o Uruguai e o Paraguai, que

dão nomes aos países ribeirinhos, cujos caminhos fluviais eram, então,

o melhor acesso do Brasil ao seu próprio Oeste.8

Veio a ser superado o permanente perigo de engarrafamento do

Oeste brasileiro, que levará à intervenção militar do Brasil contra a

presidência de Atanasio Aguirre no Uruguai. Mesmo assim, Solano

López resolverá repetir o bloqueio e terá de ser também derrubado

do poder com mais violência, dada a sua mais encarniçada resistên-

cia. Sarmiento sucederá Mitre na presidência da Argentina, aliada

militar do Brasil na primeira fase da guerra ainda em companhia do

Uruguai, o Brasil tendo de combater sozinho no último e pior perío-

do, embora com apoio político dos governos de Buenos Aires e

Montevidéu.

Adversários de Sarmiento, das suas ideias e inclusive da colaboração

especial Argentina-Brasil, nunca o perdoarão e voltarão à carga contra ele,

sempre que possível. Sarmiento virá, mais uma vez, ao Brasil, 1852, para

explicar os acontecimentos diretamente aos brasileiros: procura os líderes,

frequenta a sociedade, visita os jornais, deixando outras anotações precio-

sas.9 Já era prócer e famoso autor do Facundo, análise do caudilhismo ar-

gentino e até platino, de início publicada em artigos no periódico chileno

El Progreso ao longo de 1845, no mesmo ano editado em livro, logo um

dos clássicos do pensamento sócio-político ibero-americano.

16 � Vamireh Chacon

8 � D. F.Sarmiento, Campaña en el Ejército Grande Aliado de Sudamérica, notas de TulioHalperin Donghui, México – Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1958, pp.88, 137 e 303-305.9 � Idem, pp. 225-274.

Facundo, com o subtítulo Civilización y barbárie, é um livro bem escrito, mu-

ito bem escrito. As limitações historiográficas decorrentes da sua paixão

contra o caudilhismo, a barbárie – a seu ver com Facundo Quiroga como

arquétipo, além de mero protótipo, hoje diríamos um tipo-ideal weberiano

– aquelas limitações são grandemente superadas pela fidelidade à verdade e

à elegante paixão com que Sarmiento escreve. O livro termina como um

painel do conflito entre província e metrópole na Argentina do seu tempo,

Euclides da Cunha o conheceu e cita-o em À margem da história.

Sem os preconceitos cientificistas, tão comuns no século XIX, Sarmi-

ento esboça sociologia e politologia por intuição e experiência, dispen-

sando erudição, quanto ao conteúdo. A estilística de Sarmiento, quanto à

forma era um castelhano clássico, embora polemizasse romanticamente

contra o purismo de Andrés Bello. Unamuno mostrou como Sarmiento

era tão apaixonadamente espanhol nas suas críticas à Espanha, escrevendo

em antigo castelhano colonial salpicado de regionalismos argentinos.10

O apostolado cívico educacional de Sarmiento teve um novo e conside-

rável impulso a partir da repercussão de Facundo. Para vários hispano-ameri-

canos, história política e história literária são inseparáveis. Um pesquisador

da Universidade de Nova York, em tese de doutoramento (1968), Benja-

mim Katz, mostra como Sarmiento via no caudilhismo provincial um cír-

culo vicioso de efeito e causa de desorganização social, Juan Manuel Rosas

sua máxima expressão nacional, Facundo Quiroga mais fácil de ser analisa-

do porque num microcosmo com os mesmos defeitos de origem.11

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 17

10 � Sara Jaroslavsky Lowy apresentou à Universidade de Columbia, Nova York,1970, a tese de doutoramento Echeverría, Gutiérrez, Alberdi, and Sarmiento: Their Reaction to Spa-in and the Problem of the Language. A compreensão de Unamuno, até mesmo sua admiraçãopor Sarmiento, está no vol. IV das Obras Completas (Madrid, Afrodisio Agudo, 1958, p.849) e no VII do Ensayos (Madrid, Residencia de Estudiantes, 1918, pp. 104 e 105).11 � Katz, Benjamin, Argentine Sociology: The Social Ideas of Domingo Faustino Sarmiento,New York University, 1968. Tb. tese de Phd.

Facundo é um libelo contra o que parecia a Sarmiento a barbárie da

perversão do gaúcho isolado nas imensas planícies do pampa, sem lei

nem rei do Estado espanhol, rompido pela Independência liderada

pelo generoso idealismo dos Libertadores, sucedidos, no vácuo de po-

der, pelo primitivo, brutal, realismo dos grandes proprietários rurais,

cada qual querendo impor sua lei de tiranos regionais, os caudilhos.

Ao Rousseau, leitura básica de todos aqueles Libertadores, havia suce-

dido um Hobbes instintivo, dispensando leituras.

Na fase política do Facundo a representativa antítese era protagoni-

zada por Rosas, de um lado – fechando o liceu, única escola secundá-

ria de Buenos Aires, exigindo juramentos de fidelidade política dos

professores e impondo currículos politizados às próprias crianças –

em contraste com Bernardino Rivadavia antes presidente, abolindo a

escravidão, assegurando os direitos individuais e liberdades públicas,

proibindo a tortura, separando Igreja e Estado, multiplicando escolas

inclusive com bolsas de estudos para os pobres e fundando a Universi-

dade de Buenos Aires (antes só havia, na Argentina, a de Córdoba,

criada pelos jesuítas espanhóis já no século XVII da colonização). Lem-

bre-se ainda a liberdade de imprensa, instituída por Rivadavia, e o seu

apoio à agricultura e à livre iniciativa econômica em geral.12

Pelo engajamento político da sua obra de escritor, não se pode se-

pará-la no pensamento e ação de Sarmiento, o que para sempre lhe va-

lerá partidários pró e contra. Os historiadores, argentinos e estrangei-

ros, o colocam no centro do debate de uma das fases mais decisivas da

história da república do Rio da Prata. A polêmica, em torno do gaú-

18 � Vamireh Chacon

12 � Juan Bautista Alberdi, grande constitucionalista argentino contemporâneo deSarmiento, com ele polemizando afirma muito bem: “Facundo é Rosas com outronome”. Cartas quillotanas (Polémica com Domingo F. Sarmiento), Buenos Aires, La CulturaArgentina, 1916, p. 131.

cho, como tipo social, e do gauchismo como forma de vida social,

também irá se prolongar.

Há toda uma literatura regionalista gauchesca na Argentina, do

Martín Fierro (1872) de José Hernández, sua máxima expressão popu-

lar, ao Don Ricardo Sombra (1926) de Ricardo Güiraldes enquanto gran-

de expressão moderna. Não sem polêmicas também literárias, não só

políticas. Um clássico literário-sociológico-político do nível de Radio-

grafía de la pampa (1933) de autoria de Martínez Estrada choca-se fron-

talmente contra o gauchismo, não por acaso ele também escreveu um

livro sobre Sarmiento.

O conflito paradigmático numa só pessoa é o de Jorge Luís Borges.

Nas suas breves memórias, aparecidas inicialmente em inglês, Bor-

ges relembra um avô morto em guerras civis provinciais, recorda sua

primeira visão do pampa aos dez anos de idade e apressa a conclusão

que nunca passara das “primeiras estrofes” de “um poema sobre os ga-

úchos”. Logo em seguida se entrega às viagens na Europa e considera-

ções universalistas.13

A verdade surge mais complexa.

Houve um “outro” Borges, um “primeiro” Borges regionalista e

nacionalista, estreando literariamente em 1923 com todo um longo

poema, Fervor de Buenos Aires, seguido por El idioma de los argentinos

(1928), com El tamaño de mi esperanza de permeio em 192614. Por mais

que o Borges maduro, universalista, quisesse renegar o anterior, os crí-

ticos vêm estendendo atenção ao primeiro Borges influenciado pelo

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 19

13 � Borges, Jorge Luís. An Autobiographical Essay ditado em inglês ao seu colaboradore tradutor Norman Thomas di Giovanni em 1970, publicado na revista The New Yorkerem outubro daquele ano e como introdução à edição de The Aleph and Other Stories. Pelaprimeira vez em português como “Perfis” em Elogio da sombra e outros perfis, Porto Ale-gre, Globo, 1971, aqui cit. na ed. separada Um ensaio autobiográfico (1899-1970), SãoPaulo, Globo, 200, pp. 31 e 32.

argentinismo de Manuel Gálvez, Ricardo Rojas e Leopoldo Lugo-

nes15, tentativas de síntese nada menos que entre Rosas e Sarmiento,

por estranho que pareça. É o esforço de integração província-metró-

pole no nacionalismo da Argentina, o pampa e a cabeça de Golias na

definição de um outro livro de autoria de Martínez Estrada16

Violência ou institucionalização, tanto nos campos quanto nas

cidades.

Esta tensão íntima, profunda, no cerne da argentinidade, pode ser e

tem sido intensa e extensamente criativa, ou o seu oposto, como se vê

na sua história política, econômica e cultural até os dias atuais.

20 � Vamireh Chacon

14 � Vide Rafael Olea Franco, El otro Borges (El primer Borges), México-Buenos Aires,Fondo de Cultura Económica-El Colegio de México, 1993, e Volodia Teitelboim,Los dos Borges, Santiago de Chile, Editorial Sudamericana Chilena, 1996.15 � Clementi, Hebe, Manuel Gálvez atravesando nuestra historia, Buenos Aires, EditorialLeviatán, 2001.16 � O livro La cabeza de Goliath de Martinez Estrada, 1940, é, de certo modo, con-tinuação e complementação de Radiografía de la pampa, noutro contraste de cida-de-campo, após o único volume Facundo (Civilización y barbárie) por Sarmiento. O li-vro daquele sobre este, Sarmiento, foi publicado em 1946, mesmo ano da posse presi-dencial de Perón, simulacro de Rosas, portanto mais que coincidência de datas. Aintenção de Sarmiento no Facundo desdobra o subtítulo em Aspecto físico, costumbres yhábitos de la República Argentina.

O lopezguaísmo: mitoe realidade

Até mesmo alguns brasileiros – por imaginário sentimento de cul-

pa, ou por motivos ideológicos sem concretizações de efetivas ajudas

aos povos vizinhos – publicam livros em defesa de Francisco Solano

López,contra um suposto genocídio praticado por brasileiros na Gu-

erra da Tríplice Aliança de 1865 a l870. A força política e militar do

Brasil teria então estado, mais uma vez e no seu pior momento, a servi-

ço de instigadores interesses britânicos.

A mais objetiva historiografia brasileira, a respeito, permaneceu

muito tempo na defensiva, até que o historiador Francisco Dorati-

oto, em mestrado e doutoramento na Universidade de Brasília,

pesquisou nos arquivos da Europa, Argentina e Uruguai, além de

demorar-se três anos nos do próprio Paraguai. Com os resultados

na dissertação As relações entre o Brasil e o Paraguai (1889-1930): Do

afastamento pragmático à reaproximação cautelosa, culminando no livro

Maldita guerra (Nova história da Guerra do Paraguai), 2002. São textos

documentados e críticos, sem concessões polêmicas. Onde ressalta

a complexidade da questão, cuja percepção faltou principalmente a

Solano López, na condução da política diplomática e da guerra,

com seu trágico desfecho.

Também há paraguaios outro tanto objetivos, documentados e crí-

ticos do alto nível historiográfico de R. Antonio Ramos, autor da La

independencia del Paraguay y el Imperio del Brasil, seguido por La política del

Brasil bajo la dictadura del dr. Francia. O autor mostra a precedência brasi-

leira no reconhecimento internacional da Independência paraguaia e o

paradoxo de Francia, ditador que iniciou o fechamento do Paraguai

ao mundo, ser filho de brasileiro natural de Mariana em Minas Gerais,

localizada erradamente no Rio de Janeiro pelo seu biógrafo paraguaio.

Francia casado com paraguaia de tradicional família.1

Carlos Antonio López, pai de Francisco Solano López e presidente

do Paraguai antes do filho, sabia da importância do Brasil desde a

Independência paraguaia e depois dela, para consolidá-la, como se vê

na carta dele ao imperador Dom Pedro II em 1.o de junho de 1845:

“Si al ejército de Vuestra Majestad Imperial pueden ser útiles las fuerzas

paraguayas, ellas tendrán solamente la demora de recibir las resoluciones de

su Augusta voluntad, y marcharán para los puntos que le fueren señalados,

desde luego e independientemente de los tratados de la futura alianza de

ambos Estados. El Supremo Gobierno a Su Majestad con amistad, gratitud

grande y sincera y que durará siempre”.

Em 9 de outubro do mesmo ano, Dom Pedro II respondeu ao pre-

sidente Carlos Antonio López:

“He tomado y continuaré tomando un vivo interés por su Independencia,

su engrandecimiento y por la prosperidad de su comercio, y emplearé en este

empeño los medios de los cuales puede disponer un Gobierno amigo y bené-

22 � Vamireh Chacon

1 � Justo Pastor Benítez, La vida solitaria del dr. José Gaspar de Francia (Dictador del Para-guay), Assunção, Carlos Schauman Editor, 1984 (1.a ed. em 1937), pp. 27-29.

volo. Os agradezco la cooperación diplomática y militar que me ofrecéis. Es

una prueba inequívoca de la confianza que depositásteis en mí. Yo aprecio

debidamente esta prueba y haré de la cooperación el uso que me parezca más

ventajoso al bienestar de la República del Paraguay”2

Francisco Solano López, antes de presidente paraguaio, esteve no

Rio de Janeiro em ida e volta da Europa. Visitou e conheceu pessoal-

mente líderes políticos brasileiros, subestimou seu preparo intelectual

e vontade política. Ainda mais subestimou a coesão política interna

do Senado e Câmara,institucionalizados num Brasil então sem golpes

de Estado, ao contrário de sua profusão na América Hispânica desde

suas Independências. Quanto ao escravismo, e grande propriedade ru-

ral dos líderes brasileiros,3 os Pais Fundadores dos Estados Unidos –

Washington, Jefferson, Madison – eram latifundiários e proprietários

de numerosos escravos, como se vê nas suas biografias não hagiográfi-

cas, portanto menos ideológicas e mais objetivas.

E o pior: Solano López sequer tomou conhecimento da necessida-

de brasileira de navegação fluvial, pelos afluentes do Rio do Prata,

para comunicações terrestres com o Oeste do Rio Grande Sul, Santa

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 23

2 � R. Antonio Ramos, La Independencia del Paraguay y el Imperio del Brasil, Rio de Janei-ro, Conselho Federal de Cultura-Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1976,pp. 308 e 309. Vide tb. Justo Pastor Benítez, Carlos Antonio López (Estructuración del Esta-do paraguayo), Assunção, 1990 (1.a ed. em 1949), pp. 84 e 85. Pastor Benítez reconhe-ce dificuldades: “Cuando amagaba un peligro en el horizonte se acordaba de su primer amigo interna-cional. Cuando pasaba el riesgo inminente se ponía a discutir con él en términos francos y a veces ásperos”(p. 85). Seu filho, Francisco Solano López, teve o tratado, entre o Brasil e o Paraguaide 1850, cobrado em livre navegação pelo Brasil e cobrou solidariedade brasileiracontra a Argentina em 1864, nas vésperas da guerra (p. 91).3 � José Murilo de Carvalho – em A construção da ordem (A elite política imperial), EditoraUniversidade de Brasília, 1980 – demonstra a complexidade interna desse estamentobrasileiro, muito além do escravismo.

Catarina, Paraná e Mato Grosso, numa época de estradas rudes e ín-

gremes. O apresamento, pelos paraguaios, do navio brasileiro “Mar-

quês de Olinda”, com o presidente da província, (governador) de

Mato Grosso a bordo, e a invasão e ocupação paraguaias das cidades

brasileiras no Mato Grosso e Uruguaiana defronte da Argentina, de-

terminavam resposta armada brasileira, tanto quanto antes contra

Juan Manuel Rosas e Atanasio Aguirre, quando bloquearam o Prata

em Buenos Aires e Montevidéu, com seu tráfego desobstruído à

força pela Marinha e Exército brasileiros, ajudados pelo argentino

Urquiza e o uruguaio Flores. A livre navegação no Prata e afluentes

interessava também a outros países, principalmente à Grã-Bretanha,

maior economia daquele tempo. Havia interesses convergentes com

os do Brasil, que soube usá-los, enquanto Solano López soçobrava no

isolamento, sem importantes alianças políticas ativas, limitadas na

prática a vagas solidariedades.

A doutrina brasileira de equilíbrio político e militar assim se movi-

mentava nos Estados platinos. Era uma doutrina, teórica e prática,

com continuidade por várias gerações, como se constata nos debates

no Senado e Câmara e Conselho de Estado do Império do Brasil. Juan

Manuel Rosas, Atanasio Aguirre e Solano López, sem equivalentes

mediações internas institucionais, projetavam suas domésticas tiranias

em políticas exteriores, desconhecendo ou subestimando a complexi-

dades do processo decisório brasileiro. O comportamento do oligar-

quismo escravista no Brasil era muito mais complexo do que o imagi-

nado pelos adversários sul-americanos, que por isso tiveram de pagar

alto preço.

Neste contexto, nunca houve golpes de Estado nem na monarquia

brasileira (1822-1889), nem na primeira república (1889-1930),

portanto quase um século de estabilidade institucional, enquanto nos

24 � Vamireh Chacon

hispano-americanos sucediam-se golpes após golpes, Constituição

após Constituição, infindavelmente. Os próceres hispano-americanos

não percebiam que vigorava no Brasil o pacto de elites, capaz de

autocontenção dos rebeldes nos limites das insurreições locais, diante

das anistias sempre concedidas pelos vencedores. Os próceres hispa-

no-americanos não entendiam que, mesmo os grandes chefes militares

brasileiros, Caxias, Tamandaré, Osório e outros, não conspiravam

para depor do poder os líderes civis, ao contrario das crônicas guerras

civis dos vizinhos.

Enquanto isso, no Paraguai a independência nacional popular fora

sucedida por ditatoriais estruturações do Estado centralizador das oli-

garquias em recíprocos golpes armados internos.

A estabilidade institucional do Brasil foi modificada, sem cancela-

mento do pacto das elites, na mudança de monarquia à república. Só

em 1930, sob o inicial impacto da industrialização e urbanização,

houve luta armada para transformações institucionais, enquanto pros-

seguia crônica a instabilidade institucional nos Estados hispano-ame-

ricanos. Mesmo assim, nenhum líder brasileiro convocou ou aceitou

ajuda direta de aliados estrangeiros, ao contrário de Justo José de

Urquiza e Venancio Flores aliando-se à intervenção armada brasileira

contra Rosas e Aguirre na Argentina e Uruguai em meados do século

XIX. Pouco antes, a Insurreição Farroupilha, proclamando a Repú-

blica Piratini no Rio Grande do Sul e República Juliana em Santa Ca-

tarina, não recorrera a ajudas militares e financeiras estrangeiras.

O Paraguai, sob a tirania de Solano López, não se dividiu interna-

mente e foi ao derradeiro sacrifício sob o seu comando. Prevaleceu a li-

nha vindo de José Gaspar de Francia – o dr. Francia admirado inclusive

por Auguste Comte que por isso o incluiu entre os precursores do posi-

tivismo – a Carlos Antonio López pai de Francisco Solano López.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 25

Valorizar a resistência, até o amargo fim, dos paraguaios e do pró-

prio Solano López, significa valorizar a vitória brasileira.

Os erros de Solano López não eram os do seu povo.

Na realidade, o Paraguai foi derrotado antes de mais nada politica-

mente, já Clausewitz demonstrava que a guerra é a política por outros

meios. No caso paraguaio, projeções do excessivo centralismo de So-

lano López, produto do legado isolacionista de Francia, apenas mino-

rado por Carlos Antonio López.

O precursor desenvolvimentismo de Solano López foi por ele pró-

prio interrompido, ao desencadear forças acima do seu controle: os

equipamentos bélicos paraguaios eram em menor quantidade e qualida-

de inferior aos dos argentinos e principalmente dos brasileiros, com

mais recursos para produzi-los ou comprá-los; portanto, a estratégia de

Solano López equivocada, ao precipitar-se em ofensivas, invadindo o

Brasil e Argentina, apesar do muito maior potencial de reação dos seus

inimigos, a quem julgava conseguir intimidar, mesmo em posição de

menor força diante de longa guerra de desgaste. Solano López dispu-

nha, porém, de melhor conhecimento direto da sua área de ação militar

e momentânea superioridade numérica pelo seu ataque de surpresa.

Solano Lópéz sabia disso tudo,4 mas seu senso de honra exagera-

va-se em líder autoritário filho de presidente autoritário, que o desig-

nara sucessor.

A tática de Solano López também estava equivocada, ao confiar

excessivamente na possibilidade de deter os brasileiros, até cansá-los,

diante das fortificações de Humaitá e Curupaiti, de cujas bases o

Exército paraguaio partia para batalhas muito além das suas forças.

26 � Vamireh Chacon

4 � “El número de inimigos puede ser grande pero no poderá resistir a su decisión y patriotismo”.Francisco Solano López, Cartas y proclamas, Assunção, Editorial El Lector, 1996, p.110.

Ademais, a Marinha paraguaia, muito abaixo da brasileira em couraça

e poder de fogo, já tinha sido desbaratada em Riachuelo. Contudo,

testemunhos, inclusive paraguaios, relatam a trágica surpresa dos resi-

dentes e transeuntes no Palácio do Governo de Assunção,ao vê-lo sob

os disparos das belonaves brasileiras subindo o rio. Nesta ocasião, So-

lano López perdeu a última oportunidade de aceitar as propostas de

diplomatas estrangeiros para negociar. Em vez disso, ele preferiu se fe-

char ainda mais dentro de si mesmo e das suas restantes forças, passan-

do a fuzilar companheiros, inclusive o próprio irmão, por ele suspei-

tos de traição.

Daí a necessidade da continuação da caça a Solano López, após a

queda da capital, Assunção, porque ele refluiu aos interiores do seu

país, para lutar até o fim. Deixá-lo evadir-se significava receber imedi-

ato, ou posterior, contra-ataque. Seus possíveis sucessores paraguaios

tremiam ao ouvir o seu nome e dependiam do Brasil e Argentina para

se manterem no poder. O povo do Paraguai, acostumado desde Fran-

cia ao sacrifício total vindo desde muito antes na disciplina das redu-

ções indígenas guaranis, acompanhou “El Supremo” numa tragédia

emuladora das antigas gregas, ou num novo cerco de Tróia, onde am-

bos os lados em cruenta guerra tanto se distinguiram. Também na

Guerra do Paraguai os povos, com alguns dos seus melhores líderes,

foram os heróis maiores. O lopezguaísmo é a tentativa de limitar o Pa-

raguai a Solano López.

Sem a mesma grandeza, alguns amigos ou aliados dos novos donos

do poder, passaram do mito heroico ao chamado lopezguaísmo, ten-

tativa de equivalência do Paraguai com os ultrapassados métodos e

metas de Solano López. Um dos honestos, inteligentes, corajosos e

bem documentados pesquisadores paraguaios, capazes de enfrentar a

questão, é Guido Rodríguez Alcalá, no seu livro Ideologia Autoritária em

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 27

seus Conteúdos Ideológicos e Utópicos, se quiséssemos aplicar-lhes os concei-

tos de pensamentos justificadores ou renovadores, neste caso mais de

justificação que renovação, a aparência desta a serviço real daquela.Guido Rodríguez Alcalá centraliza nas obras de Juan O’Leary e

J. Natalicio González sua crítica ao lopezguaísmo: Juan O’Learyna biografia El Mariscal Solano López, 1920, com mais reedições queEl Paraguay eterno, 1935, de F. Natalicio González, glorificações mi-tificantes de idealizada nação e seu chefe supremo, oficializadas emmistificações mais em religião de Estado que da sociedade civil, inti-midada ao discuti-la. Até biógrafos liberais, ao modo de Justo Pas-tor Benítez, recebem estas influências de interpretação sobre Franciae López pai e filho, diante das ásperas discordâncias de Cecilio Báez,La tirania en el Paraguay, 1903, amenizadas no póstumo (1985) Ensayo

sobre el doctor Francia y la dictadura en Sudamérica, e de Manuel Domín-guez, La Constitución del Paraguay, 1909. Já Julio César Chaves, El Su-

premo Dictador, 1946, prefere posição intermediária “entre a apologiae a crítica”.5

Guido Rodríguez Alcalá mapeou as genealogias intelectuais dos

principais antepassados ideológicos de Juan O’ Leary e J. Natalicio

González: são a idealizada revificação estetizante do passado por Re-

nan e a interação terra-meio social-homem em Taine glorificada por

Barrès. Charles Maurras comparece com o nacionalismo conservador

de nostálgico a autoritário regressista.

Juan O’Leary é o criador propriamente dito do específico lopez-

guaísmo, ao pretender definir, pela sua biografia de Solano López e

por seu livro Apostolado patriótico (1930), a paraguaidade como síntese

28 � Vamireh Chacon

5 � Guido Rodríguez Alcalá, Ideologia autoritária, Brasília, Fundação Alexandre deGusmão-Centro de História e Documentação Diplomática-Instituto de Pesquisa eRelações Internacionais, 2005, pp. 22 e 21. Trad. do homônimo em castelhano.

do culto à pátria e ao herói máximo; “antes e depois da guerra, López

foi e é o Paraguai.” Tratava-se, nas palavras de Juan O’ Leary, do revi-

sionismo histórico na perspectiva do nacionalismo integral maurrasia-

no, para “devolver a fé à nossa raça”, dando um toque de moda bioló-

gica ao idealismo.6

A biografia de Solano López por Juan O’ Leary é hagiográfica, não

historiográfica, uma canonização ideológica claramente direcionada.

Pretende até prever o futuro, porém no condicional do pretérito mais

que perfeito, no duplo sentido etimológico e semântico, quando con-

figura o que poderia ter sido se não fosse o que houve...

O estilo e o conteúdo de Juan O’ Leary lembram muito o Maurice

Barrès do culto do eu heróico e do magistério de energia nacional. O’

Leary foi consagrado a ponto de ser aceito como uma virtual ditadura

intelectual, de modo a tornar-se o selecionador dos livros históricos

didáticos oficiais de todas as escolas paraguaias, desde o curso primá-

rio ao secundário, numa época de poucas Faculdades de nível univer-

sitário no seu país. Também suas descrições de batalhas lembram o

Barrès do sangue, volúpia e morte, mas ele próprio cita Victor Hugo,

daí seus ecos pelos êxitos de um e fracassos do outro. O’ Leary chega a

negar a tirania de Solano López, ao preferir saudá-lo como o maior

arauto da liberdade nas Américas... A tirania seria a das brutais Orde-

nações Coloniais espanholas, às quais Solano López procurara supe-

rar pelo que depois veio a chamar-se de modernização conservadora:

instrução pública e inícios de industrialização promovidos por Estado

centralizador e autoritário, imaginado por Juan O’ Leary como

pré-democrático.7

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 29

6 � Idem, pp. 110 e 101-108.7 � Juan O’ Leary, El Mariscal Solano López, Madrid, Imprenta de Félix Moliner, 1925(1.a ed. em 1920), pp. 396, 397 e 394.

J. Natalicio González segue-lhe os passos. Ele começa pelo itinerá-

rio de Taine com o meio geográfico e a “raça” (mistura de guaranis e

espanhóis, sem referência a outras tribos índias e outros imigrantes)

vencendo a circunstância física ao construir a história, na diferencia-

ção maurrasiana entre “nação autóctone” telúrica, verdadeira, e o

“Estado exótico” com instituições liberais europeias impostas de fora

para dentro8. Oliveira Viana fez análogas considerações, como ponto

de partida da sua crítica ao Brasil na mesma época.

Mas J. Natalicio González adere ao antissemitismo, ao acusar o

descendente de judeus Eusebio Ayala, deposto presidente do Para-

guai, de professar “a concepção judaica da pátria”9, estrangeirada e

estrangeirista. No Brasil Oliveira Viana não chegou a tanto, mas

apresenta também explícitos racismos em Populações meridionais do Bra-

sil e Raça e assimilação.

Dali J. Natalicio González inflete na direção de um nacionalismo

social quase nacional-socialista, na realidade mais um estatismo popu-

lista dos muitos na Ibero-Latino-América, chegando à presidência da

república do Paraguai sob o lema “A tiros e espadaços, Natalicio ao

palácio”, deposto apenas com um semestre de 1948 no poder.10

O lopezguaísmo de Juan O’Leary e J. Natalicio González foi incor-

porado, entre outras influências intelectuais (o salazarismo do jornal El

Tiempo), a interesses de classes oligárquicas e grupos populistas no rotei-

ro, não diríamos programa orgânico, do Partido Colorado em suas ra-

mificações por vezes diferenças internas. Desencaminhadas pelas longas

ditaduras dos generais Higinio Morínigo e Alfredo Stroessner, passan-

do por outras mais breves também militares.

30 � Vamireh Chacon

8 � Rodríguez Alcalá, op. cit., pp. 111, 112, 113 e 114.9 � Idem, pp. 110.10 � Ibidem, p. 109.

Juan O’ Leary e J. Natalicio González deixaram longo rastro nos li-

vros didáticos que fizeram o Paraguai adotar oficialmente, deles e de

autores esquerdizantes como Eduardo Galeano em As veias abertas da

América Latina.11

Para J. Natalicio Gonzáles foi Solano López até diplomata, não só

comandante: diplomata jurista internacionalista nas suas negociações

de tratados paraguaios com potências europeias e o Brasil, neste caso

condicionado à navegação, pelos rios que percorrem o Paraguai, ao re-

conhecimento das fronteiras pelo Brasil. A divergência, por culpa ou

mesmo dolo dos próceres brasileiros, segundo J. Natalicio González,

teria sido a causa final de desentendimento e guerra.12 Importante

acrescentar que o Brasil negociou, sem traumas, a internacionalização

do tráfego do seu Amazonas.

O prefacio a Solano López diplomático (1948) é de autoria do prestigio-

so coronel Juan Federico Garay, numa edição pela Biblioteca das For-

ças Armadas do Paraguai. A data da publicação marca a breve passa-

gem do autor, J. Natalicio González, pela presidência da sua instável

república.

Guido Rodríguez Alcalá é dos historiadores paraguaios que regis-

traram a intimação de rendição “perfeitamente razoável” pelos Exér-

citos aliados, o do Brasil na última fase da guerra, a Solano López que

tudo rejeitou, preferindo lutar “até o fim”.

“É difícil explicar esta dilatação desnecessária da guerra como he-

roísmo. Em todo caso, o heroísmo de López é similar ao de Hitler,

disposto a se sair bem ou cair,arrastando consigo os demais”.13

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 31

11 � Ibidem, pp. 92-100, 122-127 e 22.12 � J. Natalicio González, Solano López diplomático, Assunção, Biblioteca de las Fuer-zas Armadas de la Nación, 1948, pp. 21-29, 34-43, 68-71 e 78.13 � Rodríguez Alcalá, op. cit., pp. 66 e 67.

A tragédia paraguaia terminou marcando seu povo e os vizinhosenvolvidos na guerra. A memória histórica não pode, nem deve, esque-cê-la e sim dela retirar conclusões. Na Argentina, mais que no Brasil,as opiniões se dividiram, Sarmiento a favor e Alberdi contra Mitre emaliança militar com o Brasil. Ao término do mandato presidencial deMitre, expulsos os invasores paraguaios, a Argentina retirou-se doconflito, deixando ao Brasil a tarefa de concluí-lo diante da irredutívelresistência de Solano López. Historiadores paraguaios vêm passandoa ver a questão nas suas complexidades, em vez de unilateralizá-la, in-clusive quanto ao número de perdas humanas14 diante da devastaçãoeconômica no Paraguai e excesso endividante de despesas no Brasil.15

O isolacionismo defensivo de Francia e Carlos Antonio Lópezhavia se extremado, ainda mais em ofensivo sob Solano López, po-rém o integracionismo ibero-latino-americano chegaria também aoParaguai.

32 � Vamireh Chacon

14 � Bárbara Ganson de Rivas – Las consecuencias demográficas y sociales de la Guerra de laTriple Alianza, Assunção, Editora Litocolor, 1985, e Francisco Doratioto, Maldita guerra(Nova história da Guerra do Paraguai), São Paulo, Companhia das Letras, 2002 – procu-ram desemocionalizar o cálculo das perdas humanas, contra os que pretendem ter ha-vido um milhão de paraguaios mortos em combates ou por suas consequências, núme-ro maior que o da população, antes de começar o conflito. Doratioto lembra ainda “amaioria dos mortos”, “devido à fome, doenças ou exaustão decorrente da marcha decivis para o interior, ordenada por Solano López” (Doratioto, pp. 459 e 456). O ní-vel demográfico foi rapidamente recomposto pela alta taxa de natalidade paraguaia naépoca (Ganson de Rivas, p. 11). Quanto às seguintes intermitências do isolamento doParaguai, ele dependia dos respectivos interesses da oligarquia paraguaia. Vários gran-des intelectuais foram, então, exilados ou preferiram exilar-se.15 � Foram as grandes despesas e endividamentos brasileiros pela Guerra do Para-guai que levaram o Barão de Cotegipe a escrever ao Barão de Penedo, dois grandespróceres monárquicos, em 12 de maio de 1866: “Maldita guerra, atrasa-nos meio sé-culo!” Vide Francisco Doratioto, Maldita guerra (Nova história da Guerra do Paraguai), op. cit.,pp. 11, 484 e 91. Também Doratioto estuda o revisionismo lopezguaísta (pp. 19, 85e 86).

Também a cultura ou culturas paraguaias continuarão produzindo

libertadores, prenunciados por grandes poetas e novelistas do porte

mundial de Augusto Roa Basto, ao contrapor as megalomanias tirâni-

cas de Eu, o Supremo – metáfora de Francia, Carlos Antonio e Solano

López e mesmo os posteriores Morínigo e Stroessner – diante dos so-

frimentos e reivindicações do povo em Filho do Homem. Temática de vá-

rios escritores hispano-americanos.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 33

A historiologia peruanade Jorge Basadre

Amaioria dos críticos considera Jorge Basadre o maior historiador

político social peruano1 pertencente à geração de 1920 ou do Cente-

nário de Independência do Peru (1921), que produziu Luís Alberto

Sánchez outro tanto na história literária, o poeta César Vallejo e os

mais conhecidos políticos de projeção internacional Víctor Raúl

Haya de la Torre e José Carlos Mariátegui?2

Os principais livros escritos por esta geração, marcando profunda-

mente o Peru, são Perú (Problema y posibilidad) de Basadre, Siete ensayos de inter-

1 � David Sobrevilla, “Prólogo” à 2.a edição de Perú: Problema y posibilidad y otros ensa-yos, publicada na Biblioteca Ayacucho, Lima, 1992 (1.a ed. em 1931), p. IX. A partirdaí, Jorge Basadre acrescentou-lhe o anexo “Algunas reconsideraciones cuarentasieteaños después", porém a referida 2.a ed. tem, ademais, apêndices: “Notas sobre la expe-riencia histórica peruana”, “La promesa de la vida peruana”, “Reflexiones sobre lahistoriografia” e “Elogio de José Maria Eguren”. Nas “Reflexiones” (1973), ele apre-senta interesse pela escola francesa dos Annales, que seu critico Sobrevilla insere noconjunto da sua elaboração metodológica, desde quando (1951-1956) Basadre, naComissão de História de UNESCO, passou a dedicar mais atenção à metodologia. As“Reflexiones” também estão em reedições da Hístoria de la República de Perú.2 � Sinésio López Jiménez, “Basadre: historiador, bibliotecario y ministro”. Líbros& Artes (Revista de Cultura de la Biblioteca Nacional del Perú). Numero especial en homenaje a JorgeBasadre. Lima: n.o 3, novembro, 2002, p. 2.

pretación de la realidad peruana de Mariátegui, El antiimperialismo y el APRA, de

Haya de la Torre fundador da Alianza Popular Revolucionaria America-

na no México em 1924, enraizada no Peru e com projeções nas suas pro-

ximidades da Bolívia à Colômbia, Equador, Venezuela e América Cen-

tral. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana de Mariátegui teve grande

influência no nascimento do Partido Comunista no Peru e na subsequen-

te guerrilha Sendero Luminoso, após o falecimento do autor, portanto à

revelia dele, A APRA conseguiu chegar à presidência do Peru com Alan

García, após o falecimento de Haya de la Torre, Jorge Basadre sempre

tentou evitar a política, porém desde o berço não conseguiu, nascido que

foi em 1903 em Tacna, extremo sul peruano então sob ocupação chilena

após a Guerra do Pacífico terminada em 1883 entre estes dois países,

mais a Bolívia daí em diante privada de saída ao Oceano Pacífico ao per-

der Arica para o Chile. Em 1912 a mãe viúva leva Jorge e seus irmãos para

Lima. Da infância na disputada Tacna, Jorge Basadre guardará a recorda-

ção do profundo início da sua consciência nacional peruana: “Alli aprendi

dolorosamente la emoción del Perú”. Sonhavam com Lima, em seguida seu do-

micílio até o falecimento em 1980.

Na capital peruana, por falta de escola inglesa, sua mãe, filha de

alemão, matricula o menino Jorge no Colegio Alemán, Deutsche Schule,

disciplinada e disciplinante, porém sem os exageros que por vezes lhe

atribuem: o ensino era rigoroso, embora com professores acessíveis no

estilo paternalista autoritário da Alemanha dos tempos do Kaiser.

Nem assim Basadre deixou de ser latino nas simpatias, inclusive polí-

ticas internacionais, ao posicionar-se, muito jovem, ao lado da França

na Primeira Guerra Mundial, ao ter um parente combatendo e mor-

rendo na Batalha de Verdun.

Após seis anos no Colegio Alemán (1912-1918), vai para o tam-

bém tradicional Colegio de Nuestra Señora de Guadalupe, por Jorge

36 � Vamireh Chacon

Basadre, ministro da Educação tempos depois, declarado honrosa-

mente “Primer Colegio Nacional deI Perú”, para muitos a porta de entrada

à Universidade de San Marcos vindo do século XVI. Ali foi contem-

porâneo de Haya de la Torre, Mariátigui e Luís Alberto Sánchez, en-

tre outros. Nessa época eles foram presos, inclusive Basadre, por agita-

ções estudantis.

O mais jovem professor de San Marcos aos vinte e cinco anos de

idade, Jorge Basadre estendeu sua pessoal bibliofilia ao trabalho de

bibliotecário na Biblioteca Nacional em Lima. Chegou a escrever

que aprendera mais nela que na Universidade. Recebeu em 1931

bolsa da Fundação Carnegie para estudos de biblioteconomia nos

Estados Unidos e, no ano seguinte, tomava um navio de Nova York

à Alemanha, onde foi acolhido pelo Instituto Ibero-Americano de

Berlim, com sua enorme biblioteca inicialmente doada pelo argenti-

no Ernesto Quesada. Na turbulenta República de Weimar, o jovem

Basadre ouve nada menos que Josef Goebbels e Adolf Hitler num

comício... 3

Prossegue à Espanha, com apresentações pessoais do ministro-che-

fe da Legação do Peru na França, Francisco García Calderón, seu pa-

rente, cujo irmão morrera na Primeira Guerra Mundial na Batalha de

Verdun.

Conhece pessoalmente o historiador Claudio Sánchez Albornoz,

reitor da Universidade de Madrid. Pesquisa nos arquivos madrilenhos

e sevilhanos a colonização da América Hispânica. Então escreve El

Conde de Lemos y su tiempo, um vice-rei espanhol do Peru, e Chile, Perú y

Bolivia Independientes.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 37

3 � Ernesto Yepes del Castillo (org.), Jorge Basadre: Memoria y destino del Perú (Textosesenciales), Lima, Fondo Editorial del Congreso del Peru, Centenário de Nacimiento,2003, pp. 5, 8, 9, 14-20, 35, 37, 38, 46, 2, 49-56.

Neste último, sem polêmica e sim com objetividade documental,

chega às suas conclusões peruanas, porém abertas, resumidas posteri-

ormente na interpretação tornada clássica no seu país:

“Mañana, Chile inspirará sentimientos de interrelación, de vinculación, de comu-

nidad”. Ao modo do seu amadurecido juízo hispano-americano enfim

sobre a colonização espanhola, julgamento mais desapaixonado e

mais objetivo por pesquisas ao longo do tempo: “Hoy España inspira res-

peto lejano, curiosidad artística, cariño atávico, desprecio estulto o indiferencia vaga,

pero no odio” (Perú: Problema y posibilidad 2.a ed., 2000, p. 32).

Estavam concluídos os anos de viagens de formação de Jorge Basa-

dre, ele iniciara a publicação dos seus textos logo considerados funda-

mentais para o conhecimento do passado, semente do presente e futu-

ro no legado histórico do Peru.4

Um historiador do alto nível de Jorge Basadre é dos que ensejam anítida diferenciação entre historiografia descritiva, historiologia inter-pretativa e historiosofia projetando-se filosoficamente. A obra de Jor-ge Basadre apresenta-se historiológica no sentido de história das insti-tuições políticas em suas bases de geográficas e econômicas a sociais eculturais. Para sua interrelação muito contribuíram as aulas do antro-pólogo Richard Thurnwald, sobre etnologia jurídica, por ele ouvidasna Universidade de Berlim. Basadre confessa tê-lo muito usado nassuas posteriores aulas de história do Direito Peruano na Universidadede San Marcos e que chegara a aproximar-se da técnica e metodologiada História do Direito “como disciplina con identidad propia”.5

Realmente, lá está, desde sua primeira obra amadurecida, Historia de

la República del Perú, na primeira edição (1939) num só volume, a explí-

cita interrelação, logo no volume inicial, de meio geográfico, ativida-

38 � Vamireh Chacon

4 � Jorge Basadre: Memoria y destino del Peru, idem, pp. 57-61.5 � Idem, p. 54.

des econômicas, estrutrura social e cultural, Igreja e Estado, interagin-

do ao determinarem sua idéia de pátria, condicionada auto-determi-

nação nacional. As guerras de Independência peruana de San Martín a

Simón Bolívar situam-se nesse contexto. O mesmo se aplica aos se-

guintes conflitos armados, em meio às contradições políticas com

aquelas causas.6

Alguns críticos discutem a possibilidade da influência da escola fran-

cesa dos Annales em Jorge Basadre. Falecido em 1980, tomou conheci-

mento deste movimento, amplamente divulgado nas universidades do

mundo inteiro, porém ele mesmo reconhecia a importância de Thurn-

wald, antropólogo das instituições, para seus estudos de História do

Direito: E já em 1928 ministra aulas em San Marcos sobre Historia del

Perú (Curso monográfico). No ano seguinte publica La iniciación de la Repúbli-

ca, sob os pressupostos a serem desenvolvidos, a partir de 1939, nas su-

cessivas aumentadas reedições de sua Historia de la República del Perú. Cre-

dite-se esta síntese ao talento metodológico e criativo de Jorge Basadre,

a partir da inspiração em Thurnwald, paralelamente e autônomo diante

da escola dos Annales, daí que, só após aquelas obras, Basadre cita Marc

Bloch7, Lucien Febvre, Fernand Braudel e Pierre Chaunu.8

Duas grandes linhas percorrem as interpretações peruanas de Jorge

Basadre, o nacionalismo e o socialismo, dois temas políticos maiores

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 39

6 � A metodologia de Jorge Basadre está aplicada desde o primeiro volume da suaHistoria de Ia República del Perú. Dela vide a 6.a edição aumentada e corrigida, Lima, Edito-rial Universitaria, 1968.7 � La vida y la historia (Ensayos sobre lugares y problemas), Lima, Fondo del Libro del Ban-co Industrial del Peru, 1975, p. 206.8 � Ademais das extensas referências de Jorge Basadre a Lucien Febvre, FernandBraudel e Marc Bloch em 1973 nas “Reflexiones sobre la historiografia” (vide nota1), ele muito recorre a Lucien Febvre, Fernand Braudel e Pierre Chaunu en El azar en lahistoria y sus límites (Con un apéndice: La serie de probabilidades dentro de la emancipación peruana).

no seu tempo, denotando a influência de Víctor Raúl Haya de la Tor-

re e de José Carlos Mariátegui. Pode-se até afirmar que Jorge Basadre

transita do nacionalismo de Haya de la Torre ao socialismo de Mariá-

tegui, no livro por ele próprio intitulado Perú: Problema y posibilidad

(Ensayo de una síntesis de la evolución histórica del Perú, con algunas reconsideracio-

nes, cuarentasiete anos después), em cujo prefácio à segunda edição (1978),

a primeira foi de 1931, ele confessa ter pretendido ir além daqueles

dois, integrado que estava num grupo de “izquierda moderada”, engajado

e regozijante com as vitórias da implantação da jornada de oito horas

de trabalho em 1919 e o reconhecimento dos direitos dos povos indí-

genas pela Constituição de 1920.9

Jorge Basadre foi adiante de Haya de la Torre e Mariátegui, em pi-

oneirismos como o estudo social da mulher em Perú: Problema y posibili-

dad já em 1931 (11.o capítulo), também ali sobre a arte, a música, a re-

forma universitária e, desde 1929, a massificação urbana por grandes

migrações rurais no seu discurso de abertura do ano acadêmico de

1929 na Universidade de San Marcos em Lima, intitulado La multitud,

40 � Vamireh Chacon

9 � Pelo seu marxismo não dogmático, Mariátegui alcançou grande repercussão in-ternacional, principalmente na Ibero-Latino-América. Vide, por exemplo MichaelLöwy, “Mística revolucionária: José Carlos Mariátegui e a religião”. Dossiê América La-tina, São Paulo, Universidade de São Paulo, vol. 19, n.o 55, setembro-dezembro, 205,pp. 105-116.10 � Victor Raúl de la Torre – ao concentrar-se intelectual e politicamente no na-cionalismo indigenista peruano, daí aos afins nas próximas Bolívia, Colômbia, Equa-dor, Venezuela, America Central, pela APRA (Alianza Popular Revolucionaria Ame-ricana) por ele fundada quando estava no México – Haya de la Torre autolimitou-se.Mesmo assim também despertou muito interesse, inclusive em extensa bibliografia aseu respeito. Vide, por exemplo, León Enrique Bieber, En torno al origen histórico e ideológicodel ideario nacionalista populista latino-americano (Gestación, elaboracion y vigencia de la concepciónaprista de Haya de la Torre), Berlim, Instituto lbero-Americano-Colloquium Verlag,1982. O texto inicial da APRA, fundada em 1924 por Haya de la Torre já em exílio

la ciudad y el campo. Sem se tornar nacionalista na APRA de Haya de la

Torre, Basadre enfatizou a consciência nacional,10 e – sem vir a ser

marxista, nem membro nem simpatizante do Partido Comunista com

Mariátegui – conclui Perú (Problema y posibilidad), apontando no socia-

lismo humanista e participativo o caminho do futuro. Nas “Algunas

consideraciones cuarentasiete años después” explicita a necessidade de alfabeti-

zação, aprendizado também técnico, reforma agrária e diversificação

industrial, em anotações capítulo por capítulo da obra inicial.

Para melhor entendimento de Victor Raúl Haya de la Torre,

lembre-se a sua formação de cultura humanística e a larga influên-

cia da Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA) por ele

fundada1o; outro tanto sobre Mariátegui merece atenção seu tam-

bém humanista socialismo.11 Ambos movimentos deformados, até

desvirtuados, por alguns pretensos herdeiros no Peru e fora dele.

Basadre inclinou-se mais para Mariátegui de breve vida, em cuja re-

vista Amauta colaborou, que para Haya de la Torre, longamente en-

volvido com a APRA, refugiado em embaixada estrangeira em

Lima e exilado.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 41

no México, é El antimperialismo y el APRA por ele ali escrito e publicado em 1928, iníciode outros textos demonstrando as mudanças do pensamento dele e da ação da APRA.Sobre as relações aprismo-marxismo vide, por exemplo, também de Haya de la Torre,Espacio-tiempo histórico (Cinco ensayos y trés diálogos), obra dedicada à Universidade de Tru-jillo (Peru), que concedeu o título de doutor honoris causa ao autor, impressa em Limapela Fundación Navidad Del Niño Victor Raúl Haya de la Torre, 1986. Outro dosmaiores expoentes apristas está sintetizado por Roy Soto Rivera em Luís Alberto Sánchez(Maestro, escritor y político), Arequipa, Instituto Luís Alberto Sánchez (Filial)-EdiciónAntonio de la Torre Luna, 2000. Luís Alberto Sánchez prefere o nome de Geração doCentenário (da Independência do Peru, 1821, constituída em República no ano se-guinte), da qual fazia parte ele próprio, mais Jorge Basadre, Victor Raúl Haya de laTorre, José Carlos Mariátegui, César Vallejo, Alfredo Gonzáles Prada, Luís E. Val-cárcel e outros.

Jorge Basadre foi ao ponto de tentar quase uma historiosofia, a partir

dos seus estudos historiográficos do Peru: El azar en la historia y sus límites

(Con un apéndice: La serie de probabilidades dentro de la emancipación peruana), 1973.

Em 1978 republicará, no livro Apertura, seus ensaios de história, educação,

cultura e política, escritos de 1924 a 1977, vários deles inéditos.

Em El azar en la historia y sus límites, Jorge Basadre parte do pressupos-

to do imponderável do cálculo das probabilidades na teoria dos jogos

de Von Neumann e Morgenstern em inúmeros predecessores e suces-

sores. Com a conclusão, baseada no estudo histórico de caso do Peru,

que seu principal problema e da América Latina consiste na superação

do que denomina “Estado empírico” e consequente busca de “vasos comuni-

cantes sólidos y anchos para que sea posible una sana movibilidad dentro de una socie-

dad al servicio de quienes la integran y no de unos cuántos”12 Sem dogmatismo,

seu raciocínio de experiente historiador, portanto estudioso do passa-

do, projeta-se no futuro em prudente proposta de experimento e erro,

do inglês trial and error. Assim se concentra Jorge Basadre da historio-

grafia à historiologia, sem pretender historiosofia.

Jorge Basadre incorpora-se à linha de autoanálises nacionais hispa-

no-americanas, que vem do século XIX de Sarmiento no Facundo, ao XX

de José Vasconcelos (La raza cósmica), Germán Arciniegas (Biografía del Cari-

be), Martínez Estrada (Radiografía de la pampa e La cabeza de Goliat) e Alberto

Edwards (La fronda aristocrática en Chile), entre outros, com a diferença de

Basadre preferir o oficio de historiador social propriamente dito, ao lado

de ensaísta, síntese que Gilberto Freyre conseguirá no Brasil com sua tri-

logia Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos e Ordem e progresso. Juntos re-

presentam etapas das visões dos ibero-americanos sobre si mesmos, lusos

e hispânicos, mesmo em meio a posteriores diversificantes influências.

42 � Vamireh Chacon

12 � Vide nota 8.

O pensamento orgânicochileno: realismo conservador

O Chile está situado numa estreita faixa de terra de cento e cin-

quenta a duzentos quilômetros de largura, numa extensão de cerca de

cinco mil quilômetros do Trópico de Capricórnio à Antártica. O de-

serto de Atacama e os Andes são proteção e limitação, o Oceano Pací-

fico seu acesso ao mundo. Já houve quem definisse o Chile como

“louca geografia” de “uma terra oceânica”.1

Não foi fácil, nem rápida, a fixação destas fronteiras ao longo de

quatrocentos anos.

No século XVI, Pedro de Valdívia, companheiro de Pizarro na con-

quista do Peru, desceu ao Sul, atravessou o deserto de Atacama, fundando

Santiago, Valparaíso, Concepción e Valdívia num núcleo duro no centro

do que ia ser o Chile. Diego de Almagro antes tentara uma incursão na

área, tendo de retornar a Lima, onde se envolveu nos conflitos contra Pi-

zarro e foi assassinado. O núcleo, em torno de Santiago, permaneceu iso-

lado e pequeno, até que seu crescimento demográfico o foi induzindo a

expandir-se de início ao Norte, em busca das minas de salitre e cobre em

1 � Benjamin Subercaseaux, Chile o una loca geografía, 1.a ed. em 1940 e Tierra de océano(La epopeya marítima de un pueblo terrestre) em 1946.

Antofagasta, Iquique e Arica, para sobrevivência econômica da maioria

no centro. Aquela região estava dividida entre o Peru e Alto Peru depois

Bolívia, região então remota, entre desertos e altas montanhas.

As incursões chilenas sobre Antofagasta, Iquique e Arica resulta-

ram na Guerra do Pacífico de 1879 a 1883, com o resultado da sua

incorporação ao Chile, mais Tacna depois devolvida ao Peru, enquan-

to a Bolívia perdia a saída ao mar, motivo de seguintes desentendi-

mentos.

A vitória militar do Chile levou-o a frutificar economicamente,

mas não eram fáceis os reajustes sociais internos. Em meio aos tumul-

tos, o presidente Balmaceda suicidou-se em 1891. Fortalecido o Chi-

le, houve crescente necessidade de força-de-trabalho, daí a sucessiva

importação de imigrantes da Itália e Alemanha, depois vindo da Croá-

cia então Iugoslávia, antes no Império Austro-Húngaro.

O pensamento orgânico chileno, no sentido de Gramsci, era ativo

consolidador, não apenas na manutenção da ordem existente. Ele já

almejava o que virá a chamar-se modernização do Estado em conser-

vadora sociedade. O primeiro grande representante deste pensamento

no Chile foi Nicolás Palacios (1854-1911), médico militar na Guerra

do Pacífico que, a seu ver, comprovava mais uma vez o evolucionismo,

o qual convergia na direção do nacionalismo chileno, confirmando-o

como o mais forte na região. Palacios era explícito adepto do darwi-

nismo social, para ele unindo materialismo de Darwin e idealismo de

Nietzsche, síntese rara.2

O livro fundamental de Palacios é o de início publicado anônimo,

Raça chilena (Livro escrito por um chileno e para os chilenos) em 1904, depois as-

sumido pelo autor.

44 � Vamireh Chacon

2 � Nicolás Palacios, Raza chilena (Libro escrito por un chileno y para los chilenos), Valparaí-so, Imprenta y Litografía Alemana, 1904, p. 501.

O positivismo dele era muito o inglês de Spencer e pouco o francês

de Comte, apesar da influência comtiana no Chile daquele tempo.

Muito agradava a Palacios o spencerismo formulando, antes do pró-

prio Darwin, a evolução como transformação do simples ao comple-

xo, do homogêneo ao heterogêneo. Cada equilíbrio é o recomeço de

outra mudança, ad infinitum. Palacios e imediatos sucessores tendiam a

identificar raça e cultura.

Herbert Spencer havia projetado este evolucionismo da biologia à

psicologia e à ética, no conjunto por ele denominado filosofia sintéti-

ca. Teve grande influência a partir da Inglaterra, a cujo expansionismo

imperial saudou como confirmação histórica do evolucionismo, assim

politizado e com paralela repercussão mundial ao lado do mais cientí-

fico Darwin. No Brasil, Sílvio Romero transitava do entusiasmo pela

cultura alemã, triunfante na unificação da Alemanha em sua vitória

sobre a França em 1870, ao entusiasmo pela cultura inglesa acompa-

nhando a mundialização do poder industrial, banqueiro e comercial

britânico.

Não há cultura inocente, estes e outros comportamentos intelec-

tuais demonstram-no. Não existe ato político gratuito, o poder britâ-

nico ideologizava-se na defesa dos seus interesses. O spencerismo veio

da análise do combate das espécies biológicas pela sobrevivência, em

evolução, à sua projeção em combates elitistas de culturas e civiliza-

ções pelo poder econômico e científico-tecnológico da Revolução

Industrial, na expansão mundial da Grã-Bretanha no século XIX.

Spencer foi aos Estados Unidos, por ele saudados como outra vitória

anglo-saxônica.3

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 45

3 � Idem, pp. 500-503. Vide tb. a apresentação à reedição fac-similar de 1904 em1988, pelas Ediciones Colchagua, “Ideario de Nicolás Palacios” por Patrício Tupper,pp. XXV-XXVIII.

À medida que se enfraquecia o poder britânico e o dos Estados

Unidos era contestado, surgiram as reações antimecanicistas de inspi-

ração inicialmente alemã, dos neokantistas, neo-hegelianos, culturalis-

tas, existencialistas, psicologistas e marxistas. Mais os neocartesia-

nos franceses.

Nicolás Palacios era grande entusiasta da Grã-Bretanha de Herbert

Spencer, então no auge. Acompanhava-o na intensa admiração pelos

Estados Unidos em ascensão já nos começos do século XX. Palacios

saúda com alegria o aparecimento das primeiras megaempresas trans-

nacionais dos americanos Morgan e Rockefeller, como outros impor-

tantes passos evolucionistas adiante na história da humanidade. Neles

não vê perigos ao Chile e sim exemplos a seguir. Daí propor a estatiza-

ção das minas de salitre e construção de transnacionais chilenas, inter-

vencionismo estatal a serviço do capitalismo de Estado, dada a inci-

piência do capitalismo privado chileno na época e os perigos de suce-

dâneos industriais do salitre natural.

Suas propostas estatizantes nada tinham, portanto, de marxistas. Pa-

lacios aceitava a democracia, porém rejeitava o socialismo, para ele o de

Marx. Ambos combatem a desigualdade social, contudo o socialismo

pretenderia o nivelamento e a democracia a seleção competitiva dos me-

lhores, o socialismo querendo evitar a desigualdade, a democracia admi-

nistrá-la evitando a autodestruição da sociedade. A seu ver, a democra-

cia seria evolucionista e o socialismo antievolucionista;4

O intervencionismo capitalista de Estado de Palacios está a serviço

do seu nacionalismo.

O nacionalismo de Palacios é étnico: considera a cultura produzi-

da, não só condicionada, pela raça; ademais subestima a contribuição

46 � Vamireh Chacon

4 � Palacios, op. cit., p. 560.

e o desempenho femininos, chega a desconsiderar a ascensão do femi-

nismo já no seu tempo.

Palacios basea-se em Ludwig Gumplowicz, além de Herbert Spen-

cer. Para Gumplowicz, a “lei da civilização” consistiria na dominação

da raça fraca pela forte: “lei” dogmática (“sem exceção”), com “a solu-

ção completa do enigma do processo natural da história humana”, o

que revela claramente sua direta inspiração darwinista, nisto sem me-

diações de Spencer ou outras. O próprio nome Gumplowicz, de ori-

gem polonesa, denota alguém germanizado em Ludwig, professor em

universidade alemã, na então Breslau, após a Segunda Guerra Mundial

repolonizada sob o nome de Wroclaw. Convém fazer a epistemologia

social, sociologia da sociologia dos seus principais teóricos, mais uma

espécie de feitiço contra o feiticeiro...

A “lei evolucionista” de Gumplowicz tinha um sentido machista:

para ele as raças “fracas” seriam matriarcais, “fortes” as patriarcais,

embora uma dependesse da outra, porém sob a hegemonia masculina.

O que também denota uma tentativa de resposta de Gumplowicz ao

Bachoffen do livro antropológico, de etnográfico a filosófico, O Direi-

to matriarcal (Das Mutterrecht), ainda repercutindo na Alemanha. Na fun-

damentalidade da luta pelo Direito, Palacios prefere, porém, inspi-

rar-se em Jhering.5

Ludwig Gumplowicz insere-se na linhagem evolucionista portanto

não só de Charles Darwin e Herbert Spencer; ela se multiplicou em

torno do impulso da segunda Revolução Industrial, a maior até então,

irradiando-se principalmente da Grã-Bretanha no auge do seu poderio

inclusive militar. Outros Estados europeus preparavam-se para desa-

fiá-la, em breve, na Primeira Guerra Mundial.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 47

5 � Idem, pp. 297, 302, 412 e 413.

Gumplowicz faleceu antes da mudança dos tempos.

Contudo, o nacionalismo de Palacios não era agressivo e sim de-

fensivo. Seu racismo aceitava o índio araucano, miscigenado com o es-

panhol, na linha de Gumplowicz interpretada como uma raça “fraca,

matriarcal”, diante de uma raça “forte, patriarcal”.6 Nicolás Palacios

nisto se aproxima, até algum ponto, do racismo de Oliveira Viana em

Populações meridionais do Brasil, quando ambos atribuem a descendentes

nórdicos germânicos, no Norte da Espanha e Portugal, visigodos, não

aos latinos e árabes, a hegemonia de étnica a cultural. Todavia, Palaci-

os considera positivo o saldo da miscigenação hispano-ameríndia, en-

quanto Oliveira Viana posteriormente chegará à oposta conclusão ne-

gativa quanto à miscigenação brasileira.

O racismo de Palacios era contra os poucos descendentes de ne-

gros e adversário da então imigração italiana ao Chile, fins do século

XIX e começos do XX, ainda não haviam chegado os eslavos, porém

favorável à alemã, apesar de preferí-la em região araucana para misci-

genação com os índios, pois “la raza chilena es mestiza” no sentido hispa-

no-ameríndio.7 Seu desempenho na Guerra do Pacífico, vista por den-

tro pelo médico militar Nicolás Palacios, convencera-o dos seus méri-

tos. Euclides da Cunha chegara a idênticas conclusões na contemporâ-

nea Guerra de Canudos em Os sertões.

Palacios muito se preocupara com a integração do Sul, quase antár-

tico, pela imigração sobretudo da Croácia.

Palacios fora médico militar do Exército chileno na Guerra do Pa-

cífico (1879-1883), por causa da luta pela posse do Norte do Chile

muito rico em minas de salitre, mais as de cobre que vieram a ser des-

cobertas, em territórios de fronteira indefinidas, pouco povoadas e

48 � Vamireh Chacon

6 � Ibidem, pp. 209-211.7 � Ibidem, pp. 707, 708 e 590.

administradas por bolivianos e peruanos com seus respectivos Esta-

dos. O cobre, ainda mais que o salitre, tornar-se-á parte principal das

exportações chilenas, considerando assim a questão como de vida ou

morte nacional.

As duas gerações seguintes à de Nicolás Palacios tinham de pensar

e agir para mais e melhor expandir o povoamento chileno além do en-

tão pequeno núcleo central em torno da capital, Santiago, rumo ao

inóspito Sul antártico, outrora sem grandes oportunidades econômi-

cas, e ao Norte tão rico apesar de entremeado pelo deserto de Ataca-

ma. Para isso era fundamental, até urgente, refundar e ampliar o Esta-

do chileno herdado dos espanhóis, numa reconstrução modernizante

conservadora conforme as possibilidades econômicas, políticas e

culturais.

O primeiro grande projeto de modernização conservadora do

Estado no Chile foi o de várias vezes ministro, durante sete anos, Die-

go Portales, na década de 1830, personagem histórico muito contro-

vertido.8

Ainda estavam em vigência na América Hispânica os códigos cas-

telhanos: as Partidas de Alfonso el Sabio, o Fuero Real e a Nova e No-

víssimas Recompilações, equivalentes no Brasil às Ordenações Afon-

sinas, Manuelinas e Filipinas do Reino de Portugal, estas últimas do

tempo da União Ibérica. Na Europa, Napoleão intentava enquadrar a

Revolução Francesa em cinco códigos, desde o Civil, mais conhecido

e com seu nome, ao Processual Civil, Penal, Processual Penal e Co-

mercial. Na Prússia Frederico o Grande montara precursor edifício,

culminado pelo Landrecht de 1794. O Código Civil austríaco é de

1811 e o espanhol de Comércio data de 1829. O Código Civil do

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 49

8 � Alejandro Guzmán Brito, Portales y el Derecho, Santiago, Editorial UniversitariaMetropolitana de Ciencias de la Educación, pp. 25, 59 e 60.

Chile vem de 1833-1834, confiada sua elaboração ao chileno Maria-

no Engaña e ao venezuelano Andrés Bello então em Santiago. O que

levava ao debate sobre a revisão da Constituição de 1828, resultando

na elaboração de outra em 1833.9

Muito se discute no Chile sobre qual objetivo conservador, moder-nizante ou meramente de poder pessoal, haveria orientado as reformasjurídicas de Portales.

Para alguns, ele era apenas um conservador cético pragmático: des-crente religioso (querendo usar a Igreja domesticada para seus fins),sem patriotismo (suas reformas na Academia Militar visando criaruma oficialidade mais profissional, porém despolitizada), adepto en-fim da oligarquia, à qual desprezava, embora lhe consolidasse o poderpelo reforço dos poderes do morgadio nos códigos, o Senado commandato de nove anos e iniciativa de qualquer reforma constitucionala ser duas vezes aprovada por ele e pela Câmara dos Deputados, o pre-sidente da república eleito indiretamente por eleitores qualificados e oConselho de Estado como juiz nos conflitos entre os Poderes consti-tucionais, Conselho nomeado pelo presidente.

A burguesia recebia algumas compensações contratuais moderni-zantes nos códigos e tratamentos judiciários, apesar do pessoal des-prezo de Portales também por ela.

Seria inútil buscar influências de Montesquieu e outras no pensa-mento e ação políticos jurídicos de Portales. O mais provável está nasua continuação da linha de decepções remontando ao LibertadorBernardo O’ Higgins, que tentou, ao modo de Simón Bolívar, tambémLibertador, uma final ditadura pacificadora das facções buscando evi-tar e até conter guerras civis, mesmo assim incontroláveis. São famosasas increpações de Bolívar, entre as de O’ Higgins a de que “é vão dar

50 � Vamireh Chacon

9 � Idem, pp. 92, 91, 95, 103-105 e 89.

instituições e garantias, porque os facciosos as desprezam e censu-ram”. Concluindo pela adesão ao despotismo esclarecido: “nuestros pu-

eblos no serán felices, sino obligándolos a serlo”.10

O próprio Rousseau terminara por propor a vontade geral sobre a

minoria só se libertando ao também endossá-la e, na prática, os projetos

de Constituição de Rousseau para a Polônia e Córsega são realistas em

suas concessões ao poder central, apenas amenizado por muito relativas

participações populares na elaboração e cumprimento das decisões...

Em Portales, além do seu autoritarismo, só seria possível vislum-

brar algo das suas motivações práticas, muito pouco as teóricas.

Ele pouco se importava com a legitimidade, o principal estaria na

“legalidade, condição da convivência política”, factual porque tanto a

monarquia quanto a democracia eram impossíveis na prática hispa-

no-americana daquele tempo. A experiência de monarquia constitu-

cional, conservadora porém não despótica no Brasil, era-lhe pouco ou

nada conhecida institucionalmente, ele não se interessava pela Améri-

ca Portuguesa então longe, muito além dos Andes e com a Argentina

de permeio.

A república seria o viável para a Hispano-América, em especial ao

Chile a que Portales se referia. Mas qual república?

Portales responde: a república baseada (“con resorte”) na virtude po-

lítica do homem público ético social e não só moralizado individual.

Aí pode estar alguma influência das leis enquanto espírito, não só letra

em Montesquieu, cujo livro Espírito das leis fora traduzido ao espanhol

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 51

10 � Sergio Villalobos Rivera, Portales (Una falsificación histórica), Santiago, EditorialUniversitária, 1989, pp. 114, 103, 110, 109, 41, 40 e 213.O historiador BenjaminVicuña Mackenna é de outra opinião. Para ele, “Si Portales no fue por esto un gran revolucio-nario, fue más todavía, porque fue un gran inovador”. (p. 454). “Portales aparece entonces, desde cual-quier horizonte que se le mire, como el coloso de la historia”. “Él va a hacer la mudanza de la sociedade,después de haber hecho su transtorno...” (p. 453). São dois pontos de vista opostos.

castelhano desde 1821 ou 1822, embora Portales pudesse ler francês.

Pelo seu desprezo à burguesia, e temor à aristocracia e à demagogia, a

seu ver embutidas na oligarquia e democracia, a virtude republicana

seria autoritária meritocrática.11

Evidencia-se o ceticismo pragmático de Portales: na prática ele se

engajou na criação dos códigos e regulamentos administrativos e judi-

ciários, quanto à Constituição por ela se desinteressou e outros dela

vieram a se ocupar. Quanto à indiferença concreta, era resultante da

sua profunda descrença teórica em geral, com se vê em carta sua data-

da de 1832:

“não perderei tempo em observar o projeto de reforma; você

sabe que nenhuma obra desse tipo é absolutamente boa ou

absolutamente má; mas nem a melhor, ou nenhuma, servirá

para nada quando estiver decomposto o principal dispositi-

vo (‘resorte’) da máquina”.12 Isto é, quando falta virtude ética

política e não só moralidade pessoal.

Esse tipo de despotismo esclarecido ia vigorar no Chile mesmo em

meio a percalços, alguns muito grandes, sem propostas de soluções

alternativas, a realidade dificilmente conseguia ser enquadrada insti-

tucionalmente. Em 1839 o Poder Executivo renunciou aos seus po-

deres extraordinários, devolvendo-os ao Legislativo e Judiciário, e ex-

tinguiu os conselhos de guerra então permanentes, mas em 1859 ain-

da houve violento choque entre autoritários e liberais, com a vitória

destes últimos. Todos os presidentes e ministros daí em diante foram

menos ou mais liberais, com exceção do presidente Manuel Montt e

52 � Vamireh Chacon

11 � Guzmán, op. cit., pp. 31, 54, 61, 71 e 67.12 � Villalobos, op. cit., pp. 107 e 119.

ministro Antonio Varas, impondo seus projetos inclusive o de coloni-

zação alemã do Sul pré-antártico, com dureza de métodos evocativos

de Diego Portales. Enquanto isso ia se ampliando e fortalecendo-se a

burguesia de Santiago e Valparaíso, para quem a liberdade comercial

tinha de ser acompanhada pela liberdade política. Mesmo durante a

Guerra do Pacífico (1879-1883) – entre Chile, Bolívia e Peru – as

instituições democráticas chilenas funcionaram normalmente, com

direitos individuais e liberdades públicas respeitados pelos constitu-

cionais Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.13

Este liberalismo entrou em choque frontal com o nacionalismo

econômico anticonservador do presidente José Manuel Balmaceda,

suicidando-se em 1891 após renúncia e asilo na Embaixada da Argen-

tina, apesar das promessas que seria respeitado. O que torna o presi-

dente Getúlio Vargas do Brasil em 1954 o primeiro no mundo a optar

por aquele caminho, ainda no exercício da presidência, à qual também

o compeliam a renunciar, o que ele não aceitou ao preferir o suicídio.

Balmaceda entrara em choque frontal com as mineradoras estran-

geiras do salitre, então fundamental para a sobrevivência chilena. Os

conservadores se opuseram a ele e os liberais de início o apoiaram, até

que o presidente recorresse a um refortalecimento dos poderes do

Estado considerado excessivo e a maioria congressual se lhe opusesse.

Diante da violenta contrarreação, Balmaceda foi obrigado à renúncia e

ao trágico desfecho.14 A magnitude do conflito repercutiu também no

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 53

13 � Idem, pp. 216, 224, 218, 221, 222, 225 e 226.14 � Vide Villalobos e outros autores, La época de Balmaceda, Santiago, Centro deInvestigaciones Diego Barros Arana-Dirección de Bibliotecas, Archivos y Museos,1992 e “El poder contra el poder. Nacionalismo, progreso y libertad en la presidenciaBalmaceda” de María Elena González Deluca in Tres momentos del nacionalismo en Chile¸também sobre a efêmera Junta socialista de 1932 e a breve presidência Salvador Allen-de de 1970 a 1973.

Brasil no livro Balmaceda (1895) de Joaquim Nabuco, logo após a Re-

volta Armada no Rio de Janeiro e Insurreição Federalista gaúcha com

a reação da presidência Floriano Peixoto tentando pela força consoli-

dar a república.

Diante de todo esse quadro, com seus antecedentes antes descritos,

quais as interpretações autocríticas nacionais do pensamento político

no Chile?

Elas partiram inicialmente sobretudo do realismo conservador

através de mais de uma geração. Nicolás Palacios (Raza chilena, 1904)

teve sucessores que até o ignoraram, ao pretenderem novas visões me-

todológicas, cruzando-se em pontos ora convergentes ora divergentes.

Os historiadores chilenos das ideias políticas costumam dividi-las

por cronologia de autor ou obra, afinal de contas historiografar exige

periodização.

Por data de publicação, Francisco Antonio Encina viria em primei-

ro lugar na genealogia intelectual conservadora realista com seu livro

Nossa inferioridade econômica, 1911, onde parte também do pressuposto

da identificação de raça e cultura, comum na sua época.15

A herança cultural espanhola, Encina considera-a étnica, era a do

grão-senhor heroico no sentido quixotesco, ostentatório, pródigo,

porque ocioso.16 Cabe aqui lhe acrescentar a origem deste comporta-

mento no Ocidente – segundo Aristóteles, ao escravo cabiam os tra-

balhos braçais, aos seus senhores o intelectual – comportamento assi-

milado pelas classes socioeconômicas inferiores, porque elas tendem

de início a reproduzir os das superiores, já o jovem Marx aponta-o em

A ideologia alemã e Gramsci nisto insiste com mais frequência.

54 � Vamireh Chacon

15 � Nuestra inferioridad econômica, Santiago, Editorial Universitaria, 7.a ed., 1990, pp.35, 34 e 33.16 � Idem, pp. 88-93.

Aquele tipo de cultura no Chile havia encontrado solo geológico e

clima adversos, na maior parte do território, à agricultura, embora

com importantes minérios (principalmente cobre e salitre) dependen-

do de ferrovias de transporte e usinas de transformação, isto é, indus-

trialização ensejando outras, derivadas; por consequência, todo um

novo direcionamento industrial em geral.

Elas são impossíveis sem mudança de mentalidade das elites, cau-

sadoras de debilidade da raça (cultura) chilena, assim incapaz de re-

correr a medidas protecionistas, aduaneiras e creditícias, para incenti-

vo da industrialização, como as praticadas na gênese dos Estados Uni-

dos por Alexander Hamilton e propostas no início da unificação

prussiana da Alemanha por Friedrich List.

Daí a fundamentalidade de uma reforma educacional, não apenas

setorial, buscando mudar toda aquela mentalidade.17

A reforma, apresentada por Encina, era pragmática radical. Concen-

trava-se no ensino secundário, como se vê em A educação econômica e o liceu,

complemento-solução a Nossa inferioridade econômica. O chamado curso de

humanidades (ginásio ou colégio) deveria ser dividido em dois ciclos:

nos primeiros quatro anos, dignificação do trabalho manual, indepen-

dência econômica como estímulo individual, leituras de biografias dos

grandes pioneiros e visitas a empresas fabris e comerciais e granjas agrí-

colas, ao lado do ensino clássico de humanidades, como preparação aos

diversos ramos universitários e técnicos superiores.

Este projeto de lei, preparado por Francisco Encina e companhei-

ros, aprovado pelo Congresso Nacional do Chile, Senado e Câmara

dos Deputados, não chegou a ser aplicado por “encarniçada oposição,

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 55

17 � Ibidem, pp. 53, 57, 93, 94, 55, 54, 88-92, 242 e 243.A obra de síntese teórico-metodológica de Encina é La literatura histórica chilena y el concep-to de la historia (1935).

cujo centro foi a universidade”, dominada por liberais tradicionais e

primeiros socialistas chilenos então em estranha aliança em favor da

oligarquia. O que demonstra o peso inercial da cultura.

Este bloqueio confirmava as preferências de Encina pelos méto-

dos autoritários de Diego Portales, levando-o a biografá-lo em

1934, quando insistia na sua eminente atualidade, cuja compreen-

são só cabia “a um curto número de [espíritos] eleitos”... Os inte-

lectuais da época de Encina, quando liberais e socialistas, repeli-

am-no e aos seus congêneres adeptos de Edmund Burke, Joseph de

Maistre, Louis de Bonald, Donoso Cortés e Vásquez de Mella.

Tão influentes na contrapartida europeia também da geração chi-

lena de Francisco Antonio Encina: Charles Maurras, Oswald

Spengler, Carl Schmitt, Giovanni Gentile, Ramiro de Maeztu e

José Antonio Primo de Rivera.18

De dentro do próprio cerne da oligarquia do Chile ermergiram de

início seus maiores defensores, em seguida alguns dos melhores críticos.

A família Edwards é no Chile uma legenda.

As grandes fortunas aí foram passando de mãos, ou sendo criadas

por imigrantes britânicos, mais do que outros: os Edwards se apa-

rentando por casamento com os Ross, ao lado dos franceses, com es-

pecial destaque os Subercaseaux, além dos espanhóis, os Eyzaguirre,

origem de gerações também de destacados intelectuais autocríticos

deste sistema. Vários deles passando parte do ano em suas casas em

Paris, um dos filhos da família Errázuriz, pintor, recebendo Apollina-

ire, Blaise Cendrars, Fernand Léger, Juan Gris, John Sargent e Stra-

56 � Vamireh Chacon

18 � Vide Carlos Ruiz, “Conservantismo y nacionalismo en el pensamiento deFrancisco Antonio Encina” in El pensamiento conservador en Chile (Seis ensayos), Santiago,Editorial Universitaria, 1992, pp. 51, 52, 59-62 e 49. Trata-se de antologia coorde-nada por Renato Cristi e Carlos Ruiz.

visnky. A esposa pintada em quadro por Picasso.19 Eyzaguirre e Errá-

zuriz de origem basca.

Vários Edwards vêm sendo escritores e dos bons.

Agustín Edwards é autor de Minha terra, com o subtítulo Panorama,

reminiscências, escritores e folclore, representando a Sociedade Chilena de

História e Geografia no Sexto Congresso Internacional de Ciências

Históricas em Oslo, 1928: visões impressionistas das regiões chilenas,

em sua memória de histórica à religiosa, literária, sociológica, jornalís-

tica e folclórica.

Joaquín Edwards Bello escreveu contos, novelas e artigos ensaísti-

cos. Seu livro Mitópolis reuniu estes mais representativos de 1927 a

1960: críticas irônicas ao imaginário chileno, no que lhe parecia des-

frutável.

De Alberto Edwards vem A fronda aristocrática em Chile (1928), en-

tre as mais importantes autocríticas políticas da elite local, em suas

até rebeliões, mas para manter-se no poder, ao preço de renovadoras

concessões.

Os analistas descrevem o itinerário circular de Alberto Edwards,

em qualitativa espiral ascendente, de liberal conservador a conserva-

dor revolucionário cansado das mesquinhezas da democracia repre-

sentativa oligárquica tradicionalista, desconhecedora do seu próprio

esgotamento em todo o Ocidente (aqui se nota a influência de

Oswald Spengler). Levando-o a optar vitalmente (afim do decisionis-

mo de Carl Schmitt) pelo golpe de Estado do coronel, depois general

Ibáñez, menos contra o presidente Alessandri que aos partidos políti-

cos incapazes de realizarem um programa reformista, mesmo modera-

do, porém com apoio popular, na linha antes empreendida com êxito

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 57

19 � Villalobos, op. cit., pp. 54, 44, 25, 128 e 129.

autoritário por Portales. Seu confesso admirador, Ibáñez, fará Alberto

Edwards ministro da Educação.20

Não faltou quem erradamente atribuísse a Alberto Edwards sim-

patias por Mussolini e José Antonio Primo de Rivera, quando as fon-

tes dele eram muito mais complexas e sofisticadas: já antes de Spen-

gler, os liberais conservadores democráticos britânicos Burke, Carlyle

e Bagehot (o historiador Lord Macaulay dizia no Parlamento em

Londres: “For myself, Sir, I hope that I am at once a Liberal and a Conservative

politician”).21 Alberto Edwards podia fazer suas estas palavras, mais um

certo ceticismo spengleriano quanto à aplicabilidade delas.

Repercutiram intensamente seus artigos, publicados em 1927 no

jornal El Mercurio de Santiago, ainda mais nos capítulos de A fronda aris-

tocrática em Chile no ano seguinte. Nela o autor enfrenta, à sua maneira, a

história política chilena, no que tem de mais importante, a seu ver co-

meçando em Portales e concluindo num apelo à sua permanente ins-

piração: “Os Portales não nascem, tampouco, todos os dias” na pecu-

liaridade do cesarismo no Chile, com seus monarcas republicanos

consagrados pelo povo, mesmo intimidado, à maneira de Roma, po-

rém conseguindo afugentar os golpes de Estado pretorianos contra

esse presidencialismo, forte diante da própria fronda aristocrática

“quase constantemente pacífica de nossa oligarquia burguesa e feu-

dal” de 1849 a 1891, desde as insurreições contra os sucessores de

Portales ao suicídio de Balmaceda induzido pelos adversários.

Necessidade de mudança, força maior da resistência, medo diante

da possibilidade de ruptura, resultando em concessões rumo às se-

58 � Vamireh Chacon

20 � Cristi, “El pensamiento conservador de Alberto Edwards del conservantismoliberal al conservantismo revolucionário” in El pensamiento conservador en Chile (Seis ensa-yos), op. cit., pp. 41, 35, 38 e 35.21 � Idem, pp. 33, 44 e 40.

guintes análogas etapas, eis a dialética de Alberto Edwards, para a qual

ele só vê saída na revolução conservadora mais ao negociado modo

britânico, mesmo sob pressão, que à maneira alemã perdendo o con-

trole dos acontecimentos e tendo de recorrer a maiores violências. Bal-

maceda vira-se tragicamente encurralado, porque não tinha a quem re-

correr. O combate era entre a antiga aristocracia conservadora e a mo-

narquia republicana renovadora, Portales já o percebera no quadro

herdado da época colonial espanhola, por ele próprio insuficiente-

mente conscientizado, como se viu na sua queda e fuzilamento pelos

adversários.22

Alberto Edwards conclui em seu tempo a crescente insatisfação da

ascendente classe média, ao ponto de insurreição, no esforço para resol-

ver os dilemas e contradições sociais em vão na presidência Alessandri,

até irromper o golpe de Estado do coronel, depois general, Carlos Ibá-

ñez del Campo. Alberto Edwards deseja-o o primeiro ditador de “espa-

da e gorro frígio”, atendendo ao “homem da rua”, “à massa trabalhado-

ra e independente”, “este novo movimento de opinião”.23

O Chile ia muito sofrer, em fins do século XX, no conflito entre

Salvador Allende, tribuno da plebe, e Augusto Pinochet general preto-

riano. Até que amainasse a fronda de aristocrática e de classe média a

rebelião popular, diante de outra ditadura invocando o autoritarismo

de Portales, tudo se resolvendo numa redemocratização mais ampla

porque mais inclusiva, ao término daquele século e começos de outro.

O Estado unitário chileno, surgido e expandido da capital Santia-

go, desde o início pressupunha o presidencialismo centralista, tenden-

do ao autoritarismo à sua maneira específica. Com herança política

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 59

22 � La fronda aristocrática en Chile, Santiago, Editorial Universitaria, 13.a ed., 1992,pp. 32, 282, 280, 281 e 1962-173.23 � Idem, do capítulo XXXIV ao XLI e pp. 278 e 260.

indo até ao extremo de um presidente, Manuel Montt (1851-1861),

ter dois filhos entre seus sucessores: Jorge Montt24 e Pedro Montt.25

Outra etapa o pensamento conservador realista chileno percorreu

pela mais extensa obra de Jaime Eyzaguirre.

Eyzaguirre era de família tradicional e permaneceu católico conserva-

dor,26 ao contrário, por exemplo, do contemporâneo Alceu Amoroso

Lima no Brasil, que passou desta fase inicial, na sua conversão em grande

parte influenciada pelo radical ortodoxo Jackson de Figueiredo, a posi-

ções liberais religiosas na linha de Jacques Maritain a Teilhard de Char-

din. Eyzaguirre exerceu liderança intelectual carismática, fez escola, criou

discípulos fiéis em mais de uma geração, ao proclamar e insistir na volta às

raízes hispânicas, principais formadoras também do Chile.

Contudo, para ele a tradição era viva, existencial e não nostálgica pas-

sadista, era uma problemática em vez de simplista solução. Se não fosse

sua ortodoxia, lembraria ainda mais o Unamuno que também, e muito,

trazia dentro de si, embora Eyzaguirre tendesse politicamente na direção

do Maeztu ardente defensor da hispanidade: Maeztu basco, Eyzaguirre

chileno, nenhum dos dois castelhano, embora ambos hispanizantes.27 Daí

seu conservadorismo, porém angustiado, nada triunfalista e sim com a

sensibilidade social das encíclicas de Leão XIII e Pio XI.28

60 � Vamireh Chacon

24 � “Jorge Montt”, Enciclopédia de biografias ilustradas por Julio Mattés Cortés e LucíaCorti Cortés, Barcelona, Bibliográfica Internacional, 2000, p. 624.25 � “Pedro Montt”, Diccionario histórico y geográfico de Chile por Fernando Castillo eLía Cortés-Jord Fuentes, Santiago, Zig-Zag, 2.a ed., 1998, p. 321.26 � Vide Walter Hanisch Espíndola SJ, “Jaime Eyzaguirre (1908-1968). A los 17años de su morte” in Jaime Eyzaguirre (Historia y pensamiento), Santiago, Editorial Univer-sitaria-Universidad Alonso de Ovalle, 1995, p. 23.27 � Ricardo Krebs Wilckens, “El pensamiento histórico de Jaime Eyzaguirre” inidem, pp. 68, 61, 66 e 67.28 � “Jaime Eyzaguirre, visión política y coporativismo” in Jaime Eyzaguirre (Historiay pensamiento), op. cit. pp. 179 e 178.

Teve predecessores, entre eles se destacando Alberto Edwards comA fronda aristocrática em Chile de interpretação hispanizante, FranciscoEncina com menor ênfase. Nisto os chilenos não estavam sós: o espa-nhol Julián Juderías, os venezuelanos Rufino Blanco Fombona e Lau-reano Valenilla Lanz, os mexicanos Toribio Esquivel Obregón e Car-los Pereyra, iam em análogas direções, apesar de todos seus patriotis-mos locais. Pouco depois, ainda na mesma época, o mexicano JoséVasconcelos, o peruano José de la Riva Agüero, o argentino RicardoLevene e, nisto, principalmente Pedro Henríquez Ureña da RepúblicaDominicana. Já companheiros de geração: o venezuelano Picón Salas,o peruano Jorge Basadre, o chileno Mario Góngora e outros.29 Menosou mais hispanizantes.

Todos deixaram rastros polêmicos, revivificantes do debate his-tórico. Antes dos cursos universitários de história, a maioria deles,ao modo de Basadre e Eyzaguirre, provinha de Faculdades de Direi-to e Ciências Sociais, também de Ciências Políticas, daí suas visõestão institucionais. Eyzaguirre e Basadre ademais haviam passado porescolas secundárias alemãs de antigamente no Chile e Peru, que lhesderam muita autodisciplina pessoal e intelectual, sem diminuíremseu ímpeto de ânimo.30

Eyzaguirre, independentemente da sua posição ideológica, do pon-

to de vista metodológico tem pontos em comum com outros, antes e

depois, ao distinguir que a colonização hispânica, poderia ter dito ibé-

rica se incluísse Portugal no Brasil, era obra, no final das contas, mais

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 61

29 � Bernardino Bravo Lira, “Jaime Eyzaguirre, historiografia chilena y conciencianacional en el siglo XX in Jaime Eyzaguirre (Historia y pensamiento), op. cit., pp. 119-121.101. 102. 124. 99. 100. 105 e 106 Vide tb. op. cit. “El pensamiento histórico de JaimeEyzaguirre” in idem, p. 58.30 � Óscar Dávila Campusano, “Eyzaguirre, la Sociedad Chilena de Historia y Geo-grafia y la Academia Chilena de la Historia” in ibidem, pp. 25 e 26.

do povo que do Estado espanhol ou português pelos imigrantes de

muitos povos do mundo rumo às Américas. E que o próprio Estado,

herdado da Espanha ou Portugal, terminou se transformando local-

mente após as Independências: “Assim como Valdívia foi o constru-

tor da nacionalidade, Portales o foi do Estado”.

Portanto, não se trata de defender Espanha (ou Portugal) e sim

analisar as próprias raízes das nacionalidades neo-hispânicas (neo-

ibéricas).

Os diversos (vice) reinos espanhóis (México, Nova Granada-Co-

lômbia, Peru e do Prata), com suas divisões administrativas (Chile,

Paraguai, Uruguai e as da América Central e Caribe), subdividi-

ram-se não só por exigências internas, também por externas in-

fluências intelectuais (da Revolução Política Francesa com seus

adeptos). Nos Estados Unidos o processo se desenrolou em senti-

do inverso, o da convergência pragmática das doze colônias britâ-

nicas em federação.

Surgiram então dois tipos básicos de liderança: na Hispa-

no-América o fidalgo (“hidalgo”) e na Anglo-América o cavalheiro

(“gentleman”); personificados ao máximo por Bolívar, quixotesco

descendente de aristocráticas famílias basca e castelhana, e Was-

hington, prático “gentleman farmer” sempre acrescentando “Sq”.

(“Squire”) ao seu nome, algo equivalente mais a “Sir” que “Lord”.

São comentários aqui a Eyzaguirre. Também atento às contribui-

ções de Max Weber e R. H. Tawney à contraposição entre cultura

protestante e cultura católica.31

Politicamente o catolicismo de Eyzaguirre, na sua parte ideológica,

optava sobretudo pelas encíclicas corporativas de Leão XIII, em espe-

62 � Vamireh Chacon

31 � Bernardino Bravo Lira, op. cit., pp. 116-118, 108, 109, 112-114, 200 e 201.

cial a Rerum Novarum, e as de Pio XI contra o comunismo então mar-

xista-leninista-stalinista (Divini Redemptoris), o fascismo (Non abbiamo bi-

sogno) e o nazismo (Mit brennender Sorge). Nisto o tradicionalismo católi-

co de Eyzaguirre não tinha a radicalidade de Joseph de Maistre, De

Bonald e principalmente do seu afim hispânico Donoso Cortés, ao

preferir a linha mais social conservadora de Ketteler e La Tour du

Pin.32 Idêntica inflexão ocorreu no começo da ação prática política de

massas do Partido Democrata Cristão do Chile, levando-o mais de

uma vez à presidência da república.33

As aplicações do pensamento de Jaime Eyzaguirre estão princi-

palmente na sua extensa e intensa historiografia, desde Breve história

das fronteiras de Chile e Fisionomia histórica de Chile, aos mais especializa-

dos Ideário e rota da emancipação chilena e História das instituições políticas de

Chile, com outros textos compondo ampla história do seu país, sem

triunfalismo hispânico nem satelitismo à Espanha e sim com tanta

intensidade, em toda extensão, que sempre permaneceu fiel ao que

denominava, em opúsculo de 1944, depois na forma de livro

(1947), Hispano-America da dor (Hispanoamérica del dolor) quase ao modo

do “dói-me a Espanha”, “me duele España” de Unamuno, com o qual

tinha também tantas afinidades.

Mario Góngora completa a série geracional desse tipo de ensaís-

mo, sem aqui se pretender esgotá-la, da historiologia à quase histo-

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 63

32 � Vide de Carlos Ruiz todo o capítulo “Corporativismo e hispanismo en laobra de Eyzaguirre” com o Apêndice “Respuesta al profesor Gonzalo Vidal” in Elpensamiento conservador en Chile, antologia organizada por Renato Cristi e CarlosRuiz, op. cit.33 � Vide George W. Grayson Jr. do William and Mary College dos Estados Uni-dos, El Partido Demócrata Cristiano Chileno (do inglês The Chilean Christian Democratic Party:Genesis and Development, 1968), Buenos Aires-Santiago, Editorial Francisco Aguirre,1968.

riosofia, além da inicial historiografia conservadora realista chile-

na. Ele é autor de outra extensa e intensa obra, continuando a tradi-

ção polêmica.

Apresenta-se diferente o itinerário pessoal de Mario Góngora, nas

especificidades de outros tempos.

Ainda estudante de Direito, lê Spengler e é um dos fundadores da

Juventude do Partido Conservador. Num discurso em 1937, numa

convenção do Partido, afasta-se do corporativismo cristão das encícli-

cas pontificas, ao optar por nacionalismo estatista na linha de Porta-

les. Vê-se excluído do Partido Conservador.

Depois de percorrer a Espanha em plena guerra civil, 1938, após

vir da França, torna-se membro do Partido Comunista do Chile e

um dos editores da sua revista doutrinária Princípios. Dele se afasta ao

se confirmar spengleriano até o fim da vida, as crises chilenas e his-

pano-americanas se entenderiam no contexto das crises do Ociden-

te. Acrescenta Jakob Burckhardt a Oswald Spengler entre suas prefe-

rências básicas.

O livro-síntese interpretativo de Mario Góngora é Ensaio histórico so-

bre a noção de Estado em Chile nos séculos XIX e XX (1981).

A fronda aristocrática em Chile de Alberto Edwards vê as reformas de

Portales como transferências do poder da oligarquia fundiária ao po-

der centralizado, em meio às contradições das mútuas discordâncias e

crises anteriores e posteriores.

São modernizações conservadoras, impulsionadas por decisionis-

mos interpretados no sentido de Carl Schmitt.34

Para Mario Góngora, as contradições e crises chilenas foram se tor-

nando incontroláveis, após o esgotamento do “nacionalismo popu-

64 � Vamireh Chacon

34 � Ensayo histórico sobre la noción de Estado en Chile en los siglos XIX y XX, Santiago, Edi-torial Univesitaria, 5.a ed., pp. 143, 145 e 144.

lar” nos fins do século XIX, em seguida às vitórias militares do Chile

na Guerra do Pacífico contra a Bolívia e o Peru. Nos meados do sécu-

lo XX, a presidência Alessandri significa o término do “liberalismo

aristocrático” e a ditadura do coronel, depois general Ibáñez, no esfor-

ço de ainda mais impulsionar a construção de grandes obras públicas e

expansão do sistema educacional. Alberto Edwards foi um dos seus

ministros.

Depois do retorno do liberalismo clássico, tradicionalizado chi-

lenamente, e as tentativas de reformismo social pela democracia cris-

tã, veio a presidência Allende que perdeu o controle dos aconteci-

mentos. Daí outra ditadura, a do general Pinochet, de início apoiada

por Mario Góngora, por ele repelida assim que ela infletiu no rumo

neoliberal. A seu ver era perigoso desvio contra a chilenidade econô-

mica, política e cultural, cada vez mais ameaçada de fora para dentro

por potências estrangeiras, com seus interesses e ideias tão alieníge-

nas como os dos comunistas de inspiração soviética na Guerra Fria

de então. Tanto uns quanto outros, dentro da básica visão de Porta-

les: a substituição orgânica do Rei de Espanha pelo Estado chileno e

não por observâncias tão estrangeirizantes desde os transplantes do

liberalismo clássico europeu, fracassados por seu desenraizamento

antinacional.35

Os críticos do realismo conservador chileno insistem no seu déficit

democrático, o povo ausente ao modo do também acontecido no libera-

lismo. Outros apontam as afinidades do realismo conservador chileno

com os brasileiros Manoel Bomfim, Alberto Torres36 e Olivera Viana,37

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 65

35 � Idem, pp. 145, 146, 144, 147, 140 e 143.36 � Vide Bernardino Bravo Lira, op., cit., pp. 102 e 99.37 � Vide o Prólogo de Mario Góngora, “Alberto Edwards” a La fronda aristocrática,op., cit., p. 16.

até com o português Antônio Sardinha.38 A linha orgânica vem procuran-

do moderar-se ao modernizar-se.39

A ênfase do ensaísmo chileno transita, na virada do século XX ao

XXI, do político-cultural ao cultural-político em estudos especiais,40 ou

ainda generalistas; entre estes Hernán Godoy com Fisionomia cultural de Chile

(1986), antes organizando a ontologia O caráter chileno (1976), embora

Octavio Paz advirta que a identidade cultural nacional é um processo e

não uma essência, valendo mais pelo que oculta, que pelo revelado.

Noutra fase do século XX ao XXI, Sergio Villalobos dedica-se

também ao ensaísmo com hábil síntese em Para uma meditação da conquis-

ta (1977) e Origem e ascenso da burguesia chilena (1987), indo até à História

do povo chileno, num conjunto mais sociológico que ideológico.

66 � Vamireh Chacon

38 � Vide Bernardino Lira, op., cit., p. 100.A influência portuguesa ideológica no Chile incluía Salazar, como se vê em GonzaloLarios Mengotti, “Jaime Eyzaguirre, visión política y corporativismo” in Jaime Eyza-guirre (Historia y pensamiento), op., cit., p. 180 e Carlos Ruiz, “Conservantismo y naciona-lismo en el pensamiento de Francisco Antonio Encina” no Apêndice “Respuesta alprofesor Gonzalo Vidal”, op., cit., p. 100.39 � Eugenio Tironi está entre os representativos do neoconservadorismo, como sevê claramente desde o título do seu livro El sueño chileno (Comunidad, família y nación en el Bi-centenario), Santiago, Aguilar Chilena de Ediciones, 2005, à sua própria auto definiçãocomo “progresismo conservador” buscando que a união de “las ideas clásicas de libertad y igualdad,promueva el reforzamiento de aquellos nucleos comunitarios capaces de promover el calor humano que los chi-lenos buscan con cada vez menos timidez” (pp. 26 e 27). Tironi parte da constatação da separa-ção entre comunidade e sociedade, já percebida por Tönnies (pp. 74, 46 e 47), superá-vel por novas buscas de coesão social (Durkheim, pp. 45 e 46), diante da cada vez maiorinsegurança da modernidade (Zygmunt Bauman, pp. 47 e 48). A solução seria a comu-nidade-empresa (p. 238), com responsabilidade corporativa ou empresarial (p. 232),sob liderança comunitária (pp. 280-286), com os enfoques pró-família (pp. 255-261),patriotismo (comunidade de memória pp. 301 e 302), para superação do conflito entreidentidade europeia tradicional e identidade estadunidense modernizadora (p. 303).40 � Vide por exemplo Identidad chilena de Jorge Larraín, Santiago, LOM Ediciones,2001.

O ápice do ensaísmo culturalista chileno está em Chile ou uma louca

geografia (1940), irônico título de sério livro crítico e autocrítico de

Benjamin Subercaseaux, alcançando alto nível tanto analítico quanto

de expressão estética literária.

Seu ponto de partida é a geografia humana, então numa nova fase,

mas o livro vem com prefácio da poetisa Gabriela Mistral em esplên-

dida convergência científica e artística. Ela lhe agradece a divulgação

da origem indígena aimará do nome “Chilli”:41 Terra do Fim do

Mundo para o Império inca, com fronteira sul às margens do rio Ma-

ule, ao norte dos indomáveis mapuches,42 ainda hoje resistentes nas

reclusões que lhes foram impostas pelos conquistadores e colonizado-

res de espanhóis a muitos outros imigrantes europeus. Já os antigos

romanos denominavam Finisterra um cabo no extremo oeste da Galí-

cia, antes na Bretanha depois francesa, apesar da ponta mais ocidental

da Europa ser o cabo da Roca na outrora Lusitânia, hoje Portugal. O

Fim do Mundo chileno tem o deserto de Atacama ao norte e a Antár-

tica ao sul diante do oceano.

Subercaseaux é mais contra que pró-herança imperial espanhola

no Chile, cujas instituições autoritárias permaneceram marcando a

herança cultural. Revoltar-se contra ela tem sido “o caos e a medi-

ocridade”. Por mais que Subercaseaux insistisse menos em crítica

que superação pela educação, foi processado ao denunciar como

falsa a neutralidade chilena na Segunda Guerra Mundial, na reali-

dade pró-Eixo nazifascista, posteriormente absolvido por “atenta-

do contra a segurança do Estado”. Subercaseaux via com modera-

do otimismo as diversificantes imigrações alemã e iugoslava (croa-

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 67

41 � Benjamim Subercaseaux. Chile o una loca geografia, Santiago, Editorial Universi-taria, 11.a ed., 1973, pp. 18-21 e 14.42 � Idem, pp. 41, 44, 46 e 38.

ta), tanto quanto as riquezas do salitre, cobre e petróleo a serem

melhor exploradas.43

Tudo isso, em Chile ou uma louca geografia, envolto num itinerário oní-

rico percorrendo suas regiões: País das Manhãs Tranquilas das praias

ao norte, País da Senda Interrompida pelo deserto, País da Muralha

Nevada dos Andes, País da Terra Inquieta pelos terremotos, País dos

Espelhos Azuis dos Lagos Andinos e País da Noite Crepuscular na

Antártica...

68 � Vamireh Chacon

43 � Ibidem, pp. 45, 47, 148, 149, 187, 96, 150, 192, 205, 206, 250, 251, 75 e 251.

Arciniegas, Uslar Pietri eOrtiz: dos Andes ao Caribe

ONovo Mundo nasceu no Caribe, o hispânico subiu os Andes e o

português se estendeu pelo Atlântico. Na América do Sul só a Colômbia

está nos dois lados oceânicos, o Panamá dela se desprendeu, mas em co-

meços do século XX e por consequência da construção do canal Atlânti-

co-Pacífico. As pequenas distâncias na América Central e o poder do Mé-

xico desde os astecas permitiram-lhes presença nestes oceanos.

Foi o colombiano Germán Arciniegas quem escreveu o ensaio his-

tórico-sociológico, de sensibilidade literária, Biografia do Caribe, 1964.

Dividida em séculos de vida própria, com vilões famosos ou anôni-

mos, não apenas heróis, o autor explica-a no “Prefácio”.

“No princípio foi o Mediterrâneo”, “do mar greco-latino ao mar

dos Caribes”, “passo a passo”: “Atenas, Cartago, Roma, Gênova,

Marselha, Barcelona, Sevilha, Tunis, Veneza...”1

Bloqueada a Europa a Leste pelas estepes de onde haviam descido

tantas invasões, ditas bárbaras desde os romanos, e pelo Império Oto-

mano no Oriente Próximo, a Espanha e Portugal adiantaram-se à

1 � Germán Arciniegas, Biografia de Caribe, Buenos Aires, Editorial Sudamericana,1964, pp. 17, 13 e 12.

França na arremetida a Oeste, bloqueado também ao Sul pelos mou-

ros e bérberes do Marrocos, como se viu no fracasso de Dom Sebas-

tião na Batalha de Alcácer-Quibir em 1578.O século XVI presencia o irrompimento do ouro das Améri-

cas na Europa; é “o século da violência, do fogo, da lança, da paixão...”No Caribe instala-se longamente a guerra entre Inglaterra e Espanha,por motivos ideológicos religiosos e cobiças materiais. A Espanhaqueria fazer do Caribe seu segundo Mare Nostrum, após o Mediterrâ-neo. Caribe é sinônimo de índio bravo e bravio. Lá chegou CristóvãoColombo, para Arciniegas “o desventurado” por sua dúvida inicial,glória maior e miséria final. A ilha Hispaniola, por ele descoberta,logo abriga Santo Domingo, “o mundo novo que nasce”, a primeira ejá rica cidade das Américas de início imaginada na Índia.2

No Caribe não cabiam tantas desmedidas ambições dos aventurei-ros projetados em Conquistadores dos impérios, asteca e inca, maio-res que os da Antiguidade europeia de Alexandre ou César, tambémcom altas civilizações os das Américas.

Vasco Núñez de Balboa verifica a estreiteza do istmo do Panamá eproximidade de outro oceano, o Pacífico, confirmando seus guias ín-dios. Pelo México de Hernán Cortés os espanhóis também chegam aomesmo objetivo. Ao Sul desce Francisco Pizarro ao Peru, Diego deAlmagro e Pedro de Valdívia ao atual Chile no encalço dos índios ara-ucanos. Todos eram plebeus, Pizarro criador de porcos, a maioria de-les oriunda da Extremadura, a mais pobre das Espanhas. Todos têmmorte violenta, destino autodeterminado pela ambição sem limites,aos índios já o próprio Colombo dissera que os descobridores tinhamdoença só aliviável por tratamento com ouro... Os que conseguem evi-tar ser assassinados, morrem no ostracismo pela ingratidão dos reis ou

70 � Vamireh Chacon

2 � Idem, pp. 13, 12, 17, 24, 32, 55 e 63.

traição dos amigos, até por ambos motivos. Não havia democracia en-tre os próprios Conquistadores...

Balboa – ao ver o Oceano Pacífico aos seus pés, sonho inalcançadopor Colombo que imaginava indianos os ameríndios – Balboa imagi-na-se tomando posse de todo aquele mar imenso até à Ásia.3 Delíriosacumulavam-se sobre delírios, logo em seguida vem o da Fonte daEterna Juventude no Eldorado onde tudo, portanto, só podia serouro... Outros aventureiros se somam aos espanhóis, (Sérgio Buarquede Holanda, lhes acrescenta os portugueses nestas buscas do impossí-vel).4 Vêm os alemães Hans Staden ao Brasil e Ulrich Schmiedel aoRio da Prata, sem direito a cartas patentes pelas Coroas de Portugal eEspanha. Além dos genocídios pelos descobridores ibéricos contra osíndios, o rosto do Caribe torna-se ainda mais trágico por multiplica-ção de corsários e piratas.5

Mario Benedetti define o Caribe como “essa grande piscina onde

se lambusaram todos os imperialismos” “esa gran piscina donde se zambul-

leron todos los imperialismos”.6 Entre eles se destacam “a Rainha da Ingla-

terra e seus quarenta ladrões”, com especial destaque para Francis

Drake e William Hawkins de famílias de fora-da-lei. Também Wal-

ter Raleigh da Inglaterra à Virgínia e da Virgínia à Inglaterra caindo

em desgraças piores que as de Colombo.7

O século XVI acrescenta a prata ao cortejo de riquezas e misérias

de ouro, prata dos Andes transitando pelo Caribe onde estão de tocaia

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 71

3 � Ibidem, pp. 104, 81-89 e 93.4 � Vide de Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso (Motivos edênicos no descobrimentoe colonização do Brasil), 1959.5 � Biografia de Caribe, op. cit., pp. 116, 132 e 144.6 � “Identidad y cultura” (outubro de 1992) in La Comunidad Iberoamericana de Nacionesen la Casa de América (El debate sobre las Cumbres), Madrid, Casa de América, 1997, p. 59.7 � Biografia do Caribe, op. cit., pp. 144, 152, e 199-212.

os bucaneiros e flibusteiros, mais ingleses que franceses e holandeses.

Nas palavras de Arciniegas, a “França está na ante-sala da grandeza”

política e os holandeses em seu balcão comercial...8

Cromwell, no auge do poder revolucionário puritano, apostrofa e

incita da sua alta tribuna no Parlamento em Londres: “Nosso grande

inimigo no exterior é Espanha, um inimigo natural pela inimizade que

tem contra Deus... A verdade é que nunca se pode fazer paz com um

Estado papista...” Daí as expedições inglesas a Barbados e Jamaica,

para instalação de bases necessárias aos corsários (portadores de carta

oficial de corso, transformando a Coroa em sócia da pirataria) e mes-

mo aos piratas propriamente ditos, sob os indistintos nomes de buca-

neiros e flibusteiros de muitas procedências, no que Arciniegas deno-

mina internacional “briga de galos”...9

O século XVIII foi Século de Luzes também nas Américas Ibéricas,

porém Alejo Carpentier descreve realidades transfiguradas pelo imaginá-

rio em novelas: o Governador de Guadalupe, Martinica e Guiana, nomea-

do pela Revolução Francesa, descendo do navio com a Declaração Uni-

versal dos Direitos do Homem e do Cidadão numa mão, a outra empu-

nhando a guilhotina...10 No Haiti a república, recém-proclamada pelos

nativos, efetua massacres por conta própria...11 Napoleão casa com marti-

niquense, Josefina, porém esmaga militarmente o Haiti e vende a Luisiana

aos Estados Unidos...12 Mesmo assim o iluminismo fará escolas pacíficas

de Independência menos ou mais por quase todas as Américas, no Brasil

principalmente pela Inconfidência Mineira.

72 � Vamireh Chacon

8 � Idem, pp. 215-217, 223-229 e 225.9 � Ibidem, pp. 246-252, 287 e 262.10 � Alejo Carpentier, O século das luzes (El siglo de las luces, 1962).11 � Alejo Carpentier, O reino deste mundo (El reino de este mundo, 1949).12 � Biografia de Caribe, op. cit., pp. 367-393 e 400-403.

O século XIX é o século do liberalismo, matizado de romantismo:

Miranda, revolucionário na França e América Hispânica; o Caribe

transformado em “Mar de Simón Bolívar” na Revolução começada

no livre Haiti, terminada às suas margens na Grã-Colômbia, onde ele

se preparava para o exílio evitado pela morte. Século XIX também do

realismo comercial do Canal do Panamá, separando-se ou separado da

Colômbia com ajuda, mesmo incentivo, por parte da política dos

Estados Unidos com interesse em ligar também por mar os seus lito-

rais atlântico e pacífico. Controle do Canal reivindicado e obtido pelo

Panamá em fins do século XX. Só em começos do XIX foi eliminado

o último foco de piratas do Caribe, o de Lafitte, nada menos que em

Nova Orleans, no Sul dos Estados Unidos...

O século XX presencia ainda o advento da democracia para os po-

vos da Ibero-América, não só das suas elites mesmo esclarecidas.

Arciniegas termina Biografia do Caribe não com uma conclusão e sim

um prólogo, no começo estava o prefácio, mas “Prólogo da vida”,

“porque ao final da história é que está o prólogo da vida”.13

Arciniegas foi dos primeiros a notar a preferência de Espanha e

Portugal por Ibero-América, em vez de “América Latina”.14

No lugar de ambas, ele preferia América “Ladina” no sentido de

sabedoria dos seus povos duramente aprendida em conflitos, mais que

diálogos com seus invasores:15 a América é um ensaio marcado na his-

tória pelos povos antes dos seus escritores, sua realidade faz quebrar

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 73

13 � Idem, pp. 407-409, 432-446, 448, 461, 483, 498-517, 411, 415-523, 523 e521.14 � Germán Arciniegas, “América Ladina?” in América Ladina, antologia compiladae apresentada por Juan Gustavo Cobo Borda, México, Fondo de Cultura Económica,1996, pp. 291, 298 e 296.15 � Idem, p. 429.

“a filosofia da história preparada por europeus” com ideologias libe-

rais, comunistas, fascistas, mais impostas que propostas aos ibero-

-americanos, tão ladinos em recusá-las, por vezes fingindo que as acei-

tam, enquanto buscam respostas próprias desde o argentino Sarmien-

to (Conflitos e harmonias das raças na América, ademais do também clássico

Facundo) ao mexicano José Vasconcelos de A raça cósmica, “tudo isto

sem contar a vasta produção dos sociólogos do Brasil”.16

Em Biografia do Caribe, Germán Arciniegas fez um grande quadro

culturalista orteguiano na forma, mas com sabor telúrico e mesmo po-

lítico muito próprio. Diante dele, o ensaísmo do também andino, o

venezuelano Arturo Uslar Pietri, apresenta-se mais casuístico na linha

inovada por Montaigne.

Uslar Pietri não quis escrever obra síntese, preferiu crônicas, con-

tos, novelas e até poemas, ao lado dos ensaios. Engajou-se diretamente

na política, foi três vezes ministro e candidato à presidência da repú-

blica, após doutorar-se em ciências políticas e exercer funções executi-

vas tecnocráticas de Estado. Viveu dez anos no exterior: em missão di-

plomática em Paris (1929-1934) e exilado (1945-1950) nos Estados

Unidos por ter sido ministro de presidente deposto por golpe de

Estado. Chegou a ser entrevistador e apresentador em programas cul-

turais na televisão venezuelana por vários anos.

Larga e longa antologia reúne o principal das suas obras, compila-

da e apresentada por Gustavo Luís Carrera, sob o título A invenção da

América Latina, no sentido de herança hispano-americana recriada pela

mestiçagem mais cultural que socioeconômica. Após tantos cargos

políticos e administrativos, Uslar Pietri permaneceu sobretudo escri-

tor, assumido enquanto tal.

74 � Vamireh Chacon

16 � “América es un ensayo” in América Ladina, op. cit., p. 339.

O que ele entendia por hispano-americano?

Antes de mais nada, a hispano-americanidade nele se completa em

ibero-americanidade; ele colabora no relatório de 1989 em Madrid,

Ibero-América, uma comunidade. A ponto de considerar as guerras de

independência, pelo menos na América Hispânica, mais conflitos ide-

ológicos entre republicanos e monárquicos, e liberais contra absolu-

tistas, que apenas opondo as nascentes consciências nacionais diante

do colonialismo espanhol.17 Uslar Pietri concorda com Américo Cas-

tro, que a tragédia da história política da América Latina começa pelo

“intento de desvivir la propia historia”. Pois não se criaram ideologias ou fi-

losofias novas, desde o liberalismo ao marxismo, e sim formas mesti-

çadas tanto quanto as raças. Daí o espanhol José Gaos demonstrar

como os escritores, não só os juristas, na Hispano-América, são “edu-

cadores de seus povos”.18 Uslar Pietri também e em tal escala que che-

ga a candidatar-se a presidente do seu país, recebendo significativa vo-

tação nas grandes cidades mais politizadas da Venezuela.

A América Latina é uma invenção da mestiçagem, José Vasconce-

los já assim a descrevera desde 1925 em A raça cósmica. A invenção da

América mestiça é como Gustavo Luís Carrera intitula, a mais ampla an-

tologia de prosa ensaística e literária, com versos entre épicos senti-

mentais de toda a vida de Arturo Uslar Pietri, mais até contos, novelas

e uma peça de teatro trágico-romântica em fragmento.

Em meio a tudo isso, Uslar Pietri tem naturalmente de lembrar-se

da sua mais íntima Venezuela, berço de não só de Bolívar, também do

seu mestre Simón Rodríguez e das Américas Hispânicas por onde

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 75

17 � Arturo Uslar Pietri, “Somos hispanoamericanos”, La invención de América mestiza,antologia compilada e apresentada por Gustavo Luis Carrera, México, Fondo de Cul-tura Económica, 1996, pp. 291, 298 e 296.18 � Idem, p. 297.

Andrés Bello viveu e doutrinou. Pois se há vários Brasis, existem ou-

tros tantos quase países dentro de cada um de língua castelhana nos

trópicos.Foram coletados, naquela antologia, os ensaios histórico-culturais

na sequência lógica: “Caminhos da hispanidade” (“reino de Cervan-tes” e não de ideologias sob aquele nome); “Paixão americana” meri-dional (“Existe América Latina?” é o título de um dos ensaios, com aresposta da neoiberização das muitas culturas indígenas nativas, maisas africanas e europeias importadas em imigrantes diversos). Enfim,neste gênero Uslar Pietri termina celebrando “A invenção da Venezu-ela” e a irradiante presença de Caracas.

“Realismo mágico” é ensaio de crítica literária, ainda em A invenção

da América mestiça, apontando no cubano Alejo Carpentier e no guate-malteco Miguel Ángel Asturias o início da torrente então desembo-cando em Gabriel García Márquez. Uslar Pietri reivindica o termo,inspirado por classificação do crítico alemão Franz Roh ao pós-ex-pressionismo europeu, depois Alejo Carpentier preferiu também o“real maravilhoso”. Carpentier, Asturias e Pietri, exilados, disso já tra-tavam em Paris, 1929, pretendendo ir muito além do surrealismo daépoca, pouco adaptável aos trópicos.19

A mestiçagem da Ibero-América, Hispânica e Portuguesa – tão de-

monstrada, mesmo enfatizada desde José Vasconcelos a Gilberto

Freyre, passando por vários dos seus intérpretes – tem Cuba em Fer-

nando Ortiz um dos seus maiores cenários e dos principais analistas.

Ortiz, no livro Os negros escravos (cubanos), traça longo e pormenori-

zado estudo concentrado na “procedência geográfica dos afrocubanos”,

“história da escravidão afrocubana”, “estatísticas dos escravos importa-

dos”, “o contrabando negreiro”, “o trabalho escravo rural nos enge-

76 � Vamireh Chacon

19 � “Realismo mágico” in La invención de América mestiza, op. cit., pp. 333, 334 e 336.

nhos”, “o das mulheres” e “o barracão” dos endividamentos impossíve-

is de serem pagos, “os castigos”, “bailes de tambores, os cantos, o jar-

gão”, “a morte do escravo rural”, “o escravo urbano do servo na popula-

ção”, “os emancipados e o regresso à África”, “condição jurídica” (“o

Código Negro espanhol”), “a rebelião dos escravos”, “insurreições ne-

gras em Cuba” e “o movimento abolicionista”, entre outros temas.

No artigo “Contraste econômico do açúcar e do tabaco”, ele se concen-

tra nessas duas atividades econômicas, demonstrando suas diferenças: o ta-

baco atrai o cultivo (“verguerío”) do açúcar e o açúcar cria o latifúndio. Na

indústria: tabaco é da cidade e o açúcar um só mercado no mundo. Centri-

petismo e centrifugação. Cubanidade e estrangeirismo (“estranjería”).20

O ensaio maior em síntese por Fernando Ortiz é O furacão (Sua mi-

tologia e seus símbolos), no qual apresenta desde uma antropologia de cul-

tural etnológica, sobre os hábitos e costumes tornados tradicionais

pela violenta vinda quase anual dos tormentos dessas tormentas no

Caribe atingindo Cuba, a uma antropologia culturalista histórica do

fenômeno remontando a antiquíssimos povos orientais e europeus,

daí os símbolos mágicos das espirais, em desenhos e danças rituais de

ventos vingativos redescritos e reencenados em muitas partes do mun-

do, até à África e Oceania, enquanto emanações do sopro divino, o

“pneuma” grego, nem sempre diretamente ao homem, porém às vezes

violentamente pela natureza.21

Fernando Ortiz é das figuras cimeiras da cultura cubana afrocaribe-

nha, personagem uno e múltiplo: uno em sua formação hispânica de

curso primário, secundário e conclusão do universitário em Direito na

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 77

20 � Fernando Ortiz, “Contraste económico del azúcar y el tabaco” in Revista Bi-mestre Cubana, Havana, Molina & Cia., 1936, n.o XXXVIII, p. 4.21 � El huracán (Sus mitos y sus símbolos), México, Fondo de Cultura Económica, 1986(1.a ed. em 1947), capítulo III, pp. 107-128.

Espanha, após interregno na Universidade de Havana; ouvinte da Cri-

minologia de Lombroso e Ferri, quando em serviço consular na Itália;

personagem também múltiplo ao enveredar daí à Etnologia, além da

Etnografia, vindo a receber elogio de Malinowski pelo pioneirismo do

seu conceito de transculturação, primeiro apresentado no artigo “Con-

traste econômico do açúcar e do tabaco”. Multiplicidade metodológica

(foi professor de Economia Política, Direito Público e Direito Consti-

tucional, antes de dedicar-se à Antropologia Cultural) e multiplicidade

política, ao protestar contra a ditadura do presidente Gerardo Machado

e ter de exilar-se no Estados Unidos, depois vindo a ser um dos funda-

dores da Universidade Popular de Havana e do movimento de esquerda

pró-paz no seu país, enfim falecendo com glórias de herói nacional inte-

lectual celebrado pelo governo revolucionário de Fidel Castro.

Fernando Ortiz está entre os mais competentes e ardorosos adver-

sários do racismo na América Latina.

Seu livro O engano das raças nisso é exemplar, numa época (1945) na

qual os racistas, apesar da derrota do antissemitismo nazista na Segun-

da Guerra Mundial, ainda dispunham de muita força contra os ne-

gros, índios e mestiços. Aquele livro foi dedicado a Henry Wallace,

que protagonizava a esquerda dos liberais dos Estados Unidos, mes-

mo exercendo o cargo de secretário (ministro) no governo americano,

porém na presidência Roosevelt. Henry Wallace agradeceu em carta a

homenagem e elogiou o livro.

Fernando Ortiz percebia não estar esgotado o racismo por baixo

do torvelinho das disputas políticas em vésperas de Guerra Fria entre

Estados Unidos e União Soviética, quando “raça” ainda era “palavra

de mau berço e má vida”, no seu espanhol delicioso: “Raza es voz de mala

cuna y de mala vida”... Perante a Biologia, História, Antropologia e

Etnografia, não existem raças puras.

78 � Vamireh Chacon

Thomas G. Masaryk – “gran repúblico” fundador da Tchecoslová-quia após a Primeira Guerra Mundial, tentativa de república multi-ét-nica e multi-cultural malograda nas mãos dos marxistas-leninistas en-tão adeptos da União Soviética em colapso – Masaryk, interrogadopelas autoridades americanas, ao entrar nos Estados Unidos, à per-gunta a que raça ele pertencia, respondeu: “À raça humana”. Karl Ka-utsky na mesma época demonstrava serem os judeus uma cultura e nãouma raça. E José Vasconcelos apontava na “pan-etnia” da raça cósmi-ca o futuro da humanidade, já começando na Ibero-América.22

Com amplas bibliografias especializadas, Fernando Ortiz desmonta acrença na existência de pureza racial desde o mais remoto passado ao pre-sente mais contemporâneo, mas “Todo indivíduo humano, pela forçosadisparidade dos seus genes progenitores, é em rigor um mestiço”. “Amestiçagem não é a exceção e sim a regra”. “Há uma mestiçagem univer-sal: não há raças puras”. “Todas as chamadas ‘raças’ são, pois, impuras. Eimpurificáveis, se por isso há de entender-se a eliminação dos cruzamen-tos heterogêneos; muito pelo contrário, tudo permite assegurar para o fu-turo um amálgama crescente de todas as substâncias humanas”.

Quanto à hierarquia das raças, ela existe? Superiores e inferiores? EFernando Ortiz nega essas diferenciações, declarando-as “ovos podresda antropologia” (literalmente: “huevos podridos de la antropología”).23 Oque há são transculturações, em Ortiz um conceito inspirado por Ri-chard Thurnwald, além da aculturação de J. W. Powell aplicada porFranz Boas e outros, até Melville J. Herskovits defini-la com mais ri-gor. Ortiz distingue transculturação recíproca, em vez de predomíniode umas culturas sobre outras.24

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 79

22 � El engaño de las razas, Havana, Editorial Páginas, 1945, pp. 11, 17 e 45-51.23 � Idem, pp. 323, 326, 328, 335, 343, 330, 334, 338, 343, 347, 383, 419, 420 e 399.24 � Diana Iznaga, Transculturación, Havan Editorial de Ciências Sociales, 1989 (1.a

em 1969), pp. 43-65.

O que há é a cultura, “típico e complexo conjunto de meios artifi-

ciais que funcionam num grupo humano para sua coesão e luta pela

vida”: cultura, conceito “essencialmente humano e sociológico”; raça,

“exclusivamente zoológico” (sic). “Raça” é mito político, “perigoso

precisamente por sua indefinição”.25

A obra de Fernando Ortiz, antropológica cultural em projeção políti-

ca, alcançou grande repercussão, reconhecida por Bronislaw Malinowski

na Universidade de Cambridge e Gilberto Freyre no Brasil com análogos

conceitos e conclusões, aplicados às realidades polinésica e brasileira pelas

respectivas pesquisas: Malinowski em introdução ao Contrapunteo cubano del

tabaco y azúcar, após seu Contraste económico del azúcar y el tabaco; Gilberto Freyre

em Sociologia (Introdução ao estudo dos seus princípios), primeira edição em 1945,

aumentada e atualizada a partir da segunda, 1957.

Ademais de cientista social, Fernando Ortiz também era escritor,

desde cedo vocacionado no chamado Grupo Minorista, amigo tanto

do poeta afro-cubano Nicolás Guillén e romancista franco-cubano

Alejo Carpentier, quanto dos espanhóis Federico García Lorca, Juan

Ramón Jiménez, Fernando de los Ríos, María Zambrano e outros.26

O ensaísmo hispano-americano desceu dos Andes para reconhecer

o berço cultural da América Hispânica no Caribe. Germán Arciniegas,

Arturo Uslar Pietri e Fernando Ortiz são importantes etapas do itine-

rário.

80 � Vamireh Chacon

25 � Ortiz, op, cit., pp. 419, 420 e 399.26 � Apresenta-se grande a fortuna crítica de Fernando Ortiz, há até uma Funda-ção e um Editorial com seu nome em Cuba, e vários artigos-ensaios sobre suas obras,entre os quais “El Fernando Ortiz que yo conocí” por Julio Le Riverend in Revolución ycultura, Havana, agosto, 1981 e “Fernando Ortiz, los intelectuales y el dilema del naci-onalismo de la República (1902-1930)” in Temas, n.o extraordinário 22-23, julho-de-zembro, 2000. Está traduzido ao inglês Cuban counterpoint tobacco and sugar, Durham,Duke Univesity Press, 1995.

Henríquez Ureña, Hayade la Torre e Mariátegui:A utopia da América

A América nasce sob o signo da utopia, apresentada por Monta-

igne entre seus Ensaios, alguns sobre os primeiros índios trazidos à

Corte do rei de França no século XVI, pelas mãos de companheiros

da expedição de Villegaignon ao Rio de Janeiro, a chamada França

Antártica. Era um dos resultados da série de surpresas, inéditas e in-

sólitas, diante da natureza e dos povos indígenas, motivações edêni-

cas na descoberta e colonização do Brasil e outras terras americanas:1

visões de inocências perdidas pela civilização, recuperáveis nas pro-

postas reformistas de Tomás Morus no Renascimento, ou por ape-

los de Rousseau no Iluminismo.²

Também da Hispano-América irromperam sonhos quiliásticos, com

muito maiores motivos porque desde dentro, vividos, muito além dos es-

1 � Sérgio Buarque de Holanda demonstra-o em Visão do paraíso (Os motivos edênicos nodescobrimento e colonização do Brasil), Rio de Janeiro, 1939. Germán Arciniegas, Biografia deCaribe, Buenos Aires, Editorial Sudamericana , 1964, pp. 17, 13 e 12.2 � Afonso Arinos de Melo Franco, O índio brasileiro e a Revolução Francesa (As origensbrasileiras da teoria da bondade natural), vol. 71 da Coleção Documentos Brasileiros da Livr.J. Olympio Edit., 1937, o primeiro a respeito.

trangeiros nem sempre conhecedores das realidades meridionais. Pedro

Henríquez Ureña, reformista, Victor Raúl Haya de la Torre e José Car-

los Mariátegui revolucionários, foram dos que agiram em entusiasmo hu-

manístico político por radicais transformações na América Hispânica.

Rafael Gutiérrez-Girardot muito bem intitulou A utopia de América,

sua prefaciada seleção dos ensaios da autoria de Henríquez Ureña.

Henríquez Zuleta Álvarez outro tanto subintitulou Vida de um hispa-

no-americano universal seu livro de críticas Pedro Henríquez Ureña e seu tempo.

Dentro desse espírito, José Rafael Vargas destacara O nacionalismo de Pe-

dro Henríquez Ureña. São dimensões que nele se completam, tendências

frequentes, embora nem sempre tão exitosas, nos escritores ibero-ameri-

canos, hispanófonos ou lusófonos. Henríquez Ureña testemunhou de

perto acontecimentos decisivos do século XX. Filho de presidente da

República Dominicana, presenciou a guerra de Independência de Cuba

contra espanhóis e norte-americanos, o começo da Revolução Mexica-

na e os preparativos para a Guerra Civil espanhola. No entretempo,

doutorou-se nos Estados Unidos pela Universidade de Minnnesota,

onde veio a ser professor e em Harvard, mas preferiu a Universidade de

La Plata para longa docência na Argentina, onde faleceu. Fez breve in-

cursão na política, não propriamente feliz, pois aceitou,apesar de breve-

mente por dois anos, a chefia da Superintendência do Ensino (Superin-

tendencia de Enseñanza) na ditadura de Rafael Trujillo.³

82 � Vamireh Chacon

3 � José Rafael Vargas, El nacionalismo de Pedro Henríquez Ureña, República Dominicana,Editora de la Universidad Autónoma de Santo Domingo, 1984. Assim o crítico defineo nacionalismo aberto de Henríquez Ureña: “Ser nacionalista es resaltar y valorar lo nuestro, esreconecer, apreciar, admirar y si es necesario utilizar todo lo bueno y justo que haya producido otro pueblo ocultura en cualquer latitud y época”. (p. 93). Nacionalismo cultural também político antirre-gressista e anti-imperial; a favor do “nacionalismo de los que creen firmemente en la nación como taly aspiran tener su plena autonomia política, econômica y social”. Com “compromiso político y social” (p.37), para definir sua cultura, seus interesses econômicos e poder político (pp. 39 e 40).

Gutiérrez-Girardot declara “peculiar nacionalismo”,o de Henrí-

quez Ureña, nacionalismo ibero-americano além de hispânico, ao in-

cluir em A utopia de América “As letras brasileiras”, ensaio no qual de-

monstra considerável conhecimento também da leitura do Brasil, atra-

vés inicialmente da sua história por Ronald de Carvalho, “meu ami-

go”, então recém-falecido.4

Henríquez Ureña era ensaísta de corpo inteiro, enquanto conteúdo

racional e não só na forma literária. Seu irmão Max, selecionador da

sua primeira Antologia (1950), descrevia como Henríquez Ureña

“aprendia ensinando e ensinava aprendendo”; na definição de Gutiér-

rez-Girardot: “foi discípulo de si mesmo, mas não autodidata”5. Só

podia ser realmente um ensaísta, quem pensava e escrevia assim. Daí a

estreia com Ensaios críticos em 1905. Após décadas de análises literárias,

volta à tentativa de síntese estilística e conceitual com Seis ensaios em bus-

ca de nossa expressão (1928). Estava definido seu itinerário.

Ele não se deterá nas preparatórias leituras efetuadas pelo caminho,

apesar de antes escrever Minha Espanha (1922) e, depois (1940), Pleni-

tude de Espanha. Para ele,o principal era “A América Espanhola e sua ori-

ginalidade", pela própria “Vida espiritual em Hispano-América”, tí-

tulos de ensaios representativos desta visão. Daí sentir e expressar sen-

so de continuidade, ao prosseguir a linha ensaística do Facundo (1845)

do argentino Sarmiento e do uruguaio Rodó mais em Motivos de Proteu

(1909) que no Ariel (1899). Henríquez Ureña foi dos que primeiro

apontaram o modernismo literário hispanófono como uma das com-

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 83

4 � Rafael Gutiérrez-Girardot, “Prólogo” à antologia de Pedro Henríquez UreñaLa utopia de América, compilação e cronologia por Ángel Rama e o próprio Rafael Gu-tiérrez-Girardot, Caracas, vol. 37 da Biblioteca Ayacucho, 1978, p. XII, e “Las letrasbrasileñas”, p. 365.5 � Gutierrez-Girardot, p. IX e “Cronología”, p. 568.

pensações culturais pela derrota militar espanhola perante os Estados

Unidos, gerando indignação intelectual política da chamada geração

de 1898, mesmo ano da publicação do Rubén Darío de Rodó.6

Tendo residido e estudado nos Estados Unidos, doutorando eprofessor na Universidade de Minnesota, professor também em Har-vard – ao contrário de Rodó que nunca lá esteve e Sarmiento só em vi-legiatura – Henríquez Ureña pôde concluir sobre Rodó, a propósitodo seu último ensaio, Liberalismo e jacobinismo,contra o início (1906) daQuestão Religiosa no Uruguai:

“Nessa virtude de seriedade sincera reside o mérito de

Rodó: em sua alta e secreta aspiração de dar à nossa Améri-

ca um ideal construtivo. Poderá equivocar-se por momen-

tos e de fato se equivoca; poderá desanimar-se e pelo menos

cala: mas sua será sempre a palavra animadora de Ariel”.

“Contra esse afã anárquico, contra essa impotência da filo-

sofia (...), se levanta Rodó, com a seriedade de quem estuda

e sobretudo medita, na solidão do silêncio, longe das feiras

de vaidade internacional onde a eminência cientifica permi-

te que se lhe enfrentem o sábio improvisado e literato dile-

tante, e,insegura de sua própria excelência, pactua com a

mediocridade invasora” 7.

A solução fora entrevista por Sarmiento, ao término da vida, após

ter sido até presidente da República Argentina, confiando “deixar por

herança milhares em melhores condições intelectuais, tranquilizado

nosso país, asseguradas as instituições e sulcado por vias férreas o ter-

84 � Vamireh Chacon

6 � Henríquez Ureña, La utopía de América, op. Cit., pp. 256, 257, 338, 336 e 332.7 � Idem, p. 333.

ritório, bem como cobertos por navios os rios, para que todos partici-

pem do festim da vida”8

Assim era o humanismo de Henríquez Ureña: intelectual sem inte-

lectualismo, engajado porém não ideológico, capaz de entender e lou-

var Diego Rivera sem se tornar seu correligionário, e pressentir no ho-

rizonte de Cuba a tempestade que se armava desde a luta de José Martí

pela Independência até o falecimento de Enrique José Varona, e quan-

do do golpe tornando Fulgêncio Batista ditador sobre os presidentes

nominais, enfim a revolução liderada por Fidel Castro. O ensaísmo

critico de Henríquez Ureña chega aos tempos de Alfonso Reyes, Jorge

Luís Borges e Victoria Ocampo, no limiar da pós-modernidade.9

A utopia maior de Pedro Henríquez Ureña deveria ser construída

pela Ibero-América. Após todos os traumáticos fracassos europeus,

“convulsões de largos anos, dores incalculáveis”, cabia-lhe “devolver à

utopia seus caracteres plenamente humanos e universais”, pelas ações

vindo da “nossa América” justificada em “Magna Pátria” [já Simón

Bolívar a definia como “Pátria Grande”], exemplo de sociedade onde

se cumpre a emancipação do braço e da inteligência”, ”forte e próspe-

ra pela cultura a serviço dos povos.”10

Também era de escritor a mais profunda vocação de Victor Raúl

Haya de la Torre, mas sua ideologização da utopia indo-hispano-

-americana tornou partidário seu engajamento ensaístico.

Ele fundou em 1924, já em exílio no México, a APRA, Aliança

Popular Revolucionária Americana, num claro propósito continental

além de nacional. A autodefinição do movimento e o lugar do seu co-

meço oficial demonstravam a latino-americanização dos iniciadores

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 85

8 � Ibidem, p. 259.9 � Ibidem, pp. 454-456, 290-304, 383-389, 399-401 e 403-405.10 � Gutiérrez-Girardot, op. cit., pp. XXXVI e XXXV.

em especial do peruano Haya de la Torre.A ênfase no índio advém da

maior importância dele nos países andinos e da América Central in-

clusive o México, enquanto no Brasil era a dos africanos, uns ao lado

dos espanhóis, outros com os portugueses,ambos os escravizando.

Daí os pioneiros protestos em defesa dos índios pelo dominicano Bar-

tolomeu de las Casas no México do século XVI e o jesuíta Antônio

Vieira no Brasil do século seguinte.Haya de la Torre pertence à geração de 1920 ou do Centenário da

Independência do Peru (1821), que produziu o historiador socialJorge Basadre, o historiador de ideias literárias Luís Alberto Sánchez,o poeta César Vallejo e o pensador político José Carlos Mariátegui.

Em 1928 Haya de la Torre publicava O anti-imperialismo e a Apra,primeiro texto doutrinário do partido recém-criado. Ainda em 1928estava Mariátegui entre os fundadores do Partido Socialista no Peru,cujos descendentes prosseguiriam na direção do Partido Comunista ede movimentos e tendências mais polêmicas, após o falecimento doinicial inspirador, com ideias daí em diante muito diversamente inter-pretadas.Também de 1928 são os livros fundamentais de Mariátegui,Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, e de Pedro Henríquez UreñaSeis ensaios em busca de nossa expressão. Portanto, um ano decisivo para aHispano-América, com grandes repercussões nos tempos seguintes.

Há quem veja em Haya de la Torre influências também de Spen-

gler, com sua teoria vitalista da crise do ocidente e retomada do co-

mando da civilização por outros povos11, e os que insistem nas raízes

ibero-latino-americanas. Entre estes está León Enrique Bieber.

León Bieber aponta afinidade entre Haya de la Torre e os contem-

porâneos hispano-americanos Jorge Basadre, Luís Valcárcel, Ciro

Alegría, José Vasconcelos, Germán Arciniegas e o próprio José Carlos

86 � Vamireh Chacon

11 � Idem, p. XI.

Mariátegui, apesar das mútuas diferenças e até distanciamentos. Antes

deles, o peruano Manuel González Prada, acerbo crítico do oligar-

quismo.

Quanto aos fatos, ressaltaria o impacto direto das recentes Revolu-

ção Mexicana de 1910-1917 e Reforma Universitária de Córdoba na

Argentina de 1918, e indireto da política de Bukharin tentando conti-

nuar a convivência construtiva de Estado Soviético e iniciativa privada

pelo NEP (Novo Plano Econômico) de Lênin recém-falecido. Era a

época da aliança de Moscou com Kuomintang, partido nacionalista

chinês de Chiang Kai-Shek na década de 1920. Portanto, não teria sido

nas ruínas incas de Macchu Pichu que a APRA havia se inspirado para

sua proposta de Frente dos Trabalhadores Manuais e Intelectuais...

Haya de la Torre passara dois meses em 1924 na União Soviética,

onde dialogou com bolcheviques intelectuais (Lunatcharsky), políti-

cos (Trotsky) e até militares (Frunze). Observou que, em vez da mar-

xista previsão revolucionária para os países mais industrializados do

Ocidente, a insurreição popular tinha irrompido na então ainda dis-

tante e pobre China. Daí o afastamento dele diante da Internacional

Comunista e confrontação com o Partido Comunista em vias de orga-

nizar-se no Peru12.

Os seguintes rumos das heranças políticas tanto de Haya de la

Torre, quanto de Mariátegui, seriam marcados pelas circunstância dos

tempos. Aqui cabe analisá-los enquanto escritores.

Os livros de Haya de la Torre, não propriamente seus panfletos,

são ensaísticos mesmo quando políticos. Ele próprio subintitula Cinco

ensaio e três diálogos o Espaço-tempo histórico, no qual pretende apresentar

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 87

12 � León Enrique Bieber, En torno al origen histórico e ideológico del ideario nacionalista popu-lista latinoamericano (Gestación, elaboración y vigencia de la concepción aprista de Haya de la Torre),Berlim, Coloquium Verlag, 1982, pp. 7-10 e 34-37.

uma síntese de historicismo antigo e fisicalismo moderno de Hegel a

Einstein13... anti-imperialismo e a Apra, querendo superar José Enrique

Rodó e José Vasconcelos, vai noutra direção, desde a constatação de

Hegel que a América do Norte havia sido colonizada enquanto era

conquistada a América do Sul, à teoria leninista do imperialismo e à

análise do conflito também étnico-cultural entre as duas. Haya de la

Torre propõe inspirar-se em Bukharin, no NEP e na experiência de

aliança com o Kuomintang, reconhecendo, com Vicente Lombardo

Toledano, a Revolução Mexicana enquanto camponesa e operária.

Quanto ao Brasil, reconhece sua peculiaridade étnica e cultural e dese-

ja que colabore com a Revolução Indo-Hispano-Americana, contra as

intrigas divisionistas impostas de fora para dentro pelos imperialis-

mos então sobretudo dos Estados Unidos.

O anti-imperialismo e a Apra conclui com um retorno à questão do

Brasil, reconhecendo sua grande força potencial e confiando na soli-

dariedade ibero-latino-americana14.

O maior escritor aprista é, contudo, Luís Alberto Sánchez, fiel ad-

mirador do seu líder mais político que intelectual, como se vê no perfil

biográfico de 1934, Raúl Haya de la Torre ou o político (Crônica de uma vida

sem trégua).

Luís Alberto Sánchez vai adiante do aprismo partidário, captou o

espírito da Aliança Popular Revolucionária Americana desde o berço,

na geração por Luís Alberto Sánchez pela primeira vez denominada

“Geração do Centenário” da Independência (1921) do Peru, à qual

88 � Vamireh Chacon

13 � Haya de la Torre, Espacio-tiempo histórico (Cinco ensayos y tres diálogos), Lima, SerieIdeología Aprista, Editorial Monterrico, 4.a ed., 1986, passim.14 � Haya de la Torre, El antimperialismo y el Apra, Lima, Fundación Navidade delNiño del Pueblo Victor Raúl Haya de la Torre, 8.a ed., Editorial Monterrico, 8.a ed.,s.d., pp. 34, 126, 102, 130, 67, 87, 138 e 139.

seus membros procuravam completar e ampliar na política, economia

e cultura. Sua dissertação de doutoramento foi o Elogio de Don Manuel

González Prada, prenunciando as interpretações sobre sua inicial in-

fluência nos pensamentos de Luís Alberto Sánchez e Haya de la Tor-

re, companheiros desde a primeira hora.Em meio a atividades e escritos políticos apristas, durante longas vi-

das (Haya falecido aos oitenta e quatro anos, Sánchez aos noventa etrês), o segundo consegue enveredar pelo ensaísmo além do político, noque o primeiro não o alcança, arrebatado pela ação em lugar da reflexão.Luís Alberto Sánchez, porém, chega até a apresentar opiniões inéditas eousadas, do tipo da existência de uma literatura americana em geral, reu-nindo as ibéricas hispanófona e lusófona e mesmo a de expressão ingle-sa dos Estados Unidos, pela diferença de temática em relação às dos pa-íses europeus de origem, como se vê na sua História comparada das literaturas

americanas, publicada em quatro volumes pela Editorial Losada de Bue-nos Aires. Pesquisador, historiógrafo literário, além de político militan-te, ainda teve tempo para ser três vezes reitor da tradicional Universida-de de San Marcos no Peru, uma das mais antigas das Américas.15

Era a culminação do itinerário do escritor ensaísta, tornado trata-

dista ao término da existência física, após exercer cátedras universi-

tárias quando de exílios no Chile e Porto Rico, com o vigor tão bem

expresso em títulos de livros seus – Vida e paixão da cultura na América e O

povo na Revolução Americana – capazes de coexistir com sua erudita Histó-

ria geral de América em dois volumes.

Substituindo na presidência do Senado o enfermo Haya de la Torre,

numa das cíclicas Constituintes redemocratizadoras também do Peru,

Luís Alberto Sánchez concluiu longo itinerário político e intelectual.15

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 89

15 � Roy Soto Rivera, Luís Alberto Sánchez (Maestro, escritor y político), Arequipa, semref. à edit., 2000, pp. 2, 4, 30, 33, 32, 15 e 27.

Num dos seus últimos textos, saúda, numa difícil tentativa de síntese,

“Victor Raul (Haya de la Torre) e (José Carlos) Mariátegui, o analista e

o propulsor” de “uma solução dialética e cooperante para tanto proble-

ma, para tanta angústia, para tanta fome de corpo e espírito...”16

Mariátegui será a figura intelectual mais completa e politicamente

mais complexa da Geração de 1921, a do Centenário da Independên-

cia do Peru com repercussões na Ibero-América de hispânica a lusa.

Antes daquela geração,os vultos exponenciais de maior influência em

Lima, ecoando na seguinte, eram o poeta José Santos Chocano e o his-

toriador Ricardo Palma, com toques mais tipicamente peruanos que

seus antecessores, sobre todos se destacando o nacionalismo conserva-

dor, porém condigno, de José de la Riva Agüero. No extremo oposto

político estava Manuel González Prada, paradoxal figura de erudito e

agitador de massas.l7

José Carlos Mariátegui provinha de empobrecida família de clas-

se média baixa. Seu pai, pequeno funcionário público, descendia de

ardoroso prócer liberal, admirador do iluminismo e de Rousseau em

especial; o jovem Mariátegui confidenciará, a um dos melhores ami-

gos, ter renegado os primeiros escritos literários de juventude futu-

rista,porém decadentista no espírito literário da década de 1920 da

França e Itália.18

90 � Vamireh Chacon

16 � Apud idem, p. 44.17 � Armando Bazán foi grande amigo pessoal e primeiro biógrafo com Mariátegui ysu tiempo, que dá o título à antologia de depoimentos coord. por ele como vol. 20 dasObras completas de José Carlos Mariátegui, Lima, Biblioteca Amauta, Librería Editorial“Minerva”-Miraflores, 3.a ed., 1975, pp. 29, 31, 32, 18-22, 32, 33 e 45.18 � Robert Paris, La formación ideológica de José Carlos Mariátegui, México, EdicionesPasado y Presente-Siglo XXI Editores, 1981, pp. 19, 18 e 20. Trata-se de tese univer-sitária, sob influência do movimento Annales na École Pratique des Hautes Études deParis, então dirigida por Fernand Braudel, pp. 7 e 17.

Das leituras desse tempo, Mariátegui guardará da Espanha apenas re-cordação da Geração de l898,em especial de Unamuno e Ortega y Gasset.A língua literária espanhola, pouco antes e logo depois da perda de projeçãopolítica internacional da Espanha em seguida à derrota militar diante dosEstados Unidos, passara a rebrilhar a partir da Nicarágua de Rubén Dario edo Peru de César Vallejo, repercutindo na própria Espanha.19

O impacto emocional da Primeira Guerra Mundial atinge tambémos meios intelectuais de Lima. Mariátegui escreve artigo contra o as-sassinato de Jaurès e simpatiza com a França20, já com adeptos prepa-rados no Peru principalmente Francisco García Calderón.21

Manuel González Prada, após viagem à França, transitara de Tainee Renan ao anarquismo de Kropotkin. Nesse clima se reuniam des-lumbrados no efêmero grupo denominado Colônida22.

Armando Bazán, dos grandes amigos pessoais de José Carlos Ma-riátegui, entre seus vários testemunhos anota que, sem a viagem e per-manência na Europa, Mariátegui teria muito possivelmente se conde-nado ao destino de tantos companheiros de geração, perdidos no bele-trismo e provincianismo, “con sus fuerzas creadoras dormidas”:

“Europa foi pois, para ele, como para a maioria de nosso grandeshomens, sua salvação, sua revelação, seu nascimento à vida do pensa-mento que não morre”.23

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 91

19 � Idem, p. 15.20 � Ibidem, pp. 21 e 27.21 � Francisco García Calderón, destacado publicista e diplomata peruano, foi dosmais ardorosos e influentes escritores do seu país na defesa do especial relacionamen-to da Ibero-América, por ele chamada de Latina, com a França em vésperas da Primei-ra Guerra Mundial. Seu livro Les démocraties latines de l’Amérique, Paris, Flammarion,1912, teve como prefaciador nada menos que Raymond Poincaré, presidente da Re-pública Francesa. García Calderón era parente do historiador Jorge Basadre.22 � R. Paris, op. cit., pp. 16, 17, 34, 35, 37, 45, 47, e 59.23 � Bazán, op. cit., p. 46.

Na sua obra máxima, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, ele

reconhece: “Fiz na Europa meu melhor aprendizado” (textualmente:

“He hecho en Europa mi mejor aprendizaje”),24 referindo-se aos quatro anos

(1919-1923) ali passados. Não lhe faltaram acusações de “europei-

zante”, por mais que Mariátegui se defendesse que nunca propunha

“decalque e cópia”, “calco y copia”.25

Caio Prado Júnior, no Brasil, da família Prado lendária por sua

grande fortuna, estudara o curso secundário na Inglaterra e Direito na

tradicional Faculdade do Largo de São Francisco. Fundou a Editora

Brasiliense e a Gráfica Urupês e editava de 1955 a 1964 a Revista Brasi-

liense¸ portanto com importante destaque na cultura. Do ponto de vis-

ta metodológico escreveu, como obra máxima, Dialética do conhecimento,

aplicada desde Evolução política do Brasil em 1933, mas não alcançou a

mesma repercussão internacional de José Carlos Mariátegui.

A explicação apresenta-se muito simples: Mariátegui era um escri-

tor, não só pensador, escritor vindo do jornalismo ao ensaísmo, am-

bos em grau superlativo. Seu conteúdo surge sempre claro e cálido, in-

clusive quando expressa suas ideologias, não só ideias. O que na gran-

de maioria de outros casos não costuma ser frequente.

92 � Vamireh Chacon

24 � Mariátegui, “Advertencia” a 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana, vol. 2das Obras completas, Lima, Biblioteca Amauta, Librería Editorial “Minerva”-Miraflo-res, 31.a ed., 1975, p. 12.25 � Jorge Basadre, amigo pessoal tanto de José Carlos Mariátegui quanto de Vic-tor Raúl Haya de la Torre e que nunca se tornou nem marxista nem aprista, testemu-nha a originalidade do pensamento de Mariátegui desde o início até o fim da sua brevevida, no livro de memórias intelectuais e políticas La vida y la historia (Ensayos sobre perso-nas, lugares y problemas), Lima, Fondo del Libro del Banco Industrial del Perú-EditorialAusonia, 1975, p. 230. Os soviéticos de início receberam Mariátegui com muitas res-trições, porém terminaram reconhecendo-lhe as inovações (p. 239). Basadre alonga-sesobre Mariátegui em Perú (Problema y posibilidad), Lima, 1931 e no vol. XIII da sua His-toria de la República del Perú, acerca do aprismo no vol. XIV deste último livro.

Mariátegui parte de navio do Peru em 1919, logo após a Revolu-ção Bolchevique e ao término da Primeira Guerra Mundial. Passa peloCanal do Panamá do Pacífico ao Atlântico, Armando Bazán relembrasua admiração pelo capitalismo, ianque, ele próprio assim o denomi-na.A ponto de prever, atente-se bem à data,a superação,em breve, dahegemonia britânica no mundo pela dos Estados Unidos. Os dias emNova York confirmam-lhe esta convicção.26

Chega a Paris, de passagem à Itália. Visita Henri Barbusse, funda-dor da editora, revista e movimento Clarté27, depois divulgados naAmérica Hispânica pelo grupo Claridad.28 Nesta fase o francês deMariategui não era dos melhores, depois voltará com mais proveito aParis. Ele muito recordará os comícios operários em Belleville.29

Enfim na Itália, dela ele depois dirá em carta de 10 de janeiro de1921: “Residi mais de dois anos na Itália, onde esposei uma mulher ealgumas ideias". Assume cargo burocrático no Consulado do Peru emGênova, logo em Roma,por nomeação pelo presidente populista Au-gusto B. Leguía, o que lhe valerá ataques e defesas, mas que na práticaserviu como uma espécie de bolsa de estudos, costume comum naépoca na América Hispânica30.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 93

26 � Bazán, op. cit., pp. 47-49.27 � Idem, pp. 53 e 54.28 � No Rio de Janeiro surgiu a revista Claridade afim à Claridad de Buenos Aires, noBrasil fundada por Nicanor do Nascimento. O jurista Pontes de Miranda neste grupopublicou em 1933 Anarquismo, socialismo e comunismo. Seu desengajamento nos preparati-vos do Levante de 1935 interrompeu esta sua linha, daí em diante só jurídica.29 � Bazán, op. cit., p. 56.30 � R. Paris, op. cit., pp. 75, 76 e 74. O presidente Leguía prendeu Mariátegui e al-guns líderes operários e estudantis em 1927, alegando uma conspiração comunista.Mariátegui defendeu-se reconhecendo seu próprio marxismo, porém negou sua parti-cipação num “complô folhetinesco de subversão”. A revista Amauta, então fechada porordem de Leguía, dele recebeu autorização de reabertura sem qualquer restrição dacensura. Vide Basadre, op., cit., pp. 216 e 217.

A experiência italiana o marcará para sempre. Os pensadores ita-

lianos que mais o influenciaram foram Croce, Gentile, Labriola e

Gobetti. Também teve tempo para ler o francês Sorel e o americano

Whitman, entre vários autores, sem perder contacto com movimen-

tos sociais, cujas reuniões assistia pessoalmente. Croce, hegeliano li-

beral, Gentile hegeliano autoritário social, Labriola marxista inde-

pendente e Gobetti, social democrata croceano sem vinculações par-

tidárias. O método, mais que mito de Sorel, muito o impressiona;

em Walt Whitmam é o amor pelo povo e à natureza.31

O livro Sete ensaios de interpretação da realidade peruana (1928) é o que o

título diz, uma coleção de textos autônomos, porém, ao mesmo tem-

po, com vida orgânica própria que vai do econômico (em especial

agrário) ao etnológico indianista, sua necessidade de instrução públi-

ca, seu fator religioso ancestral quéchua e aimara,o conflito entre regi-

onalismo e centralismo, e a cultura literária no contexto por Mariáte-

gui chamado de indo-ibero a esta coleção, na realidade uma série ho-

mogênea na forma, mesmo com variedade de objetos, visando o obje-

tivo da sua totalidade. Segue um caminho previsto e desejado, não se

trata do conjunto fragmentário pela difícil circunstância em que

Antônio Gramsci redigiu seus apontamentos.

Há afinidades e convergências entre Gramsci e Mariátegui, não

propriamente influência daquele sobre este, ambos estavam imersos

no mesmo ambiente cultural político, o da Itália logo após a Primeira

Guerra Mundial. Mariátegui só cita explicitamente Gramsci duas ve-

zes, ambas a propósito da direção do jornal L’Ordine Nuovo por ele e

94 � Vamireh Chacon

31 � R. Paris, op. cit., pp. 122-140.32 � As duas breves referências jornalísticas de Mariátegui a Gramsci estão no vol.15 das Obras completas (Cartas de Itália,) e no vol. 5 Defensa del marxismo.33 � Vide R. Paris, op. cit., pp. 122, 123 e 87.

Umberto Terracini.32 As afinidades e convergências têm o denomina-

dor comum do humanismo social e culturalismo histórico de ambos,

nisto sob influência inclusive e principalmente de Benedetto Croce,

cujas aulas Gramsci chegou a ouvir. Croce era amigo da família da es-

posa de Mariátegui, portanto lhe dando acesso às suas obras ou até ao

conhecimento pessoal, apesar de Mariátegui não registrar qualquer

encontro direto entre eles. Com Gramsci e Terraccini deve ter cruza-

do caminhos, conforme esse último vagamente se lembrava33.

José Carlos Mariátegui retorna ao Peru em 1923.

Ele tinha muita consciência das ligações históricas culturais do en-

saísmo não só peruano, também o do uruguaio Alberto Zum Felde e o

mexicano José Vasconcelos, até o de Jorge Luís Borges então em inici-

al fase portenha. Aponta a superação do nativismo por Zum Felde, na

Montevidéu tão cosmopolita quanto a Buenos Aires de Borges, diante

do indigenismo peruano hegemônico em Lima, e vê em Vasconcelos

oportuna consagração da mestiçagem, embora mais do passado que

do presente. Prefere-os ao intelectualismo de Rodó. Concorda com a

opção nativista de Henríquez Ureña,34 considera-a mais social em vez

de basicamente nacional como em Haya de la Torre. Seus adeptos vão

se distanciar ainda mais. Cada qual a seu modo busca a utopia de

América.

Mariátegui tinha o propósito de editar uma revista na sua volta ao

Peru. Será Amauta (“guia” em quéchua) de 1926 a 1930 com o suple-

mento Labor.

Neles colaboram com artigos-ensaios desde Haya de la Torre a

Armando Bazán e Jorge Basadre, entre outros companheiros perua-

nos de geração, a José Vasconcelos do México e Alberto Zum Felde

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 95

34 � 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana, op. cit., pp. 329, 330, 239, 340, 320,35 e 254.

do Uruguai. Também Ortega y Gasset e Unamuno da Espanha, mais

Henri Barbusse e Romain Rolland da França, Hermann Keyserling

da Alemanha e Waldo Frank dos Estados Unidos então muito em

evidência.

A Revolução Mexicana de 1910 e a Russa de 1917, bem como os

começos dos movimentos operários organizados peruanos, recebem

especial destaque. Sempre com vibração intelectual, mas moderação

de sentimentos, ao lado do gosto pelo rigor e exatidão, Mariátegui

passa um ano na Alemanha para aprender o idioma e poder ler no ori-

ginal Goethe e Marx.35

José Carlos Mariátegui publicou ensaios e livros ao longo de ape-

nas sete anos (de 1923 a 1930) dos seus breves trinta e seis de vida.

Ele foi importante polarizador e aglutinador, prossegue polêmico ao

longo do tempo. Permanece um dos principais marcos do ensaísmo

hispano-americano. Nele a paixão política inflama até o escritor e di-

plomata, erudito e liberal Juan Montalvo, contra o por ele considera-

do clerical ultramontano presidente García Moreno do Equador.

96 � Vamireh Chacon

35 � O amigo pessoal Bazán inclui mais este testemunho, op. cit., p. 71 e o próprioMariátegui, tão heterodoxamente criativo, começa seu livro 7 ensayos de interpretaciónde la realidad peruana com longa citação no original alemão de O viandante e sua sombra deNietzsche. Também no Brasil há importante recepção da obra de José Carlos Ma-riátegui.

Martínez Estrada:o pampa de Golias

A Argentina começou a noroeste nos Andes, emanação da riqueza

da prata do sul do Alto Peru, prosseguiu na direção leste pelas planíci-

es dos afluentes do Rio da Prata, daí o nome deste acesso ao Atlântico

e o mundo. Foi o caminho de Salta e Tucumán a Córdoba, Rosário e

Buenos Aires, marcos fecundos mesmo após sucessivas transferências

de hegemonias. A foz portenha, concentrada e mais acessível aos con-

tactos internacionais, terminou por preponderar em meio às resistên-

cias das províncias.

O enriquecimento material de Buenos Aires, de entreposto comer-

cial a centro também irradiador industrial, propiciou o aparecimento

do que José Luís Romero denominou “grupo portenho ilustrado”,

político e intelectual, nacionalista e centralista mais que apenas patrió-

tico e centralizador: convocando o povo, mas para impor-lhe aqueles

princípios, com muita consciência (“Buenos Aires se pone a la frente/ de la

ínclita nación”) e ardor até apaixonado:

“Calle Esparta su virtud;

su grandeza calle Roma;

silencio, que al mundo asoma

la gran capital del sur”1

O debate político institucional argentino desde o início gira em

torno da questão unitarismo-federalismo, com extremos de confede-

ração e até secessão no caso de Manuel Dorrego por dentro em Bue-

nos Aires e, vindo de fora, o uruguaio José Artigas do seu país às pro-

víncias argentinas antiunitárias. Buenos Aires era de início capital da

província, a mais rica, com seu nome, ao mesmo tempo capital da

Argentina. O espanhol Vice-Reinado do Prata incluía Argentina,

Uruguai e Paraguai.O nome na Independência era o de Províncias Unidas do Rio da

Prata, desde as primeiras proclamações argentinas, a Constituição vemdo Congresso Unitário de 1823. Em 1826 o Congresso Nacional criouum Poder Executivo central e Bernardino Rivadavia primeiro presiden-te da Argentina, os anteriores haviam sido das Províncias Unidas. O tí-tulo não deve parecer estranho, o oficial da Holanda é Províncias Uni-das dos Países Baixos, porém lá se optou pelo federalismo desde o co-meço, em seguida sob monarquia e parlamentarismo.

Juan Bautista Alberdi queria um Executivo forte, o que veio a ser abusa-

do por Juan Manuel Rosas, implantando em plena capital o caudilhismo

habitual nas províncias. Facundo Quiroga foi sua máxima expressão no li-

vro clássico de Domingo Faustino Sarmiento com seu nome, Facundo, e o

significativo subtítulo Civilização ou barbárie, primeira edição publicada em

fascículos de jornal em 1845, quando do exílio do autor no Chile.

Buenos Aires renunciou a ser capital da província do mesmo nome,

transferida a La Plata, e passou a sê-lo plenamente de toda a Argenti-

98 � Vamireh Chacon

1 � José Luís Romero, Las ideas políticas en Argentina, México-Buenos Aires, 19.a ed.,2001, pp. 67, 75, 87, 85 e 82.

na, em meio às opções de unitarismo, federalismo e confederação.

Pouco após 1860, o presidente Bartolomé Mitre fez aprovar federal-

mente a Constituição. Em 1854 Mitre proclamava que “hay una nación

preexistente”, à qual Buenos Aires e as demais províncias deviam reco-

nhecer e aceitar antes de mais nada. Mitre criou seu jornal La Nación

para defesa e divulgação deste básico princípio. O presidente Nicolás

Avellaneda consolidou oficialmente Buenos Aires como capital fede-

ral em 1880, daí o obelisco também em seu nome no mais importante

cruzamento de ruas desta cidade, o da Avenida de Mayo com a Aveni-

da 9 de Julho, efemérides da Independência. O projeto cultural pre-

tendia sua europeização pelas imigrações.

O símbolo máximo rural da Argentina, também do Uruguai e do

interior do Rio Grande do Sul, tornou-se o gaucho, dito gaúcho em

português, ou guasca, o vaqueiro, “cow-boy” platino. Sarmiento no Fa-

cundo descreveu-o, analisando e até o mitificando um tanto quanto Eu-

clides da Cunha com o sertanejo em Os sertões, ambos dos pontos de

vista negativo e positivo.

O gaucho paroxítono platino faz parte de uma cultura também po-

lítica autoritária e mesmo violenta: metáfora da liberdade no poema

regionalista argentino Martín Fierro de José Hernández – estóico, lacô-

nico, herói fatalista – com similares nas literaturas equivalentes do

Uruguai e Rio Grande do Sul; ou metáfora da tirania irrompendo das

suas cíclicas guerras civis de atrozes degolas. No Brasil seu “epos” em

prosa foi escrito por Érico Veríssimo em O tempo e o vento, com o frio

minuano trazendo os uivos da natureza e os das paixões dos homens,

em intermináveis combates armados na planície imensa dos pampas

em três países.

Ricardo Güiraldes, em prosa poética, foi quem primeiro tentou

transmitir do gaucho uma imagem psicológica mais completa, o

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 99

próprio autor grande proprietário rural, sua estância em San Anto-

nio de Areco transformada num museu e hospedaria. Güiraldes era

outro senhor da grã-fortuna, afim do Jacinto de A cidade e as serras de

Eça de Queirós: sua Tormes era estância nas planícies do pampa,

em vez de quinta nas montanhas do Alto Douro. Eça passa a viajar

como diplomata de carreira, Güiraldes sai da Argentina já com um

ano de idade, para viver os primeiros quatro de infância em Saint-

-Cloud nos arredores de Paris, seus pais de origem em parte basca,

ricos criadores de gado.

De volta, ele vai ao campo e à praia, tem de fixar-se em Buenos

Aires para estudar o curso secundário e ingressar na universidade, de

início arquitetura, depois na Faculdade de Direito. As primeiras leitu-

ras são Rubén Darío e Leopoldo Lugones, o nicaraguense então já

com maior repercussão internacional que o argentino.Em 1910, aos quatorze, retorna à França passando pela Espanha.

Aos dezesseis viaja pela Itália, Grécia, Constantinopla, Egito, Índia,China, Japão, Rússia e Alemanha com seus pais. Aos dezoito, acom-panhado por eles, vem passear no Brasil em 1914. Tem paixão peloslongos roteiros; recém-casado incursiona pelo Chile, Peru e Antilhas.Terminada a Primeira Guerra Mundial, em 1919 está em Paris, combastante maturidade para frequentar escritores franceses, Jules Roma-ins e Saint-John Perse entre eles, principalmente Valéry Larbaud. Emcarta a este, Güiraldes explica seus retornos à estância no pampa,como “la necesidad de ponerme en contacto con las cosas que pueden servir de base a

mi obra literaria”.2

Para conhecer ainda melhor a Argentina profunda, Güiraldes vai do

pampa ao noroeste onde ela nasceu em Salta e Tucumán, deslumbra-se

100 � Vamireh Chacon

2 � Yvonne Bordelois, Génio y figura de Ricardo Güiraldes, Buenos Aires, Editorial Uni-versitaria de Buenos Aires (Eudeba), 1998, pp. 11-14.

ao vê-las ainda paradas no tempo. Volta a Paris em 1922/1923, férias

no Mediterrâneo em Malhorca. Era sua pendulação de sempre, entre o

telúrico e o universal, busca da síntese de ambos. Entusiasma-se com a

estreia de Jorge Luís Borges, Fervor de Buenos Aires. Muito depois, Borges

renegará as origens regionalistas. Güiraldes virá a conhecer pessoalmen-

te Borges. Outra grande admiração será o esfuziante, porém intenso Le-

opoldo Lugones.

Em 1927 fez a última viagem, gravemente enfermo, para falecer em

Paris aos quarenta e um anos de idade. No anterior, publicou seu Don

Segundo Sombra de duradoura repercussão; deixa póstumo O livro bravo

ampliando a visão do heroísmo com toques nietzschianos, mais O sen-

dero e Poemas místicos em misteriosos tons esotéricos de “aristocrata libe-

ral”, preocupado em ver o progressismo cair na Primeira Guerra

Mundial e rumar para a Segunda em breve.3

Don Segundo Sombra havia sido grande êxito editorial repercutindo na

França. As exéquias de Ricardo Güiraldes em Paris tiveram numerosa

presença de intelectuais franceses. No seu definitivo retorno à Argen-

tina, foi recebido oficialmente pelo presidente Marcelo T. de Alvear e

em trem especial conduzido para sepultamento no pampa de San

Antonio de Areco, onde se criou museu especial em sua honra. Pouco

depois morria o vaqueiro Don Segundo Ramírez, de quem Güiraldes

ouvira muitos dos relatos de Don Segundo Sombra, algo como Guimarães

Rosa entre os de Minas Gerais para Grande sertão, veredas.

O gaucho Dom Segundo Ramírez, ao ajudá-lo a descer ao túmulo, disse

apenas, em sua linguagem guasca: “Aqui é não-mais, patrãozinho.” O

“não-mais” tornara-se “sua terra de sempre”, como ficou escrito na lápide.4

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 101

3 � Idem, pp. 145, 151 e 147.4 � Don Segundo Ramírez: “Aqui es nomás, patroncito” e epitáfio, “Aqui yace RicardoGüiraldes, crucificado de calma, bajo su tierra de siempre”, apud op. cit., p. 157.

Don Segundo Sombra teve a felicidade de encontrar tradutor em portu-guês brasileiro no erudito, porém poeta, teuto-gaúcho Augusto Me-yer, que lhe acrescentou as despedidas dos dois maiores admiradoresargentinos, por Güiraldes também tão admirados: Jorge Luís Borges eLeopoldo Lugones. Este relembrando “a noção de vida como um atode dominação”, “herança do antigo conquistador, cujo idioma o gau-cho conserva em seu castelhano arcaico e saboroso”; aquele num dosseus raros poemas: “Aí estás, mágico e morto. Teu, Ricardo, é agora oaberto campo de ontem, a aurora dos potros”.5

Ricardo Güiraldes, em Don Segundo Sombra, é contraponto ao estra-nhamento de Eduardo Mallea, em História de uma paixão argentina o exal-tado conflito íntimo das velhas heranças culturais europeias e o con-fronto nas novas terras. Tragédia, mais que drama, de tantos escritoresargentinos, por extensão menos ou mais em toda Ibero-Latino-Amé-rica, no dilema tão bem sintetizado por Adolfo Bioy Casares em Me-

mória sobre o pampa e os gaúchos:“Como não tenho resposta, invoco o destino e num murmúrio co-

mento que nem a própria morte há de comover estes gauchos, tão ver-sados numa imemorial solidão”.6

Essa era a época ainda de Ezequiel Martínez Estrada, autor de tam-bém dois clássicos, porém no gênero ensaístico de interpretação das rea-lidades da Argentina profunda, Radiografia do pampa e A cabeça de Golias.

Vários críticos apontaram o parentesco intelectual do MartínezEstrada da Radiografía do pampa com o Sarmiento do Facundo, na oposi-ção entre civilização (cosmopolitismo) de Buenos Aires e barbárie

102 � Vamireh Chacon

5 � Leopoldo Lugones, “Don Segundo Sombra”, La Nación, Buenos Aires, 12 de se-tembro de 1926 e Jorge Luís Borges, “Ricardo Güiraldes”, Elogio de la sombra, 1969.Reproduzidos na tradução de Augusto Meyer, Dom Segundo Sombra, Porto Alegre, L &PM Editores, 2.a ed., 2001, pp. 7-9 e 5.6 � Adolfo Bioy Casares, Memorias sobre la pampa y los gauchos, Buenos Aires, EmecéEditores, 2.a ed., 1986, p. 59.

(insubmissão) das províncias aos cânones importados da Europa pelacapital e por ela impostos. Antagonismo por Alberdi visto como exa-gerado, as culturas seriam capazes de vencer os condicionamentos ge-ográficos e econômicos.7 Radiografia do pampa (Radiografía de la pampa) foipublicada em 1933, com reedições, até que a de 1991 estabeleceu suaversão final, elaborada por especialistas de universidades da Argenti-na, Espanha, Alemanha, França, Canadá e Estados Unidos.

As metáforas são a principal linguagem do texto, metáforas atémesmo kafkianas, com pessimismo por Martínez Estrada racionaliza-do através de Schopenhauer, em meio a impulsos nietzschianos de suasuperação, num grande quadro trágico cultural muito influenciadopelas visões de Spengler. Sem se subestimar a influência de Ortega yGasset: antes da publicação de Radiografia do pampa ele fizera duas visitasa Buenos Aires com grande repercussão entre os intelectuais argenti-nos.8 Entre eles Martínez Estrada muito se aproximou tanto do telúri-co Horacio Quiroga, quanto do drama universal humano em Leopol-do Lugones.9 Por isso, Radiografia do pampa é por alguns chamada de“costumbrismo crítico”10, apesar de ser mais completa a definição por Fer-nand Braudel: “A Argentina de Ezequiel Martínez Estrada é o próprioMartínez Estrada.”11

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 103

7 � Nicolás Shumway, La invención de Argentina (Historia de una idea), Buenos Aires,Emecé Editores, 4.a impr., 2002 (do original em inglês pela University of CaliforniaPress, 1991), pp. 153 e 154.8 � Radiografía de la pampa; edição crítica com Leo Pollmann da Universidade de Regens-burg (Ratisbona), Alemanha, como organizador; Coleção Archivos sob os auspícios daUnesco e Ministérios da Cultura da Espanha e França e coparticipação da Sociedade Esta-tal Quinto Centenário de Espanha; Centro de Pesquisas Latino-Americanas, Nanterre,1991. Vide comentário crítico, de Dinko Cvitanovic, “Radiografía de la pampa en la historiapersonal de Martinez Estrada”, pp. 347 e 346 e também a nota na p.71.9 � Radiografía de la pampa, op. cit., p. 375.10 � Idem, p. 71.11 � Ibidem, p. 349.

Realmente, escritores com a retorcida intensidade de Martínez

Estrada e Euclides Cunha – ensaístas maiores nas suas interpretações do

Brasil e da Argentina, radicalmente vividas, não só profundamente pen-

sadas – são acima de tudo eles mesmos, superando agonicamente todas

as influências intelectuais recebidas. Na política, Martínez Estrada, tão

intenso argentino, preferiu sê-lo em visões dialéticas existenciais, em vez

de adotar nacionalismo linear como o de Ricardo Rojas.12

Radiografia do pampa, antes Facundo (Civilização e barbárie) de Sarmiento,

são sinfonias, em vez de murais pictóricos. Euclides da Cunha, em cla-

ve também própria, fez algo idêntico em Os sertões vindo da terra ao

homem e à luta épica. O “epos” de Martínez Estrada apresenta mais

minúcias culturalistas.

Quais são os que ele denomina “rumos da bússola”?

Atenta leitura apreende os sinais emitidos pela Argentina mais pro-

funda: deserto, isolamento, solidão e distância, inclusive em léguas e

quilômetros, são palavras-conceitos mais presentes.13

Este o cenário do drama, Radiografia do pampa é uma trágica interpre-

tação da Argentina, não em torno de uma guerra, Canudos em Os ser-

tões, e sim de sucessivos e entremeados conflitos, superpondo-se em

vez de se construindo ou anulando-se dialeticamente.

Os primeiros espanhóis são apresentados como aventureiros e não

conquistadores, já Cervantes o reconhecia com realismo autocrítico

acerca do seu próprio povo naquela própria época, Unamuno inter-

preta-o na sua Vida de Dom Quixote e Sancho:

“Te denigrem, povo meu, porque dizem que fostes impor tua fé a

ferro e fogo, e o triste é que não foi de todo assim e sim que ias tam-

104 � Vamireh Chacon

12 � Ibidem, p. 399.13 � Leo Polmann, “ Introducción del coordinador”, in Radiografía de la pampa, op.cit., p. XX.

bém e muito principalmente arrancar ouro aos que o acumularam; ias

roubar”.14

Diogo do Couto, da mesma época de Cervantes na contrapartidaportuguesa das descobertas e conquistas ibéricas, no Soldado prático des-venda e denuncia outro tanto no lado lusitano. O que não costuma sermuito do agrado dos triunfalistas messiânicos em ambos os países,empenhados na louvação política ideológica das supostas predestina-ções salvíficas das suas incursões colonialistas, não só coloniais. Porisso Gilberto Freyre tão bem distinguia luso e hispano-tropicalismosideológicos, diante da lusa e hispano-tropicologia, ciências interdisci-plinares na mais ampla tropicologia dos muitos povos locais e europe-us, africanos e asiáticos nestas regiões.

Martínez Estrada está entre os maiores desmistificadores dasautoelogiosas louvações da hispanidade e europeidade argentinas, eleopta por perquirir as raízes psicossociais profundas. Quando sonha, éà maneira de Goya, para quem os piores pesadelos são os da razão deolhos acordados; Martínez Estrada neste sentido atinge o grau da bru-talidade onírica. Os aventureiros hispânicos, nas imensidões do pam-pa argentino, são senhores do nada, o desengano é o seu estímulo. OEldorado aparece como mítica, irônica e trágica Trapalanda, algocomo a Yokpanatphwa do Sul dos Estados Unidos decadente pós-es-cravocrata nos delírios romanescos de Faulkner, não beneficiada pelautopia capitalista norte-americana.

A dominação surge como represália pelo real aventureiro, mais quedo imaginário civilizador. Novas culturas emergirão como dolorosospartos gerados por violentas fecundações, Gilberto Freyre demonstraestes sadismos e masoquismos também na formação brasileira emCasa-grande & senzala. Martínez Estrada entende as semelhanças:

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 105

14 � Apud Ezequiel Martínez Estrada, Radiografía de la pampa, op. cit., p. 5 e 8.

“Apesar de muito diferirem entre si, os traços comuns de to-

dos, de todos no conjunto, compõem um território cultural e

geográfico indiferenciado, semelhante a uma imensa penín-

sula helênico-turca. A característica fundamental é étnica:

Ibero-América; e dela derivam outras relativas à técnica de

governar, obedecer, viver e ser livre. Tudo o que entendemos

por unidade é Portugal ou Espanha; e o que nos diferencia é

nulo em relação ao que nos assemelha”.

Por outras palavras: Portugal e Espanha legaram ordenadores Esta-

dos à Ibero-América, as sociedades são tumultuadas criações dos seus

miscigenados novos povos, buscando reconstruir e aperfeiçoar suas

próprias instituições. Povos vizinhos, aparentados étnica e cultural-

mente pelos lados ibéricos, índios, africanos e de imigrantes do mun-

do inteiro, tendem a aproximar-se, precisam compatibilizar seus inte-

resses. Há descontinuidades, mas que elas não predominem como no

fraccionamento da Grã-Colômbia de Simón Bolívar em Venezuela,

Colômbia, Equador, e depois Panamá; ou ao modo das Províncias

Unidas do Rio da Prata de Belgrano e San Martín outro tanto em

Argentina, Uruguai e Paraguai. Vice-Reinados espanhóis sucessores

do primeiro, Lima no Peru, enquanto poucas vezes o Brasil esteve di-

vidido em dois, predominando a unidade com capital primeiro em

Salvador da Bahia, em seguida no Rio de Janeiro.

Martínez Estrada prossegue e insiste:

“Tais como enfim resultaram, com o Brasil e a Argentina maio-

res que todo o resto, e Paraguai e Uruguai inversamente exíguos,

os mapas não estão coordenados com os povos, nem os povos,

que constituem uma população em geral muito afim, vivem co-

106 � Vamireh Chacon

ordenados por eles. Poderiam mudar-se de colocação uns e ou-

tros e de imediato seguiriam sendo os habitantes naturais”.15

As experiências de euro-regiões, transfronteiriças imediatas na

União Europeia, demonstram a importância e mesmo necessidade de

articulações econômicas, administrativas e culturais também desse gê-

nero entre Portugal e Espanha. Outro tanto entre cidades do Brasil, às

vezes separadas por uma rua ou um rio, das vizinhas no Uruguai,

Argentina, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Venezuela e mesmo das Gui-

anas. São tantas entre nós, contanto que seus regionalismos não preju-

diquem os conjuntos nacionais a que pertencem, por sua vez articula-

dos em escala maior numa integração continental, mesmo transconti-

nental na Grã-Ibéria linguística provindo de Portugal e Espanha, in-

cluindo também as Áfricas lusófona e hispanófona e Timor Leste.

Martínez Estrada não é escritor regionalista, sequer nacionalista, e

sim de regional a nacional na medida do universal do seu humanismo

que vai de Cervantes a Goethe, no que classifica de América Celtibera

ao mundo.16 Martínez Estrada não é, porém, idealista desfrutável à

procura de aceitação por misericórdia das matrizes. Sua autocrítica

apresenta-se brutalmente construtiva porque desafiante.

Quanto à Argentina, nela Buenos Aires tem a força dos dedos da

mão se esticando em estradas, depois teia ferroviária de aranha, ponto

de chegada e partida, elo portuário com o mundo. O que Martínez

Estrada denomina “incomunicação” deste grande centro ibero-ameri-

cano – nisto paradigmático para os outros, em idênticas diferenças ou

indiferenças de assimilação de heterogeneidades locais e importadas17

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 107

15 � Ibidem, pp. 7, 8, 10, 62, 64 e 63.16 � Ibidem, especialmente nas pp. 63-65.17 � Ibidem, pp. 34-37 e 57.

– está muito bem expresso na síntese de prosa de ficção e ensaísmo

por Eduardo Mallea em História de uma paixão argentina (1940): “Des-

terrados do espírito, desterrados da civilização de que viemos, daquele

nó ancestral”, ao contrário dos com ele ainda intrinsecamente ligados

à maneira da “fértil solidão” de Unamuno, “nada más poderosamente uni-

versal que una soledad fértil”.18

Martínez Estrada aponta os planos “antagônicos e até disjuntivos”

portenhos, já Alberdi dizia: “Não são dois partidos, são dois países;

não são unitários e federais, são Buenos Aires e as províncias”, “Oeste

contra Leste”, no recíproco medo em luta, defesa e fuga, com as enver-

gonhadas astúcias das formas, funções e valores das “pseudo-estrutu-

ras”. Sua incapacidade de articulação na Ibero-América, paradigmati-

camente representada então pela Argentina, evoca a inspiração por

outro paradigma, o da Espanha invertebrada de Ortega y Gasset, radi-

calizada nesse além-mar, o espírito incompreendido por trás ou acima

da letra.

O impacto industrializante precisaria do pressuposto da receptivida-

de civilizatória, inexistente ou escassa naquele tipo, ou tipos, de cultura

das ibéricas às miscigenadas na América. As Faculdades de Agronomia e

Veterinária deveriam ter precedido as de Letras e, antes, ser eliminado o

analfabetismo. Daí mais outras mitologias de valores em suas “transfe-

rências defensivas” e a “ciência da improvisação” assim tornada inevitá-

108 � Vamireh Chacon

18 � Eduardo Mallea, Historia de una pasión argentina, Madrid , vol. 102 da ColecciónAustral de Espasa-Calpe, 6.a ed., 1969, pp. 156 e 157. No prólogo (“Nuevo discursodel método”), Francisco Romero demonstra como a paixão é para Mallea o que a ra-zão é para Descartes: um autêntico método em si e não só para escrever. Isto se sentedesde os títulos dos libros de ficção de autoria de Mallea: Contos para uma inglesa desespe-rada, Rodeada está de sonho (Memórias poemáticas de um desconhecido) e Todo verdor perecerá. Apesarde filósofo, Giovanni Gentile saudou-o quando de sua visita, a convite oficial, na Itá-lia em 1934, onde foi recebido também pelo escritor Cesare Zavattini.

vel, sem assimiladora mediação da historiografia transbordando em au-

tocaricatura exageradamente para melhor, não só pior.19

Ezequiel Martínez Estrada conclui sua Radiografia do pampa com um

debate sobre a civilização e barbárie do Facundo de Domingo Faustino

Sarmiento, no grande eixo de interpretações da formação argentina.

Nela o debate sobre Sarmiento estadista e presidente, não só a respei-

to do escritor e do pedagogo, apresenta-se menos ou mais recorrente.

Martínez Estrada enfrenta essa questão do ângulo da mitologia

dos valores culturais, ao das ideologias políticas, no seu entrelaçamen-

to: a colonização ibérica não aboliu na América a “idolatria dos bárba-

ros” e sim sua ”liturgia”. “Não se incorporava a fé (...) e sim os ícones

e o ritual. O panteão desses mitos não tinha significado, vitalidade,

demiurgia, eram fantasmas. Contudo se chegou a crer neles e a ren-

der-lhes culto”, “ídolos estrangeiros” em prejuízo dos “ídolos locais e

autóctones”.

“Chegou-se a falar francês e inglês; a usar fraque; mas o gaucho es-

tava sob a camisa engomada”:

“Os males eram muito graves, mas os bens que se propu-

nham no seu lugar, pela imprensa, sistema de governo, reite-

rada imitação de Virgílio e hiper-valorização do cosmético

cultural, resultaram todavia piores. Eram os males da aparên-

cia, da paródia, que poderiam durar vigentes maior ou menor

quantidade de anos, porém que enfim tinham de cair...”

Martínez Estrada volta-se contra Sarmiento, “o mais prejudicial des-

tes sonhadores, o construtor de imagens”. Sua promoção de estradas de

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 109

19 � Radiografía de la pampa, op. cit., pp. 143, 153, 217, 221, 229, 233, 241, 243, 244,248-248, 252 e 245-247.

ferro e do telégrafo era “um salto de cem anos no vazio”, “pseudo-es-

trutura” de civilização deixando intacta a Argentina profunda, de refu-

giada na periferia do país a invasora pela periferia da própria capital, a

partir da primeira grande crise da utopia em 1910, “revanche das forças

aborígenes vencidas”. Nota-se aqui o eco da invasão vertical dos bárba-

ros de A rebelião das massas de Ortega y Gasset. Na Argentina seria conse-

quência do Sarmiento que “arranca o que há e planta o que não há”.20

Foi seguido por Rivadavia, primeiro presidente da República

Argentina após os das Províncias Unidas do Rio da Prata, e o minis-

tro Vélez Sarsfield, principal autor do Código Civil argentino, em

grande parte inspirado no projeto de Teixeira de Freitas para o Brasil e

por outros. Alberdi previra o perigo da imposta coletiva alienação, ao

opor-se a Sarmiento, como Davi a Golias, propondo mudança cultu-

ral de baixo para cima, transformação educacional básica através da

educação popular e leis adaptáveis às tradições locais. A instrução for-

mal precisa acompanhar-se pela educação cívica.

O ensaísmo estilístico de Radiografia do pampa avulta nas suas finais

palavras, clamando pela síntese nacional argentina, por extensão, as

dos demais povos ibero-americanos que também tardam:

“O que Sarmento não viu é que civilização e barbárie eram

uma mesma coisa, como forças centrífugas e centrípetas de um

sistema em equilíbrio. Não viu que a cidade era como o cam-

po e que dentro dos novos corpos reencarnavam as almas dos

mortos. (...). Volta a nós a realidade profunda. Temos de acei-

tá-la com valor, para que deixe de perturbar-nos; trazê-la à

consciência, para que se esfume e possamos viver em saúde”.21

110 � Vamireh Chacon

20 � Idem, pp. 241, 243 e 253.21 � Ibidem, pp. 254, 251, 255 e 256.

O conflito entre país real e país legal perpassa a maior e melhor parte

da autocrítica cultural política dos ibero-americanos; no Brasil desde Eu-

clides da Cunha a Alberto Torres, Oliveira Viana e, por caminhos dife-

rentes, tanto na antropologia cultural em Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro

e Roberto Da Matta, quanto pela sociologia cultural política weberiana

de Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, mesmo sob o marxis-

mo inicial no Brasil por Caio Prado Júnior. O que não conseguiu impedir

que a senzala acabasse invadindo a casa-grande não só nas cidades nordes-

tinas, quanto nas outras metrópoles e megalópoles brasileiras e em toda a

Ibero-Latino-América, fenômeno cada vez mais se universalizando na

mundial revolta dos fatos contra os códigos antigos e novos.

Já em 1940 Martínez Estrada pressentia o alastramento do proble-

ma em A cabeça de Golias (Microcospia de Buenos Aires), onde começa, em

epigrafe literária, como escritor que sempre foi, citando carta de Rai-

ner Maria Rilke:

“Sabe você que Paris me é infinitamente estranha e hostil?

Há grandes cidades que parecem desditosas e tristes de se-

rem grandes. Estendem-se sempre, mas uma secreta nostalgia

as devolve a si próprias. Seus tumultos não afogam a voz in-

terior que lhes repete sem cessar: uma grande cidade é contra

a natureza”.

Mesmo assim não nos iludamos.

Martínez Estrada não tem mensagem regressista, a questão consis-

te em como enfrentar o presente e preparar o futuro. Para isto a reali-

dade tem de conhecer a si mesma.

Na Introdução à segunda edição, ele declara buscar “um pensamen-

to e um idioma (...) particularmente argentinos”, numa dialética visão

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 111

através de Buenos Aires, desde 1810 se associando vibrante ao movi-

mento independentista, em diminuição ou até prejuízo das partes a que

se propunha representar e defender: processo resultante da macrocefalia

portenha, o gigante Golias com cabeça maior que o corpo.22

Em 1870 ainda havia maioria de portenhos em Buenos Aires. Qu-

ando (1880) Lucio V. López escreveu A grande aldeia, desatava-se o nó:

Buenos Aires deixara de ser capital da província do mesmo nome e

tornava-se mais de si que do próprio país, em estranha, embora previ-

sível, hipertrofia. Clemenceau, pouco depois, ao visitá-la, deslumbra-

va-se com o bairro residencial de Palermo arborizado às margens do

Rio da Prata. Mudara completamente a propriedade rural que fora do

tirano Rosas. Por mais que os portenhos a quisessem parisiense, Mar-

tínez Estrada em meados do século XX (Jorge Luís Borges ao seu tér-

mino) viam madrilenha a substância última de Buenos Aires, menos

impessoal, mais individualista.

A Buenos Aires antiga se tinha comemorado com a construção da

Pirâmide, a moderna pela do Obelisco, ambos apontando para o céu,

não para os lados, nem para dentro. Buenos Aires nasceu e renovou-se

procurando superar-se por cima. Aqueles monumentos se tornaram

seus símbolos distintivos, autoafirmadores, identificantes inclusive

para os estrangeiros.

Já no século XIX, não faltaram os proponentes de mudança da ca-

pital. Duas vezes o presidente Sarmiento teve de vetar leis determinan-

do a transferência para a vizinha Rosário. Ele pretendia uma nova, de-

nominável como Argirópolis, a ser construída na vizinha ilha Martín

García, para ser eventual capital da Argentina, Uruguai e Paraguai,

num republicanizado federalista Vice-Reinado do Prata. Juan Do-

112 � Vamireh Chacon

22 � La cabeza de Goliat (Microscopía de Buenos Aires), Buenos Aires, Editora Losada, 7.a

ed., 1983, pp. 11, 19, 236 e 27-31.

mingo Perón também sonhou com a reunificação platina, mesmo sem

mudar a capital. Raúl Alfonsín – o que preferiu aceitar o Brasil na ten-

tativa do Mercosul de reaproximar institucionalmente a Argentina, o

Uruguai e o Paraguai – chegou a propor a transferência para Viedma

na Patagônia. Buenos Aires conseguia resistir a tudo.Uma cidade se percorre a pé, não em automóveis ou ônibus em trá-

fegos atravancados, muito menos por trens subterrâneos, o de BuenosAires o primeiro construído na América Latina. Só assim se conhece amegalópole, desde o tumultuado centro de tabuleiro de xadrez nasruas Florida, Corrientes, Callao e Carlos Pellegrini, aos mistérios dosbairros de ricos, classe média e pobres, cada qual com espírito incon-fundível: a Boca, onde nasceu o tango, Boedo onde se compra mais ba-rato, resistindo às derrubadas das casas pela fúria imobiliária. No cen-tro da metrópole, a Casa Rosada, sede do Poder Executivo, não a doLegislativo nem a do Judiciário.23 Perto do seu berço intelecutal jesuí-ta, a Maçã das Luzes (“La Manzana de las Luces”), entre as ruas Alsina,Moreno, Peru e Bolívia.

Roma ou Cartago, qual a mais íntima vocação de Buenos Aires?Martínez Estrada tenta evitar o monopólio do elogio heroico a

uma e o prejorativo comercial à outra, pois também há heróis no co-mércio e, quando não se confundem, pelo menos não podem se sepa-rar na vida concreta e prática. Ademais, são notórias as importantes li-vrarias em Buenos Aires, ao lado das enormes bibliotecas públicas,com grandes escritores entre seus principais diretores: o argentinizadofrancês Paul Groussac, [“canoro e luminoso” Guillermo EnriqueHudson] e o ardente e erudito Leopoldo Lugones, podemos acrescen-tar-lhes Jorge Luís Borges, que nunca quis sua obra limitada por clas-sificações e geografias.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 113

23 � Idem, pp.85, 125, 93, 212, 213, 65, 149, 28, 113, 72, 73, 78. 79 e 88.

As metrópoles e megalópoles, tão cansativas na vida quotidiana,

costumam dormir pouco após o anoitecer. Não, porém, Buenos Aires,

onde a população, mesmo fatigada, ainda se despede ruidosamente no

seu centro urbano e nos dos bairros, nisso Buenos Aires também é

muito mais madrilenha que parisiense. A deusa Juno tinhas duas faces,

o Golias de Buenos Aires quatro, cada uma olhando os pontos cardiais

da sua vida: a leste o Rio da Prata, caminho do mundo; um pequeno

rio, Riachuelo, na direção da Patagônia ao sul; o pampa das províncias

mais rivais a oeste e o Vice-Reinado se projetando ao norte no Uru-

guai e Paraguai.

Já Darwin havia comentado, em livro de viagem, o desapareci-

mento dos pássaros sobre Buenos Aires, afugentados pela urbaniza-

ção maciça, depois só restando espaço e atrativo aos pardais trazidos

pelos imigrantes com ambas descendências tornadas afoitas e não

mais submissas, gaivotas do vizinho rio-mar e pombos gordos de tão

mal-acostumados ao demasiado comer pelas mãos dos turistas nas

praças principais...24

Martínez Estrada reconhece o que deve a Ortega y Gasset, o “pri-

meiro conferencista que ensinou a arte magnífica do ator e da comédia

das ideias”, “sempre será lembrado porque foi também o primeiro a

dizer-nos com franqueza, desprovida de implicância, o que lhe pare-

cíamos ser”; ao Ganivet do Idearium español a repulsa a “uma ideologia

invariável de povos diversos, de diversas origens e história”, “etiqueta”

e “rótulo” uniformizadores e inúteis quando não prejudiciais, “pois, a

filosofia mais importante, de cada nação, é a sua própria”, “cimento

sobre o qual se há de construir, quando o artificial desmorona”.25

Ortega, e outros escritores e artistas estrangeiros, após conferências

114 � Vamireh Chacon

24 � Ibidem, pp. 121, 129, 123, 124, 138, 128, 262, 263, 243, 332, 87, 242, 243,246 e 250-252.

reunindo Martinez Estrada, Jorge Luís Borges e outros com Victoria

Ocampo, grande dama da cultura argentina à frente, no tradicional

Café Tortoni.

Daí advém o ensaísmo de Martínez Estrada, de anteriores e poste-

riores obras mais literárias, com Radiografia do pampa e A cabeça de Golias

de permeio. Ele oscila entre as raízes de José Hernández, em Morte e

transfiguração de Martín Fierro (Ensaio de interpretação da vida argentina), 1948,

em dois tomos inclusive com a íntegra do texto do poema analisado, e

Sarmiento, biografia crítica de 1946, mais As invariantes históricas no Facun-

do no ano seguinte, além de O irmão (Horacio) Quiroga (1966): básicas

matrizes do autosentir e autopensar argentinos. Acrescenta a confis-

são de outras fontes do seu estilo e imaginário em Arautos da verdade

(Montaigne – Balzac – Nietzsche), 1958. Estudiosos de Martínez Estrada

demonstram como, para ele, o ensaísmo era sempre a busca da

autoconsciência ibero-americana.26

Tendo sofrido na própria pele os altos e baixos da fortuna, socorrido

por Victoria Ocampo grande dama da cultura argentina,27 mais preocu-

pado e ocupado com as vicissitudes do seu país, que com as dele próprio,

Ezequiel Martínez Estrada poderia ter dito “dói-me a Argentina”, tanto

quanto Unamuno com idêntica pungência dizia “me duele Espana”.28

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 115

25 � Ibidem, pp. 167, 156 e 157.26 � Comentário de Dinko Cvitanovic na edição crítica Radiografía de la pampa, op. cit.,p. 51.27 � Vide, por exemplo, a biografia por María Esther Vázquez, Victoria Ocampo (Elmundo como destino), Buenos Aires, Seix Barral, 2.a ed. 2002, pp. 20, 250 e 254.28 � Dinko Cvitanovic, “Radiografía de la pampa en la historia personal de MartínezEstrada”, um dos apêndices à edição crítica de Radiografía de la pampa, também evoca ainfluência de Ortega y Gasset, op. cit., p. 346. Outros apêndices críticos são de autoriade professores de universidades da Argentina às dos Estados Unidos, Canadá, Alema-nha, França e Espanha.

Jorge Luís Borges: argentinoe cosmopolita

Não há cultura inocente.

Dizer que não se está a fazer política, é uma das formas de fazê-la.

Jorge Luís Borges passa por apolítico, até seus íntimos pretendem

testemunhá-lo, mas envolvem-se em contradições, ao apontarem Bor-

ges, tão cerebral, deixar-se levar por paixões políticas inclusive motiva-

das pelos seus interesses de classe e família.1

Volodia Teitelboim – que tem a grandeza de estudar objetivamen-

te Borges, apesar de ele, Teitelboim, haver estado sob perseguição chi-

lena na época em que Borges apoiava abertamente os regimes militares

argentino e chileno – Teitelboim interroga-se e responde: “Borges

1 � Estela Canto, amor platônico dele, segundo ela, conheceu e conviveu mui-to de perto com Jorge Luís BORGES ao longo de décadas, abruptamente inter-rompidas. Ela testemunha os elos políticos e de classe dele em Borges a contraluz,2.a ed, Madrid, n.o 93 da Colección Austral, Espasa Calpe, 1999, pp. 33-48.BORGES entreteve diversos relacionamentos muito ambíguos com mulheres,até casar-se, já tarde, com Maria Kodama, de mãe japonesa e pai uruguaio, nasci-da na Argentina.

apolítico? Não parece tão certo. Já conhecemos suas proclamações

anarquistas e comunistas de juventude”.2

O próprio Borges mais uma vez se encarregou de explicar-se, em

seu Um ensaio autobiográfico, ter começado politicamente pelo elogio da

“revolução russa, a fraternidade do homem e o pacifismo”, em livro

destruído pelo autor, Os salmos vermelhos ou Os ritmos vermelhos, em versos

livres em parte publicados... Eram influências de Pio Baroja, confessa

Borges, e da recente Primeira Guerra Mundial vista quase de perto, de

Genebra, onde seus pais passavam temporada, a alongar-se por cinco

inesquecíveis anos de formação. Fiel a eles, Borges optará por passar

seus últimos dias na Suíça. Interessante também a iniciação de Borges

na poesia por Walt Whitman, cujo intenso amor ao povo deve ter

contribuído para aquela fase inicial.

Em lenta volta a Buenos Aires, a família de Borges passa quase três

anos na Espanha, em Sevilha e Madrid interessa-se pelo ultraísmo a

ponto de trazê-lo à Argentina e por ele, depois, desinteressar-se.3

Daí em diante, Jorge Luís Borges entra numa espiral nacionalis-

ta-cosmopolita, pendulando, por assim dizer dialeticamente, entre os

dois extremos, dos vários do seu temperamento inquieto e paradoxal.

No Brasil, Mário de Andrade, já em 1928, captou muito bem

esta bipolaridade íntima, entre outras, em Borges: “eu falei que o

nacionalismo argentino era mais inconsciente que rotular”. “Quem

118 � Vamireh Chacon

2 � Teitelboim, Volodia. 2.a ed. Los dos Borges, Buenos Aires, Editorial Sudamerica-na, 1996, p. 149. O próprio BORGES reconhece no seu Um ensaio autobiográfico, a pro-pósito da sua juventude, sob o impacto da Primeira Guerra Mundial: “eu ainda eraanarquista, livre-pensador e a favor do pacifismo”. Este texto foi ditado originalmenteem inglês ao seu colaborador Norman Thomas di Giovanni, An Autobiographical Essay(1970), aqui cit. na tradução em português Um ensaio autobiográfico (1899-1970), SãoPaulo, Globo, 2000, pp. 58 e 59.3 � Um ensaio autobiográfico, ob. cit., pp. 67-70.

se preocupa mais com ele é Jorge Luís Borges. Este poeta e ensaísta

me parece a personalidade mais saliente da Argentina. Depois de

Ricardo Güiraldes”, o autor do celebrado romance gauchesco Don

Segundo Sombra.4

Mário de Andrade referia-se aos livros de poemas Fervor de Buenos

Aires (1923) e Luna de enfrente (1925) e ao de ensaios Inquisiciones

(1925), todos por Borges renegados, mais, na mesma linha argentinis-

ta, El tamaño de mi esperanza (1926), El idioma de los argentinos (1928), am-

bos de ensaios, e Cuaderno San Martín (1929) com nome não por conta

do Libertador e sim pelo tipo (!) de caderno usado, todos igualmente

refugados pelo autor por idênticos motivos.

Na sua busca de universalidade, Borges confessava haver concluído

pela necessidade de “evitar hispanismos, argentinismos, arcaísmos e

neologismos” na sua estilística. Mas, antes, “Fui ao outro extremo:

tentei ser o mais argentino que pude. Peguei o dicionário de argenti-

nismos de Segóvia e introduzi tantos termos locais que muitos de

meus compatriotas mal conseguiram entender. Como perdi o dicioná-

rio, não estou seguro de que eu mesmo possa entender o livro, de

modo que o abandonei por estar além de qualquer esperança” (sic).5

Apesar do expresso repúdio a estas obras por Borges, a viúva Maria

Kodama decidiu republicá-las após o falecimento do autor, e elas vêm

demonstrando ainda ter um grande público favorável, ao lado das

mundialmente aclamadas de sua autoria.

Rafael Olea Franco demonstrou como o crioulismo, sinônimo de

argentinidade literária, permaneceu subjacente atuante em toda pro-

dução de Borges: crioulismo versus europeísmo, nacionalismo versus

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 119

4 � Mário de Andrade. “Literatura Modernista III”, São Paulo, Diário Nacional, 13de maio de 1928.5 � Um ensaio autobiográfico, ob. cit., p. 82.

cosmopolitismo, emergindo, por exemplo, na sua mudança de opi-

nião sobre Sarmiento, o presidente pedagogo da Argentina, diante de

Rosas, o ditador xenófobo, um urbano (a “civilização”) e o outro ru-

ral (a “barbárie”) como se vê no clássico Facundo, biografia sociológica

de um dos caudilhos por Sarmiento incansavelmente combatidos na

prática e na teoria.6 Estela Canto, sua íntima por décadas, vai adiante,

testemunha a inseparabilidade entre Borges e Buenos Aires num rela-

cionamento profundo e indissolúvel de amor e ódio recíprocos:7 Jorge

Luís Borges conseguiu, muito no seu estilo de vida paradoxal, não só

literário, ser pelos seus conterrâneos o mais amado e o mais odiado

dos autores e dos personagens da sua época, com frequência ao mes-

mo tempo...

Os motivos desta repulsa–atração vêm de longe, já o pai e a mãe de

Borges desde criança lhe ensinavam as trágicas sagas das famílias pa-

terna e materna, esta com ainda maior intensidade passional.

O avô Borges, coronel, era, “em princípios da década de 1870, co-

mandante-em-chefe nas fronteiras do norte e oeste de Buenos Aires”.

Morreu em combate numa das guerras civis argentinas. Romantica-

mente, na “sua derrota em La Verde, envolto em um poncho branco,

montou um cavalo e, seguido por dez ou doze soldados, avançou de-

120 � Vamireh Chacon

6 � Rafael Olea Franco, El otro Borges, el primer Borges, México, Fondo de CulturaEconómica, 1993, pp. 108, 109, 102, 103 e 105-108.7 � Estela Canto insiste longamente na fundamental argentinidade de Jorge LuísBorges, tanto por opção, como ele reconhecia, quanto por imposição das circunstânci-as mais profundas de formação e até de deformação pessoais, desde o berço e ao longoda maior parte da vida em Buenos Aires, daí Borges ser tão desta cidade, isto é, porte-nho, como se diz. Vide, mais uma vez, Borges a contraluz, ob. cit., pp. 11, 48, 56, 57, 202,69, 64, 65 e 53. Alicia Jurado, outra colaboradora de Borges, também testemunha avisceral paixão de Borges pela Argentina e Buenos Aires em Génio y figura de Jorge LuísBorges, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 3.a ed., 1996 (1.a em1964), p. 164 e passim.

vagar em direção às linhas inimigas, onde foi atingido por duas ba-

las...” O pai de Borges gostava de lembrar isso ao filho.

Um dos bisavôs maternos, Suárez, também coronel, “comandou o

famoso ataque de cavalaria peruana e colombiana que decidiu a Bata-

lha de Junín, no Peru. Essa foi a penúltima guerra sul-americana pela

independência. Embora fosse primo em segundo grau de Juan Manuel

Rosas, ditador na Argentina de 1835 a 1852, Suárez preferiu o des-

terro e a pobreza em Montevidéu a viver sob uma tirania em Buenos

Aires. Suas terras foram, evidentemente, confiscadas, e um dos seus ir-

mãos foi executado”. A mãe gostava de lembrar isso ao filho.

Donde Jorge Luís Borges conclui, com autoironia bem típica sua:

“Assim, de ambos os lados da família tenho antepassados militares;

isso talvez explique minha nostalgia desse destino épico que as divin-

dades me negaram, sem dúvida sabiamente”.8

Cedo falecido o pai, a mãe, antes do filho, protestou de público ao

ver a chegada do coronel populista, autopromovido general, Juan Do-

mingo Perón, ao poder. A mãe, presa pela polícia política peronista,

confirmou, aos olhos do filho, o que para ele era o regime de Perón.9

Daí a adesão dos Borges aos militares que depuseram Perón.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 121

8 � Um ensaio autobiográfico, ob. cit., pp. 15, 16, 20 e 21.9 � A mãe de Borges, Leonor Acevedo – descendente de cristãos-novos portugue-ses (cuja ascendência lusa se combinava com a dos Borges paternos de Moncorvo),mais motivo de grande enaltecimento pessoal, repetidas vezes, para o filho – era umacatólica liberal conservadora e contra o populismo de Perón, depois despeitado porsua esposa Evita não receber homenagens do Vaticano. Por essas e outras, Dona Leo-nor, em companhia da filha Norah, foram presas pela polícia política peronista numaruidosa manifestação de protesto no centro de Buenos Aires, o que evidentemente ser-viu para cada vez maior repulsa do filho contra o peronismo. Estela Canto privava daamizade dos Borges naquela fase e deu testemunho no seu livro Borges a Contraluz. ob.cit., pp. 47, 48, 68 e 92.

Entende-se: estes militares reintegraram Borges na direção da Bibli-

oteca Nacional, da qual havia sido demitido com humilhação. Borges,

em crescente reação, foi ao ponto de apoiar publicamente a ditadura

chilena de Pinochet, o que talvez lhe tenha causada a perda do Prêmio

Nobel, para o qual estava muito celebrado pela imprensa mundial.10

Em tempo, durante a Guerra das Malvinas (lembremos também a

admiração de Borges pelos britânicos, herdada da avó inglesa...), Bor-

ges voltou-se contra a ditadura militar no seu país e em todo o conti-

nente, como se vê na sua resposta, em 1984, a um jornalista (“E o que

o senhor pensa sobre os militares latino-americanos?”): “Uma calami-

dade, realmente. Mas veja: quando eles tomaram o poder na Argenti-

na, eu acreditava neles”. “Eu falei contra os militares quando eles ain-

da estavam no poder e era perigoso fazê-lo. De modo que minha cons-

ciência está tranquila”.11

O desdém de Borges pelos políticos, aliás antigo, insere-se no seu

elitismo intelectual, relativismo filosófico e niilismo religioso, envol-

tos na sua erudição humanística e estilo literário.

O relativismo filosófico borgiano está muito bem analisado por

Juan Nuño em La filosofía de Borges, onde se demonstram as influências

recebidas principalmente do ultraidealista inglês Berkeley, dele a Plo-

tino, enfim a Platão, com a preocupação central girando em torno da

irrealidade do tempo em ciclos de pesadelos, no caso de Borges pesa-

delos até pessoais, pesadelos de cego.

122 � Vamireh Chacon

10 � Teitelboim (ob. cit., pp. 226-228) descreve reações negativas contra Borges noConselho da Fundação Nobel em Estocolmo, a propósito do seu apoio explícito e ve-emente à ditadura de Pinochet no Chile (ademais de apoios dele, então, também à di-tadura militar argentina, só muito depois repudiados).11 � Entrevista a Renato Modernell na revista Status, São Paulo, agosto, 1984, sobo título “Um Encontro de Status com gente muito importante”.

Assim Borges evita Heidegger (“Heidegger inventou um dialeto

alemão, nada mais”). Lembre-se também o interesse de Borges pelo

empirismo de Hume e até pela lógica analítica de Korzybski, na busca

da impossível exatidão.12

Neste trágico impasse, o Borges final crê na solução em Buda13, o

que o devolve a Schopenhauer, sua primeira influência filosófica,14

Schopenhauer acreditando encontrar no Nirvana oriental a solução

das suas dúvidas racionalistas ocidentais. Ainda tão ocidental, Borges

fica na admiração, não vai à adesão a Buda. Permanece a angústia pro-

funda em Borges. Portanto, não é de estranhar sua preferência extre-

mada por Unamuno (“o primeiro escritor do nosso idioma”)15 e seu

paralelo desprezo pelas amenidades de Ortega y Gasset.16

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 123

12 � Juan Nuño, La filosofía de Borges, México, Fondo de Cultura Económica, 1986,pp. 10, 133 e 134.13 � Buda (coletânea por Jorge Luís Borges e Alicia Jurado), Madrid, Alianza Edi-torial, 2000.14 � Schopenhauer permaneceu o autor filosófico mais preferido por Borges do começoao fim da vida, como se vê no seu final Um ensaio autobiográfico (ob. cit., p. 44): “Enquanto vivía-mos na Suíça, comecei a ler Schopenhauer. Hoje, se tivesse de escolher um único filósofo, euo escolheria. Se o enigma do universo pudesse ser formulado em palavras, penso que essaspalavras estariam na obra dele. Eu o li muitas vezes em alemão...” Borges, naquele livro (brevecomo os dele), explica ter aprendido alemão quando adolescente estudante de liceu na Suíça,mais por conta própria. Gostou muito do expressionismo alemão, a seu ver superior aos ou-tros modernismos vindos da França, não lhe agradando, porém, o romantismo tido e havidocomo tão fundamental na Alemanha, muito menos o iluminismo prototípico em Kant. “Naliteratura alemã eu procurava algo germânico [...], mas só o encontraria, mais tarde, no inglêse no escandinavo antigos” (idem, pp. 42-44). Mesmo assim incluiu o idioma alemão, ao ladodeles, num dos seus poemas de louvor: “doce língua da Alemanha, te escolhi e busquei soli-tário [...]. Hoje, na linde dos anos cansados, te diviso/ distante como a álgebra e a lua”, pois“meu destino é a língua castelhana” (“Ao idioma alemão”).15 � “Presença de Unamuno” nas Obras completas também em tradução no Brasilpela Editora Globo, São Paulo: 2001, IV vol., p. 289.16 � Canto (ob. cit.) testemunha-o (p. 253).

Daí não haver também surpresa diante da repulsa de Borges a Pa-

blo Neruda, que em vão o procurou pessoalmente, e mesmo ao huma-

nismo social tão puro e despretencioso em Gabriela Mistral. As op-

ções de Jorge Luís Borges iam noutra direção muito diferente, tanto a

André Malraux quanto a Ernst Jünger: ao primeiro desejava que rece-

besse o Prêmio Nobel e ao segundo chegou a visitar pessoalmente e

com ele entreter longo diálogo, menos sobre filosofias de vida que so-

bre pormenores dela.17

Ao ficar ao mesmo tempo com Jünger e Malraux, Borges demons-

trava pairar acima da política fascista e antifascista, embora nem uma

posição, nem outra, nem de longe esgotasse cada um destes, por mais

que adversários e adeptos tentassem a isto limitá-los. O interessante a

respeito, na época, foi a obra do então iniciante Jorge Luís Borges ter

atraído a atenção nada menos que de Drieu La Rochelle de visita a Bue-

nos Aires18: Drieu em tão acidentado itinerário de herói nacional na

Primeira Guerra Mundial a anti-herói colaboracionista na Segunda.

Em defesa de Borges, diante das intermináveis acusações posterio-

res em relação às suas simpatias autoritárias senão totalitárias, lem-

bre-se ter ele protestado contra os triunfos militares nazistas, ao auge

em 1940, e seu regozijo com as derrotas deles em 1944.19

124 � Vamireh Chacon

17 � Teitelboim, ob. cit., pp. 190-193, 196, 241 e 242, reproduz as anotações deJünger sobre seu longo diálogo com Borges na Alemanha em 27 de outubro de 1982,e, em entrevista ao brasileiro Álvaro Alves de Faria, Borges insiste que “seu candidatoao Nobel sempre foi André Malraux”, o “grande Malraux”, Borges (O mesmo e o outro),São Paulo, Escrituras, 2001, p. 40.18 � Teitelboim, ob. cit., p. 260.19 � Borges contra os nazistas em “Definição de germanófilo” (Obras completas, ob.cit., IV vol., p. 514): “O hitlerista, sempre, é um rancoroso, um adorador secreto, e àsvezes público, da ‘esperteza’ foragida e da crueldade”; e “o grau físico de minha felici-dade quando me comunicaram a libertação de Paris”. “Anotação ao 23 de Agosto de1944” (Otras inquisiciones, Madrid, Alianza Editorial, 1976, p. 130).

Quanto ao regime militar argentino, Borges dele esperava um anti-

populismo dirigido contra Perón20, substituído por populismo ainda

pior porque belicista na Guerra das Malvinas21, para decepção de Bor-

ges, culminando no mútuo repúdio entre ele e aqueles militares.22 O

caso de Pinochet foi de muito maior complicação para Borges, dado o

maior envolvimento deste com aquele.23 Terminando pela generaliza-

da decepção borgiana diante de todos os militaristas latino-america-

nos, a quem acabou dedicando acerbas condenações por suas incom-

petências e seus desmandos.24

Antes de Borges, era análoga a tragédia de Leopoldo Lugones, atraí-

do pela ilusão militarista, da qual fez vibrante elogio no seu A hora da es-

pada, sua decepção o levando ao suicídio. A relação Borges-Lugones foi

do elogio ao afastamento e à reaproximação daquele diante deste.

Após a Guerra das Malvinas, em 31 de dezembro de 1982, no jor-

nal El Mercurio de Santiago do Chile, Borges declarava textualmente:

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 125

20 � Canto, op. cit., p. 245.21 � María Esther Vázquez relata uma tentativa de suicídio de Borges em julho de1982, pouco depois da derrota militar argentina diante dos britânicos na Guerra dasMalvinas (Borges. Esplendor y derrota, Barcelona, Fábula Tusquets Editores, 1999, pp.314 e 315), durante a qual ele se dissociara publicamente da causa argentina e elogiaraos britânicos. Terá sido mera coincidência?... Ou mais uma das profundas contradi-ções borgianas???22 � Vide Teitelboim, ob. cit., pp. 211 e 212, contudo também a p. 221.23 � Vide nota 11.24 � Borges por um lado declarava protesto contra os oficiais argentinos que havi-am sacrificado, por incompetência, os despreparados soldados argentinos (entrevistaa Roberto d’ Ávila e Walter Salles Jr em Borges no Brasil org. por Jorge Schwartz, SãoPaulo, Editora UNESP-Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, p. 532) e,por outro, prometia prefácio a Rubén Oscar Moro, patriota historiador de La guerrainaudita (Historia del conflicto del Atlántico Sur), Buenos Aires, Edvern, 2000, p. VIII). Estae outras contradições, políticas e filosóficas sublimadas literariamente, podem tê-loinduzido à tentativa de suicídio da nota 21.

“No mundo há atualmente um erro ao qual todos temos propensão,

do que também eu tenho sido culpado: este erro se chama nacionalis-

mo. É causador de muitos males. Eu, por exemplo, até pouco tempo

me sentia orgulhoso dos meus antepassados militares. Agora, não”.

Acontece que um dos historiadores argentinos da Guerra das Mal-

vinas, Rubén Oscar Moro, relata haver procurado em casa Jorge Luís

Borges, para pedir-lhe o prefácio ao seu La guerra inaudita (Historia del

conflicto del Atlántico Sur), e Borges aceitou, relembrando seu avô o coro-

nel Borges tombado numa das guerras civis argentinas. Muito pouco

tempo depois, Borges faleceu sem concluir a tarefa. Contudo, aquele

autor dedica-lhe o livro e começa-o com um dos últimos poemas bor-

gianos (sobre Caim e Abel), que termina assim: “Enterraram-nos jun-

tos. A neve e a decomposição os conhecem. O fato referido ocorreu

num tempo ao qual não podemos entender”.25

Mais uma das tantas fundamentais contradições de Jorge Luís

Borges?

Claro que sim, mas, nós todos, não somos menos ou mais contradi-

tórios?... As novas gerações argentinas vêm conseguindo entender as

fontes das contradições de Borges.25

126 � Vamireh Chacon

25 � Pedro Orgambide mostra como as atitudes políticas de Borges estão enraiza-das “em seu próprio pensamento político”, de difícil análise. Seus contemporâneosMartínez Estrada e Eduardo Mallea haviam optado por visões opostas da Argentina:Estrada, a visão objetiva, ensaística; Mallea, a subjetiva, novelística. Borges declara-va-se mais “poeta”, que “intérprete da realidade”. Acontece que Leopoldo Lugones,um dos seus poetas prediletos, foi dos grandes poetas argentinos e veio do socialismouniversalista ao “nacionalismo imperial” e ao “culto da coragem”, itinerário frequentena época, décadas de 1920 e 1930, inclusive entre intelectuais (vide Orgambide, Pe-dro. “Borges y su pensamiento político” in Antiborges, compilações e comentários reu-nidos por Martín Lafforgue, Buenos Aires, Ediciones Argentina Javier Vergara Edi-tor-Grupo Zeta, 1999, pp. 257, 271, 272 e 261). O comportamento político de Bor-ges complicava-se pelo seu gosto do “paradoxo como provocação”(p. 258).

O crítico Juan Nuño, que foi o primeiro a alongar-se na subjacente

filosofia de Borges, demonstrou o seu básico solipsismo (Borges sem-

pre cita favoravelmente Berkeley), sua consciência do dilema moral

(“Ainda ignoro a ética do sistema por mim esboçado”), portanto a au-

sência nele, Borges, sequer de um refugium peccatorum. Enfim, na última

inclinação na direção de Hume (do idealismo alemão Borges só aceita

Schopenhauer na constatação da necessidade de total desprendimento

dos sentimentos, não só das paixões, exceto a estética, noutra grande

contradição, como se vê no seu ensaio sobre Swedenborg), conclui

sob o brutal impacto da realidade: “Negar a sucessão temporal, negar

o eu, negar a ordem astronômica, são desesperos aparentes e consolos

secretos. Nosso destino [...] é espantoso porque é irreversível e de fer-

ro. O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me

arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o ti-

gre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo desgra-

çadamente é real; eu, desgraçadamente, sou Borges”. Ao término da

vida, foi que acabou aceitando: “A já avançada idade me ensinou a re-

signação de ser Borges”.26 Textualmente: “El tiempo está viviéndome”.

O médico, que assistiu seus derradeiros momentos, testemunhou

que nunca vira um paciente tão indiferente à morte. Mesmo assim um

padre católico e um pastor protestante foram para a beira do seu tú-

mulo, na hora do sepultamento em Genebra, reivindicar suposta con-

versão final de Jorge Luís Borges27... Dele que certa vez polemizou

com um bispo católico argentino, sobre a existência de Deus28, e que,

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 127

26 � Nuño (ob. cit., p. 136) comenta-o extensamente.27 � Teitelboim, ob. cit., pp. 298, 306 e 307.28 � Foi com o bispo de Jujuy, norte da Argentina, onde Borges havia pronunciadouma conferência na universidade local e dissera que era ateu. O incidente repercutiuintensamente nos jornais de Buenos Aires (vide Faria, ob. cit., pp. 36 e 37).

mais de uma vez, reconheceu a única influência religiosa mais íntima,

proveniente da avó metodista inglesa29...

A minha própria explicação consiste na permanente argentinidade

pessoal de Borges, em especial sua portenhidade, isto é, a permanência

de entranhado amor à sua portenha Buenos Aires querida, tão mutan-

te como tudo na vida, em mudanças nem sempre aceitas por cada um

de nós: este lhe foi o derradeiro refúgio afetivo profundo, mais que va-

gamente psicológico, muito menos filosófico. Seus amigos mais pró-

ximos testemunham a complexa relação amor-ódio de Jorge Luís Bor-

ges com a Argentina em geral e Buenos Aires em especial, onipresente

em tudo que disse e escreveu, de modo direto ou indireto, em menor

ou maior intensidade, mas sempre, sempre, presente. Relação muito

típica da elite argentina, em especial a de Buenos Aires.

Este cosmopolita assumido – que dizia pertencer à literatura uni-

versal e não propriamente à argentina, daí proibir a republicação pós-

tuma dos seus primeiros livros, O idioma dos argentinos, O tamanho da minha

esperança, não só o polêmico Inquisições – o cosmopolita assumido que

preferiu agonizar e morrer na Genebra querida da adolescência, em

vez de receber em Buenos Aires as homenagens finais às quais foi tão

instado nos últimos momentos, o cosmopolita repetiu, intermitente,

ao longo da vida, a sua profunda, inerradicável, argentinidade em au-

tênticos literais atos de fé: “Pertencer a um país é, antes de tudo, um

ato de fé”. “Que significa ser europeu, ser argentino? Um ato de fé”.

Enfim, “Ser argentino é um irrevogável ato de fé, ou então um ato di-

128 � Vamireh Chacon

29 � Vide, por exemplo, Canto, ob. cit., pp. 45, 46 e 283.30 � Vide O Dicionário de Borges (O Borges oral, o Borges das declarações e das polêmicas) reu-nido por Carlos R. Stortini, Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 1990, pp. 20 e78. Ivan Junqueira e Carlos Nejar muito contribuíram a tornar Borges melhor conhe-cido no Brasil.

ante do espelho, uma simulação, uma aparência”30. Ou de um europeu

exilado na América.

Quanto à sua cidade natal – tão mudada fisicamente pela substitui-

ção dos edifícios e humanamente pela das pessoas, em ambos os casos

nem sempre para melhor, da qual Borges podia refugiar-se por ceguei-

ra numa cidade etérea, parada no espaço e no tempo, tentação de to-

dos nós – dela Borges disse, no seu poema “Fundação Mítica de Bue-

nos Aires”, ser “tão eterna quanto a água e o ar”. O seu bairro de Pa-

lermo com o armazém El Preferido pairando no tempo.

O radical cosmopolita anglófilo, que escrevia em inglês as cartas amoro-

sas mais íntimas,31 também permaneceu sempre fiel à iberidade em mais de

um verso (“estais, Espanha, silenciosa entre nós”, “incessante e fatal”; o

Quixote foi um sonho de Cervante e o Quixote recriou Cervantes, persona-

gem e autor confundidos numa só pessoa; mais Luís de Camões, “flor de

Portugal” em “tua Eneida lusitana”: “Bem pouco sei de meus antecessores

portugueses, os Borges: vaga gente que prossegue em minha carne”, Borges

de Moncorvo, Trás-os-Montes, aos quais procurou quando visitou Lis-

boa); portanto, o não tão cosmopolita como se dizia, menos crendo nisto

do que querendo nos fazer crer, este paradoxal cosmopolita ibero-argenti-

no-bonaerense também foi muito bem recebido nada menos de quatro ve-

zes no Brasil, do que deixou longas entrevistas reunidas em livro.32

Borges não fugiu mesmo ao mais delicado momento histórico das

relações Brasil-Argentina, a participação militar brasileira ao lado dos

argentinos querendo se libertar do caudilho Juan Manuel Rosas nas

guerras platinas do século XIX, ainda hoje tão discutidas pelos dois

lados: “Brasil e o tirano. Aquela história desenfreada. O todo pelo

todo”. (“Elegia da Pátria”).

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 129

31 � A Estela Canto, por exemplo, op. cit., p. 143.32 � Reunidas por Jorge Schwartz em Borges no Brasil (vide nota 24).

Nas suas passagens pelo Rio de Janeiro e São Paulo, então aclama-

das mais pelos brasileiros que pelos argentinos em seu próprio país,

Jorge Luís Borges demonstrava conhecer Euclides da Cunha e Carlos

Drummond de Andrade, e confessava haver Gonçalves Dias se incor-

porado tanto à sua memória e sentimento, que sequer se lembrava do

nome do autor, ao recordar os versos que lhe ensinaram, menino:

“Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá; as aves que aqui gor-

jeiam, não gorjeiam como lá...” Versos por ele repetidos, com seu sor-

riso habitualmente irônico, no mais puro sotaque brasileiro33...

130 � Vamireh Chacon

33 � Na primeira entrevista, a Leo Gilson Ribeiro em 1970 e na quarta e última (aRoberto d’ Ávila e Walter Salles Jr.), em Borges no Brasil, ob. cit., pp. 498 e 538.

O ensaísmo uruguaiodas ideias às realidades

Montevidéu projetou-se economicamente após Colônia do Sa-

cramento, no seu lado do rio, e Buenos Aires no oposto. O Rio da

Prata, que as separa, tem esse nome não das suas águas barrentas e sim

por conta da prata de Potosi no Alto Peru, depois Bolívia. Barcos des-

ciam pelos afluentes rumo àqueles portos perto do mar. O controle da

foz era fundamental aos portugueses, para o acesso pelos rios Uruguai

e Paraguai ao Oeste do Brasil, que tinha estradas rude e íngremes.

Assim se efetuaram longas e largas guerras entre Portugal e Espa-

nha, em seguida Brasil e países platinos, pelo controle de tão impor-

tante acesso. Buenos Aires tem desenvolvimento mais antigo e contí-

nuo, Colônia do Sacramento deteve-se diante da expansão de Monte-

vidéu, mais próxima do oceano. O crescimento da produção de lã no

Uruguai foi o inicial fator da prosperidade do porto exportador de

Montevidéu, principalmente após meados e fins do século XIX. O

declínio da prata peruano-boliviana fora compensado na Argentina

pela carne e também a lã. O gado bovino uruguaio destinava-se sobre-

tudo ao mercado brasileiro, daí tantos conflitos de fronteira.

Montevidéu chegou a rivalizar com Buenos Aires, antes que o cres-

cimento econômico do mais amplo território argentino atraísse inten-

sa e extensa imigração, em especial de espanhóis, italianos e judeus,

também rumando a Montevidéu na formação da cultura platina e até

sotaque, que lhes são comuns, em meio a variantes locais. Montevidéu

manteve e desenvolveu importante vida econômica e cultural, inclusi-

ve com artistas e escritores de renome internacional. O primeiro deles

a alcançar grande repercussão, além-fronteira, foi Rodó.

José Enrique Rodó nasceu em Montevidéu, 1871, foi à Europa por

Portugal, Espanha e França, faleceu em Palermo na Itália em 1917, por-

tanto com quarenta e poucos anos. Seu livro Ariel surgiu em 1900, re-

percutindo fortemente nos começos do século XX hispano-americano.

Ariel é um ensaio de teor moralista social intelectual, na forma de longo

discurso de Próspero, um dos principais personagens de A tempestade de

Shakespeare, sobre Ariel, símbolo do ar e da luz, em contraste com Ca-

libã, o da matéria e da treva. Ariel pode ter uma leitura estética e outra,

política, embora tanto Hans Freyer quando Gyorgy Lukács, por cami-

nhos diversos, cruzassem suas definições no ponto em que se comprova

não haver inocência na cultura, mesmo que não se chegue ao extremo do

“politique d’abord”, a “política acima de tudo” de Charles Maurras. Para

Jakob Burckhardt, ela seria adversa à cultura.

Rodó começa por idealizar a cultura clássica helênica, a Atenas do

Discurso de Renan na Acrópole, do qual Ariel é a exortação extensiva à

América Hispânica. Lembre-se não ter sido Renan um diletante, ele

muito se preocupou em redefinir o próprio conceito de nação para a

França recém-derrotada pela Alemanha se unificando em 1870-1871,

daí polemizar com o hegeliano de esquerda David Friedrich Strauss.

As ideias de Renan foram completadas na sua conferência Que é uma

nação, pronunciada na Sorbonne em 1882. Renan foi adiante na sua

pregação, ao reunir outras conferências no livro A reforma intelectual e

moral (1871), propondo mudanças profundas na educação e organiza-

132 � Vamireh Chacon

ção da França, no sentido que veio a chamar-se de modernizador,

sempre com o exemplo-desafio da Alemanha diante dos olhos.

Os críticos, preocupados com o esteticismo literário formal de Re-

nan, não deram muita atenção ao seu também muito importante lado

político: Renan queria ser o pedagogo da renovação francesa, com obje-

tivos muito concretos e práticos. Ele chegou a escrever o drama Calibã

(1878), no qual este personagem domina Próspero, em outra revolta da

criatura contra o criador (Renan era perito exegeta bíblico), aos gritos:

“Tomem-lhe seus livros. Abaixo o latim!” Ao término, Calibã termina,

porém, poupando a vida, os livros e a biblioteca de Próspero: “Calibã

era suscetível de fazer progressos”, isto é, a Prússia podia ser civilizada

pela França vencida, ao modo de Roma pela sua subjugada Atenas...

Pessoalmente renaniano, Rodó segue seus passos.

O Calibã no Ariel de Rodó são a cultura e civilização tecnológicas e

capitalistas anglo-americanas, objeto de “imitação unilateral” na Amé-

rica Latina. Mas, ao contrário do denunciado pelos norte-americanófi-

los anti-Rodó, ele é favorável aos Estados Unidos, porém na sabedoria

filosófica de Emerson e, antes disso, aos Estados Unidos dos tempos da

visita de Tocqueville, anterior ao populismo de Andrew Jackson. Rodó

almeja uns Estados Unidos como síntese de Washington e Edison, de-

mocracia humanista mais tecnologia a serviço do povo, contra as forças

opostas ao “legado dos tripulantes do Mayflower, à memória dos patríci-

os da Virgínia e dos cavalheiros da Nova Inglaterra, ao espírito dos ci-

dadãos e legisladores da Independência.” Teria predominado o espírito

arrivista do Meio-Oeste e aventureiro do Far-west, muito diferentes de

Boston, “a cidadela puritana, a cidade das doutas tradições”...1

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 133

1 � José Enrique Rodó, Ariel, aqui cit. na ed. espanhola de 1991, a sexta pela Colec-ción Austral (n.o A216) da Espasa-Calpe de Madrid, pp. 112, 125, 127, 134, 132,119, 138, 131, 132 e 127.

Rodó não é, portanto (insista-se nisto), um inimigo, sequer adver-

sário dos Estados Unidos de Tocqueville, porém defensor de um ide-

alizado humanismo helênico oposto ao que considera exagerado utili-

tarismo anglo-saxônico, autosuperável pelas energias da herança cul-

tural (anglo) germânica da Costa Leste, com Boston e Filadélfia ainda

erguendo o facho de luz da “tradição washingtoniana”, berço e inspi-

ração da sua cultura e civilização.

Rodó também aceita a democracia, porém a tocquevilliana, em sín-

tese com a meritocracia antijacobina, por Rodó admirada em outros

aspectos, e não o que a levar a “um abominável, reacionário espírito,

ao negar toda fraternidade, toda piedade”, em proveito do super-ho-

mem verdugo contra os deserdados e os fracos. Daí Rodó concluir:

“E, contudo, o espírito da democracia é essencialmente, para nossa

civilização, um princípio de vida contra o qual seria inútil rebelar-se

(...). A democracia e a ciência são, com efeito, os dois insubstituíveis

suportes sobre os quais nossa civilização se apóia; ou, expressando-o

com uma frase de Bourget, as duas ‘construtoras’ dos nossos futuros

destinos”.2

Em 1900, ano da publicação de Ariel, Rodó tinha diante dos olhoso recente desastre militar espanhol de 1898, perante os Estados Uni-dos em Cuba e nas Filipinas ameaçando estender-se pelo Caribe e Mé-xico, contra a latinidade da América Meridional. Então prefere “a sig-nificação humana, que o espírito francês acerta em comunicar ao que oescolhe e consagra”.3 Como se a experiência de Napoleão III e Maxi-miliano não houvesse fracassado no México, e não existisse o predo-mínio comercial e tecnológico da Inglaterra, com o dos Estados Uni-dos despontando no horizonte, tão temido por Rodó.

134 � Vamireh Chacon

2 � Idem, pp. 138, 132, 80, 102, 106, 95, 104 e 98-100.3 � Ibidem, p. 110.

Diante do desordenado crescimento dos oligopólios internacionais,

principalmente os “trusts” anglo-americanos, Rodó confia, em compa-

nhia de Spencer, na vitória da resistência e fecundidade do espírito dos

Pais Fundadores (Rodó inclui Hamilton, porém não Jefferson...) sobre

a venalidade do egoísmo utilitário da plutocracia. “Tumulto utilitário”

a ser combatido pela “educação popular” como “um interesse supre-

mo”.4 Aqui Rodó ecoa o projeto pedagógico democrático pragmático

de Horace Mann precursor de John Dewey, por maiores que sejam as

implícitas divergências filosóficas de Rodó diante de Mann.5

Obra de juventude, Rodó ainda não tinha trinta anos ao escrevê-la,Ariel é um texto dionisíaco defendendo uma tese apolínea; em estiloapaixonado em prol de proposta racional, embora não racionalista,Rodó invoca tanto os pensadores quanto os poetas. Ariel despertouondas de moderada simpatia ou coros de veemente concordância en-tre intelectuais, então de formação francesa e surpresos desagradavel-mente pela brusca aparição e súbito crescimento da influência an-glo-saxônica pelos Estados Unidos nas Américas. O ano de 1898 nis-so foi emblemático: o Exército da Espanha derrotado em Cuba e aMarinha nas Filipinas pelos Estados Unidos extinguindo os últimosbaluartes do antigo império colonial hispânico, outrora tão glorioso,liquidado pelas mãos de pragmáticos novos-ricos norte-americanos...

Até ao Brasil chegaram os ecos do protesto de Rodó.6 Na Espanhaa um grande pensador, Miguel de Unamuno, e a um grande jornalista,Leopoldo Alas sob o pseudônimo de “Clarín”, entre outros.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 135

4 � Ibidem, pp. 130, 136, 139, 130, 118 e 100.5 � Horace Mann é de meados do século XIX e John Dewey dos do XX no augedas suas atuações.6 � Vide Sílvio Júlio, José Enrique Rodó e o cinquentenário do seu livro “Ariel”, Rio de Janei-ro, Ministério da Educação e Cultura, 1954. Silvio Júlio conheceu pessoalmenteRodó em Montevidéu, 1915 (pp. 57 e 58). José Veríssimo analisa Ariel em Homens ecousas estrangeiras, 1902.

Unamuno, em artigo no primeiro número (janeiro de 1901) da re-

vista La Lectura de Madrid, entendeu a reação francófila por Rodó (“É

uma profunda tradução ao castelhano – não só na linguagem, também

no espírito – do que a alma francesa tem de mais elevado; é o aticismo

francês por um hispano-americano”) e Leopoldo Alas, “Clarín”, reco-

nhecia em Ariel “a questão atual, histórica, da assimilação do america-

nismo do Norte pela América jovem latina” e previa os “espanhóis pe-

ninsulares e espanhóis americanos” na “futura unidade da grande fa-

mília ibérica”.7

O Ariel de Rodó é o que há de melhor, estética e politicamente, na

avalanche pessimista pela Hispano-América logo após a derrota espa-

nhola diante dos anglo-americanos em 1898. No ano seguinte, o ar-

gentino Agustín Álvarez iniciava a série mais de autoflagelações que

autocríticas, com o seu Manual de patologia política, mesmo ano de O conti-

nente enfermo do venezuelano César Zumeta. Em 1901 outro argentino,

Manuel Ugarte, prenuncia, com o artigo “El peligro yanqui”, seu livro

Enfermidades sociais de 1905, precedendo Povo enfermo (1910) do bolivia-

no Alcides Argüedas, Nossa América (1903) e Psicologia genética (1911)

dos também argentinos Carlos Octavio Bunge e José Ingenieros. Mais

Rodríguez del Busto. Todos estes são livros sem direta inspiração de

Rodó, embora no clima político intelectual da época.

Houve também críticas serenas e objetivas: o dominicano Pedro

Henríquez Ureña chamando a atenção para a consciência da incom-

pletude cultural hispano-americana por Rodó, pela primeira vez clas-

sificada de “Nossa América” como observou o colombiano Germán

Arciniegas, mesmo com as limitações apontadas pelo peruano Luís

Alberto Sánchez: “o culto à ‘oligarquia intelectual’ e à desconfiança

136 � Vamireh Chacon

7 � Leopoldo Alas, (“Clarín”), “Estudo crítico” publicado de início em Los Lunes de“El Imparcial”, reproduzido na ed. cit. de Ariel, pp. 30 e 25.

perante a democracia; a evasão do presente e a fé no futuro; o ecletis-

mo baseado no individualismo e no proletariado”, em meio à “valori-

zação da ‘civilização latina’, embora sem definir em que consistia, em

contraste com a saxônica ou nórdica, à qual consignava nada mais que

características manuais e mecânicas”.8 Críticas nem sempre justas,

como demonstramos páginas atrás, ao estudarmos melhor os lados

positivos da democracia e das possibilidades de autosuperação pelos

Estados Unidos de seus problemas, conforme o próprio Rodó previa

e desejava.

O mexicano Alfonso Reyes foi mais objetivo, diante dos subjeti-

vismos negadores ou afirmadores por outros críticos, quando conclu-

iu sobre Ariel: “E então a primeira leitura de Rodó nos fez compreen-

der que há uma missão solidária nos povos e que nós dependíamos de

todos que dependiam de nós. A ele, num despertar da consciência, de-

vemos alguns a noção exata da fraternidade americana”.9

Houve também brutais e injustos ataques contra Ariel e tudo mais

que Rodó escreveu, ataques vindo de novas escolas literárias, esfor-

çando-se por afirmar-se pela radical recusa a todo o anterior, e ataques

ainda piores, oriundos de motivos políticos até ideológicos. É o caso

do hispano-americano ex-trotskysta Carlos Rangel, com fúria de con-

vertido ao neoliberalismo especialmente estadunidense, para ele a

nova salvação messiânica sempre sob linguagem cientificista.

Para Rangel, o uruguaio Rodó, contemporâneo do modernismo

do nicaraguense Rubén Darío, eram ambos hispanófonos periféricos,

apesar do seu reconhecimento pela maioria dos críticos e historiado-

res literários da Espanha, um dos pontos básicos ignorados por Ran-

gel. Para ele o reconhecimento principal deve vir dos Estados Unidos,

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 137

8 � Apud Antonio Lago Carballo, “Prólogo” à ed. cit. de Ariel, pp. 12 e 14.9 � Apud idem, pp. 14 e 15.

ou da União Soviética quando Stalin ainda não havia derrotado

Trotsky, raciocínios implícitos porém claros na sua diatribe mais que

uma crítica.

Enfim, Rodó não passaria de um nefelibata, em companhia de ou-

tros obstáculos à aceitação da norte-americanização econômica, inte-

lectual e política da América Latina.10

Muito mais equilibrada é a crítica por um estadunidense anglo-saxô-

nico branco e protestante (“wasp: white, anglo-saxon, protestant”, como se re-

sumem em inglês suas características) do alto nível e objetividade de Ri-

chard M. Morse, durante muito tempo professor na Universidade de

Yale e secretário do Programa Latino-Americano do Woodrow Wil-

son Center da Smithsonian Institution de Washington.

Morse, em O espelho de Próspero (Cultura e ideias nas Américas), desde

suas primeiras palavras mostra como esse título lhe foi inspirado por

El mirador de Próspero (1909) de José Enrique Rodó, “velho e venerável

mestre”, “que discursava a seus discípulos sobre os perigos da demo-

cracia positivista”. Contudo, o livro de Rodó era “uma torre de obser-

vação” e o de Morse “um espelho” não do Próspero “intelectual bene-

volente e sagaz, mas sim o colonizador paranoico de um ilha encanta-

da, a quem o dramaturgo (Shakespeare) teria profeticamente identifi-

cado na aurora da expansão europeia no ultramar”. “Seguindo essa in-

terpretação, Próspero se torna, no meu ensaio, os ‘prósperos’ Estados

Unidos”.

Resguardando-se de polêmicas, Morse considera “a América do

Sul não como vítima, paciente ou ‘problema’, mas como ‘uma imagem

especular na qual a Anglo-América poderá reconhecer as suas próprias

enfermidades e os seus problemas’. É sabido que um espelho dá uma

138 � Vamireh Chacon

10 � Carlos Rangel, Do bom selvagem ao bom revolucionário, Brasília, Editora da Univer-sidade de Brasília, 1981 (trad. do espanhol castelhano), 1981, pp. 101-103.

imagem invertida”. Com “um anverso e um reverso” de Ibero-Améri-

ca e Anglo-América em seus respectivos valores, advindos da Espanha,

Portugal e Inglaterra, em vez de América Latina em geral e Estados

Unidos em especial. Antes de Morse já os brasileiros Joaquim Nabu-

co, Oliveira Lima, Vianna Moog e Érico Veríssimo tinham traçado

paralelos entre a civilização do Brasil e a dos Estados Unidos.A Ibero-América de Rodó seria a de “Paris no final do século”

(XIX), daí sua superficialidade ao tratar de Tocqueville a Nietzsche,resultante do desconhecimento dos parâmetros ibéricos aplicáveis aosseus analisados. Morse pesquisa as fontes principalmente do huma-nismo de Suárez e Vitoria no século XVI, mostrando quanto ele émais completo que seus outros contemporâneos e sucessores, compa-rados mesmo a Locke ou a Hobbes.11

Rodó foi além do Ariel, sem a mesma fortuna crítica. Ainda escre-veu vários livros. Vale a pena aqui algo sobre Motivos de Proteu, bem em-blemático do autor, ao escolher o mito grego do personagem que setransmudava para não responder às perguntas, que não lhe convi-nham, quanto ao passado e o futuro.

Motivos de Proteu é ensaio de 1909 no gênero explicitamente moralista,em sentido francês, o de La Rochefoucauld e outros. Também Rodó aíprocede por máximas, ou brocardos, aos quais explica inclusive em ter-mos de parábolas. Seu eixo está definido no I.o: “Nossa transformaçãopessoal no tempo”, “reformar” ou “reformar(-se) é viver”.

O que lhe subjaz se apresenta simples, porém não simplista: Rodó,

em Motivos de Proteu, pretende despertar ou fortalecer a vocação do lei-

tor no caminho do belo como sinônimo do bem e da verdade, num

sentido de fundo helênico, que poderia ser tomista se nele houvesse

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 139

11 � Richard M. Morse, O espelho de Próspero, São Paulo, Editora Schwarcz, 1988,pp. 13, 14, 127 e passim.

maior transcendência rumo ao divino, em vez do seu vitalismo estéti-

co, “a vida é a arte suprema” na sua definição sobre também estes mui-

tos chamados e poucos escolhidos pela perseverança e lucidez pessoa-

is, aristocracia do espírito:

“Esta capacidade, esta energia, acha-se potencialmente em toda

alma; mas na imensa multidão delas, apenas dá notícia de si; apenas

passa, senão em mínima parte, à realidade e à ação; e só nas que com-

põem uma estrita aristocracia, serve de modo consciente e sistemático

a uma ideia de aperfeiçoamento próprio”.

O aperfeiçoamento ético intelectual para Rodó tem forte conteú-

do voluntarista, “onipotência da vontade” como o explica em forte

pertinácia pascaliana, mais um toque goethiano. Seu exemplo social

histórico seria a Holanda, “um milagre do mapa”, “vontade coleti-

va”, mais que a França ou a Hélade antes por ele idealizadas só inte-

lectualmente.12

Novos motivos de Proteu (1927 e Últimos motivos de Proteu 1932) estão

entre seus textos póstumos, sempre na linha de aristocracia do espíri-

to. Emir Rodríguez Menegal – após edições das Obras completas de José

Enrique Rodó no Uruguai, Argentina e Espanha – organizou a pri-

meira edição crítica em Madrid pela Editora Aguilar, 1957.

Qual o segredo último de Rodó?

Rodó é acima de tudo um escritor, não um filósofo por lhe falta-

rem sistema e ontologia, e escritor ensaísta na linha remontando a

Montaigne mais Pascal, num equilíbrio em angústia por ele superada

pela paixão à arte, nele identificada com a moral individual e a ética

social. Seu antiutilitarismo e sua aristocracia do espírito antecipam

140 � Vamireh Chacon

12 � José Enrique Rodó, Motivos de Proteo, aqui cit. na ed. de 2000, n.o 23 de Biblio-teca de Oro de Literatura da Sociedad Comercial y Editorial Santiago, Montevidéu,pp. 5, 39-45, 64, 65 e 68-71.

aproximadas ideias do Ortega y Gasset de A rebelião das massas, que lhe é

posterior (1930), ambos e outros sob o impacto das vitórias militares

dos Estados Unidos, liquidando o final poderio colonial espanhol em

Cuba e nas Filipinas, 1898. Daí a indignação e propostas de recons-

trução intelectual e moral pela chamada Geração de 98, na qual se

pode incluir Rodó em espírito, tanto quanto pela forma Rodó perten-

ce ao modernismo chegando à Hispano-América por Rubén Darío.

O modernismo, hispanófono porque incluindo a Espanha onde

também se desdobrou, desde Rubén Darío apresentava um sentido te-

lúrico ao lado do cosmopolita, pela primeira vez na parte da América

há séculos sob grande influência do barroco hispânico, luso na Améri-

ca Portuguesa. Rubén Darío foi primeiro modernista também no Bra-

sil, ao visitá-lo em 1906 e 1912.13 Modernismo brasileiro de 1922

com precursores também locais em características próprias, inclusive

no seu indigenismo.

O indigenismo na América Hispânica, após alguns pioneiros, teve

no peruano José Carlos Mariátegui seu primeiro grande sistematiza-

dor, repercutindo no Uruguai de início por Alberto Zum Felde, de

nome tão alemão e nascido na Argentina, mais profundamente uru-

guaio que muitos dos seus contemporâneos, por ancestralidades fami-

liares e opção pelo país, sua cultura e civilização.

Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, primeira reabilitação e rei-

vindicação políticas ideológicas do indigenato ibero-latino-americano

por José Carlos Mariátegui, é de 1928 e merece estudos especiais. No

número de 16 de julho de 1928 o ensaísta uruguaio Alberto Zum Fel-

de já escreve na revista Amauta e no número de 7 de fevereiro:

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 141

13 � Brito Broca, A vida literária no Brasil (1900), Livraria José Olympio Edi-tora, Rio de Janeiro, 1956, pp. 169 e 170. Rodó também escreveu sobre ele oRubén Darío.

“um vasto e profundo despertar da consciência territorial [telúrica]

pela primeira vez na história intelectual do Peru, verdades substanciais,

até agora ocultas atrás da verbologia do pseudo-idealismo burguês”.14

Só o México o havia precedido, pela sua revolução de 1910 e seus inte-

lectuais: José Vasconcelos no ensaísmo, Rivera e Orozco na pintura.

Daí Zum Felde prossegue ao seu El Huanakauri (1917), propondo

o americanismo cultural, americanidade na ocidentalidade e não pela

europeização sinônima de estrangeirização, colonialismo cultural.

Zum Felde era um autodidata de talento, sem curso universitário,

porém escritor reconhecido e até diretor da Biblioteca Nacional de

Montevidéu, autor de vasta e por vezes profunda obra.

Quais as influências intelectuais por ele recebidas?

No seu autodidatismo, o jovem Zum Felde começou frequentando

cafés boêmios dos anarquistas e anarco-sindicalistas entre os imigran-

tes italianos e espanhóis, muito numerosos em fins do século XIX e

começos do XX nas suas diásporas rumo a Montevidéu. Os movi-

mentos socialistas também na Argentina e Brasil por eles tiveram con-

siderável impulso em ideias e organização. Acontece que, ao lado da-

quelas orientações operárias, havia os anarquismos elitistas dos inte-

lectuais optando por Nietzsche e Ibsen, então muito em moda.15 Zum

Felde preferiu esta linha, em vez daquela: “Ibsen era nietzchiano com

maior amplitude humana, pois era um revolucionário social.”16

142 � Vamireh Chacon

14 � Vide índices por Alberto Tauro, Amauta y su influencia, vol. 19 das Obras completasde José Carlos Mariátegui, Lima, 3.a ed., 1974, pp. 42 e 160.15 � Nietzche e Ibsen na mesma época eram também muito divulgados entre os es-critores brasileiros. Vide Brito Broca, op. cit., pp. 112-116 e 121. No Brasil, como di-plomata, estava o Conde Prozor, tão pessoalmente ibseniano, juntamente com sua fi-lha, que representava peças de Ibsen no Rio de Janeiro (p. 121).16 � Entrevista de Alberto Zum Felde a Jorge Ruffinelli, capítulo no seu livro Pala-bras en orden, México, Univesidade Veracruzana, 1985, pp. 11-35.

Era a fase da criação do Centro Internacional de Estudios Socia-

les em Montevidéu por tão contraditória gente, vibrante, até apaixo-

nada com a cultura político-filosófica daquele tempo. Foi a factual

primeira universidade da dura vida quotidiana para Zum Felde. Ele

já nascera cosmopolita em Bahía Blanca, Argentina, de pais uruguaios,

mas com avós paternos alemães e espanhóis os maternos, ademais de

sua mãe ser aparentada com os próceres históricos argentinos Alber-

di e Mitre. Com um ano de idade, Alberto Zum Felde é trazido pe-

los pais a Montevidéu, onde vai se tornar autêntico platino e hispa-

no-americano.

Na apresentação da Exposición Bibliográfica y Documental da póstuma

exibição em Montevidéu do seu itinerário intelectual, Arturo Sergio

Visca distingue três etapas de Zum Felde: o primeiro período

(1906-1916), dividido intimamente entre leituras de Nietzsche,

(Ibsen) e os anarquistas, pelo lado contestário, e o positivismo na versão

de Spencer, pensamento hegemônico entre os intelectuais ligados às

classes dominantes; segundo período (1917-1929), o da crítica cultural

em jornais e livros, crítica das realidades de gerais às nacionais; terceiro

período (de 1930 ao seu falecimento em 1976).17 Zum Felde chegará

até à conversão religiosa ao catolicismo.

Arturo Ardao, historiador das ideias no Uruguai, concluiu a respeito:

“Sem ser um especialista da filosofia [...], [Zum Felde] reali-

zou obra filosófica, pelo ensaio de ideias, poema mítico e

mistério dramático. [...] Contra a cultura livresca, tal como

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 143

17 � Maria Cristina Araújo Azarola, “Alberto Zum Felde: Pensador uruguayo”,Actas do 1.o Simpósio Internacional de Filosofia Perspectivas de la filosofía contemporánea,16-17-18 de outubro de 1996, Villa Maria, Ed. Convívio Filosófico, sobre a Exposi-ción bibliográfica y documental de Arturo Sergio Visca.

costuma se apresentar em nossos países, ingenuamente li-

vresca e europeizante, Zum Felde foi severíssimo”.18

Na sua Aula Magna de 1937, Zum Felde transparece implícita insa-

tisfação com o racionalismo de Kant, sem propriamente se aproximar

do intuicionismo de Bergson muito divulgado nessa época. Tende a

inclinar-se a um culturalismo próprio de suas leituras de kantianas a

nietzschianas e spencerianas, comparadas às experiências concretas

históricas do seu povo uruguaio.

Mesmo se iniciando na revista indigenista de Mariátegui, Zum Fel-

de se liga à linha do ensaísmo uruguaio, ao também se interessar e mu-

ito pela obra de Rodó, como se vê, por exemplo, em La literatura del

Uruguay. Ali Zum Felde demonstra Rodó como primeiro ensaísta uru-

guaio cronológico e qualitativo, escritor hispano-americano tão famo-

so mundialmente quanto o nicaraguense Rubén Darío.

Rodó é representativo de uma época, pelo “idealismo humanista, este-

ticismo eclético, así como la elegancia parnasiana de su estilo”. Apareceu na hora

certa, para defesa do “humanismo tradicional greco-latino” diante

do “utilitarismo prático” e “garra imperialista” da expansão do po-

derio dos Estados Unidos logo após a sua vitória contra a Espanha

em 1898, diante da juventude hispano-americana então “desorientada

y claudicante”.

O ponto mais forte de Ariel consiste no reconhecimento das gran-

des virtudes de “vontade e moralidade” dos Estados Unidos, “que ad-

mira, mas não ama”, por faltar-lhes “sentido intelectual e humanista”

após o arrivista abandono do ideário dos seus Países Fundadores.

144 � Vamireh Chacon

18 � Arturo Ardao, La literatura del Uruguay en el siglo XX, México, Fondo de CulturaEconómica, 1956, p. 79.

As principais fontes de Rodó seriam a crítica literária positivista de

Taine e Guyau, ainda mais a filosofia moral de Renan, tentativa de

conciliação entre o ideal ético cristão e o esteticismo pagão, o ceticis-

mo cientificista e o otimismo racionalista, o aristocratismo intelectual

da cultura e o igualitarismo democrático. Rodó não conseguiu origi-

nalidade ideológica, foi, sim, escritor intelectualista latinizante, sob

seu humanismo se sente “um vazio metafísico” numa “perspectiva in-

definida”. Tendência típica do ensaísmo hispano-americano da épo-

ca, ensaísmo estético mesmo quando político e polêmico, “refractário,

em si, às disciplinas filosóficas”.19

Zum Felde tinha sede existencial do absoluto, em meio ao seu en-

saísmo literário e de ideias sobre escritores da época e acontecimen-

tos políticos do tempo em várias obras. Daí sua conversão ao catoli-

cismo praticante, que mereceria estudos à parte. Aqui nos limitemos

ao ensaísmo sócio-histórico dele.

Concentremo-nos no Processo histórico do Uruguai (Esquema de uma so-

ciologia nacional) de 1919/1920, reeditado sob o título Evolução histórica

do Uruguai e esquema de sua sociologia (1941), ambos com outro maior

subtítulo: Compreende a evolução social e política do país desde a fundação de

Montevidéu até a reforma da Constituição. Substancialmente o mesmo, Evo-

lução histórica do Uruguai e esquema de sua sociologia exclui o apêndice

“Nota sobre literatura e arquitetura no Uruguai – consideradas em

relação com sua sociologia”.

No prefácio à edição de 1941 – na realidade o mesmo livro sem

aquele acréscimo, embora reedição corrigida e atualizada – Zum Felde

explica sua metodologia “intuitiva”, em busca da “trama íntima” da

“intra-história” que nos faz lembrar Unamuno, numa “historiologia”

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 145

19 � Alberto Zum Felde, La literatura del Uruguay, Buenos Aires, Imprenta de la Uni-versidad, 1939, pp. 100, 101 e 104-106.

(não apenas historiografia) sem chegar à historiosofia, porque com

“autenticidade vital” diante dos “preconceitos formais da cultura aca-

dêmica”,20 noutro eco unamuniano.

A possibilidade da influência de Miguel de Unamuno poderia ser

também confirmada pelos argumentos da final conversão católica de

Zum Felde: superação do naturalismo religioso e também do precon-

ceito laicista e ceticismo crítico, porque “o ser, sem Deus, é a cons-

ciência do Nada” e o “conflito trágico” entre ser e existir, verdade e

vida, resolve-se pela “Verdade vivente e não abstrata”, “não a letra que

mata (e morre) e sim o espírito que vivifica”, enquanto a filosofia tateia

“no vazio da abstração e do jogo, juego de hipótesis”.21 São ecos mais de

Unamuno que Bergson e, em si, razão razoável e não propriamente ra-

cionalista, porque aceitando todas as experiências não só intelectuais e

sim também existenciais. Por mais que Zum Felde passe a incorporar

a sabedoria tomista da inteligência, nele passa a predominar a sabedo-

ria agostiniana do coração.

O processo histórico do Uruguai (1919/20), denominado Evolução históri-

ca do Uruguai na segunda edição (1941), é livro ainda de sua fase socio-

logística evolucionista um tanto spenceriana, embora mais descritivo,

político e patriótico, até nacionalista, apesar de concluir desejando a

permanência do ordenamento jurídico internacional com a vitória da

Grã-Bretanha e Estados Unidos, nunca imaginada necessária por

Rodó contra o perigo maior das potências totalitárias querendo rede-

146 � Vamireh Chacon

20 � Alberto Zum Felde, La literatura del Uruguay (Esquema de una sociología nacional),Montevidéu, Editor Maximiano García, com prefácio datado de dezembro de 1919,a publicação foi no ano seguinte; a segunda edição (1941) tem data clara, porém títu-lo diferente: Evolución histórica del Uruguay y esquema de su sociología (Compreende la evolución so-cial y política del país desde los orígenes hasta el presente), publicado na mesma cidade pelo mes-mo editor, aqui cit., nas pp. 8 e 9.21 � Alberto Zum Felde, Cristo y nosotros, sem ref. à edit., Montevidéu, pp. 38 e 65.

senhar econômica e politicamente o mundo, inclusive a América Lati-

na... A diversificação étnica e cultural, pela grande imigração italiana, é

saudada favoravelmente e desejada para contribuir à superação do ga-

uchismo rural, patriarcal e autoritário se projetando nas cidades em

autoritarismo retardatário.22

Na “Nota sobre a literatura e a arquitetura no Uruguai – conside-

radas em relação com sua sociologia”, apêndice ao seu Processo histórico

do Uruguai (Esquema de uma sociologia nacional) – Zum Felde esboça uma

sociologia da literatura sucedida pela histórico-cultural A literatura do

Uruguai.

Naquele apêndice, após pioneiro estudo da arquitetura uruguaia de

colonial à do seu tempo, Zum Felde envereda pelo da literatura, em am-

bas demonstrando os contrastes entre o “nacional” e o “exótico”, pre-

sentes em todas as escolas das românticas às realistas e modernistas.

O auge do exótico literário estaria sendo o modernista, calcado

principalmente no francês: “o culto da Europa torna-se um fervoroso

misticismo estético para o modernismo uruguaio”. “Em consequên-

cia, o traço mais característico dessa época literária do Uruguai é a

sensação de exílio, que experimentam os escritores. O poeta é um es-

trangeiro – um grego ou um parisiense – desterrado em Montevi-

déu...” “É o sentimento do provinciano diante da metrópole”.23

Zum Felde faleceu em 1976, portanto na provecta idade de quase

noventa anos, tempo suficiente para assistir a todo um ciclo demográ-

fico, econômico, político e cultural de seu país.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 147

22 � Evolución histórica del Uruguay y esquema de su sociología¸ op. cit., pp. 231 e 200-202.23 � “Notas sobre la literatura y la arquitetura en el Uruguay – consideradas en re-lación con su sociología” in Proceso histórico del Uruguay, op. cit., pp. 265-271. U. C. Gon-zález aponta “Alberto Zum Felde, teórico del nativismo”, Río de la Plata, Paris, vol.4/6, 1987.

De fins do século XIX aos meados do XX, o Uruguai produziu e

exportou muita lã e muita carne para os mercados mundiais, permitin-

do muito emprego dos imigrantes, mais em amplo comércio e diversi-

ficado artesanato, que propriamente em indústrias diante da competi-

ção de Buenos Aires defronte de Montevidéu e do Brasil pelo Rio

Grande do Sul. O contrabando tornou-se também lucrativo negócio.

No auge econômico, a sociedade uruguaia foi a democracia repre-

sentativa liberal mais secularizada, até laicista em toda a América Lati-

na, aprovando e fazendo cumprir leis de separação entre Igreja e Esta-

do, voto também feminino e divórcio. O seu Poder Executivo era ro-

tativo colegiado, eleito, com o Parlamento, por voto popular direto.

Todos os partidos foram legalizados, inclusive o comunista, em plena

liberdade de imprensa.

Montevidéu tinha em torno de metade da população do país, na

maioria imigrantes italianos e espanhóis, mais considerável minoria

judaica. Nos campos do pampa estavam as estâncias dos grandes reba-

nhos de propriedade das tradicionais famílias dos tempos coloniais

hispânicos. O Uruguai de Alberto Zum Felde tornara-se extensa e in-

tensamente muito diverso do Uruguai de José Enrique Rodó.

O Uruguai (e o México) transformaram-se nos dois maiores

centros acolhedores de exilados políticos de toda a América Lati-

na, bem recebidos e podendo trabalhar em plena liberdade com os

cidadãos locais. Ao Uruguai (e México) vinham refugiados até da

Europa, principalmente espanhóis da Guerra Civil e judeus da Ale-

manha e Leste europeu, em menor proporção aos demais países la-

tino-americanos.

No Uruguai o ensaísmo sócio-histórico-cultural, seguinte a Alber-

to Zum Felde, é mais protagonizado por Carlos M. Rama, irmão do

ensaísta literário Ángel Rama, ambos com formação e atividade inter-

148 � Vamireh Chacon

nacionais em universidades européias e norte e sul-americanas, nisso

indo muito adiante de Zum Felde e Rodó. Aqui é o lugar metodológi-

co do estudo de Carlos M. Rama e não de Ángel Rama, independen-

temente dos respectivos méritos. Carlos M. Rama é historiador das

idéias políticas e movimentos sociais uruguaios.

Ele se doutorou em Direito e Ciências Sociais pela Universidade

de Montevidéu e em Letras pela Universidade de Paris-Sorbonne.

Pesquisou na França, Espanha e Hispano-América.Do curso na Universidade de Montevidéu guardou o interesse pelo

pensamento uruguaio, como se vê no seu estudo sobre o pioneiro José

Pedro Varela (Sociólogo), 1957, pedagogo social tão significativo para oUruguai quanto Sarmiento à Argentina, Gabino Berreda ao México eHorace Mann nos Estados Unidos (poder-se-ia acrescentar AndrésBello na Venezuela e Chile). Mesmo sem estudos universitários, Va-rela, por experiência de vida, não se limitou às suas iniciais leituras deSpencer, Darwin e Stuart Mill. Optou pelo caminho da escola públi-ca, gratuita, obrigatória, laica, urbana e rural, humanística e técnica,ensino integral e ascensão social para contribuir a superar a domina-ção dos “doutores e caudilhos” no Uruguai.24

O ensaísmo sócio-histórico-cultural de Carlos M. Rama é tambémpedagógico democrático. Professor universitário e escritor, enfrentouo exílio imposto por ditadura.

Do curso na Universidade de Paris-Sorbonne é o inicial interesse

pela literatura. Seu primeiro ensaio, A história e a novela, 1947, mais que

isso aborda questões historiográficas de ideias, daí não se filiar à Esco-

la dos Annales. Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel não são

recorridos e sim Croce, Huizinga, Ortega y Gasset e Gurvitch, com

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 149

24 � Carlos M. Rama, José Pedro Varela sociólogo, Montevidéu, Editorial Medina,1957, pp. 3, 13, 20, 35, 43, 63, 59, 37 e 55.

algo de Lukács, sem esquecer o também universalmente hispânico

Menéndez y Pelayo. Descuidos na revisão confundem Thomas Ba-

bington Macaulay e George Macaulay Trevelyan, mais conhecidos

pelo último nome. Carlos M. Rama também não se fixa em Max We-

ber. A história e a novela é mais uma visão panorâmica, que de opções me-

todológicas.25 Mesmo passando pelos Annales e Max Weber, Rama

permanece fiel a Huizinga, como se vê na sua Teoria da história.26

José Batlle y Ordónez e o movimento obreiro e social no Uruguai de Carlos M.Rama sobre esse liberal social, que chegou à presidência da república,é na realidade um opúsculo, embora pioneiro no gênero em seu país,em companhia de outros poucos na Ibero-Latino-América. Para me-lhor entendê-lo vale a pena remontar a Alberto Zum Felde.

Zum Felde mostra a oposição entre “blancos” e “colorados” em parti-dos e cisões dominando a política desde 1828, logo após a Indepen-dência uruguaia: “blancos” conservadores tradicionalistas sobretudo ru-rais e “colorados” liberais clássicos e liberais sociais principalmente ur-banos. A inicial divisão foi agravada pelo posicionamento inclusivemilitar do prócer Oribe, “blanco”, contra o Brasil, e Rivera “colorado”pró-Brasil. Ademais os “blancos” eram centralistas e os “colorados” fede-ralistas. Contudo, as diferenciações se diluíam na prática do autorita-rismo comum tanto à burguesia rural “blanca”, quanto à burguesia ur-bana “colorada”, mais nacionalista ou mais cosmopolita respectivamen-te. A imigração espanhola, por afinidades culturais, costumava prefe-rir os “blancos” e a italiana os “colorados”, trazendo-lhes reforços nacio-nalistas ou cosmopolitas.

150 � Vamireh Chacon

25 � O título completo desse livro é La historia y la novela y otros ensayos historiográficos(dos oito ensaios apenas o primeiro dá-lhe nome, todos os demais são de metodologiahistórica), Buenos Aires, Editorial Nova, 1970.26 � Carlos M. Rama, Teoría de la historia (Introducción a los estudios históricos), BuenosAires, Editorial Nova, 1959, pp. 62, 196-201 e 94.

Na realidade a divisão não era entre brancos (cor partidária “blan-

ca”), ou vermelhos (cor partidária “colorada”) e sim com a maioria entre

cambiantes posições intermediárias, em meio a hegemonias extrema-

das. Nos confrontos de “caudillos” e “doctores” os “blancos” preferiam o

presidencialismo centralizador, os “colorados” o Executivo colegiado

rotativo; os presidencialistas “blancos” recorrendo ao militarismo e os

colegiados “colorados” a redemocratizações.

O maior prócer “colorado” foi o presidente José Batlle y Ordóñez, nos

começos do século XX no auge das imigrações italiana e espanhola per-

mitindo a entrada inclusive de jornalistas e líderes sindicais anarquistas,

para grande escândalo das oligarquias. O presidente Batlle então resol-

veu greves através da aceitação das reivindicações de criação de legisla-

ção trabalhista, mais liberdade legal de organização partidária, liberdade

de imprensa, divórcio e separação entre Igreja e Estado. Era o “batllismo

colorado” fortalecedor do centro-esquerda pelo enfraquecimento da ex-

trema-esquerda, para desespero da direita e, ainda mais, o da extre-

ma-direita. O “batllismo” era viabilizado financeiramente pelos auges de

exportações internacionais uruguaias de lã e carne.27

Crescente concorrência econômica mundial, mais o interno esgota-

mento burocrático populista do modelo, em meio a sucessivas crises

sociais e políticas com desfechos em golpes de Estado e ditaduras mi-

litares, levaram o Uruguai a crescentes instabilidades, até violentas lu-

tas armadas ideológicas em vez das apenas políticas do passado. Car-

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 151

27 � Zum Felde, Evolución histórica del Uruguay y esquema de su sociología, op. cit., pp.203-205, 179, 182, 181, 183, 217-224 e 229. A partir dessa contextualização sepode entender melhor Carlos M. Rama em José Batlle y Ordóñez y el movimiento obrero ysocial en el Uruguay, Montevidéu, Ediciones Nuestro Tiempo, 1956. Vide tb. deRama o Ensayo de sociología uruguaya, Montevidéu, Editorial Medina, 1957, pp. 331,338 e 339. Rama tb. pesquisou as idéias políticas e classes sociais no Uruguai eAmérica Latina.

los M. Rama28 e outros socialistas libertários chegaram a ver na Revo-

lução Cubana de Fidel Castro a saída para a crise, enquanto vinham

mais uma redemocratização nos fins do século XX e as várias etapas

da integração econômica pela Alalc (Aliança Latino-Americana de Li-

vre de Comércio), Aladi (Aliança Latino-Americana de Desenvolvi-

mento Integrado) e Mercosul (Mercado Comum do Sul), todos com

sede em Montevidéu.

Mario Benedetti, um dos novelistas uruguaios de maior projeção

internacional e também ensaísta político, viu nisso tudo outras oposi-

ções entre Norte (“Setentrión”) e Sul (“Meridión”) com seus conflitos

culturais de classes não só econômicas: “pobreza da cultura e cultura

da pobreza” dos meridionais diante dos setentrionais formadores de

opinião internacional,29 em meio aos protestos e rebeliões além dos

conflitos antevistos por Alberto Zum Felde e descritos por ele e Car-

los M. Rama.

O ensaísmo político-cultural uruguaio é de todos os da Ibero-Lati-

no-América o que percorreu itinerário mais paradigmático. Eduardo

Galeano escreveu o mais polêmico dos ensaios da região na segunda

metade do século XX: As veias abertas da América Latina em 1971, com vá-

rias traduções e reedições.

152 � Vamireh Chacon

28 � André Prudhommeaux – no artigo “L’énigme cubaine”, À travers le monde liber-taire, Marselha, n.o 74, novembro, 1961 – descreve a contradição de Carlos M. Rama.29 � Mario Benedetti, Subdesarrollo y letras de osadía, Madrid, Alianza Editorial, 1987,pp. 196-202 e 219-233.

A presença cultural do Méxicono Brasil do século XX

As relações culturais entre o Brasil e México no século XX foram

marcadas por grandes momentos, de intensa repercussão, em mútuas

descobertas. Do lado mexicano, o primeiro grande escritor a interes-

sar-se e vir pessoalmente ao Brasil, foi José Vasconcelos.

Ele havia sido reitor da Universidade Nacional Autônoma do

México – a UNAM, principal universidade do país – e ministro da

educação ainda na Revolução Mexicana, a ponto de lançar-se candi-

dato à presidência da República, sem êxito, o que o levou a intermi-

tentes e longas ausências em viagens ao exterior. Passou pelo Brasil

em 1922, quando Artur Bernardes concluía seu mandato de gover-

nador de Minas Gerais e assumia a presidência.1 José Vasconcelos

visitou o Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Juiz de Fora e Belo Ho-

rizonte, a caminho da Argentina por Paso de los Libres e Iguazu a

Buenos Aires, viajando por trem de São Paulo à fronteira do Brasil

com o Uruguai.

1 � José Vasconcelos, La raza cósmica, México D.F, Espasa-Calpe Mexicana, Colec-ción Austral n.o 802, 7.a ed., 1982, p. 107.

Do itinerário resultou seu livro La raza cósmica, publicado nos mea-

dos da década de 1920. Nele, o objetivo, explícito desde as primeiras

palavras do “Prólogo”, era demonstrar a universal miscigenação “hasta

formar un nuevo tipo humano, compuesto con la selección de cada uno de los pueblos

existentes”. Sua visão pessoal do Brasil lhe confirmou o futuro já come-

çado nesta parte da América Latina, superando antagonismos étnicos

e culturais excessivos em outros lugares. Gilberto Freyre cita-o.

Otimismo ou profecia? Pouco após a passagem de José Vasconce-

los, houve a Semana de Arte Moderna em São Paulo (1922) e a Sema-

na Regionalista (1926) no Recife. Nos seus contactos, concentrados

nas autoridades políticas que o recebiam e mostravam-lhe cidades e

campos, ele não pôde entrever ou pressentir as renovações no horizon-

te. José Vasconcelos foi sucedido no Brasil por outro mexicano,

Alfonso Reyes, este em permanência de quase dez anos no Rio de Ja-

neiro, década de 1930, em serviço diplomático de embaixador do seu

país na então capital federal. Nesta época, Carlos Fuentes, criança,

acompanhava o pai, diplomata mexicano também no Brasil. A seu

próprio pedido visitou o Rio de Janeiro em 1981, por iniciativa de

José Guilherme Merquior e Eduardo Portella.

No Brasil, Alfonso Reyes conheceu pessoalmente e conviveu com

o sociólogo Gilberto Freyre, o crítico literário e de ideias Tristão de

Athayde (Alceu Amoroso Lima), os poetas Manuel Bandeira, Ronald

de Carvalho, Jorge de Lima e Ribeiro Couto, os pintores Cícero Dias,

Portinari e Di Cavalcanti, ademais de Oswald de Andrade. Foi um dos

fundadores do Pen Clube do Brasil e frequentador da Sociedade Feli-

pe d’Oliveira. Do Rio de Janeiro lançou os treze primeiros números

da sua revista Monterrey. Contribuiu à tradução, do livro de Gilberto

Freyre, Brazil: An Interpretation, de início conferências nos Estados Uni-

dos na Universidade de Indiana, publicado em inglês, 1944; no espa-

154 � Vamireh Chacon

nhol castelhano no México no ano seguinte.2 O conceito de “homem

cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, provém de

diálogos de Ribeiro Couto com Alfonso Reyes, conforme o próprio

Sérgio Buarque ali declara.

O Brasil cativou Alfonso Reyes e foi por ele cativado, nas palavras

da sua neta Alicia Reyes: “Si Alfonso Reyes conquista a Río, Río conquista a nu-

estro Alfonso". Ela destaca, entre os amigos do avô, principalmente os

dois Gilbertos, Freyre e Amado, Rachel de Queiroz e Jorge Amado.3

Paralelamente à vida literária, Alfonso Reyes exerceu grande ativi-

dade de embaixador no Rio de Janeiro capital federal. Lá chegou após

longo périplo. Víctor Díaz Arciniega compilou e prefaciou todos seus

itinerários e relatórios, no livro em dois volumes Misión diplomática.

O pai de Alfonso Reyes era dos generais da Revolução Mexicana de

1910, Bernardo Reyes, assassinado nos seus conflitos, o que serviu de

lição ao filho, para não se meter na política interna e preferir trabalhar

no estrangeiro. Havia se graduado em Direito, recusou o convite do

presidente Victoriano Huerta, a quem o pai servira, para ser seu secretá-

rio particular. Prefere a nomeação de segundo secretário diplomático na

Espanha, mais de uma vez à França e Espanha, depois à Argentina e Bra-

sil em repetidas fases. Passou a ter paralelas vidas de escritor amigo de

escritores e eficiente diplomata profissional de carreira. Também repre-

sentou o México em diversas conferências internacionais.4

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 155

2 � Fred P. Ellison, Alfonso Reyes e o Brasil. Um mexicano entre cariocas, Rio de Janeiro,Consulado General de México – Topbooks, 2002, pp. 244, 254-258 e passim. LedoIvo, Aurélio Buarque de Holanda, Érico Veríssimo e Cyro dos Anjos muito contribuí-ram a tornar Alfonso Reyes mais conhecido no Brasil (vide idem).3 � Alicia Reyes, Génio y figura de Alfonso Reyes, México D.F., Fondo de Cultura Eco-nómica, 4.a ed., 2001, p. 199.4 � Vide “Cronologia” in Alfonso Reyes, Misión diplomática. México D.F, Fondo deCultura Económica-Secretaría de Relaciones Exteriores, 2001, I vol., pp. 109-116.

No início da carreira diplomática dedicou-se às leituras teóricas de

Baltasar Gracián, conselheiro espanhol de príncipes, e às práticas de

Talleyrand tão prudente que malicioso, para conseguir reimpor sua

França, vencida militarmente nos recentes tempos de Napoleão, po-

rém logo vitoriosa no Congresso e Tratados de Viena de 1815. Com

muita argúcia, Alfonso Reyes aponta a síntese gracianesca de O príncipe

de Maquiavel com O cortesão de Castiglione; também ele saberá unir na

vida as lições destes mestres italianos universais, compensando, com

êxito, algumas decepções pessoais. O assassinato do pai foi que prime-

iro o encaminhou à realidade da política e ao lado trágico da existên-

cia, superável por outras opções.

O diplomata Alfonso Reyes, chegou a tornar-se profissional até

técnico, sem esquecer a política, na “arte de observar e negociar.”5

O que aqui mais nos interessa são as suas passagens pelo Brasil de

1930 a 1936, com breve retorno em 1938 para missão especial. Seus

concisos e minuciosos relatórios são prova de grande competência.

Sua lista é longa, convém mencionar alguns dos mais importantes,

enviados do Brasil: Revolução de 1930, situação econômica e finance-

ira, refúgio de políticos depostos na Embaixada do México (inclusive

a família do ex-presidente Washington Luís), revanchismos, prepara-

ção da Insurreição Paulista de 1932, outra vitória do presidente Getú-

lio Vargas, Assembleia Nacional Constituinte e Constituição de

1934, agitações levando à Insurreição da Aliança Nacional Libertado-

ra liderada pelos comunistas em 1935, outras dificuldades econômi-

cas e sociais, anistias, mais agitações rumo ao golpe do Estado Novo

em 1937, ao qual Alfonso Reyes não assiste por ter sido transferido

há pouco à Argentina, onde conclui a carreira de embaixador, voltan-

156 � Vamireh Chacon

5 � Víctor Díaz Arciniega, Víctor. “Prólogo: El organizador de la esperanza”, Mi-sión diplomática, op. cit., I vol., pp. 14, 15, 109, 110, 25, e 61.

do brevemente ao Brasil em 1938, para negociar importante acordo

de exportação de petróleo mexicano, numa fase de boicote internacio-

nal ao México pela estatização das multinacionais do ramo.6

Alfonso Reyes volta ao seu país num momento de excepcional im-

portância para ele e os demais: avizinhava-se a Segunda Guerra e ter-

minara a Guerra Civil na Espanha exilando milhares de adversários

políticos sem rumo, aos quais convinha ao México fixar no que ti-

nham de melhor. Ele servira, mais de uma vez, jovem, nas embaixadas

em Madrid e Paris, conhecia muito de perto o ambiente intelectual e

político. Ainda em início carreira, assumiu a página semanal literária

de jornal madrilenho a convite de Ortega y Gasset.

Com amplos, profundos e diversificados contactos internacionais,

durante longas e intensas vivências diplomáticas, Alfonso Reyes assume

a presidência do patronato de La Casa de España en México, março de

1939, criada ao término da Guerra Civil espanhola perto da Segunda

Guerra Mundial. Permaneceu na presidência, e do sucessor, o Colegio

de México, até falecer em 1959. Definiu suas linhas fundamentais em

artigo (“The Casa de España en México”) na revista Books Abroad nos

Estados Unidos (Oklahoma), volume XII, número 4, 1939. A funda-

ção da Casa se insere nas realizações do último presidente do derradeiro

ciclo revolucionário mexicano, o general Lázaro Cárdenas.

O companheiro de Alfonso Reyes na estruturação de La Casa de

España foi Daniel Cosío Villegas que, em 1934, fundara a editora

Fondo de Cultura Económica com publicações de grande circulação

na América Hispânica, Espanha e Brasil. O Fondo lançou livros de

Alfonso Reyes, ao lado de vários clássicos de língua espanhola ou clás-

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 157

6 � A maior parte de Misión diplomática está composta por relatórios oficiais deAlfonso Reyes. Também diplomata, Octavio Paz, mais conhecido no Brasil após Prê-mio Nobel em 1990.

sicos estrangeiros, inclusive modernos, traduzidos antes mesmo de

aparecerem em francês ou noutro idioma.7 Cosío Villegas havia esta-

do em Valência, última capital da Espanha republicana pouco antes

de ser ocupada pelas tropas do generalíssimo Francisco Franco, em

tempo de convidar os principais intelectuais interessados em refugia-

rem-se no México. Cosío Villegas era encarregado dos negócios da

Legação mexicana em Lisboa e relatava ao seu governo as inquietações

locais quando dos atentados em 20/21 de janeiro de 1937.8

A ideia inicial foi criar o Centro Español de Estudios, trocado em

20 de agosto de 1938 para La Casa de España en México, com a ex-

plícita finalidade de convidar “a un grupo de profesores y intelectuales españoles

para que vinieran a México a proseguir los trabajos docentes y de investigación que han

debido interrumpir por la guerra.” O subsecretário de Educação, equivalen-

te a vice-ministro (no México os ministérios eram chamados de secre-

tarias, ao modo dos Estados Unidos), Wenceslao Roces, ele próprio

intelectual, intermediara o projeto junto ao secretário Jesús Hernán-

dez e o presidente Lázaro Cárdenas, a pedido de Cosío Villegas. O

inicial convite era de pelo menos um ano de permanências, a prorro-

gar-se por acordo entre as partes.

158 � Vamireh Chacon

7 � Clara Eugenia Lida, em colaboração com José Antonio Matesanz e participa-ção de Beatriz Morán Gortari, La Casa de España en México, México D.F., El Colegio deMéxico, 1988, pp. 89, 100, 10 e 11.8 � Houve explosões em prédios públicos e instalações de petróleo na noite de 20de janeiro e manhã do dia seguinte em Lisboa, 1937. Daniel Cosío Villegas relatou osacontecimentos ao secretário de Relações Exteriores do México em 31 daquele mês eano. Interessam-lhe principalmente os relacionamentos (e ajudas) de Salazar a Francona Guerra Civil espanhola. Vide Alberto Enríquez Perea, compilador e comentador dadocumentação Daniel Cosío Villegas y su misión en Portugal (1936-1937), México D.F., ElColégio de México – Secretaría de Relaciones Exteriores, 1998. Não confundir como atentado à vida de Salazar em 4 de julho de 1937 (a propósito vide Valdemar Cruz,Histórias secretas do atentado a Salazar, Porto, Campo das Letras, 1999).

Entre os primeiros convidados estavam Menéndez Pidal e Dámaso

Alonso (que preferiram não vir), Cláudio Sánchez Albornoz (então

embaixador da Espanha republicana em Portugal), José Gaos (reitor

da Universidade Central de Madrid), Joaquín Xirau (diretor da Fa-

culdade de Filosofia e Letras da Universidade de Barcelona), mais crí-

ticos de arte, musicó1ogos e médicos. Também convidados o jurista

Luís Recaséns Siches (nascido na Guatemala, porém de pais espa-

nhóis, educado na Espanha) e os escritores José Moreno Villa e León

Felipe Camino, os três já estavam no México.9

Existiam outros abrigos internacionais para intelectuais espanhóis

exilados pela Guerra Civil: o Instituto de las Españas (dirigido por Fe-

derico de Onís, que retransmitirá na Universidade de Columbia,

Nova York, ao estudante Gilberto Freyre a visão da Espanha como

Espanhas, ele o relata nas suas memórias de adolescência e primeira

mocidade, Tempo morto e outros tempos) e os Centros Republicanos em di-

versos países.

Vários exilados espanhóis, de alto nível intelectual em muitas

áreas, inclusive de pesquisas em laboratórios, se reunirão aos primei-

ros; entre eles o soció1ogo José Medina Echavarría e a filósofa Ma-

ría Zambrano, assistente de Ortega y Gasset. Eugenio Ímaz colabo-

rou com La Casa de España en México, porém não fazia parte ofici-

almente.

Em 3 de novembro de 1939, La Casa de España en México mudou

o nome para Colegio de México. Poucos egressos da origem deixaram

de acompanhar a mudança. Alfonso Reyes continuou na presidência.

O Colegio de México instalou-se inicialmente na sede da editora Fon-

do de Cultura Económica, ainda hoje estão em dois edifícios vizinhos

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 159

9 � Idem, pp. 42-45, 53, 86,149,28,30,44 e 47-52.

e prossegue sua colaboração sempre autônoma. A mexicanização nada

renegará desta fecunda semente espanhola.10

Dos professores espanhóis o Fondo publicou, entre outros livros e

autores, Pensamiento de Dilthey e Asedio a Dilthey de Eugenio Ímaz, Intro-

ducción a El ser y el tiempo de Martín Heidegger e Sobre Ortega y Gasset de José

Gaos, revelando esses autores à América Hispânica e Brasil; José Me-

dina Echavarría trouxe o sentido prático da pesquisa, antes de os so-

ció1ogos empíricos dos Estados Unidos se tornarem mais conhecidos

no Brasil, a partir de Gilberto Freyre em Sociologia (Introdução ao estudo dos

seus princípios), 1945, que também cita Medina Echavarría, lido pelo

brasileiro em Sociología (Teoría y técnica), Filosofía, educación y desarrollo e

Consideraciones sobre el desarroIlo económico de América Latina.

Eugenio Ímaz, também republicano espanhol exilado, foi o tradu-

tor que mais se destacou no Fondo, ao sozinho verter do alemão ao es-

panhol a Introducción a las ciencias del espíritu (1944) de Dilthey, e, em

companhia de outros, Economía y sociedad (ambos em 1944) de Max

Weber.

O Fondo de Cultura Económica do México também muito se dis-

tinguiu por outras pioneiras traduções, com grande circulação: Karl

Mannheim, (ldeología y utopía, 1941) e Libertad y planificación (1942);

principalmente Introducción a las ciencias del espíritu de Wilhelm Dilthey e

Economía y sociedad de Max Weber, ambos em 1944, quando estes dois

ainda não estavam traduzidos em qualquer outro idioma. Traduções

feitas pelos exilados espanhóis no México. Outra marcante tradução

foi El apogeo del capitalismo de Werner Sombart – composta por dois dos

volumes de O capitalismo moderno – no mesmo ano da publicação tradu-

zida dos três de El capital de Karl Marx. A partir daí, estava preparada a

160 � Vamireh Chacon

10 � Ibidem, pp. 39,40,174-177,131,134,167,171 e 174-177.

primeira geração mexicana formada por La Casa de España e Colegio

de México. Aquela primeira geração mexicana estendeu as traduções

aos clássicos da crítica literária da época: Erich Auerbach, Mímesis

(1950) e Ernst Robert Curtius, Literatura europea y Edad Media latina

(1955). Em outras editoras Eduardo García Máynez era o mais co-

nhecido dos jusfilósofos mexicanos.

O grande desenvolvimento da antropologia e etnografia no Méxi-

co ensejou também a publicação de importantes textos pelo Fondo de

Cultura Económica.

No Brasil, pelo menos duas gerações receberam especial influência

destas e de outras edições do Fondo de Cultura Económica, ademais

do pensamento próprio dos espanhóis então radicados no México, e

pela Revista de Occidente fundada por Ortega y Gasset em Madrid que

merece estudos à parte: era a geração de Celso Furtado, Hélio Jaguari-

be e Cândido Mendes de Almeida; e a seguinte, a de Eduardo Portella,

Gilberto de Melo Kujawski, José Guilherme Merquior, Sergio Paulo

Rouanet, Nelson Saldanha e eu próprio, quase todos egressos de Fa-

culdades de Direito; as de Filosofia, Ciências (inclusive Sociais) e Le-

tras ainda estavam começando. Estas importantes influências, espa-

nhola e mexicana, compõem, juntas, a principal influência intelectual

hispânica no Brasil do século XX, ao lado de outras, literárias, princi-

palmente de García Lorca e Antonio Machado, e as filosóficas de

Ortega, Unamuno e Zubiri.

Sem exagero pode-se dizer que este foi o inicial impulso intelectual

em filosofia e ciências sociais daquelas gerações de brasileiros, antes de

irem diretamente aos textos originais em alemão ou inglês. Revelações

paralelas às por Raymond Aron em A filosofia alemã contemporânea e A so-

ciologia alemã contemporânea, apresentando, em francês, estes temas, espe-

cialmente Max Weber, assim conhecido no Brasil e América Hispâni-

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 161

ca antes dos anglófonos, natos ou assimilados, sob influência de Tal-

cott Parsons ou pelas traduções por Hans Gerth e Wright Mills, na

realidade mais pelo alemão Gerth, residente nos Estados Unidos, que

por seu divulgador americano Mills.

Predominavam as influências espanholas, através do México ou di-

retamente da Espanha por Ortega y Gasset e Unamuno, somadas às

francesas de Aron (e da revelação de Hegel pelos estudos críticos de

Jean Hyppolite e Alexandre Kojève, mais a da fenomenologia por Ma-

urice Merleau-Ponty naqueles anos logo após a Segunda Guerra

Mundial, quando Jean-Paul Sartre começava conhecido sobretudo pe-

los romances e polêmicas políticas), mais as influências italianas de Be-

nedetto Croce, introdutórias a Hegel e à estética, além do também, por

outros motivos importante, Giovanni Gentile. Também traduções

italianas apresentavam Adorno e outros ao Brasil. Assim principiou a

formação intelectual cosmopolita daquelas duas gerações.

O Colegio de México, e seus criadores, foram importante inspira-

ção na fundação do Colégio do Brasil no Rio de Janeiro por Eduardo

Portella em 1967.

162 � Vamireh Chacon

Gilberto Freyreibero-americano

Gilberto Freyre é o mais ibero-americano dos autores brasileiros.

Ele também disso tinha consciência desde as raízes, como fazia

questão de lembrar o “y”galego do seu nome e, na conferência Como e

porque sou e não sou sociólogo pronunciada na Universidade de Brasília,

1968, reconhece pertencer “antes à forma ibérica de escritor e analista

do Homem que a qualquer outra”, “por direito tanto de quem nasceu

ibérico como de quem (...) conquistou essa condição ibérica em pleni-

tude e talvez em profundidade, pela sua intensa identificação, desde

adolescente, e sendo sempre brasileiro, com os estilos e valores, da

Espanha e não apenas Portugal”.1

Era a Espanha das Espanhas da castelhana à galega, catalã e basca,

entre outras, nele presentes pelo andaluz Ángel Ganivet, o castelha-

no cosmopolita Ortega y Gasset, o basco Unamuno admirador de

Portugal, o também basco universal Pio Baroja, o catalão Raimundo

Lúlio, o valenciano Luís Vives, além de Federico de Onís e de Amé-

rico Castro que lhe apresentam a síntese.

1 � Como e porque sou e não sou sociólogo, Brasília, Editora da Universidade de Brasília,1968, p. 175.

Ainda em 1968, Gilberto Freyre dizia em Buenos Aires no Con-

gresso para o Desenvolvimento Cultural e Científico da América His-

pânica, usando o próprio idioma castelhano:

“La civilización hispánica es así una civilización que se ha caracte-

rizado por la variedad de proyecciones personales y no meramente na-

cionales, en lo que tiene de complejo. Más aún: por la variedad de ex-

presiones linguísticas – castellano, portugués, catalán, gallego – de

que se han servido y se sirven hoy no sólo grupos nacionales y cuasi

nacionales diversos, sino personalidades también diferentes, en prove-

cho del complejo o del todo hispánico”.2

No texto reproduzido (1975) em O brasileiro entre os outros hispanos

(Afinidades, contrastes e possíveis futuros nas suas inter-relações), estende a fra-

ternidade do berço ibérico à vizinhança:

“O Brasil está assim em família entre as nações americanas de

origem principalmente espanhola. Compreende-as. Sabe que

elas diferem em algumas formas de comportamento e não só

na fala, porém não lhe falta a consciência de afinidades mais

profundas que essas diferenças, aliás saudáveis”.3

Em Portugal Gilberto Freyre esteve muitas vezes, nas Espanhas em

menor número, porém não com menor intensidade. À fronteira da

América Hispânica foi desde quando, estudante na Universidade de

Baylor no Texas, 1919, visitou San Antonio e El Paso nos Estados

Unidos diante do México, e lá encontrou “suas cores de trajes, seu es-

164 � Vamireh Chacon

2 � “La cultura hispánica frente a las nuevas situaciones, vista por el doctor Gilber-to Freyre”, O brasileiro entre os outros hispanos (Afinidades, contrastes e possíveis futuros nas suas in-ter-relações), Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1975, p. 160.3 � Idem, pp. XXXI-XLIX.

panhol cantado em que a influência indígena se faz sentir”, “sua culi-

nária de sabores ardentes e cheiros fortes”.4

Em 1941 ele vai às capitais e interiores da Argentina, Uruguai e Pa-

raguai. Alonga-se em Buenos Aires e Montevidéu. Sobe os afluentes

do Prata por Rosário, Corrientes, Paraná, até Assunção. Interessa-se

tanto pelas culturas da literária à culinária e costumes sociológicos,

quanto por suas histórias nacionais e locais, inclusive a da Bolívia no

Quarto Centenário da sua capital, La Paz, em artigos publicados nos

jornais. Edson Nery da Fonseca reuniu (2003) aqueles textos gilberti-

anos no livro póstumo Americanidade e latinidade da América Latina.

Aproxima-se pessoalmente de Eduardo Mallea, diretor da coleção

na Editorial Emecé de Buenos Aires, na qual Mallea incluiu a segunda

edição (1943) da primeira (1942) tradução de Casa-grande & senzala,

sob esse título e com o subtítulo Formación de la familia brasileña bajo el régi-

men de economía patriarcal traduzida por Benjamín de Garay e prefaciada

por Ricardo Sáenz Hayes, primeira edição pelo Ministério de Justiça

e Instrução Púb1ica da Argentina. O prefaciador recorda que “Não

será redundante lembrar que os valores genuínos da literatura brasileira

sempre foram lembrados na República Argentina”. Em 1945 surge no

México Interpretación del Brasil, no mesmo ano de Brazil: An Interpretation em

Nova York. Era o início da repercussão internacional gilbertiana.

A iberidade cultural, não confundi-la com o iberismo político, é

por Gilberto Freyre apresentada como universalidade da sua adapta-

ção e recriação principalmente nos trópicos, daí a luso-tropicologia e

hispano-tropicologia, dentro da geral científica tropicologia, em vez

dos políticos luso-tropicalismo e hispano-tropicalismo inicialmente

por ele apresentados. Há até um tempo ibérico, como se lê no seu en-

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 165

4 � Tempo morto e outros tempos (Trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade.1915-1930), Rio de Janeiro, Livr. J. Olympio Edit., p. 38.

saio “On the Iberian Concept of Time”, tempo mais qualitativo que quanti-

tativo, ao contrário do tempo sobretudo utilitarista dos anglo-saxões;

tempo vivencial também no Marcel Proust não ibérico porém latino

francês, tão querido por Gilberto Freyre,muito além do tempo crono-

métrico comercial do “time is money”, tempo apenas contábil, em vez de

tempo fluído e fruído.

A engenharia humana é psicossocial, além da engenharia matemáti-

ca gerencial. Uma está naturalmente ligada à outra, embora distinguí-

veis numa dialética ora de antagonismos, ora de complementaridades.

A Ibero (Luso-Hispânica)-América é latina pelos idiomas neolatinos

português e castelhano, mais muitos imigrantes galegos no Brasil e bascos

e catalães na América Hispânica, e o Direito Romano formatador dos

seus Estados. O catolicismo romano vem sendo em grande parte substi-

tuído por denominações evangélicas, porém pentecostais, mesmo indire-

tamente na linha sociológica do culto ibérico ao Divino Espírito Santo.

A América Latina é um conceito francês a partir do Traité diplomati-

que sur l’Amérique latine em 1862 do jurista Charles Calvo, uma defesa da

expedição de Napoleão III para impor Maximiliano de Habsburgo no

trono do México, alegando fatores culturais para justificação dos inte-

resses econômicos da França então contra os Estados Unidos.

Depois do fracasso da expedição, outros franceses voltaram a insis-

tir: o Admiral F. de Fontpertuis em Les états latins de l’Amérique: Mexique,

Pérou, Chili, républiques diverses, Brésil, Cuba, etc, etc, 1882 e Le génie latin de

Anatole France ampliado em livro de 1913. Jean-Jacques Brousson,

secretário de Anatole France, revelou, no diário de viagem Itinéraire de

Paris à Buenos-Ayres (1927), após o falecimento do patrão, indelicadas

opiniões dele sobre a América Latina.

Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, os futuros primei-

ro-ministro Georges Clemenceau e presidente da França Raymond

166 � Vamireh Chacon

Poincaré resolveram passar do anti-anglo-americanismo ao anti-ger-

manismo nas suas pessoais propagandas francófilas na América Lati-

na: Clemenceau em suas Notes de voyage (1911) de visita ao Brasil,

Argentina e Uruguai; Poincaré prefaciando Les démocraties de l’Amérique

latine do peruano García Calderón em 1912.

No Brasil inclusive antigos germanófilos se voltavam contra a Ale-

manha em defesa da França, ao modo de Graça Aranha, que escrevera

o romance Canaã (1902) com dois alemães como personagens dialo-

gando na selva brasileira, e passara a prefaciar O plano pangermanista des-

mascarado de André Chéradame, traduzido (1917) em muitas línguas

na Primeira Guerra Mundial.

O esforço francês de atrair politicamente a América Latina teve,

então, êxito, mas a expressão demorou a estender-se: em 1880 os pró-

prios portugueses ainda usavam América do Sul no livro Missão do Vis-

conde de São Januário, um dos seus diplomatas. Em 1908 a italiana Gina

Lombroso Ferrero, filha do criminalista Cesare Lombroso e esposa

do historiador Guglielmo Ferrero, escrevia diário também de viagem

sob o título Nell’America meridionale. Sir James Bryce-Lord Bryce, embai-

xador da Grã-Bretanha nos Estados Unidos, ainda insistia (1913) em

South America (Observations and Impressions).5

Foi Gilberto Freyre quem no Brasil primeiro definiu como Ibe-

ro-América a América Latina.

O conhecimento da ensaística social hispano-americana é por Gil-

berto Freyre pormenorizado no segundo volume da segunda edição

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 167

5 � Vide Vamireh Chacon, “A invenção da América Latina”, Política externa, São Paulo,Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais-Universidade de São Paulo-Edito-ra Paz e Terra, vol. 11, n.o 4, março-abril-maio, 2003; tb. sob o mesmo título em Eco-nomia e Sociologia, Gabinete de Investigação e Ação Social do Instituto Superior Econô-mico e Social de Évora, n.o 78, 2004.

(1957) de Sociologia (Introdução ao estudo dos seus princípios), desde os pessi-

mistas César Zumeta, Manuel Ugarte e Alcides Argüedas aos clássicos

Alberdi e Sarmiento e os modernos García Calderón, Quesada, Alber-

to Zum Felde, Luís Alberto Sánchez, J. Natalicio González, Samuel

Ramos, Daniel Cosío Villegas, Mendieta y Nuñez, Jesús Silva Her-

zog, José Medina Echavarría, até os pioneiros estudos sobre negros e

índios por Agustín Álvarez, Juan Agustín García, I. Pereda Váldez e

Fernando Ortiz, entre outros.Com Rouano Fournier no Uruguai (1941), Gilberto Freyre chegou

a esboçar um projeto de organizar em Montevidéu um instituto de pes-quisas da América Hispânica rural, “estudo social que fosse principal-mente sociológico em seus propósitos e métodos, porém também histó-rico, ecológico, tecnológico, econômico. Infelizmente, as circunstânciasde momento não se revelaram favoráveis a tais estudos”.6

Especial atenção Gilberto Freyre dedicava aos argentinos Facundo

de Sarmiento, Radiografía de la pampa e La cabeza de Goliat de MartínezEstrada, Historia de una pasión argentina de Eduardo Mallea, ao colombia-no Germán Arciniegas com Biografía de Caribe e a El huracán do cubanoFernando Ortiz, cujas leituras costumava me recomendar dentre ou-tras fundamentais.

Alfonso Reyes, quando embaixador do México no Brasil, tor-nou-se amigo de vários intelectuais brasileiros, Gilberto Freyre entreeles, leitores dos seus livros e da sua revista Monterrey.7

168 � Vamireh Chacon

6 � Sociologia (Introdução ao estudo dos seus princípios), 2.a ed. Rio de Janeiro, Livr. J.Olympio Edit., 1957, II vol., pp. 591 e 592.7 � Vide a neta Alicia Reyes, Génio y figura de Alfonso Reyes, 4.a ed., México, Fondo deCultura Econômica, 2001, p. 199 e o latino- americanista estadunidense Fred. P. Elli-son, Alfonso Reyes e o Brasil (Um mexicano entre cariocas), Rio de Janeiro, Consulado Gene-ral de México/Topboooks, 2002, pp. 244, 254-258 e passim.

Gilberto Freyre manteve interesse pelo ensaísmo de Lúlio e Vives,

mesmo ao ler Ganivet, Ortega y Gasset, Unamuno, Eugenio d’Ors,

Azorín, Américo Castro (e Ferrater Mora), como se vê nos aponta-

mentos memorialísticos de Tempo morto e outros tempos, anotados na ju-

ventude nas universidades de Baylor, Columbia e Oxford. Interesse in-

sistido e ampliado à ensaística hispano-americana em Sociologia, adema-

is da muita iberidade de A propósito de frades (1959), Como e porque sou e

não sou sociólogo (1968), O brasileiro entre os outros hispânicos (1975), até os

póstumos Americanidade e latinidade da América Latina e outros textos afins e

Palavras repatriadas, reunidos por Edson Nery da Fonseca em 2003,

portanto ao longo de toda a vida. Paixão intelectual e mesmo existen-

cial, tão grandes, Gilberto Freyre só teve pela cultura e civilização in-

glesas, as do Brasil eram a razão de ser maior de toda sua vida, como se

vê também nas suas memórias Tempo morto e outros tempos. Portugal com-

parecia-lhe, ligado pela primeira miscigenação com índios e negros às

raízes mais profundas da brasilidade, depois com outras migrações,

como se vê de Casa-grande & senzala a Um engenheiro francês no Brasil e Nós e

a Europa germânica.

Os povos da lusofonia e hispanofonias culturais, miscigenados

com muitos outros, compõem a Grande Ibéria de Portugal e Espanhas

ao Brasil, América Hispânica, Países africanos de língua portuguesa e

Timor-Leste num dos maiores conjuntos em integração no mundo.

� O Brasil e o ensaio hispano-americano 169

� Composto em Monotype Centaur 11/15 pt: notas, 9/12 pt.