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JUCIENE RICARTE APOLINÁRIO Os Akroá e outros povos indígenas nas Fronteiras do Sertão - As práticas das políticas indígena e indigenista no norte da capitania de Goiás – Século XVIII Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco para obtenção do título de Doutora em História.Área de Concentração: História do Norte e Nordeste do Brasil Orientadora: Diana Soares de Galliza Co-Orientadora: Virgínia Maria Almoedo de Assis Recife 2005

Como enfatiza Manuela Carneiro da Cunha,

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  • JUCIENE RICARTE APOLINRIO

    Os Akro e outros povos indgenas nas Fronteiras do Serto -

    As prticas das polticas indgena e indigenista no norte da capitania de Gois Sculo XVIII

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco para obteno do ttulo de Doutora em Histria.rea de Concentrao: Histria do Norte e Nordeste do Brasil Orientadora: Diana Soares de Galliza Co-Orientadora: Virgnia Maria Almoedo de Assis

    Recife 2005

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    Apolinrio, Juciene Ricarte.

    Os Akro e outros grupos indgenas nas fronteiras do serto As prticas das polticas indgena e indigenista no norte da capitania de Gois Sculo XVIII./ Juciene Ricarte Apolinrio; orientadora: Diana Soares de Galliza; co-orientadora: Virgnia Maria Almoedo de Assis. __ Recife, 2005. 269 f.: fig.

    Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Histria. rea de concentrao: Histria do Norte e Nordeste do Brasil ).

    Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), 2003.

    1. Akro. 2. Poltica Indgena. 3. Poltica Indigenista. 4. Resistncia

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    DEDICATRIA

    A Juraci Ricarte Cardoso, minha me, exemplo de mulher nordestina guerreira, com amor e carinho pela doao integral durante a elaborao da minha Tese. A Josivaldo Apolinrio da Silva, meu amor, minha admirao e gratido por sua compreenso e incansvel apoio ao longo do perodo de produo deste trabalho. A Gabriel Henrique Ricarte Apolinrio, meu lindo amor, que nasceu no processo de elaborao final da minha Tese.

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus pela capacidade intelectual que me cumulou ao longo da produo da minha Tese.

    Profa. Dra. Diana Soares de Galliza, minha orientadora, pela colaborao, ateno e

    apoio no processo de elaborao da minha Tese.

    Profa. Dra. Virgnia Maria Almoedo de Assis, minha co-orientadora, pela importante contribuio no processo de elaborao do Projeto de Tese e na formatao do trabalho final. Ao Prof. Dr. Eugnio dos Santos, pelo apoio e valorosa orientao disponibilizada na Universidade do Porto - Portugal, quando me encontrava com Bolsa de Doutorado no Exterior. Ao Prof. Dr. Ricardo Pinto de Medeiros pela contribuio no primeiro formato do projeto da presente Tese, quando vivenciamos em 1998 os dias frios no Arquivo Histrico Ultramarino em Lisboa Portugal e pelas sugestes importantes no texto final do trabalho. Aos professores Durval Muniz e Antnio Torres Montenegro, pelas contribuies terico-metodolgicas repassadas nas disciplinas ministradas. Ao Prof. Caio Bochi, valoroso historiador e querido amigo, pelas primeiras indicaes de leituras para a elaborao do meu Projeto de Tese quando ainda nos encontrvamos em Lisboa Portugal, desenvolvendo o Projeto Resgate Baro do rio Branco e pela indicao do Orientador no Exterior. A Ftima Martins Lopes, amiga dos momentos alegres e difceis e companheira de pesquisa nos arquivos do Rio de Janeiro, pelas leituras, indicaes bibliogrficas e documentais que contriburam para a realizao deste trabalho. A Jocylia Santana, amiga de todas as horas e grande colaboradora no perodo em que cursei o doutorado, pelo apoio e contnua ateno disponibilizada. A rika Simone de Almeida Carlos, querida amiga que me acolheu na sua residncia em Lisboa Portugal no perodo em que eu estava com Bolsa de Doutorado no Exterior e nunca me faltou nos momentos em que precisei me enviando documentos do Arquivos Histrico Ultramarino. A Patrcia Alexandra Ramalho de Almeida, amiga portuguesa que sempre me estimulou nos momentos difceis em Lisboa e pelo envio de documentos da Biblioteca Nacional de Lisboa Portugal para a concluso da minha Tese. A Leny Kasaly Anzai, companheira inseparvel da labuta diria de pesquisa nos arquivos portugueses, pelo apoio emocional. A Cristina de Cssia, uma amiga que no mediu esforos em me apoiar nos momentos de dificuldades vividos no processo de pesquisa em Lisboa-Portugal.

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    turma de doutorado 2001/1 pelo coleguismo e contribuies nas discusses terico-metodolgicas em sala-de-aula, especialmente Serioja, Pedro e Edvaldo. A Antnio Csar Caldas Pinheiro pela amizade e apoio no processo da pesquisa e aos amigos do Instituto de Pesquisas Histricas do Brasil Central pela considerao que sempre me dedicaram. A Esther Caldas Bertollete pelo apoio intelectual ao longo dos ltimos sete anos e pela grande oportunidade de contribuir com o Projeto Resgate Baro do Rio Branco. Ao meu amigo e colega de trabalho, Lailton Alves Costa, a minha admirao e carinho, pela grande contribuio na formatao final da presente Tese. A Carmem, pela ateno e indicao de documentos cartogrficos respeitantes a capitania de Gois, e a todos os colegas do Arquivo Histrico Estadual de Gois, pela forma atenciosa como recebem os consulentes. minha aluna Yony, pelo apoio no processo final da formatao do meu trabalho. A todos os amigos do Arquivo Histrico Ultramarino, que de uma forma ou de outra colaboraram com o desenvolvimento deste trabalho. Aos meus irmos Juclia Ricarte Ribeiro e Juclio Ricarte Cardoso e a toda a minha famlia, pelo carinho, apoio na minha vida intelectual e palavras de soerguimento no processo de elaborao da minha Tese. Fundao Universidade do Tocantins e a Fundao Universidade Federal do Tocantins, pelo apoio na realizao do meu Curso de Doutorado. A CAPES, pela concesso da bolsa de doutorado no Brasil e no exterior e pelo apoio financeiro para a realizao desta pesquisa.

  • 7

    Pode ser utopia, mas como seria maravilhoso se no existisse a desigualdade entre os seres humanos que habitam na face da terra e que a Lei fosse aplicada para todos indistintamente. O homem dito civilizado s vem guiando, e dominando todos ns, povos indgenas, para criar o seu prprio destino, porm, de forma incerta e nefasta, no respeitando as nossas diversidades scio-culturais.

    Kohalue Karaj

    (Defesa de Monografia do Curso de Direito na Universidade Federal do Tocantins. Dez/2004)

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    RESUMO

    APOLINRIO, J. R. Os Akro e outros povos indgenas nas Fronteiras do Serto - As prticas das polticas indgena e indigenista no norte da capitania de Gois Sculo XVIII. 2005. 268f. Tese (Doutorado) Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco.

    A tese objetiva analisar as prticas das polticas indgena e indigenista no antigo norte de Gois do sculo XVIII, enquanto processos polticos dinmicos, formados pela interao dos sujeitos histricos, indgenas e no-indgenas diante das diversas situaes coloniais construdas em uma regio de minerao. A construo histrica das aes polticas dos grupos tnicos, especialmente os Akro possibilitou a ressignificao da histria dos povos indgenas nas fronteiras dos sertes do Piau e Gois, identificando as suas prticas polticas. Na documentao oficial, que dota de sentido o outro, foi preciso rastrear as etnias indgenas abordando as suas localizaes e as suas aes de resistncia diante do projeto assimilacionista do colonizador e ao mesmo tempo discorrer acerca dos discursos etnocntricos construdos pelos luso-brasileiros sobre os grupos tnicos localizados na capitania de Gois. Ademais realizada uma anlise das prticas da poltica indigenista portuguesa na capitania de Gois, mas especificamente, na sua regio norte ao longo do perodo setecentista. Polticas contraditrias e multifacetadas que utilizavam diferentes instrumentos de poder para tornar os indgenas meros vassalos.

    Palavras-chave: Akro, serto, poltica indgena, poltica indigenista, resistncia.

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    ABSTRACT

    APOLINRIO, J. R. Akro and other indigenous people in the Borders of the Interior. The practices of the indigenous and indigenes politics in the north of the captaincy of Gois - Century XVIII. 2005. 268 f. Thesis (Doctoral) - Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco.

    The thesis aims to analyze the practices of the indigenous and indigenes politics in the old north of Gois of the century XVIII, while dynamic political processes, formed by the interaction of the historical subjects, Indians and no-Indians due to the several colonial situations built in a mining area. The historical construction of the political actions of the ethnic groups, especially Akro it made possible that there was a new meaning for the history of the indigenous people in the borders of the interiors of Piau and Gois, identifying your conscious political practices, while historical subjects. In the official documentation, that it endows of sense the " other ", it was necessary to trace the indigenous ethnic approaching your locations and your resistance actions before the settler's project assimilated and at the same time to discourse concerning the speeches ethnocentric built by the Portuguese-Brazilian ones on the located ethnic groups in the captaincy of Gois. Is accomplished an analysis of the practices of the politics indigenes Portuguese in the captaincy of Gois, but specifically, in your north area along the period. Contradictory politics that used different instruments of power to turn the natives vassals.

    Key - Word: Akro, indigenous politics, indigenes politics, resistance

  • 10

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - rea de localizao de aldeias e deslocamentos dos Akro (entre os sculos XVII e XVIII) ......................................................................................................................32

    Figura 2 - Gravura Piau ......................................................................................................36

    Figura 3 - Os Akro no serto do Piau ...............................................................................39

    Figura 4 - Rio Tocantins (Sculo XVIII) ............................................................................78

    Figura 5 - Incurses do Akro no serto da capitania de Gois.......................................... 79

    Figura 6 - Mapa da Misso de So Francisco Xavier ........................................................101

    Figura 7 - Planta de So Jos de Mossmedes.................................................................. 139

    Figura 8 - Perspectiva Geral da Aldeia de So Jos de Mossmedes............................... 139

    Figura 9 - Roteiro da Expedio de Andr Fernandes (1613-1615), das nascentes do Tocantins a So Paulo........................................................................................................146

    Figura 10 - Itinerrio da Bandeira de Sebastio Paes de Barros (1670- 1674)................147

    Figura 11 - Mapa da rea de minerao de ouro (sculo XVIII) ......................................152

    Figura 12 - Diretrio pombalino (1757-1798) ..................................................................166

    Figura 13 - Mapa do Rio Araguaia e Ilha do Bananal (sculo XVIII).............................. 179

    Figura 14 - Mapa da Capitania de Gois........................................................................... 215

    Figura 15 - Mapa da Capitania de Gois (detalhe 1) .........................................................216

    Figura 16 - Mapa da Capitania de Gois (detalhe 2) .........................................................217

    Figura 17 - Mapa da Capitania de Gois (detalhe 3) .........................................................219

    Figura 18 - Mapa da Capitania de Gois (Tossi Colombina)............................................ 220

    Figura 19 - Mapa da Capitania de Gois (Tossi Colombina -detalhe) ..............................221

    Figura 20 - Mapa da Capitania de Gois (Thomaz de Sousa) ...........................................222

    Figura 21 - Mapa da Capitania de Gois (Thomaz de Sousa - detalhe)............................ 223

    Figura 22 - Mapa Geral de toda capitania de Vila Boa de Gois ......................................224

  • 11

    LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 - Relao dos povos indgenas localizados na regio do antigo norte de Gois, atual Tocantins de acordo com a documentao arrolada (sculo XVIII) .......................... 16

    QUADRO 2 - Lista dos Indgenas Akro pertencentes ao presdio da Formiga que se reduziram a paz ................................................................................................................. 109

    QUADRO 3 - Nmeros de indgenas Akro encontrados no Aldeamento da Formiga em 1754 na visita feita pelo padre Jos de Matos .................................................................. 110

    QUADRO 4 - Relao dos indgenas Akro, Kayap, Xavante, Karij , Karaj e Java que se encontram na aldeia de So Jos De Mossmedes (1780) ........................................... 143

    QUADRO 5 - Legislao indigenista (sculo XVIII) ...................................................... 174

    QUADRO 6 - Aldeamentos indgenas na capitania de Gois (sculo XVIII) .................. 209

    QUADRO 7 - Discursos colonizadores acerca dos indgenas localizados na capitania de Gois ................................................................................................................................. 236

  • 12

    LISTA DE SIGLAS

    AHU Arquivo Histrico Ultramarino (Lisboa - PT)

    ANRJ Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

    AN/TT Arquivos Nacionais/Torre do Tombo

    AHEG Arquivo Histrico Estadual de Gois

    AUC Arquivo da Universidade de Coimbra

    BA Biblioteca da Ajuda (Lisboa PT)

    BNL Biblioteca Nacional de Lisboa

    BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

    BI Biblioteca do Itamaraty (Rio de Janeiro - RJ)

    BPADE Biblioteca Pblica e Arquivo Distrital de vora

    IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (Rio de Janeiro RJ)

    SGL Sociedade de Geografia de Lisboa

    RIHGB Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

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    SUMRIO

    LISTA DE FIGURAS.......................................................................................................................10

    LISTA DE QUADROS.....................................................................................................................11

    LISTA DE SIGLAS ..........................................................................................................................12

    INTRODUO ................................................................................................................................14

    PARTE I - OS AKRO ULTRAPASSANDO FRONTEIRAS .......................................................29

    CAPTULO 1 - VO SE CONSTRUINDO OS CERCOS DE GUERRA ... ...............................35

    Os Akro e outros povos indgenas resistindo em solo piauiense.....................................................40

    CAPTULO 2 - OS AKRO NO SERTO DO ELDORADO ... ...................................................76

    At quando os cercos de paz? .....................................................................................................85

    As mulheres indgenas nos espaos coloniais .................................................................................113

    Derrubando os cercos de paz..............................................................................................115

    CAPTULO 3 - VO SE CRIANDO ESPAOS COLONIAIS EM TERRAS INDGENAS ......145

    Espaos scio-culturais dos colonizadores .....................................................................................153

    Declina o ouro e investe-se na agropecuria em detrimento das terras indgenas ..........................154

    PARTE II - GESTO COLONIAL E POLTICA INDIGENISTA NO SERTO GOIANO.......160

    CAPTULO 4 - (DES)ESTRUTURAO DO DIRETRIO DOS NDIOS NA CAPITANIA DE GOIS ............................................................................................................................................168

    O Baro de Mossmedes e os acordos de paz com o povo Yn e Xakriab ...................................177

    A Lei que no se cumpriu integralmente ........................................................................................201

    CAPTULO 5 - A CARTOGRAFIA BENEFICIANDO A POLTICA INDIGENISTA ..............211

    PARTE III - DES(CONSTRUINDO) OS DISCURSOS DO NS ACERCA DO "OUTRO"...225

    CAPTULO 6 - DISCURSOS COLONIZADORES ACERCA DOS POVOS INDGENAS DO NORTE DE GOIS DO SCULO XVIII......................................................................................226

    CONSIDERAES FINAIS..........................................................................................................241

    FONTES CONSULTADAS ...........................................................................................................245

    BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................261

  • 14

    INTRODUO

    despertar para o desenvolvimento deste trabalho surgiu em meados de 1995,

    no processo de levantamento documental para o desenvolvimento do projeto

    de dissertao de mestrado, exigido pelo programa de Ps-Graduao em

    Histria da Universidade Federal de Pernambuco. O referido projeto versou acerca da

    escravido negra no norte da capitania de Gois do sculo XVIII.1

    O Ao serem arroladas as primeiras fontes histricas, de carter oficial, no Arquivo

    Histrico de Gois, paulatinamente, foram se destacando inmeras cartas, ofcios,

    requerimentos, entre outros documentos jurdico-administrativos datados entre 1722 e

    1800, que regularmente tratavam da questo indgena. Em alguns documentos, os povos

    indgenas2 foram caracterizados como brbaros, selvagens e indomveis diante das frentes

    de expanso, que ocorreram em todo o perodo setecentista. A considervel legislao

    criada pela administrao colonial, ao longo do sculo XVIII, para resolver o problema

    indgena na capitania de Gois, tratava sempre de impedir que os indgenas se

    constitussem em obstculos explorao do territrio goiano. Apresamento e cativeiro,

    1 A referida dissertao de mestrado intitulou-se Ouro, Escravido e Resistncia: vivncias escravistas em Arraias (1739-1800) e foi defendida em 1996. 2 Desde os primeiros contatos com os colonizadores que os grupos tnicos do continente americano foram chamados genericamente de ndios. Palavra esta que foi um grande equvoco dos primeiros conquistadores que, chegando s Amricas, acreditaram que tinham alcanado a ndia. Mesmo que este termo seja um erro histrico, o seu uso tornou a palavra sinnimo de pessoa indgena, indivduo. Termo que passou a ser assimilado pelos prprios indgenas. Fica ainda uma questo que sempre discutida entre a sociedade circundante no-indgena: Como possvel identificar uma pessoa e/ou um grupo como ndio? Essa discusso se situa no campo da poltica, em que cada pas e diferentes instituies apresentam critrios para reconhecer a identidade tnica de um indivduo. No Brasil, o critrio mais aceito, atualmente, o da auto-identificao tnica. Ou seja: indgena um grupo de pessoas que se identifica como coletividade distinta do conjunto da sociedade nacional em virtude de seus vnculos histricos com populaes de origem pr-colombiana (antes que Cristvo Colombo chegasse Amrica). Todo indivduo que se reconhece como parte de um grupo com essas caractersticas e pelo grupo reconhecido como tal pode ser considerado um ndio. Cf. Povos no Brasil. Instituto Scio-Ambiental. Disponvel em: . Acesso em: 23 mar. 2004.

    http://www.socioambiental. org/pib/portugus/quonqua/quemso/def.shtmhttp://www.socioambiental. org/pib/portugus/quonqua/quemso/def.shtm

  • 15

    guerra justa3 e administrao, misses e aldeamentos so as principais medidas citadas na

    documentao.

    Nessas fontes histricas, perceptvel a ausncia de uma diretriz coerente para a

    poltica indigenista em Gois, devido s mutabilidades das decises, que ora consideravam

    o indgena como um homem livre, ora legalizavam o seu cativeiro ou criavam medidas

    intermedirias, que mascaravam a sua explorao pelos colonos das regies mineradoras.

    Como analisa Virgnia Maria Almoedo de Assis acerca das fontes jurdico-administrativas

    coloniais que tratam da poltica indigenista portuguesa, descrita nos ofcios, bandos,

    alvars, cartas rgias, provises e outras,

    [...] quando se trata da burocracia portuguesa, no se pode deixar de considerar as definies explcitas ou implcitas nela contida, haja vista a costumeira bifrontalidade e particularizao das aes administrativas portuguesas, onde ordens e contra ordens se superpem quase que ininterruptamente.4

    A partir do primeiro contato com os documentos encerrados no Arquivo Histrico

    Estadual de Gois, surgiram questes iniciais: como ocorreram os primeiros contatos entre

    os indgenas do norte goiano e os colonizadores no decorrer do sculo XVIII? Quais as

    formas de resistncia construdas pelos grupos indgenas face s prticas da poltica

    indigenista portuguesa? No tocante poltica indigenista portuguesa relativa ao norte da

    capitania de Gois, como se deu a prtica da gesto colonial a partir dos diferentes atores

    em diversas situaes ao longo do sculo XVIII?

    Essa valiosa documentao permitiu que fosse construdo, para a citada dissertao

    de mestrado, um subitem acerca da questo indgena, no havendo, no entanto, interesse

    em esgotar a temtica, visto que o trabalho objetivava construir a histria da escravido

    negra no norte goiano. A questo indgena foi tratada devido percepo de que no norte

    3 Guerra Justa um conceito citado pela primeira vez em Portugal, pelo franciscano lvares Pais no sculo XIV. Foram realizadas discusses para se tentar justificar esta prtica que tinha amparo legal. Destarte, acentuava o direito da Igreja ou do estado de declarar guerra contra os infiis que poderiam ser escravizados ou mortos. No sculo XVIII, atravs de cartas rgias a Coroa portuguesa afirmava que esse deveria ser o ltimo recurso contra os recalcitrantes. In: DOMINGUES, ngela. Os conceitos de guerra justa e resgate e os amerndios do norte do Brasil. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Colonizao e escravido. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 45. 4 ASSIS, Virgnia Maria Almoedo de. Estado, Igreja e a administrao portuguesa em uma condio colonial: A problemtica das fontes. Texto apresentado ao Seminrio: O mundo que o Portugus criou. Recife: Fundao Joaquim Nabuco. 2002. Digitalizado. p. 02.

  • 16

    de Gois do sculo XVIII, assim como os escravos negros, os indgenas criaram variadas

    estratgias de sobrevivncia diante dos contatos com os colonizadores atrelados aos

    ditames mercantilistas da Metrpole portuguesa. Ademais, antes de ser ocupado por

    aventureiros vidos por descobertos aurferos, o norte goiano j fora habitado por grupos

    tnicos, em sua maioria pertencentes ao tronco lingstico Macro-J, dentre os quais

    destacavam-se os Akro, Xakriab, Xavante, Xerente, Java, Xambio e Karaj. Somente

    os Av-Canoeiros, citados na documentao, pertencem ao tronco lingustico Tupi (Veja

    Quadro I).5

    QUADRO 1 - Relao dos povos indgenas localizados na regio do antigo norte de Gois, atual Tocantins de acordo com a documentao arrolada (sculo XVIII)

    Povo Tronco Lingustico

    Famlia Lingustica

    Lngua Dialeto

    Akro Macro-J J Timbira Akro

    Xakriab Macro-J J Akwen Xakriab

    Xavante Macro-J J Akwen Xavante

    Xerente Macro-J J Akwen Xerente

    Karaj Macro-J Karaj Karaj Karaj

    Karaj Macro-J Karaj Karaj Java

    Karaj Macro-J Karaj Karaj Xambio

    Apinay Macro-j J Apinay

    Av-Canoeiro Tupi Tupi-Guarani Av-Canoeiro

    Fonte: As informaes lingsticas foram extradas de MONTSERRAT, Ruth Maria Fonini. Lnguas Indgenas no Brasil contemporneo. In: GRUPIONI, Lus Donisete (Org.). ndios no Brasil. 4. ed. So Paulo: Global; Braslia: MEC, 2000, p. 98-99. Os povos indgenas so citados de acordo com a documentao pesquisada nos arquivos brasileiros e portugueses.

    Atualmente, vivem no Estado do Tocantins nove representaes tnicas formadas

    pelos povos Akwe (Xerente), povo Iny (Karaj, Java e Karaj/Xambio), Timbira

    (Apinaj e Krah), Krah- Canela, Ava-Canoeiro e Guaran, com uma populao de

    aproximadamente 9.000 indgenas.6 So mais de duzentos anos de contato com a sociedade

    circundante portuguesa revelando a dinmica cultural e a capacidade poltica dos citados

    5 Cf. APOLINRIO, Juciene Ricarte. Escravido Negra no Tocantins Colonial: vivncias escravistas em Arraias (1739 1800). Goinia: Kelps, 2000, p. 45 e GIRALDIN, Odair. A (trans)formao histrica do Tocantins. Goinia: UFG; Palmas: UNITINS, 2002, p. 109. 6 De acordo com o relatrio do I Frum Social Indgena Carta dos povos do Tocantins (2005), das nove etnias citadas somente sete vem se organizando, objetivando a participao na poltica de desenvolvimento social, econmico e ambiental do Estado do Tocantins, atravs de organizaes locais, estaduais e regionais, destacando-se os povos: Java, Karaj, Karaj/Xambio, Xerente, Krah, Apinay e Krah-Canela.

  • 17

    povos indgenas em resistir a toda forma de prticas de violncias dos colonizadores.

    Em 1998, atravs de convite para participar como pesquisadora do Projeto Resgate

    Baro do Rio Branco, coordenado pelo Ministrio da Cultura, com bolsa do CNPq, cuja

    execuo se deu no Arquivo Histrico Ultramarino em Lisboa - Portugal, durante nove

    meses, deparamo-nos com os documentos histricos da capitania de Gois, com o objetivo

    de organiz-los e resumi-los, para posterior microfilmagem. Muitos documentos se

    destacaram: cartas, relatrios, requerimentos, cartas rgias, alvars, provises, consultas,

    relatos de viagens, entre outros que foram geridos pela burocracia administrativa

    portuguesa ao longo do sculo XVIII e que, na sua maioria, fazem parte do fundo do

    Conselho Ultramarino.7 Tratam das prticas das polticas indigenista e indgena na

    capitania de Gois e, notadamente, em sua ento regio norte, atual Estado do Tocantins.

    Esses documentos so guardies de informaes riqussimas e, em sua maioria, no

    tinham sido tratados historicamente. O acmulo de papis substancialmente jurdico-

    administrativos, concebidos na colnia ou na metrpole, revela que no processo de

    devassamento, conquista de terras e organizao econmico-social da capitania de Gois, a

    administrao colonial deparou-se com diversas situaes coloniais que metamorfoseavam

    as prticas polticas indigenistas e incitavam as aes polticas indgenas.

    Tendo-se aqui como objeto de pesquisa a anlise das polticas indgena e

    indigenista8 no norte de Gois do sculo XVIII, este trabalho assumiu contornos terico-

    metodolgicos mais prximos da Histria Poltica.

    No que se refere histria poltica no Brasil, durante muito tempo, a produo

    historiogrfica esteve marcada pelo predomnio de trabalhos que privilegiavam as grandes

    narrativas dos grandes vultos nacionais e grandes acontecimentos. Era uma histria

    7 A partir da Restaurao portuguesa D. Joo IV criou o Conselho Ultramarino em 14 de julho de 1642. Era um rgo deliberativo tpico do Antigo Regime que exerceu um importante papel nos despachos das matrias que tratavam de todas as possesses portuguesas no ultramar. De acordo com Gilson Srgio Matos Reis, esse rgo funcionou de forma centralizada e coordenou toda a poltica portuguesa de ultramar. Corsino Medeiros dos Santos informa que [...] a correspondncia e despachos dos ministros, prelados e quaisquer outras pessoas do Brasil e demais domnios ultramarinos seriam levados ao Conselho Ultramarino, antes de chegarem presena do rei, se fosse o caso Cf.: REIS, G. S. M. Conselho Ultramarino. In: ANDRADE, J. J (Coord.). Documentos manuscritos avulsos da capitania de So Paulo (1644-1830). So Paulo: EDUSC; FAPESP, 2000, p. 293 e SANTOS, C. M. Conselho Ultramarino. In: SILVA, M. B. N (Coord.). Dicionrio da Histria da Colonizao Portuguesa no Brasil. Lisboa:VERBO, 1994, p. 203. 8 Considera-se indigenismo o conjunto de idias relativas insero de povos em sociedades submetidas a Estados nacionais, em que esse se utiliza de mtodos para ter controle sobre os povos. A expresso poltica indigenista significa as prticas da legislao portuguesa formuladas por vrios segmentos da administrao colonial direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indgenas. J a poltica indgena aquela

  • 18

    arraigada nos pressupostos positivistas, em que a maioria das cincias humanas estava

    envolvida nos seus ditames conceptuais.

    Destarte, nas ltimas dcadas, ocorre uma re-significao da histria poltica

    trazendo consigo algumas orientaes inovadoras e fundamentais, como enfatiza ngela

    de Castro Gomes:

    [...] a de que a histria poltica tem, de forma intensa e constitutiva, fronteiras fludas com outros campos da realidade social, especialmente com as questes culturais, na medida em que as interpretaes polticas abarcam tanto fenmenos sociais conjunturais mais centrados em eventos quanto fenmenos sociais de mais longa durao. 9

    Roger Chartier, ao tratar das novas tendncias da histria, discorre acerca do

    chamado retorno ao poltico. A viso de Chartier em relao nova histria poltica

    de desconfiana, pois ele teme que esse retorno faa renascer o Primado do Poltico.

    Chartier assim discorre,

    Contra o retorno ao poltico, pensando dentro de uma autonomia radical, preciso, parece-me, colocar no centro do trabalho do historiador as relaes complexas e variadas, estabelecidas entre os modos da organizao e do exerccio do poder em uma dada sociedade e, de outro lado, as configuraes sociais que tornam possvel essa forma poltica e que so por ela engendradas.10

    Em seu discurso, Chartier enfatiza que o historiador deve reaver o papel e a

    importncia do poltico, sem recair na histria tradicional em que no se valorizavam as

    aes dos grupos sociais que influenciavam as diretrizes do poder estatal. Os trabalhos

    mais recentes que privilegiaram a histria poltica contriburam para alargar o horizonte

    desse campo da histria para alm do poltico-institucional, sendo que, alm da ao do

    Estado, outros atores sociais, at ento praticamente incgnitos na trama do poltico, foram

    valorizados. Numa compreenso de interdisciplinaridade, novos contedos foram

    introduzidos no retorno ao poltico, atravs da antropologia histrica, pelas revises do

    protagonizada pelos prprios indgenas na histria de contato intertnico, especialmente, com a sociedade circundante, no-indgena. 9 GOMES, ngela de Castro. Poltica: Histria, Cincia, Cultura etc. In: Revista de Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 9, n 17,1996, p. 63. 10 CHARTIER, Roger. A Histria hoje: dvidas, desafios, propostas. Revista Estudos Histricos. Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113, p. 106.

  • 19

    estruturalismo-marxista, pela valorizao dos povos sem histria (excludos dos

    discursos histricos como os indgenas), pelas discusses foucaultiana de microfsica de

    poder e pelas concepes de resistncia social.11

    Pierre Rosanvallon define que o domnio do poltico o lugar da experincia

    coletiva entre prticas sociais e representaes, permitindo tratar a construo histrica

    atravs da longa e da curta durao.12 Michele Vovelle enfatizou essa questo ao colocar

    que possvel estabelecer uma dialtica entre o tempo curto e o tempo longo da Histria.

    Destarte, o historiador ao analisar a documentao selecionada, a priori, poder perceber

    dentro do tempo longo das estruturas, o momento da ruptura, reabilitando, dessa forma, o

    tempo curto na anlise histrica.13

    Ao longo do sculo XIX e incio do sculo XX, a histria poltica era tida e

    entendida mais como uma espcie de histria militar ou diplomtica do que qualquer outra

    coisa. A dimenso poltica era ento admitida essencialmente a partir e atravs do Estado.

    Uma histria que se centrava nas batalhas, nas guerras e negociaes envolvendo os

    diferentes Estados.

    A Nova Histria Poltica possibilitou, entre outras coisas, a abertura s diferentes

    fontes histricas, ao mtodo narrativo dos acontecimentos, proposta de pesquisa de longa

    durao e a abordagens de novos objetos, especialmente no campo da Histria Cultural,

    diferente da histria poltica tradicional do sculo XIX. Esse norte terico permite um

    mergulhar na ao dos homens no campo poltico, reconhecendo as mltiplas faces dos

    fenmenos que compem esse campo nas perspectivas das anlises diacrnicas e

    sincrnicas da histria.14

    Ren Remond um dos expoentes dessa corrente que vem se destacando nos

    ltimos anos. A marca dos seus estudos com a histria das formaes polticas e das

    ideologias, destaque para o estudo da cultura poltica na Frana. Como afirma Remond,

    [...] eis que a histria poltica experimenta uma espantosa volta da fortuna, cuja

    11 Cf. DALESSIO, Mrcia Marsor e JANOTTI, Maria de Lourdes Mnaco. A Esfera do Poltico na Produo Acadmica dos Programas de Ps-Graduao (1985-1994). In: Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol 9, n 17, p. 1-256, 1996. 12 ROSANVALLON, Pierre. Pour une histoire conceptuelle du poltique. (note de travail). Revue de Synthse, IV, ns 1-2, jan-jun. 1986, p 20. 13 VOVELLE, Michel. A Histria e a Longa Durao. In: LE GOFF, Jacques (dir). A Histria Nova. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 85/86. 14 GOUVEIA. Maria de Ftima Silva. A histria poltica no campo da histria cultural. Revista Histria Regional. vol. 3, n. 1, Vero, 1998, p.14.

  • 20

    importncia os historiadores nem sempre tm percebido.15

    Durante muito tempo, alguns historiadores no aceitavam a idia de que os

    indgenas tinham o seu universo poltico. Especialmente no final do sculo XIX, a

    historiografia tradicional visualizava o indgena como o bom selvagem, sem histria, sem

    memria e sem formas de organizao poltica. As concepes tericas do poltico estavam

    fincadas nos valores ocidentais e nas vises de poder institudo, recusando completamente

    vises de poderes instituintes. Estes ltimos nunca deixaram de existir, atravs das

    diferentes reaes dos grupos indgenas s aes dos no-indgenas e de grupos indgenas

    rivais.16

    O retorno ao poltico proposta por esta investigao significou repensar a poltica

    indigenista no norte de Gois do sculo XVIII, entre as experincias coletivas que

    abrangiam tanto a administrao metropolitana e todo o seu aparato legislativo,

    institucionalmente delimitado na abrangncia do Estado Absolutista portugus, quanto s

    situaes coloniais provocadas por interesses de grupos diversos. Poltica essa que se

    deparava tambm com a poltica indgena. Como enfatiza Manuela Carneiro da Cunha,

    [...] no h dvida de que os indgenas foram atores polticos importantes de sua prpria histria e de que, nos interstcios da poltica indigenista, se vislumbrava algo do que foi a poltica indgena [...] A percepo de uma poltica e de uma conscincia histrica em que os indgenas so sujeitos e no apenas vtimas, s nova eventualmente para ns. Para os indgenas ela parece ser costumeira.17

    Essa assertiva acima encontrada nas anlises de Pierre Clastres quando afirma que

    o referencial indgena a ausncia de Estado. No entanto, para Clastres, no possuir

    Estado no significa que no h, nas sociedades indgenas, a dimenso do poltico.18

    Como afirma Maria Regina Celestino de Almeida, estudos mais recentes sobre

    questes tnicas e culturais valorizaram as dimenses polticas e histricas construdas

    pelos mais diversos grupos indgenas no processo de contato com a sociedade circundante

    15 Cf. RMOND, Ren (Org.) Por uma histria Poltica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 14. 16 Cf. NOVAES, Adauto. A Outra Margem do Ocidente. So Paulo: Companhia da Letras, 1999, p. 11. 17 CUNHA, Manuela Carneiro da. Introduo a uma histria indgena. In. CUNHA, Manuela Carneiro da. Histria dos no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1992, p. 18. 18 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. So Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 207.

  • 21

    portuguesa. Destarte, a autora, baseando-se nos estudos weberianos, destaca que os

    indgenas submetidos ao sistema de aldeamentos coloniais criaram um tipo de comunho

    tnica que se traduziu na ao poltica em comum e o sentimento subjetivo de comunidade.

    Almeida destaca ainda que a documentao sobre a resistncia indgena revela as prticas

    polticas que mobilizavam grupos tnicos contra a violncia do conquistador. Essa ao

    poltica e coletiva dava-lhes o sentido de unio em torno de um objetivo comum,

    contribuindo, de forma essencial, para desenvolver neles o sentimento de identificao de

    grupo e de pertencimento a uma aldeia e ao prprio Imprio Portugus. 19

    Diante do exposto, pretende-se abordar, aqui, uma questo crucial relativa histria

    indgena que a sutileza das variadas formas de aes polticas e/ou resistncias criadas

    pelos indgenas diante da sociedade circundante portuguesa.

    John Manuel Monteiro, ao tratar do que ele denominou de Historiadores dos

    ndios, elucida que no tarefa fcil identificar, documentar e interpretar os eventos,

    processos e percepes que envolveram as populaes indgenas, haja vista que a

    documentao trata, na sua maioria, das vises dos colonizadores. At mesmo algumas

    posturas historiogrficas desqualificam os ndios enquanto atores sociais legtimos. 20

    Concorda-se com o pensamento de Monteiro, pois repensar as aes polticas dos

    povos indgenas reavaliar as relaes sociais que os diferentes atores nativos criaram a

    partir do ps-contato, contemplando no s as imagens de bravura e ferocidade, mas

    tambm de opes polticas de colaborao ou acomodao e alianas, como estratgias

    de sobrevivncia na sociedade colonial.

    A releitura do passado dos primeiros contatos, entre os Akro e outros grupos

    indgenas com os colonizadores luso-brasileiros, possibilitou a anlise dos processos

    combinados de resistncia sejam guerras, alianas, pacificaes e adaptaes. Com relao

    a esta ltima prtica poltica, Mary Louise Pratt assevera que se no h possibilidades dos

    povos subjugados controlar facilmente aquilo que emana da cultura dominante, eles

    efetivamente determinam, em graus variveis, o que absorvem em sua prpria cultura e no

    que utilizam.21

    19 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indgenas: identidades e cultura nas aldeias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 261. 20 Cf. MONTEIRO, John Manuel. Armas e Armadilhas: histria e resistncia dos ndios. In: NOVAES, Adalto (org.). A Outra margem do ocidente. So Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 238. 21 PRATT, Mary Louise. Os olhos do Imprio: relatos de viagem e transculturao. So Paulo: UDUSC, 1999, p. 30.

  • 22

    O historiador, ao entrar em contato com a documentao histrica, no deve

    carregar consigo um filtro terico-metodolgico que o impea de visualizar, nas

    entrelinhas documentais, os espaos intermedirios das prticas polticas indgenas por

    onde passa a resistncia.22 Repensar as formas de resistncia indgena na histria do

    Brasil Colnia, enquanto prtica poltica, no aceitar as afirmaes historiogrficas

    simplistas de desaparecimento e extino.

    Eni Pulcinelle Orlandi comenta que tratar da resistncia indgena dar visibilidade

    s atitudes polticas do Outro, diante da imposio dos valores do Ns. No falar da

    resistncia indgena, ou melhor, silenci-la, [...] origina-se no fato de que a linguagem

    poltica e que todo poder se acompanha de um silncio, em seu trabalho simblico.23

    Silvia Porto Alegre assevera que durante muito tempo historiografia brasileira se

    reportava aos indgenas como seres em processo de desaparecimento j que seriam,

    paulatinamente, integrados pela sociedade circundante. Destarte as prticas polticas

    indgenas eram silenciadas. Desaparecer significa deixar de ser visto, perder visibilidade.

    Por outro lado, as pesquisas dos ltimos anos, no campo da histria e da antropologia

    revelaram que cada grupo indgena tinha um carter tnico de posicionamento frente ao

    no-indgena. E mesmo que negados no plano discursivo, os grupos tnicos continuavam

    existindo e cada vez mais organizados, politicamente, afirmando as suas etnicidades. O

    recorte da etnicidade entendido como fenmeno poltico importante porque revela que as

    prticas polticas, integracionistas, colonizadoras no conseguiram fazer desaparecer os

    povos indgenas. 24

    Foi importante a reconstruo da histria dos contatos entre os povos indgenas e

    colonizadores no sculo XVIII, especialmente dos Akro, para ressignificar os papis

    histricos desses grupos tnicos na construo da historiografia regional. Como j se

    comentou, precisa-se revisar, continuamente, a idia simplista de extino de alguns

    grupos indgenas, tantas vezes asseverada nos estudos histricos, sem que fossem

    22 Emprega-se o termo resistncia para explicar as formas coletivas de mobilizao dos grupos indgenas diante dos no-indgenas, orientados por estratgias polticas de retomadas de iniciativa e de reconquista de autonomia scio-cultural, econmica e territorial. Cf. ALBERT, Bruce. Introduo. Cosmologias do contato no Norte-Amaznico. In: ALBERT, Bruce e RAMOS, Alcinda Rita Ramos. Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amaznico. So Paulo: UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. p. 15. 23 ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra Vista: discurso do confronto. So Paulo, 1999, p. 49. 24 ALEGRE, Maria Silvia Porto. Rompendo o silncio: por uma reviso do desaparecimento dos povos. In: Ethnos. Revista Brasileira de Etnohistria. Ano II. N 2. Recife, UFPE, p. 24.

  • 23

    reveladas as suas prticas de resistncia construdas no perodo colonial brasileiro, ao

    tentarem sobreviver aos mais hediondos atentados contra as suas existncias.25

    Diante do exposto, buscou-se mergulhar na histria do povo Akro e de outros

    povos indgenas, procurando as brechas dos discursos oficiais em que possvel dar

    visibilidade s prticas polticas indgenas ao longo do sculo XVIII. Tambm se objetivou

    analisar as prticas da poltica indigenista enquanto aes formadas pela interao dos

    atores coloniais, indgenas e no-indgenas.

    No trajeto da pesquisa, buscou-se compreender que papel cumpria, na dinmica do

    processo de colonizao do norte de Gois setecentista, a formao discursiva da imagem

    dos indgenas, especialmente Akro, como grupos humanos ferozes e hostis. Consider-los

    hostis e compar-los s pragas ou doenas que infestavam determinados arraiais

    justificavam as prticas deletrias dos colonizadores? De acordo com Giraldin, as histrias

    dos ataques dos povos indgenas narrados nos documentos coloniais tinham uma funo

    mnemnica, mitificando os indgenas e constituindo um poder discursivo que justificava as

    aes violentas dos brancos.26

    Mesmo existindo documentos ricos em informaes, de carter etnolgico, h

    estudos muito fragmentados acerca das aes dos Akro e outros grupos tnicos

    localizados no norte da capitania de Gois, diante dos primeiros contatos com a sociedade

    colonial luso-brasileira. Fatores como belicosidade, isolamento, negociao, aliana e,

    sobretudo mobilidade, ou melhor, migraes para capitanias circunvizinhas, foram tratadas

    sem profundidade. O desconhecimento historiogrfico generaliza-se quando se trata dos

    rumos tomados pelos Akro no final do sculo XVIII, depois das continuadas guerras

    travadas com as milcias armadas organizadas pela administrao colonial goiana.

    A documentao da capitania de Gois, referentes s ltimas dcadas do perodo

    setecentista, pouco a pouco foi silenciando as faanhas dos Akro diante da sociedade

    circundante no-indgena. Essa constatao instigou o seguinte questionamento: Quais os

    rumos tomados pelo povo Akro localizado no norte goiano, nas ltimas dcadas do

    perodo setecentista? As respostas simplistas de desaparecimento no satisfaziam aos

    objetivos que se pretendiam alcanar atravs da pesquisa documental.

    25 Cf. MELATTI, Jlio Cezar. ndios do Brasil. 6. ed. So Paulo: HUCITEC/INL, 1989, p. 14. 26 GIRALDIN, Odair. Kayap e Panar: uma luta e sobrevivncia de um povo J no Brasil Central. So Paulo: UNICAMP, 1997, p. 51.

  • 24

    Ocasionalmente, ao se manusear a documentao da capitania do Piau no Arquivo

    Histrico Ultramarino, o que parecia um enigma comeou a ser desvendado no processo de

    arrolamento das fontes referentes no s a capitania de Gois, mas tambm a capitania do

    Piau. Sim, pois ao tratar-se de grupos indgenas no perodo colonial no se podia persegui-

    los embarcando em um veculo cultural da viso cartesiana de espao e territrio. Foi

    preciso compreender que para o grupo tnico Akro no tinha nenhum sentido a diviso de

    limites imaginrios construdos pelo Estado portugus. Enquanto ao poltica em prol da

    sobrevivncia grupal, ora o grupo Akro poderia encontrar-se s margens dos rios

    Tocantins, Manuel Alves e outros, ora poderia encontrar-se s margens do rio Gurgueia, no

    serto do Piau.

    Mesmo existindo importantes trabalhos que, direta ou indiretamente, trataram da

    histria indgena no norte da capitania de Gois,27 ficava ainda uma lacuna na

    historiografia regional que era a construo de uma histria dos povos indgenas, a partir

    da anlise das suas prticas polticas, capaz de dar visibilidade aos seus aspectos tnicos e

    culturais.

    As pesquisas acerca da questo indgena na capitania de Gois, que mais se

    aproximam dessa construo histrica, pertencem historiadora americana Mary Karasch.

    Em seu primeiro trabalho, a citada historiadora, brasilianista, tratou do conflito e

    resistncia indgena na capitania de Gois a partir da segunda metade do sculo XVIII,

    enfatizando que a violncia dos colonizadores desencadeou diferentes reaes dos grupos

    indgenas da capitania de Gois. Num segundo trabalho, Karasch tratou da poltica

    indigenista executada em Gois, no final do perodo setecentista at o correr do sculo

    XIX, revelando as contradies das aes da gesto colonial quando se tratava dos povos

    indgenas 28.

    Essa construo histrica procurou dialogar com a antropologia, por compreender

    que cada sociedade indgena possui uma historicidade e uma dinmica sociocultural

    prpria, que, permanentemente, se reelabora nos processos de contatos intertnicos, como

    foi o caso dos Akro. Foram realizadas interfaces entre as abordagens histrico-

    27 Veja respectivamente: CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos : Gois. 1749-1811. 29 ed. So Paulo: Nobel, 1983, 240 p. e PALACIN, Lus. O sculo do ouro em Gois. 1722- 1822: estrutura e conjuntura numa capitania de Minas. 4. ed. Goinia: UFG, 1995, p. 21. 28 Ver respectivamente: KARASCH, Mary. Catequese e Cativeiro: Poltica Indigenista em Gois. 1780-1889. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 307/412; KARASCH, Mery. Conflito e Resistncia Interetnicos na Fronteira Brasileira de Gois, nos anos 1750 a 1890. In: Revista da SBPH, Curitiba, n 12, 1997, pp. 31/49.

  • 25

    antropolgicas para que se pudesse trabalhar com a prtica da histria a partir de anlises

    diacrnicas e sincrnicas.29 Recorrendo ao antroplogo Marshal Sahlins, os homens em

    seus projetos prticos e em seus arranjos sociais, informados por significados de coisas e

    de pessoas, submetem as categorias culturais a riscos empricos. 30 Sahlins informa ainda

    que o problema agora pertinente o de explodir o conceito de histria pela experincia

    antropolgica da cultura.31 A cultura um lugar complexo e rico em que, numa viagem de

    explorao em direo ao Outro, possvel deparar-se com as peculiaridades e

    originalidades criadas no processo das vivncias intertnicas entre indgenas e

    colonizadores.

    Os estudos do antroplogo Tzvetan Todorov tambm foram destacados no presente

    trabalho. Centralizando suas anlises no sculo seguinte chegada de Colombo Amrica,

    Todorov discorre que os europeus constroem a cultura dos povos amerndios no plano

    discursivo, a partir de cartas, relatos de viagens e memrias. Sendo assim, o discurso

    ocidental dota de sentido a cultura indgena, a partir das suas prprias experincias, criando

    um distanciamento de tal sorte que passa a no respeitar as fronteiras da alteridade entre

    Ns e os Outros.32

    Na documentao oficial, que dota de sentido o outro, foi preciso rastrear as

    etnias indgenas abordadas, suas localizaes, suas aes de resistncia diante do projeto

    assimilacionista do colonizador. Essa metodologia permitiu visualizar as variadas prticas

    polticas indgenas.

    Realizou-se, na documentao oficial, uma leitura paciente, um desvendar

    criterioso de situaes coloniais da poltica indigenista e indgena em Gois setecentista,

    que at o momento se apresentavam omissas e muito esparsas, causais, esquecidas no

    contexto ou na intencionalidade formal do documento.

    Partindo da assertiva acima, inicia-se a primeira parte do trabalho, discorrendo

    sobre as abordagens acerca de fronteira e serto enquanto espaos simblicos em que

    ocorreram as prticas e relaes culturais entre indgenas e no-indgenas. A construo

    histrica das aes polticas dos Akro e outros grupos tnicos possibilitou a

    ressignificao da histria dos povos indgenas nas fronteiras dos sertes do Piau e Gois,

    29 Cf. OLIVEIRA, Jorge Eremites. Sobre os conceitos e as relaes entre histria indgena e etnohistria. Revista Prosa UNIDERP. Campo Grande MS, v. 3, n. 1. p. 23-38, jun. 2003. p. 41. 30 SAHLINS, Marshal. Ilhas de Histria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 9. 31 Ibid, p. 9.

  • 26

    identificando as suas aes conscientes, enquanto sujeitos histricos. Podendo, assim,

    contrariar as abordagens estruturalistas e globalizantes em que os amerndios so

    representados como inermes diante dos projetos socioeconmicos colonizadores. Como

    informa Catherine V. Howard, dentro do sistema de relaes intertnicas sempre h

    espao para enfrentar a dominao, abrir caminhos de protesto, ainda que disfarados de

    acomodao, fazer leituras alternativas de uma mesma situao e imprimir aos smbolos

    dos brancos novos significados criados pelo grupo indgena.33 Ainda na primeira parte,

    reconstituda a histria da ocupao dos espaos indgenas pelos luso-brasileiros no

    processo de implantao da empresa mineradora na capitania de Gois, mais

    especificamente na sua regio norte.

    O primeiro captulo revelador dos primeiros contatos intertnicos entre o grupo

    Akro e os colonizadores luso-brasileiros no Sul do Piau em que os territrios tradicionais

    indgenas eram invadidos e tomados pelos vassalos curraleiros de El Rei. Ao se revisitar

    as fontes documentais setecentista, foi possvel visualizar as reaes polticas dos Akro e

    de outros grupos indgenas no serto piauiense, entre as quais: atitudes recalcitrantes,

    colaborao, acomodao, guerras e deslocamentos para outras reas scio-ambientais,

    ultrapassando os limites territoriais colonizadores entre capitanias circunvizinhas.

    No segundo captulo, verificou-se que cada situao de contato entre indgenas e

    no-ndgenas, no perodo colonial brasileiro, que parecia ser regida pelos mesmos

    princpios socioeconmicos e culturais, apresentava suas prprias histrias. Eram geridos

    novos problemas tendo em vista os interesses dos sujeitos envolvidos, movendo alm dos

    grupos indgenas, colonos, missionrios, administradores e outras categorias, que direta ou

    indiretamente, tinham interesse com a questo indgena. o que ocorreu entre os Akro e

    outros grupos indgenas na capitania de Gois quando tiveram que enfrentar a violncia

    dos colonizadores que passaram a tomar posse dos seus territrios em funo da busca pelo

    enriquecimento rpido que poderia ser proporcionado pela minerao aurfera. A

    documentao reveladora das prticas polticas indgenas, entre elas as aes contnuas

    de guerra. Mas tambm os indgenas souberam utilizar a paz colonizadora em proveito

    de si e para si, quando no mais lhes interessavam rompiam os cercos da referida paz

    atravs de levantes e rebelies.

    32 Cf. TODOROV, Tzvetan. A conquista da Amrica: a questo do outro. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 55.

  • 27

    O captulo terceiro aborda o processo de implantao da economia mineradora

    pelos luso-brasileiros na regio norte da capitania de Gois, baseada na relao de trabalho

    escravista. feito uma narrativa da implantao dos primeiros arraiais no auge da empresa

    aurfera, provocando a expulso dos grupos indgenas dos seus territrios. Aborda-se o

    declnio da economia mineradora na capitania de Gois e o revigoramento da agropecuria

    e do comrcio no final do sculo XVIII, em detrimento dos grupos tnicos da regio em

    destaque.

    Na segunda parte do trabalho, realizada uma anlise das prticas da poltica

    indigenista portuguesa na capitania de Gois, mais, especificamente, na sua regio norte ao

    longo do perodo setecentista, em que se verifica o momento em que o grupo Akro e

    outros grupos tnicos iro construir mecanismos de sobrevivncia diante da poltica

    indigenista portuguesa influenciados pelas reformas pombalinas. Poltica contraditria e

    multifacetada que utilizava diferentes instrumentos de poder para tornar os indgenas

    vassalos de El Rei. Para isso era preciso, at mesmo, localizar os espaos do Outro

    atravs da Cartografia.

    No quarto captulo, abordam-se as aes polticas de alguns governadores da dita

    capitania, na tentativa de pr em prtica a Lei do Diretrio dos ndios, sobretudo na gesto

    do governador e capito-general, Jos de Almeida Vasconcelos de Soveral e Carvalho, na

    segunda metade do sculo XVIII. Entre outras abordagens, informam-se os

    direcionamentos administrativos feitos pelo dito governador para a formao de bandeiras

    de pacificao e posterior aldeamento de grupos indgenas como os Karaj s margens

    do rio Araguaia, localizado no atual Estado do Tocantins. evidenciado que a aplicao da

    Lei do Diretrio dos ndios no foi bem sucedida na capitania de Gois.

    O Captulo 5 trata da anlise de quatro mapas da capitania de Gois, enquanto

    instrumentos da poltica indigenista portuguesa, j que se localizavam os territrios

    indgenas para se promover plena conquista dos grupos tnicos.

    Na terceira e ltima parte, trata-se de uma abordagem histrico-antropolgica dos

    discursos coloniais constantes na documentao luso-brasileira sobre os povos indgenas

    que se localizavam na capitania de Gois. Discursos de administradores, sertanistas,

    militares, colonos, missionrios e outros. Buscaram-se, nas informaes mais sutis do

    33 HOWARD, C. V. A domesticao das mercadorias: estratgias Waiwai. In: ALBERT, B ; RAMOS, A. R. Pacificando o Branco. Cosmologias do contato no norte-amaznico. So Paulo: UNESP, Imprensa Oficial

  • 28

    discurso colonizador, os significados simblicos das manifestaes polticas indgenas.

    Isso implica em apresentar as representaes construdas nas relaes intertnicas entre

    indgenas e no-indgenas. Para Orlandi, o sujeito colonizado no ocupa posies

    discursivas. a partir das posies dos colonizadores que ditada a posio do colonizado.

    Todavia, na fala do colonizador se pode trazer para o jogo da linguagem as efetivas

    atitudes deste ltimo.34

    O sexto captulo um mergulho nos sentidos contidos dos documentos da

    burocracia portuguesa que registraram os mais diferentes estigmas contra os povos

    indgenas localizados na capitania de Gois.35 Destarte, no jogo discursivo dos processos

    jurdico-administrativos, procurou-se compreender por que se disse X para no se dizer

    Y acerca dos grupos indgenas.

    do Estado, 2002, p. 28. 34 ORLANDI, op. cit., p. 52. 35 CF. ORLANDI, Eni Pulseli. Anlises de Discurso: princpios e procedimentos. 3. ed. So Paulo: Pontes, 2001, p. 65.

  • 29

    PARTE I - OS AKRO ULTRAPASSANDO FRONTEIRAS

    culturas diferentes, historicidades diferentes. Marshall Sahlins, 1994.

    essa viagem que se far na histria de resistncia do povo Akro, diante dos

    contatos com os colonizadores, sero utilizadas informaes documentais

    numa perspectiva terica de fronteiras intertnicas e socioeconmico-

    ambientais. Na primeira fronteira, ser visualizada a dinmica das prticas polticas entre

    grupos indgenas tnico-lingsticos e culturalmente diferentes e no-indgenas, com sua

    cultura ocidental, historicamente construda na mentalidade crist.

    N Entre os estudos acerca de etnicidade e cultura, destaca-se o de Fredrik Barth,

    quando passa a caracterizar os grupos tnicos como sendo tipos organizacionais que so

    resultados da interao entre atores sociais diversos que mantm fronteiras simblicas

    diferenciadoras, portanto, fronteiras intertnicas. Desse modo, os grupos tnicos no

    surgem, necessariamente, de um isolamento geogrfico, mas das relaes sociais que

    favorecem o isolamento de certos atributos contrastivos fundamentais entre um ns

    diante dos outros. Considerar esse contraste numa dimenso histrica e processual

    promove o deslocamento do olhar da constituio interna dos grupos tnicos para as

    fronteiras simblicas de diferenciao entre indivduos e grupos, bem como para os

    mecanismos de manuteno de tais diferenas. No obstante, este estudo no se refere

    identificao daquelas caractersticas que fariam dos Akro um grupo tnico diferente em

  • 30

    si e para si, mas sim, a identificao dos elementos que tornaram possvel ao colonizador

    reconhec-los como indgenas.36

    Nas fronteiras scio-econmica e ambiental dar-se-o visibilidade s relaes

    indgenas com o meio-ambiente e o tratamento predatrio que os ecossistemas receberam

    dos colonizadores portugueses, atravs da implantao de fazendas criatrias e de

    empresas mineradoras denominadas de descobertos aurferos.

    A regio onde se localizam as fronteiras intertnicas e socioeconmico-ambientais

    so os sertes de Gois e Piau. O serto no perodo colonial era o lugar alm do litoral,

    desconhecido e inspito.

    Enquanto o litoral era visto como o embrio da civilizao, do devir, o serto era

    reconhecido como o mundo dos grotes e dos espaos a serem dominados. Essa viso

    dicotmica operava no plano simblico. Como assevera Gilmar Arruda: desde os

    primeiros conquistadores, os sertes so lugares de transformao de paisagens, de

    construo, de reelaborao e representaes sobre o territrio e populaes .37

    De acordo com Russell Wood, no aspecto geogrfico atual, o serto a rea para l

    do agreste, onde se eleva e se torna mais rido, o clima se torna mais seco e onde

    predomina a vegetao rasteira e de cactos. Mas para os habitantes da colnia, o serto era

    um espao mtico e alm do que os olhos podiam alcanar.38

    O serto era continuamente ressignificado, no imaginrio coletivo colonial, como a

    personificao de uma fora perigosa, terra de ningum, no cristo, no civilizado e

    ocupado por seres hostis, despossuidos de valores e princpios da justia, cristandade e

    estabilidade, ou melhor, "[...] a civilizao e a ortodoxia acabavam onde o serto

    comeava".39

    Munido desses nortes, foi possvel, no trajeto da viagem em busca da prtica da

    histria indgena, acompanhar os deslocamentos dos Akro, permitindo vislumbrar a sua

    localizao espacial e visualizar a plasticidade das suas aes de resistncia, seja nos

    eventos conflituosos ou de acomodao, ou seja, na guerra e na paz. Foi possvel

    36 BARTH, Frederik. O guru, o iniciador e outras variaes antropolgicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, p. 25. 37 ARRUDA, Gilmar. Cidades e sertes: entre a histria e a memria. So Paulo: EDUSC, 2000, p. 18. 38 Cf. Russell-Wood, A. J. R. A Fronteira como metfora. Revista Oceanos. A Formao territorial do Brasil. N 40, Out/Dez, 1999, p. 9. 39 Ibid. p. 9.

  • 31

    tambm verificar as prticas da poltica indigenista portuguesa, especialmente as suas

    aes mais localizadas nos interiores dos sertes, muitas vezes personificadas nas aes de

    missionrios, corpo administrativo, colonos e sertanistas.

    feito um recorte ao estudar as fronteiras do serto no sculo XVIII revelando os

    lugares de deslocamento dos Akro, privilegiando as reas do sul do Piau e o ento norte

    de Gois. No entanto, dar-se- maior visibilidade aos eventos da histria dos Akro

    ocorridos no norte goiano (veja Figura 1). importante lembrar que esses recortes

    espaciais construdos pela poltica territorial do colonizador, a partir dos seus interesses

    econmicos e poltico-territoriais, no eram vislumbrados pela cultura indgena na poca

    em destaque.

  • 32

    Figura 1 - rea de localizao de aldeias e deslocamentos dos Akro (entre os sculos XVII e XVIII)

    Fonte: Mapa elaborado a partir dos documentos pesquisados nos arquivos portugueses e brasileiros

    Elaborao: Simone Dutra Martins Guarda Analista de Geoprocessamento

  • 33

    Nessa regio, ora citada, mergulhar-se- em uma histria de conflitos, guerras,

    paz, sublevaes e acomodaes. Mas antes de se conhecer as conseqncias dos

    contatos entre indgenas e no-indgenas, preciso enfocar alguns elementos constitutivos

    da dinmica interna da cultura dos Akro. Essa compreenso pode explicar as prticas

    polticas desse grupo indgenas, os papis das suas lideranas e, mais especificamente, o

    sentido de vingana e de guerra para esse povo. So aspectos que revelam as afirmaes da

    identidade tnica, assim como a dinmica cultural desenvolvida no ps-contato com as

    frentes colonizadoras. Nesse sentido, esses elementos, [...] ajudam a explicar no apenas

    as bases histricas sobre os quais os padres de resistncia e adaptao indgena

    repousavam, como tambm os meios pelos quais a dominao portuguesa foi possvel.40

    Os Akro faziam parte da famlia J e a lngua que esse povo falava era a Timbira.

    No norte goiano do sculo XVIII, encontrava-se, mais especificamente, nas margens dos

    rios Sono, Manuel Alves, Balsas, Palma e Ribeiras do Paran, todos direita do rio

    Tocantins. Essa uma rea onde a natureza representa grandes unidades fitogeogrficas de

    Cerrado, apresentando uma vegetao composta por rvores de pequeno porte. O clima

    tpico o tropical semi-rido. No vero (dezembro a fevereiro), poca das chuvas com

    altos ndices pluviomtricos, no inverno, poca das secas e estiagens.41

    No Piau, os Akro foram contactados, sobretudo, na regio do Gilbus e no

    Parnagu, nas margens do rio Gurguia. Na rea que faz fronteira com Gois, verifica-se

    uma natureza com caractersticas de Cerrado. No obstante, mais para o interior do Piau, o

    Cerrado vai dando espao ao domnio da paisagem de Caatinga, em que se forma o semi-

    rido com uma vegetao adaptada ao clima. Algumas reas mais midas, denominadas

    de brejos, s vezes, aparecem na caatinga, devido sua localizao em algum vale fluvial

    mido. Foi nesses ambientes naturais onde ocorreram, com maior fora, aes antrpicas

    sejam por parte dos grupos indgenas, sejam pelos colonizadores .42

    Enquanto povo pertencente ao tronco lingstico Macro-J, famlia J, lngua

    Timbira43 e dialeto Akro, possivelmente a sua estrutura social, como a de muitos povos

    40 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: ndios e bandeiras nas origens de So Paulo. So Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 22. 41 GOMES, Horieste. Geografia: Gois/Tocantins. Goinia: UFG, 1993, p. 194. 42 VESENTINI, Willian. Brasil: Sociedade e Espao. So Paulo: tica, 1991, p. 199. 43 Alguns antroplogos e historiadores afirmam que os Akro fazem parte do povo Akwen junto com os Xakriab, Xavante e Xerente, no entanto, a documentao pesquisada nos arquivos portugueses e brasileiros confirmaram a tese de Dantas Beatriz de que os Akro, pertencem ao povo Timbira junto com os Guegu e Jaic do sul do Piau. Cf. BEATRIZ, Dantas, et. al. Os povos indgenas no Nordeste brasileiro: um esboo histrico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.) Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia

  • 34

    J, era complexa, estruturada em uma diviso de cada grupo local em metades.44

    O principal elemento da cultura Akro, identificado na documentao compulsada,

    foi ao contnua de guerra. As atividades blicas intensificaram-se aps a chegada dos

    portugueses, mas parecem ter sido caracteristicamente importante antes mesmo da

    presena dos conquistadores. Guerrear para esse grupo indgena poderia ter uma conotao

    no s de defesa territorial, mas de carter cultural de vingana.45 O antroplogo Odair

    Giraldin evidencia que a vingana entre os Tupinamb era interminvel diante dos

    inimigos e, entre os j, a relao com uma sociedade inimiga necessitava de medidas

    conclusivas, [...] o que nos importa reter dessa discusso que h entre as sociedades j,

    esse processo de vingana como uma forma de compensar mortes e perdas dos seus

    parentes acarretadas pelos conflitos com os seus inimigos.46

    emblemtico que a plasticidade da poltica de resistncia dos Akro poderia

    definir inimigos tradicionais e delimitar os novos reafirmando, continuamente, a

    cosmologia dos heris e guerreiros e dimensionando os seus papis histricos a partir dos

    eventos conflituosos ocorridos nas fronteiras do serto.

    Por trs dos Akro, inventados pelo discurso colonizador, imprescindvel

    valorizar as suas prticas enquanto etnia indgena que conduzia as suas aes polticas

    optando por estar nessa ou naquela localidade, praticando ou sofrendo determinada reao

    dos no-indgenas e estabelecendo comportamentos de aliana ou de conflito com a

    sociedade circundante portuguesa.

    das Letras, 1992, p. 434 e MONTSERRAT, Ruth Maria Fonini. Lnguas no Brasil Contemporneo. In: GRUPIONI, Lus Donisete (Org.). ndios no Brasil. 4 ed. So Paulo: Global, 2000, p. 99. 44 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. 1550-1835. So Paulo: Companhia da Letras, 1988, p. 43. 45 No ser perseguido, nesse trabalho, o Akro originrio, pois assim como os no-indgenas, a histria pr-colonial desse grupo tnico tambm era marcada pelo dinamismo e mudanas culturais, provocadas pelas guerras, migraes e relaes intertnicas com outros grupo indgenas. 46 GIRALDIN, Odair. Kayap e Panar: uma luta e sobrevivncia de um povo J no Brasil Central. So Paulo: UNICAMP, 1997, p. 51.

  • 35

    CAPTULO 1 - VO SE CONSTRUINDO OS CERCOS DE GUERRA ...

    s primeiros conflitos intertnicos entre Akro e colonizadores ocorreram na

    regio do sul do Piau nas ltimas dcadas do sculo XVII. Em meados

    desse sculo que finda a guerra entre portugueses e holandeses no nordeste

    do Brasil. A partir de ento se intensificam as frentes de expanso da pecuria pelo serto

    adentro. A economia criatria que se forma no serto era extensiva, pois [...] a condio

    fundamental da sua existncia e expanso eram a disponibilidade de terras. Da a rapidez

    com que os rebanhos penetraram no interior, cruzando o So Francisco e alcanando o

    Tocantins.47

    O

    Durante muito tempo, a historiografia relegou ao segundo plano as prticas scio-

    econmicas e as relaes intertnicas que foram criadas no interior dos sertes do Brasil

    colonial, atravs da economia da pecuria. No entanto, como j discorreram Capristano de

    Abreu, Charles Boxer, Caio Prado Junior, entre outros, mesmo que comeando enquanto

    economia acessria ao complexo aucareiro e, posteriormente, a da minerao no Brasil,

    foi o crescimento do criatrio que permitiu a expanso do povoamento luso-brasileiro para

    o interior do Brasil, provocando violentas guerras contra os grupos indgenas.48

    47 FURTADO, Celso. Formao econmica do Brasil. 24 ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1991, p. 58. 48 Cf. ABREU, Capistrano de. Captulos de Histria Colonial: 1500-1800. Braslia: UNB, 1982; BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil Dores de Crescimento de uma Sociedade Colonial. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 e PRADO JUNIOR, Caio. Histria Econmica do Brasil. 41 ed. So Paulo: Brasiliense, 1994.

  • 36

    De acordo com Antonil, as fazendas e currais de gado se situavam onde existiam

    rios e lagoas, imprescindveis para a criao do gado e ocupao humana.49

    As principais correntes de povoamento, que surgiram com a pecuria no nordeste

    do Brasil colnia, advieram da Bahia. O serto baiano, onde surgiu a maioria das fazendas

    de gado vacum, compreendia toda a regio que ocupa o atual territrio do Estado,

    incluindo a margem ocidental do So Francisco. De l se estenderam ao interior do Piau.

    Figura 2 - Gravura Piau

    Fonte: Gravura Piau, N 509. Cartografia e Iconografia. Arquivo Histrico Ultramarino. Lisboa Portugal.

    No fim do sculo XVII, os espaos naturais do serto nordestino foram palcos das

    aventuras de conquistadores chamados de curraleiros. Esses aprenderam a adaptar-se ao

    meio ambiente considerado inspito. Paulatinamente, o gado foi empurrado para o interior

    e os conquistadores foram anexando mais territrios indgenas aos seus domnios. No

    entanto, h de se considerar que no seu conjunto, a ocupao das terras nordestinas pelos

    49 ANTONIL. Joo Andr Cultura e Opulncia no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, p. 199.

  • 37

    colonizadores no estava envolto de herosmos dos sertanistas que exploravam os sertes

    indmitos, pelo contrrio, a forma violenta e etnocida com que esses mesmos sertes

    foram conquistados, de fato, se nega tal afirmao historiogrfica.

    Esses eventos conflitantes no processo de conquista do serto nordestino pelos

    pecuaristas, contrapondo-se s reaes de diversos grupos indgenas invaso, defesa e

    vingana dos seus mortos, foram denominados pelos no-indgenas de Guerra dos

    Brbaros. Maria Idalina da Cruz Pires comenta que [...] na prtica o relacionamento

    entre Tapuia e os portugueses foi constitudo na base dessa imagem de forma que o termo

    "Guerra dos Brbaros no apenas exprime a noo de valentia que esses indgenas

    resistiam s incurses portuguesas, mas transmitiu a idia de que sua primitividade, sua

    no submisso ao colonizador justificaria seu extermnio.50

    Na leitura que se faz do documento intitulado "Roteiro do Maranho a Gois pela

    capitania do Piau, cujo autor annimo, mergulha-se no olhar de um viajante que

    observava um cotidiano em que o tempo corria solto, assim como os gados vacuns e

    cavalar. Pouco era o tempo que se gastava para a montagem da estrutura de funcionamento

    de uma fazenda e, notadamente, dos currais.51

    O viajante annimo informa, ainda, que quando Domingos Afonso Serto e seus

    scios entraram no Piau, existiam vrios grupos indgenas que h muito tempo ocupavam

    aquelas terras, no entanto, com a expulso continuada desses povos, os espaos iam sendo

    utilizados pelas povoaes fincadas no criatrio.52

    Os gados que nas capitanias do Maranho e Piau eram criados, assim como em

    Pernambuco e na Bahia, estes ltimos s margens do Rio So Francisco, eram levados,

    entre outros lugares, para as minas de Gois.53

    O quotidiano dos sertanistas curraleiros era imprevisvel, pois se aventuravam,

    embrenhando-se serto adentro e margeando os principais rios nordestinos. No percurso

    defrontavam-se com diversos povos indgenas, sejam mantendo relaes negociveis, seja

    atravs de guerras sangrentas. Russel-Wood diz que o serto era a metfora das violncias

    50 PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra dos Brbaros: resistncia indgena e conflitos no nordeste colonial. Recife: FUNDARPE, 1990, p. 29. 51 Roteiro do Maranho a Gois pela capitania do Piau - sculo XVIII. RIHGB, LXII: 60-161, p. 78. 52 Ibid. p. 78. 53 Proviso do rei D. Joo V, ao governador e capito-general da capitania de So Paulo, D. Antnio Lus da Tvora. 27 de outubro de 1733. Cd. 6, p. 74. AN/TT. Lisboa Portugal.

  • 38

    representadas pelos eventos das "entradas para matar, escravizar e violar indgenas, ou para

    a apropriao de terras tribais".54

    De acordo com Tanya Maria Pires Brando, a efetiva colonizao do territrio

    piauiense s ocorreu na segunda metade do sculo XVII, atravs das concesses das

    primeiras sesmarias, At a dcada de 1660, aproximadamente, a regio assemelhava-se a

    um corredor migratrio. 55

    Brando ainda comenta que mesmo antes da implantao dos currais, os pecuaristas

    palmilhavam o territrio piauiense, assumindo prticas bandeirantistas. Ao entrarem nos

    sertes inicialmente buscavam apresar os indgenas, seja para extermin-los, seja para

    cativ-los. Todavia ao adentrarem novas terras procuravam ocup-las para a implantao

    de fazendas criatrias.56

    No obstante, no processo das entradas nos sertes do Piau, os grandes

    proprietrios que tinham condies de empreender a conquista de novas reas, sendo

    assim, tinham maior facilidade de receber as terras conquistadas em sesmarias,

    favorecendo a formao de grandes latifndios. Como afirma Brando, o Piau Colonial

    formou-se na economia pecuria, embasado no modelo colonizador brasileiro, ou seja,

    grande propriedade, priorizando uma nica atividade econmica e trabalho escravo.57

    Ao contrrio do que se mitificou na historiografia acerca da economia da pecuria,

    os espaos coloniais do criatrio no promoveram relaes de trabalho, essencialmente,

    no-escravas. Como assevera Maria Yedda Leite Linhares para alguns historiadores ... a

    escravido no teria tido curso na liberdade que seria o apangio do trabalho de vaqueiros

    e pees. Hipoteticamente, os indgenas, inadaptados ao trabalho sedentrio da agricultura,

    teriam aceitado facilmente viver no latifndio da pecuria. A realidade no confirma tal

    verso.58

    A invaso de grandes extenses de terras e implantao de fazendas criatrias

    provocou a ecloso de contnuas revoltas e guerras dos indgenas contra os colonizadores,

    54 RUSSEL-WOOD. op. cit., p. 30. 55 BRANDO, Tanya Maria Pires. O escravo na formao social do Piau: perspectiva histrica do sculo XVIII. Teresina: UFPI, 1999. p. 47. 56 Ibid., p 48. 57 Ibid., p. 54. 58 LINHARES, Maria Yedda Leite. Pecuria, Alimentos e sistemas Agrrios no Brasil (Sculos XVII XVIII). Revista Tempo, Rio de Janeiro, Vol 2. n 4, p. 198.

  • 39

    causando um mar de violncia.59 A referida violncia comprova a distncia das

    idealizaes da ocupao dos sertes nordestinos que nada teve de pacfica. Se muitos

    indgenas trabalharam nas fazendas de gado no era porque tinham vocao para tal

    atividade, mas sim, devido fora impositiva dos conquistadores.60

    Figura 3 - Os Akro no serto do Piau

    Fonte: Mapa elaborado a partir dos documentos pesquisados nos arquivos portugueses e brasileiros. Elaborao: Simone Dutra Martins Guarda Analista de Geoprocessamento

    59 BARROS, Paulo Srgio. Confrontos Invisveis: colonialismo e resistncia indgena no Cear. Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal de Pernambuco, 1997, p. 62.

  • 40

    No processo de conquista do serto piauiense, destacaram-se os sertanistas baianos

    ligados a uma das famlias do nordeste detentora de grandes extenses de terras,

    especialmente em Pernambuco e na Bahia. O maior latifndio era o de Garcia DAvila,

    protegido de Tom de Souza que possua 1.620 quilmetros de testada na margem

    pernambucana do rio So Francisco, mais 480 quilmetros, 180 lguas entre o So

    Francisco e o Parnaba.61 Um dos rendeiros dos vila no Piau foi o portugus Domingos

    Afonso Mafrense, chegando a possuir trinta e cinco fazendas de gado no serto piauiense

    terminando por criar uma provncia.62

    Os Akro e outros povos indgenas resistindo em solo piauiense

    Impvidos pelo af de conquistar novos territrios para seus rebanhos empurravam-

    se os gados numa operao extensiva. Chegando at as margens do rio Gurguia os

    conquistadores defrontaram-se com vrias naes indgenas, entre elas os Akro. Esses

    foram contactados no ano de 1698 e nos seus territrios foi fundada a vila de Parnagu no

    sul da capitania do Piau.63

    No ano de 1727, o ouvidor-geral do Piau, Antnio Marques Cardoso, escreveu ao

    rei tratando, entre outras coisas, dos danos causados pelos indgenas, provocando a

    desocupao das fazendas de gado e a destruio das manadas. Informou das dificuldades

    dos comboios chegarem s fazendas perto do rio Canind no incio do inverno, pois os

    indgenas Akro desciam o rio Itapicuru, da parte do Maranho para passar a ribeira do rio

    Parnaba, chegando ao rio Canind e demais fazendas at o serto da Gurguia. 64

    Em 1730, os Akro-Ass e Mirim, num processo migratrio contnuo, adentraram

    as fazendas de gado s margens dos rios Parnaba, Gurguia e serto do Gilbus e ao se

    depararem com os no-indgenas utilizaram-se da guerra como defesa, matando colonos,

    escravos e na fuga levaram cavalos, bois e outros bens dos pecuaristas. As continuadas

    60 LINHARES. op. cit., p. 199. 61 LIMA, Antnio Carlos de Souza. Um Grande Cerco de Paz: poder tutelar, indianidade e formao do Estado no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1995, p. 45. 62 Ibid., p. 49. 63 MOTT, Lus. Conquista, aldeamento e domesticao dos Guegu do Piau. 1764 - 1770. Revista de Antropologia. Volumes 30/31/32. 1987/88/89, p. 58. 64 Carta do ouvidor-geral do Piau, Antnio Marques, ao rei [D, Joo V], 1727, out, 3, Vila da Moucha. AHU_ACL_CU_ 016, Cx. 1, D. 37

  • 41

    investidas dos Akro, na mesma regio, provocaram um processo de expulso dos

    colonizadores e o abandono de mais de duzentas fazendas.65

    O padre Braz de Santo Antnio, comissrio provincial da Companhia de Jesus,

    escreveu ao governador do Maranho, narrando o fato acima e explicando as causas de tais

    investiduras dos Akro contra os no-indgenas:

    Como cada uma das naes [Akro] tem governo absoluto sem reconhecer superior a quem se possa pedir satisfao nem sejam capazes de dar, nem suspender nas hostilidades e insultos, nem outra capitulao alguma, e semelhantes insultos de mortes e roubos para cessarem necessitam de pronto remdio...66

    O discurso do padre Braz de Santo Antnio revela a concepo poltica do homem

    setecentista norteado pelo Antigo Regime. No compreendendo a organizao social dos

    povos de cultura J, especialmente os Akro, explicou as aes desse grupo tnico partindo

    das idias de governo absoluto. Normalmente, as sociedades J tm uma tradio poltica

    hierarquizada, havendo quase sempre, um cacique geral. Para enfrentar a centralizao de

    uma liderana, os grupos indgenas criaram conselhos ou sistema de metades. Sendo

    assim, o grupo tnico passou a se dividir em duas partes, se alternando no comando da

    aldeia. No obstante, os J, tradicionalmente, tm um conselho, formado por homens que

    se destacam pela sua experincia, que pode chegar a destituir um cacique do seu cargo.67

    Na concepo do dito padre, os indgenas eram coordenados por um governo do

    caos poltico, ou seja, no centralizado. Sendo assim, no conseguia manter a "ordem" e a

    subordinao dos seus sditos, pois no impedia suas prticas de violncia.

    Numa total inverso de valores, os povos indgenas eram vistos como invasores das

    terras de ultramar conquistadas pela Coroa portuguesa. No obstante, para as Ordenaes

    Afonsinas os monarcas eram representantes de Deus na terra e foram postos para reger e

    governar os povos conquistados, por esse motivo tinham que ser respeitados, sobetudo por

    homens vistos como partes da natureza selvagem das suas possesses de alm-mar.68 Os

    65 Carta (anexo) do Padre Braz de Santo Antnio, Santo Antnio do Maranho, 13 de julho de 1738. AHU_ACL_CU 016, Cx. 3, D.157 66 Ibid, D.157. 67 HOONAERT, E.; PREZIA, B. Brasil Indgena: 500 Anos de resistncia. So Paulo: FTD, 2002, p. 20. 68 ESPANHA, Antnio M. (org). Histria de Portugal. O antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa. 1999, p. 130.

  • 42

    indgenas mesmo sem compreenso das prticas polticas do colonizador teriam que se

    ajustar a uma tica estranha s suas prticas culturais.

    Em 1737 e 1738, so tiradas devassas em que os moradores dos sertes do

    Parnagu e Gilbus acusam os indgenas Akro de violncia e extermnios de suas vidas e

    a dos escravos, assim como os gados vacuns e cavalar. Para esse fim foi convocada uma

    Junta das Misses no Bispado do Par, no dia 14 de julho de 1738. Depois de muitas

    discusses, decidiu-se pela guerra "defensiva", j que s deveriam praticar a guerra

    ofensiva se fosse por ordem de El Rei.69

    Antes que se deflagrasse a dita guerra, o governador e capito-general do Par,

    tentando assegurar e/ou diminuir as entradas dos grupos Akro entre a regio de Gurguia

    e Parnagu, at que o processo subisse Coroa portuguesa, resolveu convocar o capito-

    mor, Antnio Gomes Leite, para que trouxesse os indgenas aliados situados no rio Itahy,

    junto capitania do Par. Pediu que trouxesse duzentos e cinqenta at trezentos indgenas

    da Serra de Ibiapaba. O objetivo era formar uma espcie de povoado entre a regio de

    Gurguia e Parnagu para evitar as contnuas "correrias" dos grupos tnicos Akro e

    Guegu.70

    Ao se ler os respectivos Termos de Junta de Misses, percebe-se, nos discursos,

    sobretudo dos provinciais, as controvrsias e conflitos entre jogos de interesses de mbitos

    religioso, humanstico e econmico, prevalecendo o ltimo devido s presses dos

    fazendeiros e colonos que a todo custo defendiam seus interesses vinculados ao criatrio.

    Entre as citadas devassas, a ltima foi tirada em setembro de 1738 pelo ouvidor

    geral do Estado do Maranho e Par, Salvador de Sousa Rebelo. Os Akro foram acusados

    de fazerem hostilidades contra os moradores do Parnagu e de outros povoados do sul do

    Piau. As discusses levantadas pelas autoridades que foram ouvidas era se alm de se

    fazer guerra contra os Akro-Ass na capitania do Piau no se deveria guerre-los tambm

    nas margens do rio Manuel Alves, afluente do rio Tocantins na parte dos novos

    descobertos das Minas de Gois. Nessa poca havia ainda uma discusso acerca da

    jurisdio dessas terras minerais. Se pertenciam a capitania de So Paulo ou a capitania do

    Maranho.

    69 Termo de Junta de Misses (anexo). AHU_ACL_CU_016, Cx. 3, D. 157. 70 Carta (anexa) do governador e capito-general do Gro-Par e Maranho. Joo de Abreu Castelo Branco. Belm do Par. 4 de outubro de 1738. AHU_ACL_CU, 016, Cx.3, D.175.

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    O ouvidor-geral comentou que se a Sua Majestade ordenasse a guerra contra os

    Akro no sul do Piau, a ordem deveria tambm se estender para a parte do rio Tocantins j

    que l eles tinham atacado e matado os viajantes que saiam da minas de So Felix para o

    Maranho. Um outro motivo foi a notcia que chegou at ao governador e capito-general,

    Joo do Rego Castelo Branco, de que os indgenas Akro-Ass, Akro-Mirim e Panic

    estavam juntos hostilizando os moradores do rio Manuel Alves nas Minas de Gois e o que

    foi considerado mais agravante que tinham assassinado a flechadas os mestres-de-

    campo, Francisco Ferraz Cardoso e Manuel Gonalves Mono, descobridores de novas

    minas de ouro, entre elas a de Arraias, ao norte da capitania de Gois.

    Para resolver tal problema, foram ouvidos alguns religiosos no Estado do Maranho

    e Par entre eles o comissrio provincial da Provncia da Conceio, padre Brs de Santo

    Antnio, o provincial da Companhia de Jesus, padre Jos de Sousa, frei Vitoriano Pimentel

    e o comissrio provincial da Provncia de Santo Antnio, frei Clemente de So Jos.

    O padre Brs de Santo Antnio deu parecer a Sua Majestade, D. Joo V, de que se

    deveria ordenar a guerra contra os Akro-Ass, Akro-Mirim e Panic desde a regio do

    sul do Piau at s margens do rio Tocantins devido esses terem culpa no assassinato dos

    mestres-de-campo, Francisco Ferraz Cardozo e Manuel Gonalves, flechando muitos

    escravos negros que estavam minerando no novo descoberto das minas de Gois e fazendo

    destroos nas fazendas de gado nos arredores das ditas minas. O referido frei no media as

    palavras ao defender os interesses econmicos dos portugueses mesmo que para isso os

    indgenas, considerados, por ele, como empecilho ao progresso da minerao, fossem

    eliminados. O padre Brs de Santo Antnio comentou: temos o justo ttulo de conservar e

    defender as terras que descobrimos. Sobretudo quando no h dono que utilize delas, ou de

    seus frutos. O gentio no as cultiva, nem habita e s colhe alguns peixes e frutos agrestes

    pelas ribeiras.71

    As palavras do religioso acima revelam a forma preconceituosa com que os luso-

    brasileiros olhavam a cultura indgena e no conseguiam enxergar a alteridade para

    compreend-la e respeit-la, como ocorre at os dias atuais. Primeiro ele considera os

    territrios em que se encontravam localizados os Akro e outros grupos indgenas como

    espaos vazios espera de um dono que se utilize delas. Essa foi a viso de um homem

    marcado pela cultura ocidental, em que a natureza tem que ser dominada, defraldada com

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    um tipo de economia que promovesse excedente eco