Como Fazer Documentarios Itaucultural

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SOBRE FAZER DOCUMENTRIOS

So Paulo, 2007

Sumrio

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Apresentao Outros Retratos Ensaiando um panorama do documentrio independente no Brasil Cludia Mesquita A realidade como crtica de cinema O cinema como crtica da realidade Jos Carlos Avellar Tendncias e perspectivas do documentrio contemporneo: um olhar histrico retrospectivo Sheila Schvarzman Documentrio expandido Reinvenes do documentrio na contemporaneidade Francisco Elinaldo Teixeira O filme-dispositivo no documentrio brasileiro contemporneo Consuelo Lins Tendncias do documentrio contemporneo Liliana Sulzbach A expresso cinematogrfica no territrio do documental Luiz Eduardo Jorge Documentrio e subjetividade Uma rua de mo dupla Cao Guimares O documentrio como experincia rika Bauer Filme livre Carlos Nader Outros novos rumos Paschoal Samora Rumos Ita Cultural Cinema e Vdeo: trajetria e perspectiva Roberto Moreira S. Cruz Relatrio de viagem Flavia Celidnio

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82 Sobre fazer documentrios / Vrios autores. So Paulo : Ita Cultural, 2007. 124 p. Acompanha 1 DVD 1. Audiovisual 2. Documentrios 3. Tcnica 4. Produo 5. Brasil I. Ttulo 108 CDD 791.43

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Desde a retomada da produo cinematogrfica no pas, em meados da dcada de 1990, o documentrio cada vez mais tem ocupado espao nos festivais e salas exibidoras, despertando a ateno do pblico e gerando interesse pelas imagens do gnero. Em sincronia com essa tendncia, o Ita Cultural desenvolveu uma poltica de difuso e fomento produo de documentrios por meio do programa Rumos Ita Cultural Cinema e Vdeo. Nos ltimos dez anos foram realizadas atividades estimulando o pensamento crtico, criando aes de difuso, exibio e apoiando a realizao de mais de 35 filmes e vdeos. Sobre Fazer Documentrios apresenta reflexes e opinies de cineastas e pesquisadores, tratando dos processos de realizao, tendncias e modelos de linguagem e perspectivas histricas sobre essas produes. O livro o resultado de uma srie de palestras realizadas em 13 cidades durante o perodo de lanamento e apresentao da 5 edio do programa Rumos Ita Cultural Cinema e Vdeo. Uma contribuio pontual para o leitor que se interessa pelos rumos do audiovisual no pas, especialmente pelo documentrio.

Apresentao

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POutros Retratos Ensaiando um panorama do documentrio independente no Brasil Cludia MesquitaProfessora da Universidade Federal de Santa Catarina. Jornalista formada pela UFMG, mestre em cinema pela ECA/USP e doutoranda na mesma instituio, onde desenvolve pesquisa sobre representaes da experincia religiosa pelo documentrio brasileiro. Atuou como pesquisadora nos documentrios Pees (Eduardo Coutinho, 2004) e Em Trnsito (Henri Gervaiseau, 2005), e como assistente de direo em Saudade do Futuro (Cesar e Marie-Clemence Paes, 2000). Realizou Terra da Lua (1992, com Anna Karina e Tania Caliari), A Folia de Ado (2001) e 5 Mulheres de Paraispolis (2004).

Como aponta Bernardet (1987: 168), dois filmes curtos realizados em 1959 esboam tendncias iniciais para o moderno documentrio brasileiro: de um lado, O Poeta do Castelo (Joaquim Pedro de Andrade) prope um retrato intimista de um indivduo especial, o poeta Manuel Bandeira; de outro, Arraial do Cabo (Paulo Csar Saraceni) se volta abordagem crtica da problemtica vivida por uma comunidade pobre de pescadores. esse veio aberto pelo segundo filme que estar em pauta neste artigo.2

roponho com este artigo um panorama breve e sinttico da produo documental brasileira a partir dos anos 1960, quando ganha fora e relevncia esttica o documentrio independente no pas. A idia relacionar condies de produo e opes estticas e temticas tendo como recorte a questo da alteridade, ou as representaes do outro de classe1. O texto est estruturado segundo uma periodizao da produo, dividida em trs momentos: documentrio moderno (1960-1984), tempos de vdeo (1984-1999) e documentrio da retomada (1999 em diante). A demarcao desses perodos no rigorosa ou exata, mas aproximada, guiando-se por marcos simblicos2; eu a utilizo para apresentar caractersticas dominantes em cada momento, bem como para sugerir transformaes no decorrer desse percurso histrico. Documentrio moderno (1960-1984): a emergncia do outro Sabemos que, no Brasil, o enfrentamento da alteridade ganhou especial interesse, expresso e ateno a partir da entrada dos anos 19603. Com a emergncia do documentrio independente, entram em pauta, sob olhares crticos, as histrias, os problemas e as experincias das classes populares. Nesse perodo, dominaram os curtas e os mdiasmetragens, produzidos com baixos oramentos e com o apoio de instituies que detinham e emprestavam os equipamentos bsicos. Quando se fala em documentrio moderno brasileiro, portanto, deve-se pensar num contexto no profissionalizado e na circulao extremamente restrita das obras rejeitadas pelo circuito comercial, elas circulavam em festivais, cineclubes ou organizaes polticas e culturais (Bernardet, 1987: 169). Em Cineastas e Imagens do Povo (1985), livro sobre o documentrio moderno brasileiro que se tornou referncia indispensvel, Jean-Claude Bernardet estabeleceu como eixo para o entendimento de sua trajetria uma questo posta justamente pela relao de alteridade:

Estou ciente das iluses da periodizao, to bem expostas por Bernardet em Historiografia Clssica do Cinema Brasileiro (2004). Ser possvel seccionar a histria do documentrio brasileiro em fatias temporais que tenham uma significao dominante intrnseca, bem como uma significao para os diversos elementos que a compem? (2004: 59). Apesar dos limites do mtodo, que certamente no d conta da diversidade da produo em cada momento, opto pela periodizao por sua eficcia didtica. Aqui, o perodo do documentrio moderno inicia-se com Aruanda (Linduarte Noronha, 1960) e se encerra com Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984). O documentrio da retomada inicia-se com Santo Forte (Eduardo Coutinho, 1999), situando-se o perodo dos tempos de vdeo entre os dois marcos (1984-1999).3

Antes da emergncia do cinema novo, a maioria dos documentrios produzidos mesmo aqueles sob muitos aspectos notveis estava vinculada ao Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) e, portanto, orientada ideologicamente no sentido de promover uma imagem favorvel e harmoniosa do pas. Sem falar nos curtas e matrias de cinejornais, estimulados nos anos 1930 e 1940 pela exibio compulsria de complementos nacionais nos cinemas (legislao de 1932), mas resultando, de modo geral, em propaganda paga por empresas e instituies.

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Cludia Mesquita

Outros retratos Ensaiando um panorama do documentrio independente no Brasil

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quem o dono do discurso? (Saraiva, 2004). Com base na anlise pormenorizada de 23 filmes, o autor identificou diferentes modos de construo cinematogrfica do outro de classe (o modelo sociolgico ou a voz do dono, a voz do documentarista, a voz do outro etc.). Para caracterizar o que chamou de modelo sociolgico, dominante nos anos 1960, o autor toma Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, como exemplo paradigmtico. Nesse filme, j so utilizadas entrevistas, possibilitadas pela emergncia tcnica de gravao de som direto. Mas esse uso ainda bastante restrito, limitado pelas condies materiais de produo e pelo paradigma documental clssico, ainda dominante. A voz do povo j se faz presente, portanto, mas ela no o elemento central, sendo mobilizada na obteno de informaes e ilustraes que apiam o documentarista na estruturao de um argumento (via de regra elaborado de antemo) sobre a situao real focalizada. De maneira geral, os documentrios desse perodo esto interessados em estabelecer diagnsticos sobre situaes sociais abrangentes e candentes. Almeja-se a macroanlise: o homem singular, a situao particular e o local especfico so transformados em categorias, pelas quais se tecem significaes genricas, com a pretenso de iluminar dinmicas sociais que conformam a experincia (de modo geral problemtica) de muitos brasileiros. A relao observada nesse modelo clssica, centrada na intransponvel exterioridade do sujeito que filma em relao aos objetos filmados, como problematizou Omar (1978: 407): Para haver um documentrio preciso uma exterioridade do sujeito e do objeto. Cada qual de um lado da linha, sem se tocarem. S se documenta aquilo de que no se participa. Segundo o julgamento implcito em Cineastas e Imagens do Povo, esse modelo resultaria em representaes autoritrias do outro de classe, reduzido a objeto de uma interpretao exterior, erudita, unvoca. Em resposta aos limites desse modelo, Bernardet investigou, em curtas documentais dos anos 1970, experimentos que buscavam promover o sujeito da experincia posio de sujeito do discurso. Uma dessas vias se materializou no mpeto de dar a voz, notvel em curtas como Tarum (1975), de Aloysio Raulino, em que se observa certa magreza esttica ou estilo pobre, que reduz sua forma de expresso ao mnimo, para que o outro de classe assuma o discurso e no seja abafado pela voz do cineasta (1985: 110). Mas, como escreve Bernardet, o olhar continua sendo o do cineasta (p. 110); no se problematiza a contento o gesto de dar a voz, a natureza da mediao (ainda obviamente presente) entre o espectador e a experincia do outro. Como adverte ao leitor, Bernardet finalizou seu livro antes de assistir a Cabra Marcado para Morrer. Lanado em 1984, o filme de Eduardo Coutinho foi saudado como um divisor de guas. Entre as primeiras filmagens (interrompidas pelo golpe militar de 1964) e o lanamento definitivo, 20 anos se passaram. Cresceu a influncia da TV, notvel na retomada do projeto, quando Coutinho incorpora a experincia da reportagem televisiva, treinada no Globo Reprter. Em 1964, tentou-se a fico de matriz neo-realista, os camponeses como atores de suas histrias, roteirizadas em cenas e dilogos. Em 1984,

domina a entrevista como palco do encontro/desencontro (sem roteiro prvio) entre desiguais: o cineasta, os camponeses. A entrevista aqui no simples depoimento, no dar a voz. Assumida no filme como dilogo, ela permanente negociao. Marcando sua voz e presena em cena, Coutinho abre caminho para uma reflexo mais amadurecida sobre a elaborao de sentidos pelo documentrio, pondo em crise tanto as iluses de conhecimento objetivo do modelo sociolgico quanto a falsa neutralidade do dar a voz: tudo negociao, mediao, elaborao de verses, de discursos. Alm de realizar uma espcie de balano crtico do perodo moderno, Cabra sonda o futuro, estabelecendo parmetros de linguagem que se tornariam muito influentes tanto em termos de estratgias de abordagem e estilstica (domnio da entrevista, assumida como palco, desnaturalizada) quanto de temtica (a experincia dos homens ordinrios como foco privilegiado de interesse4).

Tempos de vdeo (1984-1999): discursos de dentro A carreira de Coutinho emblemtica. Depois do sucesso de Cabra Marcado para Morrer, o cineasta levaria 15 anos para voltar a produzir documentrios longos em formato 35 milmetros, destinados s salas de cinema5. Nesse perodo, produziu quase exclusivamente em vdeo. Com a crise do cinema brasileiro, a penetrao progressiva da TV e a popularizao dos aparelhos de vdeo, desenvolve-se uma significativa produo documental nesse formato no Brasil. Essa produo no chega ao cinema e se limita a circuitos exibidores especficos: festivais, associaes, TVs comunitrias. Portanto, diferentemente do cinema ficcional (notadamente em longa-metragem), o documentrio no sucumbiu virada dos anos 1980 para os 1990. Seguiu seu destino de gnero menor, apartado do mercado de salas, situao que parece se modificar razoavelmente a partir da chamada retomada do cinema brasileiro, como veremos. De um lado, a produo documental dos tempos de vdeo tem fortes relaes com os movimentos sociais, que surgiram ou reconquistaram espao com a redemocratizao. Desde o comeo dos anos 1980, desenvolve-se a realizao de vdeos em que o exerccio do processo de registro e discusso importa tanto quanto os produtos. No chamado movimento do vdeo popular, no vale a escalada da profissionalizao em curso no mercado audiovisual brasileiro daquela poca, observando-se uma notvel imbricao entre produtores de vdeo e atores dos movimentos sociais. No tematizarei aqui tal produo, que por suas particularidades mereceria um estudo parte. No poderia, entretanto, deixar de notar a grande influncia (temtica, esttica e de produo) do vdeo popular sobre o documentrio independente, num perodo em que os movimentos sociais davam o tom das representaes. muito freqente, por exemplo, o projeto de elaborar, de dentro, as identidades dos grupos sociais retratados, em oposio ao estigma; de dar-lhes visibilidade de uma

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Sobre a noo de homem ordinrio e sua presena no documentrio brasileiro contemporneo, ver o trabalho de Csar Guimares (2005).5

A exceo parcial O Fio da Memria, longa em 16 milmetros lanado de modo restrito em 1991.

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perspectiva que se prope interna. Em termos de abordagem, a entrevista o carrochefe, revelando o mpeto de dar a voz, de abrir o microfone aos sujeitos da experincia, opo que tem como correspondente a ausncia progressiva de voz over interpretativa ou totalizadora (numa espcie de continuao do cinema anti-retrico da voz do outro). o caso de Santa Marta Duas Semanas no Morro (1987) e Boca de Lixo (1992), de Eduardo Coutinho. Embora possam ser considerados trabalhos autorais, eles se vinculam (em termos de produo) a entidades relacionadas ao movimento do vdeo popular6. Em ambos, a estratgia de abordagem dominante a entrevista, embora ainda estejamos distantes da radicalidade de seu uso na obra recente de Coutinho. Em Santa Marta, sobretudo, ainda se observa um esforo contextualista: o projeto de associar as experincias dos entrevistados s de um grupo maior, do qual fariam parte e ao qual dariam expresso (a comunidade). Visivelmente est em pauta a reconstruo do espao pblico no Brasil, aps 20 anos de regime autoritrio, e os movimentos sociais organizados (notadamente as associaes de moradores) so vistos como atores polticos fundamentais. Para alm das relaes formais de trabalho, outras formas de vnculo e de pertencimento entram em cena: a populao carcerria, os moradores de favelas e de ruas, as prostitutas, os trabalhadores informais. Entram em cena outros sujeitos que buscam, na nova conjuntura, sua identidade (Oliveira, 2001: 11). , portanto, nos anos 1980, na esteira do vdeo popular, que se inicia a elaborao de auto-representaes ou representaes efetivamente de dentro tal busca ser uma das tnicas a partir dos anos 2000, como veremos adiante7.

histrica dificuldade de acesso televiso, embora alguns experimentos recentes sugiram, se no mudanas efetivas de rota, novos percursos possveis9. Anomalias e distores de mercado parte, creio que a retomada documental j merece um balano esttico, sendo possvel levantar caractersticas marcantes e recorrentes. Entre elas, destacaria uma tendncia particularizao do enfoque: em vez de almejarem grandes snteses, os documentrios atuais buscam seus temas pelo recorte mnimo, abordando histrias e expresses circunscritas a pequenos grupos10. Nesse sentido, freqente a abordagem de experincias estritamente individuais, a investigao de singularidades. H uma valorizao da subjetividade do homem comum, um investimento no que, para alm das determinaes e normatizaes sociais, expresso autntica, singular (Senra, 2004). Relacionada a essa investigao de subjetividades, h uma tnica de abordagem emprica das situaes via experincia, via encontro com os personagens, evitando interpretaes prvias. As experincias focalizadas so, de modo geral, tratadas como irredutveis. Nem tipos, nem exemplos, nem casos raros ou comuns, entre outros casos. O valor est no registro e no trato respeitoso com elas, expondo suas singularidades e no no olho que v mais longe, relacionando essas experincias conjuntura ou estrutura social. Como bem observou Ismail Xavier (2000: 104), a vontade agora explorar mais os sujeitos no que tm de singular () evitam-se generalizaes, a busca dos porqus. Santo Forte (1999), que marcou a volta de Coutinho tela grande, estabeleceu parmetros de linguagem bastante influentes. O filme compe-se da montagem de entrevistas com 11 moradores de uma favela na Zona Sul do Rio, que conversam com o cineasta sobre suas experincias religiosas. Optando pela circunscrio espacial, o cineasta evita a tipicidade na escolha dos personagens. nfase total posta na entrevista (ou conversa) como forma de abordar suas subjetividades. Na montagem, h uma minimizao dos recursos narrativos, bastante reduzidos (evita-se narrao, msica, imagens de cobertura etc.) para no impor (aos sujeitos da experincia) qualquer tipo de comentrio externo. Investindo em seqncias individuais, o diretor evita tomar os entrevistados como casos representativos ou tipos portadores de caractersticas que poderiam ser estendidas a um grupo maior de indivduos. Por meio da nfase em expresses verbais, todo o poder dado aos sujeitos na elaborao de sentidos e interpretaes sobre sua prpria e singular experincia. Outro marco O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-Retratos), de 2003, de Paulo Sacramento, principal longa da tendncia de auto-representaes, muito presente na produo audiovisual brasileira atual (ainda que nem sempre chegue tela grande)11. O Prisioneiro resultado de iniciativa independente que promoveu oficinas de vdeo com detentos do extinto Carandiru. J por seu desenho de produo, como escreveu Saraiva (2004: 176), o filme provoca reflexes cruciais para o cinema, em especial para o documentrio. A busca pela afirmao dos sujeitos da experincia (como donos do discurso) foi possibilitada, nesse caso, pelo uso de pequenas cmeras digitais, de fcil manuseio. Trata-se, portanto, de

O documentrio da retomada (1999...): subjetividades e auto-representaes Convencionou-se falar em retomada do cinema brasileiro a partir de meados dos anos 1990. Ser essa periodizao aplicvel produo de documentrios? Tambm se fala em boom do documentrio. Mas boom em que sentido? Convm lembrar que o documentrio continuou sendo produzido no Brasil nos anos 1980 e 1990, margem do mercado de salas. Por outro lado, seria exagerado afirmar que o gnero conquistou na atual dcada um mercado slido8. Mas, mesmo que o pblico no seja expressivo, h uma novidade considervel, como aponta Carlos Augusto Calil: o fato de o documentrio ter superado a barreira da tela grande do cinema, janela do mercado at ento interditada a este gnero (Calil, 2005: 159). Desde 1992, foram lanados comercialmente mais de 50 longas documentais (o formato tradicional at os anos 1990 eram os curtas e os mdiasmetragens, com raras excees). Essa intensificao da produo de documentrios para o cinema tem razes objetivas. H maior agilidade e barateamento da produo pela captao com cmeras digitais e montagem com equipamento no-linear. Tambm h estmulo objetivo produo por meio de uma legislao de incentivo ancorada em mecanismos de renncia fiscal, que atrai patrocinadores privados. Mas o incentivo produo ainda esbarra no problema da distribuio. Muitos longas documentais so produzidos, poucos so distribudos satisfatoriamente. Por outro lado, a produo documental independente mantm a

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Santa Marta foi produzido pela ONG carioca Instituto de Estudos da Religio (Iser); Boca de Lixo teve apoio do Centro de Criao de Imagem Popular (Cecip), uma das principais entidades responsveis pela produo de vdeos para os movimentos sociais no Rio a partir de meados dos anos 1980.7

O DOCTV, por exemplo, representa um esforo indito de relacionamento entre a TV aberta e a produo independente. Parceria entre Ministrio da Cultura, TV Cultura e Associao Brasileira das Emissoras Pblicas, Educativas e Culturais (Abepec), o programa, baseado em concursos estaduais, tem viabilizado a produo regional de documentrios e sua veiculao em rede nacional, sem a obedincia a modelos de contedo ou formatos prvios.10

Um dos mais interessantes experimentos surgiu nos anos 1980: o Vdeo nas Aldeias. Sua proposta inicial era oferecer aos ndios instrumentos para criarem suas prprias imagens, usadas para troca de informaes entre diferentes povos. Desde 1998, por meio de oficinas, o projeto tem formado realizadores indgenas, que assinam seus prprios documentrios e so hoje mestres nos processos de formao.8

Karla Holanda (2004) diagnosticou uma tendncia particularizao do enfoque no documentrio contemporneo brasileiro tendncia que ela compara metodologia da micro-histria, em oposio s macroanlises.11

Basta dizer que, de todo o montante arrecadado com filmes nacionais em 2003, 92% correspondeu a produes da Globo Filmes (todas elas ficcionais).

H uma srie de experimentos (via oficinas de formao) que visam elaborao de representaes pelos sujeitos da experincia, apartados dos meios de produo e difuso de imagens. Citaria, alm do Vdeo nas Aldeias, as Oficinas Kinoforum, realizadas na periferia de So Paulo, desde 2001, pelo Festival Internacional de Curtas.

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uma formulao criativa das potencialidades trazidas pela nova tecnologia (Saraiva, 2004: 176). Ao final, notvel a desmistificao do espao do Carandiru promovida por esses auto-retratos. O que aparece um presdio bem menos violento e mais cotidiano do que se poderia imaginar: a priso como uma imensa cidade feita e refeita de prticas variadas (artesanato, servios, comrcio), compondo um tecido social que parece prescindir da instituio (Xavier, 2004: 12). Por fim, chamaria a ateno para Estamira (2005), de Marcos Prado, um longo retrato do personagem de mesmo nome, trabalhadora de um lixo na periferia do Grande Rio. O filme talvez possa ser visto como uma sntese entre a busca de formas mais plsticas (numa tendncia documental contempornea que dialoga com a videoarte12) e a ateno ao encontro praticada por Eduardo Coutinho. O resultado surpreendente. No apenas um trabalho de apreenso e expresso esttica do ambiente e do contexto, mas de longo e denso relacionamento com o personagem, recorridas vezes visitado pela equipe de gravao. Com seu esforo de contaminao pela subjetividade arrebatada e irredutvel de uma mulher socialmente margem, Estamira diz muito sobre as questes e enfoques privilegiados pelo documentrio brasileiro atual, em seu renovado enfrentamento da alteridade de classe e dos abismos sociais.

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Como se nota nos trabalhos de Marlia Rocha (Aboio, 2005) e Cao Guimares (O Fim do sem Fim, 2001, com Beto Magalhes e Lucas Bambozzi; A Alma do Osso, 2004; e Acidente, 2006, com Pablo Lobato).

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1A realidade como crtica de cinema O cinema como crtica da realidade Jos Carlos AvellarCrtico de cinema, autor de ensaios sobre cinema brasileiro e latino-americano, entre eles: Glauber Rocha, Madri, Editorial Ctedra, 2002; A Ponte Clandestina, Teorias de Cinema na Amrica Latina, So Paulo, Editora 34, 1996; Deus e o Diabo na Terra do Sol, Rio de Janeiro, Rocco, 1995; O Cho da Palavra: Cinema e Literatura no Brasil, Editorial Prmio, 1994. Foi diretor cultural da Embrafilme (1985-1987) e diretor-presidente da Riofilme (1994-2000). Atualmente consultor de cinema do Programa Petrobras Cultural.

No comeo do sculo XIX, quase no mesmo instante em que Nicphore Nipce inventava a fotografia comportando-se como um pintor, deixando-se ficar longo . tempo diante da paisagem (exageremos um pouco: a objetiva da cmera ficou aberta durante todo um dia de sol para que se pudesse gravar a imagem), John Constable pintava comportando-se como se fosse um fotgrafo (exageremos um pouco: fazendo um quadro numa frao de segundo), registrando instantneos de nuvens. leo ou aquarela sobre papel, madeira ou tela, pouco mais que esboos para as paisagens que iria pintar mais tarde, quase fotos jornalsticas que traziam uma espcie de legenda com local, dia, ms, ano, hora e condies meteorolgicas do instante registrado; estudo de nuvens com horizonte de rvores, meio-dia, depois da chuva, um pouco de vento (Cloud study with an horizon of trees: noon, September 27, 1821, after rain, wind). Dez da manh, olhando para o sudeste, nuvens cinzas correndo rpidas sobre o leito de um cu tingido de amarelo (5th september, 1821, 10 oclock, morning, looking south-east, very bright and fresh greys clouds running fast over a yellow bed, about half way in the sky). Constable antecipava assim o que primeiro a fotografia, que ia sendo inventada ento, e depois o cinema, a fotografia em movimento inventada no fim do sculo, iriam fazer adiante: documentrio, um registro (objetivo subjetivo) do que se passa no instante em que se passa. O cinema, e em particular o filme documentrio, nasceu como expresso desse desejo que se formulou primeiro na pintura. Entre a pintura e o cinema existe uma relao semelhante que se encontra entre as nuvens pintadas muito rapidamente por Constable para preparar as paisagens que ele iria produzir mais tarde a pintura, de certo modo, esboou o que o cinema iria fazer em seguida. Se examinarmos a questo do ponto de vista do cinema documentrio, interessados em examinar a relao que se estabeleceu entre o filme documentrio e o filme de fico, encontraremos na experincia de Constable uma antecipao do que viria a ocorrer no cinema brasileiro (no apenas, mas especialmente no cinema brasileiro) no

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Jos Carlos Avellar

A realidade como crtica de cinema O cinema como crtica da realidade

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comeo da dcada de 1960: o documentrio (como as rpidas anotaes ao vivo das nuvens) como esboo necessrio para a fico (as paisagens pintadas em estdio). De certo modo, a fotografia e o cinema concretizaram o que j vinha sendo esboado pela pintura desde o comeo do sculo XIX. Francisco de Goya, por exemplo: a seqncia feita entre 1806 e 1807 (no acervo do Art Institute de Chicago), El Maragato Amenaza con el Fusil a Fray Pedro de Zaldivia, e as outras cinco telas que complementam a ao da primeira frei desvia o fuzil; frei luta para desarmar o Maragato; frei golpeia o Maragato com o fuzil; frei dispara o fuzil; e frei amarra o Maragato. O que temos aqui um filme documentrio antes do cinema, tanto nesses seis quadros como nos dois pintados em 1814 (no acervo do Museu do Prado de Madri): El Dos de Mayo de 1808 en Madrid, la Lucha con los Mamelucos e El Tres de Mayo de 1808 en Madrid: los Fusiliamentos de la Montaa del Prncipe Po. Documentrio antes do cinema so tambm as gravuras que Jos Guadalupe Posada publicou da Gaceta Callejera do Mxico no fim do sculo XIX, como Ballazos en Calle de San Hipolito, ou El Motn de los Estudiantes en Mayo de 1892, ou ainda Fusiliamento del Capitn Clodomiro Cota. Outro exemplo de representao visual que tem algo a ver com o que se concretizaria na prtica do cinema documentrio o quadro que J. M. W. Turner pintou em 1842 e que surpreende primeiro pela indicao precisa em seu longo ttulo: Snow Storm Steamboat off a Harbours Mouth Making Signals in Shallow Water, and Going to the Lead. The Author Was in this Storm on the Night the Ariel left Harwich. Algo que surpreende ainda mais quando o ttulo se liga imagem, pois a pintura parece contrariar a promessa de documentrio contida no seu meio ttulo, meio legenda. Nenhum detalhe da tempestade de neve imobilizado para uma observao minuciosa, nenhuma forma claramente identificvel como o navio Ariel que sinaliza ao tentar deixar o porto. Somente manchas pouco precisas que compem um ritmo nervoso. Talvez um trao fino no centro do quadro possa ser compreendido como o mastro de um navio, mas, de fato, nada do registro preciso que se poderia esperar do relato de algum que esteve l, na tempestade, amarrado no mastro do navio, como diz o pintor, que garante ter estado l: Pedi aos marinheiros que me amarrassem ao mastro do vapor para contemplar a tempestade. Fiquei amarrado durante quatro horas, cheguei a achar que no iria sobreviver; mas s pensava em registrar a tempestade se porventura sasse vivo dela. Registrar, documentar, sim, mas registrar de outro modo, documentar outra questo. A tempestade de neve em Harwich na noite em que o Ariel deixou o porto foi pintada no exato momento em que os franceses Nicphore Nipce, Louis Dagurre e Hippolyte Bayard, o alemo Peter Voitglnder e o ingls William Fox Talbot aperfeioavam os processos, as objetivas e os aparelhos fotogrficos. Consciente ou no (pouco importa) do registro essencialmente objetivo da aparncia das coisas por meio da fotografia, Turner pinta movido por uma vontade de documentar de um modo no (ou alm do) fotogrfico: No pintei a tempestade para que ela pudesse ser compreendida, mas porque queria mostrar

algo parecido com esse espetculo. Queria mostrar o que se sente com um tal espetculo1. A questo levantada por Turner na metade do sculo XIX , a rigor, a mesma que alimenta a discusso em torno da prtica do cinema documentrio desde a metade do sculo XX: como ir alm do registro puramente (fotogrfico? jornalstico?) da superfcie, da aparncia visual primeira das coisas? Como levar o espectador a sentir mais do que simplesmente ver o que se passa? Como fazer da imagem do documentrio algo que mostre a realidade no exatamente como ela , mas como foi percebida e sentida pelo realizador? Talvez seja possvel dizer que, em Rocha que Voa (2002), Eryk Rocha pinta sua imagem assim como Turner fotografou sua tempestade de neve. E que em nibus 174 (2002) Jos Padilha grava um incidente trgico da vida do Rio de Janeiro tal como Posada fotografou tiroteios, motins e fuzilamentos em sua gazeta de rua do fim do sculo XIX. Isto , esses filmes no se apoiaram na pintura de Turner ou na gravura de Posada, mas lembrar imagens produzidas mais de um sculo antes permite situar melhor em que tradio de representao visual se insere o cinema documentrio e reconhecer o que se faz hoje no cinema como a realizao de um desejo sonhado muito antes da inveno dos meios tcnicos para realiz-lo; e permite verificar que, de certo modo, o cinema documentrio, hoje, parece voltar-se para o instante em que foi sonhado. 2. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1988, 13 horas, avenida 13 de maio: os 13 integrantes da Confraria do Garoto comemoram a seu modo o aniversrio da confraria e o centenrio da abolio diz o narrador de O Fio da Memria sobre imagens que mostram um pequeno e animado grupo que se diverte ao som de Cidade Maravilhosa. Como parte da festa, prossegue o narrador, preparam a coroao da rainha do centenrio da abolio em frente Igreja do Rosrio e de So Benedito. Surge ento uma imagem que se move para todos os lados, que pega o espectador de assalto, que no deixa tempo para organizar a viso. Em frente ao quadro, a festa da coroao: Ftima Ju anos antes escolhida a mulata mais bonita do Brasil no programa do Chacrinha recebe a faixa e a coroa de rainha do centenrio da abolio. Por trs da coroao, outra festa na Igreja do Rosrio, a da escrava Anastcia, que muita gente diz ser responsvel por milagres e que, insiste um garoto entrevistado em sala de aula, foi quem de verdade libertou os escravos. Ela, porque ela que brigou mesmo pela libertao, ela, a escrava Anastcia, num 13 de maio, seu dia, e no a Princesa Isabel, que apenas assinou a lei que ps fim ao cativeiro. Uma festa ruidosa em frente: algum coloca nos braos de Ftima Ju um menino de pouco mais de 1 ano e tenta deslocar a coroa da cabea dela para a da criana, que protesta e chora. Outra festa menos barulhenta l atrs, na igreja. Tudo isso se mistura dentro da imagem, e de quando em quando algo que o enquadramento empurra para um canto ou para trs salta para o primeiro plano. assim que, de repente, perdemos Ftima Ju de vista e nos encontramos diante de uma mulher negra que protesta com fora e chama a

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O relato de Turner nem sempre aceito como autntico. Ele tinha 67 anos ao pintar a tempestade de neve, e no h informaes de um navio Ariel deixando o porto de Harwich, nem de uma estada do pintor naquela regio. O quadro pode ter sido uma livre inveno a partir da memria de uma tempestade de neve que ele atravessara nos Alpes 30 anos antes. Com base nela ele desenhou diversas notas para fotografar rapidamente no papel o que via e pintou em 1812 Snow Storm: Hannibal and his Army Crossing the Alps. Esses esboos podem ter servido tambm para outra Snow Storm pintada em 1836 na Sua. De qualquer modo, a pintura realizada com base em anotaes, em esboos feitos ao vivo (como uma filmagem?) e depois organizados num quadro (como numa montagem?) que no reproduz objetiva, fiel, fotograficamente o acontecido, mas expressa a sensao sentida durante o acontecimento, aproxima sua pintura de certo modo de fazer cinema documentrio hoje.

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ateno de todos: est provado, a escravido nunca que acabou!. Ela fala com voz firme, se movimenta enquanto fala. A mistura indisciplinada o riso da rainha, o choro do garoto com a coroa enfiada na cabea, a msica alegre, o vozeiro zangado da mulher negra, o sorriso de ironia de quem passa mais interessado na rainha meio nua do que na festa, a seriedade que passa com olhos s para a escrava Anastcia, o riso malandro de quem est s querendo ser filmado , a aparente desordem da imagem segue sua ordem. A mulher negra segue protestando: o preconceito no vai acabar; a rainha coroada, magricela, parece mais homem que mulher; ela prova e reprova com toda a confiana do fundo da alma que o branco no gosta mesmo de preto; e segue com frases que param na metade porque um homem branco entra na conversa, decidido a mostrar que no existe preconceito de cor no Brasil. Ele corta a fala da mulher negra, mas tambm no consegue concluir o que queria dizer. Cinqenta e um por cento da populao brasileira..., tenta uma primeira vez sem conseguir ateno. Tenta de novo, e de novo, e de novo, mas ningum parece interessado em ouvi-lo. A mulher negra no lhe d ouvidos, diz que no est falando com ele, que est falando com o reprter. As pessoas em volta entram na discusso, muita gente fala ao mesmo tempo, ningum escuta nada. Num instante, aproveitando uma brecha na gritaria, o homem branco solta a voz e quase completa o que queria dizer: Cinqenta e um por cento da populao brasileira tem a raa negra. Em qualquer companhia, quem tem 51% das aes controla a empresa. Se o negro no consegue controlar o pas... Ao que parece ele ia dizer algo como por falta de capacidade ou por falta de organizao, ou um qualquer outro por falta de. No consegue. A, sim, toda a gente em volta interfere ruidosamente. Adivinham a concluso da frase e... exatamente a, quando a ao comea a esquentar mesmo, a cena se interrompe, o filme muda de assunto. Esse fragmento insuficiente para dar uma idia precisa do documentrio que Eduardo Coutinho iniciou s vsperas do 13 de maio de 1988 e terminou trs anos depois, mas um bom exemplo da narrao fragmentada e aberta para todos os lados de O Fio da Memria. Esse modo de narrar aparece como parte da coisa narrada, como uma representao do modo de viver imposto ao negro. Primeiro sinal da fragmentao: dois diferentes narradores. Uma s narrao, mas dois narradores. O primeiro o texto de Coutinho, a voz de Ferreira Gullar d informaes imediatas, introduz as diversas situaes, como a festa da Confraria do Garoto. Diz, por exemplo, que com a abolio o negro, analfabeto, desaculturado, sem cidadania e sem famlia, teve de lutar contra a desagregao e reunir os estilhaos de sua identidade. Esse primeiro narrador volta mais tarde para anunciar a marcha de militantes do movimento negro do Rio de Janeiro, no dia 20 de novembro, aniversrio da morte de Zumbi dos Palmares e Dia da Conscincia Negra. Volta tambm, sempre como uma voz de poucas palavras, para apresentar brevemente os entrevistados, entre outros Manuel Deodoro Maciel, ex-escravo de 120 anos de idade; a famlia que criou o Cacique de Ramos, os

menores do centro de triagem de meninas abandonadas de Charitas, em Niteri; e, ainda, ele que nos apresenta o segundo narrador, Gabriel Joaquim dos Santos, que viveu no distrito de Vinhadeiro, municpio de So Pedro dAldeia, quase divisa com Cabo Frio, a menos de 200 quilmetros do Rio de Janeiro, nasceu em 13 de maio de 1892 e morreu no comeo de 1985, aos 92 anos. O primeiro narrador apresenta e praticamente cede o lugar ao segundo narrador. A voz de Milton Gonalves, o texto de um depoimento gravado no fim dos anos 1970 e dos cadernos em que Gabriel anotava (como quem faz um documentrio?) alternadamente fatos de seu cotidiano, da histria da regio e da histria do Brasil. Gabriel conta que, por volta de 1926, depois de entrar para a Igreja Batista, conheceu um menino bem sabido que ensinou alguma coisa de leitura para ele numa cartilha de criana e que desde ento comeou a anotar o que se passava num caderninho. Fala de tudo, e a informao mais importante no vem propriamente dos fatos narrados, mas de seu modo descontnuo de narrar, que salta de uma frase para outra e de um fato a outro por meio de um corte seco. esse segundo narrador, Gabriel, quem determina o modelo de construo do filme e o sentimento que o comanda, porque, em algum momento do processo de realizao, o homem com a cmera viu a vida de Gabriel, seu jeito de falar e de fazer as coisas, como uma imagem da condio do negro brasileiro que constri seu espao margem do pas, tal como Gabriel construiu sua Casa da Flor com pedaos de coisas apanhadas no lixo: Quando acabei a obra da casinha, a veio um pensamento para enfeitar essa casinha. Enfeitar de que maneira?, pensei. A gente no tinha dinheiro para comprar certas coisas, ento imaginei de apanhar aqueles caquinhos de loua do lixo. Apanhar caco de vidro, fazer aquelas florzinhas de vidro para pregar na parede da casa para enfeitar. Veio aquela coisa na mente. S apanhar os cacos, resto das grandes obras da cidade. A casa se imps como exemplo da fora do pobre, diz Gabriel: Os moos do Rio chegam aqui e eu digo a eles: l no Rio tem tanta coisa linda. Eles: no, aquilo no lindo, nos conformemos com o Rio de Janeiro porque l a fora da riqueza, a fora da engenharia tem casa, tem palacete, mas a coisa bem organizada da riqueza. Eles vm aqui para ver a fora da pobreza. Eu quero que eles admirem a fora da pobreza. Ele conta que comeou a trabalhar na salina em 1912 e saiu de l no ano 1960, cansado e encostado pelo instituto. Naquele tempo os operrios ganhavam por dia: no ano de 1912, dois cruzeiros; 1920, trs cruzeiros; 1930, seis cruzeiros; 1940, sete cruzeiros; 1950, chegou a 60 cruzeiros. Logo em seguida anota: as leis do cativeiro no Brasil comeou no tempo da colonizao no ano de 1532. E continua, somando outros fragmentos: Guilherme me deu um vintm feito em 1869. Me deu em 30 de abril de 1955. O preo dos gneros alimentcios em 1963: 1 quilo de carne, 700 cruzeiros; 1 quilo de feijo, 180 cruzeiros; 1 quilo de acar, 140 cruzeiros; 1 quilo de arroz, 200 cruzeiros; 1 quilo de farinha, 70 cruzeiros; um po, 15 cruzeiros. No dia 17 de abril de 1963 comeou a greve na salina. O papa de Roma morreu em 3 de julho de 1963.

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Lembra, adiante, que Jos de Frana amaziou-se com Almerinda em 12 de fevereiro de 1964. Santos Dumont fez o primeiro vo em 1906. A reforma agrria foi assinada no dia 13 de maro de 1964 pelo presidente da Repblica. Joo Goulart assinou s quatro da tarde no Rio de Janeiro. A ordem : quem no obedecer vai para a Ilha das Flores. O marechal Castelo Branco tomou posse em presidente da Repblica em incio de abril de 1964. Getlio Vargas enviou as foras brasileiras para a guerra na Europa no dia 13 de novembro de 1943. O texto de Gabriel tem uma construo to indisciplinada quanto a cena da coroao da rainha do centenrio da abolio. Filme e texto obedecem a um mesmo princpio de composio e levam o espectador a sentir (no afirmam diretamente, no explicam, sugerem, levam o espectador a sentir sem se dar conta disso de forma consciente) que a desagregao imposta ao negro foi transformada por ele num diferente modo de se agregar e se expressar culturalmente. Ao selecionar uma fala em que Gabriel conta que governado pelo sonho, O Fio da Memria abre espao para se explicar por meio de Gabriel. O documentrio est, como sempre, interessado em ouvir, mas est ao mesmo tempo falando, explicando sua dramaturgia: Eu me deito muito cedo. No para dormir, para pensar. Eu tenho um pensamento vivo. Meu pensamento vivo, e quando chega meia-noite fico adormecido. Sonho toda noite. Sou governado para fazer essas coisas no pensamento e no sonho. Ningum me ensinou, coisa espiritual. A senhora pensa que eu tinha inteligncia para fazer isso? Eu mesmo fao, eu mesmo me admiro. Imaginar um documentrio (modo de fazer cinema que em princpio se pretende to objetivo, direto e controlado pela razo quanto possvel) como forma governada pelo sonho define a questo principal de O Fio da Memria: um dilogo entre seus dois narradores, o filme est mesmo interessado em conversar: com a cmera, com as pessoas diante dela no instante da filmagem, com o espectador na sala de projeo depois do filme pronto. Estamos todos (a expresso popular o que melhor traduz o que se passa) jogando conversa fora. Os entrevistados esto vontade na imagem, mas essa sensao o espectador s recebe porque a documentao se organiza com um rigor que parece mais coisa solta, contraditria, indisciplinada, que rigorosa. Assim, o espectador percebe cada depoimento como uma informao dupla, como uma representao do dilogo entre os dois narradores que orienta sua estrutura. De quando em quando a imagem longa, porque se trata de deixar que o entrevistado se revele na conversa: ele no apenas conta determinado episdio que viveu ou presenciou no passado: conta sua memria, conta o que ele prprio , se revela nos gestos, nas expresses, no modo de falar. De quando em quando a conversa curta, porque uma ou duas frases so o suficiente para levar o homem com a cmera a engolir em seco diante de gente de quem se tirou a possibilidade de se expressar, como as crianas abandonadas em centros de triagem: a menina que nem sabe como veio para o centro responde de cabea baixa que no veio, est ali desde sempre; o menino que com o rosto escondido na

sombra diz que j fez uma p de coisas nessa vida, j fez de tudo, roubou, matou, traficou. Longas ou breves, as conversas so sempre abertas, inconclusivas, um primeiro encontro. O entrevistado no repete para a cmera um depoimento previamente ensaiado. Ele no se encontrara antes com o diretor. Coutinho envia um assistente para combinar a conversa, mas s se encontra com a pessoa que vai filmar no instante da filmagem. E comea a filmar logo que chega, sem combinar previamente sobre o que vai ser a conversa. Entrevistador e entrevistado se surpreendem ao mesmo tempo um com o outro. Alguma coisa nova, nica, imprevista, se d ento, alguma coisa aberta como a pequena confuso diante da Igreja do Rosrio pouco depois das 13 horas do dia 13 de maio de 1988. A arquitetura dramtica desestruturada, porque inspirada na Casa da Flor e nos textos de Gabriel Joaquim dos Santos, porque preocupada em ser uma imagem viva do tema que a inspira, porque solta como uma conversa, no o que primeiro aparece em O Fio da Memria. Enquanto o filme est na tela o que prende mesmo a ateno no a cmera, mas as pessoas diante dela. O desenho do quadro e a forma de organizao do filme s se percebem depois de terminada a projeo, quando volta memria o texto de Gabriel que abre e encerra a narrao: O Brasil j foi mandado por Portugal. O Brasil j foi uma roa portuguesa. Aqui j foi tudo. Existiu aqui um cativeiro muito perigoso, os portugueses a carregar negros da costa da frica pra botar aqui pra trabalhar na enxada. E essas coisas tudo j passou. A o portugus entregou isso. D. Pedro I fez a independncia. Botou o Brasil pra c e Portugal pra l. E ficou o Brasil por conta de ns prprio.

3. Imaginemos que o cinema documentrio se realize num espao entre a pintura (o desejo de reproduzir o movimento se movimentando, Goya, Constable, Turner, por exemplo) e a pintura (a proibio de reproduzir, Ren Magritte e La Reproduction Interdite, por exemplo). Numa tela de 1937, Magritte antecipa e resume a questo que os filmes documentrios (os brasileiros, mas no s) comearam a se propor mais recentemente. A tela La Reproduction Interdite se prope como um retrato de Edward James. Nela, um homem diante do espelho v refletida no a imagem de seu rosto, mas aquela mesma figura que o espectador do quadro v: no espelho ele aparece de costas, como se o essencial de sua imagem no pudesse se refletir no espelho. Magritte pinta quase como quem fotografa, reproduzindo tal e qual as costas de um homem diante do espelho melhor, de uma pessoa em particular, Edward James, com seu penteado, seu porte fsico e as dobras do palet. Pinta como quem fotografa o livro sobre a bancada de mrmore em que se apia o espelho (e igualmente refletido no espelho como o vemos, do mesmo ngulo de viso). evidente que Magritte no pintou La Reproduction Interdite para discutir o documentrio (por mais que gostasse de cinema; por mais que tivesse, margem de sua expresso visual, feito experincias com fotografia e cinema). Mas como tudo na imagem parece fotografar documentalmente o homem que diante do espelho v no o seu rosto, mas as suas costas, o quadro pode ser

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tomado como uma representao do problema que o cinema documentrio enfrenta agora: como revelar no quadro o espao mais amplo fora de quadro? O assunto, o tema, a questo registrada so somente uma forma de compor um quadro que durante todo o tempo joga o olhar para fora dele, para documentar no que est ali, imediatamente visvel, o que no se traduz para o olhar: reproduction interdite. 4. No comeo de Passaporte Hngaro (2002), Sandra Kogut fala ao telefone. Ela pergunta ao consulado da Hungria se uma pessoa com um av hngaro tem direito a um passaporte daquele pas. Na verdade, so duas conversas, em francs, montadas como uma fala contnua, mas feitas em momentos e em telefones diferentes. A voz masculina que atende a uma das chamadas acha que no, que um neto de hngaro no tem direito a Passaporte Hngaro. A voz feminina que atende outra chamada pergunta se ela poderia reunir documentos capazes de provar a origem hngara de seus avs. No comeo de 33 (2003), Kiko Goifman fala com o espectador. Diz que sempre gostou de contar que filho adotivo em momentos inesperados e observar como as pessoas se sentem nessas ocasies. Diz que tem 33 anos, que foi adotado por Berta, que nasceu em 1933, e que naquele dia, 9 de setembro de 2001, comeava a remexer no passado, partindo em busca de sua me biolgica por 33 dias e por um caminho metdico e torto. Decidira ir ao escritrio de detetives para pedir dicas, usar as manhs e tardes para as investigaes e as noites para a procura de imagens, nas poucas luzes e nos vazios. O que aproxima esses dois filmes no apenas o comeo, com imagens diferentes mas parecidas entre si: um breve discurso para apresentar uma busca e definir seus limites. So documentrios prximos um do outro porque neles os realizadores esto no centro das histrias que contam; porque radicalizam algo presente em todo documentrio de forma velada: o pedao em que o documentrio, filme voltado para o outro, at certo ponto determinado pelo outro, sem tirar os olhos do outro, se refere a si mesmo, fazendo do retrato do outro tambm um auto-retrato, como quem diz eu sou o outro. A imagem aqui um espelho como o de La Reproduction Interdite. Sandra e Kiko, no centro do filme desde o primeiro instante, aparecem como Edward James na pintura de Magritte: rostos invisveis. Em muitos planos de 33 vemos a cmera na mo de Kiko. Ele no filma a si mesmo num espelho, apenas deixa visvel em qualquer superfcie lisa capaz de refletir uma imagem a cmera com que (se) filma. Conscientemente ou no, define-se como um homem com uma cmera; reafirma a importncia de seu instrumental sensvel, o cinema; indica que manter a ateno voltada para a cmera, para o cinema, aqui to importante quanto observar as aes documentadas durante a busca de sua me biolgica. O personagem que est em cena filma a cena. O Kiko diretor e o Kiko personagem em cena so ao mesmo tempo dois e um s, e reiteram: eu e meu eu/outro, antes de qualquer coisa, fazemos cinema. O Kiko diretor busca (busca talvez mais importante que a da me biolgica efetuada pelo Kiko personagem) imagens para dizer o que ele sente e pensa durante a procura.

Tambm em Passaporte Hngaro a pessoa que filma participa da cena com a cmera na mo, age na cena que est filmando2. Usa um pequeno vdeo digital, e as pessoas que esto sendo filmadas nem percebem a cmera, ou, se percebem, acham natural que ela esteja ali, objeto semelhante a uma caneta, bolsa, livro ou caderneta. Em cena as pessoas filmadas conversam na presena de um terceiro olhar, pequenino, discreto, silencioso. Sem esse terceiro olhar, a cena seria diferente ou talvez nem viesse a existir. Na verdade, trata-se de um jogo em que a interveno de mo dupla. Sandra, a realizadora, age primeiro como um personagem de seu filme. Lida com a cmera como se estivesse tambm sendo observada pela objetiva. Vive o instante que filma como personagem da cena, no como quem a dirige. No domina a cena nem sabe o que vai acontecer com ela. Busca Passaporte Hngaro e documenta o processo que se estendeu por dois anos entre idas a consulados e arquivos, alm de visitas a familiares, todos filmados. O mesmo ocorre com o projeto de Kiko Goifman: 33, tal como planejado, s teria sentido se ele mesmo se filmasse3. A idia de procurar e filmar a procura da me biolgica e a idia de pedir e documentar o pedido de Passaporte Hngaro parecem ter surgido ao mesmo tempo, em fuso, uma dentro da outra. Observando a questo sob um ponto de vista exclusivamente cinematogrfico, possvel supor, com algum exagero, que o fato de procurar a me biolgica e o de pedir Passaporte Hngaro tenham surgido primeiro como idia de filme. Adotando a expresso com que Geraldo Sarno resumiu a questo4, o que um documentrio documenta com veracidade no o que est em quadro, e sim o modo de compor o quadro, a maneira de documentar do documentarista, seu modo de reagir s questes concretas que surgem durante a realizao do filme, aquelas criadas pelo objeto a ser documentado e as provocadas pelo sistema de produo. Nos filmes de Sandra e de Kiko, alm disso, mais do que se mostrar indiretamente no modo de estruturar o discurso, o documentarista documenta a si mesmo. Filma o seu outro eu. Filma sua famlia. o que documenta e o que est sendo documentado. Est no centro da histria, bem no centro se aceitarmos a possibilidade de um centro excntrico. Nas imagens iniciais de Passaporte Hngaro vemos um telefone e logo um outro filmados, ao que tudo indica, sob o ponto de vista de quem fala ao telefone. A imagem que se produz ento equivale que se obtm com o gesto automtico de riscar uma coisa qualquer no papel durante uma conversa telefnica. O espectador v o telefone na tela assim como Sandra, no instante da filmagem, viu a imagem: ela foi construda para mostrar a conversa e no o aparelho. Olhamos o telefone e vemos Sandra, que fala aqui, e o homem e a mulher que respondem do outro lado da linha. O que vemos nesse momento no o que est ao alcance dos olhos, mas o que se constri pela estrutura de composio porque num filme cada plano, quadro, fragmento apreendido pelo espectador no somente como a expresso do que a imagem imediatamente revela, mas como um gesto da ordem expressiva que organiza a imagem. No importa que Sandra no esteja ali; o que o documentrio ento documenta Sandra, fora de quadro, refletida num falso espelho como o de Magritte. Kiko est igualmente fora de quadro no falso espelho de 33. A imagem apenas sugere um pouco

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Em depoimento feito para o site de Passaporte Hngaro (http://www.repblicapureza.com.br/passaporte), Sandra Kogut conta por que no aparece na imagem do filme: Foi uma deciso que tomei na hora da edio. Achei que, num filme sobre identidade, seria redutor ter uma imagem, um corpo... Ao mesmo tempo, no um filme autobiogrfico, acho mais importante estar presente com o olhar: o que me interessa , atravs do meu olhar, mostrar outras pessoas [...] No existe um motivo central. Se eu estivesse pedindo um passaporte porque queria uma cidadania europia, acho que no faria um filme. Eu s quis fazer o filme porque era uma coisa complexa, porque no havia um nico motivo.3

Sobre 33, de Kiko Goifman, ver tambm na internet a pgina do filme: http:// www. uol.com.br/33.4

SARNO, Geraldo. Quatro notas e um depoimento sobre o documentrio. In: Cinemais, n. 25, set./out. 2000.

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do que est fora de quadro: Kiko aparece numa espcie de fuso conseguida graas ao ngulo da cmera diante da janela, meio vidro, meio espelho, que, enquanto deixa ver o lado de fora, reflete parte do lado de dentro, a televiso ligada iluminando o rosto de Kiko. Mostrar-se assim, fora do campo visual, um modo de levar o espectador a se dar conta da composio como elemento essencial do documentrio, que deixa de ser um simples registro visual e sonoro do fragmento da realidade diante dele. Um documentrio no repete, no reapresenta a realidade: representa, pensa. 5. No h como negar, Nelson Freire feito de lacunas. Joo Moreira Salles definiu assim seu trabalho, depois de lembrar o que conseguiu registrar: Nelson tocando o Segundo Concerto de Brahms no Municipal do Rio, tocando o mesmo concerto no sul da Frana com a Filarmnica de So Petersburgo, tocando a quatro mos e dois pianos com sua grande amiga Martha Argerich, tocando a Fantasia de Schumann em pelo menos trs ocasies diferentes (todas elas de tirar o flego), tocando Villa-Lobos dentro de uma igreja barroca com vista para o Mediterrneo. Porm, no h como negar, conclui, Nelson Freire (2003) tambm feito de lacunas. E essa a primeira informao que se recebe do filme. No pedacinho inicial do que ainda vai ser a primeira imagem se anuncia com clareza: o filme se constri como fragmento, pedao, parte, estilhao, intervalo, fora de quadro. O fragmento primeiro uma unidade mnima de som logo cortada mal comea, acaba. Um golpe seco, no se percebe nada alm disso. A msica acabou, a orquestra parou, a platia aplaude. O pianista curva-se para agradecer e, ao lado do maestro, caminha na direo da cmera, que est no fundo do palco, por trs dos msicos, escondida nos bastidores. O quase-som que ouvimos dura pouco e logo esquecido porque sem intervalo algum, quase sem silncio entre um e outro novo som forte cobre a imagem: o aplauso da platia. E, ao contrrio da batida inicial, o som do aplauso se alonga, continua. Continua. E continua. Entusiasmado, mais forte e presente na imagem que a conversa entre o pianista e o maestro nos bastidores. Eles trocam poucas palavras. Comentam que tudo correu bem. O pianista diz que gostaria de um cigarro, mas, instado pelo maestro, volta ao palco para agradecer. A cmera o acompanha. A longa durao dessa primeira imagem pode, primeira vista, dar a sensao contrria, de que o filme no assim como dissemos que ele . Para fragmento, o plano de abertura parece grande demais. um longo plano-seqncia. Quanto dura? Dois, trs, quatro minutos? Parece mais. No importa o tempo real, parece mais. Mas igualmente no importa aqui a durao real nem a sensao de que dura mais do que o que realmente dura. O plano se estica no tempo, mas estruturalmente um fragmento, mostra s o intervalo entre duas apresentaes do pianista. Ele volta ao palco e a cmera sai dos bastidores, avana, esgueirando-se entre os msicos, para ver de perto o agradecimento e o entusiasmo da platia. Os aplausos seguem, o pianista volta aos bastidores, e a cmera vem com ele. Bebe um pouco dgua, pede um cigarrinho, mas o maestro insiste: cigarrinho, depois. Antes, um extra, um brinde, um

docinho de coco para o pblico, para agradecer. Pianista e maestro voltam cena, curvamse diante dos aplausos, que no diminuem. De novo nos bastidores, o maestro insiste: um extra, um brinde. O pianista diz que no d. Depois desse concerto, no seria possvel. Pede ao maestro que o acompanhe ao palco para novo agradecimento porque a platia segue aplaudindo. Os dois cumprimentam os msicos. O maestro faz um gesto para que toda a orquestra se levante e volta para os bastidores com o pianista. O plano no acaba a. Renova-se o apelo: uma pea pequenina, diz o maestro, um docinho de coco. Cigarrinho s depois. E nova entrada em cena para mais um agradecimento. Um plano-seqncia mais intervalo que seqncia. Uma observao detalhada de um entreato. O concerto, que no vimos, acabou. Vai comear outra coisa que igualmente no veremos. Nessa nova entrada em cena o pianista senta-se ao piano para tocar algo, e o plano acaba. Vemos o vazio entre o ltimo pedao de som do concerto e o gesto de sentar-se ao piano o gesto e s: agora nenhum som para o extra. O que acabou importa pouco. O que vai comear no faz falta. Vemos o vazio entre uma coisa e outra e, graas a ele, percebemos melhor e mais acuradamente o que de fato importa. Documentaristas tm a estranha mania de achar que tudo, ou quase tudo, deve ser filmado. No precisa ser necessariamente assim, diz Joo Moreira Salles. Uma boa parte do pblico de msica erudita gosta de ver o seu pianista dando golpes de brao direita e esquerda, como se o teclado fosse um mar, e ele, um afogado. O problema desse destempero que quase sempre a msica acaba desaparecendo por trs da ginstica. Com Nelson isso nunca acontece. O seu piano um mar calmssimo. Acredito que essa elegncia seja uma deciso esttica; como se ele dissesse: Prestem ateno na msica e no se deixem ludibriar pela performance. E suspeito tambm que se trata de uma questo de recato [...] Num mundo cada vez mais exibido, esse recato o trao mais belo de Nelson e, na minha opinio, a razo da extraordinria pureza de sua msica5. Recato. Lacuna. Intervalo. Bem no instante em que a tecnologia digital aponta concretamente para a possibilidade de filmar tudo, e bem de perto, at invadir e vencer toda e qualquer intimidade, o que comea a aparecer nos filmes como construo mais refinada Nelson Freire, 33 e Passaporte Hngaro, por exemplo pode ser resumido nas palavras acima. O documentrio, experincia em que o diretor quase se reduz a um espectador do filme que dirige, comea a ser pensado como uma expresso recatada, a se perguntar se, por acaso, em vez de ser o que mostra todas as coisas do mundo, no seria, de fato, o que mostra s o intervalo entre as coisas. Intervalo, autoria. Quando, em O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), Paulo Sacramento entregou a cmera a detentos do presdio do Carandiru para que eles se filmassem, no estava renunciando autoria de seu filme, mas passando a atuar como um espectador ativo da realidade ou do filme que produz para discuti-la. um filme que se realiza estimulado por ele mas quase independente dele. At certo ponto, todo documentrio

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Em O elogio do recato, entrevista a Daniel Schenker Wajnberg, Marcelo Janot e Maria Slvia Camargo publicada na edio de 9 de maio de 2003 da revista criticos.com.br.

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Jos Carlos Avellar

A realidade como crtica de cinema O cinema como crtica da realidade

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isso mesmo, filme feito por um espectador ativo, meio distante ou no centro da cena. No a primeira vez que isso ocorre num documentrio, nem to incomum assim que um realizador construa seu filme montando imagens que no filmou. Aqui, ou porque os presos passaram antes por uma breve oficina sobre o uso de cmeras digitais, ou porque, como toda a gente hoje, foram educados visualmente pelo contato regular com cinema e televiso, ou ainda porque o manejo das cmeras de vdeo digital relativamente fcil graas a controles automticos, por qualquer uma dessas razes separar o que foi filmado por eles e o que foi registrado pelo realizador no to simples nem colabora para a melhor compreenso do projeto. O diretor no estava presente em boa parte da filmagem, mas em nenhum instante se ausentou da concepo do filme, porque de certo modo procurou se comportar como o outro, ser um deles, sentir a priso como uma metfora do mal-estar de nossa sociedade. O Prisioneiro da Grade de Ferro remonta o cotidiano do presdio recm-destrudo numa imploso, trabalha no eco do massacre de detentos ocorrido h pouco mais de dez anos. O que os presos filmam revela a priso como um microcosmo da sociedade do lado de fora. Exagerando um pouco, corredores e celas do presdio no so muito diferentes dos corredores e apartamentos conjugados do Edifcio Master, de Eduardo Coutinho. Nem as histrias contadas pelos presos do Carandiru so muito diferentes daquelas contadas pelos moradores do edifcio de Copacabana. Uns e outros so excludos, no so um desvio ou deformao dos ideais da sociedade. No a primeira vez que o cinema sugere o crcere como uma metfora da sociedade, nem a primeira vez que a cmera procura pensar o mundo do ponto de vista de um prisioneiro efetivamente preso ou em liberdade condicional, como os moradores de conjugados. O que importa observar como os diferentes presos conversam entre si, confessando a meia-voz o sonho comum a todos os excludos: mudar de vida.

Brasil, quinta-feira, 28 do 10 de 76, primeiro caderno, pgina 15: Filmagem causa espanto e irrita filha e amigos. Um, dois, trs, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze... Corta! Agora d um close na cara dele! Barba por fazer, cala de brim azul-marinho, casaco azul-escuro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons, o cineasta Glauber Rocha est parado ao lado do caixo do pintor Di Cavalcanti no Museu de Arte Moderna... . Dominando a imagem com sua voz, entrando em cena e acompanhando o enterro, no centro do plano, frente do caixo (e no com o jeito discreto e encolhido com o qual o diretor de um filme documentrio costuma aparecer na imagem), Glauber filma a si mesmo para falar do pintor, para falar de cinema. Retomemos a possibilidade de que a idia de pedir Passaporte Hngaro e buscar a me biolgica tenha surgido para Sandra e para Kiko primeiro como idia de filme. Ou seja: mais do que o pedao de realidade que documentam, os filmes de Sandra e de Kiko, como os de Paulo e de Eryk, e antes deles todos os de Coutinho e Glauber, so filmes. Ao mesmo tempo em que nos revelam as buscas objetivas em que seus realizadores esto empenhados (e sem sair delas, pois elas que do corpo idia), expressam a busca subjetiva de seus diretores: discutir na realidade (o cinema ento como um instrumento crtico dela) o cinema (a realidade ento como instrumento crtico dele), discutir a condio do espectador durante a projeo quando (para melhor criticar uma coisa e outra) abre mo de sua identidade como passaporte necessrio para melhor perceber o filme como expresso vizinha de Constable, Turner, Goya ou Posada, vizinha, sobretudo, ao espelho de Magritte.

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Di, Prmio Especial do Jri no Festival de Cannes de 1977, foi um dos filmes debatidos por Roberto Rosselini no seminrio aberto que ele, presidente do jri, organizou para discutir o cinema de autor e os filmes em concurso naquele ano. Rosselini discutia a perda de potncia do cinema de autor (o filme de autor virou uma espcie de gnero, os autores renunciam inveno e se repetem ao infinito), e identificou no filme de Glauber uma nova atitude autoral, em que o autor se inseria na histria que narrava como parte inseparvel dela.

6. Os documentrios que fazemos hoje parecem abraar uma construo cinematogrfica que parte de idias esboadas entre ns na dcada de 1960: o cinema como busca/ afirmao/inveno de uma identidade em permanente busca de si mesmo, o impulso documentrio como forma de levar o cinema ao direto enfrentamento do presente. So filmes que partem do que se esboou na dcada de 1960 e que passam pela experincia de Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, e de Di (1977)6, de Glauber Rocha. No primeiro, o realizador se situa no centro da histria e fora de quadro (20 anos depois, no Nordeste, em busca dos companheiros de trabalho no filme interrompido pelo golpe militar de 1964). No segundo, o realizador comea gritando a apresentao do filme (que no tem letreiros e se anuncia pelo som): Di Cavalcanti. Ttulo do filme: ningum assistir ao formidvel enterro de sua ltima quimera, somente a ingratido, aquela pantera, foi sua companheira inseparvel. Em seguida, voz alta, exaltada, Glauber l uma notcia de jornal sobre a filmagem: Filmagem causa espanto e irrita famlia e amigos. Jornal do

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documentrio, gnero que nasce com o cinema, procura lanar a cmera para mostrar e desvendar o real. Isso significa conhecer as paisagens, a natureza, as prticas e os modos de viver dos homens. Significa tambm interrogar o prprio exerccio de documentar. Sendo assim, questionar o documentrio interrogar a forma como se busca e se expressa o conhecimento, a empatia ou a rejeio do outro, que est diante da cmera. A questo central, portanto, saber como o documentrio fez e faz da alteridade o sujeito das imagens, sobretudo no Brasil, uma vez que o artista o cineasta depara com uma relao com o outro, que envolve, em geral, uma diferena social marcante. Esta no deixa de influir de forma significativa no resultado do seu trabalho.

Tendncias e perspectivas do documentrio contemporneo: um olhar histrico retrospectivo Sheila SchvarzmanHistoriadora do Condephaat, professora do curso de audiovisual das Faculdades Senac, professora convidada do Departamento de Multimeios da Unicamp. Realizou ps-doutorado sobre a obra de Octvio Gabus Mendes. autora de Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, So Paulo, Edunesp, 2004, e Humberto Mauro e o Documentrio, no livro organizado por Francisco Elinaldo Teixeira Documentrio no Brasil Tradio e Transformao, So Paulo, Summus Editorial, 2004.

Em busca de um objeto Se iniciarmos nosso questionamento pelo documentrio clssico brasileiro, produzido pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) entre os anos de 1936 e 1945, por exemplo, veremos que o que se enfoca ali so seres e situaes edificantes, buscando criar modelos pedaggicos a ser seguidos numa sociedade autoritria. So assim os grandes heris cultos que o arquelogo e diretor do Ince, Roquette Pinto, associado ao realizador Humberto Mauro, tratou de construir, forjando um panteo de homens exemplares por seus feitos e obras, que deveriam restar como modelos para as novas geraes: Machado de Assis, Castro Alves, Rui Barbosa, Princesa Isabel ou Baro do Rio Branco. Eles eram os grandes mortos, heris romnticos em que se deveria inspirar o Brasil extraordinrio que aqueles filmes buscavam moldar. Nesse mesmo momento histrico, as reportagens do Departamento de Imprensa e

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Propaganda (DIP) traziam para a tela homens vivos excepcionais comeando pelo presidente Getlio Vargas, artistas como o pintor Pancetti, artesos e trabalhadores de extrao simples, que haviam se destacado em suas atividades. Mas o verdadeiro foco desses filmes, o sujeito dessas aes, era antes de tudo o Estado que, na figura do presidente, resguardava o cidado, ou dava queles profissionais a chance de sobressair. Tanto em um como em outro exemplo, era muito clara a separao total entre os personagens da tela e os da vida real. Na tela, todos eram parte da mesma fico construda pelo regime por meio do cinema. Nos anos 1950, finda a ditadura, e com novos tempos polticos e culturais, os heris e as virtudes pedaggicas construdos pelo Ince se desfizeram. A forma documental se imps sobre a pedagogia, e Humberto Mauro passou a registrar de forma sistemtica os modos de vida tradicionais que o avano da modernizao pareceu ameaar. So filmes como Fabricao da Rapadura (1958), Pedra Sabo (1957), ou canes populares romnticas as vrias Brasilianas (1945-1958). Entretanto, em todas as obras o homem ainda no aparece como personagem importante. Ele parte de um sistema no qual est imerso, junto com o Carro de Bois (1956) ou o engenho (Engenhos e Usinas, 1955); estes, verdadeiros sujeitos dos filmes que abordavam a cultura brasileira tradicional num momento de forte transformao, com a industrializao e a urbanizao. Em Aruanda, de Linduarte Noronha e Rucker Vieira (1960), o homem j tem consistncia e existncia prpria, no mais a entidade abstrata dos momentos anteriores. nele que se edificam os traos do homem popular como depositrio da verdadeira tradio e dos valores brasileiros. A construo romntica se transfere do grande homem para o homem simples. Ainda que pobre, ele a verdadeira nacionalidade sua inconsciente salvaguarda. Em 5 Vezes Favela (Carlos Diegues e outros, 1962), a beleza e a poesia no escondem o vis romntico que permeia a abordagem dos tipos populares; vis cujo ponto de vista certamente era motivo de conflito entre os diretores cinema-novistas. Nesse sentido, Opinio Pblica (1967), de Arnaldo Jabor, muda o tom e evita o romantismo, ao abordar a populao de classe mdia de Copacabana, no Rio. A magnificao do homem do povo marcante nos filmes da Caravana Farkas, que procurou registrar o verdadeiro homem brasileiro a partir de meados dos anos 1960. Tratava-se, no dizer de Geraldo Sarno, um de seus realizadores, de mostrar a nobreza intrnseca do ocupado e a sua competncia. Uma obrigao to nobre que certamente no oculta, no tratamento da imagem e na eloqncia da narrao, a culpa e a m conscincia dos realizadores pelos dbitos sociais que se explicitam nos filmes. Essa frase demonstra o grau de idealizao em relao ao homem das camadas populares: num pas de tanta desigualdade, difcil tratar o outro de forma igualitria sem chamar para si cineasta culto e bem alimentado do Sul a responsabilidade pela mudana.

Em filmes como Viramundo (Geraldo Sarno, 1965), apesar de as mudanas tcnicas e de concepo cinematogrfica do cinema direto terem permitido dar voz ao povo, deixando patentes as carncias dos homens que ali se enfocavam, a voz sociolgica se sobreps s novas vozes; falou por elas, falou no seu lugar1. Isso certamente falou com mais eloqncia da viso do realizador do que daquele que alvo da cmera. Esse vis persiste ainda nos anos 1970 e 1980. Mas essa tendncia muda, e muito, em meados dos anos 1980 e 1990. Os anos 1980, fortemente marcados pelo neoliberalismo, sepultaram as utopias socializantes que faziam do povo um objeto a ser salvo e amparado. Ao rurem, essas crenas permitiram a livre manifestao da persistente linhagem conservadora de parte do pensamento nacional que, desde o final do Imprio, sempre viu o povo de forma negativa. Se, at os anos 1980, o Nordeste era o objeto de interesse e os filmes documentavam um modo de vida tido como arcaico, pobre, miservel mas respeitosamente tradicional, como se v em A Bolandeira (Vladimir Carvalho, 1969), por exemplo , a partir desse momento o foco muda. O centro das atenes passam a ser os marginalizados urbanos, que os efeitos deletrios do milagre brasileiro s fizeram multiplicar. Assim, so documentados a vida no morro, as favelas, o apego religio, o trfico de drogas, a delinqncia e, ao mesmo tempo, seus antdotos ou mecanismos de defesa como o rap etc. A imagem cruenta, ou intensa, como lembra Ferno Ramos, parece ser a forma de tematizar, no documentrio contemporneo, a excluso e a violncia social que permeiam a sociedade brasileira.(...) um narcisismo s avessas2. Se mudou a geografia, se o urbano substituiu o rural, se o jovem substituiu os homens maduros envolvidos em profisses e atitudes tradicionais, como se a prpria humanidade tivesse se transformado na imagem. Depurado do vis romntico que alimentava no povo a idia de raiz, de autenticidade, o elemento popular aparece desprovido de qualidades, imensamente carente. Como j observou Ramos, em alguns filmes da poca3, o espectador, atravs de uma postura auto-agressiva, aceita e se deleita com a crueldade narrativa, embutida na enunciao, na imagem do HORROR (imagens do grito, da morte, da misria, da sordidez, do sofrimento, do dilaceramento corporal, do sangramento, da humilhao, da sujeira). A favela, os cortios, a priso, os lixes, os esgotos, o campo devastado so os cenrios privilegiados dessa imagem. a fratura de classes da sociedade brasileira que permite a representao desse outro que denominamos representao do popular 4. Por outro lado, persiste ainda como caracterstica dessa fase talvez pela urgncia dessas questes um olhar exterior que continua a permear a relao com o outro. Um olhar exterior e de classe, que denuncia, mas tambm revela, na maior parte das vezes, a m conscincia em relao ao outro pobre. Mesmo nas formas cinematogrficas mais despojadas como no dilogo entre o cineasta e seu entrevistado , essa m conscincia que se mostra quando se revelam os dispositivos de elaborao de um filme. nessas1

BERNARDET, Jean-Claude. O modelo sociolgico ou a voz do dono. In: Cineastas e imagens do povo. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 15.2

RAMOS, Ferno Pessoa. Trs voltas do popular e a tradio escatolgica do cinema brasileiro. In: Estudos de cinema Socine II e III. So Paulo: Annablume, 2004. p. 48.3

Como Notcias de uma Guerra Particular (Joo Salles, 1999), Uma Avenida Chamada Brasil (Octavio Bezerra, 1989), Boca de Lixo (Eduardo Coutinho, 1992), Os Carvoeiros (Nigle Noble, 1999), Mamaznia, a ltima Floresta (Celso Lucas, Braslia Mascarenhas, 1996), O Rap do Pequeno Prncipe contra as Almas Sebosas (Paulo Caldas, Marcelo Luna, 2000), O Prisioneiro da Grade de Ferro (Paulo Sacramento, 2003), nibus 174 (Jos Padilha, 2001), Falco, Meninos do Trfico (MV Bill, Celso Athayde, 2003).4

RAMOS, Ferno Pessoa. As trs voltas do popular e a tradio escatolgica do cinema brasileiro. Op. cit.

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formas cinematogrficas, como mostram os ltimos planos de Margem da Imagem (Evaldo Mocarzel, 2003), que as contradies dessa postura supostamente igualitria afloram. A cena final mostra o entrevistado, morador de rua, respondendo ao cineasta o que achou do filme, do qual participou e no qual se contam suas histrias. O que ele diz revelador do dispositivo de filmagem e do abismo que a diferena social de classe e de educao pe entre os interlocutores: ele diz que, fora do mbito da filmagem, se batesse porta do diretor, pedindo um prato de comida, seria to rejeitado quanto sempre foi em todos os outros lugares. Essa fala, excepcionalmente significativa, termina com um corte em que o diretor avisa que valeu!. Terminou o filme. Terminou, portanto, para o diretor, essa histria toda! Jean-Claude Bernardet5, em seu artigo sobre a entrevista, cobra de Mocarzel uma posio diante do interlocutor, algo que no acontece. O entrevistado sagrado, resta como um objeto de interesse exterior. Tudo o que diz vale para o filme, mas o interesse, tal como se revela nas imagens, se resume ao filme. O documentrio contemporneo, portanto, incorporando a reflexibilidade que busca deixar transparentes as relaes entre quem filma e quem filmado, termina por engendrar outra interrogao: quem est no centro do filme? Quem o verdadeiro alvo: o entrevistado ou o dispositivo empregado pelo diretor para ressaltar seu prprio cuidado com o objeto? Em se tratando das questes da alteridade no documentrio contemporneo, obrigatrio falar de Eduardo Coutinho. Sua obra, desde Cabra Marcado para Morrer (1984), restar certamente como uma baliza na histria do documentrio que procuramos escrever. Ainda que a reflexibilidade no seja sua inveno, a partir dos seus trabalhos que os vrios contratos supostos no documentrio se explicitam: o pagamento, o carter encenado do rito da entrevista, a presena da equipe. Essa noo de uma obra conjunta que se explicita diante do espectador do entrevistado e de Coutinho e sua equipe parece ser uma das chaves que explicam a empatia do interlocutor, bem como o acolhimento que se d a ele. assim que esse pode se constituir como sujeito diante da cmera. Nesse cinema basicamente da palavra, da memria e da fabulao, a personalidade de Coutinho o ponto essencial. Ainda que exista a um dispositivo, ele parece basear-se, antes de tudo, inteiramente na postura generosa de interlocuo do diretor. Assim, o objeto de interesse deixa de ser o filme em si mesmo, ou o dispositivo, e o entrevistado pode virar sujeito. Mais do que a prevalncia de um dispositivo h em Coutinho a consistncia cinematogrfica de uma prtica oriunda dos anos 1960, e que tem seu trao principal na forma de tratar as pessoas, no espao que lhes dedicado, no desejo de se aproximar delas, de deixar que se mostrem diante da cmera. E isso parece corresponder, antes de tudo, a uma evoluo de Coutinho que est vinculada idealizao do povo, comum nos anos 1960 e nos documentrios da poca.5

ressaltar, contudo, que eles partiam de olhares e questes infinitamente diversas. Salles nos fala da urgncia de uma guerra cotidiana que permeia a sociedade brasileira, na cidade do Rio de Janeiro, onde excluso, criminalidade, represso, corrupo e impotncia destroem o tecido social espraiando-se por toda a sociedade, configurando a guerra retratada nas imagens de Notcias de uma Guerra Particular (1999). J Santa Marta: Duas Semanas no Morro (1987), de Eduardo Coutinho, cujo foco central tambm a vida na favela, acaba por tirar do interlocutor relatos totalmente distintos. Se no primeiro filme, o de Joo Salles, o morro concreto e hostil, e corresponde ao imaginrio que do exterior se elabora sobre ele na mdia, na opinio pblica que demoniza a favela como lugar da marginalidade , no de Coutinho ele lugar de vivncias e de imaginao, construdo a partir de dentro, por seus moradores. Com Salles, somos intimados a agir, a nos posicionar perante essa guerra da qual tambm somos parte. No documentrio de Coutinho, a palavra est com o morador, que nos esclarece sobre o que , afinal, esse morro Santa Marta, o lugar que ama e no qual vive. Entretanto, essa forma de abordagem de Coutinho que parece aparentemente fcil induziu, e tem induzido, o documentrio atual a repetir em grande parte esse sistema, sem o mesmo sucesso, levando a forma da entrevista a uma crise de saturao devido sua aparente facilidade, ao baixo custo etc.6 Se a entrevista se torna uma das formas mais usadas e desgastadas dos filmes recentes, dela decorrem outras posturas. Uma delas a idia de dar aos depoentes a cmera, para que produzam a sua prpria imagem. Assim tm agido cineastas, antroplogos e outros especialistas que vm colaborando na criao de filmes pelos ndios, por exemplo, gnero extremamente frtil desde a obra do Major Thomaz Reis. Essa filmografia hoje extensa, o que se deve, em grande parte, aos aportes de ONGs nacionais e internacionais. Neles, mostram-se temas caros aos ndios a partir de seu prprio olhar. Em Prisioneiro da Grade de Ferro (2004), Paulo Sacramento entregou a cmera aos presos do Carandiru. Nessas imagens, o sujeito encarcerado se ergue e se idealiza. Redime-se e se mostra humano. A excluso se dissolve numa nova identidade e atesta o princpio norteador do documentrio de depoimento que estabeleceu, ao longo de sua histria, a crena inabalvel de que todo depoente fala sempre a verdade. Parece parafraseando Andr Bazin que a ontologia da imagem documentria no Brasil o primado da verdade daquele que fala. E, se o assunto o depoimento como sinnimo de verdade, vamos nos voltar para o documentrio mais constante nesse perodo, assim como em toda a histria do documentrio brasileiro, aquele que estabelece a ponte com os primrdios da produo e sua tradio pedaggica e exemplar: a biografia.

BERNARDET, Jean-Claude. A entrevista (Casa de Cachorro, Margem da Imagem). In: Cineastas e imagens do povo. Op. cit. p. 281.

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Nesse sentido, interessante observar o dilogo que se estabelece entre os recortes do morro nas lentes de Eduardo Coutinho, por um lado, e de Joo Salles, por outro. Deve-se

BERNARDET, Jean-Claude. A entrevista (Casa de Cachorro, Margem da Imagem). In: Cineastas e imagens do povo. Op. cit. p. 281.

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Grosso modo, se fossem usados os termos da historiografia para definir as produes documentais, veramos que, na primeira fase do documentrio nacional, filmaram-se os vencedores da histria e os personagens caros chamada alta cultura. A partir dos anos 1960, foram filmados os vencidos e a cultura popular. Navega-se atualmente por uma noo de cultura mais ampla, e os heris de hoje so os perseguidos e os clandestinos de ontem. Apesar da mudana de foco, a reverncia a mesma, com outra roupagem, salvo algumas excees, como em Barra 68, de Vladimir Carvalho (2000), sobre a ocupao da Universidade de Braslia. Ali, a presena instigante e anti-reverente de Darcy Ribeiro deixa no filme no um memorialismo celebratrio comum a tantos outros desse gnero, mas antes de tudo a lembrana viva da fala, que pode ser partilhada. Bem ao contrrio disso, e ainda que em mostras de reflexibilidade ostensivas a cadeira do diretor montada no meio da praa, a interlocuo com o povo , Vladimir Herzog celebrado, lembrado, mas antes de tudo um heri petrificado em Vlado 30 Anos Depois, de Joo Batista de Andrade (2005). Ainda que saibamos toda a sua histria, suas lutas, at mesmo sua intimidade, ele segue sendo algum de quem se fala com reverncia: um mrtir cujo sacrifcio permitiu mudanas no pas, mas cuja identidade se perde nos reiterados elogios dos depoentes, na cmera fechada em primeirssimo plano como se, ao fim, a distoro nas imagens do rabino Sobel, do jornalista Fernando Morais ou de Rodolfo Konder, de Clarice Herzog e de seu filho fossem a cauo de verdade: lgrimas nos olhos nos momentos de emoo... Por outro lado, e como j chamou ateno Jean-Claude Bernardet, os diretores pouco falaram de suas condies de vida. Pouco falaram daquilo que lhes prprio. Como se a situao das classes mdias e camadas pensantes e artsticas, de que os cineastas fazem parte, no fosse objeto de interesse do documentrio. Claro, h filmes sobre artistas, ou sobre o prprio meio cinematogrfico, mas talvez seja somente no documentrio em primeira pessoa que possamos encontrar esses diretores, com suas questes que se mostram no apenas como indagaes individuais, mas tambm humanas, histricas e universais. o caso de 33, de Kiko Goiffman, que trata da busca de sua me biolgica, e de Passaporte Hngaro, de Sandra Kogut. Neste ltimo, atravs das malhas da burocracia e das mudanas da histria, vemos a neta de uma senhora judia hngara, fugida de seu pas, reconquistar a cidadania europia, representada pelo direito a Passaporte Hngaro. H muita histria incrustada nesses relatos: o nazismo, o anti-semitismo, a Segunda Guerra, a fuga para c, o Brasil como terra prometida agora no o mais, porque mais importante poder estar na Europa e, por meio dessa histria toda, sem falar de todos os meandros da burocracia, a neta faz com que a av fugida reate com o passado de que fora banida. Um belo resgate. Faltam-nos histrias e falta o olhar do documentarista sobre aquilo que lhe prprio, prximo. A sua vida, as suas carncias ou ser que, por pudor, o documentarista de classe mdia no poder falar disso? Como se, de alguma forma, no fosse isso mesmo que, de um lado, pode nos esclarecer sobre a falta do outro.

No pretendo com isso apontar um caminho ou perspectiva para o documentrio nacional. Entretanto, procurei traar aquilo que interpreto como suas principais tendncias atuais, religando-as nossa tradio e enfocando prioritariamente a questo do sujeito no documentrio. Assistimos hoje a uma multiplicidade de tendncias em desenvolvimento, mas em nenhuma delas salvo no documentrio em primeira pessoa, de matriz artstica o documentarista capaz de falar de sua realidade mais prxima, desprovido de m conscincia, como j se apontou largamente e como mostramos com alguns exemplos. tempo de falar no apenas de sua individualidade em primeira pessoa , mas das questes que dizem respeito diretamente aos autores, como tem feito o documentrio internacional prioritariamente. Como escrevi no incio deste artigo, a postura do documentarista brasileiro muito pautada por suas questes ideolgicas, culturais e de classe. J tempo de colocar-se como objeto.

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que o documentrio? Essa questo vem sendo levantada ao longo da histria das imagens tcnicas h pelo menos 80 anos, a princpio no interior do cinema e depois, com o advento da televiso, do vdeo e da internet, no parou mais de reverberar a cada mudana de paradigma tcnico, com grandes ressonncias no que hoje se denomina largamente cultura audiovisual. Indagao ontolgica a respeito do ser ou da natureza do documentrio como um domnio ou territrio particular da imagem, originalmente em relao ao campo do cinema para em seguida vetorizar-se de modo transmiditico, sua recorrncia em momentos distintos revestiu-se de propsitos tambm diversos. Nos anos 1920, quando o termo documentrio foi estabelecido, a resposta sobre o que ele era decorria de uma necessidade de diferenciao em relao reportagem cinematogrfica (atualidades) e ao cinema de fico, reclamando para si as prerrogativas da realidade. Nos anos 1960, da segunda vaga ou documentrio moderno, com a transformao de sua base tcnica (miniaturizao dos equipamentos, maior sensibilidade da pelcula fotoqumica, sincronizao da imagem e do som), aliada s novas modalidades narrativas (irrupo da narrativa subjetiva indireta livre), introduziu-se um primeiro grande estranhamento a respeito de sua natureza mimtica em relao a seu material de base, a realidade, quando ento surgiram diversas denominaes substitutivas (cinema-verdade, cinema direto, cinema do vivido, cinema espontneo, cinema do comportamento etc.). Das trs ltimas dcadas para c, desde quando as tecnologias e estticas videogrficas irromperam no horizonte nos anos 1970, com a alternativa do suporte eletrnico analgico e digital em relao longa durao do suporte fotoqumico da fotografia e do cinema, produziu-se uma espcie de voragem intra, inter e multimeios que parecia tender para uma total pulverizao do territrio do documentrio. Mas no foi isso que aconteceu, embora a questo sobre sua natureza tenha se tornado muito mais escorregadia, de difcil formulao e mais ainda de resposta, e por isso mesmo muito mais crucial na atualidade.

Documentrio expandido Reinvenes do documentrio na contemporaneidade Francisco Elinaldo Teixeira mestre e doutor pela FFLCH-USP, ps-doutor em comunicao e semitica pela PUC/SP e professor participante do Programa de Ps em Multimeios da Unicamp, com pesquisas em cinema experimental e cinema documentrio. Autor dos livros: O Terceiro Olho Ensaios de Cinema e Vdeo (Mrio Peixoto, Glauber Rocha e Jlio Bressane), So Paulo, Perspectiva, 2003; e organizador de Documentrio no Brasil Tradio e Transformao, So Paulo, Summus Editorial, 2004.

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Francisco Elinaldo Teixeira

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