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Dimas A. Künsch | Guilherme Azevedo Pedro Debs Brito | Viviane Regina Mansi Organizadores

Comunicação, Diálogo e Compreensão

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Todo fim representa ao mesmo tempo um começo. Fim e começo nem existem de fato, porque, no mundo real, as coisas se misturam, se configuram e reconfiguram, se hibridizam. Os sentidos se produzem e reproduzem incessantemente. Novas histórias se compõem a partir de histórias antigas. A memória traduz e (re)produz a seu modo os significados das coisas. É assim com a história deste livro. De alguma forma, ele fecha e conclui o ciclo de quatro anos (2010-2014) que durou o projeto de pesquisa “Conversando a gente se entende”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero.Mas o fechamento é, sobretudo, uma abertura. Eis que um novo projeto se descortina, previsto para 2015-2017: “A compreensão como método”. Sintomaticamente, confirmando essa ideia de mistura e hibridização, “A compreensão como método” constitui, apropriadamente, o título do prefácio desta obra, que traz a assinatura de Luís Mauro Sá Martino. O próprio professor Martino, aliás, ocupa na história do “Conversando a gente se entende” a função-ponte de ligar e religar tempos, pensamentos, descobertas teóricas e práticas. Ele foi integrante do projeto em suas origens, participando ativamente de vários de seus momentos mais importantes, como o do lançamento do livro Comunicação, jornalismo e compreensão, em 2010.Mesmo quando, por necessidade do Programa, migrou para outra linha de pesquisa do Mestrado, abrindo, lá, um projeto de pesquisa sob sua responsabilidade, Martino não deixou de estar o tempo todo em contato próximo e em solidária interlocução com o grupo de pesquisa “Comunicação, Jornalismo e Epistemologia da Compreensão”, do CNPq, aoqual o projeto “Conversando a gente se entende” desde o começo esteve vinculado.Agora, o autor do prefácio faz-se de novo protagonista, generoso e competente, nesse momento de fechamento-abertura.O texto que ele escreve traz uma leitura por dentro do projeto de pesquisa que está sendo concluído. Interpreta essa força, ou energia, que compõe a alma dessa pesquisa: o temada compreensão. Liga o antes e o depois, o projeto que se conclui e o que é inaugurado, por meio daquilo que estamos chamando de uma epistemologia da compreensão.O livro que o leitor tem em mãos, de fechamento e de abertura, inaugura ainda outro início, dos mais auspiciosos. No final deste ano de 2014, a Cásper Líbero assinou um convênio de cooperação acadêmica com a Universidade de Antioquia, de Medellín, Colômbia. O tema da compreensão, nesse contexto de relações acadêmicas de tipo Sul-Sul, trouxe para dentro do livro a participação especial de cinco autores colombianos: os professores Gonzalo Medina Pérez, Ramón Darío Pineda Cardona, Raúl Osorio Vargas, Selnich Vivas Hurtado e Ximena Forero Arango. Quatro dos textos desses professores são reproduzidos em espanhol, num tributo à língua-irmã. A Faculdade Cásper Líbero e a Universidade de Antioquia continuarão compreensivamente unidas no desenvolvimento do novo projeto de pesquisa, “A compreensão13 como método”. Não por acaso, esse fechamento-abertura assume um primeiro momento de consagração com o lançamento deste livro na Universidade de Antioquia, durante encontro em que será debatida a participação conjunta de brasileiros e colombianos no novo projeto.Dividido em três partes – “O pensamento da compreensão”, “A pesquisa compreensiva” e “A prática da compreensão” –, este livro reúne textos, os mais diversos, de diferentes gêneros e estilos de escrita, numa tentativa de trazer para o campo da expressão do pensamento comunicacional o melhor de uma atitude compreensiva, que abraça sentidos, inclui, integra, faz dialogar. O fio condutor, se algum fio condutor precisa haver entre partes de um livro com divisões muito fluidas, é o do exercício da compreensão. Representa o desejo, mais ou também menos bem-sucedido, de aplicar ao necessário rigor, que a academia exige, o vigor que a compreensão igualmente cobra, o vigor da vida, da experiência, da relação de tipo Eu-Tu (Martin Buber), s

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  • Dividido em trs partes O pensamento da compreenso,

    A pesquisa compreensiva e A prtica da compreenso , este livro rene textos, os mais

    diversos, de diferentes gneros e estilos de escrita, numa tentativa de trazer para o campo da expresso

    do pensamento comunicacional o melhor de uma atitude compreensiva, que abraa sentidos, inclui, integra,

    faz dialogar. Comunicao, dilogo e compreenso foi gerado pelo projeto de pesquisa Conversando a

    gente se entende, do Mestrado em Comunicao da Faculdade

    Csper Lbero.

    Dimas A. Knsch | Guilherme Azevedo Pedro Debs Brito | Viviane Regina Mansi

    Organizadores

    978-85-7651-259-2

    capa-livropesquisa-indesign.indd 1 05/03/2015 12:10:23

  • Dimas A. Knsch | Guilherme Azevedo Pedro Debs Brito | Viviane Regina Mansi

    Organizadores

    2014 So Paulo

  • Este trabalho foi licencidado com uma Licena Crea-ti ve Commons 3.0 Brasil. Voc pode copiar, distribuir,

    transmiti r ou remixar este livro, ou parte dele, desde que cite a fonte e distribua seu remix sob esta mesma licena.

    Ricardo Bapti sta MadeiraEditor Responsvel

    Renata RodriguesCapista e Diagramadora

    Carlos CostaDimas A. KnschGuilherme AzevedoPedro Debs BritoViviane Regina MansiEdio e reviso de texto

    Dados Catalogr cos

    Comunicao, dilogo e compreenso / Organiza-dores Dimas A. Knsch, Guilherme Azevedo, Pedro Debs Brito, Viviane Regina Mansi. So Paulo: Pliade, 2014.

    309 p.

    ISBN: 978-85-7651-259-2

    1. Comunicao I. Knsch, Dimas A. II. Azevedo, Guilherme III. Brito, Pedro Debs IV. Mansi, Viviane Regina

    CDU 316.77

    Bibliotecria responsvel: Elenice Yamaguishi Madeira CRB 8/5033

    Editora PliadeRua Apac, 45 - Jabaquara - CEP: 04347-110 - So Paulo/[email protected] - www.editorapleiade.com.br

    Fones: (11) 2579-9863 2579-9865 5011-9869Impresso no Brasil

    C741

  • SUMRIO

    ApresentAo

    Conversando a gente se entende......................................11

    prefcio

    A compreenso como mtodo .............................................17Lus Mauro S Martino

    o pensAmento dA compreenso

    Compreenso da Astrologia: dilogos homem-cosmos intermediados pela mdia ...........................................................41Ana Cristina Vidal de Castro Ortiz

    O dilogo de Pinquio ..........................................................51 Carolina Chamizo Henrique Babo

    Andana mgica em outra Histria: uma conversa sobre a narrativa do mito ......................63Cremilda Medina e Dimas A. Knsch

    El dlar que venera Tirofijo: una historia de amor e indisciplina guerrillera ..................................79Gonzalo Medina Prez

  • Residncia no meio da compreenso...Vem falar comigo para tecer a reportagensaio ...............................91Ral Hernando Osorio Vargas

    O papel dialgico do ensaio na contemporaneidade .......................................................103Rodrigo Volponi

    En dilogo con la ancestralidad contempornea ..115Selnich Vivas Hurtado

    A pesquisA compreensivA

    Belo Monte e o projeto de um (velho) Brasil sem dilogo .............................................................................129Juliana Arini

    Dilogo com o outro, ou o no-outro na cobertura da crise do Paraguai ............................................................141Luciana Pelaes Rossetto

    Os (diversos) dilogos possveis nas organizaes ..153Viviane Regina Mansi

    Rueda de conversaciones sobre memoria histrica: aprendizajes desde Alemania para Colombiay Guatemala ..............................................................................................165 Ximena Forero Arango

    A prticA dA compreenso

    Dilogo nos cenrios de riscos de desastres .............179Cilene Victor

  • Criana, o grande motivo de uma narrativa de muitas vozes ......................................................................193Dulcilia Schroeder Buitoni

    O universo do palhao, o dilogo e a compreenso na comunicao humana ....................................................209Felipe Domingos de Mello

    Dilogo entre docentes e discentes mediado por tecnologias ....................................................................221Gabriel Lage Neto

    Cano do caminho: itinerrio lrico de uma busca por conhecimento e compreenso ..................................231Guilherme Azevedo

    Guerra e paz: as narrativas do jornalismo em conflito .............................................................................249Jlio Csar Degl Iesposti

    Mediao: o amadurecimento do Direito ...................263Lcia Cristina Guimares Deccache

    Ouvir bem para se viver bem: as experincias das Casas de Mediao e da ComunicaoNo-Violenta .........................................................................275Pedro Debs Brito

    (In)Sustentvel......................................................................287Pedro Ortiz

    La universidad en la calle: el recorrido urbano como descubrimiento ..........................................................299Ramn Daro Pineda Cardona

  • APRESENTAO

  • APRESENTAO

  • CONVERSANDO A GENTE SE ENTENDE

    Todo fim representa ao mesmo tempo um comeo. Fim e comeo nem existem de fato, porque, no mundo real, as coisas se misturam, se configuram e reconfiguram, se hibridizam. Os sentidos se produzem e reproduzem incessantemente. Novas histrias se compem a partir de histrias antigas. A memria traduz e (re)produz a seu modo os significados das coisas.

    assim com a histria deste livro. De alguma forma, ele fecha e conclui o ciclo de quatro anos (2010-2014) que durou o projeto de pesquisa Conversando a gente se entende, do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Faculdade Csper Lbero.

    Mas o fechamento , sobretudo, uma abertura. Eis que um novo projeto se descortina, previsto para 2015-2017: A compreenso como mtodo. Sintomaticamente, confirman-do essa ideia de mistura e hibridizao, A compreenso como mtodo constitui, apropriadamente, o ttulo do prefcio des-ta obra, que traz a assinatura de Lus Mauro S Martino.

    O prprio professor Martino, alis, ocupa na histria do Conversando a gente se entende a funo-ponte de ligar e religar tempos, pensamentos, descobertas tericas e prticas. Ele foi integrante do projeto em suas origens, participando ativamente de vrios de seus momentos mais importantes, como o do lanamento do livro Comunicao, jornalismo e compreenso, em 2010.

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    Mesmo quando, por necessidade do Programa, migrou para outra linha de pesquisa do Mestrado, abrindo, l, um projeto de pesquisa sob sua responsabilidade, Martino no deixou de estar o tempo todo em contato prximo e em soli-dria interlocuo com o grupo de pesquisa Comunicao, Jornalismo e Epistemologia da Compreenso, do CNPq, ao qual o projeto Conversando a gente se entende desde o comeo esteve vinculado.

    Agora, o autor do prefcio faz-se de novo protagonista, generoso e competente, nesse momento de fechamento-aber-tura. O texto que ele escreve traz uma leitura por dentro do projeto de pesquisa que est sendo concludo. Interpreta essa fora, ou energia, que compe a alma dessa pesquisa: o tema da compreenso. Liga o antes e o depois, o projeto que se con-clui e o que inaugurado, por meio daquilo que estamos cha-mando de uma epistemologia da compreenso.

    O livro que o leitor tem em mos, de fechamento e de abertura, inaugura ainda outro incio, dos mais auspicio-sos. No final deste ano de 2014, a Csper Lbero assinou um convnio de cooperao acadmica com a Universidade de Antioquia, de Medelln, Colmbia. O tema da compreen-so, nesse contexto de relaes acadmicas de tipo Sul-Sul, trouxe para dentro do livro a participao especial de cinco autores colombianos: os professores Gonzalo Medina Prez, Ramn Daro Pineda Cardona, Ral Osorio Vargas, Selnich Vivas Hurtado e Ximena Forero Arango. Quatro dos textos desses professores so reproduzidos em espanhol, num tri-buto lngua-irm.

    A Faculdade Csper Lbero e a Universidade de An-tioquia continuaro compreensivamente unidas no desen-volvimento do novo projeto de pesquisa, A compreenso

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    como mtodo. No por acaso, esse fechamento-abertura assume um primeiro momento de consagrao com o lan-amento deste livro na Universidade de Antioquia, durante encontro em que ser debatida a participao conjunta de brasileiros e colombianos no novo projeto.

    Dividido em trs partes O pensamento da compreenso, A pesquisa compreensiva e A prtica da compreenso , este livro rene textos, os mais diversos, de diferentes gneros e esti-los de escrita, numa tentativa de trazer para o campo da expres-so do pensamento comunicacional o melhor de uma atitude compreensiva, que abraa sentidos, inclui, integra, faz dialogar.

    O fio condutor, se algum fio condutor precisa haver entre partes de um livro com divises muito fluidas, o do exerc-cio da compreenso. Representa o desejo, mais ou tambm menos bem-sucedido, de aplicar ao necessrio rigor, que a academia exige, o vigor que a compreenso igualmente co-bra, o vigor da vida, da experincia, da relao de tipo Eu-Tu (Martin Buber), sujeito-sujeito, mais que essa relao de tipo Eu-Isso, que o mais das vezes assume fortes marcas de arro-gncia, reducionismo ou, at, de uma atitude dominadora e imperialista nos domnios da produo do saber.

    Nas pginas a seguir, a histria do guerrilheiro colom-biano famoso e de seu cachorro Dlar conversa amigavel-mente com os infortnios indgenas em sua relao com a Usina Hidreltrica de Belo Monte, no Brasil. O dilogo com os astros reveste-se da mesma dignidade que o dilogo ne-cessrio e ausente entre Brasil e Paraguai no contexto da cobertura jornalstica do tema dos brasiguaios.

    Mito e razo, a experincia cotidiana, o gnero ensaio e o gnero artigo, a crnica e a reportagem, a comunica-o com empregados e o palhao que acompanha a dor em

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    hospitais do Brasil e de outros pases, Pinquio e o uso de tecnologias no ensino, esses e outros muitos assuntos com-pem o quadro multicolorido, multiperspectvico (Nietzsche), compreensivo, de teorias, pesquisas e prticas comunicativas de matriz dialgica.

    A compreenso, tanto no sentido tico entre humanos e destes com a natureza e toda forma de expresso da vida quanto em seu sentido cognitivo de produo de conhe-cimentos a partir da dialogia entre teorias, autores, saberes, experincias , constitui, na viso de Morin, um dos sete saberes necessrios educao do futuro.

    Tendemos a pensar que a compreenso o pensar e agir compreensivamente possa representar mais que uma exigncia, das mais necessrias e urgentes, apenas para o campo da educao. Preferimos acolher essa pro-posta de Morin, compreensivamente, na linha do que ele afirma quando, falando sobre a complexidade, diz que preciso reformar o nosso modo geral de pensar o mundo, a vida, a cincia, o saber.

    O projeto Conversando a gente se entende, apostando nisso, apresenta aqui alguns caminhos possveis.

    Dimas A. KnschGuilherme Azevedo

    Pedro Debs BritoViviane Regina Mansi

    Organizadores

    PREFCIO

  • PREFCIO

  • A COMPREENSO COMO MTODO

    Lus Mauro S Martino

    Compreender alguma coisa mais do que entender: significa abraar, no sentido fsico e tambm no espiritual.

    Octvio Paz (1998, p. 672)

    Deixar claros os lugares de fala, isto , de onde se fala e se pensa, pode representar uma abertura para sublinhar algo bvio que, como toda obviedade, quando examinada, revela-se uma trama de potencialidades. Este ensaio pensa a com-preenso como mtodo. Para isso, dialoga com vrias vozes, questionando e ouvindo respostas o exerccio o da escuta, no o da crtica, e isso nos permite reunir ideias que, em seu ncleo, talvez s de maneira oblqua concordem. Mas, por outro lado, a proposio aqui no concordar, e sim pergun-tar. Acertar algumas das perguntas o objetivo do texto.

    As palavras compreenso e mtodo nem sempre an-dam juntas, exceto provavelmente em algumas ressonncias de certa sociologia alem do incio do sculo 20 Weber, Dilthey e, em menor escala, talvez Simmel.

    Mas no dessa compreenso apenas que trata este en-saio. Pensar a compreenso como mtodo no implica ape-nas uma questo epistemolgica, mas, como lembra Hei-

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    degger (2009, p. 148), tambm um meta-odos, uma trilha, o caminho para a alteridade. O envolver-se, diz o filsofo alemo, um caminho inteiramente diferente, um mtodo muito diferente do mtodo cientfico, se soubermos usar a palavra mtodo em seu sentido original, o caminho para.

    O encontro com essa alteridade cognitiva, tica, epis-temolgica pode se dar a partir da Comunicao. Como lembra Paulo Freire (1992, p. 12), sem a relao comuni-cativa entre os sujeitos cognoscentes em torno do objeto cognoscvel, desapareceria o ato cognoscitivo() O mundo humano , desta forma, um mundo de comunicao. Isso no significa que toda comunicao implique imediatamen-te a compreenso do outro s h comunicao, para Wol-ton (2011), quando h essa abertura reflexiva das alterida-des. Na sntese de Morin (2005, p. 110), a comunicao no promove ipso facto a compreenso humana. A compreenso (...) sempre necessita de uma disposio subjetiva.

    Inventar a vida humana uma tarefa de permanen-te desconstruo. Aos olhos rpidos do cotidiano, a vida humana aparenta muitas vezes ser algo esttico, imvel em suas convices e perspectivas, ancorado em certezas que, se desafiadas ou destrudas, mostram-se vazias de um significado maior, tornando aparente a fragilidade sobre a qual repousam.

    Nesses momentos em que, impelido pelas circunstn-cias, o movimento para fora quase obrigatrio, efetiva-mente se constitui a existncia, no sentido latino original do mover-se de dentro para fora o ex-sistere , quando o indivduo sai de dentro de si, se conhece ou se reconhece como algo diferente do que era, embora ainda no tenha chegado a um novo ponto de partida.

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    A desconstruo das certezas nas quais repousa a vida cotidiana oferece ao ser humano ao mesmo tempo o es-vaziamento de algumas concepes anteriores e a concre-tizao de novas. Para tanto, faz-se necessria uma dis-posio para a ao, para a energia, no sentido grego de energeia, movimento, no s para o ex-sistere (o sair de um si que se era para se chegar ao si mesmo, que reside no devir, no futuro a ser criado a todo momento Nietzs-che: Torne-se quem voc ), mas tambm no ex-plicare, no desdobrar das condies e situaes a partir das quais se pode, ou se deve, ser algum.

    Nos meandros da existncia cotidiana, geralmente apenas um nico plano da vida humana valorizado. O estritamente racional, na esfera do clculo, da racionali-zao excessiva, acaba por reduzir todo o humano a um conjunto de algoritmos a ser lido por mquinas, tornando o ser vivo um funcionrio da mquina que ele opera no sentido dado por Flusser e racionalizando tambm seu prprio modo de ser.

    Evidentemente no se deixa de lado, de modo algum, as contribuies da racionalidade e a excelncia dessa di-menso do ser. Ato de coragem, como nos lembra Kant, o uso da razo um componente fundamental do ser hu-mano. Abdicar da racionalidade deixar de lado a prpria condio humana, no sentido de deixar de lado um dos traos distintivos de ns mesmos que a natureza teve tanto trabalho para criar.

    No entanto, justamente no sentido de no desvalo-rizar a razo que ela no pode ser superdimensionada. Se for tornada a nica dimenso do ser humano, essa mes-ma razo mostra sua incompletude, suas fissuras inter-

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    nas irreconciliveis, e irreconciliveis porque esto fora do plano da razo, da racionalidade, do logos o que Wittgenstein (1997) chamaria daquilo que se revela, o mstico, o inefvel.

    O alm da razo no se explica nem se reduz ao racional. Exige um questionamento constante da prpria racionali-dade, no apenas a partir de uma matriz igualmente racio-nal que o exerccio ininterrupto do autoquestionamento, evitando a transformao da razo em dogmatismo , mas tambm de outros componentes do ser humano que uma ra-cionalidade magnificada no consegue apreender.

    nesse ponto, e porque o apreender encerra apenas uma dimenso possvel do ser, que entram outras dimenses para pensar a vida humana em seus mltiplos aspectos no em sua inapreensvel totalidade, mas em sua compreensvel complexidade. nesse momento que entram, em conjunto com a razo, os afetos, as paixes da alma, os devaneios e todo o oceano do inconsciente em seu jogo contnuo de aproximaes, continuidades e rupturas com o racional. E, ento, a racionalidade da explicao ganha seu outro no es-pao ampliado, complementado pela compreenso.

    Os planos em que se tecem as tramas da vida humana no podem ser separados, do mesmo modo que no podem ser pensados em uma unidade totalizante, igualmente fict-cia. Ao que tudo indica, trata-se de um aglomerado de pro-cessos contnuos, assimtricos, paralelos e descontnuos, nos quais os momentos de conjuno e concentrao no so mais importantes, em essncia, do que os momentos de disjuno e mesmo de disperso.

    Com a mesma intensidade, as escolhas, os critrios de escolha e os julgamentos de valor, colocados o tempo todo,

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    de maneira mais ou menos perceptvel, como pontos car-dinais da experincia humana, so igualmente convidados a ser pensados na esfera ou nas esferas da compreen-so: a ordem do encontro com o outro, que difere, mas no necessariamente diverge, do encontro com o si-mesmo, no deixa de requerer tambm o reconhecimento de uma racionalidade que dialoga com o afeto e com seu duplo, o irracional. nesse espao que se coloca, talvez ainda mais diretamente, o problema da compreenso: entender como possvel se aproximar desse outro, dessa alteridade abso-lutamente fechada e ao mesmo tempo aberta para mim, na medida em que tambm estou pronto para adotar, perante mim mesmo, uma postura reflexiva.

    a partir do cognitivo, do epistemolgico e do relacional que se busca pensar aqui a compreenso como denominador comum racional-afetivo a esses trs planos. E, imediatamente, desconfia-se desse modelo. A desconfiana da compreenso, no entanto, no a que leva ao ceticismo, mas aquela que duvida de si mesma sempre que parece estar muito certa de tudo.

    compreenso e conhecimento nAs nArrAtivAs cotidiAnAsA interrogao humana sobre o conhecimento uma

    das questes mais antigas feitas pela nossa espcie. Em suas variadas formulaes, ela parece apontar para um ponto co-mum existente fora do sujeito, objetivado na pergunta O que ?. Essa pergunta, nas mltiplas respostas propostas, encon-tra uma contrapartida possvel na questo O que sei eu?, na perspectiva de desafiar as certezas do prprio conhecimento no uma dvida metdica no sentido cartesiano, mas, ao que parece, uma lembrana dos limites do prprio conheci-mento e do ser cognoscente diante do mundo.

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    O mundo das aes cotidianas muitas vezes escapa reflexo, aparecendo como um fenmeno corriqueiro, normal, e, por isso mesmo, indigno de ateno. Figuran-do diante de nossa viso como uma sucesso quase ininter-rupta de imagens, formando em nossa tela mental quadros que no se organizam seno a partir desse lugar de todos os lugares que o ser, na expresso potico-filosfica de Evaldo Coutinho, a realidade muitas vezes reduzida a essa linearidade que nos acompanha. Talvez nossa necessidade de reduzir a realidade a uma perspectiva linear adequada nossa compreenso limitada e limitante de uma percepo que, aparentemente, muito mais vasta seja responsvel por uma reduo ontolgica do real. Reduo, por sua vez, complicada, na medida em que isso implica uma excluso de tudo o que no se consegue operar dentro dessa lineari-dade, a comear da linearidade do outro.

    Quando contamos uma histria, esse fenmeno toma contornos mais claros. Ao narrarmos, devemos necessaria-mente transformar a sincronia de uma realidade complexa na diacronia das palavras, temas e assuntos mais ou menos encadeados. Apenas reduzida a um fio condutor a trama consegue ser comunicvel, narrada talvez pensada.

    As incluses e excluses dessa narrativa, ao se contar o que aconteceu, no se limitam a dar formato a uma his-tria, mas tambm a um mundo por exemplo, o mundo possvel do jornalismo entendido como narrativa, na ex-presso de Miquel Alsina, que se contrape a todos os ou-tros mundos possveis criados por outras narrativas. En-frenta-se, dessa maneira, o problema da representao do mundo tecida nas narrativas cotidianas no apenas nas narrativas jornalsticas que se constroem mundos; em cada

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    pequeno relato, em cada comentrio, histria, post em redes sociais, h todo um mundo sendo tecido na mirade de nar-rativas que, como lembra Gerbner (1999), criam a realida-de interpessoal. As histrias que contamos, afirma o autor estadunidense, formam o mundo em que vivemos. A viso de mundo de uma pessoa parece estar diretamente ligada aos seus modos de agir. A percepo da realidade, em toda a sua vasta processualidade, inclui uma dimenso relativa forma com que se vai interagir com esse mundo percebido.

    A naturalizao das narrativas e, por conseguinte, das representaes, tende a se constituir como uma forma de naturalizar o mundo, neutralizar os elementos da histria, da poltica e da cultura nele presentes e responsveis, em alguma medida, por sua formao. A realidade, quando deixa de ser vista em sua complexidade e como produto de narrativas e representaes, pode deixar tambm de ser problematizada. Vista como natural, perde seu potencial de mudana, tornando estreis os esforos para pens-la melhor e incua a crtica. Se algo e os esforos de na-turalizao geralmente apontam nesse sentido ento sua ontologia est definida e mudanas, se possveis, acarretam numerosos esforos. Quando algo est, a transformao pensada como inerente.

    Um pensamento compreensivo parece se dirigir a en-tender que se est, na medida em que o refere-se a uma dimenso do ser talvez inapreensvel a representa-o, quando naturalizada, deixa de estar para ser. No por acaso, o problema das representaes nas narrativas no poupa esforos para desnaturalizar as representaes e apresent-las de outra maneira como representaes cons-trudas dentro de contextos materiais, histricos e sociais de

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    produo a partir dos quais seus contornos so tensionados. Ao longo das ltimas dcadas, diversos pensadores Said, Bhabha, Spivak, Butler, Negra, Hooks e outros discutiram o problema da representao em suas implicaes polticas, destacando o modo como o ato de representar est profun-damente enraizado nos espaos sociais, sobretudo no sen-tido de se constituir como verdade, ainda que fundado em narrativas constitudas.

    A perspectiva da compreenso, nesse aspecto, procu-ra lembrar o tempo todo a pluralidade das narrativas, dos pontos de vista e das possibilidades de se narrar/construir o mundo. O que vejo no seno o que vejo, em variados graus e em mltiplas relaes. Ainda que isso seja visto por muitos, por uma comunidade, por quase todos e so essas representaes coletivas exatamente o ponto de par-tida para a alocao de indivduos e grupos nos sistemas hierrquicos e axiolgicos normativos, responsveis mui-tas vezes por acionar polticas de valorizao ou desvalori-zao deste ou daquele.

    Abraar outras narrativas compreender outros conhe-cimentos, outros modos de ver o mundo, como possibili-dades para se ver tambm outros mundos. entender as narrativas do outro como os seus modos de me apreender nessas narrativas, da mesma maneira como minhas narrati-vas sobre o mundo so contnuas apreenses desse mundo. O pensamento compreensivo, operacionalizado em termos metodolgicos, pauta-se na abertura para tentar ver o que o outro est vendo, conhecer o mundo pelo conhecimento do outro no apenas no resultado de entender os meandros de uma viso de mundo no sentido estritamente weberia-no, mas de compreender o modo como se chega a uma de-

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    terminada viso, de entender os andaimes do pensamento, ao mesmo tempo em que se revelam os fatores de constru-o do prprio pensamento.

    O conhecimento do cotidiano, tornado comum pela re-petio variada de suas prticas, ganha cores a partir da pro-posta de desconstruo que tem em mente a compreenso como mtodo para questionar vises elaboradas e, recusan-do um dogmatismo que nem por isso ser incompreendi-do como tipo de conhecimento , se articula para a pergun-ta, quase um desafio, lanada por Montaigne, O que sei?.

    compreenso no dilogo entre epistemologiAsUm segundo problema vinculado a pensar a compreen-

    so como mtodo diz respeito a uma dimenso que pode ser caracterizada como epistemolgica. Se, no item anterior, a questo trabalhada dizia respeito ao conhecimento ins-taurador de sentidos comuns em uma realidade assistem-tica, aqui a interrogao se dirige ao que se poderia chamar de conhecimento cientfico ou, em outras palavras, do conhecimento responsvel por atender a uma determinada ordem epistemolgica.

    Saber legtimo e legitimado por instncias especficas, por lugares sociais responsveis por atestar a validade in-ter pares de determinados tipos de conhecimento em detri-mento de outros, a cincia erige-se, ao menos desde o scu-lo 19, como um ponto decisivo do conhecimento humano que abandona paulatinamente tudo aquilo que escapa do mensurvel e do quantificvel. Os saberes cientficos, funda-dos sobre uma base anterior da chamada Filosofia Natural, distingue-se progressivamente de outros tipos de saberes e promete uma determinada forma de decifrar o mundo, en-

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    tendendo-o em sua totalidade. Esse projeto, com vrias ra-zes e desenvolvimento em espiral, pode ser associado com os mltiplos tipos de racionalismo que, em alguns perodos, presidem a atitude humana frente ao mundo o nascimen-to e o apogeu da filosofia na Grcia antiga, alguns aspectos da cincia medieval, o Renascimento e o Iluminismo po-dem ser indicados, no caso ocidental, como representativos desse tipo de abordagem.

    Bachelard (2004), em seus estudos sobre o que denomina esprito cientfico moderno, levanta questes fundamentais para se pensar o que a cincia e o fazer cientfico, e, em par-ticular, a variante humana dessa questo. A cincia, feita por seres humanos, no deixa de lidar sempre com problemas em perspectivas dimensionadas por essa condio.

    Os saberes cientficos, embora residam em uma tradi-o de se autoapresentarem como evidentes uma condi-o daquilo que Bourdieu (1983) chamaria de uma ilusio do campo cientfico , repousam sobre um conjunto de con-dies que permitem sua materialidade, em um ponto no qual o poltico e o cientfico parecem convergir. A consti-tuio dos discursos disciplinares, recorda Foucault (2004), parece depender pouco da capacidade propriamente expli-cativa dos conhecimentos, dirigindo-se mais, talvez, para as condies a partir das quais essa capacidade explicativa atribuda aos conceitos. A disciplinarizao dos saberes acompanhada de uma clivagem de relaes de poder refe-rentes ao alcance especfico de um ou outro tipo de saber, bem como de sua legitimao e validade.

    Esses conhecimentos, por sua vez, orientam uma deter-minada viso da realidade por eles filtrada: o visto episte-mologicamente construdo para ser visto dessa maneira e

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    no de outra. No entanto, como esse movimento propria-mente epistemolgico no sempre colocado em questo, os discursos cientficos tendem a ser percebidos como na-turais. A isso possvel somar as condies de autorreivin-dicao de prestgio formuladas pelo campo cientfico, ob-jetivado, por exemplo, na forma do status social manifesto em remuneraes, prmios e mesmo nas representaes miditicas.

    Se conceitos so espaos de disputa de sentidos, afir-mao A significa B o pensamento compreensivo enderea a pergunta Por que e desde quando A significa B?, percor-rendo as trilhas existentes na construo do conhecimento cientfico. O reconhecimento da possibilidade de validade de outras teorias, conceitos, objetos e mtodos dentro de uma rea do saber uma perspectiva do pensamento compreen-sivo. O jogo epistemolgico de luzes e sombras tecido a partir da observao panormica da complexa pluralidade das teorias que, cada uma com seus potenciais e limites, po-dem explicar a realidade.

    A unidade do mundo no pode ser deixada de lado pelo recorte dos saberes. Certamente importantes para tornar possvel o estudo da realidade, esses recortes, que acabam por se constituir em disciplinas autnomas e muitas vezes enclausuradas de tal modo em suas concepes que se re-cusam ao dilogo, deixam de lado o fato de que totalidade inapreensvel da natureza soma-se a totalidade inapreens-vel do ser humano. Nessa interseco, uma teoria tem espa-o de explicao limitado importante, mas limitado.

    A compreenso como mtodo entende que a vida inte-lectual pode ser separada das outras instncias do ser, e o esprito da compreenso procura questionar e autoquestio-

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    nar essa separao. O trabalho epistemolgico, se possvel uma apropriao oblqua de Bachelard, comporta uma po-tica ou uma esttica. E mesmo uma dimenso atrelada ao prazer, destacada por Aristteles em sua Metafsica e ressal-tada por Montaigne (1987, I, p. 225), quando ele considera estranho que, em seu tempo, a filosofia no seja, at para gente inteligente, mais do que um nome vo e fantstico, sem utilidade nem valor, na teoria quanto na prtica. Mon-taigne acredita que isso se deve aos raciocnios capciosos e embrulhados que lhe atopetaram o caminho. Faz-se muito mal em a pintar inacessvel aos jovens e em lhe emprestar uma fisionomia severa, carrancuda e temvel. Quem lhe ps tal mscara falsa, lvida, hedionda? Pois no h nada mais alegre, mais vivo e diria quase mais divertido.

    A vida afetiva no deixa de encontrar espao mesmo no momento agudo do trabalho epistemolgico com os con-ceitos. As teorias, os mtodos, os fazeres intelectuais mais tpicos do chamado campo acadmico no deixam de en-cerrar, em si, elementos do afeto. Todos temos autores, con-ceitos, teorias e objetos com os quais nos identificamos, que se tornam operadores epistemolgicos para a composio de uma viso de mundo.

    Evidentemente, os dispositivos do discurso acadmico no permitem a formulao direta desses vnculos afetivos. Ningum inicia uma conversa com a pessoa ao lado pergun-tando Qual sua teoria favorita?. No entanto, muitas vezes, o calor das discusses na cincia permite entrever que ao lado dos argumentos formados no logos existe um substrato do pathos, do afeto, mas do afeto-pela-teoria, o amor pela verdade ou, em outro registro, da amizade (philos) pela sabedoria (sophia).

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    Como lembra Hugo de So Vitor (2007, p. 53), escre-vendo no sculo 12, bonito que ele [Pitgoras] chame os pesquisadores da verdade no de sbios, mas de amantes da sabedoria, pois a verdade total est to escondida, que, por mais que a mente arda do seu amor, por mais que se empe-nhe em sua inquirio, difcil chegar a entender a verdade como ela realmente .

    Assim como a compreenso, em termos cognitivos, im-plica o reconhecimento da validade da alteridade das narra-tivas de conhecimento do outro, a compreenso como m-todo leva em considerao a epistemologia como espao da alteridade com o qual se dialoga. A abertura epistemolgica reside, entre outros fatores, em se pensar que outras teorias, conceitos e mtodos podem ser e so igualmente im-portantes para a construo de uma imagem do mundo. E reconhecer que, diante da complexa unidade da realidade, conceitos podem dialogar afinal, esto falando de recortes diferentes de um mesmo mundo.

    Como recorda Jenkins (2007), a diviso da realidade entre saberes apenas humana. Diante da mesma paisagem, o economista ver problemas econmicos, o socilogo pen-sar em questes sociais e o gegrafo no deixar de prestar a ateno, digamos, no relevo. O rigor da epistemologia no pode esperar o mesmo rigor da realidade; um rigor que se desafia continuamente em suas capacidades de explicao. em outro nvel que o pensamento compreensivo opera, observando que os discursos tericos s podem ser enten-didos em suas articulaes tensionais.

    O dilogo entre saberes implica o reconhecimento com-preensivo da alteridade epistemolgica. entender que, na disputa de significados nos espaos disciplinares cientficos,

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    a compreenso est em entender, nesse outro, um interlocu-tor a partir do qual outras instncias da realidade podem ser sonhadas vistas, talvez at explicadas.

    E no deixa de ser possvel destacar aspectos da episte-mologia da complexidade, proposta por Morin (2005) na passagem do sculo 20 para o 21, retomando Hugo de So Vitor (2007, p. 155), escrevendo oitocentos anos antes, ao apontar trs aberturas para o saber: 1) No reputar de pou-co valor nenhuma cincia e nenhum escrito; 2) No ter ver-gonha de aprender de qualquer um; e 3) No desprezar os outros depois de ter alcanado o saber.

    O item 3 implica uma dimenso tica no saber: con-trolar o poder de desprezar os outros, de criar assimetrias derivadas do saber atribudo ao poder ecos distantes em Wittgenstein (1997, p. 74): A medida do gnio o carter.

    compreender o outro em si mesmoUma terceira dimenso da compreenso diz respeito

    ao sentimento humano evocado pela palavra em suas res-sonncias contemporneas. Compreender, em seu sentido de uma razo prtica voltada para o outro, define uma tica ao menos alguma tica das relaes.

    A alteridade demarcada pela diferena, e a diferen-a muitas vezes espanta. O diferente, o estrangeiro, visto em numerosos agrupamentos humanos como uma amea-a direta. Ele o outro, o que no pertence, o diferente, e essa sua diferena pode ser discursivamente trabalha-da em termos mais ou menos visveis narrar o outro classificar o outro e a si mesmo nessa relao. Apenas em um passado relativamente recente, com Locke e Voltaire, se comeou a falar em tolerncia, isto , no exerccio de

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    suportar a alteridade apesar dela; mais recentemente ainda se passou a falar de um entendimento, com Kant, Weber e Habermas. E apenas desde o final do sculo 20 se come-ou com maior nfase a se falar no passo seguinte, que o de entender o outro um passo, como se aponta, no isento de contradies.

    A compreenso da alteridade, desse nosso semelhan-te dissemelhante, segundo Octvio Paz, procura ir alm dos movimentos iniciais e necessrios da tolerncia e do entendimento. Compreender o outro no um processo delimitado no espao ou no tempo, mas uma ao cons-tante, imensa, no entretecer contnuo de um espao em que o sujeito reconhece a si mesmo como incompleto e, nessa incompletude, encontra na alteridade pistas para entender o relacional. Se, nos itens anteriores, o pensamento com-preensivo recusa-se ao fechamento diante do conhecimen-to comum e da epistemologia, aqui esses dois elementos se tornam uma chave para o reconhecimento do outro: eu, tu, ela, ele somos ns.

    Com um ns, as alteridades tecem a reflexividade da diferena. Compreender o outro, nesse sentido, tentar ver nele a mesma complexidade que reivindicamos para ns, e suportar a mesma falta de lgica, de coerncia e de sentido da qual damos mostra. No deixa de ser paradoxal: no co-tidiano, muitas vezes exige-se da alteridade uma coerncia linear que o eu incapaz de oferecer o outro deve ser ra-cional, coerente, claro, linear e bem resolvido; o eu pode ser fragmentrio, afetivo, passional, no linear.

    Essa assimetria da relao entre um eu que tudo pode e um outro que tudo deve questionada pelo pensamen-to compreensivo. No nessa assimetria, mas nos predicados

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    dos quais ela deriva: o eu no pode tudo quando deve fa-zer algo; o outro no deve tudo se pensado como algum igual ao eu em seus paradoxos e contradies. Na afirma-o de Jung (1987, p. 5), a natureza humana no consti-tuda apenas de pura luz, mas tambm de muita sombra.

    Isso no significa que o pensamento compreensivo seja um exerccio de lenincia. Ao contrrio. Como lembra Morin (2005, p. 121), compreender no significa justificar. Para o fi-lsofo, a compreenso no acusa nem desculpa. Favorece o juzo intelectual, mas no impede a condenao moral. No leva impossibilidade de julgar, mas necessidade de com-plexificar nosso julgamento. possvel compreender as razes daquele que comete um crime e ponder-las sem justificar a ao cometida ou deixar de submet-la ao escrutnio das leis.

    O que diferente de emitir um julgamento condenatrio sacralizado pela palavra, como recorda Agamben (2009), destituindo o ser humano dessa condio para torn-lo ape-nas um algo, um isso, como recorda Buber, coisificado no bojo das relaes contemporneas. Pensar o outro, na perspectiva compreensiva, tentar igualmente pensar como o outro e a partir do outro. buscar entender suas concep-es de mundo, os discursos que alimentam suas prticas, as maneiras que ele tem de se inventar como trama. Isso significa, em alguma medida, pensar o outro.

    A alteridade, uma das categorias mais problemticas tan-to da Filosofia quanto das Cincias Humanas, um outro do qual possvel se aproximar sem necessariamente se inter-calar. No possvel habitar a alteridade, mas possvel ao menos tentar observar o mundo a partir dela. O mundo do outro, em sua oposio complementar ao meu, um ponto a partir do qual posso ver nuanas de meu ser eventualmente

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    invisveis de mim mesmo no cotidiano. Esse deslocamento de si mesmo , em sua energia, um deslocamento tambm das posies de um observador absoluto para ver-se a si mes-mo como um ponto de vista relativo, e, portanto, passvel de ser informado pelas outras observaes da alteridade.

    Da que o exerccio de aproximao da alteridade no deixa de ser, nessa perspectiva, igualmente um afastamento de mim, uma possibilidade de questionamento dos pontos de observa-o da realidade a partir da qual me constituo. Como recorda Jung (1999, p. 18), as pessoas, quando educadas para enxerga-rem o lado sombrio de sua prpria natureza, aprendem ao mes-mo tempo a compreender e amar seus semelhantes; pelo menos assim se espera. A conscincia da prpria sombra pode levar compreenso da alteridade: diante da prpria sombra, o direito auto-outorgado de julgamento da alteridade se torna mais fluido.

    Esse movimento, evidentemente, demanda a abertura para o outro. O enclausuramento de si mesmo geralmen-te est ligado ao fechamento no s para, mas tambm da alteridade dentro das categorias que construo para ela. Raramente me pergunto a partir de quais categorias ela a alteridade quer ser conhecida e, em um momento mais profundo, a partir de quais categorias eu sou conhe-cido por ela. Se a apropriao do outro por um eu um movimento quase natural, com todas as aspas, do coti-diano, e a partir de seu olhar o eu julga, ordena, classifi-ca, prescreve, no podemos esquecer que a compreenso do outro, no sentido pensado por Levinas (2012, p. 64), implica uma hermenutica do outro. O desejo do Ou-tro, afirma o autor, tambm uma oportunidade de um desvelar contnuo de mim mesmo, em dimenses desco-nhecidas que, mais do que na ontologia, se revelam na

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    relao um homem, por exemplo, s conhece a intensi-dade da experincia de ser pai no momento singular do encontro com seu filho.

    Reconhecer a essncia do outro em sua dimenso como fenmeno um desafio de aproximao, no sentido de Levi-nas, para tornar ntidos os contornos dessa alteridade dentro da abertura que se recusa a um olhar prvio de captura do ou-tro e de si mesmo no outro. O jogo constante de aproximao e distanciamento entre alteridades um dos elementos funda-mentais para se pensar o mtodo da compreenso: no posso nem devo habitar o outro, mas posso me aproximar de seu es-pao e compreender algumas de suas prticas e discursos.

    Entender o outro como um tu, recorda Buber (2004), valoriz-lo no mesmo patamar em que se espera a valorizao. Em tempos de amizades fugidias pontuadas na velocidade das mdias digitais, importante pensar em que medida, na intera-o via telas, possvel uma compreenso da alteridade.

    considerAes finAisA compreenso como mtodo est ligada a uma postura

    de abertura em ao menos trs instncias: primeiro, como uma abertura aos modos de ser e conhecer da alteridade, sedimen-tados nas experincias do cotidiano; segundo, como uma aber-tura epistemolgica a outros saberes, propondo o dilogo entre cincias e singulares; e, terceiro, como abertura para o outro pensado de forma relacional e dialgica em um movimento reflexivo de apropriao mtua. Certamente existem inme-ras outras dimenses relacionais e questionadoras, mas, para os limites deste texto, essas trs podem ser um incio. No o incio: um pensamento compreensivo talvez busque mais arti-gos indefinidos, na representao desconstrutiva do questio-

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    namento sobre o Ser feito por Heidegger (1969) que, mais do que respostas, procura a construo das perguntas.

    E, sem dvida, o autoquestionamento constante como fuga cristalizao dos saberes e das prticas, na busca por uma compreenso da alteridade que talvez no se realize, mas se torna mtodo cotidiano cognitivo, epistemolgico, tico no prprio ato de procurar.

    Referncias AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem. Belo Hori-zonte: Ed. UFMG, 2009.

    BACHELARD, Gaston. A formao do esprito cientfico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

    BOURDIEU, Pierre. Questes de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

    BUBER, Martin. Eu e tu. So Paulo: Centauro, 2004.

    FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Fo-rense, 2004.

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    HEIDEGGER, Martin. Seminrios de Zollikon. Petrpolis: Vo-zes, 2009.

    HEIDEGGER, Martin. Sobre o problema do Ser. So Paulo: Duas Cidades, 1969.

  • 36

    JENKINS, Keith. Rethinking History. Londres: Routledge, 2007.

    JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrpolis: Vozes, 1987.

    JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. Petrpolis: Vozes, 1999.

    KANT, Immanuel. A paz perptua e outras obras. Lisboa: Edies 70, 1999.

    LEVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrpo-lis: Vozes, 2012.

    MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. Livro I. Braslia: Editora UnB, 1987.

    MORIN, Edgar. O mtodo 6: tica. Porto Alegre: Sulina, 2005.

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    SO VITOR, Hugo de. Didasclicon. Petrpolis: Vozes, 2007.

    WITTGENSTEIN, Ludwig. Cultura e valor. Lisboa: Ed. 70, 1997.

    WOLTON, Dominique. Informar no comunicar. Porto Ale-gre: Sulina, 2011.

    ________________________________

    Lus Mauro S Martino doutor em Cincias Sociais pela PUC-SP. Nascido em 1977, foi pesquisador-bolsista da Universidade de East Anglia, no Reino Unido, e autor dos livros Teoria das mdias digitais (Vozes, 2014), Teoria da comunicao (Vozes, 2009), Comu-nicao e identidade (Paulus, 2010), The mediatization of religion, publicado na Inglaterra em 2013, entre outros. professor do Pro-

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    grama de Ps-Graduao em Comunicao da Faculdade Csper Lbero, em que d aulas tambm para a graduao, e do Curso de Msica da Faculdade Cantareira. Suas pesquisas dirigem-se preferencialmente aos estudos de teorias da comunicao, comunicao e poltica e processos de mediatizao da religio.

  • O PENSAMENTO DA COMPREENSO

  • Compreenso da Astrologia: dilogos homem-cosmos intermediados pela mdiaAna Cristina Vidal de Castro Ortiz

    Em um tempo no muito distante, ramos todos co-nectados com o Cu. Nossos antepassados olhavam para as estrelas e, alm de conversarem com os deuses e deusas que ali habitavam, estabeleceram dilogos profundos com o cosmos. Este lhes oferecia respostas e apontava caminhos.

    ramos filhos do Cu (Morin, 2008), miniaturas desse cosmos que tambm estava dentro de ns. O homem, como microcosmo, refletia o macrocosmo. Ele ficava doente e se curava segundo os ritmos dessa conexo. Ele via o Cu re-fletido na Terra. Observando os ciclos celestes, sabia o des-tino da humanidade e sabia o seu prprio destino. At porque o Cu era sagrado e, por isso, um guia privilegiado para a humanidade.

    Por meio desses dilogos sempre indicativos da relao entre o Cu e a Terra, nossos antepassados comearam a observar esses ciclos com ateno cada vez maior. Aprende-ram a fazer clculos que permitiam saber quando um deter-minado evento celeste iria se repetir, fazendo previses cada vez mais precisas sobre eventos coletivos, especialmente re-lacionados aos reis e aos dirigentes, alm de outros assuntos

  • Ana Cristina Vidal de Castro Ortiz42

    que diziam respeito a toda a sociedade. Surge assim a Astro-logia. Por muito tempo, a Astrologia compreendia tambm a Astronomia, sem que houvesse uma distino clara entre os dois saberes.

    A rupturA de um dilogoA relao homem-cosmos tambm era pessoal. Cada

    observador tinha como traar seu prprio destino com base nos ciclos celestes. Sabia, por exemplo, que, quando deter-minado planeta, digamos, no estava bem, a pessoa podia desenvolver certas enfermidades que s eram curadas sob a proteo e influncia daquele mesmo astro. Sabia, ainda, que determinados eventos celestes indicavam nascimento ou morte de pessoas importantes. Como reis, por exemplo.

    Essa profunda relao entre o homem e os astros gerou civilizaes importantes, organizadas sob o modelo csmi-co, com ritos religiosos que garantiam a harmonia entre o homem e o mundo (Petrossian, 1972, p. 15). Ciclos do Sol e da Lua contavam ao homem quando plantar ou colher, quando caar e como organizar a prpria vida.

    Ainda hoje sabemos quanto esses ciclos influenciam a agricultura, as mars e diversos ciclos da natureza, includos os ciclos humanos, como a menstruao e a gestao. O ci-clo do Sol comanda as estaes do ano, que se ligam intima-mente ao percurso aparente do grande astro pelo zodaco. Esses ciclos foram os primeiros contadores do tempo.

    A partir do sculo XVII, a Astrologia separou-se ao mesmo tempo da cincia e da religio. Perdeu seu status e passou a ser vista de forma negativa. E, desde ento, vem buscando uma recolocao na sociedade. Um grande im-pulso para isso foi dado, desde o incio do sculo passado,

  • Compreenso da Astrologia 43

    com o surgimento da psicologia e, em especial, das teorias de Carl Gustav Jung. Nesse contexto, a Astrologia volta cena um tanto psicologizada, mais aplicada ao indivduo e ao autoconhecimento, mas sempre tentando encontrar um novo lugar e se firmar como um saber complexo.

    A figura do astrlogo sempre existiu. No entanto, mais recentemente, desde o retorno da Astrologia, o astrlogo desempenha um papel importante, j que o homem perdeu o hbito de olhar para o Cu. Para compreender o que o cosmos quer dizer, h necessidade de um profissional habi-litado a interpretar as estrelas. Um mediador.

    A Astrologia ainda no encontrou um lugar definitivo, e no so poucos os que a consideram um saber margem do conhecimento. Porm, apesar de termos nos tornados rfos do Cu (Morin, 2008), nunca deixamos de ser filhos dele. Por isso, tudo o que diz respeito ao cosmos toca nossa alma e nos reconecta, de alguma maneira, s nossas origens.

    Talvez por essa conexo entre homem e cosmos, que no fundo nunca deixou de existir, a Astrologia seja algo to presente na mdia. Ela est nos principais jornais, revistas e portais. Aparece especialmente em sua narrativa mais resu-mida, o horscopo, que, em sua verso autntica, conta em poucas palavras como est o cu num determinado perodo e como isso pode influenciar a vida humana. Em geral, o horscopo dividido em doze partes, que so os doze sig-nos, e oferece conselhos e informaes para a sociedade.

    Por mais que constitua uma forma bastante simpli-ficada e represente uma pequena parte de todo esse saber complexo que a Astrologia, o horscopo uma forma de relembrar que temos alguma relao com as estrelas e, de alguma maneira, estamos todos interconectados.

  • Ana Cristina Vidal de Castro Ortiz44

    Talvez por isso a Astrologia presente nesses veculos miditicos tenha tanta audincia e atraia tantos olhares, crticos ou tambm compreensivos, tanto de quem prefere acus-la como superficial quanto de quem opta por se apro-fundar e conhecer mais o assunto.

    AstrologiA nA internetNossos ancestrais se reuniam para conversar sobre o

    Cu e os seus ciclos. Esses encontros fortaleciam a certeza de que Cu e Terra, macro e microcosmos, eram reflexos um do outro. Com o tempo, como dissemos, esse dilogo se perdeu, mas tem sido recuperado, graas especialmente mdia. A mdia trouxe a Astrologia de volta pauta social, fazendo com que as pessoas pudessem conversar sobre o as-sunto. Mesmo aps o retorno da Astrologia como objeto de estudo, o pblico leigo continuou dependendo da existn-cia de um astrlogo. Este o ajudava a manter algum contato mais direto e forte com o tema e a se aprofundar nele, o que era algo nem sempre acessvel. Hoje, com todo esse conhe-cimento sobre Astrologia colocado disposio, ficou mais fcil entrar novamente em contato com os ritos celestes.

    Em sua forma de horscopo, a Astrologia surge no Bra-sil na dcada de 1950. Primeiro foram as revistas, que publi-cavam as previses astrolgicas mensais. Os jornais, por sua vez, trataram de populariz-la ainda mais, transformando em dirio o que at ento era mensal. O horscopo, tam-bm, sempre esteve presente no rdio e na televiso.

    Desde o seu surgimento, o horscopo foi uma forma de popularizar a Astrologia e resgatar esse dilogo humano com o Cu. A conversa, no entanto, desigual, porque um fala e o outro escuta. O astrlogo (ou quem escrevia o ho-

  • Compreenso da Astrologia 45

    rscopo, nem sempre um profissional habilitado) contava sobre o Cu, e as pessoas decidiam seguir ou no aqueles conselhos csmicos.

    A internet vem mudar essa relao. Ela traz dilogos muito mais ricos e relaes mais compreensivas entre as pessoas e a Astrologia. O primeiro avano ocorreu basica-mente com o surgimento dos sites pessoais dos astrlogos. Eles comearam a publicar contedo mais profundo e com-plexo, dirigido ao seu pblico. Com isso, a Astrologia pas-sou a ir alm do horscopo e a dialogar mais intensamente com os interessados.

    Mas a grande mudana ocorre realmente com o surgi-mento das redes sociais, que trouxeram novidades na forma de utilizar a internet, com repercusses nas relaes pes-soais. A comunicao ganhou velocidade. Mais contedo est sendo produzido e mais informao, disponibilizada.

    Desde o pioneiro Orkut foram criados grupos para falar sobre Astrologia e esclarecer dvidas dos interessados. Foi a primeira aproximao entre astrlogos e destes com o seu pblico, o que permitiu retomar as conversas sobre o tema, ainda que no mundo virtual. O processo se intensificou de forma surpreendente e ganhou novo formato com o Twitter e o Facebook.

    Os astrlogos comearam a utilizar as redes sociais para dialogar e divulgar o seu trabalho, aprofundando com o tempo as conversas sobre o tema. Eles compartilham cada vez mais o seu conhecimento, em forma de previses astro-lgicas dirias ou de contedos mais complexos e explica-es sobre temas astrolgicos diversos. H uma intensa tro-ca de informao entre profissionais e entre os astrlogos e o pblico leigo. media que esses dilogos se intensificam,

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    surge uma maior compreenso acerca do que a Astrologia, especialmente por meio da percepo de sua aplicao pr-tica na vida cotidiana.

    A relao direta entre astrlogos e seus leitores, permi-tida pelas redes sociais, trouxe o assunto para mais perto de suas vidas. A linguagem mais simples e ao mesmo tempo objetiva e profunda faz com que as pessoas se sintam mais vontade com o tema. At porque as redes sociais permi-tem uma participao que lembra de alguma forma a gora grega (Knsch, 2009). As redes sociais criam experincias, como rodas de conversa, que permitem uma troca constan-te e o crescimento de cada um dos envolvidos nesses dilo-gos de naturezas to diversas e com distintos graus de pro-fundidade.

    As redes sociais, com as relaes que criaram entre os di-versos produtores de contedo e os seus intercmbios, uma prova eloquente de que conversando a gente se entende. A gente se entende, inclusive, sobre assuntos que at ento pa-reciam ocultos, nebulosos, msticos ou hermticos demais, como a Astrologia. Graas s redes sociais, quem se interes-sa pelo assunto pode questionar diretamente um astrlogo e, com isso, ter maior acesso a determinado contedo.

    A interao entre astrlogos, inclusive de cidades, es-tados e pases diferentes, permite uma troca maior e mais qualidade nas informaes compartilhadas. Essa convivn-cia de maior proximidade entre pblico e astrlogo, por meio das redes sociais, tambm contribui para a humaniza-o desse profissional. At ento, ele era ainda comparado por muita gente a um guru, algum com uma vida diferente da vida das pessoas comuns e, at, detentor de poderes so-brenaturais.

  • Compreenso da Astrologia 47

    Antes da internet, a busca pela Astrologia se resumia quase que completamente leitura de horscopo em jornais e revistas e a eventuais consultas a um astrlogo. Hoje, com as redes sociais, a Astrologia faz parte do dia a dia de muita gente, que pde, assim, retomar o dilogo com o cosmos.

    AstrologiA nA televiso (e suA conversA com A internet) A Astrologia tambm est presente, h tempo, na tele-

    viso. Muitos programas abrem espao para esse saber. Em geral, contudo, diferente do que acontece na internet. A tev privilegia o horscopo ou certos assuntos, como previ-ses para celebridades e combinaes entre signos.

    Em 2012 e 2013 foi exibido pelo Canal GNT o progra-ma No Astral, apresentado pela astrloga Cludia Lisboa. Foram quatro temporadas, tendo a primeira sido sobre te-mas variados, a segunda sobre amor e relacionamentos, a terceira sobre vocao e carreira e a ltima com miniaulas de Astrologia. Nas quatro temporadas, o final de cada pro-grama inclua a previso astrolgica para aquela semana.

    Um outro exemplo o programa Mulheres, exibido h quase 30 anos na TV Gazeta, de So Paulo. Desde praticamente suas origens, a emissora mantm um qua-dro astrolgico, com a participao de um astrlogo que apresenta as previses da semana. Desde dezembro de 2013 eu sou a astrloga do programa e, semanalmente, em conversa com a apresentadora Ctia Fonseca, abor-do as previses astrolgicas da semana. O formato o mesmo dos horscopos. Primeiro conversamos rapida-mente sobre as previses gerais para aquela semana. Em seguida, a apresentadora pergunta como est o cu da semana? para cada um dos doze signos. Eventualmente,

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    questiona sobre reas especficas, como amor, trabalho e sade para cada um dos signos.

    O tempo de participao varia de 15 minutos a 30 mi-nutos, tendo j chegado a 40, sempre ao vivo e com interva-los para os merchandisings, que variam de um a trs, depen-dendo da semana. No existe, atualmente, outro programa na televiso aberta brasileira que disponibilize todo esse espao para a Astrologia. Porm, apesar de todo tempo dis-ponvel, a pauta limita-se ao horscopo, ou seja, a previses superficiais e genricas da semana para cada signo.

    Est a uma das principais diferenas entre a Astrolo-gia na televiso e na internet. Apesar de os dois veculos permitirem conversas com o pblico, a internet, especial-mente as redes sociais, possibilita o aprofundamento des-ses dilogos. No entanto, a televiso atrai muito pblico para as redes sociais. Um casamento perfeito permite a utilizao de ambos os canais como forma de divulgao e compartilhamento de informaes. O que se fala na te-leviso desperta curiosidade nas pessoas, e isso as leva a acessar a internet. E assim, nas redes sociais, abrem-se possibilidade de dialogar com astrlogos e especialistas para compreender melhor o assunto.

    A gAlxiA miditicA e As conversAs sobre o cosmosDesse modo, as redes sociais permitiram que o Cu se

    tornasse novamente centro de rodas de conversa, retoman-do o dilogo que os antigos tinham com o cosmos. Nesse contexto, Edgar Morin (2008, p. 37) nos lembra que habi-tamos neste universo que tambm uma histria de quem somos. Morin compreende que o cu-cosmo ressonncia de questes imemoriais.

  • Compreenso da Astrologia 49

    Aquele mundo encantado, cheio de alma e de deuses que habitavam o Cu, pode ser resgatado graas internet, que no deixa de ser uma galxia, refletindo tambm em seu formato esse cosmos sobre o qual estamos conversando.

    As redes sociais possuem uma espcie de aura mgica, a sensao de infinito e a possibilidade de incontveis conexes. Por isso tambm a internet conhecida como uma galxia.

    Talvez por ressonncia, as redes sociais sejam o campo mais apropriado para que a Astrologia seja compreendida em toda sua complexidade. E tambm para que possamos (re)lembrar que o universo, finito ou no, pode ser fon-te de inspirao para que ns, os filhos do cu, realize-mos infinitas conversas. Afinal, o universo verbo, e ns permanecemos no mundo, por mais longe que a viagem nos conduza para dentro e para fora dele (Morin e Cass, 2008, p.126).

    RefernciasCASTRO, Ana Cristina Vidal de. Astrologia nas redes sociais: uma nova forma de compartilhar o cu. Monografia de Lato Sen-su (Faculdade Csper Lbero). So Paulo, 2011.

    KNSCH, Dimas A. Os deuses voltam cena: ciberespao, razo e delrio. In: VRIOS AUTORES. Esfera pblica, redes e jorna-lismo. Rio de Janeiro: E-papers, 2009, p. 32-47.

    MORIN, Edgar e CASS, Michel. Filhos do Cu: entre vazio, luz e matria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

    MORIN, Edgar; et alli. O retorno dos astrlogos. Lisboa: Mo-raes, 1972.

  • Ana Cristina Vidal de Castro Ortiz50

    PETROSSIAN, Lena. Do nascimento ao renascimento da astro-logia. In: MORIN, Edgar; et alli. O retorno dos astrlogos. Lis-boa: Moraes, 1972, p. 15-27.

    ________________________________

    Ana Cristina Vidal de Castro Ortiz (Titi Vidal) astrloga e tera-peuta. Autora do CBA (Caderno Brasileiro de Astrologia) nmero 19, Amor e Astrologia: em busca de relacionamentos melhores, e coautora dos livros Comunicao em cena volumes 2, 4 e 5. Co-lunista de sites, revistas, jornais e televiso. Formada em Direito e especialista em Direito da Famlia e das Sucesses, j atuou como advogada. Ps-graduada em Jornalismo e mestranda em Comu-nicao pela Faculdade Csper Lbero. Seu objeto de estudo no Mestrado a relao entre a Astrologia e a mdia, especialmente sobre a presena das narrativas astrolgicas nos meios de comu-nicao. Autora do site www.titividal.com.br.

  • Oggjrjghhgu dilogo de Pinquio Carolina Chamizo Henrique Babo

    Dialogar, conversar, discutir, debater. Verbos difceis de ser conjugados em nossos tempos. Tempos de certo ou errado, bem ou mal, bonito ou feio, isto ou aquilo, sim ou no, razo ou emoo, ser ou no ser, eu ou voc, conscien-te ou inconsciente.

    Tempos em que os opostos se afastam, se repelem, se anulam, quando melhor seria se eles se aproximassem, mis-turassem, embaralhassem, complementassem, integrassem. A, ento, teramos tempos marcados por certo e errado, bem e mal, bonito e feio, isto e aquilo, sim e no, razo e emoo, ser e no ser, eu e voc, consciente e inconsciente...

    E como falar em relaes dialgicas sem lembrar de Martin Buber (2004), o filsofo do dilogo, o profeta da re-lao? Um pensador responsvel por compreender aquilo que de essencial acontece entre os seres humanos e entre estes e Deus. No princpio era a relao, j diria Buber. Por meio da relao, o outro se reconhece em mim e eu me reconheo no outro. Eis a a base mais profunda do dilogo. Do dilogo difcil de acontecer.

    Ora, mas se o dilogo com o outro j se mostra uma tarefa to complicada, como ser que lidamos com ele den-

  • Carolina Chamizo Henrique Babo52

    tro de ns mesmos? Como fazer com que o Eu consciente converse com o Tu inconsciente? Ou seria o contrrio? O Eu inconsciente se encontraria no Tu consciente?

    Pensarmos em nosso mundo consciente parece uma tarefa relativamente fcil. Trata-se de um lugar que conhe-cemos muito bem. o local em que habitamos quando pen-samos de maneira racional, quando o logos se manifesta, quando a civilizao se impe, com suas regras e normas. O reino do Ego.

    um mundo de possibilidAdesMas e o inconsciente, esse nosso outro lado? Essa parte

    esquecida, ou mesmo rejeitada, por ser no racional, por ser desconhecida e por conter contedos que preferimos es-conder? nela que, de acordo com Carl Gustav Jung (1996; 2012), habita a nossa sombra, essa faceta que no queremos que ningum conhea (e, quando falamos em ningum, in-clumos aqui, muitas vezes, a ns mesmos), j que represen-ta o nosso outro lado.

    Mas como poderia haver luz sem sua sombra respec-tiva, que a completasse? Como pensar numa luz que no projetasse tambm as sombras daquilo que ilumina?

    A sugesto de Jung clara: cabe enfrentar a nossa som-bra e integr-la. Jamais rejeit-la.

    Esse mundo tambm revela o lado mais inspirador da raa humana. Ah, o inconsciente e suas possibilidades! Seus sonhos, recados da alma. Suas histrias mgicas, os mitos e os contos de fada. Narrativas que a humanidade inventa e reinventa, conta e reconta, h tanto tempo. Lendas de deu-ses e deusas, prncipes e princesas, fadas e bruxas, drages e feitios que nascem e vivem dentro de ns. Temas que nos

  • O dilogo de Pinquio 53

    conectam com o resto do mundo, que fazem com que nos conheamos melhor, que nos ajudam a enfrentar perigos e desafios, que nos orientam em nossa jornada, essa aventura perigosa e encantadora que se chama vida.

    Para Jung, o inconsciente se divide em pessoal e cole-tivo. O inconsciente coletivo representa uma camada mais profunda, enraizada, que nos liga com toda a humanidade. Nele vivem estruturas semelhantes, os arqutipos. Imagens primordiais, disposies, energias, formas que se manifes-tam nos sonhos e narrativas e portam ensinamentos. Quem nunca ouviu uma voz cochichar em seu ouvido em uma situao de necessidade? Ah, sim! Era um arqutipo mos-trando sua fora.

    Integrar as duas parcelas de nossa psique o desafio dos desafios, fazendo com que elas conversem, dialoguem, se relacionem ( maneira de Buber). Que uma saiba ouvir a outra. Que uma se deixe guiar pela outra. Que uma se reco-nhea na outra.

    Aprendendo a ouvir nossa conscincia e nosso mundo inconsciente, realizamos aquilo que Jung chama de prin-cpio da individuao, o dilogo capaz de fazer com que o ser humano se perceba como pleno, que busque a plenitude.

    Essa no me parece uma tarefa fcil voc certamente argumentar.

    Mas quem disse que seria?

    sonhos e mitos Uma das maneiras como esse dilogo pode ser realizado

    acontece por meio dos sonhos. Para a psicologia analtica, os sonhos devem ser analisados e compreendidos em con-junto, de forma dinmica, complexa. Quando presta aten-

  • Carolina Chamizo Henrique Babo54

    o neles e nas mensagens que eles enviam ao consciente, o ser humano pode emergir para uma nova forma de entendi-mento, para um mundo realmente seu, um mundo de equi-lbrio possvel, em que ambas as partes so ouvidas. Quan-do o indivduo volta-se para apenas um dos lados (seja qual for), torna-se enfermo. Jung chama isso de unilateralidade.

    O prprio Jung costumava dizer que sonhos so como cartas. Aquelas que so desprezadas ou esquecidas seriam como mensagens no lidas. Haveria algo de muito impor-tante nelas. Um conselho, um alerta, um segredo, uma su-gesto. Entretanto, se forem evitadas, nunca saberemos de seu contedo. Imaginem, por um momento, se Harry Potter jamais tivesse aberto a carta de Hogwarts? Vocs no que-rem nem imaginar, no mesmo?

    Assim, o indivduo que tenta compreender seus sonhos, ler as suas cartas, realiza o primeiro passo em direo individuao, esse importante dilogo que podemos esta-belecer entre consciente e inconsciente, os dois mundos que habitamos diariamente. Os sonhos surgem como guias, po-derosas ferramentas desse processo de conhecimento.

    Os sonhos nascem do ncleo da psique, uma estrutura a que Jung deu o nome de Self, ou Si-mesmo. Essa talvez seja a parte, digamos, mais divina do homem, que vive em nosso corao, habita nossa alma e, ainda assim, abrange o mundo inteiro. Manifestado em nossos sonhos como um homem sbio ou uma mulher superior, um mentor ou uma deusa, um velho ou uma fada-madrinha, esse arqutipo essencial para o dilogo entre consciente e inconsciente. Ele dever conversar com o Ego e revelar a sua magia a um mundo que custa em acreditar nela. Mas que, quando se convence, se entrega, se integra.

  • O dilogo de Pinquio 55

    Outra maneira de realizar a conversa entre esses mun-dos que habitamos dentro de ns mesmos acontece por meio das histrias fantsticas que chamamos de mitos e contos de fada. Conhecer melhor essas narrativas universais no somente aquelas que dizem respeito nossa prpria cultura, mas tambm as histrias de outros povos e outras sociedades parece ser uma atividade fundamental para quem quiser conhecer a si prprio um pouco melhor. Isso porque elas tambm so sonhos. Claro que so. Mas no os meus ou os seus. Os meus e os seus. Os sonhos do mundo.

    Ao termos acesso a elas, ao (re)conhec-las, ao com-par-las, perceberemos que no so assim to diferentes. Pelo contrrio, so bastante parecidas, como indica o mi-tlogo Joseph Campbell (2010; 1990). Quem no se lembra de um heri que enfrenta diversos desafios? Que encontra um mentor para ajud-lo em sua jornada? Que morre e re-nasce transformado? Que salva a princesa adormecida (ou seria ela quem salvaria o heri)? Que vence uma terrvel e difcil batalha, retornando ao seu mundo transformado por essa experincia?

    Podemos pensar em antigos (ou novos) mitos, antigos (ou novos) contos de fada. Esse tema est l. Porque ele re-flete nossa prpria vida, nossa prpria jornada. Nascido do inconsciente coletivo, ele auxilia o consciente humano em suas dvidas e desafios. Ora, se o heri de determinada his-tria conseguiu, eu tambm conseguirei. Nem precisamos ser os primeiros, reflete Campbell (2010).

    Assim como os sonhos, essas narrativas ancestrais guiam o homem em sua caminhada. Assim como os sonhos, elas nos revelam segredos. At mesmo o segredo que buscamos neste texto, o do dilogo. Basta lembrarmos... de Pinquio.

  • Carolina Chamizo Henrique Babo56

    entre A fAdA e o grilo, o Self e o ego Peo licena a voc, leitor, para lhe narrar uma histria.

    Acredito que j a conhea ou tenha pelo menos ouvido fa-lar dela. Tomo a liberdade de recont-la e salientar a beleza que esse conto carrega, em uma das mais poticas metforas sobre o processo de individuao que o ser humano realiza.

    Ela comea assim... Era uma vez um homem muito soli-trio que desejava ter um filho. Para suprir essa necessidade de companhia, constri um boneco de madeira. Mas esse boneco no tinha vida e no se movimentava, caso o pr-prio homem no o fizesse. At que um dia, depois de muito desejar, uma fada o visita noite (ah, o mundo dos sonhos!) e concede vida ao boneco. Mas, apenas se fosse valente, sincero e generoso, o boneco poderia se transformar. S as-sim ele se tornaria um menino de verdade.

    Nessa jornada de descobertas e dificuldades em busca de sua humanidade, Pinquio, o menino de madeira, recebe a ajuda de um Grilo Falante, que se revela como sendo sua conscincia. Ele precisa dela para escapar de alguns peri-gos que se impem em seu caminho. Assim como necessita tambm da visita de sua Fada Azul, as razes de seu incons-ciente coletivo, para receber conselhos valiosos. Pinquio precisa do Ego e do Self. Claro que precisa.

    Durante esse processo, nosso pequeno heri ter que enfrentar ainda diversas provaes, bastante semelhantes quelas que encontramos em nossa vida diria, como re-sistir a outras facetas de sua prpria personalidade, vestir diversas mscaras e enfrentar a sua sombra, representada por um garoto conhecido por seu mau comportamento, Espoleta. Aquilo que o boneco no pode ser. Mas tam-bm aquilo que ele . Um mentiroso cujo nariz s faz

  • O dilogo de Pinquio 57

    crescer, uma criatura que no quer ter nenhuma obriga-o. O contrrio do que sua Fada e seu Grilo lhe sugeri-ram e o orientaram a fazer.

    Em meio a tantas provas, tentaes, lies e ensinamen-tos, Pinquio realiza, por fim, a jornada do heri, to co-nhecida pelas teorias de Campbell. Ao integrar consciente e inconsciente, entra sem medo no mais difcil de seus de-safios, atira-se ao desconhecido, representado aqui, literal-mente, pela barriga de uma enorme e perigosa baleia. Pin-quio morre boneco e renasce menino.

    Assim como todos ns em nossas vidas, quando sabemos realizar esse dilogo, quando conseguimos seguir o Grilo sem esquecer a Fada que nos visita em nossos sonhos e nos carre-ga para reinos encantados e sombrios, que nos aconselha por meio de suas mensagens e nos d, finalmente, a to sonhada plenitude humana. A plenitude, no a perfeio!

    J no somos mais de madeira, bonecos forjados de troncos de rvores, agora somos humanos. No entanto, ja-mais devemos nos esquecer de onde viemos. Assim como Pinquio, no teramos tambm nascido das rvores? No teramos uma incrvel semelhana com elas, com suas co-pas, troncos e razes? Esses seres habitam nossas histrias, nossas fantasias, nossas vidas. Aprendamos um pouco, en-to, com elas.

    dAs rvores viemos, s rvores voltAremos Para mergulhar ainda mais profundamente nesse di-

    logo entre consciente e inconsciente, talvez possamos tecer outra metfora, inspirada pelo conto que acabamos de ob-servar. Imaginemos que todos viemos da mesma substncia de Pinquio. Todos j fomos (ou somos) rvores.

  • Carolina Chamizo Henrique Babo58

    Escolho essa imagem, no apenas em decorrncia da jornada do menino de madeira, mas tambm devido im-portncia que ela exerce em diversas culturas, com o sm-bolo da vida em eterno ciclo de destruio e regenerao. Os celtas, por exemplo, acreditavam que todo homem e toda mulher carregavam dentro de si uma rvore, respon-svel por seu desenvolvimento pessoal e por sua ligao com o cosmos.

    J os nrdicos reconheciam em Yggdrasil o eixo do mundo. Localizada no centro do universo, ela interligava os nove espaos de sua cosmologia. Foi tambm debaixo de uma rvore que Buda alcanou a iluminao. Por meio de um de seus frutos, o da rvore do conhecimento do bem e do mal, Ado e Eva foram expulsos do Paraso.

    Podemos permanecer nesse exerccio de mitologia comparada e buscar outras importantes representaes, mas voltemos nossa metfora. Quando o homem se tra-duz em rvore, a conscincia poderia ser revelada como a copa com seus frutos e suas flores, que devem ser colhidos. Uma copa que carrega os princpios racionais, sociais, civi-lizatrios da humanidade. Uma copa frondosa, que deseja alcanar o cu. Uma copa formada pelo Logos, pelo Ego. Uma copa onde repousam pequenos grilos falantes, que se confundem com suas folhas verdes.

    Nosso corpo, receptculo da alma, seria o tronco que a sustenta. Um tronco slido, firme, com algumas ranhuras e cicatrizes prprias do tempo que o atinge. Mas tambm um tronco alimentado pelas razes que vivem em contato com o solo, com a terra, nossa me original.

    As razes funcionam, dessa forma, como nosso mundo inconsciente. Aquelas mais fceis de ser vistas ou arranca-

  • O dilogo de Pinquio 59

    das corresponderiam s nossas memrias, ao inconsciente pessoal, parcela marcada por experincias prprias, carac-tersticas de cada um de ns.

    Entretanto, se cavarmos mais profundamente, encon-traremos o outro alimento desse tronco. Razes que se pren-dem com tanta fora terra, que se conectam com as razes de outras rvores. Estas podem simbolizar o nosso incons-ciente coletivo, a nossa Fada Azul, a parcela da psique que se interliga com toda a humanidade. A parte que nos une, que nos faz iguais. As mesmas histrias, os mesmos heris, as mesmas jornadas, as mesmas experincias, o mesmo incio e o mesmo fim.

    E o dilogo? Ora, as razes devem alimentar esse tronco e essa copa,

    que tambm alimenta o tronco e as razes. A Fada Azul pre-cisa do Grilo Falante, assim como ele necessita da Fada. O inconsciente envia suas mensagens para o consciente, que responde ao inconsciente. O Self comunica ao Ego, que in-terage com o Self. A Fada Madrinha ajuda a princesa a en-contrar o prncipe (que , em essncia, uma de suas prprias facetas). O Velho Sbio auxilia o heri a enfrentar o drago (talvez a sombra do prprio heri). Um sonho nos revela uma importante mensagem. E ns saberemos ouvir, humil-demente e desprovidos de preconceitos, a sua solicitao.

    Dialogar no simples. Mas um dos exerccios mais desafiadores, necessrios e encantadores que temos pela frente. Se no o fizermos, seremos apenas troncos ocos, troncos vazios. Troncos que jamais sero humanos.

    A Fada e o Grilo, as razes e a copa, o inconsciente e o consciente existem em todos ns. Nos preenchem com sua mgica. Nos tornam reais.

  • Carolina Chamizo Henrique Babo60

    O conto nasce das razes e encontra sua expresso nas palavras, divinas, buberianas, ouvidas pela copa e envia-das diretamente s razes novamente. O lugar em que a mgica acontece. E em que somos iguais. Antes bonecos. Agora menino(a)s. Plenos. Integrados. Unidos com todos os outros troncos, com todas as outras copas, com todas as outras almas.

    E tambm com o mundo inteiro.

    Referncias BUBER, Martin. Eu e tu. So Paulo: Centauro, 2004.

    CAMPBELL, Joseph. O heri de mil faces. So Paulo: Cultrix/Pensamento, 2010.

    CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. So Paulo: Palas Athena, 1990.

    JUNG, Carl Gustav. O homem e seus smbolos. So Paulo: Nova Fronteira, 1996.

    JUNG, Carl Gustav. Os arqutipos e o inconsciente coletivo. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.

    ________________________________

    Carolina Chamizo Henrique Babo formada em Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em Teorias e Prticas da Comunicao na Faculdade Csper Lbero. Atualmente, cursa Mestrado em Comunicao, tambm pela Cs-per Lbero, onde investiga a retomada e a reinveno dos contos de fada pela mdia. Nessa pesquisa, a autora tenta compreender

  • O dilogo de Pinquio 61

    os motivos dessa retomada e os modos como se processa essa reinveno, estudando os contos de fada em sua forma mais ancestral e comparando-os s novas histrias oferecidas pela mdia, desde o incio deste sculo, por meio de filmes, animaes e seriados televisivos.

  • Andana mgica em outra Histria: uma conversa sobre a narrativa do mitoCremilda MedinaDimas A. Knsch

    O mytho o nada que tudo.Fernando Pessoa

    Quando se fala das andanas e das histrias cotidianas dos peregrinos, no se deve omitir o voo transcendente da linguagem mtica. Para alm do duro cho do asfalto, das viagens areas, do circuito fechado do shopping center, das redes planetrias das infovias, a inteligncia humana trans-gride os limites do presente e do espao contguo e navega na memria e na imaginao. Os dirios de bordo do conta de fatos e emoes da transcendncia desses fatos e emo-es nascem metforas poticas que alimentam a escrita mtica. sobre essa andana mgica que vamos dialogar e, por certo, triangular com voc, estimado leitor.

    Nos cursos de graduao e de ps-graduao, em semi-nrios e encontros interdisciplinares vem tona, a par de noes cientficas, a recorrente interpretao da linguagem mtica, segundo a compreenso que os mitlogos do sculo 20 nos oferecem. O senso comum repete exausto o signi-

  • Cremilda Medina e Dimas A. Knsch64

    ficado manipulatrio e deformante de mito: mitificao da realidade se confunde com mistificao dos fatos. Um sim-ples s faz a diferena. Assim como a noo de produo sim-blica a realidade dita concreta ou objetiva se transforma, em qualquer narrativa, em realidade simblica , a noo da dinmica mtica tambm passa ao largo dos discursos opinativos e de grande parte dos discursos conceituais.

    O mito, como conscincia do absoluto, concentra sua energia na narrativa mtica, segundo Cassirer. Narrativa essa que se constitui coletivamente. Por isso mesmo, Bergson atri-bui funo do mito a virtualidade de se contrapor fora antissocial e individualizadora. Na compreenso dos mitlo-gos, a criao de smbolos se expressa numa linguagem pro-dutiva, no reprodutiva no nvel mtico, traduz emoes; no nvel metafsico, sistematiza a relao com o mundo; no nvel pragmtico, intervm na coeso sociocultural.

    A linguagem mtica no se manifesta de forma esttica, pois, na interpretao de Mircea Eliade, representa um pro-cesso em que se d o conflito entre foras criativas que ree-laboram a cosmologia de determinada cultura, reinaugu-ram o mundo num ato de liberdade. Martn Sagrera analisa a dialtica do mito: quando essa fora criativa e identitria capturada pelo poder (em qualquer instncia que ele se es-truture), a linguagem libertria, transcendente, se volta para a mistificao a servio de foras repressivas. O mito desli-za para o dogma. Na comunicao social, na publicidade, no marketing poltico, so frequentes as situaes em que a linguagem mtica se transmuta em linguagem coercitiva, persuasiva, autoritria.

    Um povo se afirma historicamente pelo espao sagrado que cria nas narrativas mticas. So as imagens desse espa-

  • Andana mgica em outra Histria 65

    o simblico que imprimem a identidade cultural. Esta, por sua vez, promove a unidade e a memria de um centro de mundo que lhe d significados. Mircea Eliade prope que a nica maneira de tornar vlida a tomada de posse de um territrio se realiza na formulao de uma cosmogonia. Nenhuma modernizao histrica apaga radicalmente os mitos ancestrais. Martn Sagrera refere-se contnua atuali-zao dos ncleos mticos pela Histria. A linguagem po-tica da arte e da religiosidade atesta esse processo criativo, permanentemente apropriado pela manipulao ideolgi-ca. O ciclo de mito a dogma nunca se esgota. Os mitlogos preservam a arte como celeiro da atualizao mtica. Com-preender o domnio sagrado de uma cultura , portanto, mergulhar na arte de um povo, no gesto solidrio do artista.

    No ambiente acadmico, impregnado pela razo cien-tfica, essa compreenso oferece ricas oportunidades para desmontar preconceitos enraizados sobre a mitificao. E as discusses de grupo em aula ou auditrios se mostram muito receptivas ao tema que, afinal, caracteriza a vocao humana para a transcendncia do real imediato, para as an-danas mgicas no universo dos smbolos.

    Um desses momentos pedaggicos, agora publicado, nasceu de um dilogo gravado na Escola de Comunicaes e Artes (ECA) da Universidade de So Paulo entre uma jor-nalista e professora titular da USP e um filsofo, professor da Faculdade Csper Lbero, poca (2001) doutorando, hoje coordenador da ps-graduao da primeira faculdade de jornalismo do Brasil. Ao desenvolverem a troca de ideias, ambos prepararam este contedo para apresentar em um seminrio interdisciplinar sobre arte, comunicao e mito que, curiosamente, foi sediado na Faculdade de Economia

  • Cremilda Medina e Dimas A. Knsch66

    e Administrao da Universidade de So Paulo, lugar por excelncia dos estudos sobre a materialidade das relaes sociais. O texto, indito, tem sido lido e comentado por es-tudantes universitrios, e os autores o revisaram para a pre-sente publicao.

    Cremilda Medina: muito oportuno dialogar com Dimas Knsch. Mito e razo um tema que ele, como filsofo e como doutor em Comunicao Social, desenvolve com propriedade e rigor na sua oficina conceitual. No meu caso, no h como negar que a linguagem mtica comparece seguidamente pesquisa de Comunicao Social, bem como metodologia interdisciplinar que caracteriza o Projeto Plural e a Crise de Paradigmas, implantado na ECA em 1990 e hoje com onze livros publicados, em que cientistas, criadores das diferentes expresses artsticas e telogos partilham suas vises de mundo em seminrios e ensaios. H tempo, ns no lidamos com a dicotomia mito e razo. Mito e razo so esferas da expresso humana e das linguagens humanas que se completam, e no que entram em conflito uma com a outra.

    A respeito da razo se faz seguidamente a seguinte con-fuso: o mito nasceria da esfera da irracionalidade, enquan-to a razo constituiria a grande aspirao humana de poder regular todos os instintos agressivos do ser humano. No entanto, preferimos compreender que racionalidade e irra-cionalidade so duas faces da mesma moeda. Quer dizer, ou se usa a razo complexa ou no se usa, e isto o que gera comportamentos irracionais, preconceitos e explicaes re-ducionistas. Agora, o mito vem de outra esfera humana, e essa expresso no , de forma alguma, irracional. Gostaria

  • Andana mgica em outra Histria 67

    que voc expusesse sua concepo, j que voc tambm no se vale dessa dicotomia.

    Dimas A. Knsch: bem interessante isso que voc diz: h tempo j no trabalhamos com a dicotomia mito e razo. Essa dicotomia, no entanto, se enraizou nas mentali-dades e continua sendo cultivada, na academia e fora dela, com muita naturalidade. O tema mito e razo, por exemplo, um dos mais tradicionais de qualquer livro de Histria da Filosofia, e a coisa sempre apresentada como se a filosofia ou o pensamento de tipo conceitual, racional, tivesse nasci-do, no mundo grego, de uma briga de foice, faca e machado contra o mito, o que no verdade. Trata-se, claro, de uma viso muito ingnua, simplificadora, reducionista da hist-ria do pensamento.

    Essa dicotomia, no entanto, possui uma origem mais ou menos palpvel no tempo. Ela resulta de um modelo de pen-samento que vem, em grande medida, do Iluminismo e de todo o movimento positivista dos sculos 17, 18 e, com fora total, 19, atravessando depois o sculo 20 e alcanando, com bastante sade e fora, a despeito de toda a crise pela qual passa, os nossos dias. Criou-se uma ruptura absurda entre essas duas linguagens, essas diferentes narrativas, esses dois modos de expresso, mais que ordinrios, da espcie hu-mana, ao lado e junto com outras narrativas possveis. Uma segunda coisa importante a ser dita que, dialogando como estamos fazendo neste momento sobre o mito, no estamos conversando exclusivamente sobre um tema recorrente em livros de histria da filosofia e, mais apropriadamente, nas obras dos grandes estudiosos do mito, e pronto. Estamos, sim, trazendo para a roda de conversa algo muito real e con-

  • Cremilda Medina e Dimas A. Knsch68

    creto, que possui a cara e as cores do mundo em que a gente vive, dos fatos que estamos vivenciando. Expresso vigorosa e ancestral de como o ser humano busca compreender e se arranjar com o mundo e a prpria vida, o mito no morre nunca, para desespero daqueles que imaginam que a narra-tiva cientfica a nica detentora da condio da verdade.

    Cremilda: Nesse sentido, eu gosto muito de certa com-preenso que diz que o mito representa a transcendncia da Histria. A linguagem da transcendncia traz consigo uma energia comunicativa, o que se constata na arte e nas religies. Por isso gosto muito, Dimas, da noo de que o mito representa o desejo coletivo de outra Histria e que, portanto, a transcendncia da Histria. Ora, em qualquer momento em que vivemos, estamos s voltas com uma in-satisfao, s vezes at uma revolta profunda, como a que nos invadiu na tragdia de 11 de setembro de 2001. A trans-cendncia de situaes que nos deixam impotentes perante a realidade imediata proporcionada pela potica do mito, inspirao que, ao contrrio de ser irracional, potencializa a racionalidade operacional. Dessa energia, surgem decises histricas que representam o desejo de superao.

    Dimas: O erro est naquilo que voc, Cremilda, citan-do Martn Sagrera, lembra muitas vezes: a dogmatizao do mito, a apropriao das linguagens, dos smbolos mticos, pelo poder. No entanto, dizer que o mito pode e costuma com frequncia ser apropriado pelo poder no nem de longe dizer tudo sobre o mito. Alis, muito fcil dividir e classificar as coisas como pertencendo, umas, ao universo da razo e, outras o mito includo , ao universo da irra-

  • Andana mgica em outra Histria 69

    cionalidade. bom que se diga que a irracionalidade, no sentido negativo do termo, pode estar presente em qualquer tipo de narrativa ou ao humana dela derivada, em qual-quer tipo de esforo humano, o racional, cientfico e tecno-lgico inclusive. Infelizmente, como resultado de uma viso no complexa do mundo e do ser humano, costuma-se con-siderar que o elemento da irracionalidade, entendida como algo ruim, intrnseco natureza do mito, da religio, das paixes humanas. Dificilmente se considera, por exemplo, que tambm a cincia pode tantas vezes ser irracional.

    Vivemos neste momento (setembro de 2001) sob o im-pacto feroz de um ato terrorista que ceifou a vida de tanta gente nos Estados Unidos, e a emoo forte. O irracional parece se mostrar ali com todo o seu peso, espanto e horror. Mas, ainda que em momentos como este o convite a pensar e a refletir direito sobre os acontecimentos possa parecer a muitos uma espcie de covardia, aconselhvel, mesmo as-sim, nunca esquecer que ao longo de sua histria a prpria cincia no tem as mos muito limpas de sangue. A tecnolo-gia, como menina dos olhos da cincia, idem. Essa afirma-o no representa, em absoluto, uma atitude de desprezo cincia e ao melhor de toda tecnologia. Foi a falsa racionali-dade, ensina Morin, que relegou o mito ao territrio da pura irracionalidade.

    Outro, e muito digno tanto quanto complexo, o uni-verso amplo, colorido e diverso da no-racionalidade. Nele cabe o mito, to prximo sempre s expresses artsticas e religiosas da humanidade. Nele cabe o melhor dos nossos sentimentos, a esperana, a utopia, tanto quanto pode caber tambm o irracional, no sentido negativo como o estamos entendendo aqui. A irracionalidade, de novo, pode fazer

  • Cremilda Medina e Dimas A. Knsch70

    parte de qualquer um desses domnios, tanto do racional quanto do no-racional. Trata-se, no fundo, de uma das facetas mais intrigantes da velha e boa briga entre caos e cosmo, briga essa eterna e absolutamente humana. Um pro-blema srio surge quando algum, do alto de uma posio de poder, arrogncia e desprezo, se arvora no direito de se afirmar como filho dileto e defensor do cosmo, e o outro, um grupo social, um povo, um modo de pensar o mundo, uma religio ou uma cultura inteira so identificados como caos. A, vira o velho dualismo dos bons contra os maus, dos escolhidos para a salvao eterna contra os renegados, dos civilizados contra os primitivos... O fim dessa postura histrica e cultural sempre a violncia, a guerra, a morte. Pode virar, sim, fanatismo religioso. Pode virar uma ideolo-gia abominvel, no interessa se sob a batuta da religio, do mito, da filosofia, da cincia, da tecnologia. Tanto faz.

    Cremilda: Exatamente. Voc falou da dogmatizao do desejo humano, e eu vejo hoje um smbolo muito forte disso a, quando a operao blica, ou, enfim, a operao de guerra promovida pelos Estados Unidos neste momento assume a bandeira da chamada justia infinita. um exem-plo radical e, at certo ponto, trgico de como se dogmatiza o mito. Ainda que a gente reconhea que alguma coisa tem que ser feita diante dessa trgica situao de terrorismo que nos afeta to profundamente, transformar uma operao de poder blico numa cruzada denominada justia infinita fazer um uso dogmtico, um uso manipulado de um grande desejo coletivo, mtico. Os arqutipos humanos da justia e do infinito da atemporalidade, que, inclusive, transcende a prpria morte passam ao largo da irracionalidade des-

  • Andana mgica em outra Histria 71

    trutiva da guerra. Quando se produz simbolicamente na nossa esfera de comunicao social, com recursos de mar-keting, o combate pela justia infinita por meio da guerra, ns estamos transformando o processo de mitificao num processo de mistificao.

    Dimas: Esse tremendo erro de construo de hierar-quias, que v a histria como etapas sempre mais avanadas aniquilando outras etapas, consideradas mais primitivas, essa viso linear e reducionista da aventura humana remete o mito, impreterivelmente, a um passado longnquo da hu-manidade, primitivo e selvagem, bem no estilo iluminista, ou do historicismo hegeliano ou, ainda e muito fortemente, do positivismo de um Augusto Comte, com sua famosa lei dos trs estgios, sendo o mito e a religio, na viso dele, o estgio mais atrasado (o segundo estgio, da adolescn-cia da Humanidade, seria a Filosofia, e o terceiro, o est-gio adulto, claro, seria o da Cincia Positiva). Voc insiste tanto, Cremilda, nessa viso mais complexa de que o mito busca uma ordem possvel de sentidos. uma narrativa que organiza um cosmos no meio de um caos que perpassa todo o processo histrico da humanidade, em seus mais distintos momentos.

    Uma enorme limitao da nossa cultura, me parece, o vcio de pensar e viver a racionalidade no no sentido do dilogo e da compreenso, mas da dominao sobre o outro, da desqualificao de outras leituras, num verdadeiro jogo de vencedores e vencidos, de perde e de ganha. Pensamos de modo dualista, como se o dualismo fosse algo natural. Ex-clumos, no inclumos. Pensamos contra, no junto com. Um dos resultados desse modo de pens