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CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A PÍNDARO Alex Fabiano Campos Gonçalves Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas. Orientadora: Professora Doutora Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha. Universidade Federal do Rio de Janeiro Março de 2016

CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA … · Escatológicas na poesia grega arcaica: de Homero a Píndaro. I. ... 1 Ao longo do texto, serão apresentadas as posições de autores

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CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A

PÍNDARO

Alex Fabiano Campos Gonçalves

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Clássicas da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do título de Doutor em

Letras Clássicas.

Orientadora: Professora Doutora Shirley Fátima

Gomes de Almeida Peçanha.

Universidade Federal do Rio de Janeiro Março de 2016

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CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A

PÍNDARO

Alex Fabiano Campos Gonçalves

Orientadora: Profª. Doutora Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do

título de Doutor em Letras Clássicas.

Aprovada por:

______________________________________________________________

Presidente: Profa. Dra. Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha - UFRJ

______________________________________________________________

Prof. Doutor Auto Lyra Teixeria - UFRJ

_______________________________________________________________

Profª. Doutora Glória Braga Onelley - UFF

_______________________________________________________________

Prof. Doutor Ricardo de Souza Nogueira - UFRJ

_______________________________________________________________

Prof. Marcos José de Araújo Caldas - UFRRJ

_______________________________________________________________

Profª. Tania Martins Santos - UFRJ, Suplente

_______________________________________________________________

Profª. Maria Regina Candido - UERJ, Suplente

Rio de Janeiro

2016

3

Gonçalves, Alex Fabiano Campos

CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A PÍNDARO /Alex Fabiano Campos Gonçalves

Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2016.

257 f.; 31cm.

Orientadora: Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha

Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras/Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas, 2016.

Referências Bibliográficas: f. 249-57

1. Grécia arcaica. 2. Poesia grega arcaica. 3. Escatologia homérica. 4. Concepções

Escatológicas na poesia grega arcaica: de Homero a Píndaro. I. Peçanha, Shirley Fátima

Gomes de Almeida. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras,

Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas. III. Título.

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CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A PÍNDARO

Alex Fabiano Campos Gonçalves

Orientadora: Profª. Doutora Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

Os Gregos, desde o período micênico, mantinham com os mortos uma relação

que só pode ser compreendida com base na crença de que, mesmo depois de morto,

sepultado ou cremado, existia um elemento humano que sobreviveria de modo

autônomo e consciente no mundo dos mortos. Sobre essa concepção assentam-se as

proposições dessa tese na qual foram discutidos os principais aspectos da escatologia

grega arcaica, desde a morte, destino final de todos os homens, até a condição

existencial post-mortem da psykhé, depois da realização dos ritos funerários, condição

necessária para o ingresso definitivo no Hades. Teorias foram confrontadas a fim de

maiores esclarecimentos sobre o tema em questão, estando sempre no centro da

discussão, no entanto, o texto literário grego, que serviu de base aos argumentos

apresentados.

Palavras-chave: Poesia arcaica. Psykhé. Escatologia. Post-mortem. Homero. Hesíodo. Píndaro.

Rio de Janeiro

2016

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CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA GREGA ARCAICA: DE HOMERO A PÍNDARO

Alex Fabiano Campos Gonçalves

Orientadora: Profª. Doutora Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha

Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

The Greeks since the mycenean times kept a relationship with the deads which only

can be understood based on the belief that even in the death, after dead, buried or

cremated, there was a human element that would survive autonoumusly and conscious

in the world of deads. On this conception place the propositions of this thesis in which

were discussed the main aspects of the of the archaic greek eschatology since the

death, destiny of all men, to the existecial condition post-mortem of psyche after the

realization of funerary rites, necessary condition to get in the Hades definitively.

Theories were confronted in orde further clarification about the theme, however the

literary Greek text is always in the center of discussions, which and are the basis for the

arguments.

Keywords: Archaic Poetry. Psykhe. Eschatology. Post-mortem. Homer. Hesiod. Pindar.

Rio de Janeiro

2016

6

A meus pais e antepassados, aos quais devo minha existência, dedico este trabalho.

7

A Deus, pela criatividade e inspiração; a Lucia,

minha esposa, e a Eulália, minha filha, pelo

apoio e pela paciência; à professora Drª.

Shirley, pela orientação dedicada; à CAPES,

pela bolsa concedida durante o tempo de

pesquisa; ao Programa de Pós-graduação em

Letras Clássicas em que sempre encontrei

apoio e tranquilidade para desenvolver esse

trabalho; aos colegas de estudo com quem,

muitas vezes, partilhei experiências; aos

amigos que suportaram minhas reclamações

nos momentos difíceis, agradeço de coração.

8

“ w2 po/poi, h] r9a/ ti/v e0sti kai\ ei0n 0Ai+/dao do/moisi yuxh\n kai\ ei1dwlon, a0ta\r fre/nev ou0k pa/mpan: Il. XXIII, 104-5

9

SINOPSE Os fundamentos da escatologia grega. O post-mortem na épica homérica e na poesia hesiódica. O mundo dos mortos. A condição existencial da psykhé no reino

de Hades. A escatologia na poesia não hexamétrica.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................11

2. PRESSUPOSTOS DA ESCATOLOGIA GREGA................................................25

2.1 Um passado glorioso......................................................................................25

2.2 O povo micênico.........................................................................................28

2.3 Os Micênicos e o mundo dos mortos.............................................................39

2.3.1 O culto dos mortos....................................................................................43

2.3.2 Evidências arqueológicas..........................................................................43

2.3.3 Evidências literárias...................................................................................49

3. A ESCATOLOGIA NOS POEMAS HOMÉRICOS...............................................57

3.1 Seres efêmeros destinados à morte..............................................................58

3.1.1 A mansão de Hades: o destino final de todos...........................................61

3.1.2 A localização do mundo dos mortos ..........................................................69

3.2 Os rituais funerários e o culto dos mortos.................................................76

3.2.1 Os ritos de sepultamento...........................................................................83

3.2.2 O funeral de Pátroclo e o culto dos mortos.............................................104

3.3 Os habitantes do mundo dos mortos.......................................................124

3.3.1 A consciência da psykhé dos mortos......................................................124

3.3.2 Duas teses e um problema......................................................................137

4. A ESCATOLOGIA NA POESIA HESIÓDICA....................................................161

4.1 Hesíodo e o destino final dos homens........................................................162

4.2 Hesíodo e o Oriente Próximo.......................................................................162

4.2.1 O Destino dos homens no Mito das Cinco Raças.....................................171

4.2.2 Herança homérica.....................................................................................188

5. CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA NÃO HEXAMÉTRICA

E NÃO DRAMÁTICA..........................................................................................193

5.1 O conceito de psykhé em poemas não hexamétricos................................197

5.2 Elementos das religiões de mistérios e a vida post-mortem na poesia de

Píndaro...............................................................................................................213

6. Conclusão..........................................................................................................245

7. Referências bibliográficas................................................................................. 249

11

1 INTRODUÇÃO

Esta tese de doutoramento versa sobre a escatologia na poesia grega arcaica,

tema já iniciado na dissertação de mestrado A psykhé nos Poemas Homéricos.

Enfatizaram-se neste estudo a morte física do homem, fenômeno comum a todos,

compreendida como a dissolução dos elementos que o constituem, e a condição da

psykhé do morto depois de encerrada definitivamente no Hades, destino final comum

de todos os mortais.

Sabe-se que a psykhé do morto é tratada, tradicionalmente, como uma sombra

desprovida de consciência e de vontade, um ente que vagueia pelo reino de Hades

sem qualquer lembrança do mundo dos vivos. Os autores1 que fazem essa afirmação,

valendo-se da Nékya em Odisseia XI, asseguram que somente o sangue das vítimas

sacrificadas pelo herói Odisseu restaurava, por um momento, as lembranças das

psykhaí. Essa interpretação tradicional é, parcialmente, verdadeira. Evidenciou-se, na

referida pesquisa de mestrado, que há, nos Poemas Homéricos, duas concepções

sobre a condição da psykhé no Hades, ou seja, ora ela é apresentada desprovida de

consciência, ora consciente, sendo esta última concepção a mais comum nos poemas.

O conceito de psykhé provida de consciência foi fundamentado segundo a teoria

defendida por Christiane Sourvinou-Inwood2 em seu livro Reading the Death to the end

of the 8th Century. Aos passos dos Poemas Homéricos utilizados pela autora, a fim de

ratificar suas afirmações, somaram-se comentários filológicos desenvolvidos pelo autor

da dissertação.

Assim, após a exposição e a comparação dos argumentos empregados na

defesa de ambas as teorias, julgou-se pertinente corroborar a tese da mencionada

autora, ainda que não esteja ela amplamente divulgada e aceita por todos os

estudiosos.

Pretende-se, na presente pesquisa, ampliar a reflexão sobre a escatologia

estudada na dissertação de mestrado à poesia hesiódica e à poesia que floresceu

entre os séculos VII a. C. e a primeira metade do século V a. C, período denominado,

em geral, arcaico.

1 Ao longo do texto, serão apresentadas as posições de autores como Walter Burkert, Emily Vermeule, e,

principalmente, as proposições de Erwin Rohde sobre o tema. 2 Confira as principais linhas de argumentação da autora em nossa dissertação de mestrado no item A

psykhé do Morto, em A yuxh/ do Morto nos Poemas Homéricos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.

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Há de se observar, contudo, que há um sério problema quando se trata de

conceituar o período grego arcaico acentuando que existe uma historiografia da Grécia

arcaica que influencia com vigor a denominação do período literário em questão,

sendo, pois, preciso diferenciar a literatura grega desse período da história da Grécia

porque ambas são realidades distintas que encerram dificuldades específicas e devem

ser estudadas com métodos e objetivos diferentes.

A mencionada dificuldade é manifesta em obras de autores consagrados que

escreveram manuais de história da literatura grega, como, por exemplo, Albin Lesky

(1995) e J. A. López Férez (2008). O primeiro autor adota uma posição menos

determinada quando analisa a época arcaica sem definir-lhe os limites precisos.

Observa-se que Albin Lesky (op. cit., p.115) divide o período arcaico em duas fases

distintas, uma na qual estavam inseridas a épica homérica e a hesiódica e outra na

qual a lírica desabrocha. O autor inclui Hesíodo na primeira fase porque o poeta beócio

apresenta em seus poemas características homéricas, embora existam elementos

culturais diversos que diferenciam sua poesia da épica heroica tradicional. A segunda

fase, para a qual o autor não propõe um limite cronológico, compreende a lírica arcaica.

Ao contrário de Albin Lesky, no manual de história da literatura grega organizado

por J. A. López Férez, Carles Miralles (2008, p. 10), ao mencionar a periodização da

literatura grega, propõe a seguinte divisão: “Existe uma época assim chamada de

arcaica que compreende três períodos distintos: o homérico; o propriamente arcaico e

o tardio-arcaico. Essa primeira época se inicia a cavalo entre os séculos VIII e sétimo e

apresenta limites confusos quanto ao seu final.” (Tradução nossa). Assim, os autores

desse manual discorrem sobre a história da literatura grega seguindo essa orientação

cronológica que norteia outros manuais sobre o tema.

Essa tendência de periodização, anota José Alsina (1991, p. 105), ganhou força

com o historicismo que triunfou como orientação metodológica de pesquisa no âmbito

dos estudos clássicos divididos em época arcaica, clássica e helenístico-romana,

divisão, na opinião do autor, praticamente indiscutível. O referido pesquisador (op. cit.,

p. 106) pondera, no entanto, que o conceito de período é equivocado porque parte de

categorias oriundas de fatos culturais distintos, procedimento que torna o conceito

indefinido e pouco adequado à análise de realidades diversas. O conceito de arcaico,

segundo o autor, foi elaborado com base no estudo da arte antiga, principalmente no

estudo da escultura. Pode depreender-se, portanto, pelas afirmações do pesquisador,

13

que a periodização da literatura grega se fundamenta em postulados frágeis que

dificultam sua apreensão como um fenômeno específico.

As observações de José Alsina sobre a influência do historicismo na

periodização da literatura grega podem ser comprovadas em obras de autores como,

por exemplo, Bruno Snell (2012, p. 55), segundo o qual os gêneros literários se teriam

desenvolvido um após o outro. Assim, para esse autor, na Grécia antiga, a existência

de gêneros distintos, como a épica, a lírica e o drama, alcançaram a mais alta

expressão numa sucessão temporal, ou seja, em períodos distintos. Ao intitular um

capítulo de seu livro A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu de O

despertar da individualidade na lírica grega arcaica, Bruno Snell parece considerar a

expressão “grega arcaica” de modo autoevidente na determinação do período histórico

em questão, tendo em vista não ter tido a preocupação de explicar qual o critério

utilizado para determinar o espaço temporal no qual a lírica grega arcaica estaria

inserida.

José Alsina (1991, p. 124) observa, ainda, que Hermann Fränkel pode ser citado

como outro escritor cujas teses foram influenciadas pela corrente historicista e que

adotou concepções semelhantes àquelas de Bruno Snell, diferenciando-se deste autor

somente em um momento posterior quando, depois de ser criticado por seus

procedimentos metodológicos, analisou a época arcaica observando suas

características culturais particulares3.

Com o sugestivo título “A armadilha da terminologia”, John K. Davies (2009, p. 3)

acentua que a modernidade situa o começo do período arcaico em 776 a. C, data da

fundação dos Jogos Olímpicos em Élis. O pesquisador observa que a denominação da

época como arcaica encerra uma contradição porque o termo arcaico, no dicionário, é

utilizado de modo incisivo para se referir às características de um período anterior

associado às velhas formas, ao primitivo e ao antiquado. Ao ser aplicado, porém, a um

determinado período da história da Grécia, “arcaico” passa a significar algo

excepcional, uma época de efervescência cultural que se expandiu com extraordinária

velocidade. Esses significados não correspondem, conforme o autor, àqueles dos

dicionários, e devem ser compreendidos apenas como uma metáfora em referência à

Grécia.

3 O procedimento metodológico adotado por Hermann Fränkel é observado de modo muito claro no

livro Early Greek Poetry and Philosophy, tradução inglesa publicada em 1973 e citada na bibliografia.

14

A historiografia da Grécia antiga é, segundo John K. Davies (op. cit. p. 4),

produto de três estilos distintos que, em um processo incongruente, convergem. O

primeiro está baseado em informações históricas e geográficas legadas por

historiadores gregos mais antigos e por outros de um período posterior que

reconstituíam o passado do povo grego valendo-se de fontes literárias, como a épica e

a lírica. O segundo estilo pauta-se na história cultural que procura saber como as

instituições culturais antigas, tais como os hábitos, o culto e a mitologia, podem ser

interpretadas. O terceiro estilo consiste em uma reflexão arqueológica que se ocupa

em estabelecer cronologias relativas ou absolutas de alguns fatos fundamentando-se

em uma variedade de artefatos. O problema é tão complexo que vale evocar as

palavras do autor (op. cit. p. 3): “Naturalmente, todos os historiadores precisam decidir

onde começar e onde terminar.” (Tradução nossa). Conclui-se, portanto, que o critério

de periodização é determinado pela subjetividade do pesquisador.

A complexidade acerca da periodização da Grécia arcaica está bem ilustrada no

apêndice4 do livro A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo de Claude Mossé (1989, p.

211) que resume, de maneira satisfatória, esse problema ao considerar que: “Para

quem quer que estude a época arcaica, é praticamente impossível estabelecer uma

cronologia segura dos acontecimentos políticos ou os feitos civilizatórios”.

A expressão poesia grega arcaica, que compõe o título dessa tese, é utilizada na

acepção apresentada por José Ribeiro Ferreira:

A época arcaica – cujas datas de início e final é costume situar em 776 e em 480 a. C, respectivamente a data tradicional dos primeiros Jogos Olímpicos e o ano da Batalha de Salamina – a época arcaica, dizia eu, é um período de grande vitalidade, de inovações, crises e transformações.

(Ribeiro Ferreira 1992, p. 41)

4 Confira as palavras do autor: “Para quem quer que estude a época arcaica, é praticamente impossível

estabelecer uma cronologia segura dos acontecimentos políticos ou feitos civilizatórios. À parte alguns episódios da história de Atenas no século VI, datados pela menção do nome do arconte anual – e mesmo em tais datações não se pode ter total certeza – , todos os outros factos relatados pelas nossas fontes literárias ou não estão datados ou, caso o estejam, estão-no de forma muito vaga. Heródoto, em particular, preocupa-se pouco com questões de coerência cronológica quando relata acontecimentos respeitantes a esta ou àquela cidade-estado grega ou aos reinos com que elas estavam em contacto. Donde também a elaboração de <<cronologias altas>> ou de <<cronologias baixas>> conforme se privilegie um determinado facto em detrimento de outro. Um segundo factor de datação é a cronologia arqueológica. Mas esta cronologia tem de ser necessariamente relativa, dado que estabelecida a partir da evolução estilística da cerâmica, e apenas fornece indicações muito genéricas. É certo que os arqueólogos utilizam hoje em dia técnicas de datação cada vez mais apuradas. Mas, se estas tornam realmente possíveis a datação aproximada da ocupação de uma dada estação ou da fundação de um dado povoamento, nunca poderiam de qualquer das formas facultar a reconstrução de sua história propriamente dita. Eis, pois, os motivos por que preferimos absternos de dar um quadro cronológico.”

15

Essa data, cujos limites cronológicos mencionados são de aceitação comum, na

opinião do autor, norteia obras sobre literatura grega arcaica nas quais os autores não

se preocupam em esclarecer os critérios que os levaram a adotar essa cronologia5.

Outra questão que merece comentários diz respeito ao termo escatologia,

definido por Nicolo Abbagnano (1982, p. 325) como:

Termo moderno que indica aquela parte da teologia que considera as fases “finais” ou “extremas” da vida humana ou do mundo: a morte, o juízo universal, a pena ou o cativeiro ultraterreno e o fim do mundo. Os filósofos usam às vezes o termo para indicar a consideração dos estágios finais do mundo ou do gênero humano. (ABBAGNANO, 1982, p. 325)

Observa-se com essa definição que o termo está relacionado com religião

porque o autor a considera uma parte da teologia.

O vocábulo grego e/0sxatov, que compõe a palavra escatologia, não apresentava

em textos mais antigos como, por exemplo, nos Poemas Homéricos, o significado

mecionado por Nicolo Abbagnano. Em Ilíada VIII, 225, emprega-se e1sxatov para se

referir ao local distante onde os navios estavam fundeados: “toi\ r9’ e1sxata nh=av e0i+/sav

ei1risan” (“eles, nos extremos, colocaram o navios alinhados”) e no canto X, 434, em

referência aos recém-chegados aliados dos Troianos: “Qrh/i+kev oi3d’ a0pa/neuqe neh/ludev,

e1sxatoi a1llwn: (“afastados estavam os Trácios recém-chegados, os últimos de

todos.”); em Odisseia I, 23, passo em que se menciona a presença de Posídon entre os

Etíopes por ocasião da deliberação dos deuses sobre o retorno de Odisseu a Ítaca:

“Ai0qi/opav, toi\ dixqa\ dedai/atai, e1sxatoi a0ndrw=n,” (Os Etíopes estavam divididos em

duas partes, os últimos dos homens), no canto VI, 205, verso referente à exortação de

Nausícaa às servas feáceas que fugiram ao encontrarem Odisseu: “oi0ke/omen d’

a0paneuqe poluklu/stw| e0ni po/ntw|, e1sxatoi, [...] (habitamos afastados no mar repleto de

ondas, remotos,[...]) e no canto XXI, 9, em que o termo é utilizado em alusão à

distância do quarto em que os tesouros de Ítaca estavam depositados: “bh= d’ i1menai

qa/lamo/nde su\n a0mfipo/loisi gunaici\n e1sxaton: (subiu com as servas para o quarto, o

último:). Observa-se que, nos Poemas Homéricos, e1sxatov está relacionado com o

espaço físico e não denomina um conceito referente ao destino final do homem.

Com essa mesma acepção dos Poemas Homéricos, o termo também é utilizado

na poesia hesiódica, por exemplo, no verso 731 de Teogonia na menção ao Tártaro

5 Podem ser citadas como exemplos dessa atitude obras de Walter Burkert, Marcel Detienne, M. I.

Finley, Gregory Nagy entre outras.

16

bolorento para onde os Titãs são enviados: “xw/rw| e0n eu0rw/enti, pelw/rhv e1sxata

gai/hv” (na região bolorenta, extremos da vasta terra). Embora haja nesses versos

referência ao destino final dos Titãs, convém notar que o termo e1sxata marca a

distância espacial e não se relaciona com o significado moderno de escatologia

mencionado anteriormente.

O emprego de e1sxaton na acepção de destino final do homem aparece na

poesia de Píndaro, em Pítica X, na narração da viagem de Perseu para a fantástica

terra dos Hiperbóreos, especificamente no verso 28: [...] “perai/nei pro\v e1sxaton

plo/on:” ([...] ele completa uma última viagem). Nesse verso, o termo relaciona-se com

o destino final do herói que passará a viver junto aos Hiperbóreos. A noção de destino

final presente nesse verso, diferentemente de Homero e Hesíodo, remete, pois, ao

significado de escatologia proposto por Nicolo Abbagnano.

Ao tratar o termo escatologia, Daniel A. Torres (2007, p. 13) afirma que ele

encerra três significados sendo o primeiro o seguinte: “um sentido cosmológico,

referido a um limite do mundo conhecido e à possibilidade de sua continuidade e

regeneração.”

Note-se que essa concepção apresentada pelo autor se assemelha àquela

proposta por Mircea Eliade (1992, p. 69) para o qual as repetições anuais de

cosmogonias regeneravam o tempo porque, ao participar de um ritual do fim do mundo

e de sua recriação atos fundamentados em concepções escatológicas , o homem

nascia de novo e recomeçava sua existência com uma nova força, pois estaria

começando de um ponto originário, ou seja, “o homem se tornava contemporâneo do

illud tempus;”.

A escatologia ainda pode ter o sentido de destino coletivo de um povo, sendo

esse precisamente o segundo significado do termo dado por Daniel A. Torres. Embora

o autor não dê exemplos desse conceito, ele pode ser percebido nas concepções

teleológicas do povo de Israel para o qual a história se encaminhava a um fim

específico em que o povo alcançaria uma situação triunfal. O sentido escatológico

estaria, então, diretamente relacionado com uma concepção teleológica.

O terceiro sentido conferido ao termo escatologia por Daniel A. Torres refere-se

à continuidade individual em uma existência post-mortem. Acentua o autor que esse

último conceito está claramente presente na épica grega, especialmente nos cantos XI

e XXIV de Odisseia.

17

Além das três definições apresentadas, Daniel A. Torres (op. cit. p. 14) vale-se

de dois conceitos ao explicar o termo: “escatologia no sentido amplo” e “escatologia no

sentido estrito”. “Em sentido amplo, compreende toda a concepção sobre a

continuidade e permanência do indivíduo; em sentido estrito, refere-se às doutrinas

elaboradas explicitamente sobre como seria possível uma ideia definida dessa

continuidade.” O pesquisador diferencia os dois conceitos afirmando que, em sentido

amplo, a escatologia não supõe uma concepção de alma individual imortal, enquanto o

sentido estrito se fundamenta em tal postulado ao qual se acrescenta a noção de

origem divina. Ainda sobre o primeiro sentido, o autor faz a seguinte afirmação:

Em sentido amplo, a sobrevivência do indivíduo através de suas obras, mediante o klêos heroico conferido pelo poeta, ou mediante a obra poética mesmo em sua condição de memorial, são formas de indicar a transcendência individual, ainda que elas não impliquem a noção específica de imortalidade individual: limita-se a alguns indivíduos, sobretudo aos heróis do passado lendário, ou a homens públicos destacados, e aos poetas como depositários de uma memória coletiva que transcende os limites definidos de uma existência tanto do passado quanto da posteridade.

(TORRES, 2007, p. 15. Tradução nossa)

A divisão proposta pelo autor, como se pode perceber, é bastante adequada,

principalmente quando ele propõe que o “sentido amplo” não contempla a imortalidade

da alma, muito embora seja difícil aceitar que neste sentido a escatologia se refira

apenas à existência de alguns homens porque, nos Poemas Homéricos, que remontam

a tradições micênicas, se encontra ancorada a noção de que todos devem morrer e ir

para a mansão de Hades onde levarão uma existência diversa daquela que tinham em

vida. Não se trata, portanto, como propõe Daniel A. Torres, de uma existência advinda

do klêos, mas de um modo de existir bastante específico como se poderá perceber ao

longo da leitura dessa tese.

Esclarece-se, após essas considerações, que o termo escatologia, empregado

no título dessa tese, faz referência à continuação da existência após a morte, à

concepção da situação da psykhé depois de sua separação definitiva do corpo e da

execução dos ritos funerários devidos quando passa a existir de maneira autônoma e

consciente no mundo dos mortos. Precisamente, esse é o norte dessa tese porque se

compreende que toda a relação dos vivos com os mortos depende da crença de que,

mesmo no Hades, um elemento humano continuaria a existir de modo autônomo e

consciente.

18

A tese organizou-se da seguinte maneira: no primeiro capítulo, fez-se uma

exposição sobre a sociedade micênica6, apresentando, com base nas recentes

descobertas arqueológicas, a identidade do povo que constituía essa civilização e

vislumbrando algumas de suas crenças, mormente em relação ao post-mortem e aos

costumes funerários. Na verdade, a compreensão desse aspecto cultural permite

conjecturar se as concepções escatológicas presentes na épica homérica são uma

herança dessa civilização desaparecida há, pelo menos, quatro séculos antes da

composição dos Poemas, ou se elas são contemporâneas à data de composição ou,

ainda, se constituem uma criação poética posterior.

O ponto de partida para a determinação da identidade do povo micênico foi a

língua falada em Micenas e grafada no Linear B. Observa-se que o critério linguístico já

fora utilizado na Antiguidade para a identificação de um povo, como ratificam os

historiadores Heródoto e Tucídides ao tratarem da formação do povo helênico.

Assim, com base no deciframento do Linear B empreendido por John Chadwick

e Michael Ventris, segundo os quais a língua ali grafada é um dialeto grego, concluiu-

se que a identificação do povo micênico como um povo grego é inequívoca, pois, pelo

critério de identificação adotado, a exemplo dos historiadores gregos supracitados,

foram considerados gregos aqueles que tinham por língua nativa o grego. Nesse

passo, segue-se a orientação de Heródoto, I, 58, ao afirmar que os gregos sempre

fizeram uso da mesma língua, isto é, a língua grega: “to\ de\ 9Ellhniko\n glw/sshi me/n

e0pei/te e0ge/neto, ai0ei/ kote th~i au0th~i diaxra~tai, w9v e0moi\ katafai/netai ei]nai” (e o mundo

helênico, desde que surgiu, como me parece, sempre fez uso da mesma língua).

Mereceu o devido destaque, nesta primeira etapa, a exposição das teses de

alguns autores antigos e modernos que comentaram essa relação entre língua e 6 Embora a civilização minoica tenha contribuído para o desenvolvimento da cultura micênica, não foi

tratada, propositalmente, nesta tese. Segue-se aqui a argumentação de Christiani Sourvinou-Inwood (1995, p. 23), segundo a qual não pode haver elementos idênticos compartilhando sistemas diferentes. Cada sociedade é vista como um sistema que possui elementos próprios. Alguns elementos podem até terem sido adquiridos por empréstimos, porém, ao serem assimilados por outro sistema, passam a integrá-los e são transformados em algo distinto do que eram no sistema originário. Aplicando esse postulado à formação do povo micênico, pode-se afirmar que elementos próprios do sistema social minoico, isto é, da cultura minoica, foram integrados ao sistema micênico sendo, portanto, regulados pelas regras do novo sistema ao qual passaram a pertencer. Esse é o mesmo raciocínio aplicado quando se estuda a formação, por exemplo, das línguas românicas. Do contato entre dois sistemas linguísticos diferentes, no caso da Península Ibérica, de uma língua nativa com a língua latina, tem-se outro sistema regido por regras novas que só vagamente se assemelha aos sistemas que o originaram. Mesmo que desse contato não surja algo novo, mas haja apenas empréstimos, os elementos emprestados são regulados e interpretados pelas regras do novo sistema do qual passam a fazer parte. Em resumo, do contato entre a civilização minoica e a civilização micênica prevaleceu esta última que integrou elementos da primeira que passaram a pertencer a um sistema diferente, regulado e interpretado pelas regras desse novo sistema.

19

identidade étnica, como, por exemplo, os poetas Sólon e Sófocles, além dos

historiadores gregos já mencionados, e autores recentes como Ross A. Shawn, Edward

M. Anson e R. A. Mcneal, citados na bibliografia. Os argumentos apresentados pelos

referidos autores foram pertinentes para que se compreendesse a identidade dos

Micênicos como grega e, em consequência, se pudessem relacionar os diferentes

cultos, como o culto ao ancestral e ao herói, observando se constituíam uma herança

da cultura legada às gerações posteriores ou não. Por essa razão, impôs-se, nessa

abordagem, tentar responder qual a relação existente entre esses cultos e os Poemas

Homéricos, tendo em vista não serem encontradas claramente, nas epopeias,

referências a tais práticas, embora ambos os Poemas tratem de um passado heroico

identificado por alguns7 como a época áurea da civilização micênica.

Nessa etapa da pesquisa, os estudos de Chrysanthi Gallou foram de suma

importância porque a autora é de opinião que os Micênicos, indubitavelmente,

acreditavam no mundo dos mortos e, por esse motivo, reverenciavam seus

antepassados prestando-lhes um culto regular. Ao adotar esse posicionamento, a

pesquisadora opõe-se às teses de George E. Mylonas segundo o qual os Micênicos

não davam nenhuma importância a seus mortos.

Na tarefa de defesa de sua posição em relação às crenças micênicas,

Chrysanthi Gallou lança mão de teses de autores diversos e de dados arqueológicos

rigorosamente analisados, como, por exemplo, os sarcófagos de Hagia Triada e Larnax

nos quais estão registradas cenas de funerais.

A fim de ampliar a reflexão sobre o tema, foram apresentadas e contrapostas

teses de autores importantes, como Erwin Rohde, Walter Otto, Walter Burkert, M. P.

Nilsson, Emily Vermeule, entre outros, cujos argumentos se baseiam em evidências

arqueológicas e, muitas vezes, em imagens encontradas em ambiente sepulcral

interpretadas à luz da literatura, como é o caso do mencionado sarcófago de Hagia

Triada em cuja superfície estão gravadas cenas que, para alguns, podem ser

interpretadas e relacionadas com cenas descritas nos Poemas Homéricos.

Deve-se observar que a argumentação empreendida nessa etapa da pesquisa

possui um caráter de base arqueológica. Porém, como essa tese versa sobre literatura,

com o título de “evidências literárias” foram comentadas as manifestações poéticas

micênicas, considerando as interpretações imagéticas e os indícios linguísticos

7 Historiadores como M. Finley, T. B. L. Webster, M. P. Nilsson, Pierre Vidal-Naquet são exemplos de

estudiosos que relacionam as epopeias com o mundo micênico.

20

deixados como legado tradicional, isto é, epítetos de deuses e algumas formas em

genitivo comuns às tabuletas de Linear B e aos Poemas Homéricos.

Depois de apresentar os pressupostos históricos e de esclarecer-se que os

Micênicos acreditavam no post-mortem, a ponto de prestarem culto a seus

antepassados, passou-se, no segundo capítulo, para a parte propriamente literária da

tese, na qual foram apresentados e discutidos os fundamentos da escatologia nos

Poemas Homéricos, a saber, todo homem está destinado a morrer, e, após sua morte,

o destino final de sua psykhé é o reino de Hades.

Uma vez que o Hades é a morada final de todos, julgou-se pertinente esclarecer

como sua localização é descrita nas epopeias e qual a relação existente entre essa

concepção dos gregos e aquelas de povos orientais que possuíam uma crença

semelhante. Como suporte teórico, utilizaram-se obras de Martin West e Walter Burkert

que versam sobre a influência da cultura de povos do Oriente Médio na Grécia arcaica.

As conclusões a esse respeito foram de que não se deve aceitar, simplesmente, a

influência oriental na cultura grega porque os povos de origem indo-europeia,

considerando algumas evidências arqueológicas, também acreditavam em um lugar

destinado aos mortos.

A morte é concebida, nessa tese, como um processo que tem início com a

separação da psykhé do corpo e é concluída com o ritual funerário, concepção adotada

na dissertação de mestrado, razão pela qual não se achou pertinente repetir, no

presente estudo, as reflexões propostas na pesquisa anterior. Foram enfatizados, por

outro lado, o ritual fúnebre considerando cada rito em particular como, por exemplo, a

próthesis, a lamentação e a forma de se desfazer do cadáver. Este último tópos,

precisamente, mereceu maior atenção porque nos Poemas Homéricos, ainda que haja

o predomínio da cremação, há indícios da prática da inumação. Portanto, não parece

conveniente afirmar, como fazem alguns estudiosos, que Homero só conhecesse uma

forma de se desfazer dos cadáveres, tese defendida por Erwin Rohde, um dos mais

importantes autores que escreveram sobre esse assunto no final do século XIX e cujos

estudos têm influênciado os pesquisadores ainda hoje.

Os dados levantados nas epopeias e analisados com base no vocabulário

mostram que, para o poeta e sua audiência, os dois processos eram igualmente

conhecidos. Assim, as conclusões das pesquisas arqueológicas de A. Snodgrass e as

reflexões de Walter Burkert sobre os métodos de sepultamentos utilizados na Grécia

antiga vêm ao encontro das evidências literárias.

21

O funeral de Pátroclo, por causa de suas particularidades e sua suntuosidade,

foi analisado à parte e, sempre que pareceu conveniente, estabeleceu-se uma relação

com as exéquias de Heitor. Ambos os heróis, considerados exímios guerreiros

combatentes em Troia, uma vez mortos e sepultados, poderiam tornar-se objeto de

culto. Com essa possibilidade, apresentaram-se considerações sobre o culto dos

mortos nos Poemas Homéricos, matéria controversa entre os autores, pois enquanto

alguns rejeitam essa tese, como, por exemplo, Erwin Rohde e George E. Mylonas,

outros, como M. P. Nilsson, Farnall, Odyssey Tsagarakise e C. Antonaccio a defendem.

Uma vez fundamentados os elementos essenciais da escatologia nas epopeias,

observando os aspectos imediatos, isto é, a morte e o ritual funerário, voltou-se a

atenção, no terceiro capítulo, para o post-mortem, considerando a situação da psykhé

no Hades. Nessa etapa, foi seguida a reflexão da pesquisa de mestrado e reafirmou-

se, não obstante as opiniões contrárias, que a psykhé do morto mantém sua

consciência, não sendo necessária a ingestão de sangue para que isso ocorresse. O

passo que serviu de referência para a investigação do tema, nessa parte da pesquisa,

foi a nekýa descrita no canto XI de Odisseia. A análise foi feita contrapondo as

interpretações tradicionais sobre o tema em questão, rejeitando-as em função da nova

concepção segundo a qual todas as psykhaí mantêm a consciência.

Depois de expostas as principais concepções escatológicas presentes na

epopeia homérica, tendo acentuado que a principal noção presente tanto em Ilíada

quanto em Odisseia é a de que todo homem deve morrer e ir para o Hades sombrio8,

considerou-se conveniente apresentar um episódio que parece destoar dessa

proposição, isto é, o destino de Menelau a quem foi prometido habitar nos Campos

Elísios, passo que, a rigor, não pode ser tomado como uma concepção escatológica,

embora seu desenvolvimento posterior se tenha configurado como tal.

Em seguida, iniciou-se, no quarto capítulo, a análise das concepções

escatológicas na poesia hesiódica tomando como ponto de partida a possível origem

oriental do poeta e sua suposta contemporaneidade com Homero, pois o primeiro

elemento permitiria detectar inovações sobre a escatologia na obra hesiódica, e o

8 Propositalmente, a katábasis dos pretendentes descrita no Canto XXIV de Odisseia não foi analisado

nessa pesquisa porque a narrativa apresenta concepções que destoam muito daquelas mais comuns nas epopeias, como, por exemplo, a presença de Hermes, condutor das almas dos mortos. Ainda que não se tenha levado em conta extratos de épocas diversas na composição dos Poemas Homéricos, achou-se por bem, em razão das particularidades do mencionado passo, deixá-lo para uma ocasião futura.

22

segundo possibilitaria verificar o manuseio que o poeta fez do legado tradicional

homérico.

A obra de Hesíodo não se ocupa, diretamente, do mundo dos mortos, entendido

como um local destinado às psykhaí, razão pela qual são encontradas apenas

referências gerais sobre o tema. Em Teogonia e em Trabalhos e Dias, os exemplos são

escassos. Destacou-se, no último poema, a passagem referente ao destino final dos

homens das diferentes Raças, principalmente o destino dos heróis levados para a Ilha

dos Bem-aventurados. Em Teogonia, foram examinados os versos sobre o destino final

de Héracles que parece ser uma exceção na concepção geral do destino final dos

homens. Essa concepção, que se encontra também no fragmento West 25 e em

Odisseia, permitiu conjecturar que o poeta beócio conhecia e partilhava elementos

escatológicos da épica homérica.

Julgou-se pertinente, ao abordar o tema da escatologia na obra de Hesíodo,

manter a mesma metodologia aplicada aos Poemas Homéricos, isto é, apresentar,

primeiramente, como o tema foi abordado por autores, cujas teses, ao longo do tempo,

foram revestidas de um caráter dogmático, destacando-se Erwin Rohde, que

interpretou o mito hesiódico das Cinco Raças numa perspectiva escatológica.

Seguiram-se a essa exposição as proposições de Farnall e, a título de esclarecimentos,

aquelas propostas por autores mais recentes, como, por exemplo, J. S. Clay, Anthony

T. Edwards, Aurélio Perez Jimenez, Richard Hunters e alguns outros. Após expor as

teses dos diversos autores, comentaram-se os versos referentes ao Mito das Cinco

Raças considerando o vocabulário empregado pelo poeta na explicação do destino

final dos homens de cada raça após a morte ou existência terrena.

O quinto e último capítulo da tese é dedicado à escatologia na poesia que se

desenvolveu na Grécia arcaica entre os séculos VII e meados do V a. C. Privilegiou-se,

nessa parte da pesquisa, a poesia de Píndaro, responsável por introduzir concepções

inovadoras em relação ao tema. Adotou-se, nessa etapa, a expressão “poesia não

hexamétrica9” a fim de evitar as discussões decorrentes da utilização da tradicional

nomenclatura que fragmenta os gêneros e os agrupa como líricos, iâmbicos e

elegíacos. Esclarece-se, porém, que, embora tembém seja não hexamétrica, a poesia

dramática não será objeto de reflexão nessa tese.

9 A respeito da dificuldade de nomeação, afirma Giuliana de Faria Ragusa (2008, p. 8): “ Um dos

problemas mais imediatos a ser enfrentado pelo estudioso é o da nomeação da poesia que não é a épica, nem a filosófica, nem a didática e nem a dramática, e que teve seu grande momento na Grécia arcaica.”

23

Embora não se tenha aprofundado o tema, o ambiente de performance da

poesia não hexamétrica mereceu atenção, porque ele difere daquele no qual a poesia

homérica e a hesiódica estavam inseridas. Deu-se a devida importância a esse

aspecto, pois, conforme Hermann Fränkel, antes de o pensamento filosófico entrar em

cena, a poesia lírica, denominada aqui como poesia não hexamétrica, foi o principal

veículo de propagação de novas concepções, oriundas, principalmente, de reflexões

sobre a efemeridade humana posto que a poesia épica, que tratava dos feitos gloriosos

dos heróis, já não correspondia às vicissitudes históricas do século VII a. C.

Assim, após considerações sobre a poesia não hexamétrica, passou-se à

análise de proposições escatológicas na poesia pindárica, relacionado-a, sempre que

possível, com poemas de outros autores, como Safo, Mimnermo, Teógnis e outros que,

embora indiretamente, trataram do tema.

Obviamante, Olímpica II, cujo conteúdo escatológico tem atraído a atenção de

vários pesquisadores, foi o poema de Píndaro escolhido para nortear essa reflexão.

Porém, deve-se observar que não houve uma preocupação em tecer comentários

sobre aspectos formais do poema como, por exemplo, a métrica e os elementos de

composição particulares utilizados pelo autor, nem foi abordada a importância do

poema no tocante à obra geral de Píndaro. A abordagem do poema foi feita levando

em conta os versos compreendidos entre 56b-80 relativos ao destino post-mortem

daqueles que levaram uma existência justa sobre a terra dos vivos.

A interpretação proposta, porém, não considera que as concepções existentes

no poema dizem respeito a todos os homens, pois essa noção poderia conduzir à

conclusão de que com Píndaro haveria uma democratização de algumas ideias

tradicionais, principalmente, a ideia de acesso à Ilha dos Bem-aventurados. Discorda-

se dessa afirmação e argumenta-se nessa tese que o poeta tebano destinava a Ilha

dos Bem-aventurados somente a alguns privilegiados da aristocracia. Esse é, pois, o

norte que direciona a interpretação de Olímpica II.

Nessa parte do estudo, não se deu muita ênfase aos lugares aos quais a psykhé

estava destinada, o Hades embora essa morada habitual dos mortos não seja

mencionada em Olímpica II e a Ilha dos Bem-aventurados porque as reflexões foram

empreendidas em outra parte da tese, de modo que não há prejuízo para a

compreensão das concepções presentes em Olímpica II e em alguns fragmentos

pindáricos.

24

Algumas interpretações sobre o conteúdo escatológico de Olímpica II foram

discutidas a fim de lançar luzes sobre o tema, principalmente os comentários feitos por

Kurt von Fritz, Frank J. Nisetich, Hugh Lloyd-Jones, Antonio Santamaría e Daniel

Torres, autores que seguem em suas abordagens uma metodologia semelhante, ou

seja, examinam as concepções existentes no poema relacionando-as com outras

fontes, principalmente com alguns fragmentos transmitidos por autores antigos, como

Platão e Plutarco. Uma característica comum na interpretação desses autores

modernos é a ênfase dada aos elementos das religiões de mistérios utilizados por

Píndaro ao apresentar a concepção de post-mortem em seus poemas. Vale ressaltar

que a maior parte dos escritos sobre Olímpica II, em alguns momentos, parece deixar

de lado o poema ocupando-se, principalmente, em detectar e identificar as doutrinas

religiosas inseridas ali pelo poeta.

Esse foi o motivo pelo qual se abordou, ainda que de modo breve, o tema,

valendo-se de proposições de autores como Erwin Rohde, Walter Burkert, W. K. C.

Guthrie e Christiane Sourvinou-Inwood. Particularmente, para essa autora citada, as

religiões de mistérios constituíam um importante fator de mudança nas concepções

religiosas, principalmente no que diz respeito a um destino post-mortem “mais feliz”.

As ideias relativas à metempsicose tópos que parece refletir concepções das

religiões de mistérios transmitidas em Olímpica II e em fragmentos pindáricos foram

abordadas levando em conta as interpretações de diferentes autores, principalmente no

que diz respeito ao sintagma e0stri/v e9kate/roqi (três vezes aqui e lá, Olímpica II, 69) que

tem sido objeto de acirrados debates sem que se chegue a uma conclusão definitiva

conforme se observará ao longo da exposição do assunto.

Quanto aos principais textos gregos utilizados para corroborar as interpretações,

foram empregadas, principalmente, edições críticas; para os Poemas Homéricos,

Homeri Opera editada por David B. Monro e Thomas W. Allen; para os poemas

hesiódicos, Hesiodi Theogonia Opera et Dies Scvtvm, editado por Friedrich Solmsen e

Fragmenta Selecta por R. Merkelbach et M. L. West. Os exemplos referentes à poesia

de Píndaro tiveram por base Pindari carmina cvm Fragmentis, edição de M. C. Bowra.

Para os demais exemplos foram utilizados obras de LOEB CLASSICAL LIBRARY,

publicadas pela Harvard University Press, e outros.

25

2 PRESSUPOSTOS DA ESCATOLOGIA GREGA

2.1 Um passado glorioso

Os Poemas Homéricos e sua relação com fatos históricos têm sido objeto de

estudos desde a Antiguidade, e pesquisadores examinam Ilíada e Odisseia ora

considerando essas obras como fontes para a interpretação de achados arqueológicos,

ora tratando-as meramente como obras literárias cujo uso inadvertido de alguns passos

como fonte histórica pode facilmente levar a equívocos de compreensão.10 Porém, a

inegável historicidade de alguns fatos narrados nos Poemas suscita questões

relevantes como, por exemplo: os Poemas Homéricos se referem a uma sociedade

real? Se a resposta for afirmativa, consequentemente, segue-se outra importante

questão: qual é a sociedade ali retratada? Uma resposta considerada válida, por muito

tempo, foi a de que essas obras retratavam a sociedade micênica.

Achados arqueológicos oriundos das escavações empreendidas por Heinrich

Schliemann no século XIX, principalmente o conjunto de sepulturas reais descoberto

em 1876 em Micenas, nordeste do Peloponeso, pareciam corroborar a resposta dada à

10

M. I. Finley (1982, p. 44) considera que os Poemas Homéricos, mormente Ilíada que relata um episódio da guerra de Troia, têm um fundo histórico. A guerra teria sido, conforme o pesquisador, um evento de pequenas proporções, mas reelaborado e ampliado por um poeta a fim de conferir-lhe grandiosidade. A Canção de Rolando, que conta a batalha entre Carlos Magno e os Sarracenos em Roncevaux, é usada pelo autor como exemplo porque, embora esse evento histórico tenha realmente acontecido, a aclamada batalha, na qual o rei saiu vencedor, foi apenas uma refrega entre um destacamento do exército cristão e um bando de salteadores bascos. Assim, o fato ocorrido em nada lembra a narrativa desse importante texto medieval. Esse mesmo exemplo foi utilizado por John Chadwick (1976, p. 181), segundo o qual não se pode aceitar a narrativa homérica como histórica porque muitos fatos apresentados nos Poemas são inverificáveis; porém, não se deve negar a historicidade de alguns passos, e a credibilidade dada aos Poemas deve ser calculada com base nas evidências que temos de alguns fatos narrados, como, por exemplo, o escudo descrito como semelhante a uma torre e o capacete de presas de javali, ambos os objetos micênicos confirmados pela arqueologia. Com uma opinião semelhante sobre o mundo micênico evocado nos Poemas, Pierre Vidal-Naquet (2001, p. 23ss) afirma que, embora haja referência à presença de elementos da cultura micênica nas epopeias, isso não significa que os Poemas a descrevem fielmente. Não há, por exemplo, a menção ao ambiente palaciano dominado por um rei nem se menciona a importante atividade dos escribas para aquela sociedade. Claude Mossé tem uma posição menos rígida quanto ao uso dos Poemas Homéricos como fonte de pesquisas históricas. A historiadora (1989, p. 19) inicia o primeiro capítulo do livro A Grécia Arcaica: de Homero a Ésquilo examinando o uso que o historiador pode fazer dos Poemas Homéricos que, como toda obra literária, contêm em si elementos históricos. Com base nessa afirmação, a autora (op. cit. p. 89) explica a origem de algumas práticas gregas na época clássica, como, por exemplo, a aplicação da justiça mediante a deliberação de um conselho de anciãos. Esse julgamento descrito em Ilíada XVIII, no passo referente às duas cidades gravadas no escudo de Aquiles, acontece na ágora com a presença do povo. O episódio narrado pode, na argumentação da autora, ser usado por historiadores para explicar que as ações judiciais do período clássico já eram esboçadas nos Poemas Homéricos. Carla M. Antonaccio (1994, p. 389- 410) faz observações sobre o ciclo que se estabelece no uso dos Poemas para interpretação de dados arqueológicos e a leitura dessas obras literárias como fonte de explicação desses achados. A autora observa, acertadamente, que a discussão entre filólogos e arqueólogos está longe de chegar a um acordo.

26

questão. No entanto, o avanço das pesquisas arqueológicas não permitiu a

identificação total da sociedade narrada nos Poemas Homéricos com a sociedade

micênica porque muitos achados dos sítios micênicos se apresentavam claramente

diferentes das informações encontradas nas epopeias sendo, muitas vezes

contraditórias11.

Se, por um lado, a identificação da sociedade micênica com a homérica é

problemática, por outro, não há como negar que, em Ilíada e Odisseia, se descreve

uma sociedade de heróis guerreiros cujas raízes se encontram no passado micênico,

muito embora não haja em tais obras um retrato fiel daquela civilização, desaparecida

há, pelo menos, quatro séculos antes da composição dos Poemas. Essa é, pois, a

posição de M. I. Finley, Claude Mossé e Pierre Vidal-Naquet ,entre outros.

A consequência do manuseio de elementos antigos na composição das

epopeias constitui um anacronismo porque aspectos culturais do século VIII a. C., data

provável da composição dos Poemas Homéricos, são colocados como

contemporâneos a elementos do mundo micênico. O uso do carro de combate,

conforme descrito em Ilíada IV, 419-49, e as poucas referências ao ferro12, encontradas

em ambos os Poemas, são exemplos de práticas historicamente anacrônicas.

A respeito do primeiro exemplo, observa M. Finley (1982, p. 43) que Homero,

com certeza, tinha notícias dos carros de combate; porém, não sabia como eles eram

empregados nem qual era sua utilidade na guerra. Nos Poemas, os heróis utilizavam o

veículo apenas para o transporte até o campo de batalha onde empreendiam o

combate a pé, como, por exemplo, em Ilíada IV, 419-49, passo em que Diomedes salta

armado do carro para combater os Troianos. Essa observação do autor, porém, é

verdadeira só em parte, porque o conselho de Nestor aos condutores de carros, em

Ilíada IV, 292-309, é narrado por alguém que, provavelmente, conhecia esse tipo de

combate.

Assim, embora não haja, na época da composição dos Poemas, o uso efetivo do

carro de combates, o narrador, talvez lançando mão de fórmulas herdadas da tradição

poética oral, em alguns episódios, acerta ao descrever a técnica de combate com a

utilização desse recurso bélico.

11

A dimensão do problema da incompatibilidade entre alguns relatos das epopeias e as descobertas arqueológicas pode ser apreendida em afirmações de autores entre os quais se podem citar M. I. Finley (1982, p. 41), Pierre Vidal-Naquet (2001, p.19-30) e Maria Helena da Rocha Pereira (1994, p. 56-67). A bibliografia especializada sobre o assunto é vasta. Os autores citados fazem uma exposição bastante objetiva visando, principalmente, a fornecer informações que ajudem na leitura das epopeias. 12

Confira, por exemplo, Il. IV. 510; VI, 473 e Od. XIX, 211.

27

Quanto ao uso do ferro, Maria Helena da Rocha Pereira (1993, p. 66) chama a

atenção para o fato de o escudo de Aquiles, em Ilíada XVIII, 468-75, ter sido descrito

como obra de um ferreiro, pois Hefestos o forja como se ele fosse de ferro, prática do

período protogeométrico (1025-875 a. C.) ou geométrico (875-700 a. C.). Todavia, o

deus ambidestro orna a arma com incrustações de ouro, prata e bronze empregando

estilo técnico micênico. Pode-se concluir, com base na observação da autora, que a

descrição da confecção do escudo é feita por alguém que conhecia bem o

funcionamento da forja13. No mundo micênico, rico em ouro, mas carente de ferro, o

relato soaria estranho. Outros exemplos de elementos historicamente diversos são o

capacete de presas de javali descrito em Ilíada X, 260-71 e as armas reluzentes de

bronze cujo epíteto contém o termo xa/lkeov, (de bronze), como em Ilíada III, 317,

“xa/lkeon e1gxov” (brônzea lança).

O fenômeno de sobreposição de estratos culturais e históricos diversos deve,

necessariamente, ser levado em conta na investigação acerca da escatologia na

poesia épica grega posto que só assim se podem estabelecer quais são as concepções

contemporâneas à data de composição das epopeias e, ainda, se há, ou não, uma

continuidade de concepções do post-mortem, isto é, se há um prolongamento de

conceitos do mundo micênico nos Poemas Homéricos14, na poesia hesiódica e na

poesia não hexamétrica do período arcaico.

Particularmente, importante para a compreensão da escatologia na civilização

micênica é o cuidado que essa sociedade dava a seus mortos. Com efeito, o fato de os

Micênicos não terem legado registros literários escritos para a posteridade faz com que

o conjunto de sepulturas descoberto em Micenas no final do século XIX seja a principal

fonte de informação sobre o post-mortem desse povo. A esse respeito, porém, cumpre

observar, como propõe John Chadwick, a necessidade de cautela nas conclusões com

base na arqueologia:

Mas suponhamos que nós tivéssemos que inferir o conteúdo do Cristianismo por meio da escultura, decoração, mobília e de plantas de umas poucas igrejas, sem a ajuda de textos escritos. Seria simplesmente perigoso tentar isso só com de recursos materiais. Até poucos anos atrás, este era o único caminho

13

Claude Mossé (1989, p. 141) afirma que, a partir do século XI a. C, houve o aparecimento de objetos e armas de ferro e a consequente substituição do bronze por esse metal mais resistente. 14

Significativo para a compreensão da tese da continuidade de elementos minoico-micênicos na cultura grega posterior ao século XIII a. C. é a obra de Martin P. Nilsson, seu grande defensor. Entre a variedade de livros desse importante autor, alguns são bastante incisivos na tese da continuidade, como, por exemplo, Minoan-Mycenaean Religion and its Survival in the Greek Religion, cuja primeira edição foi feita em 1927, e The Mycenaean Origin of Greek Mythology, publicado em 1932.

28

de aproximação da religião micênica (CHADWICK, 1975, p. 84. Tradução nossa).

Essa afirmação do autor evidencia que a falta de registros escritos sobre as

concepções religiosas dos Micênicos permite ao pesquisador somente deduzir

hipóteses. Por essa razão, antes de passar à descrição dos túmulos e às teorias do

post-mortem elaboradas por pesquisadores que se fundamentam em vestígios

materiais, convém esclarecer a que povo pertenciam as habitações fúnebres

descobertas nos sítios arqueológicos, e como viviam os que tiveram esses suntuosos

túmulos como morada derradeira.

2. 2 O povo micênico

Em Ilíada, Micenas é denominada, normalmente, com a fórmula15 poluxru/soio

Mukh/nhv16 (Micenas rica em ouro), e Heinrich Schliemann, o primeiro a escavar essa

localidade, ao encontrar túmulos na área, não hesitou em afirmar que um deles, no

qual o corpo depositado ostentava uma máscara de ouro, pertencia a Agamêmnon.

Deste modo, a arqueologia parecia reiterar a fórmula empregada referente à cidade

governada pelo Atrida Agamêmnon. Posteriormente, porém, demonstrou-se que os

túmulos descobertos não pertenciam à família do chefe dos Aqueus17.

Um dos problemas decorrentes dessa descoberta, conforme observa Chrysanthi

Gallou (2002, p. 6), foi que se praticou, por um longo período, uma arqueologia de

tesouros na qual não se prestava quase nenhuma atenção a objetos de pouco valor,

como, por exemplo, a cerâmica encontrada. Entre esses artefatos desprezados pelos

arqueólogos do final do século XIX, certamente, se encontravam sinetes, iguais aos

que Sir Arthur Evans observara serem vendidos por mercadores de antiguidades em

15

Milman Parry (1987, p. 272) apresenta o seguinte conceito de fórmula: “A fórmula nos Poemas Homéricos pode ser definida como um grupo de palavras que regularmente se emprega sob as mesmas condições métricas para expressar uma determinada ideia essencial”. Albert B. Lord (2003, p. 30), pupilo e continuador da teoria formular comumente denominada Parry/Lord, observa que a definição dada por Milman Parry eliminou a ambiguidade da repetição de modo que, desde então, se obrigou a considerar o grupo de palavras repetidas e não as cenas repetidas que as fórmulas transmitem. Não se trata de interpretar as repetições como cenas repetidas em episódios diferentes, mas sim de analisá-las como recursos de composição oral que se valiam do estilo formular. 16

Vide Il. VII, 180; XI, 46 “h2 au0to\n basilh~a poluxru/soio Mukh/nhv” (o próprio rei de Micenas, rica em

ouro). Esta é a fórmula completa empregada no poema. 17

Existem excelentes sínteses sobre a relação problemática entre as descobertas arqueológicas de Heinrich Schliemman e a identificação com personagens e eventos dos Poemas Homéricos. Sobre o assunto, vide, por exemplo, as obras de Maria Helena da Rocha Pereira (1994), Pierre Vidal-Naquet (2004) e Claude Mossé (1989), citadas na bibliografia.

29

Atenas, e também tabuinhas de Linear B, descobertas mais tarde pelo mesmo

pesquisador, no palácio de Cnossos, em Creta (CHADWICK, 1996, p. 179). Sobre a

desconsideração a esses pequenos objetos, aparentemente sem importância, por parte

dos arqueólogos, John Chadwick faz a seguinte observação posto que, em Micenas,

também foram encontradas tabuinhas:

Mas é lícito imaginar que, se Schliemann tivesse sabido o que procurar, poderia ter sido o primeiro a descobrir as tabuinhas de Linear B. É fácil acontecer que muitos fragmentos de tabuinhas, quando eram retirados do solo, tenham sido jogado fora como peças de cerâmica grosseira pelos primeiros

escavadores, sem lhes dar muita atenção. (CHADWICK, 1996, p. 183)

A descoberta das tabuinhas de Linear B e a decifração da língua nelas grafada

constituem um dos mais importantes eventos para novas interpretações acerca da

sociedade micênica18 que demonstrava graus de complexidade e sofisticação

considerados, segundo Sir Arthur Evans (CHADWICK, op. cit., p. 178), impossíveis

sem a existência da escrita, embora Heinrich Schliemann não tivesse encontrado nada

neste sentido em Troia ou Micenas. Vale lembrar que as significativas descobertas de

tabuinhas de Linear B em Micenas só aconteceram em 1952, quando o arqueólogo

inglês A. J. B. Wace escavou fora dos muros da cidade em casas que aparentemente

pareciam ter sido ocupadas por altos membros da nobreza palaciana (CHADWICK, op.

cit., p. 183).

A decifração do Linear B foi levada a cabo pelo estudante amador Michel

Ventris, auxiliado por John Chadwick19, professor de Letras Clássicas em Cambridge, e

publicada por eles em um artigo intitulado Evidence for Greek Dialect in the Mycenaean

Archives, em 1953, no The Journal of Hellenic Studies (CHADWICK, op. cit., p. 185-

96). Nesse artigo de assunto complexo, o linguista expõe exaustivamente os métodos

utilizados no deciframento e os resultados obtidos entre os quais podem ser citados os

dados da morfologia nominal exemplificados com formas de genitivo20:

18

M. I. Finley (1988, p. 13) observa que nas tabuinhas de Linear B está grafada uma língua falada notoriamente nos palácios em Micenas, Pilos e Argos. Para o autor, as populações que chegaram àquela região falavam um protogrego e ajudaram a moldar a civilização micênica, tecnicamente muito avançada. Pondera o pesquisador que, apesar da importância da decifração daquela escrita ter demonstrado o registro de um dialeto grego, há muito tem se exagerado a respeito desse evento. 19

As informações sobre o deciframento do Linear B foram colhidas no artigo de John Chadwick A Linear B e Escritas Correlatas, traduzido por Sérgio Medeiros. 20

O exemplo citado apenas compara elementos da morfologia nominal presentes na língua grafada na Linear B com a língua grega. O artigo é vasto, complexo e contém vários exemplos que permitem a identificação de um dialeto grego utilizado no período micênico.

30

Esta é a declinação regular de nomes que terminam em -o, permanecendo

inalterados no dativo. Dadas as nossas regras de ortografia, -o -ojo -o podem

ser equiparados com a declinação a grega em –o; -ov -oio -w| (ou -oi como

em Arcádio). O final do nome -jo é freqüente nesta classe dando origem à

terminação característica -jo-jo, que é sempre genitivo onde quer que seja

encontrada (VENTRIS e CHADWICK, 1953, p. 93.Tradução nossa).

Portanto, a língua que está registrada nas tábuas, segundo John Chadwick, é

um dialeto grego. De modo assertivo, afirma o especialista (1975, p. 61) que, embora

houvesse algumas hesitações em aceitar categoricamente tal afirmação, não podia

existir nenhuma dúvida consistente sobre esse fato. Acerca dessa questão segue uma

pergunta do linguista: “Mas o povo que as escreveu era grego?”. A resposta é positiva.

O autor sustenta sua afirmação considerando a quantidade de nomes com significado

em grego atribuídos a homens e mulheres porque do total de palavra grafadas nas

tabuletas 60% são nomes de pessoas: Alexandra, Theodora, Amphimedes, Eumenes e

Opilimnios entre outros.

A pertinência do questionamento do pesquisador inglês sobre a identidade do

povo que escreveu o grego do Linear B encontra eco na afirmação de Claude Mossé

acerca do espinhoso ofício do historiador da Grécia antiga:

Ora o problema que se coloca àquele que se considera historiador da Grécia é particularmente irritante; pode ser resumido de uma maneira muito simples: quando começa a Grécia, e, por conseguinte o meu trabalho, ou ainda quem são os gregos? Digamo-lo sem rodeios para começar: a questão parece insolúvel no estado actual dos nossos conhecimentos e assim vai permanecer sem dúvida

ulteriormente (MOSSÉ, 1994, p. 44).

Sobre a identificação dos escribas de Linear B com o povo grego, John

Chadwick (1975, p. 61) é de opinião que, se o termo “grego” for entendido somente

como falante de língua grega, sem nenhum nacionalismo anacrônico21, sem dúvida, os

Micênicos podem ser considerados gregos.

Observa-se que a identificação do povo helênico como falante de língua grega22,

como sugere o estudioso, é atestada em obras de autores da Antiguidade, como, por

21

O conceito de nação é uma invenção moderna e seria equivocado e anacrônico aplicá-lo ao povo grego antigo. A Grécia constitui-se como nação a partir de sua independência, em 1821, após o longo período de domínio do Império Otomano. 22 Aparentemente, nos Poemas Homéricos, parece não haver o uso da língua como fator de identificação dos guerreiros liderados por Agamêmnon. Convém, no entanto, observar que Ross A. Shawn (2005, p. 299-316) inicia um considerável artigo sobre o pan-helenismo na época arcaica, afirmando que esse tema provoca um grande desacordo entre as opiniões, pois há uma tendência em considerar que o

31

exemplo, em Heródoto, (I, 56-8), que inicia sua explicação sobre a origem do povo

helênico considerando o interesse do rei Creso em conhecer as regiões mais

poderosas da Grécia. O dominador lídio reconhece que a Lacedemônia e Atenas

estavam em primeiro lugar em poderio e, que, outrora, os Lacedemônios pertenciam ao

ramo helênico, e os Atenienses ao pelásgico. O povo helênico, conforme Heródoto,

sempre fez uso da mesma língua: “to\ de\ 9Ellhniko\n glw/sshi me/n e0pei/te e0ge/neto, ai0ei/

kote th~i au0th~i diaxra~tai, w9v e0moi\ katafai/netai ei]nai” (“...e o mundo helênico, desde

que surgiu, como me parece, sempre fez uso da mesma língua”).

Alguns estudiosos se têm dedicado a compreender esse relato do historiador.

Edward M. Anson (2009, p. 5-30), ao discutir a etnicidade grega, chama a atenção para

os cinco traços apontados por Heródoto como determinantes dessa identidade étnica.

São eles: (1) origem ancestral comum, (2) cultura similar, (3) religião partilhada, (4)

raça comum e (5) língua similar. Esse último aspecto, frequentemente, é utilizado pelo

historiador para determinar os traços particulares do povo grego. Para o pesquisador,

portanto, a língua comum era o critério decisivo quanto à determinação da identidade

helênica. A fim de ratificar suas afirmações, Edward M. Anson cita um trabalho de Edith

Hall no qual a autora considera que nenhum outro povo definiu tão claramente a língua

como determinante de sua própria identidade como o grego.

A autora citada (1991, p. 6-7) argumenta que a consciência de identidade dos

Gregos nasce no século V. a C. com o claro objetivo de autoafirmação diante dos

Persas. O conceito de pan-helênico, segundo a autora, seria marcado pela oposição

entre falantes de língua grega e os heterófonoi. Edith Hall é de opinião que, embora

essa oposição já se encontre esboçada em Ilíada, ela só se tornará uma ideologia com

as guerras pérsicas. A guerra produz o senso de identidade coletiva polarizando gregos

e bárbaros. A noção de que os Gregos se identificavam como falantes de uma mesma

conceito pan-helênico só teria surgido no período clássico. O autor, porém, valendo-se do principal elemento da fundamentação sobre a identidade do povo grego, isto é, a língua grega, procura examinar as origens do pan-helenismo em Ilíada e Odisseia, embora deixe claro que na poesia épica grega raramente se encontram problemas de comunicação entre falantes de línguas diferentes porque Aqueus e Troianos se comunicavam sem problema algum. Há, porém, um dado para o qual Ross A. Shawn chama a atenção e denomina como pan-aqueu, ou seja, a unidade linguística dos Aqueus em oposição à diversidade de línguas faladas pelos e0pikou~roi (aliados) dos Troianos. Três são os principais passos considerados pelo autor a fim de fundamentar suas afirmações: Il. 2.802–6, 2.867, 4.433–38; Od. 19.172–77. Para o referido autor, essa unidade linguística, que representaria a origem comum dos Aqueus, é um proto-pan-helenismo. Valendo-se da tese de Gregory Nagy que afirma terem sido os Poemas Homéricos fixados na forma que os conhecemos por volta do século VIII a. C, Ross A. Shawn compreende que, em Ilíada e Odisseia, há concepções que eram próprias dessa época. Desta forma, ele conclui que o pan-helenismo esboçado na épica grega nessa oposição entre o pan-aqueu e os barbarófonos, aliados dos Troianos, evidencia o seu início.

32

língua em oposição clara aos falantes de uma língua diversa ganharia, portanto, força

nesse contexto de guerra.

O critério de identificação usado por Heródoto está presente tanto na poesia

lírica quanto na trágica. Na lírica, por exemplo, pode citar-se, como primeira referência

ao critério linguístico para a identificação de um povo, a elegia de Sólon, poeta que

legislou a fim de resolver graves problemas oriundos de injustiças praticadas contra

cidadãos de Atenas. No fragmento 36 West, versos 11-2, o poeta legislador apresenta

a mesma concepção empregada pelo historiador, ao afirmar que reconduziu a Atenas

aqueles que tinham sido vendidos como escravos e não mais falavam o idioma

materno, sinal de identidade ateniense: “glw~ssan ou0ke/t’ 0Attikh\n i9e/ntav w9v a2n

pollaxh~| planwme/nouv.” (“não mais falavam o dialeto ático, depois de terem errado por

muitos lugares”). Do mesmo modo, o tragediógrafo Sófocles, em Filoctetes 234-5,

apresenta a língua grega como elemento de identificação da origem pátria de alguém,

no passo em que o herói saúda os visitantes que acabam de desembarcar, e afirma

que eles seriam muito bem-vindos se fossem Gregos. Após Neoptólemo responder em

língua grega, o desafortunado Filoctetes, identificando-se com o hóspede, diz: “w]

fi/ltaton fw/nhma: feu~ to\ kai\ labei~n pro/sfqegma toiou~d’ a0ndro\v e0n xrw/nwi makrw~i”

(“ó fala muitíssima querida, ouvir a saudação de um homem (grego) depois de tanto

tempo”)23.

Apesar de a língua grega ser um fator de grande importância para a identificação

do povo grego, há uma série de elementos que devem ser considerados ao se tentar

responder questões sobre a identidade e os costumes desses falantes de grego porque

muitas práticas do período histórico da Grécia começaram a ser esboçadas em uma

fase anterior, que remonta à gênese do povo helênico cuja formação é bastante

complexa e discutida. A gênese dos Gregos é, portanto, o ponto de partida para o

estudo de vários aspectos da cultura desse povo, resultado do amálgama de povos

diversos realizado durante séculos. A compreensão de alguns de seus elementos

referentes aos costumes funerários deve ter claro esse postulado.

Mais uma vez, o testemunho dos autores antigos demonstra a importância de se

voltar à Grécia pré-literária a fim de que se possa perceber como o assunto já era

tratado na Antiguidade. A esse respeito, vale evocar novamente a opinião de Heródoto

23

Tradução nossa.

33

que concebia não serem os Gregos de outrora os únicos habitantes do continente;

havia, segundo o historiador, povos de origem diversa habitando a região:

h3ntina de\ glw~ssan i3esan oi0 Pelasgoi/, ou0k e1xw a0treke/wv ei0pei~n: ei0 de\ xreo/n e0sti tekmairo/menon le/gein toi~si nu~n e1ti e0ou~si Pelasgw~n tw~n u9pe\r Turshnw~n Krhstw~na po/lin oi0keo/ntwn, oi4 o3mouroi/ kote h]san toi~si nu~n Dwriu~si kaleome/noisi (oi1keon de\ thnikau~ta gh~n th\n nu~n Qessaliw~tin kaleome/nhn), kai\ tw~n Plaki/hn te kai\ Skula/khn Pelasgw~n oi0khsa/ntwn e0n 9Ellhspo/tw|. oi4 su/noikoi e0ge/nonto 0Aqhnai/oisi, kai\ o3sa a1lla Pelasgika\ e0o/nta poli/sma to\ ou1noma mete/bale: ei0 tou/toisi tekmairo/menon dei~ le/gein, h]san Pelasgoi\ ba/rbaron glw~ssan i9e/ntev. ei0 toi/nun h]n kai\ pa~n toiou~to to\ Pelasgiko/n, to\ 0Attiko\n e1qnov e0o\n Pelasgiko\n a3ma th~| metabolh~| th~| e0v 3Ellhnav kai\ th\n glw~ssan mete/maqe. kai\ ga\r dh\ ou1te oi9 Krhstwnih~tai ou0damoi~si tw~n nu~n sfeav perioikeo/ntwn ei0si\ o9mo/glwssoi ou1te oi9 Plakihnoi/ sfi/si de\ o9mo/glwssoi: dhlou~si/ te o3ti to\n h0nei/kanto glw/sshv xarakth~ra metabai/nontev e0v tau~ta ta\ xwri/a, tou~ton e1xousi e0n fulakh~|. Que língua os Pelasgos falavam, não posso dizer seguramente; mas se é permitido conjecturar com base nos dados existente ainda hoje dos Pelasgos─ que habitam a cidade de Krestona para lá dos Tirrenos e que eram, outrora, vizinhos dos que hoje são chamados Dórios (e habitavam, então, a terra que hoje se chama Tessalótida), também dos Pelasgos que colonizaram, no Helesponto, Placia e Escílaca. Eles tornaram-se vizinhos dos Atenienses, e todas as outras cidades que eram pelasgas mudaram o nome─, se é permitido conjecturar por meio dessas coisas, eram os Pelasgos falantes de uma língua bárbara. Pois bem, se tudo isso era o Pelasgo, o povo ático também sendo Pelasgo aprendeu a língua simultaneamente com a mudança para a Hélade. Na verdade, nem os Crestoniatas são falantes da mesma língua de qualquer um dos que agora se lhes avizinham nem os habitantes de Placia são falantes da mesma língua deles; eles mostram que levaram a característica da língua quando mudaram para essas regiões, eles mantêm isso em observância. (Hist. I, 57)

R. A Mcneal, no artigo How did Pelasgian Became Hellenes: Herodotus I. 56-58.

Illinois Classical Studies, comenta alguns problemas desse texto com base na crítica

textual, e quatro aspectos são considerados por ele: emendas ao texto, a estrutura

narrativa, o vocabulário, a gramática e a própria lógica de Heródoto. Para o autor, a

melhor interpretação sobre a estrutura deste passo é a lição apresentada por Hude

(apud R. A Mcneal) que em, sua edição crítica, mostra claramente uma estrutura em

quiasmo a fim de ressaltar as diferenças entre: Lacedemônios versus Atenienses;

Dórios versus Jônios; Pelasgos versus Helenos e migratórios versus sedentários.

Uma das maiores dificuldades do texto, afirma R. A. Mcneal, consiste em

determinar a disputada questão presente na sentença: Pelasgw~n tw~n u9pe\r Turshnw~n

Krhstw~na poli/n oi0ke/ontwn (são Pelasgos que habitam a cidade dos Tirrenos).

Considerando que Heródoto sempre usa o termo turshnoi/ para se referir aos Etruscos,

o estudioso observa que, se Krotw~na for lido no lugar de Khstw~na, se verá claramente

34

que o historiador grego alude à Cretona, na Etrúria. Consequentemente, pode-se

pensar que os Pelasgos, segundo R. A. Mcneal, em um passado distante, migraram

para a Itália onde ainda no V século a. C mantinham a língua nativa que não era grega.

Vale mencionar também o pesquisador A. G. Laird (1933, p. 97-119) que discutiu

esse passo do Livro I baseando-se em quatro assertivas, a saber; (1) a Grécia uma vez

foi chamada Pelásgia (2); os Pelasgos eram bárbaros; (3) os Atenienses eram

Pelasgos de origem que foram helenizados; (4) havia Pelasgos na Ática depois de os

Atenienses terem sido helenizados. O autor afirma que seu objetivo no artigo citado, é

mais gramatical que histórico, isto é, ele visa a esclarecer os equívocos decorrentes da

tradução da oração “Pela/sgoi\ su/noikoi e0ge/nonto 0Aqhnai/oisi” sem intenção de

responder questões relativas à história. Para o autor, os Pelasgos, na opinião de

Heródoto, eram um povo da Grécia e não do norte do mar Egeu, como alguns

estudiosos interpretaram.

Convém lembrar, ainda, o testemunho de Tucídides que, no primeiro livro de

História da Guerra do Peloponeso, também menciona a heterogeneidade da formação

do povo grego. Nessa passagem da obra, merece atenção, particularmente, a

referência do historiador às migrações ocorridas na região e a influência por elas

provocada na formação dos helenos. O autor é de opinião que a terra e o povo que, no

seu tempo, se denominavam Hélade e Helenos não eram chamados assim outrora:

[2]Fai/netai ga\r h9 nu~n 9Ella\v kaloume/nh ou0 pa/lai bebai/wv oi0koume/nh, a0lla\ metanasta/teiv te ou]sai ta\ pro/terá kai\ r9a|di/wv e3kastoi th\n e0autw~n a0polei/pontev biazo/menoi u9po/ tinwn ai0ei\ pelio/nwn. [...] [3]dhloi~ de/ moi kai/ to/de tw~n palaiw~n a0sqe/neian ou0x h3kista: pro\ ga\r tw~n Trwikw~n ou0d\n fai/netai pro/teron koinh~| e0rgasame/nh h9 (Hlla/v: dokoi~ moi~, ou0de\ tou1noma tou~to cu/mpasa/ pw ei]xen, a0lla\ ta\ me\n pro\ 3Hllhnov tou~ Deukali/wnov kai\ pa/nu ou0de\ ei]nai h9 e0pi/klhsiv au3th, kata\ e1qnh de\ a0lla\ te kai\ to\ Pelasgiko\n e0pi\ plei~ston a0f’ e9autw~n th\n e0pwnumi/nan pare/xesqai, 3Hllhnov de\ kai\ tw~n pai/dwn au0tou~ e0n th~| Fqiw/tidi i0sxusa/ntwn, kai\ e0pagome/nwn au0tou\v e0p w0feli/a e0v ta\v a1llav po/leiv, kaq’ e9ka/stouv me\n h1dh th~| o9mili/a| ma~llon kalei~sqai 9Hllenav, ou0 me/ntoi pollou~ ge xro/nou e0du/nato kai\ a3pasin e0knikh~sai.

[2] De fato, a região que hoje se chama Hélade não era com certeza povoada antigamente, mas existindo migrações nos primeiros tempos, cada um deixava facilmente sua terra, forçado por alguns sempre mais numerosos. [...]

[3] Isso também revela, sobretudo, uma fraqueza dos antigos, sobretudo essa: antes da Guerra de Troia, a Hélade evidentemente não realizava nada em comum. Parece-me que toda ela não tinha, de modo algum, esse nome, mas, antes de Heleno, filho de Deucalião, também não havia precisamente essa denominação e, segundo os povos, o Pelasgo sobretudo fornecia o nome deles o mais possível. E também quando Heleno e seus filhos se tornaram poderosos na Ftiótida e foram conduzidos em socorro de outras cidades, de acordo com cada povo em particular, graças agora à reunião, foram chamados

35

Helenos, nome que certamente não pôde. Durante muito tempo, prevalecer sobre todos.[...]

Tucídides. I, 2.1; 1,3.1-2

Essas informações fornecidas pelos dois historiadores gregos consistem nos

registros das primeiras tentativas de explicar o surgimento do povo grego a partir do

amálgama de povos diversos em sucessivas migrações pela região.

A concepção da origem gentílica dos gregos, baseada nesse movimento de

povos diferentes que entravam pelo continente, conforme John Chadwick (1994, p. 2),

tornou-se a tese mais tradicional desde que foi apresentada pelos linguistas Paul

Kretschmer e Hoffmann no final do século XIX. Esses estudiosos afirmam que houve

levas sucessivas de povos que penetraram na região que constitui a Grécia. Porém,

diferente de Heródoto e de Tucídides, segundo os quais os migrantes possuíam

línguas próprias, os referidos linguistas eram de opinião que esses povos eram falantes

de diferentes dialetos da língua grega.

Embora a teoria tenha sido bastante defendida, José Ribeiro Ferreira ao

mencioná-la, faz a seguinte observação sobre a complexidade e os limites da tese

proposta por Paul Kretschmer e Hoffmann:

Essa doutrina que tem em Hoffmann e Kretschmer os seus principais representantes explica a origem dos dialectos gregos da época histórica pela chamada teoria das <<três invasões>>. Os gregos teriam entrado na Península Balcânica em três vagas sucessivas, cada uma delas com seu dialecto próprio, e ter-se-iam sobreposto uma às outras, provocando um conjunto de interferências que originaram o vasto leque dos dialectos da época histórica. Os Iônios teriam sido os primeiros a chegar: durante o Heládico Médio, a Grécia teria sido habitada por povos de fala iônica. Em seguida, teria surgido o vasto grupo dos Aqueus, que estariam na base da opulenta civilização micénica e falaria uma língua que teria dado origem ao eólico e ao arcado-cipriota; após a decifração do Linear B, o micênico é identificado ou aparentado com o aqueu, de que o eólico e o árcado-cipriota seriam relíquias. Por último, teria avassalado a Grécia a vaga dos Dórios, chegada nos fins do Heládico Recente e responsável pela destruição da civilização micénica. Ultimamente, os estudos da dialectologia grega, bem como os dados da arqueologia, têm levado os especialistas ao abandono desta teoria, ou à convicção de que é

necessário pôr-lhe sérias reservas e limitações. (RIBEIRO FERREIRA, 1992, p. 16)

Convém, portanto, em razão das controvérsias, tecer alguns comentários sobre

a teoria das levas sucessivas de “gregos” penetrando no continente, uma vez que,

como se pode notar na afirmação do referido pesquisador, já há algum tempo não

existe unanimidade quanto à aceitação da tese das levas migratórias.

36

Durante a Antiga Idade do Bronze (ca. 2350-1075), conforme Daniel Pullen

(2008, p. 19), em numerosas regiões do continente grego, surgiram sociedades de

pouca complexidade que foram solapadas e tiveram termo no final do Heládico Antigo

(ca. 2350-1500). Os eventos ocorridos nessa fase estariam relacionados com a

chegada dos gregos à região. Nas palavras do autor: “estas mudanças estão

conectadas com a Coming Greeks24 (chegada de falantes indo-europeus) como

precursores do Micênicos da tardia Idade do Bronze”. A afirmação do autor já aponta

para um sério problema: a existência de falantes de língua grega fora da Grécia. Nisso

reside, indubitavelmente, o problema central da tese das vagas migratórias.

Ao analisar o problema das levas migratórias de falantes de grego, John

Chadwick (1994, p. 2), afirma que não há evidências para sustentar a hipótese da

existência da língua grega fora da Grécia, pois os mais antigos documentos escritos

nesta língua são datados do século XIV a. C. de modo que tal fenômeno só pode ser

atestado em tempos históricos. A argumentação do autor parte da inexistência de

registros da língua grega anteriores ao período de expansão quando as colônias se

estabeleciam em solos distantes para os quais os colonos levavam os elementos

culturais da cidade de origem, entre eles a língua que, somente a partir desse evento

migratório, é encontrada fora do território da Hélade.

A fim de ratificar suas críticas sobre a teoria das levas migratórias, o linguista faz

o seguinte comentário:

A visão tradicional de ondas de guerreiros falantes de gregos marchando

através dos Bálcãs para subjugar a Grécia é antiga e foi sustentada pelo

trabalho do iminente linguista australiano Paul Kretschmer tanto ao longo

quanto ao fim do século XIX. A forma em que essa teoria foi mais anunciada é

que houve três ondas de invasores, normalmente chamados Jônios, Aqueus e

Dórios, depois a clássica divisão dos dialetos gregos. Até foi possível datar

arqueologicamente essas invasões. Os Jônios seriam o povo que entrou na

Grécia por volta do século XX a. C, os Aqueus por volta do XVI século, os

Dórios por volta do século XII (CHADWICK, op. cit., p. 2. Tradução nossa).

O autor nota, no entanto, que nessa teoria há um problema intrínseco que

constitui o seu ponto frágil, isto é, a inteligibilidade entre os Jônios e os Dórios. O

espaço temporal considerável entre essas duas levas migratórias dificilmente faria com

que os recém-chegados compreendessem aqueles que se encontravam estabelecidos

24 A expressão Coming Greeks, propositalmente, deixada sem tradução é um termo técnico que encerra uma série de problemas e merece algumas considerações como se verá adiante.

37

no continente há séculos. O linguista parece observar que seus argumentos não são

isentos de críticas e pondera que os problemas apresentados por ele não seriam

suficiente para promover a rejeição da tradicional teoria das levas migratórias. Ele

argumenta, porém, que suas observações permitem tentar outra explicação sobre a

formação do povo grego e sua língua25.

John Chadwick (1994, p. 2), então, propõe como hipótese, que a língua grega

não existiu antes do século XX a. C, mas que se constituiu em solo grego, do

amálgama de populações nativas locais com os invasores que falavam uma língua

diferente. Observa, porém, o autor, que determinar qual era a língua falada pelos

migrantes é um problema dos mais complexos.

Ainda que deixe claro e não negue, em momento algum, que o grego seja uma

língua indo-europeia, John Chadwick (op. cit., p. 2) considera duvidoso que os

invasores, denominados por ele de “protogregos”, falassem um puro “proto-indo-

europeu” embora tenha sido possível determinar muitas características dessa língua

falada por eles.

Alguns autores, entretanto, são contrários à tese do linguista inglês. Entre eles,

pode ser citado Robert Drews que, em 1988, publicou The coming of the Greeks: Indo-

European Conquest in the Aegean and the Near East, obra na qual procura demonstrar

a existência de uma língua grega fora da Grécia e, em consequência, tenta provar que

havia um povo grego que entrou pelo continente grego subjugando pela força os povos

nativos.

Robert Drews inicia sua tese resumindo brevemente como o problema da origem

dos Gregos foi abordado por historiadores, filólogos e linguistas ao longo do tempo.

Considera o estudioso (1988, p. 3), desde a posição radical de George Grote, no final

do século XIX ─ para o qual as perguntas sobre a origem e a identidade dos gregos

seriam objeto apenas de especulação, porém não de investigação ─, até a teoria do

tronco linguístico Indo-europeu que fora esboçada em 1786 por Sir William Jones,

fundamentada e trazida à luz por Franz Bopp com a publicação, em 1833, da obra

Vergleichende Grammatik. Desde então, a questão sobre a origem do povo grego foi

abordada numa perspectiva linguística. Este é, pois, a linha de argumentação que

25

Cumpre observar que John Chadwick compartilhava da tese das levas migratórias. Em um artigo publicado em 1956 cujo título é The Greek Dialects and Greek Pre-History, ele expõe sua opinião sobre o assunto. Só posteriormente o autor abandona a tese tradicional e propõe a teoria abordada nesse capítulo.

38

Robert Drews adota em seu livro, ou seja, para ele, os falantes de indo-europeu eram

Gregos recém-chegados ao continente no Heládico Médio. (2000 a. C a 1600 a. C)

Após determinar sua linha de investigação sobre estes invasores e identificá-los

com os indo-europeus nos primeiros capítulos de seu livro, Robert Drews (1988, p.

74ss) passa a expor algumas de suas características culturais e tecnológicas,

mormente em relação ao aparato bélico, isto é, o carro de combate26 e o uso do cavalo.

Estes dois importantes elementos possibilitaram a conquista do território e o domínio

da população nativa. Acrescente-se, ainda, que esses invasores beligerantes eram de

tipo físico mais robusto que os habitantes nativos da Grécia do Heládico Médio. Tal é a

conclusão a que chega Robert Drews (1998 p. 158) tendo em vista a compleição dos

corpos encontrados nos túmulos micênicos, corpos que, para o autor, são restos

mortais de indo-europeus estabelecidos no continente27.

Deve-se atentar, no entanto, que, de acordo com essa tese, há identificação

entre indo-europeus e Micênicos e, posto que estes últimos, pelo menos alguns deles,

escreviam, a língua grafada seria um proto-indo-europeu, fato que aventa a hipótese,

segundo o estudioso, da existência de uma língua grega fora da Grécia. A tese de

Robert Drews, portanto, se opõe à de John Chadwick.

Após a exposição de dados que permitiram apreender que, já na Antiguidade, a

língua era um fator de identificação do povo grego, bem como as controvérsias sobre

sua formação, convém retomar a pergunta inicial proposta por John Chadwick sobre a

identidade daqueles que escreveram as tabuinhas de Linear B.De fato, levando-se em

conta o registro linguístico, não há como negar que os Micênicos eram gregos porque

eram falantes que tinham como língua nativa um dialeto grego, o primeiro registrado e

legado como evidência para a posteridade. Essa será, pois, a tese adotada nesse

capítulo a fim de demonstrar, com base nos costumes desse povo, o tratamento que

26

Robert Drews (1988, pp. 136-57) expõe de maneira clara a controvérsia que imperou entre os pesquisadores sobre o uso do carro de combate pelos indo-europeus. Após argumentar contra aqueles que negavam este fato, o autor conclui o seguinte: “Em resumo, a superioridade do carro de combate explica suficiente e congenitamente o que os falantes PIE (e seus vizinhos cocheiros) foram hábeis para fazer nos meares dos séculos do segundo milênio a.C. e por que o fizeram.” 27

Note que Walter Burkert (1995, p. 40) tem a mesma opinião de Robert Drews: “Por outro lado, é precisamente a língua que conduz à pré-história: a língua grega pretence ao grupo das línguas indo-europeias e a reconstrução científica de uma língua indo-europeia originária contém em si o postulado da existência de um povo de Indo-europeus no quarto ou terceiro milênio. Contudo, a tarefa assim definida de colocar numa relação inequívoca os resultados da investigação linguística e os achados da pesquisa dos solos, parece revelar-se insolúvel: nem a primitiva pátria dos indo-europeus, nem a penetração dos gregos indo-europeus na Grécia, nem mesmo a muito posterior invasão dórica, historicamente comprovada, pode ser demonstrada irrefutavelmente na base dos achados nas escavações, da cerâmica, ou das formas de inumação.”.

39

davam aos mortos e, consequentemente, suas possíveis concepções sobre o post-

mortem.

2.3 Os Micênicos e o mundo dos mortos

As concepções sobre o cuidado que os Micênicos davam a seus mortos foram,

segundo Chrysanthi Gallou (2002, p. 2), por muito tempo, orientadas pelas pesquisas

de George E. Mylonas, segundo o qual não existia, naquela civilização, nenhum

respeito pelo morto após a decomposição do cadáver e, consequentemente, não se

lhes prestava qualquer tipo de culto. Conforme a autora, dessas afirmações, dada a

ampla aceitação da mencionada tese entre os estudiosos, não havia motivação para

novas indagações sobre o tema, e o cenário das pesquisas só começou a mudar com

exames do sarcófago de Tânagra que possibilitavam novas interpretações sobre as

práticas funerárias do povo micênicoe do culto aos mortos.

Ao contrário da tese de George E. Mylonas, Chrysanthi Gallou (op. cit.; p. 3)

afirma que existia culto aos mortos no Heládico Tardio IIIA-B, ou seja, entre

1425/1390/1190/1180 a. C, e os Micênicos não consideravam seus ancestrais apenas

corpos inertes e decompostos, mas entidades que habitavam entre as esferas do

humano e do espiritual, invocadas com a finalidade de proporcionar benefícios à

comunidade. O exame de material arqueológico, como a cerâmica, a arquitetura, a

iconografia e o Linear B, fundamenta a tese da autora que, em seu trabalho, trata de

questões referentes ao post-mortem e à sobrevivência da alma. Convém, pois,

explicitar os principais argumentos da tese de Chrysanthi Gallou que escolheu como

objeto de análise os principais tipos de túmulos utilizados pelo povo micênico, a câmara

funerária e o thólos.

Chrysanthi Gallou (op. cit. p. 23) considera que a tradicional afirmação de que os

Micênicos não praticavam culto aos mortos evitava ou rejeitava qualquer discussão

contrária. No entanto, comenta a estudiosa que a descoberta de um altar (brótos)

circular, aparentemente ligado a cerimônias fúnebres, na área da sepultura do ciclo A,

em Micenas, impõe uma interpretação adversa à opinião comum. A autora passa,

então, a examinar e a explicar por que o túmulo circular A se tornou evidência para

uma melhor compreensão do estabelecimento da veneração aos ancestrais no

Heládico Tardio III A-B na Grécia.

40

A pesquisadora inicia a discussão do tema com a elucidação das dificuldades

encerradas no termo ritual, já que ele engloba uma série de significados e funções.

Chrisanthy Gallou (2002, p. 25) observa ainda que, infelizmente, no ambiente da

arqueologia, o ritual é definido pela ausência de uma explicação funcional ou racional,

ou seja, se algum ato ou prática não pode ser explicado nesses termos, ele é definido

como um ato ou prática ritual. Chrisanthy Gallou considera o termo ritual um clichê:

A palavra ritual é um clichê, ao mesmo tempo, ambicioso, obscuro e também revelador. Nas disciplinas Arqueologia, Antropologia e Sociologia, o ritual tem sido tomado como um propósito, uma atividade humana pré-ordenada realizada em um tempo particular e em um espaço com o explícito propósito de mudança social ou do estado emocional quer do indivíduo quer do grupo. A realização organizada das atividades estava destinada a influenciar poderes espirituais ou drw/mena, coisas feitas, lego/mena, coisas ditas ou cantadas,

deiknu/mena, coisas exibidas ou contempladas em uma epifania. Rappaport define ritual – ambos, humano e animal, religioso e secular – como atos convencionais de exibição através dos quais um ou muitos participantes transmitem informações sobre seus estados psicológico, fisiológico ou

sociológico ou para eles mesmos ou para um ou mais participantes (GALLOU, 2002, p. 25. Tradução nossa).

Após apresentar a dificuldade inerente ao termo ritual, a autora se detém na

expressão “ações rituais” que Matz, em Rituelle bewirkung, (apud Chrysanthi Gallou,

op. cit., p. 26), define como ações cujos propósitos são a comunicação e a apelação

entre os humanos e as divindades a fim de que estas intervenham no mundo material.

Essas ações são caracterizadas pela periodicidade e pela intencionalidade envolvendo

também um comportamento ritual que se manifesta no espaço e no tempo, isto é,

ocorre de tempos em tempos e em espaços religiosos ou ambientes de significados

simbólicos e com o manuseio de objetos representativos.

Chrysanthi Gallou (op. cit., p. 28) , a fim de dar esclarecimentos, elenca também

os quatro critérios arqueológicos estabelecidos por Renfrew para determinar o ritual

religioso que, ao que parece, é identificado como “ação ritual”. São eles: o foco de

atenção, a zona fronteiriça entre este mundo e o outro, a presença da divindade e, por

fim, a participação e as oferendas. Assim, lançando mão desses critérios, a autora

avança na investigação de seu tema, o culto dos mortos.

Por considerar que a essência do culto religioso é a realização de atividades

expressivas de adoração a um ser transcendente, praticadas por um celebrante

religioso, Chrysanthi Gallou (op. cit., p. 28), utilizando-se dos critérios arqueológicos

estabelecidos por Renfrew para determinar o ritual, propõe-se analisar o termo culto,

41

antes de considerar a prática do culto aos mortos realizada pelos Micênicos. Porém,

não obstante sua proposta, a autora não se preocupa em dar uma definição hermética

ao termo culto, limitando-se a elencar uma série de hipóteses feitas por pesquisadores

que estabelecem critérios arqueológicos para o reconhecimento da atividade de culto.

Assim, com base na sinopse de Parker Pearson, a referida estudiosa afirma que

frequentemente a realização (performance) do ritual revela o mundo espiritual, as

divindades ou os ancestrais e serve para declarar a verdade sobre o significado da

vida e da morte. O ritual lida, pois, com realidades que estão além do momento da sua

realização no tempo cronológico28. Parker Pearson (apud Chrysanthi Gallou, op. cit. p.

26) ainda estabelece a distinção entre vivos e mortos, mundano e ritual, sagrado e

profano e enfatiza que o ritual de adoração envolve atos de propiciação e

reconhecimento de um poder transcendental superior.

Considerando-se da crítica feita por Wright aos critérios estabelecidos por

Renfrew que, segundo o referido pesquisador (apud Chrysanthi Gallou, op. cit., p. 28),

cria um método de investigação e identificação de locais de adoração sem validade

para o estudo da religião enquanto sistema estrutural de crenças, Chrysanthi Gallou

(op. cit., p. 28) pondera que os estudos arqueológicos de Wright sugerem que os

arqueólogos podem reconstruir o passado religioso de um povo observando e

reconhecendo seu comportamento em relação à religião. Esse comportamento incluiria

concepções e valores que quase sempre são representados por símbolos com formas

físicas em objetos, em espaços de adoração e na configuração de outros espaços

sociais.

Essas manifestações físicas são objetos de pesquisas dos arqueólogos que

lidam com religião em seus estudos. Essa é a linha de orientação que Chrisanty Gallou

adota porque seu trabalho é, antes de tudo, arqueológico. Por esse motivo, a autora,

conforme se mencionou anteriormente, escolheu como objetos de análise os principais

tipos de túmulos utilizados pelo povo micênico, a câmara funerária e o thólos.

Uma vez estabelecido que o culto consiste em atividades de adoração e o rito,

uma parte, talvez a mais importante, do culto, e assentado que o comportamento

religioso de um povo necessariamente deixa vestígios físicos, Chrysanti Gallou (op. cit.,

p. 29) considera que a ênfase na dicotomia corpo/alma e também as crenças advindas

28

Mircea Eliade considera que toda ação ritual é a atualização de um tempo passado, ou seja, no momento da realização do ritual, o tempo cronológico não tem significado porque, na verdade, na performance, há a materialização real do tempo em que o primeiro ato ritual ou a realidade que ele

evoca foi transmitido.

42

da percepção destes dois elementos motivaram pesquisas nas áreas de religião e de

culto aos ancestrais.

O primeiro autor que relacionou a morte com a divindade foi Evemero29, (apud

Chrysanthi Gallou, 2002, p. 29), autor siciliano do século IV a. C. Sua doutrina ficou

conhecida como euvemerismo que defendia a adoração aos deuses como oriunda do

culto aos mortos, ou melhor, as divindades às quais se prestavam culto outrora foram

mortais com poderes extraordinários em vida e foram mais honrados que os mortos

comuns. As consequências dessas honrarias acentuadas foram, pois, a imortalização,

a divinização e a transferência para a esfera do sobrenatural.

Assim, segundo Frazer (apud Chrisanty Gallou, 2002, p. 30), essa adoração dos

mortos pressupõe antes a crença na imortalidade da alma ou, pelo menos, sua

sobrevivência por algum tempo depois do sepultamento, doutrina que se torna muito

aceita no século XIX, como bem observa a autora:

Porém, a crença do século XIX de que da adoração ao ancestral, associada, como ela é, ao fato universal da morte, se originou da forma arquetípica de religião primitiva formadora da raiz de todas as religiões, há muito está ultrapassada. Estudos posteriores sobre o tema têm proporcionado estimulantes pontos de acesso a problemas relacionados com a religião, sociedade e cultura, e também com uma associação inescapável entre escatologia e teologia. Estudiosos colocaram uma distinção entre ritos funerários e adoração ao morto. Hardacre argumentou que os ritos de morte, incluindo os ritos mortuários e funerários, são considerados como pertencentes à esfera do culto ancestral somente quando os ritos memoriais, estendidos além do período da morte e da disposição do cadáver, são realizados como função regular do grupo que reina; quando os ancestrais são coletivamente e regularmente alçados ao estado de culto por seus descendentes que agem como membros do grupo que reina, tais práticas são consideradas como culto

ao ancestral (GALLOU, op. cit., p. 31.Tradução nossa).

No entanto, a fim de que não haja confusão ou coincidência entre as duas

concepções, cumpre observar a diferença existente entre os ritos funerários e o culto

aos mortos, pois os pesquisadores estabelecem entre esses dois conceitos uma nítida

diferença, como bem assinala Chrysanthi Gallou (op. cit., p. 31).

29

Evemero pertencia à Escola Cirenaica fundada por Aristipo. Guilhermo Fraile (1965, p. 277) faz o seguinte comentário a respeito de sua doutrina filósófica: “Ainda que não seja de todo certo que Evemero de Messina (317-297) tenha pertencido à Escola Cirenaica, sem dúvida seu escrito i9era\ a0nagrafh/ significa também uma atitude negativa diante da religião. Evemero não negava a existência de toda divindade, porém explicava a origem dos deuses da mitologia atribuindo-a ao fato de que alguns homens antigos, ilustres por sua sabedoria, por seu poder ou por suas façanhas, chegaram a ser considerados como divindades” (Tradução nossa).

43

Segundo a pesquisadora, Hardacre (apud Chrysanthi Gallou, 2006, p. 31)

defende a tese de que aos ritos aos mortos, dos quais os rituais funerários e os rituais

mortuários são parte, se processam somente enquanto há a exposição do corpo por

ocasião do sepultamento ou quando o grupo ao qual o morto pertencia faz memória

deste evento. Quando os descendentes do morto conferem a este ancestral um status

de culto regular, constitui-se, então, o culto ao ancestral.

O culto ou os ritos referentes aos ancestrais expressariam uma preocupação

com as atividades dos vivos, nas quais o ancestral, alçado a um status sobrenatural

participaria das atividades estabelecendo-se, desse modo, uma interação entre vivos e

mortos. Como anotou Hardacre, os ritos aos mortos se refeririam apenas às atividades

do sepultamento.

Ainda a respeito do culto aos ancestrais, Chrysanthi Gallou (2002, p. 31.)

menciona Parker Person segundo o qual a formalização do culto ao ancestral é

compreendida como a tomada de consciência da presença do morto e de sua

expressão em contraste com a transitoriedade da vida natural e o assentamento de um

conjunto de crenças relacionadas com a presença e com os poderes do ancestral.

Chrysanthi Gallou corrobora a tese de Parker Person do seguinte modo:

Em muitas sociedades, acreditava-se que os ancestrais fossem seres imortais cujas posições ontológicas repousavam entre as esferas humanas e sagradas. Eles podem ser considerados como detentores de poderes equivalentes ao de uma divindade e, portanto, pode lhes ser concedido status de culto e eles podem ser considerados capazes de influenciar a sociedade de uma forma

semelhante (GALLOU, op. cit, p. 3. Tradução nossa).

Assim, com base nas teses dos mencionados autores, Chrysanthi Gallou conclui

que numa perspectiva cosmológica, a proximidade da reverência ao ancestral com as

ideias de alma e de post-mortem está vinculada a uma concepção de herança e de

sucessão. O culto aos ancestrais, portanto, daria forma a um sistema religioso no qual

as fronteiras entre o religioso e o social seriam tênues.

2.3.1 O culto dos mortos

A investigação empreendida por Chrysanthi Gallou (2002, p. 33) acerca do culto

aos ancestrais e do culto aos mortos em Micenas parte da concepção de que essa é

uma prática fundamentada em uma crença quase universal. A morte não é o fim de

44

tudo, e o seu significado é desde sempre parte das transformações metafóricas

concebidas pela humanidade em relação à vida e à morte. Apoiada nos estudos de

Grainger (apud Chrysanthi Gallou, op.cit., p. 33), a autora afirma ainda que há uma

relação estreita entre religião e morte porque esta demanda questões de natureza

ontológica e teológica sobre o significado, a origem e o propósito da vida.

A controvérsia sobre o fato de os Micênicos praticarem ou não o culto aos

mortos e, em consequência, de acreditarem na sobrevivência da alma alçada à

condição sobrenatural, advém da interpretação de uma estrutura encontrada por

Schliemann em 1876 no centro da sepultura IV no Túmulo Circular A em Micenas30. Em

razão de suas particularidades, essa estrutura foi interpretada como um primitivo altar

para ritos funerários realizados em honra aos que ali se encontravam sepultados

(Chrysanthi Gallou, 2002, p. 53).

Desse modo, embora a tese de George E. Mylonas, cuja opinião era de que os

Micênicos não se interessavam pelos mortos e, em consequência, não praticavam um

ritual a eles dirigido, se tenha disseminado e tenha sido defendida por muito tempo,

Chrysanthi Gallou afirma o contrário. Seus argumentos sobre o tema são sustentados

com base, principalmente, nas evidências arqueológicas e corroborados por

concepções elaboradas por antropólogos, arqueólogos e sociólogos.

2.3.1.1 Evidências arqueológicas

As pesquisas sobre o culto aos mortos entre os Micênicos ganham força no

século XIX, segundo Chrisanty Gallou (op. cit., p. 34), com a descoberta de um túmulo

circular em Micenas, mais especificamente uma estrutura encontrada no local do

sepultamento, isto é, um plano cúltico considerado um altar. Essa descoberta levou

pesquisadores a questionarem se os habitantes da região já praticavam tais cultos no

Heládico Tardio (1500 a 1100 a. C). A autora ainda afirma que, segundo Kavvadias, o

culto aos mortos, praticado na cultura minoico-micênica, não ocorria somente nas

30

The controversial theory that the rulers of early Mycenae were commemorated and offered divine honours is principally the consequence of Schliemann's original interpretations. The discovery of the so-called altar, the enshrining of the six royal Shaft Graves with the circular parapet and the special arrangements made in order to include this burial ground with the defence walls have been considered the best evidence for the divine character of those reposed therein. However, objections and doubts have been expressed on the authenticity of the altar and even as regards the reliability of Schliemann's descriptions of the finds, arguments strengthened by the actual lack of the structure and detailed archaeological data (GALLOU, 2002, p. 53).

45

áreas de sepultamento, mas eram praticados também nas casas e seriam motivados

pela necessidade de aplacar a ira do morto e também pelo desejo de atrair benefícios.

Convém observar que a tese de Kavvadias, conforme mencionada por

Chrysanty Gallou, é muito semelhante àquela defendida por Fustel de Coulanges em

seu livro A Cidade Antiga:

Essa religião dos mortos parecia ser a mais antiga existente entre os homens. Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os mortos; teve medo deles, dirigiu-lhes preces. Parece que essa é a origem do sentimento religioso. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a ideia do sobrenatural, e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos olhos. A morte foi o primeiro mistério; ela colocou o homem no caminho de outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o invisível, do

passageiro para o eterno, do humano para o divino (COULANGES, 1961, p. 48).

Fustel de Coulanges, como se pode notar, compreende a morte como o

elemento deflagrador da consciência de uma natureza sobrenatural e,

consequentemente, também do início do sentimento religioso. O medo dos mortos,

para o autor, teria levado o homem a oferecer-lhes preces, em outras palavras, a

devotar-lhes culto. O autor, portanto, tem a mesma concepção de Kavvadias, conforme

mencionada por Chrysanthi Gallou.

Erwin Rohde é outro autor que concebia o medo dos mortos e suas influências

no mundo dos vivos considerando, pois, ter sido esse o motivo que levou à cremação

dos mortos, principal forma de desfazer-se do cadáver nos Poemas Homéricos. Essa

é, pois, a tese do autor (1948, p. 25) segundo o qual entre os gregos existia, outrora, o

temor de que as almas dos mortos fossem apegadas ao mundo dos vivos e

desejassem viver junto ao antigo domicílio. O autor ainda considera que em algum

momento os gregos acreditaram que os mortos pudessem influenciar o mundo dos

vivos e que essa crença não se relacionaria com a adoração, mas com o medo.

Ora, se havia entre os primeiros gregos a crença de que as almas dos mortos

pudessem retornar para o mundo dos vivos, Erwin Rohde (1948, p. 27) conclui que

parece lógico deduzir que o culto da alma não se limitava às cerimônias realizadas no

momento do sepultamento e que haveria um prolongamento de atividades de culto

depois da conclusão dos ritos funerários.

A evidência dessa prática é o altar, encontrado no túmulo circular em Micenas,

que Chrysanthi Gallou mencionou como o elemento que reconsidera a questão sobre a

46

prática do culto dos mortos entre os Micênicos. A pesquisadora descreve o altar do

seguinte modo:

Em seis de dezembro de 1876, Schliemann anunciou a descoberta de uma estrutura elíptica circular de alvenaria na forma de poço que marcava precisamente o centro do Shaft Grave IV no GCA em Micenas. Esse monumento está agora perdido, mas, de acordo com a descrição e os desenhos publicados, essa estrutura oca era construída de quatro a cinco fileiras de pedras presumivelmente não trabalhadas dispostas em um anel duplo medindo um 1,22 centímetros de altura por 2,13 x 1,60 de comprimento e largura. O escavador reconheceu nessa estrutura peculiar um primitivo altar para ritos funerários realizados em honra daqueles que estavam sepultados no Círculo, e assentou sua crença na descoberta de duas lajes retangulares em forma de lápides com cerca de 85 centímetros de altura e 45 centímetros de largura e uma pequena coluna que colocada em posição horizontal debaixo do altar devia servir para marcar o lado da sepultura (GALLOU, 2005, p. 53. Tradução nossa).

Vê-se desse modo, pela descrição feita por Heinrich Schliemann (apud

Chrysanthi Gallou, op. cit. p. 53) que a estrutura encontrada pode claramente ser

interpretada como destinada à prática do culto dos mortos, que não se restringia ao

momento do sepultamento, mas prolongava-se em ações cultuais realizadas naquele

local.

Essa função foi confirmada por Keramopoullos (apud Chrysanthi Gallou, op. cit.,

p 53) que descobriu, nas áreas dos túmulos I e IV, buracos escavados na rocha que

formavam aberturas entre as sepulturas, nas quais, ocasionalmente, foram

encontrados objetos destinados ao culto. Essas aberturas artificiais estavam fechadas

com tijolos queimados. O fato de essas aberturas terem sido fechadas com tijolos foi

interpretado como a suspensão temporária das atividades de culto aos mortos ali

praticados, por ocasião do colapso da civilização micênica, e só retomadas no período

arcaico.

As interpretações da estrutura encontrada por Heinrich Schliemann têm sido

controversas, e o fato de ela ter se perdido torna o problema ainda mais complicado,

muito embora, as escavações posteriores, como as de Keramopoullos, apontem

evidências de um culto aos mortos, não obstante as mencionadas objeções de George

E. Mylonas. Também Tsountas e Manatt (apud Chrysanthi Gallou, 2002, p. 55)

compartilham a tese de que o altar encontrado por Heinrich Schliemann era destinado

ao oferecimento de libações aos mortos e que as aberturas encontradas nos túmulos

47

eram destinadas ao escoamento de bebidas e sangue de vítimas sacrificadas. Esses

líquidos escoariam pelas aberturas até o mundo dos mortos.

A função do altar e o prolongamento da ação ritual nele praticada, isto é, do

oferecimento de libações destinadas aos mortos depois do sepultamento, foram

também defendida por Erwin Rohde:

Sobre o centro da quarta fossa de sepultamento descoberta na fortaleza daquela cidade, identificou-se um altar, que só pode ter sido erguido ali no momento de cobrir e de fechar a fossa. Trata-se de um pequeno altar redondo e oco que não aparece fechado nem por cima nem pela parte de baixo por uma laje. É uma espécie de canal que sai diretamente da terra. O sangue do animal sacrificado ou a mistura formada pelos líquidos que se combinavam para o sacrifício, ao ser derramado pela abertura do altar, fluíam diretamente para

debaixo da terra até o morto (ROHDE 1948, p. 27, tradução nossa).

É interessante observar que o referido autor (Erwin Rohde, op. cit., p. 27) afirma

que não se trata de um altar destinado ao culto dos deuses, mas sim de um local de

sacrifícios para os poderes subterrâneos. Por essa razão, não se pode inferir que o

altar ali disposto fosse um lugar de oferenda aos deuses durante os ritos funerários.

Acrescenta-se que os deuses referidos são aqueles relacionados com a morte.

Emily Vermeule (1981, p. 37) corrobora indiretamente essa tese ao afirmar que

as divindades do mundo subterrâneo, Hades e seu agente executor, Thánatos, não

possuíam culto de adoração sistemática. A negação de culto a esses deuses e o

sentimento negativo que eles provocam são muito bem expressos no verso 312 do

canto IX de Ilíada: e0xqro\v ga/r moi kei~nov o9mw~v 0Ai5dao pu/lh|sin. (De fato, semelhante

aos portões do reino de Hades, aquele me é odioso). Com essa fala dirigida a Odisseu,

Aquiles expressa toda a sua repulsa e ódio (e0xqro\v)31 ao homem que fala algo embora

tenha outra intenção em mente. O sentimento de repulsa provocado em Aquiles por um

homem dissimulado é semelhante àquele provocado diante do fato de a vida ter a

morada dos mortos, a casa de Hades, como destino último.

Talvez a repulsa e a rejeição a um culto aos deuses relacionados com a morte

tenha feito com que não houvesse na Hélade templos dedicados a Hades ou Thánatos.

31

No verso 62 de Alcéstis, Eurípides deixa evidente o sentimento que a morte causava nos homens e nos deuses quando Thánatos afirma que Apolo lhe conhece o caráter. A essa afirmação responde o filho de Leto: 0exqrou/v ge qnhtoi~v kai\ qeoi~v stugoume/nov. (Sim. Odiosa para os mortais e rejeitada pelos

deuses).

48

Caso excepcional parece ter ocorrido em Esparta onde, conforme Robert Garland

(1985, p. 59), se tem notícias de um templo erguido para Thánatos.

Assim, posto que não existiria adoração aos deuses relacionados com a morte, a

estrutura encontrada por Heinrich Schliemann e identificada como um altar só poderia

estar vinculada ao culto dos mortos, um local onde oferenda e libações eram

destinadas àqueles que ali se encontravam sepultados.

Constitui também outra importante evidência arqueológica da crença micênica

no mundo dos mortos as imagens do sarcófago de Tânagra porque, conforme

Chrysanthi Gallou (2005, p. 92), com ele novas perspectivas de interpretação foram

abertas uma vez que nesse artefato está a mais completa representação artística das

práticas funerárias micênicas. Ao comentar aspectos da arte micênica, Janice L.

Crowley faz a seguinte afirmação:

Um desenvolvimento tardio da técnica de pintura é vista no Heládico Tardio IIIB

no sepultamento larnakes (ataúde de cerâmica) originário de Tânagra. [...] O

estilo pode ser tosco, mas está cheio de vigor. Algumas cenas se desenvolvem

com base em afrescos tradicionais, mas outras mostram novos assuntos. Os

novos motivos mais importantes são os temas funerários: o verter libações, a

lamentação das mulheres e a próthesis (lamentação do morto no ataúde [...]

(CROWLEY, 2008, p. 272. Tradução nossa).

Naturalmente, as cenas descritas não expressam de modo evidente que

concepções escatológicas motivavam as práticas representadas nas pinturas, porém

elas permitem perceber que o uso de tais motivos denota se não uma preocupação,

pelo menos uma tentativa de reflexão sobre os gestos utilizados no rito de

sepultamento.

Sobre libações, semelhantes àquelas anteriormente mencionadas por Janice L.

Crowley, Emily Vermeule, (1979, p. 57) considera que os líquidos eram muito

importantes para os mortos, até mais que as oferendas de alimentos. A pesquisadora

assenta sua afirmação no fato de que também no sarcófago de Hagia Triada o ato de

verter líquidos em favor do morto está bem evidente. A dedução de Emily Vermeule,

portanto, é que os mortos eram tidos como seres que tinham sede. A evidência disso

seria a palavra di-si-jo-i grafada nas tabuletas de Linear B. Essa palavra, já presente no

dialeto micênico, corresponde, para a autora, à di/ya (sede), presente na língua grega

posterior.

49

Além das evidências arqueológicas apresentadas, isto é, a estrutura descoberta

por Heinrich Schliemann no túmulo IV GCA e as imagens grafadas nos sarcófagos de

Tânagra e Hagia Triada, outras mais poderiam ser elencadas aqui, principalmente,

imagens e figuras votivas encontradas em túmulos ou em ambientes de ritos

funerários. No entanto, por não se tratar de uma pesquisa sobre arqueologia da morte,

esse procedimento poderia tornar o texto excessivamente técnico e particularmente

enfadonho.

2.3.1.2 Evidências literárias

Se, por um lado, o exame de dados arqueológicos que evidenciam a crença

micênica no mundo dos mortos é mais fácil por causa da materialidade dos achados

ainda que nisso haja sempre perigo de excesso de interpretação considerando-se a

subjetividade dos pesquisadores e o desejo de comprovar teses variadas , por outro,

as evidências literárias apresentam um grau de dificuldade bem mais acentuado

porque os Micênicos não legaram registros literários escritos para a posteridade.

Assim, resta ao estudioso do tema apenas levantar hipóteses com base em indícios

linguísticos e imagéticos.

Há duas vias que podem ser seguidas no estudo da literatura micênica: uma

denominada linguística, porque busca evidências dessa literatura e coteja suas

possíveis características com os Poemas Homéricos, que teriam herdado modelos

formulares de cantos aos heróis, e outra que usa as imagens de performance poética

como prova de uma literatura que era essencialmente oral. Convém, pois, que essas

duas vias sejam esclarecidas.

Talvez a propagação da escrita e seu uso no registro da literatura tenha

influenciado a busca de vestígios de uma atividade poética micênica que utilizasse os

sinais grafados no Linear B. Diferente, porém, do que ocorreu com os textos

descobertos no Oriente Médio escritos em cuneiforme, o Linear B, decifrado por Michel

Ventris e John Chadwick, não revelou textos literários de natureza alguma.

A escavação de palácios no Oriente Próximo revelou imensos arquivos de tabuinhas, muito maiores e mais detalhadas do que quaisquer outras oriundas da Grécia micênica. Também foram encontrados entre elas anais, quando não, verdadeiras histórias, correspondência diplomática, tratados e mesmo textos religiosos e literários. A Linear B não produziu nada dessa espécie, e poder-se-ia duvidar que esse sistema de escrita fosse adequado a tais propósitos, ele parece ter sido delineado unicamente com o intuito de escrever registros, uma

50

forma de ampliar a memória coletiva dos administradores. (CHADWICK, J. 1996, p. 209).

A afirmação de John Chadwick é esclarecedora. De fato, não se verifica nas

tabuletas de Linear B nenhum registro literário, o que não significa que os Micênicos

não possuíssem uma literatura.

O problema é que o termo literatura conduz imediatamente ao conceito de texto

escrito. Evidentemente, isso é um equívoco porque o fenômeno narrativo intrínseco à

literatura se expressa, primeiramente, de forma oral, e só em um momento posterior,

configura-se como texto escrito. As palavras de Monika Fludernik sobre o assunto

pontuam bem a questão:

A palavra narrativa, de toda maneira, está relacionada com o verbo narrar. Narrativa é tudo a nossa volta, não só um romance ou um escrito histórico. Narrativa é associada, sobretudo, com o ato de narrar e é encontrada em qualquer lugar em que alguém nos fala alguma coisa: um locutor de notícias no rádio, um professor na escola, um colega de escola no pátio, um passageiro no trem, um agente de notícia, o companheiro de alguém sobre o café da manhã, um repórter de televisão, um colunista de jornal ou o narrador no romance com o qual nos alegramos antes de ir para a cama. Todos nós somos narradores em nosso dia a dia, em nossas conversas com outros, e algumas vezes somos até narradores profissionais (poderia acontecer que fôssemos professores ou comediantes). Há ocasião em que nós até tomamos o papel do narrador, por exemplo, quando lemos [...] (FLUDERNIK, 2009, p. 1. Tradução nossa).

A atividade narrativa é, portanto, em sua essência, oral. Assim, a literatura, em

seus primórdios, se apresentava como uma atividade oral. Ora, àqueles que não

puderam encontrar no Linear B uma literatura micênica, escrita nos moldes daquela

encontrada nas tabuletas de cuneiforme, restava procurar traços da literatura oral na

poesia grega escrita representante de uma tradição poética mais antiga, ou seja, nos

Poemas Homéricos. Essa busca não visava ao conteúdo narrativo, pois Ilíada e

Odisseia apresentam claramente elementos micênicos, mas antes a encontrar nas

epopeias traços linguísticos semelhantes àqueles presentes nas tabuletas de Linear B.

Essa é, pois, a proposta de T. B. L. Webster que, em seu livro From Mycenaean to

Homer, publicado em 1964, examina, no quarto capítulo, cujo título é Mycenaean

Poetry, supostas formas gramaticais micênicas empregadas pelos aedos no momento

da execução dos poemas ou no momento da composição das epopeias.

T. B. L. Webster (1964, p. 93) afirma que as mais interessantes características

gramaticais registradas no Linear B são o genitivo, que possui as formas -oio, -ao e -

51

aon e a terminação -phi própria do instrumental. A tendência de evitar as contrações

vocálicas também é apresentada pelo autor como um aspecto particular do grego

micênico. O autor sustenta que a manutenção dessas formas gramaticais em Homero

constitui a evidência de um modelo micênico de poesia e acrescenta: “De qualquer

modo, frequentemente, a combinação de uma forma com um tema micênico aponta

para a sobrevivência de um fragmento de poesia micênica.”32 (WEBSTER, T.B.L. 1964,

p. 93).

Ainda são apresentadas pelo citado pesquisador (1964, p. 94) formas léxicas

consideradas por ele estranhas no tempo de composição dos Poemas Homéricos. Por

esse motivo, foram elas interpretadas como acréscimos tardios feitos por poetas

distintos. Essas formas seriam, conforme o autor, por exemplo, glaukw~piv 0Aqh/nh,

Go/rgw blosurw~piv, bow~piv po/tnia #Hrh. Porém, embora pudessem ter um conteúdo

ininteligível para a audiência do poeta, as duas primeiras fórmulas, anotou T. B. L.

Webster, poderiam ser associadas a divindades micênicas que possuíam forma de

pássaros.

Essa relação estabelecida pelo pesquisador fundamenta-se no fato de os

Micênicos falarem um dialeto grego, e a decifração do Linear B permitiu que se

descobrisse a origem das expressões acima mencionadas. Observou o estudioso que

os adjetivos femininos presentes nas formas citadas referentes a glaukw~piv 0Aqh/nh,

Go/rgw blosurw~piv e bow~piv po/tnia #Hrh têm em sua formação vocabular o sufixo -

wpiv, que possui a forma masculina –wpv, frequente em nomes micênicos, motivo que

levou Leumann (apud T.B.L WEBSTER, op. cit., p. 94) a considerar o nome do herói

Glauco um hipocorístico de Glaucopis.

Outro argumento apresentado por T. B. L. Webster, a fim de ratificar a existência

de indícios de uma poesia micênica nos Poemas Homéricos, consiste em duas frases

que poderiam, segundo o estudioso, ser datadas tomando como referência as práticas

militares porque as frases se apresentam “estranhamente arcaicas” quando proferidas

por Heitor, no momento de enfrentar Ájax, no desafio proposto, conforme os versos

238-9 de Ilíada VII: oi]d’ e0pi\ decia/, oi]d’ e0p’ a0ristera\ nwmh=sai bw=n/ a0zale/hn, to/ moi e1sti

talau/rinon polemi/zein: (sei para a direita, sei para a esquerda manejar o escudo de

couro curtido de bois, para mim, guerrear é manejar o escudo:). O autor (op. cit., p. 94)

afirma que Leumann acertadamente notou, nesses dois versos, a menção a uma nova

32

Tradução nossa.

52

forma de combate, isto é, o combate da falange, retratado no vaso denominado Warrior

vase, e, por ser a representação de uma tática militar de um período posterior, os

versos seriam tardios. Porém, para Leumann (apud T.B.L. WEBSTER op. cit., p. 94) as

formas bw=n e talau/rinon, na verdade, representariam muito mais uma tradição

micênica do que um elemento tardio porque elas são registradas em tabuletas de

Linear B.

T.B.L. Webster (1964, p. 95), considerando ainda fórmulas relativas ao campo

semântico da atividade bélica, é de opinião que a expressão koruqai/olov 3Hktwr,

(Heitor de elmo de bronze) é um outro indício de poesia micênica na épica homérica.

Fundamenta-se o estudioso nas teses de Leumann (apud T.B.L. Webster) segundo o

qual esse epíteto de Heitor seria uma variante reduzida, por questões métricas, da

fórmula original kekoruqme/mov ai1qopi xalkw=| (elmo de brilhante bronze). O termo

koruqai/olov é, pois, na opinião do pesquisador, composto de ko/ruv (capacete) e

ai1olov (veloz) , o primeiro termo registrado na grafia micênica, e o segundo pode ser

encontrado em Cnossos. T.B.L. Webster ainda nota a existência de outra variante,

xalkokorusth/v (coberto de bronze) e observa que os elmos de bronze eram

característicos dos Micênicos e, provavelmente não reapareceram até o tardio século

VIII a. C. As seguintes palavras do pesquisador não deixam dúvidas sobre sua posição

em relação ao tema: “Heitor de elmo reluzente pode seguramente ser aceito como um

fragmento de poesia micênica.”.

Apesar de sumárias, as formas linguísticas elencadas com base nos Poemas

Homéricos, quando comparadas às tabuletas de Linear B, parecem indicar que elas

remontam a uma tradição poética micênica. Resta agora saber se é possível ter acesso

a concepções escatológicas dos Micênicos considerando essas evidências literárias

uma vez que elas são reconstituídas no plano da forma e não do conteúdo. A resposta

a esse questionamento é, em um primeiro momento, negativa. Porém, se a via

linguística for conciliada com a via denominada imagética, isto é, com a interpretação

de imagens que representam o tema, a resposta será positiva.

As imagens, com efeito, têm papel importante na interpretação de concepções

sobre as quais não há registros escritos. Ao se procurarem evidências da atividade

poética entre os Micênicos, o afresco encontrado no Palácio de Pilos, cuja imagem é

denominada “O Tocador de lira”, é bastante significativo. O afresco mostra um jovem

sentado segurando uma lira de cinco cordas. Imediatamente à sua frente, um pássaro

alça voo. A lira também está presente no sarcófago de Hagia Triada, dessa vez

53

empunhada por um cantor que acompanha um cortejo funerário. O exame dessas

imagens é muito importante não só para constatação de uma atividade poética em

Micenas, mas também para inferir concepções várias, entre elas, a concepção de um

post-mortem.

Mais uma vez, os Poemas Homéricos são o elo que permite deduções com base

na leitura das imagens mencionadas. Ora, a imagem do cortejo funerário, com a

presença do tocador de lira, no sarcófago de Hagia Triada, inevitavelmente, remete ao

funeral de Heitor descrito nos versos 718-24 do canto XXIV de Ilíada.

4Wv e1faq’, oi9 de\ die/sthsan kai\ ei]can a0ph/nh|. oi9 d’ e0pei\ ei0sa/gagon kluta\ dw/mata, to\n me\n e1peita trhtoi~v e0n lexe/essi qe/san, para\ d’ ei[san a0oidou\v 7 720 qrh/nwn e0ca/rxouv, oi3 te stono/essan a0oidh\n oi9 me\n a1r’ e0qrh/neon, e0pi\ de\ stena/xonto gunai~kev. Falou desse modo, e eles ficaram à parte e deram passagem ao carro. Mas quando eles entraram no nobre palácio, e em seguida o colocaram em um leito cinzelado, e junto dele fizeram sentar cantores 720 que começaram os trenos, eles que entoavam um canto doloroso, e em seguida as mulheres lamentavam. Il. XXIV, 718-22

Embora nesses versos não haja referência à lira ou a outro instrumento musical,

a imagem do tocador de lira que acompanha o cortejo fúnebre representado no

sarcófago de Hagia Triada permite supor que a presença de um músico no momento

de profunda lamentação pelo morto, como se depreende da cena homérica em pauta,

não é inadequada.

Um termo que não pode ter sua importância minimizada nesses versos é

qrh/nwn, genitivo plural de qrh~nov. É possível, segundo G. S. Kirk (2000, p. 352), que,

nos Poemas Homéricos, esse vocábulo tenha um significado diferente do termo go/ov

também utilizado em referência ao lamento fúnebre. Vale lembrar que esse último se

relacionava, especialmente, com o lamento de familiares do morto, enquanto qrh~nov,

ao canto realizado por músicos profissionais. Sobre esse assunto, Emily Vermeule faz

a seguinte afirmação:

Há muitas formas distintas de cantos funerários como trenos, epiquedeo, ialemos e goos. Desses, o goos é o mais intenso e pessoal; seu tema é a

54

memória das vidas partilhadas em comum e a amargura da perda. Ele sobrevive brilhantemente desde Homero até o início do século XX na

moirologia rural grega (VERMEULE, 1979, p. 15. Tradução nossa).

Após essa exposição, é possível tentar uma leitura de algumas imagens

funerárias relacionando-as com versos de Ilíada e Odisseia, ou seja, podem-se deduzir

concepções do post-mortem utilizando as vias linguística e imagética. Nessa última,

devem-se considerar não só as imagens pintadas, mas também pequenas esculturas

de terracota.

Nos Poemas Homéricos, a descrição mais comum da morte é a do abandono do

corpo pela yuxh/ que parte para o Hades, como bem exemplifica a passagem de

Odisseia em que Euricleia, a mãe de Odisseu, explica ao herói como a morte se

processa:

“w4v e0fa/mhn, h9 d’ au0ti/k’ a0mei/beto po/tnia mh/thr: 215

‘w1 moi, te/knon e0mo/n, peri/ pa/ntwn ka/mmore fwtw~n,

ou1 ti/ se Persefo/neia Dio\v quga/thr a0pafi/skei,

a0ll’ au3th di/kh e0sti\ brotw~n, o3te ti/v ke qa/nh|sin:

ou0 ga\r e1ti sa/rkav te kai\ o0ste/a i3nev e1xousin,

a0lla\ ta\ me/n te puro\v kratero\n me/nov ai0qome/noio 220

damna|~, e0pei/ ke prw~ta li/ph| leu/k’ o0ste/a qumo/v, yuxh\ d’ h0u/t’ o1neirov a0poptame/nh pepo/thtai. Assim falei, e, imediatamente, minha soberana mãe respondeu:

Ai de mim, meu filho, o mais desgraçado de todos os homens!

De modo algum, te engana Perséfone, filha de Zeus:

mas essa é a lei dos mortais, quando qualquer um morre;

de fato, não mais os tendões seguram a carne e os ossos,

mas domina-os a força poderosa do fogo ardente, 220

quando o thymós primeiramente abandona os ossos brancos,

e a psykhé, como um sonho, batendo as asas, se desvanece.

(Od. XI, 215-22)

A análise desses versos ajuda a vislumbrar uma crença post-mortem que

remonta ao mundo micênico. Note-se que a forma participial de ai1qw, em genitivo,

ai0qome/noio, verso 220, apresenta a desinência –oio que, como propôs T. B. L. Webster,

55

constitui evidência de uma atividade poética micênica que legou formas presentes nas

epopeias.

Na passagem supracitada, merece atenção também o verso 222: “yuxh\ d’ h0u/t’

o1neirov a0poptame/nh pepo/thtai” em que o sujeito do verbo pepo/thtai é yuxh/ que tem

a forma de particípio a0poptame/nh qualificando-o. O significado dessa forma participial

de a0pope/tomai, com o preverbo a0po/, refere-se, informa Pierre Chantraine, ao voo dos

pássaros, de insetos e também da alma, embora o linguista atribua a este último caso

um sentido figurado. É precisamente o significado de voo da alma ou de outros seres

de natureza sobrenatural que importa para a compreensão do assunto apresentado, já

que os versos descrevem a partida da yuxh/ para o Hades. Ora, a utilização da fórmula

a0poptame/nh pepo/thtai quando relacionada com imagens funerárias, como, por

exemplo, com a imagem da mulher morta dotada de asas, registrada em um ataúde

encontrado em Tânagra, permite afirmar que dotar a psykhé de asas, como ficou claro

no verso mencionado, é uma prática micênica que foi herdada e utilizada na poesia

posterior e também na iconografia.

As palavras proferidas por Anticleia não constituem um exemplo isolado, tendo

em vista que nas passagens referentes à partida das psykhaí de Pátroclo (Il. XVI, 856)

e de Heitor (Il. XXII, 362) para o Hades se encontram a mesma concepção de alma

alada e a mesma fórmula: “yuxh\ d’ e0k r9eqe/wn ptame/nh 1Aido/sde bebh/kei.” (e a psykhé

voando dos membros desceu na direção do Hades); a morte de Heitor é descrita com

mesma fórmula.33

Outro termo do mesmo campo semântico é ptero/eiv cujo emprego também é

formular, como em Ilíada I, 201, no verso que introduz o diálogo entre Aquiles e a

deusa Atená que descera do Olimpo a fim de refrear-lhe a ira, e também no início da

saudação de Telêmaco à deusa Atená, que assumira a forma de Mentes, rei dos Táfios

em Odisseia I, 22: “kai\ min fwnh/sav e1pea ptero/enta proshu/da:” (e falando palavras

aladas se dirigiu a ela). Nesses exemplos, fica evidente a atribuição de asas a

realidades abstratas, nos casos mencionados, à psykhé e à palavra proferida.

Sobre o hábito de atribuir asas à psykhé, ao analisar o sarcófago de Tânagra,

Emily Vermeule (1979, p. 65) afirma que nele está a primeira representação artística da

psykhé como um ser alado. A autora ainda faz a seguinte afirmação sobre o uso

dessas imagens: “Sobre outros dois ataúdes a passagem parece estar apresentada na

33

Sobre a concepção da morte como a separação de um elemento imaterial do corpo confira GONÇALVES, Alex, F. C. A Yuxh/ nos Poemas Homéricos. UFRJ, 2010

56

imagem da alma-pássaro que os egípcios utilizaram por longo tempo e os gregos

poderiam ainda considerar apropriada.”.

As palavras da autora podem ser consideradas como certas, pois, na imagem do

sarcófago de Tânagra por ela mencionada, é inegável a relação ser alado/alma. Do

mesmo modo, interpretar a figura do pássaro no afresco denominado “O Tocador de

lira” como uma possível representação da psykhé seria perfeitamente legítimo.

Sempre haverá discordância entre os pesquisadores sobre o tema do post-

mortem. Porém, as reflexões aqui apresentadas conduzem à afirmação de que os

Micênicos acreditavam no mundo dos mortos e na sobrevivência da alma. Provas

dessas crenças podem ser encontradas, como se comentou, em artefatos

arqueológicos e nas evidências literárias herdadas da tradição poética daquele povo. A

investigação do tema proposto deve ser cuidadosa para que não se incorra no mesmo

problema de Erwin Rohde criticado por Werner Jaeger (1992, p. 70) de fundamentar-

se em concepções nitidamente cristãs e fazer interpretações de realidades distintas, no

caso específico, à concepção de psykhé nos Poemas Homéricos.

Os avanços dos estudos de arqueologia e de outras ciências, como a

antropologia, a sociologia, a ciência das religiões, entre outras, colocaram em

suspenso as teses tradicionais baseadas principalmente nos escritos de George E.

Mylonas que afirmava a inexistência de um culto dos mortos em Micenas e,

consequentemente, a inexistência de concepções de realidades post-mortem.

Verificou-se, ainda, que os argumentos de Chrysanthi Gallou, contrários à

negação de concepções escatológicas, são bem fundamentados em dados

arqueológicos interpretados rigorosamente com o auxílio de conceitos de diversos

autores. Esse é, pois, o norte da argumentação aqui apresentada: os Micênicos

acreditavam no mundo dos mortos, prestavam-lhes culto e consideravam como certa a

sobrevivência da alma. Com base nessa assertiva, passar-se-á a considerar como

essas crenças estão presentes na poesia posterior, mormente nos Poemas Homéricos

e em outros poetas do período arcaico.

57

3 A ESCATOLOGIA NOS POEMAS HOMÉRICOS

Após as discussões sobre a identidade dos Micênicos e de suas crenças em

relação ao mundo dos mortos, nessa etapa da pesquisa, analisa-se de que modo as

tradições, anteriormente referidas, se apresentam nos Poemas Homéricos, que narram

o passado de heróis gloriosos cujas raízes estão fincadas naquela civilização

desaparecida com o colapso do sistema palaciano por volta de 1200 a.C34. Esclarecido

que, naquele período, os habitantes de Micenas já podiam ser identificados como povo

grego porque falavam um dialeto da língua grega, sendo esse o critério estabelecido

para determinar-lhes a identidade, não parece conveniente falar de uma sobrevivência

de elementos Micênicos na cultura grega, mormente na religião, como propõe Martin P.

Nilsson (1949). Parece mais acertado falar de continuidade de certas concepções que

atravessaram épocas distintas. Assim, a cultura denominada micênica e os elementos

que ela encerra seriam, na verdade, um estágio da cultura grega que se encontrava

naquele momento condicionada pelas vicissitudes históricas e geográficas do Heládico

Tardio35.

Um problema, porém, se impõe de imediato quando se trata de identificar

tradições escatológicas mais antigas nas epopeias: como separar as concepções sobre

o mundo dos mortos diretamente relacionadas com o período micênico e aquelas

que são próprias do século VIII a. C, época da composição dos Poemas?

Se, por um lado, a arqueologia possibilita uma separação de elementos

materiais mais antigos, como, por exemplo, o elmo de presas de javali, descrito em

Ilíada X, 260-71, as armaduras e as armas de bronze utilizadas pelos guerreiros de

34

Há um intenso debate sobre os motivos da queda da civilização micênica e, em consequência, as conclusões são controversas. Na opinião da professora Maria Helena da Rocha Pereira (1992, p. 41), a queda aconteceu por causa da invasão dória no século XI a. C. A autora ainda afirma que esse evento deixou rastro na mitologia grega, na história do regresso dos Heráclidas. John Chadwick (1975, p. 3), por outro lado, nega que tenha havido uma invasão dória porque não há evidências arqueológicas para confirmá-la. Ele considera que tais invasores existiram; porém, determinar-lhes a origem é um problema. Se fossem, por exemplo, originários da Trácia, certamente partilhariam características comuns com os Micênicos e facilmente se misturariam a eles sem lhes ocasionar o fim. Situá-los, como alguns fazem, como provenientes do Nordeste do continente, também não soluciona o problema, pois a região não ofereceria um contingente populacional para uma colonização em larga escala sem encontrar resistência dos belicosos senhores de Micenas. Claude Mossé (1994, p. 117) também rejeita a tese da invasão como causa da queda de Micenas. Para o autor, na necessidade de estabelecer uma hipótese para esse fim trágico, dado que a destruição dos palácios foi um fato real, deve-se pensar numa combinação de elementos, como a chegada de invasores, incursões vitoriosas de povos vizinhos, guerra entre senhores, conflitos internos, catástrofes naturais entre outros fatos. José Ribeiro Ferreira, em seu livro Hélade e Helenos: Gênese e Evolução de um Conceito (1993) faz uma síntese das principais teorias sobre o fim da sociedade micênica e apresenta os limites de cada uma delas. 35

Observa-se que o período em questão é dividido em Heládico Tardio A, entre 1425 e1390 a. C. e Heládico Tardio B, entre 1390 e 1180 a. C.

58

Ilíada, canto III, 371, o mesmo não acontece quando se pretende analisar ideias que

não podem ser materialmente comprovadas pela inexistência de registros escritos

sobre elas. Assim, ao pesquisar as ideias de post-mortem, os conceitos religiosos, a

relação entre o homem e as divindades, resta ao pesquisador apenas o terreno das

hipóteses.

Nos Poemas Homéricos, o tema da escatologia pode ser estudado em duas

perspectivas distintas: uma referente ao destino final dos homens sobre a Terra, o

tratamento dado aos mortos e o destino final da psykhé, a morada de Hades; e outra

concernente às concepções de post-mortem. A primeira encerra algumas dificuldades

porque implica considerações sobre os ritos funerários e todas as suas etapas, desde a

morte e a preparação do corpo até o destino final do morto, que poderia ser a

inumação ou a cremação, esta última predominante nas epopeias. Não menos

problemática se apresenta a perspectiva referente ao post-mortem, pois nos Poemas

há duas concepções distintas: o encerramento definitivo da psykhé no Hades e a

situação intermediária de Polideuces e Castor, que ora habitam o Hades, ora voltam à

terra dos vivos. Caso único que merece consideração à parte é a abdução de Menelau

que tem como destino final, por dádiva de Zeus, habitar nos Campos Elísios, lugar

destinado a uns poucos privilegiados. Sobre a psykhé no Hades há ainda de se

considerar duas concepções diferentes, uma em que ela aparece desprovida de

consciência, outra em que mantém essa faculdade.

O tema da escatologia é, portanto, complexo e apresenta-se multifacetado. Por

esse motivo, será ele estudado de forma criteriosa, a fim de que se obtenham

informações relevantes acerca dos fins últimos dos homens nos Poemas Homéricos,

que foram considerados como um todo, isto é, sem se levar em conta as discussões

referentes à partes mais antigas ou às mais recentes de sua composição, ainda que se

aceite a tese da coexistência de tradições de épocas distintas nas epopeias, como, por

exemplo, a katábasis dos pretendentes no canto XXIV de Odisseia que muitos

estudiosos consideram uma interpolação.

3.1 Seres efêmeros destinados à morte

O estudo da escatologia nos Poemas Homéricos, conforme a divisão

supracitada deve ser norteado, primeiramente, por duas afirmações: todo homem está

59

destinado a morrer e, consequentemente todas as psykhaí dos mortos têm como

morada final o reino de Hades.

A morte é um fenômeno natural do qual ninguém escapa por suas próprias

forças ou com o auxílio dos deuses. Essa é, pois, a principal concepção sobre o

destino final do homem, e é bastante incisiva como se pode perceber nas palavras que

a deusa Atená endereça a Telêmaco:

0All’ h] toi qa/naton me\n o9moi/i+on ou0de\ qeoi/ per 236 kai\ fi/lw| a0ndri\ du/nantai a0lalke/men, o9ppo/te ken dh\ Moi~r’ o0loh\ kaqe/lh|si tanhlege/ov qana/toio. Mas certamente nem os deuses podem evitar a morte comum 236 também para o homem amado quando o Destino funesto da longa morte dolorosa o colher. Od. III, 236-8

É, pois, precisamente, essa condição de seres destinados à morte que constitui

a diferença essencial entre homens e deuses. A alteração dessa condição humana

parece possível, posto que Zeus, em duas ocasiões, desejou usar seu poder a fim de

evitar a morte de heróis:

To\n d’ h0mei/bet’ e1peita bow~piv po/tnia #Hrh: “ai0no/tate Kroni/dh, poi~on to\n um~qon e1eipev. a1ndra qnhto\n e0o/nta, pa/lai peprwme/non ai1sh|, 440 a2y e0qe/leiv qana/toio dushxe/ov e0canalu~sai; e3rd’ a0ta\r ou1 toi pa/ntev e0paine/omen qeoi\ a1lloi. Imediatamente respondeu-lhe Hera soberana de olhos de vaca:

“Terribilíssimo Crônida, que natureza de palavra tu disseste!

Um homem que é mortal, há muito fadado pelo destino, 440

de novo desejas libertar da terrível morte?

Faze isso, mas certamente todos nós, os demais deuses, não te

aprovamos36”. Il. XVI, 439- 43

36

A deusa Hera acrescenta ainda, nos versos seguintes, que se Zeus agisse contra as disposições da Moira, os outros deuses poderiam fazer a mesma coisa, porque também eles possuíam descendência entre os mortais.

60

O mesmo desejo move o pai dos homens e dos deuses, ao observar a iminência

do combate final entre Aquiles e Heitor. Naquele momento, Zeus se sensibiliza com a

sorte do príncipe troiano e profere as seguintes palavras:

“w1 po/poi, h] fi/lon a1ndra diwko/menon peri\ tei~xov

o0fqalmoi~sin o9rw~sin e0mo\n d’ o0lofu/retai h]tor

3Hktorov, o3v moi polla\ bow~n e0pi\ mhri/’ e1khen 170

1Idhv e0n korufh|~si poluptu/xon, a1llote d’ au]te

e0n po/lei a0krota/th|: nu~n au]te/ e9 di~ov 0Axilleu\v

a1stu pe/ri Pria/moio posi\n taxe/essi diw/kei.

a0ll’ a1gete fra/zesqe, qeoi/, kai\ mhtia/asqe

h0e/ min e0k qana/toio saw/somen, h]e/ min h1dh 175

Phlei5dh| 0Axilh~i dama/ssomen e0sqlo\n e0o/nta.”

to\n d’ au]te prose/eipe qea\ glaukw~piv 0Aqh/nh:

“w] pa/ter a0rgike/raune, kelainefe/v, oi]on e1eipev:

a1ndra qnhto\n e0o/nta pa/llai peprwme/non ai1sh|,

a1y e0qe/leiv qana/toio dushxe/ov e0canalu~sai; 180

e3rd’: a0ta\r ou1 pa/ntev e0paine/omen qeoi\ a1lloi.”

Ai de mim, um homem amado perseguido em torno da muralha

eu vejo com meus olhos! Meu coração compadece-se de Heitor

que para mim queimou muitas coxas de bois no topo do Ida 170

de muitas escarpas e outras vezes na cidade muito elevada,

mas agora, o divino Aquiles

em torno da cidade de Príamo, com pés velozes, o persegue

Vamos! Considerai, ó deuses, e deliberai

se o salvamos da morte, ou se agora, embora seja ele valente,

o subjugamos em proveito

de Aquiles, filho de Peleu. 175

A ele disse a deusa Atená, de olhos de coruja:

‘ó pai do brilhante relâmpago, da nuvem escura, que disseste!

Um homem que é mortal, há muito fadado pelo destino,

de novo desejas livrá-lo da terrível morte? 180

Faze isso, mas, certamente, todos nós, os demais deuses, não

61

te aprovamos.

Il. XXII, 168-81

Em ambas as passagens, Zeus tende a intervir em favor dos heróis há muito

fadados pelo destino: Sarpédon é seu filho, e a sorte do herói comove o Crônida,

repreendido por Hera quando deseja salvá-lo; Heitor, diligente e piedoso em suas

atribuições cultuais, faz o coração de Zeus lamentar a sorte do príncipe troiano. Nesse

último exemplo, é Atená que o repreende severamente. Assim, prevalece, nos dois

casos, a ordem do destino.

A possibilidade de escapar da morte se apresenta como possível também no

episódio em que Calipso oferece a imortalidade a Odisseu, caso o herói decidisse

permanecer com ela, como se observa em Odisseia, V, 208-9: e0nqa/de k’ au]qi me/nwn su\n

e0moi\ to/de dw~ma fula/ssoiv a0qa/natov t’ ei1hv [...] “(por outro lado, se permanecesses

comigo aqui e guardasses esta casa, serias imortal”). A diva não esclarece como esse

processo de imortalização ocorreria37, e talvez sua proposta tenha sido só uma

tentativa de manter o amado ao seu lado voluntariamente. De antemão, ela sabia que

Odisseu devia retornar a sua pátria como lhe anunciara Hermes, conforme a ordem

dada por Zeus em Odisseia, V, 30-1: nu/mfh| e0uploka/mw| ei0pei~n nhmerte/a boulh/n,/ no/ston

)Odussh~ov talasi/fronov, w3v ke ne/htai (declara a sentença verdadeira para a ninfa de

belas tranças, o retorno de Odisseu sofredor, que ele retorne).

3.1.1 A mansão de Hades: o destino final de todos

A segunda afirmação, que deriva diretamente da concepção da efemeridade da

vida humana, é que todas as psykhaí dos mortos têm como destino final a casa de

Hades. Essa determinação é evidente em dois passos bastante esclarecedores, a

saber, a narrativa referente ao destino da psykhaí dos heróis mortos em consequência

da ira de Aquiles, conforme Ilíada I, 3 e a fala de Anticleia, mãe de Odisseu que, já no

Hades, explica ao filho, que visita o mundo dos mortos, o que ocorre com a psykhé

após a morte, em Odisseia XI, 215-22.

“w4v e0fa/mhn, h9 d’ au0ti/k’ a0mei/beto po/tnia mh/thr: 215

37

Os possíveis meios que a ninfa Calíope empregaria para realizar sua promessa foram discutidos na dissertação de mestrado A Yuxh/ nos Poemas Homéricos, 2010, p. 23.

62

‘w1 moi, te/knon e0mo/n, peri/ pa/ntwn ka/mmore fwtw~n,

ou1 ti/ se Persefo/neia Dio\v quga/thr a0pafi/skei,

a0ll’ au3th di/kh e0sti\ brotw~n, o3te ti/v ke qa/nh|sin:

ou0 ga\r e1ti sa/rkav te kai\ o0ste/a i3nev e1xousin,

a0lla\ ta\ me/n te puro\v kratero\n me/nov ai0qome/noio 220

damna|~, e0pei/ ke prw~ta li/ph| leu/k’ o0ste/a qumo/v

yuxh\ d’ h0u/t’ o1neirov a0poptame/nh pepo/thtai.

“Assim falei, e, imediatamente, minha soberana mãe 215

respondeu:

Ai de mim, meu filho, o mais desgraçado de todos os homens!

De modo algum, te engana Perséfone, filha de Zeus:

essa é a lei dos mortais quando qualquer um morre; de fato, não

mais os tendões seguram a carne e os ossos,

mas domina-os a força poderosa do fogo ardente, 220

quando o thymós primeiramente abandona os ossos brancos,

e a psykhé, como um sonho, batendo as asas, se desvanece.

Od. XI, 215-22

Essa viagem empreendida pela psykhé que se desvanece, como bem expressa

o verso 222: “yuxh\ d’ h0u/t’ o1neirov a0poptame/nh pepo/thtai”, tem como destino o

Hades, morada comum a todos os mortos, como se pode deduzir dos seguintes versos

do canto XI da Odisseia:

e0v bo/qron, r9e/e ai[ma kelainefe/v: ai9 d’ a0ge/ronto

yuxai\ u9pe\r 0Ere/beuv neku/wn katateqnhw/twn.

nu/mfai t’ h0i5qeoi/ te polu/tlhtoi/ te ge/rontev

parqenikai\ t’ a0talai\ neopenqe/a qumo\n e1xousai:

polloi\ d’ ou0ta/menoi xalkh/resin e0gxei/h|sin, 40

a1ndrev a0rei5fatoi bebrotwme/na teu/xe’ e1xontev:

oi4 polloi\ peri\ bo/rqon e0foi/twn a1lloqen a1llov

qespesi/h| i0axh~|: e0me\ de\ xlwro\n de/ov h3|rei.

na direção do buraco, um sangue escuro fluiu. Ajuntaram-se

63

as psykhaí daqueles que tinham morrido vindas do Érebo.

Noivas, jovens adolescentes e também velhos que

sofreram muito,

virgens ingênuas e jovens que tinham o ânimo recém-afligido,

muitos feridos pelas lanças de bronze, 40

homens valentes com armas sujas de sangue.

A maior parte delas ia e vinha de um lado

para outro em torno do buraco,

com extraordinários gritos de lamentações. E um medo pálido

me tomou.

Od. XI, 36- 43

Esses versos deixam claro que ao mundo dos mortos estão destinados todos os

mortais independentemente de sexo, idade e causa da morte. Os versos 36 e 37 ai9 d’

a0ge/ronto yuxai/ [...] neku/wn katateqnhw/twn são detalhados no verso seguinte, em que

se descreve como se compunha a multidão dos mortos: de jovens e velhos - que

normalmente tinham suas vidas abreviadas de modo natural, por doença ou acidente -,

e, ainda, de heróis que tombavam nos combates sangrentos, como os guerreiros

mortos na guerra de Troia, conforme o verso 3 do canto I de Ilíada : polla\v d’

i0fqi/mouv yuxa\v 1Ai+di prwi%ayen h9rw/wn. (muitas almas valentes de heróis lançou com

violência para o Hades). Essa multidão constituía os habitantes do mundo dos mortos

sobre os quais reinava Hades. São inúmeras as psykhaí e afloram de todos os lados

assustando Odisseu, como assinalam os versos 42-3: a0lla\ pri\n e0pi\ e1qne’ a0gei/reto

muri/a nekrw~n h0xh~| qespesi/hn. 0Eme\ de\ xlwro\n de/ov h1|rei.

A ideia de uma morada definitiva para os mortos, uma morada que estivesse

além do espaço físico, no qual o cadáver se encontrava encerrado, aparece pela

primeira vez na literatura ocidental logo no início do canto I de Ilíada, no referido verso

3, em que se narra, como uma das consequências da ira de Aquiles, a descida

empreendida pelas psykhaí dos heróis mortos em combate em direção ao Hades. O

verbo prwi%ayen é uma forma de aoristo ativo de proi"a/ptw que, em Ilíada, encerra

uma noção de violência, como se pode deduzir de sua utilização formular em

referência a mortes em contextos de combates, como no verso 55 do canto V: “kai/ min

e1gwg’ e0fa/mhn 0Ai"dwnh~i" prwi"a/yein” , no verso 487 do canto VI: “ ga/r ti/v m’ u9pe\r ai]san

64

a0nh\r 1Ai"di proi"a/yei:” e no verso 55 do canto XI: “polla\v i0fqi/mouv yuxa\v 1Ai+di

prwi"a/yein”.

A concepção do Hades como última morada dos mortos, conforme Emily

Vermeule (1979, p. 35), pode ter-se originado dos conjuntos de túmulos rodeados por

muros construídos para famílias nobres em palácios fortificados do período do bronze

tardio (1550-1200), e a expressão Portões do Hades pode ter surgido da relação entre

a ideia de uma morada definitiva dos mortos e esses túmulos que eram a

representação em menor escala de um palácio, tendo em vista que, na épica, esse

local coletivo de reunião é traçado com base nos modelos palacianos, isto é, uma terra

rodeada por muralhas e com um portão central. É possível que a autora tenha razão

em sua hipótese, embora não se possa comprovar, de maneira definitiva, a origem

dessa concepção, mas o fato de ela estar presente em Ilíada e Odisseia pressupõe

uma resposta ao horizonte de expectativa da audiência do aedo.

Outra importante afirmação da autora (op. cit. p. 36) é que o Hades é um local

destinado a poucos: “O Hades, apresentado na poesia épica como um lugar, é

peculiarmente um reino aristocrático e helênico. O poeta grego não pergunta: para

onde todos os mortos bárbaros vão?”. Emilly Vermeule, com tom jocoso, atribui essa

atitude ao fato de o mundo dos mortos não ser controlado pelo deus Hades, e sim

pelos poetas38.

Nessa mesma linha de reflexão, coloca-se J. Bremmer (1994, p. 6) para quem a

preocupação com a vida post-mortem teria nascido em ambiente aristocrático, entre os

mais intelectuais preocupados com o destino pessoal e com o desejo de um

prolongamento da vida para além do seu tempo natural. De modo semelhante a Emilly

Vermeule, J. Bremmer atribui aos poetas a responsabilidade pela criação e

disseminação de ideias religiosas:

[...] Poetas poderiam exercer essa influência porque eles eram apoiados pelos aristocratas que controlavam a vida através de sua hegemonia religiosa, política, social e cultural [...] poetas também regularmente inventavam tradições religiosas, se necessário com empréstimos de povos vizinhos (BREMMER, 1994, p. 6. Tradução nossa).

38

Embora o título do livro de Emily Vermeule seja Aspects of Death in Early Greek Art and Poetry, ao tratar da poesia, a autora, que é arqueóloga, não faz uso de conceitos de teoria literária. Não há, em seus comentários, uma preocupação em explicar os passos utilizados por ela como exemplos, utilizando elementos importantes como a performance, o papel do narrador ou o ambiente de recepção no qual o aedo estava inserido. Se por um lado, como a autora afirma, o poeta controlava o mundo dos mortos, por outro, não se pode negar que esse controle estivesse condicionado, ainda que parcialmente, pela audiência para a qual o poema era executado. Isso significa que o poeta não podia romper bruscamente com o horizonte de expectativa dos ouvintes.

65

Ambos os autores consideram os poetas como aqueles que criariam e

controlariam concepções religiosas. São os poetas, portanto, os responsáveis pela

disseminação de novas ideias. Essa afirmação deve, no entanto, ser considerada com

cautela porque, como observa Christiany Sourvinou-Inwood (1995, p. 2), um autor

escreve utilizando códigos que são compartilhados por ele e por seus ouvintes/leitores.

Além desses códigos que são linguísticos, autor e audiência possuem um

conhecimento geral comum que formaria estruturas cognitivas pelas quais a

representação e a apreensão do mundo são possíveis. Essas estruturas, segundo a

referida estudiosa, permitem a performance poética, e uma novidade que surgisse

como estranha à estrutura ou rompesse com o horizonte de expectativa da audiência

poderia não alcançar o efeito desejado pelo poeta.

Com essa observação, no entanto, não se pretende negar as posições de Emily

Vermeule e de J. Bremmer sobre a introdução de novidades por parte dos poetas e a

responsabilidade deles em propagar concepções novas ou aristocráticas. Essa função

era certamente inerente à atividade poética, como anota Marcel Detienne, em Os

Mestres da Verdade na Grécia Arcaica (1988, p.17), ao pontuar de maneira clara o

poder da palavra e a importância dos poetas na transmissão de alguns conceitos,

mormente a verdade:

A memória sacralizada é, em primeiro lugar, um privilégio de um grupo de homens organizados em confrarias: assim sendo, ela se diferencia radicalmente do poder de recordar que possuem os outros indivíduos. Nesses meios de poetas inspirados, a Memória é uma onisciência de caráter adivinhatório; define-se como saber mântico, pela fórmula: “o que é, o que será e o que foi”. Através de sua memória, o poeta tem acesso direto, mediante uma visão pessoal, aos acontecimentos que evoca; tem o privilégio de entrar em contato com o outro mundo. Sua memória permite-lhe decifrar o invisível. A Memória não é somente o suporte material para a palavra contada, a função psicológica que sustenta é a técnica formular; é também, e, sobretudo, a potência religiosa que confere ao verbo poético seu estatuto de palavra

mágico-religiosa. (DETIENNE, 1981, p.17)

Com efeito, Marcel Detienne aponta um dado imprescindível para a

compreensão da atividade poética no período arcaico, o fato de ela ser uma atividade

de caráter divino, uma atividade inspirada por uma divindade. Essa característica

confere ao poeta credibilidade necessária para que, em sua performance, introduza

elementos novos que, como observou J. Bremmer, poderiam ser tomados por

66

empréstimo de povos vizinhos. A concepção de mundo dos mortos poderia, então, ser

um desses empréstimos.

A comparação de elementos culturais de povos vizinhos ao mundo grego tem

grande importância para a compreensão do possível surgimento da ideia de um lugar

destinado aos mortos presente na literatura épica grega, apesar da existência de

posições contrárias às influências ou aos empréstimos orientais presentes na cultura

grega, semelhantes, por exemplo, àquela mantida pelo filólogo Ulrich Wilamowitz-

Moellendorff, segundo o qual (apud Walter Burkert, 1995, p. 2) os povos semitas e os

egípcios se encontravam em decadência e, embora possuíssem uma cultura secular,

não foram capazes de contribuir para a cultura grega, exceto em algumas poucas

atividades manuais, implementos de mau gosto, ornamentos ultrapassados e fetiches

repulsivos.

Alguns autores têm acentuado a contribuição de elementos da cultura oriental na

formação da cultura grega, mormente no período micênico. Um dos mais importantes

estudiosos da religião grega, o suíço Walter Burkert, escreveu, nos anos1990, um

importante livro sobre o assunto cujo título é bastante sugestivo: The Orientalizing

Revolution: Near Eastern Influence on Greek Culture in Early Archaic Age. Nessa obra,

o autor (op. cit., p. 6) defende a seguinte hipótese:

Este livro segue a hipótese de que, no período de orietalização, os gregos não receberam meramente umas poucas habilidades manuais e fetiches juntamente com novos ofícios e imagens da esfera luvio-aramaico-fenícia, mas foram influenciados em sua religião e literatura por modelos orientais em um

grau significativo (BURKERT, 2005, p. 6. Tradução nossa).

Como se pode observar, o autor tem grande convicção da influência oriental na

cultura religiosa e literária grega. Particularmente, em relação ao mundo dos mortos,

suas palavras merecem ser citadas:

No entanto, na medida em que o conceito homérico de Hades corresponde ao mesopotâmico é impressionante. Uma realidade de lodo e de escuridão que não deixa esperanças para os mortais. Ele é descrito na famosa cena de Gilgamesh quando o fantasma de Enkidu encontra seu amigo, uma cena que pode ter ligação com Homero até no nível literário. O ritual de apaziguamento do morto é realizado de maneira muito semelhante por Mesopotâmios e gregos, preferivelmente através de várias libações: água, cerveja, grãos tostados, leite, mel, creme e óleo na Mesopotâmia; leite, mel, água, vinho e óleo em Ésquilo. Ainda mais peculiar é a importância da água pura, como oferenda para o morto, ‘água fresca’. A inserção de tubos em uma sepultura precisamente para esse propósito é usual na Grécia, mas há uma direta

67

evidência literária dessa prática na Mesopotâmia (BURKERT, 2005, p. 65. Tradução nossa).

A afirmação de Walter Burkert é bastante acertada, principalmente, quando é

examinada e comparada com os registros arqueológicos micênicos apontados no

primeiro capítulo, mormente as cenas funerárias gravadas nos sarcófagos de Tânagra

e Hagia Triada. Os elementos comuns nas libações oferecidas aos mortos feitas por

gregos e mesopotâmios, conforme indicados pelo autor, estão presentes no sacrifício

que Odisseu executa ao chegar ao Hades:

“e1nq’ i9erh/ia me\n Perimh/dhv Eu0ru/loxov te

e1sxon: e0gw\ d’ a1or o0cu\ e0russa/menov para\ mhrou~

bo/qron o1ruc’ o3sson te pugou/sion e1nqa kai\ e1nqa, 25

a0mf’ au0tw|~ de\ xoh\n xeo/mhn pa~sin neku/essi,

prw~ta melikrh/pw|, mete/peita de\ h9de/i oi1nw|,

to\ tri/ton au]q’ u3dati: e0pi\ d’ a1lfita leuka\ pa/lunon.

Ali enquanto Perimedes e Euríloco mantinham as vítimas,

para o sacrifício, eu, depois de sacar a espada pontuda,

de junto da coxa,

cavei um buraco de um cúbito de ambos os lados. 25

Em torno dele, derramei uma libação para todos os mortos.

primeiro de leite e mel, em seguida de doce vinho,

e, em terceiro lugar, de água, e, por cima, aspergi uma

branca farinha de cevada.

Od. XI, 23-7

Esses versos confirmariam a tese de empréstimo, conforme assegura Walter

Burkert, porque neles são elencadas oferendas comuns aos dois povos: farinha, leite,

mel, vinho, água pura e outras.

Os textos babilônicos cuneiformes decifrados no século XIX, ao contrário do

Linear B micênico, registram textos literários que permitem conhecer parte da literatura

68

daquele povo. Particularmente importante para os estudos comparativos que

possibilitam conjecturar influências orientais na cultura grega são os poemas de

narrativas míticas, definidos por Martin West39 (1999, p. 63) como narrativas em que

não há referências históricas embora haja a presença de seres humanos. O autor

afirma que não são muitos os textos existentes e elenca 12 deles na literatura suméria

incluindo a epopeia de Gilgamesh.

Em relação à crença grega e à oriental no mundo dos mortos, Martin West faz a

seguinte observação:

Para ambos os povos, gregos e semitas, a viagem da alma para a morte era uma descida. Era dito ‘descer para a terra ou para o mundo subterrâneo. Homero fala de um homem ou sua psykhé descendo (kate/lqein kati/men) para o Hades ou para a casa de Hades; a psykhé de Pátroclo, depois de visitar Aquiles em sonho, foi descendo como uma fumaça para a terra (kata|xqo/v w1xeto). Em acádio, (w)arādu ‘descer’ é usualmente utilizado com a expressão

para a terra (Ana erṣeti) ou com nomes mais explícito do mundo subterrâneo, tais quais arallû ou erkalla.

(WEST, 1999, p.152. Tradução nossa).

Os comentários do autor são de grande pertinência para o estudo comparativo

das concepções escatológicas entre essas duas diferentes culturas que nesse assunto

apresentam concepções muito próximas, e, embora Martin West não apresente em seu

livro os textos sumérios a fim de ratificar suas afirmações, talvez por serem tais textos

extensos e mais voltados a especialistas, os exemplos apresentados são bastante

esclarecedores.

Ainda tratando do mundo dos mortos, Martin West (1999, p.156) analisa o

epíteto eu0rupu/lev utilizado nos Poemas Homéricos para referir-se ao mundo dos

mortos e relaciona-o com a literatura mesopotâmica:

39

A. R. George (2000, p. 103), professor de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, afirma que esse livro de M. L. West é de grande importância para a compreensão da presença de elementos orientais na cultura grega. Para ele, alguns elementos são paralelos, como sugere M.L West, e outros são, claramente, empréstimos. O autor considera que um grande problema para esses estudos comparativos é o fato de não haver trabalhos de orientalistas sobre vários aspectos da civilização mesopotâmica que sejam realmente convincentes. Outro problema mencionado pelo autor é que esses estudos comparativos conduzem a caminhos diversos conforme as abordagens e concepções de orientalistas e helenistas. Ainda sobre o livro de M. L. West, Ken Dowden (2001, p. 167) considera-o um monumento ao empirismo e uma demonstração de erudição. O autor coloca a pergunta; “Ex oriente lux?” e a responde demonstrando como a abordagem comparativa se desenvolveu desde o século XIX até a publicação do Livro de M. L. West considerado pelo crítico como acentuadamente filológico porque seu autor é filólogo e se expressa utilizando a linguagem da filologia. Apesar de suas críticas ao método empirista-filológico, Ken Dowden afirma que o livro é uma realização formidável pela quantidade de dados que podem conduzir os leitores a suas próprias reflexões.

69

Em Homero, a casa de Hades é denominada eu0rupu/lev ‘largos portões’, e ele

mesmo tem o epíteto pula/rthv, portão de ferrolho, claramente aludindo aos portões através dos quais os mortos passam e que são aferrolhados atrás deles. Tlepolemos diz a seu adversário Sarpédon pensar que mais tarde será derrotado por ele e que passará pelos ‘Portões de Hades’. O fantasma de Pátroclo pede uma forma de funeral rápido para que ele possa passar através deles. Em outros lugares, eles são mencionados como o paradigma de uma

coisa abominável. (WEST, 1999, p.156. Tradução nossa.)

As expressões “largos portões” e “portão de ferrolho” , segundo o autor, seriam

correntes na literatura suméria e acádia. Ao contrário de Walter Burkert que defende a

influência de concepções orientais na literatura grega, Martin West elenca elementos

semelhantes e comuns sem, no entanto, afirmar ou negar que em algum momento os

povos orientais tenham contribuído para a formação de concepções escatológicas

gregas.

Como se pode observar, uma investigação sobre a origem do mundo dos mortos

na poesia grega é bastante complexa, e postular sua origem oriental apenas somaria à

questão outros problemas, pois, como afirma Emily Vermeule (1979, p. 56), os

Micênicos pareciam compartilhar com a maioria dos povos mediterrâneos a crença

natural de que o morto empreendia uma viagem para o mundo subterrâneo. Ora, essa

concepção da morte como uma jornada para o outro mundo era também partilhada

pelos indo-europeus, conforme notou o próprio Martin West que, prudentemente, não

afirmou que ela fosse uma influência oriental na cultura grega, embora se apresentasse

como um traço comum. Em seu livro Indo-European: Poetry and Myth, o autor faz a

seguinte afirmação sobre o assunto:

Os mortos são geralmente representados como se fossem para algum lugar. O ‘algum lugar’ mais comum está localizado sob a terra. Este é o corolário lógico do fato de que no quarto milênio, última fase de datação da invasão indo-europeia, em todas as terras que entram em questão séria de um habitat original, a eliminação do corpo era usualmente por inumação. O falecido, que era de terra, retornava a sua mãe Terra. Seu túmulo era uma espécie de casa

– casa de argila como é o termo no hino védico (mrnmáya- grhá-, 7. 89. 1). Na verdade, ela era frequentemente construída na forma de casa ou quarto que era, então, coberto por túmulo (WEST, 2007, p. 387. Tradução nossa).

Essa afirmação é muito importante porque a civilização micênica de origem indo-

europeia, conforme se discutiu no primeiro capítulo, não obstante o distanciamento

histórico existente desde a chegada dos primeiros indo-europeus ao continente grego

até sua configuração como povo distinto, isto é, um povo grego, manteve algumas de

suas características originárias. A crença no mundo dos mortos, portanto, não seria

70

influência oriental, e sim uma herança indo-europeia. Desse modo, como os Micênicos

realmente tinham essa concepção, a poesia épica a herda e a transmite, como atestam

os Poemas Homéricos.

3.1.2 A localização do mundo dos mortos

A localização do Hades não se apresenta unívoca nos Poemas Homéricos,

como se pode observar numa leitura mais atenta das epopeias, e, em Ilíada, mais de

uma vez, ele é referido como situado nas profundezas da terra. Essa é, pois, a

indicação mencionada no canto XXII, vv. 481-3, nos quais, ao lamentar sua sorte em

consequência da morte de Heitor, Andrômaca se refere à localização da morada dos

mortos com as seguintes palavras:

[...] w9v mh\ w1felle teke/sqai.

nu~n de\ su\ me\n 0Ai/da~o do/mouv u9po\ keu/qesi gai/hv

e1rxeai,[...]

[...] que ele não me tivesse gerado!

Agora para a mansão de Hades, sob as profundezas da terra,

tu partes [...]

Il. XXII, 481-3

A mesma referência é feita nos versos que narram o encontro da psykhé do

recém-falecido Pátroclo com Aquiles. Após a conversa entre os dois heróis, o Pelida,

comovido, tenta tocar o amigo com as mãos. Nesse momento, a psykhé retorna ao

Hades:

$Wv a1ra fwnh/sav w0re/cato xersi\ fi/lh|sin,

ou0d’ e1labe: yuxh\ de\ kata\ xqono\v h0u/te kapno\v 100

w1|xeto tetrigui~a:[...]

Então, falando assim, tentou alcançá-lo com suas mãos,

porém, não o segurou; e a psykhé, como uma fumaça, 100

partiu para debaixo da terra soltando gritos agudos.

71

Il. XXIII, 99-101

Em ambas as passagens, a localização do Hades é referida por sintagmas

adverbiais diferentes (u9po\ keu/qesi e kata\ xqo/nov), porém com o mesmo significado. A

concepção presente em ambas as passagem citadas pode estar diretamente

relacionada com a tradição indo-europeia de inumação dos corpos, como se referiu

anteriormente lançando mão das afirmações de Martin West; e a disposição do corpo

no solo alude ao retorno natural do homem ao seio da Mãe Terra, concepção que,

segundo o estudioso, não é evidente nas epopeias.

Em Odisseia, à concepção do Hades localizado sob a superfície da terra soma-

se outra que o situa para além dos confins do oceano e cujo acesso é possível por via

marítima40. Passo bastante significativo da presença de diferentes formas de se chegar

ao mundo dos mortos é o diálogo entre Odisseu e Elpenor, companheiro recém-

falecido do rei de Ítaca, em Odisseia XI, 55-65.

to\n me\n e0gw\ da/krusa i0dw\n e0le/hsa te qumw~|, 55

kai/ min fwnh/sav e1pea ptero/enta proshu/dwn:

“‘0Elph~nor, pw~v h]lqev u9po\ zo/fon h0ero/enta;

e1fqhv pezo\v i0w\n h2 e0gw\ su\n nhi+\ melai/nh|.’

“w4v e0fa/mhn, o9 de/ m’ oi0mw/cav h0mei/beto mu/qw|:

‘diogene\v Laertia/dh, polumh/xan’ 0Odusseu~, 60

a]se/ me dai/monov ai]sa kakh\ kai\ a0qe/sfatov oi]nov.

Ki/rkhv d’ e0n mega/rw| katale/gmenov ou0k e0no/hsa

a1yorron katabh~nai i0w\n e0v kli/maka makrh/n,

a0lla\ katantikru\ te/geov pe/son: e0k de/ moi au0xh\n

a0straga/lwn e0a/gh, yuxh\ d’ 1Aidose kath~lqe. 65

40

M. P. Nilsson (1949, p. 622) considera que, entre os povos que navegavam, a noção da morte como uma viagem para um lugar remoto além do oceano era natural. Para ele, quando os gregos começaram a navegar pelo Mediterrâneo, essa crença foi combinada com aquela de um mundo subterrâneo dos mortos. O autor considera que esse é o fundamento da concepção que aparece na visita de Odisseu ao Hades. Chrysanthi Gallou (2005, p. 123) também observa que, para os povos cuja subsistência dependia dos recursos do mar ou de um grande rio, era natural que se colocasse o mundo dos mortos nos confins do oceano. Como exemplo, ela cita pequenas réplicas de barcos colocadas em túmulos minoicos. Essas são, frequentemente, interpretadas como um item que facilitaria a viagem do morto ou representaria a atividade que ele exercia em vida.

72

Eu chorei e me compadeci no coração quando o vi. 55

Dirigi a ele palavras aladas dizendo:

Elpenor, como vieste para a região das trevas espessas?

Vindo a pé tu chegaste antes do que eu com o negro navio.

Desse modo, eu falei, e ele respondeu-me lamentando:

‘Ó Odisseu de muitos ardis, filho de Laertes divino, 60

o destino funesto de uma divindade e o vinho

admirável me enganaram.

No palácio de Circe, dormindo, não pensei em descer

indo de volta, pela grande escada,

mas caí direto do teto, das vértebras, quebrei

o pescoço, e minha psykhé baixou para o Hades. 65

Od. XI, 55-65

Nesses versos, claramente, apresentam-se duas concepções distintas de

acesso ao Hades. Elpenor explica sua chegada ao mundo dos mortos pela via mais

comum empreendida pelos falecidos, isto é, baixando para o subterrâneo conforme

indica a forma verbal kath~lqe, verso 65. Odisseu, por outro lado, chegara àquele local

por via diversa seguindo as orientações dadas por Circe que lhe indicara o caminho a

ser seguido:

“‘ ]W Ki/rkh, ti/v ga\r tau/thn o9do\n h9gemoneu/sei;

ei0v 1Aidov d’ ou1 pw/ tiv a0fi/keto nhi\ melai/nh|.’

“ [Wv e0fa/mhn, h9 d’ au0ti/k’ a0mei/beto di~a qea/wn:

‘diogene\v Laertia/dh, polumh/xan’ 0Odusseu~,

mh/ ti/ toi h9gemo/nov ge poqh\ para\ nhi+\ mele/sqw, 505

i9sto\n de\ sth/sav, a0na/ q’ i0sti/a leuka\ peta/ssav

h[sqai: th\n de/ ke/ toi pnoih\ Bore/ao fe/rh|sin.

a0ll’ o9po/t’ a1n dh\ nhi\ di’ 0Wkeanoi~o perh/sh|v,

e1nq’ a0kth/ te la/xeia kai\ a1lsea Persefonei/hv,

makrai/ t’ ai1geiroi kai\ i0te/ai w0lesi/karpoi, 510

nh~a me\n au0tou~ ke/lsai e0p’ 0Wkeanw~| baqudi/nh|,

au0to\v d’ ei0v 0Ai/dew i0e/nai do/mon eu0rw/enta.

73

e1nqa me\n ei0v 0Axe/ronta Puriflege/qwn te r9e/ousin

Kw/kuto/v q’, o4v dh\ Stugo\v u3dato/v e0stin a0porrw/c,

pe/trh te cu/nesi/v te du/w potamw~n e0ridou/pwn: 515

“Ó Circe, quem conduzirá nossa jornada?

à morada Hades nunca nenhum homem chegou

em um negro navio.

Assim falei, e, imediatamente, respondeu-me a divina entre

as deusas:

‘filho de Laertes nascido de Zeus, Odisseu de mil ardis,

que não te preocupe o desejo de um piloto para o navio, 505

mas, levantando o mastro e alçando as velas brancas,

fica sentado, pois o sopro do Bóreas leva-la-á para ti.

E quando atravessares, com o navio, a corrente do Oceano,

onde há uma costa baixa e os bosques de Perséfone,

grandes álamos e choupos que perdem seus frutos, 510

ali deixa teu barco junto ao Oceano de redemoinhos profundos,

e vai tu mesmo para a mansão bolorenta de Hades.

Aí para o Aqueronte fluem o Purifligetonte

e o Cocito, que é um afluente das águas do Estige;

há uma rocha e a confluência dos dois rios retumbantes. 515

Od. X, 502-15

As instruções dadas por Circe a respeito de como chegar ao Hades por via

marítima são claras, e o fato de serem tão detalhadas pode significar que consistia em

uma novidade em relação ao caminho empreendido por via subterrânea. Outro

elemento que contribui para essa interpretação é que, pela primeira vez, nesses

versos, o caminho por via marítima é apresentado nas epopeias. Assim, a pergunta

que Odisseu faz à feiticeira no verso 501, “w2 Ki/rkh, ti/v ga\r tau/thn o9do\n h9gemoneu/sei;”,

parece ter um caráter meramente retórico a fim de preparar a audiência para a

novidade a ser introduzida, e a resposta que segue à pergunta: “ei0v 1Aidov d’ ou1 pw/ tiv

a0fi/keto nhi\ melai/nh.”, criaria no ouvinte receptividade ao novo tema introduzido, isto é,

a existência de outra via de acesso ao mundo dos mortos, uma via que um homem vivo

podia trilhar. Ora, se homem algum ainda havia visitado o Hades, estando vivo, as

74

explicações de Circe tornariam evidente para os ouvintes de que modo o arriscado e

impossível empreendimento seria possível sem o auxílio de forças sobrenaturais.

Essa é a opinião de Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 60) para quem a

viagem por via marítima, apresentada como uma informação sobrenatural, indica que a

narrativa desse percurso seria uma criação poética e não uma reflexão sobre uma

crença já estabelecida entre os ouvintes. A cosmografia grega vigente naquela época

é, como defende a estudiosa, o elemento que permitiu ao poeta introduzir a nova

concepção, já que se poderia chegar ao mundo suberrâneo seguindo pelo Oeste e

cruzando o oceano que envolve a terra, embora o Hades estivesse situado sob a terra.

Ainda que não ratifique seu posicionamento com exemplos, a referida estudiosa

ressalta que a associação entre a terra dos mortos e o Oeste está presente em muitas

culturas.

Se essa opinião for considerada segura, a pergunta feita por Anticleia, surpresa

de encontrar o filho no Hades, também sugere que a ida de um homem vivo ao mundo

dos mortos pode ser uma novidade, pois, se a concepção presente na narrativa fosse

corrente para a audiência, a pergunta não teria sentido, e a resposta dada pela própria

mãe do herói soaria estranha. Anticleia reconhece que um homem a pé não chegaria

até o Hades, a não ser que possuísse um navio bem construído que pudesse fazer

frente aos perigos de rios e correntezas e do oceano que ninguém pode transpor41. A

recorrência da ideia do navio como veículo de acesso ao mundo dos mortos é um

indício da introdução de uma novidade, como sugerem os seguintes versos:

“te/knon e0mo/n, pw~v h]lqev u9po\ zo/fon h0ero/enta 155

zwo\v e0w/n; xalepo\n de\ ta/de zwoi~sin o9ra/sqai.

me/ssw| ga\r mega/loi potamoi\ kai\ deina\ r9e/eqra,

0Wkeano\v me\n prw~ta, to\n ou1 pwv e1sti perh~sai

pe/zon e0o/nt’, h2n mh\ tiv e1xh| e0uerge/a nh~a.

“meu filho, como chegaste até a região de trevas espessas estando vivo? 155 É difícil para os vivos contemplar essas coisas. De fato, no meio há grandes rios e terríveis correntes, primeiro, o Oceano,

41

As palavras de Anticleia remetem àquelas proferidas por Aquiles em Ilíada I, 155-7. Nesses versos, o herói fala sobre a dificuldade de acesso a sua pátria, Ftia, à qual se chega cruzando as montanhas sombrias e o mar retumbante que só com muito custo poderia ser vencido a fim de se chegar a terra.

75

o qual, de modo nenhum, é possível alguém cruzar estando a pé, se não tiver um navio ligeiro. Od. XI, 155-9

A viagem para o Hades, porém, requer uma interferência sobrenatural. Observa-

se que, nas instruções dadas por Circe, nem Odisseu ou qualquer outro homem

pilotaria o navio. A diva explica ao herói que a presença de um piloto que conhecesse o

caminho e a direção a ser tomada não devia preocupá-lo; “mh/ ti toi h9gemo/nov ge poqh\

para\ nhi\ mele/sqw:”. A viagem de Odisseu para o mundo dos mortos, portanto, não

seria possível caso ele se valesse meramente de forças humanas; a intervenção divina

era essencial para o sucesso do empreendimento, concepção ratificada nos primeiros

versos do canto XI que narram o início da viagem.

Desse modo, depois de içadas as velas, o barco foi guiado pelo vento (th\n de/ ke/

toi pnoih\ Bore/ao fe/rh|sin ), insuflado pela feiticeira Circe, vento que enche as velas e

impulsiona o navio em direção aos confins do Oceano onde se situa o Hades.

h9mi~n d’ au] kato/pisqe neo\v kuanoprw|/roio 6

i1kmenon ou]ron i3ei plhsi/stion , e0sqlo\n e9tai~ron,

Ki/rkh eu0plo/kamov, deinh\ qeo\v au0dh/essa.

E para nós, atrás do navio de proa escura, 6

um vento favorável que enchia as velas, nobre amigo,

enviava Circe de belas tranças, deusa terrível

de voz humana.

Od. XI, 6-8

A conclusão a que se pode chegar é que há uma via alternativa de acesso ao

mundo dos mortos seguindo pelo Oceano, uma via que pode ser tomada por um

homem vivo. Porém, ao mesmo tempo em que ela é apresentada como possível, um

empecilho lhe é colocado, já que a viagem só pode ser empreendida com auxílio

sobrenatural como aquele dado por Circe. Atente-se, entretanto, que mesmo havendo

duas vias de acesso ao reino de Hades, uma empreendida pela yuxh/ do morto que

baixa penetrando a terra e outra por alguém vivo que chega ao Hades navegando pelo

76

Oceano possibilidade que talvez constitua uma novidade introduzida pelo aedo ,

não era legítimo que o ouvinte concebesse a possibilidade de qualquer mortal visitar o

mundo dos mortos.

3.2 Os ritos funerários e o culto aos mortos

Depois de estabelecidos os dois fundamentos básicos da escatologia homérica,

isto é, que os homens são efêmeros e, portanto, têm como fim a morte e, ainda, que,

após a morte, a psykhé é encerrada, definitivamente, no Hades logo que recebe os

ritos funerários, convém voltar a atenção para os ritos funerários e o culto dos mortos.

Vale mencionar que a existência desse último item nos Poemas Homéricos, é matéria

controversa para alguns autores que, como observa Chrysanthi Gallou (2002, p.2),

foram influenciados por George E. Mylonas, que negara a existência dessa prática no

mundo micênico e também nas epopeias.

Há passos de extrema importância para o estudo desses dois temas, mormente,

o que narra os ritos funerários prestados a Pátroclo em Ilíada XXIII, 127-258, os versos

que expressam o pedido feito por Elpenor a Odisseu a fim de que este o sepultasse em

Odisseia XI, 71-8, e, ainda, os versos 201-222, do mesmo canto, referentes ao diálogo

de Odisseu e sua mãe.

Essas passagens, além de conter elementos que permitem a compreensão do

fenômeno de sepultamento nos Poemas Homéricos, desde o século XIX, têm sido

utilizadas para a verificação da presença de traços micênicos nos ritos funerários

homéricos. Há, porém, outras passagens de menor importância que serão

posteriormente comentadas, como, por exemplo, em Ilíada, VI, 416-20, em que se

narra o funeral de Eécion; VII, 327-35, em que Nestor exorta a assembleia dos Aqueus

a parar os combates a fim de prestar os devidos ritos funerários aos mortos, e, ainda

nesse mesmo canto, 414-20, versos em que se menciona a adesão dos Troianos à

trégua proposta pelos Aqueus; XVI, 666-75, em que Zeus ordena que o corpo de

Sarpédon seja preparado a fim de ser sepultado pelos compatriotas na Lícia e XVIII,

333-8, versos referentes à promessa de Aquiles sepultar Pátroclo. Também em

Odisseia, o canto III, 278-85, versos nos quais se narra a interrupção da viagem de

Menelau em Súnion para sepultar o timoneiro Fróntis, filho de Onétor, e o canto XII, 8-

15, versos referentes ao cumprimento da promessa de Odisseu feita a Elpenor.

77

Antes, porém, de analisar os versos mencionados, que constituem importante

fonte de investigação sobre os ritos funerários nos Poemas Homéricos, convém

apresentar o posicionamento de alguns autores sobre o tema, como Erwin Rohde,

Martin P. Nilsson, Walter Friedrich Otto e George E. Mylonas por serem eles, na

primeira metade do século passado, os responsáveis pelas melhores contribuições

para o debate sobre a questão em pauta nas epopeias homéricas. As opiniões dos

pesquisadores mais recentes, Walter Burkert e A. M. Snodgrass também serão

importantes para a compreensão do assunto tratado.

Os estudos dos ritos funerários nos Poemas Homéricos foram, por muito tempo,

norteados por tentativas da arqueologia de comparar as informações apresentadas

pelo poeta narrador com artefatos encontrados em sítios baseando-as nas descobertas

arqueológicas. Essa foi uma tendência que se estabeleceu com as descobertas de

Heinrich Schliemann e de autores contemporâneos ao estudioso que investigaram as

epopeias homéricas observando nelas elementos micênicos que explicassem os

artefatos encontrados nos sítios pesquisados. Esse método de investigação, porém,

mostrou-se problemático quando foi aplicado aos ritos funerários, porque as práticas

micênicas pareciam se distanciar em muito das práticas homéricas, mormente, a forma

de se desfazer dos cadáveres.

Erwin Rohde, que viveu no final do século XIX e início do século XX e foi

contemporâneo de Heinrich Schliemann, afirma (1925, p. 23) que, nos Poemas

Homéricos, não se conhece outra forma de se desfazer do cadáver a não ser a

cremação. Um problema, porém, surge quando Erwin Rohde, na tentativa de explicar a

prática micênica de inumação relacionando-a com a da cremação presente nas

epopeias homéricas, atesta que a forma de se desfazer dos cadáveres praticada pelos

Micênicos e pelos homens de que fala Homero não se harmoniza. A solução proposta

pelo estudioso é a de que a inumação apenas demonstrava que, em um período

anterior, assim como ocorria com os Persas, os Indianos e os Germanos, também

entre os Gregos, os cadáveres eram depositados na terra. O autor ainda considera que

a cremação não é a forma mais natural que se apresenta à imaginação humana e

afirma que a inumação é um processo menos dispendioso e mais simples. Suas

palavras a esse respeito são bastante significativas:

Os gregos asiáticos, principalmente os jônios cuja fé popular e cujos costumes se refletem bastante fielmente, ainda que de um modo sintético e geral, como se pode supor, nos poemas de Homero, deixam para trás uma vida sedentária

78

para se criar uma nova pátria, outra não menos sedentária que aquela. E, no entanto, o costume de queimar os cadáveres imperava entre eles, ao que parece de modo tão exclusivo, que nem sequer lhes ocorria pensar em outro

sistema de sepultamento (ROHDE, 1925, p. 24. Tradução nossa).

Sobre a finalidade da cremação, o autor afirma (op. cit., p. 25.) que não faz

sentido buscá-la em lugares distantes como fez Jacob Grimm que a considerava uma

forma de sacrifício do morto aos deuses. A finalidade da cremação deve ser entendida

levando-se em conta que o fogo apresenta a propriedade de desvincular, de forma

permanente, a alma do corpo, obrigando-a a partir definitivamente para o Hades. Erwin

Rohde sugere que a cremação pode ser um testemunho em apoio à tese de que, em

um tempo passado, os Gregos concebiam a vinculação permanente da alma ao mundo

dos vivos podendo exercer sobre ele alguma influência. Convém citar as palavras do

estudioso sobre a motivação das atitudes dos vivos para como os mortos: “uma crença

que teria, com certeza, mais de temor do que de adoração.”

Erwin Rohde continua sua argumentação sobre a motivação da cremação dos

corpos afirmando que, com essa prática, se tratava de apaziguar o morto que poderia

errar indefinidamente; porém seu principal efeito seria o de garantir o sossego dos

vivos que baniriam, de modo definitivo, a psykhé do morto para o Hades porque,

argumenta o estudioso, [...] “existia, evidentemente, o temor de que aquelas almas as

quais, com tanto zelo, eles empurravam para o além se aferrassem ao mundo dos

vivos desejosas de seguir morando nele.”[...]. Erwin Rohde ressalta, no entanto, que os

Gregos do período homérico já se haviam desprendido do temor causado por esses

espíritos errantes.

Parte das afirmações de Erwin Rohde é partilhada por Walter Friedrich Otto,

(2005, p. 125), como, por exemplo, a mencionada crença pré-homérica no poder que

os mortos tinham de influenciar as atividades dos vivos. Para este último, no tempo de

Homero, ainda que houvesse nos Poemas várias referências sobre o Hades, o morto,

estando encerrado na habitação sombria dos mortos, não possuía mais que [...] “uma

existência espectral, onírica ou inconsciente. A única coisa que o vivente pode dedicar-

lhe é o preito da recordação” [...]. Pautado nessa concepção de outrora, o autor explica

todos os procedimentos do funeral de Pátroclo que recebe uma cerimônia solene.

Nesses ritos solenes, a antiga concepção seria evidente, ou seja, o morto não se

separaria completamente do mundo dos vivos, mas teria poderes para protegê-los ou

prejudicá-los, razão por que se lhes ofereciam sacrifícios e lhes prestavam honrarias.

79

Walter Friedrich Otto (2005, p.125) rejeita o temor dos mortos como motivação

para a cremação dos corpos seja na Grécia pré-homérica seja em outras regiões. Suas

palavras sobre o assunto são bastante significativas:

A religião pré-histórica dos gregos nos é geralmente descrita como a de uma comunidade primitiva qualquer, como se as ideias geniais que todos nós admiramos pudessem ter surgido, sem mais, de um emaranhado de obtusidade de feitiçaria. Assim, o temor teria sido o motivo para o banimento dos mortos do campo de visão dos vivos e a cremação de seu corpo seria um meio de livrar dele o mais depressa possível os sobreviventes. Portanto a cremação teria sido, originalmente, uma medida de precaução, e a crença (ou antes, a descrença) nos mortos, tal como encontramos em Homero, uma

espécie de autoliberação da mente apavorada. (OTTO, 2005, p.125.)

O autor enfatiza sua rejeição à tese do temor dos mortos como motivação da

cremação, afirmando que já fora observado que muitos povos praticavam uma

cremação solene como homenagem ao morto, cumprindo, assim, piedosamente seu

desejo expresso em vida. Conclui o pesquisador sua reflexão com a seguinte

afirmação: “E com isso fica evidenciada a surpreendente leviandade da tentativa de

explicar a cremação como um ato de temor e uma manobra defensiva”. Verifica-se que

a motivação da cremação dos corpos proposta por Erwin Rohde é duramente criticada

por Walter Friedrich Otto, mas não foi somente esse controverso helenista que rejeitou

essa tese.

Contemporâneo a Walter Friedrich Otto e um de seus críticos, Martin P.

Nilsson42 escreveu obras de grande importância sobre a relação entre o mundo

micênico e o mundo homérico. Algumas de suas afirmações sobre a inumação e a

cremação no período pré-homérico merecem ser mencionadas:

Assim, na Era micênica, uma curiosa mistura de inumação e queima de oferendas é encontrada em muitos e importantes casos. Os corpos eram inumados com ricos presentes, mas outros presentes eram queimados dentro ou em frente à tumba. Esta mistura, que não é registrada em outro lugar, representa um problema novo e requer uma explicação. Eu me aventuro a sugerir que ela é uma sobrevivência do costume de queimar oferendas para o morto junto com seu corpo. Isso indica que os gregos, quando imigraram, usavam a cremação, mas, uma vez assentados na Grécia, sucumbiram à

42

Parte das obras de Walter Friedrich Otto foi traduzida aqui no Brasil por Ordep J. Trindade Serra. Em seu texto de abertura da tradução do livro Teofania (2006), o tradutor chama a atenção para a recepção do conceito de religião apresentada por Walter Friedrich Otto no meio acadêmico conservador, principalmente as reações de Willamowizt-Moellendorf e M. P. Nilsson. Sobre esse último, Ordep J. Trindade Serra faz o seguinte comentário: Martin Nilsson, campeão dos helenistas chamados de “etnólogos”, declarou, em comentário famoso, que não podia considerar científica uma obra cujo estilo antes lhe parecia um discurso “de profeta”.

80

cultura minoica, nos costumes funerários bem como em outros hábitos de vida e arte, embora eles, algumas vezes, mantivessem a queima de presentes para o morto como sobrevivência de seus antigos costumes. Uma nova onda de imigrantes trouxe a cremação apesar de a inumação não ter sido abandonada (NILSSON, 1949, p. 599. Tradução nossa).

As afirmações de Martin. P. Nilsson foram de grande relevância porque se

basearam em descobertas arqueológicas a ele contemporâneas, principalmente em

evidências encontradas em túmulos nos quais havia claros vestígios da prática da

cremação. Observa o autor (op. cit., p. 589) que os poços descobertos nos túmulos em

Micenas continham indícios de oferendas destinadas aos mortos, oferendas queimadas

que alguns autores interpretavam como prova de que a cremação estava se tornando

usual no final do período micênico. Porém, as conclusões do pesquisador apresentam

problemas e conduzem a algumas dúvidas.

Condicionado pelas descobertas arqueológicas do seu tempo, Martin. P. Nilsson

considera que houve uma migração de Gregos para a Grécia. Ora, como se esclareceu

anteriormente, utilizando o critério linguístico43, não há como afirmar que tenha existido

gregos fora da Grécia. O povo helênico foi constituído em solo grego, do amalgama de

povos locais com migrantes que chegaram e se estabeleceram na Hélade44. O

problema de considerar a cremação um hábito do povo que chegava reside no fato de

que esse seria um povo indo-europeu que costumava inumar seus mortos não

praticando, como afirma M. P. Nilsson, a cremação. A prática da inumação entre os

indo-europeus pode ser constatada, como assinala Martin West (2007, p. 387), por

vestígios arqueológicos, não sendo possível, portanto, considerar que a cremação

fosse a principal forma utilizada por eles para desfazer-se dos corpos.

Sobre os meios empregados na Grécia antiga para se desfazer dos cadáveres,

Walter Burkert (1993, p. 372) considera que a cremação dos corpos é uma novidade

em relação às práticas funerárias micênicas:

Nos costumes fúnebres gregos, a ruptura com o mundo cultural micénico manifesta-se expressivamente, após 1220, na preponderância da inumação individual e da incineração [...] a incineração de cadáveres é a transformação mais espetacular em relação à época micénica. Na Idade do Bronze, ela é praticamente desconhecida na Grécia, mas é praticada pelos reis hititas, e também em Troia VI/ VII. Na Ática, ela aparece no século XII, no cemitério de Peráti. A epopéia homérica limita-se a tomar conhecimento dela. Na verdade ela nunca conseguiu impor-se em parte alguma. O cemitério principal de

43

Confira os argumentos no primeiro no capítulo da tese. 44

Os argumentos a favor e contra a tese das levas migratórias distintas para o continente grego foi apresentada no primeiro capítulo desta tese. Como se pode perceber, não há unanimidade entre os autores, e os debates são acirrados.

81

Atenas, defronte o portão de Dípilon, <<o Cerâmicos>>, é o que foi estudado de modo mais intensivo. Aí predomina a incineração no período protogeométrico, a qual tem preponderância apenas no século IX, enquanto desde o século VIII as inumações aumentaram de novo para passarem a constituir 30% dos

funerais (BURKERT, op. cit., p. 372).

O autor afirma (op. cit., p 373) que a interpretação proposta por Erwin Rohde

a cremação quebrar o poder de intervenção do morto no mundo dos vivos tem sido

acolhida com ceticismo por etnólogos e arqueólogos. Walter Burkert ainda argumenta

contra a tese do referido teórico afirmando que a inumação e a cremação ocorriam na

mesma região, como, por exemplo, em Creta onde as duas práticas podiam ser

realizadas até no mesmo túmulo e não há vestígios de que os ritos relacionados com

ambas diferiam em algum aspecto.

A destruição do cadáver, para Walter Burkert, portanto, não pode ser a causa da

cremação porque o corpo não é destruído. Ele observa que os ossos, depois da

incineração, eram recolhidos em urnas e conservados. A explicação para o predomínio

da inumação sobre a cremação, segundo o autor, deve ser buscada em fatores de

outra ordem, como, por exemplo, em questões econômicas. A inumação era um

processo menos dispendioso, e a escassez de lenha pode ter sido determinante para

sua configuração como prática mais comum.

Em Atenas, há, no principal cemitério, Cerâmico, evidências de que a cremação

era a forma predominante de se desfazer dos cadáveres no período protogeométrico

(entre 1050-900 a. C), como afirma Walter Burkert (1993, p. 373), e, somente no século

VIII a. C., as inumações aumentaram. Pondera o estudioso, no entanto, que a

interpretação dos dados é controversa e questiona se a chegada de novos imigrantes,

os dórios, seria o motivo de tal aumento da inumação, mormente aquelas nas quais se

utilizavam as cistas. As afirmações do autor, porém, como se comentará adiante, não

são totalmente partilhadas por A. M. Snodgrass (2000, p. 141), segundo o qual as

práticas funerárias são multifacetárias, de modo que facilmente se incorre em erros de

classificação quando a discussão se biparte entre inumação e cremação. Essa

bipolarização, segundo o autor, tem sido adotada como o primeiro critério de estudo do

tema.

A. M. Snodgrass, em seu livro The Dark Age of Greece (2000), no capítulo cujo

título é The Grave, analisa as formas empregadas por povos que outrora habitaram a

região denominada, posteriormente, Hélade, para se livrarem dos cadáveres. Ele não

82

se atém a um sítio específico e analisa túmulos na Ática, na Argólida e em Corinto, na

Tessália, nas Cicládicas, na Beócia, entre outras regiões. O autor utiliza critérios

arqueológicos e divide os túmulos analisados em tipos diferentes conforme o aspecto

físico de cada um deles.

O pesquisador aplica a denominação túmulos-tipo (op. cit.; p. 141) para aqueles

nos quais estão sepultados múltiplos corpos. Eles são divididos em túmulo de câmara,

thólos, túmulo de abóboda, que é uma mistura dos dois primeiros tipos, e, por último, o

túmulo que consistia de uma simples caverna.

Outro tipo apresentado pelo autor é o “túmulo-tipo individual” que podia ser do

mesmo modelo dos anteriores. Essa classificação do túmulo é importante para que se

compreenda a ocorrência da inumação e da cremação, porque esse túmulo individual é

denominado pelo autor como “túmulo-inumação” e podia consistir em um buraco ou um

“small shaft-grave” e estar contido, como se esclareceu anteriormente, nos túmulos

coletivos. A cista é um exemplo desse modelo e constitui-se de um buraco retangular

alinhado e frequentemente coberto de lajes de pedra. Duas variantes da cista são: a

cista monolítica, que era formada de um bloco de pedra escavado, e os sarcófagos de

terracota semelhantes aos de Larnax e de Hagia Triada; o ataúde confeccionado em

madeira era outra variante da cista. Atesta-se que vasos eram igualmente utilizados

para o sepultamento individual. Nesses modelos, empregava-se a inumação para se

desfazer dos corpos.

Os modelos apresentados e classificados pelo pesquisador são comuns nos

sítios mais conhecidos como, por exemplo, aqueles encontrados por arqueólogos do

final do século XIX em Micenas, mormente os túmulos que Heinrich Schliemann, que,

de modo equivocado, considerou como pertencentes a Agamêmnon e sua família.

Esses modelos são também atestados em outras regiões.

Quanto aos túmulos em que a cremação é comprovada, A. M. Snodgrass (op.

cit. p.142) denomina-os túmulos de cremação e considera-os mais limitados em

número. Ainda afirma o autor que essa prática ocorria, normalmente, em sepulturas

abertas, em urnas de enterro ou em urnas de cremação. A respeito da cremação, vale

mencionar as palavras do referido autor:

Mas cremações são encontradas, talvez indevidamente, em cistas e sarcófagos, em algumas áreas das terras gregas, em cada uma das sete formas de sepultamento coletivo listadas no parágrafo anterior. Um complemento importante das cremações sepulcrais, onde ele pode ser rastreado, é a pira funerária, frequentemente a uma pequena distância das

83

sepulturas, e, sem dúvida, usadas repetidamente; mas, em alguns casos, a incineração real ocorria na sepultura mesmo. Uma classificação por túmulos-tipo é, portanto, uma matéria complexa, e qualquer distinção dura e rápida

mostra-se difícil de alcançar (SNODGRASS, 2000, p.142. Tradução nossa).

Assim, com base nas pesquisas empreendias por A. M. Snodgrass, pode-se

deduzir que o estudo do emprego da inumação e da cremação, nos períodos que

compreendem a Antiga Idade do Ferro e a época posterior, deve ser norteado com

cautela porque essas formas de desfazer-se dos cadáveres oscilavam conforme o

período e a região, não havendo, de modo algum, uma completa predominância de

uma sobre a outratendo em vista ocorrerem lado a lado, mesmo em túmulos micênicos,

como atestam as evidências arqueológicas. Ora, o cemitério do Cerâmico, em Atenas,

é apresentado pelo autor (A. M. Snodgrass, 2000, p. 143) como prova da prática da

inumação e da cremação em um mesmo local.

Atesta o autor (op. cit., p. 144), com base em sepulturas analisadas, que, na

Idade do Bronze, os Atenienses, de modo semelhante a outros povos sob a influência

dos Micênicos, inumavam os mortos e continuaram a fazê-lo no período subsequente.

Porém, em Atenas se encontram evidências seguras de que a cremação era

largamente praticada, principalmente nas sepulturas do período Geométrico Tardio,

muito embora, no Geométrico Médio, as inumações superassem as cremações.

Novamente, no século VII a. C, o uso do fogo como meio de desfazer-se do cadáver

tem um aumento tão significativo que representa 70% dos funerais. Esse número só

viria a decair na segunda metade do século VI a. C quando, mais uma vez, há o

predomínio da inumação atestada tanto nos túmulos de ricos quanto nos túmulos de

pobres. Observa-se, portanto, que A. M. Snodgrass coloca em dúvida afirmação de

Walter Burkert (1993, p. 372) sobre a cremação ter sido praticamente desconhecida no

período do Bronze Antigo.

As discussões sobre o assunto, como se viu, são intensas e estão longe de

conclusões definitivas, de modo que se pretendeu aqui apresentar, sumariamente, as

principais teses a fim de que se possa compreender que a cremação, como forma de

desfazer-se dos cadáveres, nos Poemas Homéricos, não está em desacordo com as

tradições micênicas. À audiência, para a qual os aedos se apresentavam, a inumação e

a cremação eram práticas conhecidas, pois, de outro forma, não faria sentido

apresentar, ainda que veladamente a inumação.

84

3.2.1 Os ritos de sepultamento

Antes de iniciar a análise de passos de Ilíada e de Odisseia para a compreensão

do fenômeno dos funerais ali apresentados, devem-se considerar algumas noções

fundamentais sobre o estudo da religião grega. Convém lembrar que alguns termos

utilizados por estudiosos45 para se referirem à religião correspondem a atividades e

práticas várias da cultura helênica antiga e, em alguns casos, são até inexistentes,

embora as ações concretas evidenciem que os conceitos existem. J. Bremmer, por

exemplo, em seu livro Greek Religion (1994, p. 2), observa a inexistência de uma

palavra grega para designar religião, não obstante a forte religiosidade do povo. Para o

autor, isso se deve ao fato de a religião permear as atividades cotidianas, como

nascimento, maturidade morte, negócios, guerras, entre outras. Ora, todas as ações e

todos os eventos eram, segundo o autor, acompanhados de rituais e sujeitos às regras

religiosas.

Precisamente, ao tratar dos rituais, esbarra-se nesse problema, porque, como

observa J. Bremmer (op. cit., p. 38), na língua grega, há uma fragmentação do

vocabulário referente ao fenômeno que hoje historiadores da religião e antropólogos

denominam ‘ritual’, conceituando-o como uma representação padrão comportamental

repetitiva. Para o estudioso, uma das consequências dessa definição é que, facilmente,

se pode reduzir o ritual ao rito singular, como, por exemplo, a prece ou outra ação

semelhante. Assim, cria-se um problema: diferenciar os termos: ritual e rito.

O estudo das religiões antigas tem grande impulso a partir do século XIX, e a

religião grega, particularmente, apresentou-se como objeto de pesquisa porque, como

afirma Walter Burkert (1993, p. 21), ela é dada como algo familiar no Ocidente, embora

seja, na verdade, menos compreensível e conhecida quando observada mais

atentamente. O pesquisador ainda assinala (op. cit., p. 35) que a religião grega se

45 A opinião de Scott Noegel (2007, p. 22) sobre esse assunto mostra que para alguns pesquisadores o estudo da religião de povos antigos constitui um problema: “Other scholars question whether one can legitimately speak about ‘‘religion’’ in cultures that possess no corresponding word for it. Indeed, some wonder whether any proposed taxonomy for religion can account for its inherent diversity and plurality of forms, or whether any taxonomy can be free from ideology (Smith 2004, 169, 71–2, 179). Terms like ‘‘cult,’’ ‘‘sacrifice,’’ and ‘‘ritual,’’ whose definitions had long been taken for granted, have now become focal points for theoretical debate and redefinition (Bremmer 2004; Burkert 1983; Girard 1977; Hubert and Mauss 1964; Rappaport 1979; Smith 2004:145–59; Versnel 1993:16–89).”

85

apresenta sob a forma de mito e de ritual, sendo este último definido pelo autor da

seguinte forma:

O ritual, visto do exterior, é um programa de ações demonstrativas que é fixado de acordo com o tipo de execução, frequentemente, em função do lugar e da altura, e que é sagrado na medida em que toda a omissão ou interferência desencadeiam um profundo temor e implicam sanções. (BURKERT, 1993, p. 35)

Essa definição, portanto, considera o ritual como um conjunto de atos individuais

que podem ser interpretados como os ritos. J. Bremmer (1994, p. 38) critica Walter

Burkert ao acusá-lo de conceber o ritual como autoevidente a partir dos ritos que os

gregos denominavam ta\ nomizo/mena, isto é, aquilo que é conforme o costume. J.

Bremmer ainda observa (op. cit., 38) que se deve ter claro que o ritual não é uma

‘categoria nativa’. Porém, sobre essa afirmação, ele não dá maiores esclarecimentos.

Talvez, essa obscura afirmação de J. Bremmer possa ser esclarecida se for

interpretada de acordo com o conceito de ritual apresentado por Walter Burkert em

Homo Necans: The Antropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth, em que o

autor (1983, p. 29), utilizando categorias linguísticas, afirma ser o ritual uma forma de

comunicação, um tipo de linguagem, naturalmente relacionado com a fala humana.

Acrescenta, ainda, que o ritual pode ser compreendido como um fenômeno social que,

semelhante a uma língua, de modo algum é natural, ou como afirmou J. Bremmer, não

é uma categoria nativa. Essa conceituação de ritual como um fenômeno social está

presente nas seguintes palavras do autor:

Atualmente, existe mais a tendência em considerá-los como um sistema inicialmente autônomo, pseudolinguístico, a par e antes da língua falada. A ciência do comportamento vem ao encontro desta visão, tendo identificado a existência de, pelo menos, analogias com os rituais entre os animais. Nessa ótica, o ritual é uma ação divorciada da pragmática que possui um caráter semiótico. Em regra, a sua função repousa na formação de grupos, na solidarização ou nas disputas entre indivíduos da mesma espécie. Os rituais religiosos são ações desse tipo, na medida em que sinalizam uma orientação para o extra-humano ou sobre-humano. De fato, esta orientação para algo não

humano tem também uma função eminentemente social (BREMMER 1994, p. 125. Tradução nossa).

A diferença de ritual e rito pode parecer irrelevante, porém, como se pôde

observar, não há uma coincidência de significados entre os termos, e ritual pode ser

interpretado como uma noção coletiva de orientação para o sobrenatural que se

expressa em ações individuais que são os ritos. Com base nessa definição, ao

86

interpretar a expressão ritual funerário, pode-se dizer que ela consiste na noção de

obrigação para com o morto que passou para a esfera do mundo do além. Quando se

coloca a expressão ritual funerário no plural, rituais funerários, a ênfase recai na noção

de ação individual, isto é, na de rito, pois o conjunto de ações realizadas em favor do

morto passa a ser interpretado observando cada ato específico como, por exemplo, a

próthesis, a cremação e outros.

No tocante ao funeral, compõe-se de várias etapas, destacando-se, conforme

Robert Garland (1985, p. 21), três principais: próthesis, ekphorá e disposição dos

restos mortais depois da cremação ou da inumação, que, como se comentou, não é

explícita nos Poemas Homéricos. Observa o autor serem essas etapas detalhadas nos

relatos dos funerais de Pátroclo, Heitor e Aquiles46.

Após esses esclarecimentos, convém explicar os procedimentos executados nos

funerais descritos nos Poemas Homéricos entre os quais se destacam os funerais de

Pátroclo, do troiano Heitor e de Aquiles, verificando as etapas mencionadas por Robert

Garland.

A cerimônia funerária descrita com mais detalhes e considerada a mais suntuosa

é a realizada em favor de Pátroclo. Nessa cena, a próthesis do herói morto inicia-se a

pedido de Aquiles que ordena a limpeza de toda a sujeira47 do cadáver:

4Wv ei0pw\n e9ta/roisin e0ke/kleto di~ov 0Axilleu\v

a0mfi\ puri\ sth~sai tri/poda me/gan, o1fra ta/xista 46 Equivoca-se, porém, o autor ao afirmar que o termo grego “kêdeia” significa funeral e cita como exemplo os funerais dos heróis da guerra de Troia porque não há uma palavra específica nas epopeias que nomeie esse evento. O substantivo que deu origem a essa forma foi kh~dov cujos significados são: cuidado, preocupação e tristeza. Posteriormente, o termo passa a ter, segundo Pierre Chantraine, dois significados especiais: prestar as honras funerárias e cerimônia matrimonial. O vocábulo kh/deov pertence ao campo semântico de funeral porque seu significado é o de um sentimento de pesar, um sofrimento pela perda do ente querido. No entanto, não se restringe ao sentido fúnebre, como se observa nas seguintes passagens dos Poemas Homéricos: em Ilíada I, 445, passagem em que Odisseu entrega Criseida ao sacerdote Crises, justificando que aquela ação visava a afastar os sofrimentos impostos pelo deus arqueiro: “o4v nu~n 0Argei/oisi polu/stona kh/de’ e0fh~ken”. (ele agora afastou do meio dos Argivos muitos sofrimentos), V, 155, verso referente ao sentimento de Fénops, pai de Xanto e Tóon, ambos mortos por Diomedes: [...] pate/ri de\ go/on kai\ kh/dea lugra\ lei~p’ [...] (e para o pai deixou lamento e sofrimentos dolorosos) e em Odisseia I, 4, passo em que Atená lembra aos deuses os sofrimentos de

Odisseu: toi~si d’ 0Aqhnai/a le/ge kh/dea po/ll’ 0Odush~ov. (entre eles Atená falou dos muitos sofrimentos de Odisseu.). Note-se, no entanto, que em Ilíada XXIII, 159-160, o termo kh/deov significa preparar o funeral:

“ta/de d’ a0mfi\ ponhso/meq’ oi]si ma/lista kh/deov e0sti ne/kuv:”. (a respeito dessas coisas prepararemos aquelas entre as quais está principalmente o cuidado com o morto). Esses exemplos evidenciam que Robert Garland não enfatizou a polissemia do termo, mas atribuiu-lhe somente o significado de funeral. 47

Nesse passo, não se considerou a limpeza com purificação religiosa, mas como uma limpeza para restituir ao corpo de Heitor uma aparência próxima daquela que tinha em vida. Essa interpretação tem como base os versos referentes à limpeza do corpo de Heitor para evitar que o rei Príamo visse a condição em que encontrava o cadáver do príncipe troiano, conforme Ilíada XXIV, 582-90

87

Pa/troklon lou/seian a1po bro/ton ai9mato/enta. 345

oi9 de\ loetroxo/on tri/pod’ i3stasan e0n puri\ khle/w|,

e0n d’ u3dwr e1xean, u9po\ de\ cu/la dai~on e9lo/ntev.

ga/strhn me\n tri/podov pu~r a1mfete, qe/rmeto d’ u3dwr:

au0ta\r e0pei\ dh\ ze/ssen u3dwr e0ni\ h1nopi xalkw|~,

kai\ to/te dh\ lou~sa/n te kai\ h1leiyan li/p’ e0lai/w|, 350

e0n d’ w0teila\v plh~san a0lei/fatov e0nnew/roio:

e0n lexe/essi de\ qe/ntev e9anw|~ liti\ ka/luyan

e0v po/dav e0k kefalh~v, kaqu/perqe de\ fa/rei+ leukw~|.

pannu/xioi me\n e1peita po/dav taxu\n a0mf’ 0Axilh~a

Murmido/nev Pa/troklon a0nestena/xonto gow~tev. 355

Il. XVIII, 343-55

Assim falando, o divino Aquiles ordenou aos companheiros

colocar sobre o fogo uma grande trípode para que rapidamente

lavassem Pátroclo do sangue derramado. 345

E eles colocaram sobre o fogo ardente uma trípode de banho

e nela verteram água, e por baixo colocaram lenha.

O fogo cobriu o ventre da trípode e aqueceu a água.

Depois que a água ferveu no resplandecente bronze,

então, lavaram-no e ungiram-no com azeite 350

e encheram as feridas de azeite de nove anos de idade.

E, tendo-o colocado no leito, cobriram-no com uma

veste suntuosa

dos pés à cabeça, e, por cima, um branco véu.

Depois, durante toda a noite, em volta de Aquiles de pés velozes,

os Mirmidões, gemendo, lamentaram por Pátroclo. 355

Il. XVIII, 343-55

Há um claro exemplo de próthesis nesses versos porque o ritual funerário tem

início com a preparação do corpo para os ritos que serão praticados posteriormente. A

limpeza do corpo é feita por aqueles que eram próximos ao morto, seus parentes, ou,

88

no ambiente de guerra, pelos companheiros, que utilizavam água aquecida em uma

trípode48.

Embora os ritos funerários fossem obrigação dos mais próximos ao morto, a

próthesis de Heitor foi realizada por Aquiles que assassinara o herói troiano a fim de

que Príamo não visse o corpo dilacerado de seu filho:49:

dmw|a\v d’ e0kkale/sav lou~sai ke/let’ a0mfi/ t’ a0lei~yai,

no/sfin a0eira/sav, w9v mh\ Pri/amov i1doi ui9o/n,

mh\ o9 me\n a0xnume/nh| kradi/h| xo/lon ou0k e0ru/saito

pai~da i0dw/n, )Axilh~i d’ o0rinqei/h fi/lon h]tor, 585

kai/ e9 kataktei/neie, Dio\v d’ a0li/thtai e0fetma/v.

to\n d’ e0pei\ ou]n dmw|ai\ lou~san kai\ xri~san e0lai/w|,

a0mfi\ de/ min fa~rov kalo\n ba/lon h0de\ xitw~na,

au0to\v to/n g’ 0Axileu\v lexe/wn e0pe/qhken a0ei/rav,

su\n d’ e3tairoi h3eiran e0uce/sthn e0p’ a0ph/nhn.

Tendo chamado as servas, ordenou-lhes lavá-lo e untá-lo,

depois de levá-lo para longe, a fim de que Príamo não

visse o filho, e que este não retivesse a ira no coração

aflito ao ver o filho, e o coração afligisse a Aquiles,

e ele o matasse e viesse a contrariar o desígnio de Zeus.

Então depois que as servas o lavaram e o ungiram com azeite,

cobriram-no com uma bela capa e uma túnica.

O próprio Aquiles levantando-o colocou-o em um leito,

e com ele os companheiros o depositaram no carro polido.

Il. XXIV, 582-90

48

Diferente da próthesis é o banho de purificação ritual preparado para Heitor, conforme narram os

versos 443-4 do canto XXII de Ilíada que podem ser considerados uma fórmula: “a0mfi\ puri\ sth~sai tri/poda me/gan, o1fra pe/loito #Ektori qerma\ loetra\ ma/xhv e2k nosth/santi” (para colocarem sobre o fogo uma grande trípode, para que houvesse para Heitor água quente para o banho, quando retornasse da batalha). A finalidade do banho é a mesma, isto é, limpar as manchas de sangue; diferindo, porém, no seguinte aspecto: enquanto os Mirmidões lavavam o corpo sem vida de Pátroclo, Andrômaca manda preparar água para que Heitor, ainda vivo, fosse limpo do sangue da batalha. O banho, neste último caso, não se configura como próthesis tendo em vista que o “Matador de homens” estava vivo. 49

O motivo de Aquiles ter mandado limpar o corpo de Heitor é claramente mencionado nos versos 583-6 do canto XXIV, isto é, evitar a ira de Príamo ao ver o cadáver maltratado, porque isso poderia ocasionar um evento trágico que acarretaria a morte do ancião. Deve-se observar que a ação do Pelida não é motivada pela ordem divina porque Zeus (Il. XXIV, 110-19) determinava apenas que o corpo fosse restituído aos Troianos. Não se menciona qual a condição devia estar o corpo.

89

Como se observa, os ritos funerários prestados a Heitor são iniciados por aquele

que o matara e não pela família ou companheiros, conforme a tradição. Ora, a

contingência da situação é que provoca essa ação inusitada de próthesis feita pelo

inimigo que, nesse caso, se comovera ao ver o grave sentimento de perda do velho

Príamo. O rei de Troia recebe o corpo do filho e, veladamente, leva-o para dar

continuidade às obrigações rituais para com o morto.

Outra situação de próthesis pode ser notada em Odisseia XXIV, 36-46,

passagem em que a psykhé de Agamêmnon narra a próthesis de Aquiles quando

ambos se encontram, no Hades e conversam. Nesse diálogo, o Atrida conta a

dificuldade de resgatar o cadáver do Pelida e a preparação de seu funeral:

“o1lbie Phle/ov ui9e, qeoi~v epi0ei/kel’ 1Axilleu~,

o4v qa/nev e0n Troi/h| e9ka\v 1Argeov a0mfi\ de/ s’ a1lloi

ktei/nonto Trw/wn kai\ 0Axaiw~n kai\ ui[ev a1ristoi,

marna/menoi peri\ sei~o: su\ e0n strofa/liggi koni/hv

kei~so me/gav megalwsti/, lelasme/nov i9pposuna/wn 40

h9mei~v de\ pro/pan h]mar e0marna/meq’: ou0de/ ke pa/mpan

pausa/meqa ptole/mou, ei0 mh\ Zeu\v lai/lapi pau~den,

au0ta\r e0pei/ s’ e0pi\ nh~av e0nei/kamen e0k pole/moio,

ka/tqemen e0n lexe/essi, kaqh/rantev xro/a kalo\n

u3dati/ te liarw~| kai\ a0lei/fati: polla\ de/ s’ a0mfi\ 45

dak/rua qerma\ xe/on Danaoi\ kei/ronto/ te xai/tav.

“Feliz filho de Peleu, Aquiles semelhante aos deuses,

tu que morreste em Troia longe de Argos, e, à tua volta,

outros também morreram os mais nobres filhos dos Troianos

e dos Aqueus

lutando a tua volta, e, num vendaval de poeira, tu jazias,

grande em tua grandeza, já esquecido dos carros de combate. 40

E nós combatíamos todo o dia e nunca teríamos cessado

a luta se Zeus com seu furacão não nos tivesse parado.

Depois, então, longe do combate, levamos-te para

junto das naus, e

90

deitamos-te em um leito, purificando tua bela pele,

com água morna e com azeite; e muitas lágrimas 45

quentes, em volta de ti, os Danaos derramaram e

cortaram os cabelos.

Od. XXIV, 36-46

Nota-se também nesse relato mais breve da preparação do corpo de Aquiles a

purificação ritual e a colocação do corpo em um leito. Deve-se observar que, diferente

da narrativa anterior, isto é, da narrativa da próthesis de Pátroclo, em que são

utilizadas as formas verbais lou/seian e lou~san, aoristo de lou/w, na referência à

limpeza do corpo de Aquiles, emprega-se um termo distinto, kaqh/rantev, forma de

particípio de kaqai/rw (purificar), verbo denominativo que, conforme Pierre Chantraine

(1963, p. 479), significa, sobretudo, purificação religiosa, sentido que se encontra nas

palavras cognatas kaqa/rsiv e kaqa/rmov.

A próthesis era acompanhada do ato de lamentar ou de chorar o morto. O

lamento consistia numa ação importante na realização do ritual funerário, como bem

demonstra o verso 355 do canto XVIII de Ilíada inserido na narrativa da próthesis de

Pátroclo: Murmido/nev Pa/troklon a0nestena/xonto gow~ntev. (os Mirmidões, gemendo,

lamentaram por Pátroclo). Note-se que a forma gow~ntev, particípio presente do verbo

goa/w, lamentar, chorar, verter lágrimas, segundo Pierre Chantraine, (1968, p. 231),

não é denominativo de go/ov, que é substantivo secundário. O filólogo afirma que goa/w

apresenta a mesma noção de intensidade da ação verbal expressa, por exemplo, pelo

verbo boa/w que significa gritar para chamar atenção, sentido que se diferencia de

goa/w, gritar para lamentar. Pode-se observar que, em mais de uma situação, nos

Poemas Homéricos, utiliza-se o verbo goa/w ou o substantivo go/ov na referência ao

lamento ritual, como, por exemplo, em Ilíada, canto, VI, 499, no passo em que as

servas choram por Heitor pensando que o herói não regressasse vivo da guerra: ai9 me\n

e1ti zwo\n go/on #Hktora w[| oi1kw|. (e elas, na casa dele, lamentavam Heitor ainda vivo),

XVIII, 315, na alusão ao lamento dedicado ao filho de Menécio: pannu/xioi Pa/troklon

a0nestena/xonto gow~ntev (e por toda noite, gemendo, choraram por Pátroclo.) e, por fim,

XXIV, 664, na narração do funeral de Heitor em Ilíada: ‘e0nnh~mar me\n k’ au0to\n e0ni\

mega/roiv goa/oimen’ (‘por nove dias choremos por ele nos pátios do palácio’); em

91

Odisseia IX, 466-7, versos que narram o reencontro de Odisseu e seus companheiros

com os outros componentes da tripulação depois do trágico encontro com o Ciclope:

‘a0spa/sioi de\ fi/loiv e9ta/roisi fa/nhmen, oi4 fu/gomen qa/naton, tou\v de\ stena/xonto

gow~ntev. (para os queridos companheiros, mostramo-nos receptivos, nós que

escapamos da morte, mas eles choraram lamentando pelos outros.”).

Quanto ao termo go/ov apresenta-se, por sua vez, no contexto de lamento

fúnebre, como, por exemplo, em Ilíada, V, 155, na referência ao sentimento de Fénops,

pai de Xanto e Tóon, ambos mortos por Diomedes: [...] pate/ri de\ go/on kai\ kh/dea lugra\

lei~p’ [...] (e para o pai deixou lamento e sofrimentos dolorosos.), e, ainda, no canto

XVIII, 51, em que Tétis lidera o grupo de Nereidas a fim de lamentar por Aquiles que

sofria a perda de Pátroclo: sth/qea peplh/gonto, Qe/tiv d’ e0ch~rxe go/oio:(bateram no

peito, e Tétis iniciou o lamento). Há ainda outros termos para indicar o lamento

funerário, tais como threnos, ialemos e epikedeios.

A lamentação ritual é narrada de forma detalhada na passagem referente ao

funeral de Heitor em Ilíada XXIV, 19-24, versos em que se percebe a continuação da

próthesis que fora iniciada por Aquiles. Nessa cena, vale destacar que, depois de ter

sido Heitor transportado por Príamo para os pátios do palácio em Troia, o corpo do

herói foi depositado em uma cama a fim de ser lamentado:

3Wv e1faq’, oi9 de\ die/sthsan kai\ ei]can a0ph/nh|.

oi9 d’ e0pei\ ei0sa/gagon kluta\ dw/mata, to\n me\n e1peita

trhtoi~v e0n lexe/esi qe/san, para\ d’ ei]san a0oidou\v 20

qrh/nwn e0ca/rxouv, oi1 te stono/essan a0oidh\n

oi9 me\n a1r’ e0qrh/neon, e0pi\ de\ stena/xonto gunai~~kev.

th~|sin d’ 0Androma/xh leukw/lenov h]rxe go/oio,

3Ektorov a0ndrofo/noio ka/ph meta\ xersi\n e1xousa:

Falou desse modo, e eles ficaram à parte e deram

passagem ao carro.

Mas quando eles entraram no nobre palácio, e em seguida

o colocaram

em um leito cinzelado, e junto dele fizeram sentar

os cantores 720

que começaram os trenos, que lhe entoavam

92

um canto doloroso, e, em seguida, as mulheres lamentavam-se.

Entre elas, Andrômaca de alvos braços iniciou o lamento,

tendo nas mãos a cabeça de Heitor matador de homens:

Ilíada XXIV, 718-24

Vê-se nesses versos a presença de cantores exercendo uma atividade que pode

ser considerada especializada porque eles iniciam o canto fúnebre ao qual as mulheres

presentes parecem formar outro coro em resposta aos lamentos.

Após os ritos iniciais, isto é, a próthesis e a lamentação do morto, passa-se à

segunda etapa do ritual funerário que consiste na ação de se desfazer do cadáver, pois

um corpo insepulto obrigaria a alma a errar entre o mundo dos mortos e o mundo dos

vivos50. O cumprimento dessa etapa dos ritos funerários é critério indispensável para

que o processo51 de morte seja concluído, e a psykhé do morto entre no reino de

Hades e aí permaneça para sempre. O ato de se desfazer do cadáver é, portanto, uma

obrigação dos vivos que mantiveram em vida uma relação com o morto, e é

precisamente por esse motivo que a psykhé de Pátrocolo, recém-falecido, pede a

Aquiles que lhe sepulte o corpo, pois, embora seu funeral já tivesse sido iniciado, era

preciso concluir seu processo de morte:

h]lqe d’ e0pi\ yuxh\ Patroklh~ov deiloi~o, 65

pa/nt’ au0tw~| me/geqo/v te kai\ o1mmata ka/l’ e0ikui~a,

kai\ fwnh/n, kai\ toi~a peri\ xroi6 ei3mata e3sto:

sth~ d’ a1r’ u9pe\r kefalh~v kai/ min pro\v mu~qon e1eipen:

“eu3deiv, au0ta\r e0mei~o lelasme/nov e1pleu, 0Axilleu~.

ou0 me/n meu zw/ontov a0kh/deiv, a0lla\ qano/ntov: 70

qa/pte me o3tti ta/xista, pu/lav 0Ai/dao perh/sw.

th~le/ me ei1rgousi yuxai/, ei1dwla kamo/ntwn,

ou0 de/ me/ pw mi/sgesqai u9per potamoio e0w~sin,

a0ll’ au0twv a0la/lhmai a0n’ eu0rupule\v 1Aidov dw~.

kai\ moi do\v xei~r’, o0lofu/romai: ou0 ga\r e1t’ au]tiv 75

ni/somai e0c 0Ai/da~o, e0ph/n me puro\v lela/xhte.

50

Atesta essa concepção o pedido da psykhé de Pátroclo para que seu corpo fosse sepultado. 51

Sobre o tema da morte como um processo que começa com a separação entre o corpo e a psykhé e

termina com os ritos funerários, confira a dissertação de mestrado A Yuxh/ nos Poemas Homéricos defendida em 2010.

93

E aproximou-se a alma do desgraçado Pátroclo, 65

em tudo semelhante a ele, na altura, nos belos olhos

e na voz, e as mesmas roupas cobriam-lhe o corpo:

de pé, junto à cabeça de Aquiles, dirigiu-lhe a palavra:

“Dormes, ó Aquiles, já estás esquecido de mim.

Não me abandonavas quando eu estava vivo, mas morto . 70

Sepulta-me o mais rápido possível, para que eu atravesse

as portas do Hades.

À distância mantêm-me as psykhaí, imagens dos mortos,

nem permitem unir-me a elas do outro lado do rio.

Assim, e sem cessar, vagueio pela mansão de largos portões de

Hades.

Dá-me a tua mão, eu te imploro. Na verdade, não retornarei

novamente 75

do Hades, depois de me concederes do fogo que me é devido.

(Il. XXIII, 65-76)

Como primeiro elemento de análise desses versos, convém notar as expressões

relativas ao sepultamento: qa/pte me (sepulta-me) e me puro\v lela/xhte (ritos funerários’)

porque elas podem facilmente conduzir a equívocos de interpretação quando vertidas

para o vernáculo.

O primeiro problema surge ao se traduzir o verbo qa/pte, forma imperativa de

qa/ptw, cuja raiz é *qaf, por “sepultar”, tendo em vista que nos Poemas Homéricos a

cremação é a forma predominante de se desfazer dos cadáveres. O verbo utilizado

pelo narrador é qa/ptw que, no vernáculo, encerra a noção de inumação52, estranha ao

termo grego (GARLAND, 1985, p. 34). A tradução do verbo para a língua portuguesa,

52

Sobre a prática da inumação os Poemas Homéricos, José Ribeiro Ferreira (1983, p. 44) faz a seguinte afirmação: “ Parecem ser, contudo, as práticas fúnebres e os usos nupciais, alguns dos pontos que os Poemas Homéricos mais se afastam dos costumes micênicos. Se, por um lado, os funerais de Pátroclo revestem um fausto que os tornam dignos dos reis micênicos, estes são, no entanto, inumados em grandes túmulos familiares, ao passo que os heróis homéricos são cremados, embora a Ilíada também não desconheça a inumação.”. Para corroborar sua afirmação, o autor utiliza os versos 174 -75 do canto IV de Ilíada.

94

normalmente, é “sepultar53” o que implica a ideia de inumação, sem deixar margem

para que se perceba a prática da inumação. Uma tradução mais conveniente de qa/ptw

seria “prestar os ritos funerários” entre os quais a cremação era um dos elementos.

Não menos problemática é a tradução de puro\v lela/xhte por “ritos funerários”.

A expressão é composta da forma de subjuntivo aoristo do verbo lagxa/nw que tem

como complemento puro/v genitivo partitivo de pu/r e, literalmente, no vernáculo,

significa “conceder do fogo”, ou seja, desfazer-se do cadáver por meio da cremação.

Esse ato, portanto, não se harmoniza com a tradução de qa/pte por sepultar.

A forma de se desfazer do corpo utilizando o fogo também é descrita nos versos

que narram a explicação dada por Anticleia a Odisseu quando este a interroga sobre a

morte:

“w4v e0fa/mhn, h9 d’ au0ti/k’ a0mei/beto po/tnia mh/thr: 215

‘w1 moi, te/knon e0mo/n, peri/ pa/ntwn ka/mmore fwtw~n,

ou1 ti/ se Persefo/neia Dio\v quga/thr a0pafi/skei,

a0ll’ au3th di/kh e0sti\ brotw~n, o3te ti/v ke qa/nh|sin:

ou0 ga\r e1ti sa/rkav te kai\ o0ste/a i3nev e1xousin,

a0lla\ ta\ me/n te puro\v kratero\n me/nov ai0qome/noio 220

damna|~, e0pei/ ke prw~ta li/ph| leu/k’ o0ste/a qumo/v

yuxh\ d’ h0u/t’ o1neirov a0poptame/nh pepo/thtai.

“Assim falei, e, imediatamente, minha soberana mãe 215

respondeu:

Ai de mim, meu filho, o mais desgraçado de todos os homens!

De modo algum, te engana Perséfone, filha de Zeus:

essa é a lei dos mortais, quando qualquer um morre; de fato, não

mais os tendões seguram a carne e os ossos,

53 Ora, o verbo sepultar em vernáculo origina-se do radical da forma de supino do latim sepelīre que podia significar prestar os ritos funerários a alguém “cremando-lhe o corpo” ou “colocar no sepulcro”, ou seja, o verbo designa tanto a prática da cremação quanto da inumação. Esse último significado é o mesmo que o verbo grego assumiria posteriormente e o único que o termo encerra em língua portuguesa. Nos Poemas Homéricos, porém, a única forma evidente de se desfazer do cadáver, como se demonstrou, é a cremação. Desse modo, a tradução de qa/pte me por “sepulta-me” parece não ser adequada porque a prática do sepultamento não se configura de forma clara nas epopeias. No entanto, essa tradução foi mantida levando-se em conta as traduções tradicionais e significado que o verbo latino possuía.

95

mas domina-os a força poderosa do fogo ardente, 220

quando o thymós primeiramente abandona os ossos brancos,

e a psykhé, como um sonho, batendo as asas, se desvanece.

Od. XI, 215-22

A fala de Anticleia é importante porque sua morte acontece em um contexto de

paz, e isso invalida a interpretação de que a cremação, predominante nos Poemas

Homéricos, era um processo condicionado por uma situação extraordinária, um

ambiente de guerra, como se deduz, por exemplo, dos versos que narram o tratamento

dado aos corpos daqueles que morreram vitimados pelos tiros disparados por Apolo,

em Ilíada I, 52: ai0ei\ de\ purai\ neku/wn kai/onto qameiai/. (sempre ardiam numerosas piras

de mortos), ou, ainda, da narrativa do epísódio em que Aqueus e Troianos

estabeleceram uma trégua a fim dar o tratamento devido aos mortos em combate:

kai\ de\ to/d’ h0nw/geon ei0pei~n e1pov, ai1 k’ e0qe/lhte

pau/sasqai plole/moio dushxe/ov, ei0v o3 ke nekrou\v 395

kh/omen: u3steron au]te maxhso/meq’, ei0v o3 ke dai/mown

a1mme diakri/nh|, dw/h? d’ e9te/roisi/ ge ni/khn.”

“Wv e1faq’, oi9 d’ a1ra pa/ntev a0kh\n e0ge/ronto siwph|=:

o0ye\ de\ dh\ mete/eipe boh\n a0gaqo\v Diomh/dhv:

“mh/t’ a1r tiv nu=n kth/mat’ 0Aleca/ndroio dexe/sqw 400

mh/q’ 9Ele/nhn: gnwnto\n de\ kai\ o4v ma/la nh/pio/v e0stin,

w9v h1de Trw/essin o0le/qrou pei/rat’ e0fh=ptai.”

4Wv e1faq’, oi9 d’ a1ra pa/ntev e0pi/axon ui[ev 0Axaiw=n,

mu=qon a0gassa/menoi Diomh/dhv i9ppoda/moio:

kai\ to/t’ a1r’ 0Idaion prose/fh krei/wn 0Agame/mnwn: 405

“0Idai~’ h] toi mu~qon 0Axaiw~n au0to\v a0kou/eiv,

w3v toi u9pokri/nontai: e0moi\ d’ e0pianda/nei ou3twv.

a0mfi\ de\ nekro~sin katakaie/men ou1 ti megai/rw:

ou0 ga\r tiv feidw\ neku/wn katateqnhw/twn

gi/gnet’, e0pei\ ke qa/nwsi, puro\v meilisse/men w]ka. 410

o3rkia de\ Zeu\v i1stw, e0ri/gdoupov po/siv 3Hrhv.”

4Wv ei0pw\n to\ skh=ptron a0ne/sxeqe pa=sin qeoi=sin,

96

a1yorron d’ 0Idai=ov e1bh proti\ 1Ilion i9rh/n.

oi9 d’ e3at’ ei0n agorh|= Trw=ev kai\ Dardani/wnev,

pa/ntev o9rmhgere/ev, potide/gmenoi o9ppo/t’ a1r’ e1lqoi 415

0Idai=oi: o9 d’ a1r’ h]lqe kai\ a0ggeli/hn a0pe/eipe

sta\v e0n me/ssoisin toi\ d’ o0pli/zonto ma/l’ w]ka,

a0mfo/teron, ne/kua\v t’ a0ge/men, e3teroi de\ me/q’ u3lhn:

0Argei=oi d’ e9te/rwqen e0u+sse/lmwn a0po\ nhw=n

o0tru/nonto ne/kuv t’ a0ge/men, e3teroi de\ me/q’ u3lhn. 420

)He/liov me\n e1peita ne/on prose/ballen a0rou/rav,

e0c a0kalarei/tao barurro/ou 0Wkeanoi=o

ou0rano\n ei0saniw=n oi9 d’ h1nteon a0llh/loisin.

e1nqa diagnw=nai xalepw=v h]n a1ndra e3kaston:

a0ll’ u3dati ni/zontev a1po bro/ton ai0mato/enta, 425

da/krua qerma\ xe/ontev a0maca/wn e0pa/eiran,

ou0d’ ei1a klai/eien Pri/amov me/gav:oi9 de\ siwph|=

nekrou\v purkai+h=v e0penh/neon a0xnu/menoi kh=r,

e0n de\ puri\ prh/santev e1ban proti\ 1Ilian i9rh/n.

w4v d’ au1twv e9te/rwqen e0u+knh/midev 0Axaioi\ 430

nekrou\v purkai+h=v e0pinh/on a0xnu/menoi kh=r,

e0n de\ puri\ prh/santev e1ban koi/lav e0pi\ nh=av.

E pedem-me para dizer esta palavra, se vós desejardes

parar a guerra dolorosa até que os mortos queimemos. 395

Mais tarde combateremos novamente até que a divindade

nos julgue e dê a vitória para um ou outro.

Falou desse modo, e eles todos permaneceram em silêncio.

Depois falou Diomedes valoroso por soltar o grito de guerra:

“Que ninguém agora receba os tesouros de Alexandre 400

nem mesmo Helena; é conhecido até para quem é muito ingênuo:

que já está destinado para os Troianos a destruição.”

Assim falou, e eles, todos os filhos dos Aqueus, aplaudiram,

admirando o discurso de Diomedes domador de cavalos.

A Ideu, então, se endereça o poderoso Agamêmnon: 405

“Ideu, tu mesmo escutas as palavras dos Aqueus,

97

o modo como respondem a ti: para mim, isso me agrada.

Quanto aos mortos, não me oponho que os queimem:

pois para alguém morto entre os mortos, depois

que morre, não há negação do fogo que dá rapidamente a

consolação. 410

Que Zeus, esposo tonitruante de Hera, conheça o juramento”.

Depois de falar assim, ergueu o cetro para todos os deuses,

e Ideu retornou na direção da sagrada Ílion.

Na assembleia estavam sentados Troianos e Dardânidas,

todos reunidos esperando a volta de Ideu. 415

Ele chegou e transmitiu a mensagem em pé

no meio deles; e eles, muito depressa, se prepararam para ambas

as tarefas: uns reunir os mortos, outros reunir a lenha.

Os Argivos, do mesmo modo, saíram de junto das naus bem

construídas, e alguns juntaram os mortos, outros a lenha. 420

Depois, o Sol lançou os raios sobre os campos erguendo-se

do Oceano sonoro de correntes profundas em direção

ao céu. Eles encontravam uns aos outros.

Ali dificilmente era possível reconhecer cada homem.

Mas com água, enquanto os lavavam do sangue mortal, 425

derramavam lágrimas quentes levando-os para os carroças.

O grande Príamo não permitiu chorar; eles, em silêncio,

com o coração sofrido empilhavam os mortos nas piras,

e, depois de queimá-los no fogo, retornaram para a sagrada Ílion.

Do mesmo modo, os Aqueus de belas cnêmides, 430

aflitos em seu coração , empilharam os mortos nas piras,

e, depois de os queimarem no fogo, retornaram para às côncavas

naus.

Il. VII, 393-432

A ação de se desfazer dos cadáveres em Ilíada e Odisseia, porém, não é de

simples compreensão porque se, por um lado, é inegável a predominância da

cremação em ambiente de guerra ou de paz, por outro, há menção da prática de

98

inumação, que é um processo totalmente diverso, como, por exemplo, em Odisseia III,

276-85, passagem em que Nestor, narrando a Telêmaco sua volta para casa em

companhia do filho de Atreu, menciona a interrupção da viagem para que eles

sepultassem o timoneiro Frôntis, filho de Onétor:

“h9mei=v me\n ga\r a3ma ple/omen Troi/hqen i0o/ntev,

0Atrei+/dhv kai\ e0gw/, fi/la ei0do/tev a0llh/loisin:

a0ll’ o3te Sou/nion i9ro\n a0fiko/meq’, a1kron 0Aqhne/wn,

e1nqa kubernh/thn Menela/ou Foi=bov 0Apo/llwn

oi[v a0ganoi=v bele/essin e0poixo/menov kate/pefne, 280

phda/lion meta\ xersi\ qeou/shv nho\v e1xonta,

Fro/ntin 0Onhtori/dhn, o4v e0kai/nuto fu=l’ a0nqrw/pwn

nh=a kubernh=sai, o9po/te spe/rxoien a1ellai.

w4v o9 me\n e1nqa kate/sxet’, e0peigo/menov per o9doi=o,

o1fr’ e3taron qa/ptoi kai\ kte/rea kteri/seien. 285

Na verdade, nós navegávamos juntos quando vínhamos de Troia,

o Atrida e eu, temos sentimentos de amizade um pelo outro;

mas quando chegamos ao sagrado Súnion,

topo de Atenas,

ali o timoneiro de Menelau, Febo Apolo,

atingindo com suas setas suaves, matou, 208

enquanto tinha nas mãos o leme da rápida nau,

Frôntis, filho de Onetor, que era superior a todos os homens

ao comandar a nau quando os ventos sopravam rápido.

Assim, ele se deteve, embora quisesse seguir o caminho,

a fim de sepultar o companheiro e queimar suas posses. 285

Od. III, 276-85

A morte do timoneiro ocorreu por meio natural, descrito nesses versos como

ocasionada pelos disparos de Apolo. O mesmo processo é mencionado por Odisseu ao

interpelar sua mãe sobre a natureza de sua morte em Odisseia, XI, 171-2: “h] dolixh\

99

nou=sov h] 0Artemiv ioxe/aira a0ganoi=v bele/essin e0poixome/nh kate/pefne;”. (ou longa

doença ou Ártemis arqueira que se aproximando, com setas suaves, matou-te?)

Particularmente, por se tratar de uma mulher, sugere-se que Ártemis é quem teria

disparado as setas mortais.

Embora a causa da morte de ambos, Frôntis e Anticleia, tenha sido natural e

ocorrido em ambiente de paz, utilizam-se meios diversos para se desfazer dos

cadáveres. Anticleia foi cremada, como se demonstrou anteriormente, e o timoneiro

Frôntis parece ter sido sepultado, como denota a ação expressa pelo verbo qa/ptoi no

verso 285: o1fr’ e3taron qa/ptoi kai\ kte/rea kteri/seien. Nessa oração, vale notar a forma

verbal qa/ptoi, optativo de qa/ptw, já analisado anteriormente quando se mencionou o

pedido de sepultamento feito pela psykhé de Pátroclo, e a expressão referente à

prestação dos ritos funerários prestados a Frôntis kte/rea kteri/seien, composta da forma

de aoristo do verbo kteirei+/zw cujo complemento é kte/rea. De modo geral, traduz-se

esse verbo por “prestar os ritos funerários”, porém o complemento deve ser traduzido

por pertences preferidos, ou bens possuídos e queridos do morto que deviam ser

queimados na ocasião de seu funeral. Desse modo, não se deve interpretar, a não ser

de modo indireto, que o cadáver é objeto do fogo porque não há menção alguma disso

no verso.

A comparação desse verso com os referentes ao pedido de sepultamento feito

pela psykhé de Pátroclo (“qa/pte me o3tti ta/xista, pu/lav 0Ai/dao perh/sw e , e0ph/n me

puro\v lela/xhte”) evidencia uma diferença fundamental em relação ao objeto

destinado ao fogo: a psykhé do querido amigo de Aquiles pede que seu corpo seja

consumido pelo fogo enquanto, no episódio do funeral de Frôntis, seus objetos

preferidos é que são entregues ao fogo.

Se o passo mencionado for comparado com os versos em que Elpenor,

companheiro de Odisseu, pede ao herói para não deixar seu corpo insepulto, em

Odisseia, XI, 71-8, fica evidente uma grande diferença entre as duas ações:

e1nqa s’ e1peita, a1nac, ke/lomai mnh/sasqai e0mei=o.

mh/ a1klauton a1qapton i9w\n o1pisqen katalei/pen

nosfisqei/v, mh/ toi/ qew=n mh/nima ge/gnwmai,

a0lla/ me kakkh~ai su\n teu/xesin, a1ssai moi e0stin,

sh=ma te/ moi xeu=ai polih=v e0pi\ qini\ qala/sshv, 75

a0ndro\v dusth/noio kai\ e0ssome/noisi puqe/sqai.

100

tau=ta te/ moi tele/sai ph=cai/ t’ e0pi\ tu/mbw| e0retmo/n,

tw=| kai\ zwo\v e1resson e0w\n met’ e0moi=v e9ta/roisin.

Ali, em seguida, ó senhor, peço lembrar-te de mim,

não me deixes para trás sem choro e insepulto quando

regressares,

a fim de que eu não me torne para ti maldição dos deuses

por ter sido abandonado,

mas, queima-me junto com as armas que são minhas,

e levanta um monumento funerário para mim, sobre a areia

do cinzento mar, 75

para os pósteros saberem de um homem desafortunado.

Cumpre essas coisas para mim e finca na tumba o remo, com

o qual, quando vivo, eu remava junto com meus companheiros.

Od. XI, 71-78

O pedido do desastrado marinheiro, para que lhe fossem prestados os ritos

funerários, embora semelhante aos procedimentos que seriam ministrados a Frôntis,

apresenta dados diversos. Pois bem, Elpenor pede a Odisseu que lhe queime o corpo

junto com suas armas; a0lla/ me kakkh~ai su\n teu/xesin, a1ssai moi e0stin (queima-me junto

com as armas, aquelas que são minhas). O verbo empregado é a forma de infinitivo

aoristo de katakai/w, “colocar no fogo, queimar”, que tem como complemento o

pronome me seguido do sintagma adverbial su\n teu/xesin, a1ssai moi e0stin, indicativos de

que serão queimados o corpo e as armas do falecido.

Quanto ao remo utilizado por Elpenor, ao longo de sua atividade de marinheiro, um

objeto querido, não será ele destinado ao fogo, contrariamente ao que ocorreu no

episódio de Frôntis cujas posses seriam queimadas, como evidencia o sintagma kte/rea

kteri/seien (queimar suas posses).

Portanto, observa-se que os dois heróis, Menelau e Odisseu, devem interromper

suas viagens a fim de prestar as honras fúnebres aos companheiros falecidos. O

cadáver de Elpenor, morto em ambiente de paz, será cremado em uma clara referência

ao processo mais comum utilizado nos Poemas Homéricos para se desfazer dos

corpos. Quanto ao timoneiro Frôntis, porém, há indício de inumação de modo que é

possível imaginar que ao poeta e a sua audiência os dois processos eram familiares.

101

Esse não é um fato isolado, como se poderia argumentar, porque no episódio do

sepultamento de Sarpédon não há referência alguma ao processo de cremação,

conforme se observa nos versos seguintes:

kai\ to/t’ 0Apo/llwna prose/fh nefelhgere/ta Zeu/v:

“ei0 d’ a1ge nu=n, fi/le Foi=be, kelainefe\v ai[ma ka/qhron

e0lqw\n e0k bele/wn Sarphdo/na, kai\ min e1peita

pollo\n a0popro\ fe/rwn lou=son potamoi=o r9oh|=si

xri=so\n t’ a0mbrosi/h|, peri\ d’ a1mbrota ei3mata e3sson: 670

pe/mpe de/ min pompoi=sin a3ma kraipnoi=si fe/resqai,

3Upnw| kai\ Qana/tw| diduma/osin, oi3 r9a/ min w]ka

qh/sous’ e0n Luki/hv pi/oni dh/mw|,

e1nqa e9 tarxu/sousi kasi/gnhtoi/ te e1tai te

tu/mbw| te sth/lh| te: to\ ga\r ge/rav e0sti\ qano/ntwn.” 675

E então que a Apolo disse Zeus que comanda nuvens

“vai tu agora, ó amado Febo, e limpa o negro sangue

de Sarpédon; depois de o teres tirado do meio dos dardos

e depois o teres levado

para muito longe, lava- o nas correntes do rio,

unge-o com ambrosia e veste-o com roupas imortais. 670

Entrega-o a dois pressurosos portadores para o levarem,

Sono e Morte, dois irmãos, eles que rapidamente

o colocarão na fértil terra da ampla Lícia,

onde seus irmãos e parentes lhe prestarão honras fúnebres,

com sepultura e estela: pois esse é o prêmio dos mortos. 675

Il. XVI, 666-75

A narrativa da ordem de Zeus para a execução dos ritos funerários de Sarpédon

mostra-se reveladora para o esclarecimento dos meios utilizados para se desfazer do

corpo, principalmente quando se faz uma comparação com os passos já

102

mencionados54. Os ritos funerários acontecerão na Lícia, distante, portanto, do

ambiente de batalha e semelhante ao ambiente de paz mencionado nos episódios de

Anticleia, Elpenor e Frôntis. Porém, essa é a única característica comum dos eventos

fúnebres mencionados. Anticleia e Elpenor são cremados. Para este último há menção

de um túmulo no qual seriam depositados seus restos mortais depois de consumidos

pelo fogo: tau=ta te/ moi tele/sai ph=cai/ t’ e0pi\ tu/mbw| e0retmo/n (Cumpre essas coisas para

mim e finca na tumba o remo). Por outro lado, não há, como se observou, menção à

cremação do corpo de Frôntis, descreve-se somente a queima de suas posses; nota-

se, porém, o emprego do verbo qa/ptw que aponta para a inumação.

Na passagem supracitada referente a Sarpédon, observa-se o emprego do

verbo tarxu/sousi que, segundo Pierre Chantraine, significa prestar os funerais solenes

os quais, como se comentou, são um conjunto de ritos. Não há na passagem indicação

do uso do fogo, de modo que se pode inferir a prática da inumação, ideia reforçada

pela presença dos termos tu/mbw| e sth/lh| (túmulo e estela). Essa tese é corroborada

pelo uso do mesmo verbo (tarxu/w), em Ilíada VII, 85, passo em que Heitor expressa o

desejo de duelar com algum guerreiro aqueu e propõe a devolução do corpo de quem

for morto para esse seja sepultado55: o1fra e9 tarxu/wsi ka/rh komo/wntev 0Axaioi/. (a fim

de que os Aqueus de longas cabeleiras o sepultem.).

O fato é que não se pode conceber que no ambiente de execução da épica

homérica os processos de inumação e cremação fossem incongruentes ou

contraditórios porque ambos eram conhecidos do público. Além disso, como se

demonstrou anteriormente, há comprovação arqueológica do uso concomitante dos

dois modos de se desfazer dos cadáveres no século VIII a. C. Ratificam-no os

procedimentos nos funerais de Pátroclo: o herói, depois cremado, tem seus ossos

imediatamente recolhidos em uma urna de ouro a fim de serem sepultados

posteriormente, como bem exemplificam os versos 236-45 do canto XXIII de Ilíada56:

54

George E. Mylonas (1948, p. 62) observa que a forma empregada para se desfazer do corpo de Sarpédon não é clara nos versos porque não “sabemos” o que significa realmente o termo e9tarxu/sousi. Sobre os funerais de Frôntis, o autor é de opinião que não há certeza quanto ao modo empregado pois os versos passam uma noção muito vaga. 55

Esse passo é particularmente interessante porque a proposta feita por Heitor é de que o corpo de quem for morto, seja ele, seja o guerreiro aqueu que se dispuser a enfrentá-lo, seja devolvido para receber os ritos funerários devidos. No caso de ele ser morto, a expressão empregada para se referir aos ritos que deverão ser prestados a ele é o1fra puro/v me Trw=ev kai\Trw/wn a1loxoi lela/xwsi qano/nton, enquanto para o guerreiro aqueu se emprega a expressão referida que é diferente. Indicaria isso que os dois povos utilizariam processos diferentes? 56

Observa-se que o mesmo procedimento é adotado em relação ao corpo de Heitor. Os Troianos, conforme Ilíada XXIV, 788-804, após a queima do corpo de Heitor, recolhem seus ossos e os depositam

103

“0Atrei+/dh te kai\ a1lloi a0risth=ev Panaxaiw=n,

prw=ton me\n kata\ purkai+h\n sbe/sat’ ai1qopi oi1now|

pa=san, o9po/sson e0pe/sxe puro\v me/nov au0ta\r e1peita

o0ste/a Patro/kloio Menoitia/dao le/gwmen

eu] diagiggnw/skontev: a0risfrade/a de\ te/tuktai: 240

e0n me/ssh| ga\r e1keito purh|=, toi\ d’ a1lloi a1neuqen

e0sxatih|= kai/ont’ e0pimi\c i3ppoi te kai\ a1ndrev.

kai\ ta\ me\n xruse/h| fia/lh| kai\ di/plaki dhmw|=

qei/omen, ei0v o3 ken au0to\v e0gnw\n 1Aidi keu/qwmai.

Atrida e demais nobres entre todos os Aqueus,

primeiro toda a pira apagai com brilhante vinho

tanto quanto a força do fogo se espalha, depois,

os ossos de Pátroclo, filho de Menécio, recolhamos

distinguindo-os, bem fáceis são de reconhecer. 240

De fato, ele estava no meio da pira, os outros queimaram à

parte na borda, confusamente cavalos e homens.

E, em uma urna dourada, em camada dupla de gordura, os

coloquemos, até que eu mesmo me reconheça escondido

no Hades.

Il. XXIII, 236-44

3.2.2 O funeral de Pátroclo: culto aos mortos

Um dos eventos mais marcantes de Ilíada é o funeral de Pátroclo,

acontecimento suntuoso cuja narrativa é elaborada em detalhes. Precisamente por se

tratar de um episódio que envolve elementos importantes do ritual funerário, proceder-

se-á a uma análise dos versos referentes a essa passagem do poema, a fim de mostrar

que o culto dos mortos não era algo desconhecido do aedo e de sua audiência, ao

contrário, era uma prática conhecida que remontava ao período micênico.

em uma urna colocada, posteriormente, em um túmulo, agindo, pois, de modo semelhante aos Aqueus no episódio do funeral de Pátroclo.

104

É preciso notar, primeiramente, que o funeral de Pátroclo apresenta algumas

particularidades que permitem relacioná-lo com os sepultamentos micênicos feitos em

túmulos circulares, pois o túmulo do filho de Menécio é descrito em Ilíada XXIII, 255,

como um amontoado de terra em volta do local onde ardera a pira funerária:

tornw/santo de\ sh=ma qemei/lia/ te proba/lonto a0mfi\ purh/n. (demarcaram o círculo e

lançaram os alicerces do túmulo em torno da pira).

É digna de nota a forma verbal tornw/santo, aoristo do verbo denominativo

torno/w, (circular, demarcar com um círculo) que se origina do substantivo to/rnov

(compasso de carpinteiro). A noção de circularidade é reforçada pela preposição a0mfi\

(em volta de, em torno de) e reiterada, posteriormente, pelos versos que narram o

ultraje ao corpo de Heitor, arrastado por Aquiles em torno do túmulo: tri\v d’ e0ru/sav

peri\ sh=ma Menoitia/dao qano/ntov. (arrastando por três vezes em volta do túmulo do

filho morto de Menécio). Observa-se, portanto, a similaridade com a forma tumular

micênica.

O cadáver de Pátroclo já estava pronto para receber os ritos finais porque a

próthesis já havia sido realizada; no entanto, ele jazia insepulto sendo necessário que

sua psykhé exortasse a Aquiles a fim de que se cumprissem as obrigações funerárias,

isto é, a cremação e o sepultamento dos restos mortais.

A ordem para que se recolhesse a lenha para alimentar a pira foi dada por

Agamêmnon, os guerreiros cumpriram e amontoaram achas em grande quantidade

onde deveria ser construído o túmulo em que seria sepultado Pátroclo e,

posteriormente, Aquiles, conforme os versos 125-7 do canto XXIII de Ilíada: “ka\d’ a1r’

e0p’ a0kth=v ba/llon e0pisxerw/, e1nq’ a1r’ 0Axilleu\v/ fra/ssato Patro/klw| me/ga h0ri/on h9de\ oi[

au0tw=|.” (Na praia, lançaram-nas, cada um a sua vez, lá onde Aquiles planejava para

Pátroclo e para si um grande túmulo.)

As ações rituais do funeral são descritas de forma minuciosa, porém serão

analisadas apenas aquelas consideradas mais importantes para que se compreenda a

relação entre os ritos descritos e o culto dos mortos, ou seja, os sacrifícios realizados

em favor do morto.

O início do funeral é iniciado com a preparação da pira em que o corpo será

cremado. A lenha é recolhida e, em seguida, o grupo é disperso por ordem de

Agamêmnon em cumprimento ao pedido de Aquiles. Ficam presentes apenas aqueles

105

que são os mais próximos do morto. São eles que preparam a pira e ajudam nos

procedimentos rituais:

Au0ta\r e0pei\ to/ g’ a1kouen a1nac a0ndrw=n 0Agame/mnwn

au0ti/ka lao\n me\n ske/dasen kata\ nh=av e0i/sav,

khdemo/nev de\ par’ au]qi me/non kai\ nh/eon u3lhn,

poi/hsen de\ purh\n e9kato/mpedon e1nqa kai\ e1nqa,

e0n de\ purh| u9pa/th| nekro\n qe/san a0xnu/menoi kh=r. 165

polla\ de\ i1fia mh=la kai\ ei0li/podav e3likav bou=v

pro/sqe purh=v e1dero/n te kai\ a1mfepon: e0k d’ a1ra pa/ntwn

dhmo\n e9lw\n e0ka/luye ne/kun mega/qumov 0Axilleu\v

e0v po/dav e0k kefalh=v, peri\ de\ drata\ sw/mata nh/ei.

e0n d’ e0ti/qei me/litov kai\ a0lei/fatov a0mfiforh=av. 170

pro\v le/xea kli/nwn pi/rusav d’ e0riau/xenav i3ppouv

e0ssume/nwv e0ne/balle purh|= mega/la stenaxi/zown.

e0nne/a tw|= ge a1nakti trapezh=ev ku/nev h]san ,

kai\ me\n tw=n e0ne/balle purh=| du/o deirotomh/sav,

dw/deka de\ Trw/wn megaqu/mwn ui9e/av e0sqlouv 175

xalkw|= dhio/wn de\ fresi\ mh/deto e1rga:

e0n puro\v me/nov h[ke sidh/reon, o1fra ne/moito.

Depois que ouviu isto, Agamêmnon, chefe dos homens

dispersou os homens junto às naus bem niveladas;

os que eram mais próximos ficaram e amontoaram a lenha, 165

fizeram uma pira de cem pés em todas as direções e,

no topo da pira, colocaram o morto com os corações aflitos.

Muitas ovelhas robustas e bois de passo cambaleante

esfolaram e prepararam em frente a pira, e dos animais todos

tirou a gordura e, com ela, o magnânimo Aquiles envolveu o

morto da cabeça aos pés e em volta colocou os corpos esfolados.

Por cima, colocou jarros de asas duplas de mel e azeite, 170

reclinando-os sobre o leito. Quatro cavalos de pescoços altos,

ganindo e gemendo, ele atirou rápido sobre a pira.

Nove cães que comiam sob a mesa pertenciam a este chefe,

106

e, depois de ter cortado a garganta de dois deles, jogou-os

sobre a pira.

E doze filhos nobres dos magnânimos Troianos degolou com 175

o bronze; colocara no pensamento obras assassinas.

Lançou a força férrea do fogo para que os possuísse.

Il. XXIII, 165-77

As ações descritas nesses versos são muito particulares porque só aparecem na

mencionada passagem e em Odisseia XXIV, 65-70, versos referentes ao funeral de

Aquiles, no qual não se menciona o sacrifício humano. O funeral de Heitor apresenta

alguns traços comuns com o de Pátroclo e o de Aquiles; no entanto, não se descrevem

sacrifícios de nenhuma natureza, realizados em favor do morto, talvez pelo fato de que

os Troianos tivessem uma tradição diferente da dos Aqueus em relação aos funerais,

observa George E. Mylonas (1948, p. 60). Os outros sepultamentos analisados,

aqueles que seriam realizados em momentos posteriores, como o de Anticleia, o de

Frôntis, o de Elpenor e o de Sarpédon também não relatam sacrifícios.

Nos Poemas Homéricos, há uma série de narrativas de sacrifícios de animais

em momentos diversos. Porém, eles não ocorrem em eventos funerários, exceto nos

exemplos citados, sendo, portanto, necessário entender por que tal fato acontece.

Observa-se, pois, que a repetição de um ato é o ponto de partida para sua identificação

com uma ação ritual que se torna obrigatória, como, por exemplo, a próthesis, o

lamento e o uso do fogo, que ocorrem em todos os funerais, ora queimando o corpo,

ora os bens queridos do morto. Pois bem, se o sacrifício de animais fosse um rito

comum nos funerais, essa ação deveria ser mencionada, ainda que em menor escala,

em outras situações, porém isso não acontece57.

Assim, não se deve aceitar sem questionamentos a afirmação de Walter Burkert

(1993, p. 375) de que o funeral incluía “sacrifícios fúnebres”, definidos pelo pesquisador

como sacrifícios destrutivos motivados pela raiva e pela impotência diante da morte de

um ente querido58. Nas epopeias homéricas, as ações descritas são casos isolados, de

57

Corrobora-o George E. Mylonas (1948, p.59), acrescentando que o motivo da morte dos animais era fornecer material de combustão a fim de agilizar a cremação do corpo. 58

A afirmação do autor é um tanto estranha porque ele considera como sacrifício a queima de objetos. O sacrifício, a rigor, refere-se à morte de um animal.

107

modo que se impõe questionar a motivação de o aedo mencionar os sacrifícios

somente nos dois passos referidos. 59

As opiniões sobre a motivação desses sacrifícios divergem de maneira

considerável. Autores com Erwin Rohde, Walter Burkert, Emily Vermeule entre outros

apresentam soluções parcialmente satisfatórias porque suas teses consideram as

ações praticadas no funeral do filho de Menécio relacionando-as com práticas mais

antigas e gerais60, ou seja, aplicam o método dedutivo e partem do geral para o

particular. O raciocínio aplicado é que, pelo fato de os sacrifícios funerários serem

amplamente registrados em culturas diversas, nesse episódio específico, haveria uma

prática análoga na Hélade. Porém, vale evocar as palavras de Farnell (1921, p. 5):

“nossa primeira evidência literária sobre a Hélade são, naturalmente, os Poemas

Homéricos, mas o testemunho de Homero nesta matéria é colocado em bases

inclusas.”61 Convém, pois, examinar uma possível motivação para os sacrifícios rituais

mencionados na cerimônia funerária de Pátroclo.

Mais uma vez os estudos de Erwin Rohde ajudam a compreender a questão. O

pesquisador afirma (1950, p. 17) que os sacrifícios realizados nessa ocasião estão

relacionados com culto dos mortos:

As cerimônias funerárias para o corpo de Pátroclo não são o primeiro rebento de um novo princípio, representam, antes, vestígios de um vigoroso culto dos mortos em tempos anteriores, um culto que muitas vezes era a expressão suficiente e completa de uma crença no poder duradouro do espírito desencarnado (ROHDE, 1950, p.17. Tradução nossa).

A essa afirmação, o autor (1950, p. 17) acrescenta, ainda, que não há referência

melhor que os versos supracitados acerca da existência desse primitivo culto em Ilíada

ou em Odisseia, tendo em vista que neles se apresentam elementos como a

preparação dos corpos para o sepultamento, isto é, a próthesis, e o fechamento dos

olhos e da boca do morto, vestígios menores dessa prática cultual. O fundamento dos

ritos cerimoniais descritos nos versos relativos aos diversos funerais mencionados é,

conforme o teórico, uma antiga crença de que o morto poderia fazer uso de objetos

59

A motivação mencionada pelo referido autor soa estranha se considerarmos, com base no seu texto, que ele inclui a queima dos objetos como sacrifício. Ora, sacrificam-se, nos rituais, seres vivos. A queima dos objetos queridos, como foi discutido nessa tese, faz parte dos ritos funerários regulares. Nos funerais mencionados, acontecem ações diferentes. 60

Os autores citados consideraram que o fato de a maioria dos povos antigos, em suas origens, praticarem tais cultos leva a deduzir que os habitantes da Hélade, outrora, também o fizessem. 61

Tradução nossa.

108

queimados juntos com seu cadáver. Sobre os ritos funerários, são significativas as

seguintes palavras de Erwin Rohde:

Então, quando lemos que Aquiles foi queimado tendo as armas com as quais caíra junto a seu corpo sobre a pira funerária, é imposível não sentir que nós temos aqui, também, a sobrevivência de uma antiga crença de que a alma, de alguma forma, era capaz de fazer uso desses objetos queimados junto com

seu invólucro corporal (ROHDE, 1950, p. 17. Tradução nossa).

Assim, a tese do autor é clara: nos Poemas Homéricos, há fortes indícios de que

se praticava, outrora, o culto dos mortos entre os Gregos. Porém, tal concepção era

estranha à audiência do poeta para a qual a psykhé era um ente desprovido de

qualquer atributo mental e, por esse motivo, não haveria sentido prestar-lhe culto.

Dennis D. Hughes (2003, p. 51) observa que o ponto central da argumentação

de Erwin Rohde é que a queima de todos os elementos no funeral de Pátroclo ocorre

pelo mesmo motivo, ou seja, a satisfação das necessidades futuras do morto. O autor

acrescenta, no entanto, que passara despercebido ao ilustre pesquisador que o

objetivo do sacrifício das ovelhas e dos bois serviu a um propósito secundário, ou seja,

fornecer gordura animal para auxiliar na queima do cadáver. Desse modo, a finalidade

seria prática e não se assentaria em uma motivação religiosa.

A interpertação de Dennis D. Hughes baseia-se nos versos 167-9 do canto XIII

que mencionam o uso da gordura dos animais mortos como elemento de combustão:

“e0k d’ a1ra pa/ntwn dhmo\n e9lw\n e0ka/luye ne/kun mega/qumov po/dav e0k kefalh=v, peri\ de\

drata\ sw/mata nh/ei.” O autor observa que a natureza dos cavalos e cães, distinta de

outros animais sacrificados, aponta para outra motivação sobre a qual o aedo não dá

qualquer indicação. Sobre esse tema o autor tece as seguintes considerações:

[...] Mas a interpretação mais simples e amplamente aceita é que eles são contados entre as posses de Pátroclo. A morte de cavalos e cães pode, portanto, ser vista como uma extensão da prática de fornecer aos mortos

armas e outros bens bem conhecida pela arqueologia , o que está por trás

da frase homérica kte/rea kterei+/zein e outras semelhantes (HUGHES, 2003, p. 52. Tradução nossa).

O objetivo de Dennis D. Hughes é estudar os sacrificios humanos62 na Grécia

antiga, de modo que ele não se detém na análise de ritos nos quais são utilizados

62 No capítulo intitulado Funerary ritual killing in Greek Literature and History, o autor (2003, p. 51) resume as principais interpretações sobre os motivos do sacrifício dos jovens Troianos no funeral de

109

animais. Talvez isso o tenha feito afirmar (op. cit., p. 52), sem maiores esclarecimentos,

que a morte de ovelhas e bois, de modo geral, era usual nos ritos funerários. Tal

proposta, porém, não é isenta de críticas, já que, como se mostrou, o sacrifício de

animais é mencionado apenas em dois dos funerais descritos, isto é, no funeral de

Pátroclo e de Aquiles, não sendo, portanto, usual nos Poemas Homéricos.

Na verdade, as teses sobre os motivos das ações realizadas no funeral de

Pátroclo não são conclusivas nem excludentes, e as afirmações de Emily Vermeule

(1971, p. 51) sobre esse tema são bastante convenientes: “A peculiar e particularmente

irreal forma de um funeral homérico nos esconde os sentimentos que são expressos

em uma cerimônia real de um funeral em casa.”. A autora acrescenta ainda um

segundo comentário que ajuda a entender esse controverso passo: [...] “se o funeral de

Pátroclo não fosse pura poesia” [...]. A conveniência das afirmações da autora se deve

ao fato de elas chamarem atenção para o evento literário narrado pelo aedo que está

fazendo poesia e não narrando um evento histórico.

Assim, o funeral de Pátroclo é parcialmente real e, ainda que os eventos com ele

relacionados remetam a elementos históricos, não se deve perder de vista que se trata

de uma peça literária que possui sua própria lógica. Por esse motivo, não há como

determinar, de modo preciso, o motivo do sacrifício dos animais nos versos referentes

aos sepultamentos dos dois amigos, Aquiles e Pátroclo.

Essa afirmação, porém, não significa que todas as teses sobre esses passos

são igualmente aceitáveis como hipóteses. Rejeitam-se, abertamente, nessa pesquisa,

as teses que afirmam, com base nos versos referentes aos funerais de Pátroclo e

Aquiles, a inexistência de um culto aos mortos nos Poemas Homéricos, como

propuseram, por exemplo, Erwin Rohde e George E. Mylonas, pesquisadores que

influenciaram gerações de estudiosos do tema. Note-se que, se os sacrifícios de

animais nos funerais mencionados são de difícil compreensão, posto que podem ser

interpretados de maneiras diversas, relacioná-los com o culto dos mortos também

resulta em dificuldade porque não há nos versos menção clara dessa prática.

Pátroclo: The slaying of the twelve Trojan warriors at the pyre of Patroclus has been interpreted in three basic (if not always clearly distinct) ways: (1) that the killing was a sacrifice, fully equivalent to animal sacrifices performed for the dead, or in the cult of heroes and chthonic deities; (2) that the Trojan captives were meant to attend Patroclus as servants in the world below; or (3) that the killing was motivated, largely or solely, by anger and revenge. In the first two cases it is assumed that the incident derived from actual custom, but that the poet of the Iliad had ‘forgotten’ or misunderstood the true meaning of an

obsolete practice preserved in the epic tradition.

110

A aludida dificuldade, porém, não significa que inexistam nas epopeias, como

propõem os citados autores, indícios do culto aos mortos porque em alguns passos de

Ilíada e Odisseia, que serão analisados posteriormente, tais indícios podem ser

encontrados. Antes, porém, de começar a analisá-los, convém retomar as explicações

dadas por George E. Mylonas cujas principais proposições foram discutidas no

primeiro capítulo dessa tese no qual se apresentou a severa crítica de Chrisanty Gallou

à tese do referido estudioso.

A afirmação de George E. Mylonas (1948, p.78) é categórica: “Não há, nos

Poemas Homéricos, evidências que atestem a existência de um culto dos mortos.”63 e,

durante muito tempo, orientou as pesquisas sobre o tema. Porém, embora se

reconheça a importância das pesquisas do autor, algumas de suas teses não estão

isentas de crítica.

A argumentação do pesquisador sobre a inexistência do culto dos mortos nos

Poemas Homéricos é fundamentada na relação entre as epopeias e as descobertas

arqueológicas em sítios micênicos, ou melhor, entre os processos funerários ali

empregados. Os Micênicos possuíam, segundo o autor (op. cit. p. 56), costumes

funerários que se apresentavam com certa uniformidade ao longo do tempo. As

práticas funerárias homéricas, anota George E. Mylonas, ao contrário, são formadas

por tradições de épocas mais antigas e mais recentes interpoladas no texto.

Ora, George E. Mylonas, (1948 p. 70) considera que o povo de Micenas não

mantinha relação de reverência ou respeito com seus ancestrais mortos porque os

túmulos encontrados naquela localidade apresentaram claros indícios de que

esqueletos foram removidos do local onde foram sepultados, a fim de dar lugar a um

novo cadáver. Os ossos de um morto outrora sepultado eram abandonados em um

canto do túmulo. O autor dá a seguinte informação sobre o tema:

No momento em que o corpo fosse dissolvido e transformado em uma pilha de ossos já não haveria necessidade de nada; não havia perigo de que seu espírito fosse reaparecer; o espírito havia descido para a sua morada final para nunca mais voltar; e assim os ossos poderiam ser deixados de lado ou até mesmo jogados fora. Essa crença corresponde à concepção homérica sobre a psykhé e o Hades discutida acima, e nos fornece um dos elos mais importantes que ligam os costumes funerários da época micênica e os

homéricos (MYLONAS, 1948, p. 70. Tradução nossa).

63

Tradução nossa.

111

A conclusão do pesquisador é inevitável, isto é, os ossos não receberiam esse

tratamento caso se praticasse o culto dos mortos: “Como tal culto poderia ter se

desenvolvido por um povo que parece ter acreditado que tudo estava terminado com a

decomposião do corpo?”64. Essa afirmação tão categórica foi abertamente rejeitada por

M. P. Nilsson, um dos mais importantes estudiosos da religião grega e da cultura

minoico-micênica no século XX, que introduz, na segunda edição de seu livro The

Minoan-Myceanean Religion and its Survival in Greek Religion, um apêndice cujo título

é Note on Mycenean and Homeric Burial Costums, refutando, portanto, claramente, os

argumentos de George E. Mylonas. M. P. Nilsson (1949, p. 621) rejeita essa dedução

do estudioso e argumenta que, mesmo nos dias de hoje, há o reaproveitamento de

sepulturas que são reabertas, sepulturas cujos ossos são retirados do lugar a fim de

dar lugar a um novo cadáver. Ora, essa prática, de modo algum, significa que sua

motivação seja a rejeição à ideia de imortalidade da alma.

M. P. Nilsson (1949, p. 618) atribui à afirmação de George E. Mylonas, de que

os Micênicos não prestavam culto aos mortos nem acreditavam em uma vida post-

mortem, a interpretação dos dados arqueológicos realizada pelo estudioso, com base

nos versos homéricos referentes à fala da psykhé de Pátroclo que afirma sua

permanência definitiva no Hades depois da cremação do seu corpo. Assim, restaria,

após a cremação, apenas uma sombra encerrada definitivamente no Hades, porém

desprovida de poderes para ajudar ou ferir os vivos.

Essa afirmação é, segundo M. P. Nilsson, insustentável porque há nos túmulos

micênicos tubos através dos quais líquidos eram vertidos em favor de quem estivesse

sepultado.65Tal prática seria desprovida de sentido se esse povo não acreditasse na

sobrevivência da psykhé.

Os tubos mencionados não passaram despercebidos a George E. Mylonas que,

numa tentativa de salvaguardar suas afirmações sobre a inexistência de um culto aos

mortos, considerou que somente a alguns membros de status mais elevado era

facultada a prerrogativa da sobrevivência da psykhé e, em consequência, somente a

eles se prestavam cultos: “Apenas alguns espíritos escolhidos estavam destinados a se

64

Confira, no primeiro capítulo dessa tese, as severas críticas às teses de George E. Mylonas, principalmente aquelas formuladas por Chrisanti Gallou que se valeu de elementos arqueológicos para fundamentar a tese de que os Micênios não só praticavam o culto dos mortos, mas também possuíam uma forte crença na vida após a morte. 65

Confira, no primeiro capítulo dessa tese, as discussões sobre o assunto.

112

interessar pelo mundo dos vivos e continuavam a exercer alguma influência nele, e os

micênicos propiciaram a esses espíritos um culto especial.”.

Essa tentativa de George E. Mylonas manter a coerência entre as evidências

arqueológicas e sua afirmação sobre a inexistência do culto dos mortos entre os

Micênicos é rejeitada por M. P. Nilsson (1949, 618), segundo o qual a aceitação desta

tese obrigaria a criação de duas concepções distintas de vida após a morte, uma para

o nobre e outra para o homem comum. Ele conclui afirmando que a distinção proposta

por George E. Mylonas não é lógica nem válida. Na opinião de M. P. Nilsson, os

Micênicos acreditavam no mundo dos mortos e prestavam culto aos seus falecidos,

embora não se possa negar que o respeito ao morto de um status privilegidado fosse

diferente daquele votado ao homem comum.

Assim, pode-se dizer que George E. Mylonas se equivocou ao afirmar que os

Micênicos não acreditavam na vida post-mortem nem prestavam cultos aos mortos, e,

em consequência, não haveria nos Poemas Homéricos indícios de que os mortos

fossem objeto de algum culto.

Uma vez que os Poemas Homéricos tentam reproduzir o mundo dos heróis, um

mundo que reflete parcialmente o mundo micênico, alguns elementos se apresentam

anacrônicos66. Porém, não é estranho que algumas concepções estejam presentes nas

epopeias como continuidade de uma crença de outrora, isto é, as concepções sobre o

post-mortem em Iliada e Odisseia são convergentes às concepções do período

micênico, e o culto dos mortos pode ser interpretado como uma herança de outrora,

herança que atravessou gerações.

De fato, embora a prática de um culto aos mortos não seja explícita na narrativa

do funeral de Pátroclo, isso não significa que ele inexistia nos Poemas Homéricos

como defendia George E. Mylonas, pois, como se verificou, há no referido passo

ações que claramente se relacionam com esse culto. Assim, convém examinar as

evidências da prática do culto aos mortos em outros passos dos Poemas Homéricos.

Os exemplos mais claros da prática do culto dos mortos estão em Odisseia,

principalmente na nekýa descrita no canto XI. Pelo fato de esse poema ser considerado

por alguns teóricos posterior à narrativa de Ilíada, poder-se-ia pensar que essa é uma

inovação que contém elementos mais modernos. Essa argumentação é, no entanto,

66

Confira o capítulo I dessa tese.

113

equivocada porque também em Ilíada podem ser encontrados exemplos que atestam a

referida prática como, por exemplo, os atos de Aquiles em relação ao amigo morto.

O canto XXIII de Ilíada inicia-se com a narrativa do retorno dos Aqueus ao

acampamento após os combates que culminam com a morte de Heitor pelas mãos de

Aquiles. Ao retornarem, o Pelida não permitiu que os Mirmidões se dispersassem e os

conclamou a prestar, ainda montados nos carros, um lamento pelo falecido Pátroclo:

“Mirmido/nev taxu/pwloi, e0moi\ e0ri/hrev e9tai=roi,

mh\ dh\ pw u9p’ o1xesfi luw/meqa mw/nuxav i3ppouv,

a0ll’ au0toi=v i3ppousi kai\ a3rmasin a[sson i1ontev

Pa/troklon klai/wmen: o4 ga\r ge/rav e0sti\ qano/ntwn.

au0ta\r e0pei/ o0looi=o tetarpw/mesqa go/oio, 10

i3ppouv lussa/menoi dorph/somen e0qa/de pa/ntev.

“Mirmidões de rápidos corcéis, meus companheiros fiéis,

não soltemos os cavalos de cascos não fendidos das correias,

mas, aproximando-nos com os próprios cavalos e carros,

choremos Pátroclo! De fato, este é o prêmio dos mortos.

Então, quando saciarmos o funesto pranto, 10

depois de termos soltado os cavalos, todos cearemos aqui.

Il. XXIII, 6-11

O verbo empregado para dar a ordem aos Mirmidões é klai/w que pode ser

traduzido por chorar, verter lágrimas, lamentar; porém, num contexto fúnebre significa

lamentar ritualmente o morto, sentido reforçado pelo verso “au0ta\r e0pei/ o0looi=o

tetarpw/mesqa go/oio” em que está presente o termo go/ov mencionado anteriormente.

O lamento ritual, ordenado por Aquiles como uma honra devida ao morto, é

expresso pelo termo ge/rav, prêmio material recebido pela realização de uma ação

heroica. Essa acepção do termo é expressa, por exemplo, no episódio da contenda

entre Aquiles e Agamêmnon no primeiro canto de Ilíada. O motivo da ira de Aquiles

fora a desonra provocada pela retirada do seu prêmio (ge/rav) pelo chefe dos Aqueus

que não admitia ficar sem seu prêmio, Criseida, que devia ser devolvida ao sacerdote

Crises. A negação ou a privação do ge/rav implica uma ofensa grave à timh/ (honra) do

114

herói. Portanto, a honra devida a Pátroclo, o seu ge/rav, é o go/ov, isto é, o lamento

ritual realizado pelos Mirmidões, e, durante o qual Aquiles, com as mãos pousadas

sobre o corpo inerte do amigo falecido, profere as seguintes palavras:

“xai=re/ moi, w] Pa/trokle, kai\ ei0n 0Ai&%dao do/moisi:

pa/nta ga\r h1dh toi tele/w ta\ pa/roiqen u9pe/sthn,

1Hktora deu=r’ e0ru/sav dw/sein kusi\n w0ma\ da/sasqai, 20

dw/deka de\ prospa/roiqe purh=v a0podeirotomh/sein

Trw/wn a0glaa\ te/kna, se/qen ktame/noio xolwqei/v.”

Alegra-te comigo, ó Pátroclo, também agora nas moradas

de Hades;

De fato, todas as coisas que antes prometi, cumpro para ti,

tendo arrastado para cá Heitor, eu darei para os cães o

comerem cru, 20

e doze nobres filhos dos Troianos em frente à pira degolarei

porque estou irado contra teu assassinato.

Il. XXIII, 18-22

O lamento ritual (go/ov) iniciado por Aquiles evidencia a concepção de que o

morto podia ouvir e, até mesmo, perceber ações que lhe eram dirigidas, ideia reforçada

pelos verbos tele/w (cumprir uma promessa) e u9pe/sthn, forma de aoristo de u9fi/sthmi

(fazer uma promessa, prometer), no verso 19, bastante esclarecedores a esse

respeito. Ora, que sentido haveria nas palavras do Pelida se a audiência do aedo não

conhecesse essa concepção? Aquiles, portanto, afirma que cumpre uma promessa

feita ao morto agora no Hades. A menção ao local específico em que o morto se

encontra: kai\ ei0n 0Ai&%dao do/moisi (também nas moradas de Hades), reforça a ideia de

que, mesmo no mundo dos mortos, Pátroclo poderia ouvi-lo.

Poder-se-ia contra-argumentar que o corpo de Pátroclo ainda não recebera os

ritos funerários devidos e, por esse motivo, sua psykhé encontrava-se, de certa forma,

ligada ao mundo dos vivos podendo, pois, possuir algumas percepções. Esse

argumento, porém, não se sustenta por dois motivos: primeiro porque Aquiles

considerava que a psykhé do amigo falecido já se encontrava encerrada no Hades, e a

revelação de que tal fato ainda não acontecera foi feita pela psykhé do filho de

115

Menécio, como se pode observar nos versos em que se narra o motivo do pedido de

sepultamento:

qa/pte me o3tti ta/xista, pu/lav 0Ai/dao perh/sw.

th~le/ me ei1rgousi yuxai/, ei1dwla kamo/ntwn,

ou0 de/ me/ pw mi/sgesqai u9per potamoio e0w~sin,

a0ll’ au0twv a0la/lhmai a0n’ eu0rupule\v 1Aidov dw~.

kai\ moi do\v xei~r’, o0lofu/romai: ou0 ga\r e1t’ au]tiv 75

ni/somai e0c 0Ai/da~o, e0ph/n me puro\v lela/xhte.

Sepulta-me o mais rápido possível, para que eu atravesse

as portas do Hades.

A distância mantêm-me as psykhaí, imagens dos mortos,

nem permitem unir-me a elas do outro lado do rio.

Assim, e sem cessar vagueio pela mansão de largos portões de

Hades.

Dá-me a tua mão, eu te imploro. Na verdade, não retornarei

novamente 75

do Hades, depois que me concederes do fogo que me é devido.

Il. XXIII, 65-76

A informação de que a psykhé do morto errava de um lado para o outro diante

dos portões do reino de Hades até que lhe fossem prestados os ritos funerários é

apresentada como uma novidade para Aquiles; acreditava o herói que a psykhé de

Pátroclo já habitava o mundo dos mortos: “xai=re moi, w] Pa/trokle, kai\ ei0n 0Ai5dao

do/moisi:” (Alegra-te comigo, ó Pátroclo, também agora nas moradas de Hades.). Desse

modo, não há como pensar que a promessa de Aquiles tenha sido feita baseada na

concepção de que a psykhé mantivesse vínculos com o mundo dos vivos somente

enquanto o corpo estivesse insepulto.

O segundo motivo que não permite aceitar essa argumentação é que, mesmo

após os ritos funerários realizados, a fim de que a psykhé entrasse no reino dos mortos

definitivamente, Aquiles ainda dirige uma prece ao amigo ao devolver o corpo de Heitor

ao rei Príamo:

116

“mh\ moi, Pa/trokle, skudmaine/men, ai1 ke pu/qhai

ei0n 1Aido/v per e0w\n o3ti #Hktora di=on e1lusa

patri\ fi/lw|, e0pei\ ou1 moi a0eike/a dw=ken a1poina.

soi\ d’ au] e0gw\ kai\ tw=nd’ a0poda/ssomai o1ss’ e0pe/oiken.” 595

Não te irrites comigo, ó Pátroclo, se estiveres ouvindo

ainda que estejas na casa de Hades, porque devolvi o

divino Heitor

para o pai querido, pois ele não me deu resgate vergonhoso.

A ti, mais uma vez, eu darei destas coisas aquilo

que te é devido. 595

(Il. XXIV, 592-95)

A prece apresentada nesses versos segue o mesmo esquema daquela feita pelo

Pelida ao afirmar que cumpria a promessa feita a Pátroclo em Ilíada XXIII, 18-22. Há de

se observar, porém, que o verso 592 poderia ser uma prova de que Aquiles duvidasse

de que a psykhé do morto, uma vez no Hades, pudesse ouvir alguma coisa proveniente

do mundo dos vivos. A oração ai1 ke pu/qhai, que daria suporte a essa argumentação,

pode ser explicada de modo diferente porque o subjuntivo usado com as partículas ai1

ke, conforme David Benning Monro (1882, p. 210), possui valores diversos não se

tratando, a rigor, de uma oração condicional. Atente-se, que a oração em pauta pode

ter um valor de oração final67.

Ainda que essa oração seja interpretada como condicional, não há motivos para

considerá-la como indício de que haveria dúvidas sobre a possibilidade de a psykhé

ouvir uma prece oriunda do mundo dos vivos. A presença da partícula ke não expressa

uma potencialidade. A interpretação por essa via, como faz, por exemplo, Frederico

Lourenço com a tradução desse verso (Não te zangues comigo, ó Pátroclo, se é que

me consegues ouvir na mansão de Hades), parece pautar-se em comentários de

67 “In most cases (1) this assumption is made in order to assert a consequence (ei0 =if): in other words, it is

a condition. But (2) an assumption my also be made in order to express end (ei]mi.. ai1 pi/qhtai I go – suppose he shall listen= I go in the hope that he will listen), and accordingly the clause may be a final clause.” Assim, com base na explicação, a tradução do verso seria “Não te irrites comigo, ó Pátroclo, na esperança de que tu me ouças” é plausível.

117

pesquisadores que recusam atribuir consciência à psykhé do morto. A tradução do

verso por: “se tu podes me ouvir” reflete, pois, a seguinte assertiva de G. S Kirk ( 1993,

p. 339): “ai1 ke pu/qhai/ ei0n 1Aido/v per e0w\n implica alguma dúvida de que Pátroclo

pudesse ouvir ou não. Essa expressão de incerteza foi comum posteriormente.”

Um exame dos versos numa perspectiva semântica não evidencia elementos

que corroboram essa interpretação sugestiva de que Aquiles tivesse dúvidas quanto à

percepção da psykhé de Pátroclo. O verbo pu/qhai, forma de aoristo de peu/qomai,

possui, entre outros, os seguintes significados: ouvir, conhecer, compreender, saber.

Não há nada na sua constituição morfológica que denote uma potencialidade.

Numa perspectiva morfossintática, ainda que a oração seja aceita como uma

condicional, há de se observar que, ao ser traduzida por “se tu me ouves estando no

Hades”, a fala de Aquiles poderia apenas se referir ao fato de que o amigo, quando

vivo, nem sempre ouvia suas palavras. Ora, a morte do filho de Menécio aconteceu

precisamente por esse motivo como observa Apolo em Ilíada XVI, 686-7; “nh/piov: ei0 de\

e1pov Phlhi+a/dao fula/acen/h] t’ a1n u9pe/fuge kh=ra kakh\n me/lanov qana/toio.” (Tolo! Se

guardasse a palavra do Pelida, poderias ter fugido do destino funesto da morte negra.).

De fato, ao emprestar-lhe as armas, Aquiles, em Ilíada XVI, 95-6, advertira Pátroclo de

que evitasse a luta, retornasse e deixasse o combate para os outros logo que a

ameaça às naus fosse repelida “a0lla\ pa/lin trwpa=sqai, e0ph\n fa/ov e0n nh/essi/ qh/h|v,

tou\v d’ e1t’ e0a=n pedi/on ka/ta dhria/asqai.” (mas novamente, retorna, depois de a luz

colocares no meio dos navios/ permite que outros combatam junto à planície.”).

Pátroclo não ouve o conselho de Aquiles e se afasta para combater os Troianos e, em

consequência de sua desobediência, morre pelas mãos de Heitor.

Nesse sentido, a interpretação da oração “ai1 ke pu/qhai/ ei0n 1Aido/v per e0w\n,

portanto, não confirma a dúvida de Aquiles sobre a incapacidade de a psykhé de

Pátroclo ouvi-lo. Como se comentou, ela pode apenas significar que, aquele que

outrora não o ouvira e, por conseguinte, fora morto por esse motivo, agora, em

situação diferente, devia ouvi-lo.

Na sequência, o verso 595 “soi\ d’ au] e0gw\ kai\ tw=nd’ a0poda/ssomai o1ss’

e0pe/oiken.” (“A ti, mais uma vez, darei dessas coisas aquilo que te é devido.”) é um claro

exemplo de oferta votiva ao morto, considerando-se que o Pelida promete a Pátroclo

parte do resgate pago por Príamo pelo corpo de Heitor. Trata-se de um a!poina

(resgate), termo que aparece pela primeira vez em Ilíada I, 13, no passo em que se

118

relata a tentativa de o sacerdote Crises resgatar sua filha feita escrava por

Agamêmnon. O emprego do termo a1poina por Aquiles como algo que é devido ao

morto torna o vocábulo equivalente ao sentido de ge/rav, isto é, um prêmio de

reconhecimento destinado, nesse caso, à psykhé do morto. Assim, a promessa de

destinar parte do resgate a Pátroclo contrapõe-se à interpretação de que Aquiles

duvidasse da capacidade de a psykhé do morto ouvir sua prece.

Há, ainda, no mencionado verso, como assinala G. S. Kirk (1993, p. 338), um

dos poucos exemplos nos Poemas Homéricos de que o vivo pudesse temer a

continuidade da ira do morto mesmo estando ele encerrado no Hades. Assim, com

base na afirmação do pesquisador, pode conjecturar-se que Aquiles age motivado pelo

medo de que a psykhé irada do amigo, mesmo do Hades, pudesse causar-lhe dano.

Sobre a continuidade do sentimento de animosidade do morto, convém

observar a fala de Odisseu em Odisseia XI, 553-4 ao encontrar a psykhé de Ájax. O

herói que perdera a disputa pelas armas de Aquiles para o filho de Laertes, mesmo

morto, mantinha o sentimento de cólera, conforme os versos: “Ai]an, pai= Tela=monov

a0mu/monov, ou0k a1r’ e1mellev/ ou0de\ qanw\n lh/sesqai e0moi xo/lou ei3neka teuxe/wn ou0lome/nwn;

(Ó Ájax, filho do irrepreensível Têlamon, mesmo estando morto, não estiveste disposto

a esquecer a ira contra mim por causa das malditas armas?). Essas palavras de

Odisseu deixam transparecer que o aedo e sua audiência conheciam a concepção de

que a psykhé pudesse ter ou conservar sentimentos em relação aos vivos de forma

que a narrativa não soa estranha.

Como se pode notar pelo exame dos atos relacionados com o funeral de

Pátroclo, há evidências de que, no período de composição das epopeias, se praticava

o culto dos mortos e, embora alguns autores tenham negado esse fato, ele pode ser

confirmado tanto em Ilíada quanto em Odisseia.

Outro aspecto que se pode comentar sobre o culto dos mortos é o sacrifício de

animais, embora não se deva considerar essa prática intrínseca ao ritual funerário, já

que é mencionada apenas nos funerais de Pátroclo e Aquiles. Há, ainda, nas epopeias,

dois outros exemplos de sacrifícios cruentos em favor dos mortos, quais sejam, Ilíada

XXIII, 29-34, e Odisseia XI, 20-37, passos que serão comentados a seguir.

Na sequência dos versos iniciais do canto XXIII, já analisados anteriormente, em

que se pôde discutir a prece de Aquiles a Pátroclo por ocasião do retorno dos

Mirmidões ao acampamento e a exortação do Pelida aos Aqueus para que

119

prestassem o lamento ritual, que era uma obrigação para com o morto, narra-se que

Aquiles procede ao sacrifício de animais, um sacrifício em favor do morto:

au0ta\r o9 toi=sin ta/fon menoeike/a dai/nu.

polloi\ me\n bo/ev a0rgoi\ o0re/xqeon a0mfi\ sidh/rw| 30

sfazo/menoi, polloi\ d’ o1i+ev kai\ mhka/dev ai]gev :

polloi\ d’a0rgio/dontev u3ev, qale/qontev a0loifh|\,

eu9o/menoi tanu/onto dia\ flo/gov 9Hfai/stoio:

pa/nth| d’ a0mfi\ ne/kun kotulh/ruton e1rreen ai]ma.

Depois, ele lhes preparou uma suntuosa refeição funerária.

Muitos bois luzentes mugiram em volta do aço 30

sacrificados, muitas ovelhas e cabras balidoras;

muitos porcos de alvas presas fartos de gordura,

tostados tombaram pela chama de Hefesto;

em volta do morto, fluía sangue que podia ser pego com

uma taça.

Il. XXIII, 29-34

A matança de bois, ovelhas e cabras é comum nos sacrifícios cruentos

realizados em favor de divindades ou em favor dos mortos. No passo em questão, a

narrativa da refeição fúnebre, preparada por Aquiles, apresenta alguns dados que

corroboram a prática do culto dos mortos nas epopeias, principalmente quando se

analisa o vocabulário empregado.

Note-se, na passagem supracitada, que a forma sfazo/menoi, particípio do verbo

sfa/zw, é um termo técnico relacionado com rituais de sacrifício e significa cortar a

garganta, matar por degolamento. Segundo Pierre Chantraine (1968, p. 1073), nos

Poemas Homéricos, inicialmente, o verbo sfa/zw referia-se a animais, significando

imolar animais em sacrifício, posteriormente, foi aplicado também a pessoas. Esse

verbo é utilizado nas epopeias68 em vários passos que se referem ao ato de matar

animais com um corte na garganta, em ações rituais ou não. Também em Odisseia XI,

68 Confira Ilíada I, 459; II, 422; IX, 467; XXIII, 31; XXIV, 622 e Odisseia III, 454; XII, 359; XIV, 426; X, 552; XX, 312 e XXIII, 305.

120

44-7, pode-se observar o verbo sfa/zw, na forma participial sfagme/na69, utilizado para

descrever como se encontravam as ovelhas que Odisseu sacrificara para os mortos

nos portões do Hades:

dh\ to\t’ e1peiq’ e9ta/roisin e0potru/nav e0ke/leusa

mh=la, ta\ dh\ kate/keit’ sfagme/na nhle/i xalkw|=, 45

dei/rantav katakh=ai, e0peu/casqai de\ qeoi=sin,

i0fqi/mw| t’ 0Ai+/dh| kai\ e0painh|= Persefonei/h|:

Então, depois de incitar, ordenei aos companheiros

as ovelhas, que jaziam com as gargantas cortadas pelo

impiedoso aço,

esfoladas, queimar, e fazer preces aos deuses,

a Hades poderoso e à temível Perséfone:

Od. XI, 44-7

A comparação da passagem relativa à refeição preparada por Aquiles com os

versos referentes aos sacrifícios de animais em favor dos mortos, depois da conclusão

do processo de sepultamento, como no sacrifício oferecido por Odisseu nos portões do

Hades, evidencia que os animais mortos, cujo sangue podia ser recolhido em taças

diante do corpo de Pátroclo, foram sacrificados em uma ação ritual votiva configurada

como uma refeição fúnebre em favor do morto.

Além dos exemplos citados, a fim de demonstrar as referências ao culto dos

mortos nos Poemas Homéricos, acrescente-se ainda o passo decisivo para a aceitação

dessa prática nas epopeias: o sacrifício feito por Odisseu em favor dos mortos nos

portões do Hades e sua promessa de oferecer-lhes, posteriormente, outras oferendas,

uma especial ao vate Tirésias:

nh=a me\n e1nq’ e0lqo/ntev e0ke/lsamen, e0k de\ ta\ mh=la 20

eilo/meq’: au0toi\ d’ au]te para\ r9o/on 0Wkeanoi=o

h|1omen, o1fr’ e0v xw=non a0fiko/meq’ o3n frase Ki/rkh.

1Enq’ i9erh/i+a me\n Perimh/dev Eu0ru/loxo/v te

69

Frederico Lourenço traduz a forma sfazo/menoi por abatidos, porém o verbo abater não se relaciona necessariamente com a morte por meio de lâmina como nos dois passos citados.

121

e1sxon: e0gw\ d’ a1or o0cu\ e0russa/menov para\ mhrou=

bo/qron o1ruc o3sson te pugou/sion e1nqa kai\ e1nqa, 25

a0mf’ au0tw|= de\ xoh\n xeo/men pa=si nekeu/ssi,

prw=ta melikrh/tw|, mete/peita de\ h9de/i+ oi1nw|,

to\ tri/ton au]q’ u3dati: e0pi\ d’ a1lfita leuka\ pa/lunon.

polla\ de\ gounou/mhn neku/wn amenhna\ ka/rhna,

e0lqw\n ei0v 0Iqa/khn stei=ran bou=n, h1 tiv a1risth, 30

r9e/cein e0n mega/roisi purh/n t’ e0mplhse/men e0sqlw=n,

Teiresi/h| d’ a0pa/neuqen o1i+n i9ereuse/men oi1w|

pamme/lan’, o3v mh/loisi metapre/pei h9mete/roisi.

tou\v d’ e0pei\ eu0xwlh|=si lith|=si/ te, e1qnea nekrw=n,

e0llisa/mhn, ta\ de\ mh=la labw\n a0pedeiroto/mhsa 35

e0v bo/qron, r9e/e d’ ai]ma kelainefe/v: ai9 d’ a0ge/ronto

yuxai\ u9pe\c 0Ere/beuv neku/wn katateqnhw/twn.

Quando chegamos ali, aportamos o navio e dele desembarcamos

as ovelhas; 20

nós mesmos íamos para junto da corrente do Oceano até que

chegamos ao lugar que Circe tinha indicado.

Ali enquanto Perimedes e Euríloco mantinham as vítimas,

para o sacrifício, eu, depois de sacar a espada pontuda,

de junto da coxa,

cavei um buraco de um cúbito de ambos os lados. 25

Em torno dele, derramei uma libação para todos os mortos.

primeiro de leite e mel, em seguida de doce vinho,

e, em terceiro lugar, de água, e, por cima,

aspergi uma branca farinha de cevada.

Então supliquei imensamente às cabeças dos mortos

sem força e prometi sacrificar,

quando voltasse para Ítaca, uma vitela sem cria, a melhor, 30

nos pátios e encher uma pira de coisas mais nobres,

e, à parte, somente para Tirésias, sacrificar uma ovelha

toda preta

que se distinguisse entre as de nossos rebanhos.

122

Depois implorei com preces e súplicas e, às raças dos mortos,

e, tomando as ovelhas, cortei-lhes a garganta 35

na direção do buraco, e o sangue turvo fluiu. E elas vieram

do Érebo, as psykhaí dos mortos que morreram.

Od. XI, 20-36

A narrativa do sacrifício oferecido por Odisseu é decisiva quanto à prática do

culto aos mortos nos Poemas Homéricos e à familiaridade da audiência do aedo com

esse tema. O verso 29, polla\ de\ gounou/mhn neku/wn amenhna\ ka/rhna (Então, supliquei

imensamente às cabeças dos mortos sem força), apresenta a forma gounou/mhn do

verbo gounou=mai cujos significados são suplicar, implorar ou colocar-se agarrado aos

joelhos, isto é, em posição de súplica e, ao mesmo tempo, prometer cumprir um voto.

Essa última noção é reforçada pela forma infinitiva r9e/cein, verso 31, (oferecer um

sacrifícios, sacrificar), daí a tradução “prometi sacrificar”. A posição de suplicante,

evidenciada pela formação do verbo que possui em sua raiz o substantivo go/nu

(joelho), não permite conceber que o herói fizesse a súplica sem a intenção de ser

atendido. A promessa de um sacrifício futuro elimina, então, a possibilidade de se

pensar que a psykhé do morto não pudesse perceber as ações votivas em seu favor.

Outro elemento que merece destaque, nos versos supracitados, diz respeito à

necessidade de um espaço físico para a realização do ritual. Ele consiste em um

buraco de um cúbito, isto é, de aproximadamente 70 centímetros dos dois lados,

denominado pelo termo bo/qrov, conforme o verso 25. A importância desse termo,

como anotou Odyssey Tsagarakis (1980, p. 229), advém do fato de haver uma

discussão calorosa sobre a necessidade de um altar para que se praticasse um

sacrifício cultual, um altar nos moldes daqueles usados para práticas votivas em honra

dos deuses. Para os que consideram o altar um elemento essencial para o sacrifício, o

ato de Odisseu, a rigor, anota o referido autor, não poderia ser uma ação cultual.

Odyssey Tsagarakis (op. cit., p. 229) considera relevante saber que os altares

destinados às divindades celestes diferem consideravelmente daqueles em que os

deuses ctônicos eram cultuados. Os altares dessas divindades eram, para o autor,

estruturas subterrâneas em forma de buracos circulares. A fim de demonstrar a tese de

que as estruturas encontradas em túmulos micênicos eram altares destinados ao culto

dos mortos, o estudioso se utiliza de dados arqueológicos e afirma que, em Odisseia,

123

no passo referente ao sacrifício realizado por Odisseu, há um claro exemplo de que o

bo/qrov remonta à tradição micênica:

O contexto homérico parece ilustrar a função geral do bothros: esse tipo de altar é ideal para oferendas de alimentos não sólidos, incluindo sangue animal, para ambos: os mortos e o deus do mundo subterrâneo. E quanto ao próprio sacrifício do animal? Odisseu o realiza porque está cruzando o reino dos deuses inferiores. Seria costume sacrificar para os mesmos deuses em um enterro que poderia ser tomado como uma passagem de uma pessoa para seu reino? No mesmo contexto, nenhum altar é erigido a fim de queimar animais sacrificados, o que é condizente com a visão acima de que um altar erguido do solo não seria adequado para deuses que seus adoradores consideravam habitando o mundo subterrâneo. Cinzas de animais foram encontradas em bothroí. Nós podemos seguramente assumir que esses altares-buracos, os bothroí, foram também usados para o sacrifico de animais. O contexto homérico, nós vimos, torna claro que o morto recebia tais sacrifícios (TSAGARAKIS, 1980, p.234. Tradução nossa).

O autor observa que, ao praticar o sacrifício aos mortos, Odisseu executa uma

ação com propósito pessoal definido, e, se o rito for despido da roupagem mitológica,

verifica-se que o ritual é praticado por alguém de status especial, isto é, um rei,

personagem que possuía prerrogativas na prática de alguns cultos. Essa informação

pode explicar porque os bo/qroi são encontrados apenas em túmulos seletos. Afirma

Odyssey Tsagarakis (op. cit., p. 240), com base nesse dado, que há duas conclusões

possíveis: primeiro, que os membros da realeza governante praticavam algum culto

aos mortos; segundo, que o culto servia ao propósito pessoal ou de uma família em

particular. As conclusões a que chega o autor, embora atraentes, apresentam a

inconveniência de criar, no mesmo ambiente, dois tipos distintos de crenças, tese que

já fora proposta por George E. Mylonas criticado severamente Martin. P. Nilsson.

Rejeitar o culto aos mortos nos Poemas Homéricos não é tarefa fácil, pois, como

se demonstrou ao longo das reflexões aqui empreendidas, há vários indícios da prática

desse culto, ou, pelo menos, da existência de um conceito de que o morto pudesse

ouvir as preces dos vivos, concepção que, corroborada pelas evidências arqueológicas

e literárias, remonta ao passado micênico.

O número reduzido de referências ao culto dos mortos talvez dificulte a

aceitação, por parte de alguns pesquisadores, acerca da existência dessa prática nas

epopeias homéricas. Porém, convém lembrar que os Poemas Homéricos não são um

tratado de religião com intenção de demonstrar ritos e concepções religiosas embora

sejam eles fonte de estudos sobre o tema.

124

Assim, das reflexões até aqui realizadas, podem apresentar-se algumas

conclusões parciais. A principal delas é a de que todo homem deve morrer e, após a

morte, seu destino final é o reino de Hades, onde a psykhé subsiste como um ente

autônomo, depois do ritual funerário que lhe é prestado. Esse ritual consiste de vários

ritos que compreende desde a preparação do corpo até a forma de se desfazer do

cadáver. Quanto a essa última, ao contrário do que muitos autores afirmam, a

cremação não é o único método conhecido nos Poemas Homéricos tendo em vista que

a inumação é, ao menos, insinuada em alguns passos. Há, como se verificou,

evidências arqueológicas apontanto para o fato de que, no período micênico e no

subsequente, a cremação e a inumação eram igualmente praticadas.

A cremação, predominante nas epopeias, era apenas uma parte do ritual

funerário que compreendia vários ritos menores, como já se comentou. Vale lembrar

que o sacrifício de animais nos funerais não era uma prática funerária, em virtude de

ter sido por só ser mencionado apenas nos funerais de Pátroclo e no de Aquiles. Além

de ser uma ação eventual, sua motivação mostrou-se controversa e passível de várias

interpretações.

A atmosfera em que os funerais estavam envoltos evidencia que, nos Poemas

Homéricos, impera a concepção de, mesmo no mundo dos mortos, poderem as

psykhaí ouvir as preces dos vivos e perceber as oferendas a elas destinadas. Essa

assertiva justifica as preces de Aquiles a Pátroclo e a promessa de Odisseu sacrificar

uma vitela em seu palácio e encher a pira de nobres presentes em favor dos habitantes

da casa de Hades.

3.3 Os habitantes do mundo dos mortos

Após a abordagem dos principais elementos da escatologia nos Poemas

Homéricos e a relação que eles mantêm com a tradição micênica, comentar-se-á de

que modo os habitantes do Hades são concebidos pelo aedo, considerado uma

autoridade na transmissão de ideias e novas concepções, e por sua audiência cujo

horizonte de expectativa não podia ser abruptamente rompido, motivo pelo qual a obra

final do poeta estaria, de certa forma, condicionada pelo ambiente de recepção.

Precisamente, esse ambiente, familiarizado com os elementos escatológicos

apresentados no capítulo precedente, permitirá compreender que as psykhaí

conservam a consciência como traço de personalidade individual.

125

3.3.1 A consciência da psykhé do morto

Há uma vasta bibliografia sobre a psykhé nos Poemas Homéricos, e as

interpretações são variadas e, em muitos casos, conflitantes, principalmente quando se

trata de relacionar esse termo com os mortos. Os textos utilizados, nesse caso, são a

fala de Aquiles sobre a psykhé de Pátroclo, no canto XXIII de Ilíada, a fala de Circe

sobre a psykhé de Tirésias, no canto X de Odisseia, e a nekyia de Odisseu no canto XI

do mesmo poema. Com base nesses textos, tradicionalmente se nega que a psykhé do

morto mantivesse, no Hades, algo mais que um tênue resquício de consciência. Esse

atributo seria possuído plenamente apenas por Tirésias que o recebera como presente

dado por Perséfone, conforme informa Circe em Odisseia;

a0ll’ a1llhn xrh\ prw=ton o9do\n tele/sai kai\ i9ke/sqai 490

ei0v 9Ai+/dao do/mouv kai\ e0painh=v Persefonei/hv,

yuxh|= xrhso/menov Qhbai/ou Teiresi/ao,

ma/ntiov a0laou=, tou= te fre/nev e1mpedoi\ ei0si:

tw|= kai\ teqnhw=ti no/on po/re Persefo/neia

oi1w| pepnu=sqai: toi\ de\ skiai\ a0i+/ssousin. 495

mas é preciso, antes, fazer outro caminho 490

e chegar à morada de Hades e da terrível Perséfone,

a fim de consultar a psykhé do tebano Tirésias,

o cego adivinho, cujos pensamentos estão firmes;

só a ele, embora morto, Perséfone concedeu ter conservado

a inteligência

firme; e as outras sombras esvoaçam. 495

Od. X, 490-5

Essa passagem constitui um dos pontos de apoio para aqueles que negam às

psykhaí a consciência. Outra informação importante para os defensores da

mencionada tese é a fala de Aquiles em Ilíada XXIII, 103-2: “w2 po/poi, h] r9\a/ tiv e0sti kai\

ei0n 0Ai+/dao do/moisi/yuxh\ kai\ ei1dwlon, a0ta\r fre/nev ou0k e1ni pa/mpan.” (“Ó infeliz, então

126

existe também nas moradas de Hades uma psykhé e um eidolon embora inteiramente

sem phrénes.”).

Antes, porém de iniciar a análise dos mencionados passos e discutir a

controvérsia que eles envolvem, convém abordar em que consiste o conselho de Circe

para que Odisseu visite o Mundo dos mortos.

Após uma estada agradável junto à filha de Hélios,70 Odisseu implora para que a

feiticeira cumpra a promessa de enviá-lo de volta, junto com os companheiros, a sua

terra, Ítaca. Circe, em resposta, afirma que o herói devia antes cumprir outra viagem,

isto é, visitar o palácio de Hades, como evidenciam os versos 490-1: “a0ll’ a1llhn xrh\

prw=ton o9do\n tele/sai kai\ i9ke/sqai/ ei0v 9Ai+/dao do/mouv kai\ e0painh=v Persefonei/hv. O

propósito da arriscada viagem, de acordo com o verso 492, é consultar o vate tebano

Tirésias: “yuxh=| xrhso/menov Qhbai/ou Teiresi/ao”, embora a feiticeira não mencione

sobre o que seria a consulta. Somente as palavras do adivinho, canto XI, 100, ao

encontrar Odisseu no Hades, esclarecem o propósito da conversa; “No/ston di/zhai

melihde/a, fai/dim’ 0Odusseu=:” (“tu procuras saber sobre teu doce regresso, ó glorioso

Odisseu:”). Posteriormente, no encontro com Aquiles, o próprio herói também esclarece

o motivo de sua viagem:

“w] 0Axilei=, Phlh=ov ui9e/, me/g’ 0fe/rtat’ 0Axaiw=n,

h]lqon Teiresi/ao kata\ xre/ov, ei1 tina boulh\n

ei0poi, o3pwv 0Iqa/khn e0v paipalo/essan i9koi/mhn: 480

“Ó Aquiles, filho de Peleu, o melhor dos Aqueus

eu vim consultar Tirésias, caso algum conselho

ele pudesse dizer, a fim de que eu pudesse chegar à rochosa

Ítaca 480

Od. XI, 478-80

O resultado do encontro de Odisseu com Tirésias provoca dúvidas sobre o real

motivo da viagem, pois o vate não disse de que modo o herói devia proceder a fim de

70

Odisseia X, 135-570. Sobre essa fala do herói, confira OdysseusTsagarakis (2000, p. 49).

127

retornar para casa. Assim, parece que o propósito do aedo, ao narrar esse episódio, é

introduzir um quadro geral da situação dos mortos no Hades71.

A viagem de Odisseu à casa de Hades ocupa a maior parte do canto XI de

Odisseia e é denominada nekyia72, termo que se origina, conforme Pierre Chantraine

(1968, p. 741), do substantivo nekro/v e significa invocação dos mortos. Porém, não se

trata somente de uma invocação aos mortos, que poderia ser feita no mundo dos vivos.

Há uma katábasis73, ou seja, uma descida ao mundo inferior motivada por uma

necessidade de consultar um morto, Tirésias. Observa-se, todavia, que Odisseu não

dirige suas palavras somente ao vate tebano, mas fala com outros mortos. Esses

diálogos sustentam a tese de que as psykhaí conservam a consiciência. Há, no

entanto, uma dificuldade que precisa ser esclarecida: qual a finalidade do sangue

bebido pelas psykhaí?

Interpreta-se, tradicionalmente, que o sangue ingerido tem a função de restaurar

por um momento a consciência da psykhé, tese claramente rejeitada nessa pesquisa.

Assim, há de se proceder à análise da controvérsia comentando-se a passagem em

que o navio do herói ancora no local descrito por Circe,74e Odisseu, após fazer descer

as ovelhas, realiza o sacrifício conforme as instruções dadas pela feiticeira. Quando o

sangue escorre em direção ao buraco, de todos os lados afluem as psykhaí dos

mortos.

e0v bo/qron, 9re/e ai[ma kelainefe/v: ai9 d’ a0ge/ronto

yuxai\ u9pe\r 0Ere/beuv neku/wn katateqnhw/twn.

nu/mfai t’ h0i5qeoi/ te polu/tlhtoi/ te ge/rontev

parqenikai\ t’ a0talai\ neopenqe/a qumo\n e1xousai:

polloi\ d’ ou0ta/menoi xalkh/resin e0gxei/h|sin, 40

a1ndrev a0rei5fatoi bebrotwme/na teu/xe’ e1xontev: 71

Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 72) argumenta que o objetivo dessa viagem seria a conscientização da humanidade de Odisseu que se encontrava em uma aventura nos limites do mundo sobrenatural em que a presença de seres fantásticos era uma constante. Assim, ao descer ao Hades e ter contato com os mortos, o herói relembraria sua condição de mortal, sua finitude humana e estaria pronto para retornar ao mundo real, à humanidade deixada para trás. A conscientização de sua condição humana, conforme a autora, fica evidente quando Tirésias prevê a morte do herói em Ítaca. 72

Conforme Odysseus Tsagarakis (2000, p. 12), o termo é de difícil conceituação: “The specific nature of the nekyia proved difficult to define: it is, or was it originally, a nekyomanteia, a katabasis or both? 73

Héracles também empreendeu uma katábasis com o objetivo de capturar Cérbero. O herói é acompanhado em sua viagem por Atená e Hermes, o psykhopómpos. A menção deste deus pode estar relacionada com a iniciação do filho de Zeus nos mistérios de Elêusis. Outra importante katábasis é a de Orfeu que desce ao Hades voluntariamente a fim de resgatar sua amada. Sobre as diferenças e semelhanças das viagens, confira o primeiro capítulo do livro Studies in Odyssey 11 (2000), escrito por Odysseus Tsagarakis. 74

Confira os caminhos para o mundo dos mortos páginas 48-54 dessa tese.

128

oi4 polloi\ peri\ bo/rqon e0foi/twn a1lloqen a1llov

qespesi/h| i0axh~|: e0me\ de\ xlwro\n de/ov h3|rei.

na direção do buraco, o sangue turvo fluiu. E elas,

vieram do Érebo, as psykhaí dos mortos que morreram.

Mulheres jovens, jovens adolescentes, velhos que

sofreram muito,

virgens e jovens que tinham o ânimo recém-afligido,

e muitos, feridos pelas lanças de bronze, 40

homens valentes com armas sujas de sangue.

A maior parte deles ia e vinha de um lado para outro,

em torno do buraco,

com extraordinários gritos de lamentações. Um medo

pálido me tomava.

Od. XI, 36- 43

Um dos primeiros problemas que surgem, ao analisar esses versos, é a natureza

física das psykhaí porque a percepção do sangue se processou por uma sensação

física que ativou uma faculdade humana, isto é a memória. Observa Odysseus

Tsagarakis (2000, p. 105) que nos Poemas Homéricos não existe o conceito de alma

imaterial75, que só passará a existir a partir de Píndaro poeta de fins do século VI e

inícios do século V a. C. A percepção de uma existência material, ou, pelo menos, de

um acentuado grau de materialidade pode ser percebido na reação das psykhaí que se

mantêm a distância do sangue temendo a espada que Odisseu empunhava a fim de

afastá-las:

au0to\v de\ ci/fov o0cu e0russa/menov para\ mhrou=

h3mhn, ou0d’ ei1wn neku/wn a0menhma\ ka/rhna

ai3matov a]sson i1men, pri\n Teiresi/ao puqe/sqai. 50

75

O autor observa que as psykhaí dos heróis portavam armas e infere desse dado que isso se deve ao fato de elas serem concebidas com certa materialidade. Contra a argumentação de que as psykhaí portariam armas por se apresentarem no Hades com o mesmo aspecto que tinham ao morrerem, ele afirma que não faz sentido pensar dessa maneira porque os corpos eram preparados para o sepultamento.

129

Eu mesmo, tendo sacado a espada pontuda de junto de

minha coxa,

ficava sentado, não permitindo às cabeças sem força

dos mortos

vir próximo do sangue antes de eu interrogar Tirésias 50

Od. XI, 48-50

Interrogar e td;tr,rel ou pr

A concepção de materialidade da psykhé é duplamente apresentada nesses

versos: primeiro, pela ação de Odisseu em sacar a espada para rechaçar a

aproximação das psykhaí; segundo, pela reação das psykhaí que, diante da ameaça

representada pela espada em punho, se mantêm a distância do sangue. Ora, esses

atos não teriam sentido, se a audiência concebesse a alma como imaterial, ficando a

narrativa carente de verossimilhança.

Deve-se observar, porém, que afirmar a existência de uma concepção de

psykhé, detentora de um grau de materialidade, não significa que ela fosse um ente

corpóreo porque o corpo é um atributo dos vivos. Essa diferença fica bem evidente nos

passos em que Aquiles tenta abraçar a psykhé de Pátroclo:

a0lla\ moi a]sson sqh=qi: mi/nunqa/ per a0mfibalo/te

a9llh/louv o0looi=o tetarpw/mesqa go/oio.”

a1ra fwnh/sav w0re/cato Xersi fi/lh|sin,

ou0d’ e1labe: yuxh\ de\ kata\ xqono\v h0u+/te kapno\v 100

Vamos, coloca-te mais próximo de mim! Abracemo-nos por pouco

tempo

um ao outro a fim de confortarmos o triste pranto.”

Então, falando desse modo, estendeu as suas mãos,

e não o agarrou. A psykhé partiu para baixo da terra

como uma fumaça. 100

Il. XXIII, 97-100

130

O episódio esclarece a consistência física da psykhé que se apresentou ao herói

– que, cansado da batalha, repousava na tenda - idêntica,76 quanto à aparência, ao

falecido Pátroclo, porém carecendo de um corpo que pudesse ser tocado, já que

desvaneceu como fumaça (h0u+/te kapno\v). Aquiles poderia estar dormindo e sonhando

com a psykhé do amigo, o que não significa que a manifestação não fosse real. Há um

conteúdo sobrenatural no encontro entre os amigos, porque os sonhos são concebidos

pelo Pelida como uma ação divina, ou seja, como oriundo do mundo dos deuses, como

atestam as palavras do herói endereçadas ao vate Calcas em Ilíada I, 63; “h2 kai\

o0neiropo/lon, kai\ ga\r t’ o1nar e0k Dio/v e0stin,” (“ou um intérprete de sonhos, o sonho,

pois também é proveniente de Zeus,”). Em outras palavras, o sonho é uma

manifestação que pertence à esfera do divino, do misterioso, aspecto que lhe confere

uma realidade77 idêntica a outros fenômenos. Acresce que a maioria das religiões

antigas concebia o mundo como um lugar de hierofania onde as intervenções divinas

eram constantes.

O outro episódio sobre a natureza física da psykhé, semelhante à concepção

expressa nos versos de Ilíada, é a narrativa do encontro de Odisseu com sua falecida

mãe :

4Wv e1fat’, au0ta\r e0gw\ g’ e1qelon fre/si\ mermhri/cav

mhtro\v e0mh=v yuxh\n e9le/ein katateqnhui/hv. 205

tri\v me\n e0formh/qhn, e9le/ein te/ me qumo\v a0nw/gei,

tri\v de\ moi e0k xeirw=n skih|= ei1kelon h2 kai\ onei/rw|

e1ptat’ [...]

Assim ele falou, e prontamente, tendo meditado em meu coração,

eu desejei

abraçar a psykhé de minha mãe falecida. 205

Três vezes me lancei, e o ânimo conduzia-me a abraçá-la,

três vezes de meus braços como uma sombra ou um sonho

ela evolou [...]

76

Confira Ilíada canto XXIII, 59-64 77

“O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois para “os primitivos”, como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia.” (ELIADE, M. 1992, p. 16).

131

Od. XI, 204-7

Em ambos os episódios, as psykhaí se desvanecem ou evolam semelhante a

fumaça, sombra ou sonho. No entanto, isso não implica a concepção de imaterialidade

da alma, como se comentará posteriormente. O aedo, ao mencionar a natureza tênue

da psykhé, não consegue concebê-la como totalmente abstrata, porque está

condicionado por seu ambiente histórico no qual a concepção de uma realidade

imaterial ainda não se havia iniciado. Convém observar que somente com o advento da

filosofia se começa a refletir sobre a possibildade da existência de entidades totalmente

abstradas e imateriais.

Os habitantes do reino de Hades possuem, portanto, um acentuado grau de

materialidade e, por esse motivo, podem ter reações a estímulos externos, seja a

presença do sangue seja à ameaça da espada de Odisseu. Convém, pois, entender o

significado das palavras de Circe sobre Tirésias, como o único que mantém a

inteligência estando no Hades, e também o que Aquiles desejou dizer ao afirmar que

no Hades há um eídolon sem phrénes.

O autor que talvez mais tenha influenciado o estudo sobre a psykhé foi Erwin

Rohde78 cujas pesquisas já foram referidas anteriormente. Esse pesquisador, orientado

pelas afirmações de Circe e de Aquiles, nega que a psykhé, depois de encerrada no

mundo dos mortos, continuasse a manter algum atributo que possuísse em vida:

Descidas para o tenebroso mundo subterrâneo, agora flutuam inconscientes ou, no máximo, com uma meia consciência, gemendo com diminutos gritos estridentes, impotentes, indiferentes. Naturalmente, tudo aquilo que havia se foi para sempre: carne, ossos, tendões e diafragma, sede de todas as faculdades do espírito e desejos. Todos esses elementos estavam ligados ao parceiro

visível da psykhé que foi destruído (ROHDE, 1950, p. 13. Tradução nossa.).

Após afirmar que os habitantes do Hades não mantinham a consciência e comentar a

função do sacrifício oferecido por Odisseu no mundo dos mortos, Erwin Rohde faz uma

afirmação que influencia gerações posteriores79:

78

Sobre as principais interpretações de Erwin Rohde Sobre a psykhé nos Poemas Homéricos, confira A

Yuxh/ nos Poemas Homéricos (2010) 79

Entre os autores que seguiram as afirmações do autor, podem ser mencionados Walter Burkert, Jan Bremmer, Alfred Heubeck e George E. Dimock.

132

Não há dúvidas de que a libação, neste relato, é uma oferenda destinada a aplacar as almas dos mortos. O sacrifício dos animais não é considerado pelo poeta certamente como um sacrifício, e o sangue oferecido às almas para que bebessem dele não tem outra finalidade que não fosse a de devolver-lhes momentaneamente a consciência (e a Tirésias, cuja consciência permanece

intacta, o dom da adivinhação) (ROHDE, op. cit. p. 37, Tradução nossa).

Embora apoiado em suas teses, por vários autores, as afirmações de Erwin

Rohde se mostram problemáticas porque partem de um postulado obscuro e de difícil

interpretação, isto é, as mencionadas afirmações de Circe e de Aquiles sobre a

condição da psykhé. Além disso, ele menciona que seria mantida, pelo menos uma

meia consciência, não esclarecendo, porém, em que isso consistiria80. Assim, deve-se

voltar aos Poemas Homéricos a fim de evidenciar a situação das psykhaí.

A primeira consideração deve levar em conta os conselhos dados por Circe a

Odisseu no diz respeito à visita do herói ao Hades81 para consultar o vate tebano, o

único que conservava sua mente, sua consciência naquele lugar. A essa orientação

somam-se as instruções acerca das libações e do sacrifício dos animais oferecidos aos

mortos. A feiticeira ainda acrescenta que as demais psykhaí não deviam se aproximar

do sangue das vítimas imoladas antes de Tirésias. Porém, o exame atento dos versos

que narram o episódio mostra que, em momento algum, se menciona qual seria a

função do sangue, embora muitos estudiosos, como já se mencionou, afirmem que ele

serviria para restaurar momentaneamente a consciência das psykhaí.

Há clara referência a Tirésias como o único que mantém a mente

firme,82conforme o verso 493: tou= te fre/nev e1mpedoi\ ei0si. Acrescente-se que a feiticeira

ainda informa que ele possui o no/ov como dádiva de Perséfone: tw|= kai\ teqnhw=ti no/on

po/re Persefo/neia/oi1w| pepnu=sqai: toi\ de\ skiai\ a0i+/ssousin. Observa-se, porém, que o

no/ov é um atributo que se diferencia de frh=n, e Circe ressalta que as demais psykhaí

não o mantém. No entanto, não se pode inferir da carência do no/ov a completa

ausência de frh=n porque tal ideia não está expressa nos versos. A presença do

80

Erwin Rohde faz afirmações que soam estranhas, como, por exemplo, considerar que as informações sobre o mundo dos mortos seriam simplesmente uma ficção do poeta que estaria recorrendo a elementos fossilizados, carentes de sentido a fim de causar um efeito poético. Essas ponderações do autor devem ser entendidas em um contexto no qual as teorias da narrativa ainda não se tinham desenvolvido e o estudo da composição oral dos poemas começava a se esboçar. O aedo faz uso de materiais poéticos antigos ao compor sua obra, porém a audiência precisa possuir uma enciclopédia de conhecimentos que lhe permita compreender a narrativa. Em outras palavras, o poeta deve se ater à estrutura cultural em que está inserido. 81

Confira Odisseia X, 487-540. 82

Confira Odisseia X, 493.

133

adjetivo e1mpedoi (firme) no verso 493 confere uma característica específica às phrénes

de Tirésias e leva a deduzir que as outras psykhaí possuíssem esse atributo com outra

particularidade.

Aqueles que defendem a tese de que a psykhé não mantém a consciência

parecem tomar no/ov e frh=n como sinônimos e interpretar os mencionados versos

sobre Tirésias considerando a fala de Aquiles em Ilíada; w2 po/poi, h] r9\a/ tiv e0sti kai\ ei0n

0Ai+/dao do/moisi/yuxh\ kai\ ei1dwlon, a0ta\r fre/nev ou0k e1ni pa/mpan.” (“Ó infeliz, então existe

também nas moradas de Hades uma psykhé e um eídolon embora inteiramente sem

phrénes.”). Relacionar, porém, as duas referências intrepretando-as do mesmo modo

não parece a via mais adequada porque, embora Aquiles afirme que no Hades haja

uma psykhé e um eidolon inteiramente sem phrénes, o herói não se comporta em

relação ao amigo falecido com base nessa concepção. Como se demonstrou

anteriormente, mesmo após essa afirmação, o Pelida dirige-se ao amigo falecido83.

Antes de propor uma solução para esse problema, é necessário refletir sobre a

função do sangue das vítimas oferecidas aos mortos por Odisseu, pois, como já se

mencionou, nas instruções dadas por Circe não há nada a esse respeito. A falta de

uma referência sobre o papel do sangue leva a questionar a interpretação tradicional

de que ele serviria para restaurar a consciência da psykhé que o ingerisse.

Aqueles que defendem a tese da restauração momentânea da consciência pela

ingestão do sangue, entre os quais se podem citar Erwin Rohde e S. West, se valem

dos versos em que Tirésias ensina a Odisseu como proceder para falar com Anticleia:

4Wv e1fat’, au0ta\r e0gw/ min a0meibo/menov prose/eipon:

“Teiresi/h, ta\ me\n a1r pou e0pe/klwsan qeoi\ au0toi/.

a0ll’ a1ge moi to/de ei0pe\ kai\ a0treke/wv kata/lecon: 140

mhtro\v th/nd’ o9ro/w yuxh\n katateqnhui/hv:

h9 d’a0ke/ous’ h]stai sxedo\n ai3matov, ou0d’ e9o\n ui9o\n

e1tlh e0sa/nta i0dei=n ou0de\ protimuqh/sastai.

ei0pe/, a1nac, pw=v ke/n me a0nagnoi/h to\ e0o/nta;”

4Wv e1famhn, o9 de\ m’ au0ti/k’ a0meibo/menov prose/eipe: 145

83

Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 78) observa que essa afirmação de Aquiles não se fundamenta em uma autoridade especial, mas procede da limitada experiência do encontro com o morto. Acentua a autora que, mesmo com essa afirmação, a narrativa do fato de as demais psykhaí impedirem a entrada de Pátroclo no Hades evidencia que elas mantinham a consciência.

134

“r9hi+/dio/n ti e1pov e0re/w kai\ e0ni\ fresi\ qh/sw:

o3n tina me/n ken e0a=|v neku/wn katateqnhw/twn

ai3matov a]sson i1men, o9 de\ toi nhmerte\v e0ni/yei:

w|[ de/ k’ e0pifqone/oiv, o9 de\ toi pa/lin ei]sin o0pi/ssw.”

Assim ele falou. Depois, eu ,respondendo, disse-lhe:

Ó Tirésias, os próprios deuses fiaram essas coisas.

Mas vamos, dize-me agora isso e fala verdadeiramente: 140

vejo a psykhé de minha mãe falecida;

ela está sentada em silêncio perto do sangue, nem o próprio filho

ousou olhar de frente o filho nem a ele dirigir a palavra.

Dize-me, ó senhor, como ela reconheceria que sou eu?”

Assim falei. E ele, imediatamente, respondendo-me disse: 145

“Uma palavra fácil direi e colocarei em tua mente:

a qualquer um dos mortos que morreram que tu permitires

se aproximar do sangue, este falará para ti coisas verdadeiras;

mas aquele que tu repreenderes, novamente esse voltará

para trás.

Od. XI, 138-49

Tirésias responde a Odisseu que qualquer psykhé que ele permitisse se

aproximar do sangue, poderia falar-lhe verdadeiramente conforme os versos 147 e 148:

“o3n tina me/n ken e0a=|v neku/wn katateqnhw/twn/ ai3matov a]sson i1men, o9 de\ toi nhmerte\v

e0ni/yei:” Aquela que não tivesse tal permissão se afastaria. Após essa resposta, o

adivinho volta-se para o interior do Hades, e o herói, seguindo suas instruções,

consegue conversar com sua mãe. É precisamente nesses versos que se encontra a

fundamentação da tese de que o sangue bebido pelas psykhaí lhes devolve,

momentaneamente, a consciência. Porém, uma análise do vocabulário dos versos

suscita problemas para a defesa desta tese amplamente defendida.

Conforme as instruções dadas por Circe sobre o sacrifício oferecido por Odisseu

às psykhaí, em momento algum foi esclarecida a utilidade do sangue, e considerando

que psykhé de Tirésias, conforme declara a feiticeira, era a única psykhé que mantinha

a inteligência, mesmo estando no Hades, enquanto as outras erravam como sombras,

135

o sangue não teria a função proposta por Erwin Rohde e outros pesquisadores, pelo

menos para o tebano.

A tese do sangue como um avivador temporário da consciência torna-se ainda

mais questionável no passo em que Odisseu, ao descrever a situação de sua mãe,

afirma que ela permanece sentada em silêncio ao lado do sangue, sem ousar olhar

para sua face. O verbo utilizado na passagem é *tla/w (e1tlh, verso 143), que, seguido

de um infinitivo, pode ser traduzido por ousar, enfrentar, ter coragem, ter espírito para

fazer algo e atrever-se (Richard John Cunfliffe, 1963, p. 386). O uso desse verbo já

denota certo grau de consciência da psykhé, pois o que se evidencia aqui não é a

incapacidade de exercer a ação, e sim a falta de desejo ou motivação para tal.

Após e perguntar sobre a vinda do filho, vivo, ao Hades, a psykhé de Anticleia é

interpelada a falar sobre a situação de Ítaca, Laertes, Telêmaco e Penélope. Em sua

fala, Odisseu pede para que a mãe declare verdadeiramente (a0treke/wv) sobre essas

coisas. Deve-se observar que não há menção do tempo transcorrido entre a morte de

Anticleia e o encontro no Hades, e o tempo verbal usado pelo narrador é o presente.

Assim, uma pergunta se impõe: como poderia Anticleia saber da situação presente de

Ítaca para falar verdadeiramente sobre ela?

A afirmação de Tirésias, ao encontrar Odisseu no Hades, ajuda a responder a

questão. Ora, o vate pede ao herói que afaste a espada para que ele pudesse beber do

sangue porque somente assim falaria coisa sem erro, infalível (nhmerte/v, Od. XI, 95).

Dessa afirmação, pode-se concluir que a psykhé poderia falar coisas falíveis ou

erradas caso não provasse do sangue. Tal conclusão é confirmada quando o adivinho

tebano pede para beber do sangue a fim de falar coisas isentas de erro; Od. XI, 96:

“ai3matov o1fra pi/w kai\ toi nhmerte/a ei1pw.” (a fim de que eu beba do sangue e fale

coisas isentas de erro.). Uma vez que Tirésias mantinha a consciência, o sangue só

poderia ter a função de lhe restaurar a capacidade de falar com isenção total de erro.

Aqui sua condição se iguala à das outras psykhaí, isto é, embora mantivesse seu no/ov,

ele careceria da capacidade de vaticinar como outrora ou não tinha força para isso.

A resposta mais acertada para a questão proposta parece ser que o sangue

confere à psykhé de Anticleia uma capacidade mântica semelhante à de Tirésias. O

adivinho tebano só fala com isenção de erro, só vaticina após beber o sangue84. A

84

Sobre esse tema, compartilha-se da opiniãoJohn Heath (2005, p. 397): “Tiresias was a prophet when alive, and thus he alone of the dead has powers to foresee the future.There is no evidence in the text that 'prophecy' is directly related to the blood in any other case, but for him the links between blood and

136

psykhé de Anticleia está em situação análoga. Corrobora essa interpretação o fato de

Tirésias, ao encontrar Odisseu, perguntar qual o motivo da visita do herói ao mundo

dos mortos85. A pergunta careceria de sentido se o vate mantivesse sua capacidade

mântica. Vê-se, portanto, que não se pode precisar que o sangue tivesse a capacidade

de restaurar a consciência da psykhé.

A interpretação de que o sangue confere faculdade mântica é defendida por

Christiane Sourvinou-Inwood86 que propõe nova solução para o problema. Para a

autora (1995, p. 81), após a interrupção da narrativa de Odisseu sobre sua visita ao

Hades, por ocasião de sua estadia, na corte dos Feáceos, no verso 330, do canto XI, e

sua retomada no verso 385, não há alusão à necessidade de a psykhé beber o sangue

para falar com Odisseu87. Aquiles, por exemplo, não bebeu do sangue, pelo menos o

fato não é mencionado nos versos 471-540. Outro exemplo citado pela autora é a

reação da psykhé de Ájax que se mantém afastada de Odisseu por conservar, mesmo

no Hades, a animosidade sentida em vida contra o herói de Ítaca, sentimento que se

manifesta sem a necessidade de beber do sangue. Observa Christiane Sourvinou-

Inwood que Ájax é capaz de fazer e sentir coisas que só poderiam ser realizadas após

a ingestão do sangue, conforme a interpretação tradicional.

Entretanto, a interpretação da autora é criticada por John Heath (2005, p. 398)

que defende a tese tradicional da função do sangue como avivador momentâneo da

consciência das psykhaí: “A regra geral é que o morto não pode falar com o vivo sem o

gosto reanimador do sangue, mas Homero está determinado por ela apenas por sua

necessidade temática.” Pelas palavras do autor, pode-se inferir que ele considerava

que os ouvintes do aedo partilhavam dessa concepção cuja aceitação geral obrigaria o

poeta a referir-se a ela, ainda que brevemente, ao narrar o diálogo de Odisseu com as

psykhaí. Assim, para John Heath, o fato de não ser mencionado que ambos os heróis

não beberam do sangue não implica dizer que eles não o tivessem feito porque a

audiência supriria mentalmente a repetição da cena88. Nas palavras do autor: “mas eu

prediction are important. After five verses, the Theban seer quickly drinks the blood and immediately begins his lengthy prognostications.” 85

Confira Odisseia, XI, 90-4. 86

Embora se aceite nessa tese muitas afirmações de Christiane Sourvinou-Inwood, rejeita-se sua argumentação de que a ingestão do sangue, conforme ocorre na nekyia, seria uma invenção do poeta. Há evidências arqueológicas, já mencionadas anteriormente, de que os Micênicos faziam ofertas de líquidos para os mortos. Por esse motivo, parece mais acertado, pois, interpretar que o poeta fazia uso de uma antiga concepção micênica. 87

Sobre o verso 390 em que aparece “e0pei\ pi/en ai[ma kelaino/n” logo depois da cesura, a autora diz que ele pode ser uma conjectura tardia porque só aparece em alguns manuscritos. 88

John Heath (2005, p. 391)

137

acredito que o cantor homérico podia esperar que sua audiência entendesse a ação

típica sem, explicitamente, repetir cada detalhe.”

O argumento apresentado por John Heath (2005, p. 391) segundo o qual a

audiência poderia supor a repetição da ação de beber do sangue sem que esse fato

estivesse explícito no texto, já fora criticado por Christiane Souvinou-Inwood (2005, p.

81) com o seguinte argumento: “A noção de que somos nós que, mentalmente,

completamos o ato de beber do sangue a cada vez, é falaciosa. A intenção de Homero

nos é inacessível e, menos acessível ainda é como a audiência podia apreender o

sentido da narrativa.”.

A crítica da autora é pertinente, pois, na técnica de composição oral utilizada nos

Poemas Homéricos, há repetições de vários elementos: fórmulas, epítetos, símiles e

versos idênticos89, inteiros ou em partes. Assim não parece razoável que se deva suprir

metalmente a ausência de um elemento importante da narrativa como propõe John

Heath.

Uma evidência da repetição de elementos do verso, em um episódio em que se

poderia esperar que a audiência suprisse mentalmente a informação já mencionada,

pode ser encontrada, por exemplo, no catálogo das heroínas em Odisseia XI, 225-327.

Nessa passagem, Odisseu, após conversar com sua mãe, interrogou as heroínas que

se aproximaram. A fim de que as psykhaí não bebessem do sangue todas ao mesmo

tempo, o herói desembainha a espada e só permite a aproximação de uma de cada

vez. Na sequência da narrativa, no verso 235, observa-se a utilização da forma verbal

i1don (vi) junto com seu complemento, no referido passo, o nome da heroína,

formando uma estrutura sintática usual no dialeto homérico repetida nove vezes

nessa passagem. Ora, se for aceito o argumento apresentado por John Heath para

justificar a ausência da expressão “bebeu do sangue”,ou seja, que a audiência a

supriria mentalmente, cria-se uma dificuldade para explicar a repetição nesse passo

que o mesmo recurso poderia ser aplicado.

Desse modo, não se pode saber, com certeza, a função do sangue dos animais

sacrificados por Odisseu no Hades, pois os versos que narram esse evento não

89

Trata-se da repetição de estruturas que não se enquadrariam nas definições de fórmulas, epítetos ou símiles. A fórmula, amplamente utilizada nos Poemas Homéricos, consiste em um conceito amplo, definido por Milmann Parry (1987, p. xxxi) como uma conjunção de frases verbais utilizadas repetidamente do mesmo modo, na mesma parte do verso e sob as mesmas condições métricas para expressar a mesma ideia.

138

esclarecem em absoluto a questão. A hipótese mais provável é a de que o sangue

apenas ativaria uma capacidade mântica, como se argumentou.

3.3.2 Duas teses: um problema

As reflexões até aqui apresentadas evidenciam que interpretar a condição da

psykhé do morto nos Poemas Homéricos é tarefa complexa e, embora haja tendência

para simplificar o problema com a imposição de uma tese defendida de maneira quase

dogmática por diversos autores, como se demonstrou anteriormente, devem-se buscar

teses alternativas que lancem luz sobre esse tema e enriqueçam o debate.

A leitura cuidadosa dos Poemas Homéricos, com o objetivo de entender a

situação da psykhé, permite uma posição diferente da defendida pela maioria dos

estudiosos, qual seja, após a morte, a psykhé do morto vagueia no Hades como

sombra sem consciência, faculdade restaurada, momentaneamente, após a ingestão

do sangue do sacrifício de animais. Porém, verificou-se que essa tese apresenta

questionamentos que dificultam sua aceitação como concepção absoluta acerca da

condição da psykhé nas epopeias. Walter Burkert (1995, p. 382), por exemplo,

apresenta uma opinião diferente e cautelosa, ao comentar o tema, pois defendeu a

descontinuidade da concepção de psykhé inconsciente com base nos cantos XI e XXIV

de Odisseia e no canto XIII de Ilíada, particularmente no verso 416, em que se

menciona que a alma do morto podia alegrar-se.

Embora Walter Burkert apresente uma posição diversa, ele se equivoca, ao

mencionar o verso 416 do canto XIII de Ilíada para legitimar sua afirmação. O episódio

em questão trata da morte do aqueu Ásio, assassinado por Idomeneu. Deífobo,

companheiro do morto, promete ao amigo que lhe alegrará o coração porque lhe

enviará um companheiro para seguirem juntos para o Hades. A confusão se dá porque

o corpo de Ásio estava tombado no campo de batalha, ou seja, insepulto, situação

análoga à do corpo de Pátroclo, em Ilíada, canto XXIII, 71-6, e à de Elpenor em

Odisseia XI, 51-4. Em ambos os casos, a rigor, a morte não havia sido concluída por

falta dos ritos funerários, e isso mantinha a psykhé do morto ligada ao mundo dos

vivos, concepção usualmente aceita por quase todos os estudiosos.

139

Por outro lado, Christiane Sourvinou-Inwood,90 em seu livro Reading the Greek

Death to the End of the Classical Period, publicado em 1995, sustenta que, nos

Poemas Homéricos, há duas concepções sobre a condição da psykhé no Hades, e

esse fato, na opinião da autora, não era estranho à audiência do poeta.

Analisando a fala de Aquiles, ao encontrar a psykhé do amigo Pátroclo – cena

que constitui um dos fundamentos da tese defendida por alguns estudiosos de que os

habitantes do Hades não conservam a consciência –, Christiane Sourvinou-Inwood

(1995, p. 79) afirma que, a despeito do comentário do Pelida expressar uma ideia de

inconsciência da psykhé, o que se nota nos citados versos, principalmente pela ação

das demais psykhaí em não permitir que a alma de Pátroclo cruzasse os portões do

Hades e a elas se juntasse, é uma concepção de que as psykhaí mantinham a

consciência já que reagem a fim de resguardar a entrada daqueles que não receberam

os ritos necessários para a entrada definitiva no mundo dos mortos.

Nesse episódio, estariam, na opinão da autora (op. cit., p. 78), justapostas duas

percepções sobre a natureza das psykhaí, sem que haja entre elas contradição lógica

para o poeta e sua audiência, porque ambas as concepções somente poderiam ser

selecionadas no momento de performance, em um ambiente no qual as “sombras”

fossem percebidas como “vivas”. Nesse contexto, não haveria conflito entre a ação das

psykhaí que não deixaram Pátroclo atravessar para o outro lado do rio e a elas se

juntar. Observa a autora que a fala de Aquiles reflete apenas uma especulção desse

personagem sobre o assunto.

Outra importante afirmação de Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 79) sobre

a impossibilidade de se sustentar a tese da inconsciência da psykhé nos Poemas

Homéricos reside no fato de que essa concepção não se harmoniza com a ideia de que

as Erínias puniam, sob a terra, aqueles que prestaram falso juramento, conforme Iliada

III, 276-9 e XIX, 257-60. Nesses passos, estaria expressa a noção de destino individual

da psykhé, noção que não faria sentido algum em um contexto que concebesse a

psykhé como um ser inconsciente.

Conclui a autora que, no mundo homérico e pós-homérico crescia e se

desenvolvia uma tendência em considerar o destino individual da psykhé sobrepondo-o

ao destino coletivo. Esse fenômeno que leva à conclusão de que, no período de

composição final dos Poemas Homéricos, a concepção de psykhé consciente era mais

90

As principais linhas de reflexões da autora já foram apresentadas na referida pesquisa de mestrado A psykhé nos Poemas Homéricos.

140

corrente porque somente a psykhé provida de consciência poderia ser objeto de

reflexão de um destino individual.

Christiane Sourvinou-Inwood (op. cit., p. 78) afirma que as concepções sobre a

natureza das psykhaí, nesse episódio, foram justapostas sem que isso implicasse uma

contradição lógica para o poeta e sua audiência porque, se fosse diferente, ao compor

o poema, a seleção desse material não teria sido possível. Para a autora, deve-se

supor que a escolha do material utilizado na composição só faz sentido em um

contexto em que para o poeta e sua audiência, as sombras (psykhaí) fossem vivas.

Assim resulta para Christiane Sourvinou-Inwood que não há nada problemático quando

se notam as ações de as psykhaí impedirem a entrada de Pátroclo no Hades e a

observação de Aquiles sobre os habitantes do Hades não possuírem phrénes, pois ela

seria apenas uma especulação do personagem.

A tese de que há nos Poemas Homéricos duas concepções sobre a

conservação da consciência das psykhaí, como defende Christiane Sourvinou-Inwood,

se apresenta coerente com os versos das epopeias porque não há como conciliar a

realização de libações, promessas de sacrifícios futuros e preces aos mortos em um

contexto em que predominasse apenas a concepção de psykhé inconsciente91.

De modo semelhante ao que ocorreu com os estudos de George E. Mylonas,

sobre os Micênicos e o mundo dos mortos, que influenciaram gerações de estudiosos

posteriores, que rejeitaram, por muito tempo, concepções contrárias às teorias do

pesquisador, a tese da psykhé inconsciente e da necessidade do sangue para

restaurar-lhe, momentaneamente, essa faculdade, firmou-se quase como um dogma de

modo que, até os estudos de Christiane Sourvinou-Inwood, as afirmações de George

91 Confira as principais reflexões de Christiane Sourvinou-Inwood sobre esse tema em A psykhé nos

Poemas Homéricos (2010, p. 63): “A autora (1995, p. 79) julga que é possível entender a presença das duas concepções observando o desenvolvimento do conceito de destino futuro do homem. Para ela, em geral, enquanto a crença em um destino coletivo das yuxai/ – o Hades – se harmoniza com as noções de yuxh/ consciente e de yuxh/ inconsciente, a noção de destino individual é coerente apenas com a

primeira noção, tendo em vista que cada yuxh/ será julgada somente por seus próprios atos. Como a tendência para uma crença no destino individual da yuxh/ estava emergindo nos mundos homérico e pós-

homérico, pode-se concluir, segundo a autora, que a crença na yuxh/ desprovida de consciência estivesse mais viva no período em que os Poemas Homéricos adquiriram a sua forma final, ou seja, no VIII século a. C. Para a pesquisadora (op. cit. p. 79), a concepção de yuxh/ provida de atividades mentais aparece em várias partes dos poemas, enquanto a de yuxh/ inconsciente é menos usual, apresentando-

se fora do canto XI da Odisseia em passagens circunscritas, como, por exemplo, na fala de Aquiles (Il. XXIII, 103-4), no encontro com a yuxh/ de Pátroclo e na referência de Circe ao mundo dos mortos (Od.X, 494), bem como nas instruções da feiticeira sobre como Odisseu devia proceder aos ritos para os mortos (Od. X, v.516-36).”

141

E. Mylonas se apresentavam como a única tese viável. Porém, a ninguém é dado o

dom da interpretação absoluta em questões literárias.

Certamente, o tema é controverso, e os autores divergem ao tratarem do

assunto. No entanto, seguindo a linha de reflexão estabelecida por Christiane

Sourvinou-Inwood, Odysseus Tsagarakis (2000, p. 106) relaciona a narrativa mítica de

cinco personagens, a saber, Tântalo, Sísifo e Títio, denominadas pelo estudioso

“físicos” ─ por padecerem castigo no corpo ─, Órion e Minos ─, que continuam

exercendo no Hades as mesmas atividades praticadas em vida ─ com a afirmação de

Aquiles de que a psykhé no Hades não possui phrén. O autor argumenta92 em favor da

tese de Christiane Sourvinou-Inwood e também defende a existência de duas

concepções das condições da psykhé no Hades, sem que haja contradição entre elas,

pois ambas eram aceitas pela audiência do poeta. Para o estudioso, as duas

concepções não são excludentes, e não é preciso buscar explicações engenhosas a

fim de considerá-las como presença de elementos não homéricos nos Poemas porque

ambas fariam parte do contexto cultural93 do poeta e integravam duas tradições que,

embora diferentes, estavam unificadas; uma mais antiga e outra mais recente que

estava mais direcionada às necessidades individuais dos ouvintes. A menção aos

castigos sofridos por Tântalo, Sísifo e Títio remeteria, portanto, à “necessidade

pessoal”.

A linha de reflexão adotada por Odysseus Tsagarakis deixa claro que, para ele,

as duas concepções podem ser o resultado de um processo de bricolagem em que

elementos culturalmente diversos convergem num sistema religioso no qual poeta e

audiência partilham as mesmas noções.

Ao analisar os versos referentes à relação de Aquiles com a psykhé de Pátroclo,

Odysseus Tsagarakis (2000, p. 106) observa que o Pelida apresenta um

comportamento de quem considera a psykhé do amigo falecido muito mais que uma

mera sombra porque lhe promete parte do resgate oferecido por Príamo pelo corpo de

Heitor: “Aquiles diz que partilhará os a1poina com Pátroclo e é difícil ver qual uso

Pátroclo faria deles se ele fosse uma mera sombra94.”

92

A argumentação do autor baseia se nos mesmos versos e exemplos apresentados por Christiane Sourvinou-Inwood. 93

“The two views underlie certain religious beliefs that belonged to the poet’s cultural heritage and were

an integral part of a unified and yet diverse poetic tradition, as we will see presently.” (Odysseus Tsagarakis, 2000, p. 109). 94

Odysseus Tsagarakis (op. cit., p. 106).

142

Os argumentos do autor se assemelham àqueles apresentados por Christiane

Sourvinou-Inwood de sorte que não se faz necessário comentá-los. Porém, vale

lembrar a afirmação de Odysseus Tsagarakis sobre a nekyia, passo em que uma das

características da epopeia está bastante evidente, ou seja, a utilização de elementos

heterogêneos na composição, alguns acentuadamente de épocas diferentes. Tal

característica explicaria, na opinião do autor, porque há diferentes concepções na

Nekyia, mormente em relação ao Hades95. Quanto à aparente contradição entre as

concepções de post-mortem nos Poemas Homéricos, convém citar as palavras do

autor:

Como se indicou acima, o problema inerente ao uso de material, aparentemente incongruente, deve ser visto à luz da finalidade do poeta. Como herdeiro de uma tradição religiosa e cultural diversificada, o poeta não poderia adotar facilmente alguns dos seus aspectos e rejeitar outros. Sua audiência, também, pertencia a diferentes contextos culturais, como dramatis personae de sua época, e é razoável supor que eles diferissem em seus pontos de vista

sobre a vida após a morte. (TSAGARAKIS, 2000, p. 105. Tradução nossa)

A discussão poderia ser prolongada sem, no entanto, se chegar a uma tese

definitiva. Assim, faz-se mister concluir, parcialmente, observando os principais

elementos da reflexão empreendida sobre a condição da psykhé no reino de Hades:

primeiro, nos versos dos Poemas Homéricos, não há prova que leve à aceitação quase

dogmátca da tese da psykhé desprovida de consciência, como defende

tradicionalmente a maior parte dos autores desde os estudos de Erwin Rohde no final

do século XIX. Acrescente-se que a tese da utilização do sangue como elemento

reavivador temporário da consciência não se apresenta totalmente satisfatória, pois,

como se pôde ver, somente algumas psykhaí que conversaram com Odisseu beberam

o sangue, embora todas as outras demonstrassem ter consciência, como se observou

nos versos 465-70 e 541-67 do canto XI de Odisseia, referentes à psykhé de Aquiles e

à de Ájax.

Assim, nos Poemas Homéricos, há duas concepções acerca da situação da

psykhé do morto, ou seja, o conceito de que depois de morto e encerrado

definitivamente no Hades a consciência do morto desaparece, e outra, mais corrente

nas epopeias, como se propôs, segundo a qual a consciência, mesmo depois da

morte, se mantém intacta. Deve-se observar, porém, que as epopeias homéricas não

95

Odysseus Tsagarakis (op. cit., p. 111), “Given the fact that Homeric epics contain heterogeneous elements of Greek civilization, it is not surprising that nekyia contains different concepts of Hades.”

143

são um tratado de religião ou de teologia, mas uma obra literária em que se podem

vislumbrar aspectos culturais e religiosos dos ouvintes. Desse modo, as duas visões

sobre a psykhé não são contraditórias e parecem remontar a estratos culturais diversos

sendo, pois, ambas familiares à audiência do poeta, como constataram Christiane

Sourvinou-Inwood e Odysseus Tsagarakis.

Se não há, por um lado, contradição entre as duas concepções sobre a condição

da psykhé do morto no Hades, por outro, o destino de Menelau, abduzido para os

Campos Elísios, conforme Odisseia IV, 561-9, apresenta-se em aparente desacordo

com a visão tradicional de que todos os homens devem morrer e ir para o mundo dos

mortos.

soi\ d’ ou0 qe/sfato/n e0sti, diotrefe\v w] Mene/lae,

1Argei e0n i9ppobo/tw| qane/ein kai\ po/tmon e0pispei=n,

a0lla/ s’ e0v 0Hlu/sion pedi/on kai\ pei/rata gai/hv

a0qa/natoi pe/myousin, o3qi canqo\v 9Rada/manquv,

th=| per r9hi+/sth bioth\ pe/lei a0nqrw/poisin: 565

ou0 nifeto/v, ou1t’ a2r’ xeimw\n polu\v ou1te pot’ o1mbrov,

a0ll’ ai0ei\ Zefu/roio ligu\ pnei/ontov a0h/tav

0Wkeano\v a0ni/hsin a0nayu/xein a0nqrw/pouv,

ou3nek’ e1xeis 9Ele/nehn kai\ sfin gambro\v Dio/v e0ssi.

Não está determinado para ti, ó Menelau, alimentado

por Zeus, que em Argos, rica em pastagem para cavalos, morras

nem cumpras o teu destino, mas os imortais te enviarão para os

Campos

Elísios, nos extremos da terra, lá onde está o louro Radamanto.

Aí,precisamente, a vida é mais fácil para os homens: 565

não há neve, nem longo inverno e nem chuva.

Mas o Oceano sempre envia para o alto as brisas do Zéfiro que

sopra de modo intenso para refrescar os homens,

porque, tens Helena e para eles és genro de Zeus.

Od. IV, 561-9

144

Esse passo tem suscitado várias interpretações, embora nenhuma delas seja

totalmente satisfatória, como, por exemplo, a proposta defendida por Erwin Rohde

(1925, p. 56), segundo o qual esses versos não devem ser interpretados como uma

interpolação tardia, pois a ideia de que alguém pudesse ser arrebatado por uma

divindade e levado para um local onde teria uma vida perene se encontra ancorada nos

Poemas Homéricos. Em Ilíada, afirma o autor, essa noção está presente em episódios

de batalha como, por exemplo, nas passagens que narram a morte de Sarpédon e a de

Heitor,96como já se comentou. Exemplo digno de nota, mencionado por Erwin Rohde,

encontra-se em Odisseia XX, 61-78, passagem em que Penélope, angustiada pela

possibilidade de partilhar o leito com outro homem, expressa seu desejo de ter a vida

abreviada:

“ 1Artemi, po/tna qea/, qu/gathr Dio/v, ai1qe moi h1dh

i0o\n e0ni\ sth/qessi balou=s’ e0k qumo\n e3loio

au0ti/ka nu=n, h2 e1peita/ m’ a0narpa/casa qu/ella

oi1xoito profe/rousa kat’ h0ero/enta ke/leuqa,

e0n proxoh|=v de\ ba/loi a0yorro/ou 0Wkeanoi=o. 65

w9v d’ o3te Pandare/ou kou/rav a0ne/lonto qu/ellai:

th|=si tokh=av me\n fqi=san qeoi/, ai9 d’ e0li/ponto

o0rfanai\ e0n mega/roisi, ko/misse de\ di=’ 0Afrodi/th

turw=| kai\ me/liti glukerw|= kai\ h9de/i+ oi1nw|:

3Hrh d’ au0th=|sin peri\ pase/wn dw=ke gunaikw=n 70

ei]dov kai\ pinuth/n, mh=kov d’ e1por’ 1Artemiv a9gnh/,

e1rga d’ 0Aqhnai/h de/dae kluta\ e0ga/rzestai.

eu]t’ 0Afrodi/th di=a porse/stixe makro\n 1Olumpon,

kou/rh|v ai0th/souse te/lov qaleroi=o ga/moio,

e0v Di/a terpike/raunon – o9 ga/r t’ eu] oi]den a3panta, 75

moi=ra/n tea0mmori/hn te kataqnhtw[n a0nqrw/pwn-

to/fra de\ ta\v kou/rav a3rpuiai a0nhrei/yanto

kai\ r9’ e1dosan stugerh|=sin e0rinu/sin a0mfipoleu/ein:

w1v e0m’ a0i+stw/seian 0Olu/pian dw/mat’ e1xontev,

96

Confira os versos dos referidos episódios nas páginas 38-41.

145

Ó Artemis, soberana deusa, filha de Zeus, oxalá,

atirando uma flecha em meu peito, destruísses meu thymós

nesse momento, ou então, uma tempestade, arrebatando-me,

me levasse carregando-me por caminhos brumosos,

e me atirasse nos limites do Oceano que corre em sentido

contrário. 65

Como quando as tempestades tomaram as filhas de Pandareo:

os deuses fizeram-lhes perecer os pais, e elas ficaram

órfãs no palácio, e a divina Afrodite cuidava delas,

com queijo, doce mel e vinho suave;

Hera deu-lhes, acima de todas as mulheres, 70

aparência e sabedoria, a pura Ártemis ofereceu-lhes estatura,

enquanto Atená lhes ensinou realizar gloriosos trabalhos.

Então, quando a divina Afrodite subia para o vasto Olimpo,

para pedir para as jovens o termo do casamento juvenil,

a Zeus que lança raios, pois ele sabe bem de todas

as coisas, 75

tanto a felicidade quanto a infelicidade dos homens mortais,

as tempestades arrebataram as jovens para o alto

e as deram para as detestáveis erínias para que as

jovens fossem suas servas.

Oxalá, me aniquilassem osque têm moradas olímpias,

Od. XX, 61-84

Ao citar esse episódio, Erwin Rohde corrobora sua tese de que a abdução

estava presente nas concepções religiosas da épica homérica, na qual, em mais de um

exemplo, se podem encontrar referências de que uma divindade pudesse retirar

alguém de seu ambiente e levá-lo para um lugar à parte. O autor (1925, p. 57) ainda

acentua que a Menelau é prometida a vida imortal em um lugar diferente do Hades: o

herói habitará um lugar especial de bem-aventurados, um local concebido como um

“novo reino de deuses”, pois Menelau será imortalizado e alçado à condição de uma

divindade.

Na verdade, Erwin Rohde considera que imortalidade e divindade são termos

equivalentes, e, nos Poemas Homéricos, aquele que não sofre a morte entendida

146

como a separação entre o corpo e a psykhé por ter sido agraciado pelos deuses com

a imortalidade, torna-se um deus97. A interpretação de Erwin Rohde sobre a

divinização de Menelau, no entanto, é equivocada porque não há referência a tal

fenômeno na narrativa de abdução do Atrida, e não é possível deduzi-la mesmo

argumentando que a menção de Radamanto apontaria para essa direção.

Christiane Sourvinou-Inwood (2005, p. 39) percebeu esse problema de

interpretação na argumentação de Erwin Rohde e lhe fez a seguinte crítica: “A primeira

objeção a esse esquema é o fato de que, em Homero, não se diz que Radamanto é

divino nem que a Menelau tal divindade é prometida. Imortalidade paradisíaca é o que

eles possuem, mas isso não é o mesmo que divindade.”

Embora a opinião de Christiane Sourvinou-Inwood não se ajuste à de Erwin

Rohde, vale notar que, ao aceitar a imortalização dos abduzidos, o estudioso coloca-

os em proximidade estreita com as divindades imortais. Convém lembrar a esse

respeito que a diferença essencial entre homens e deuses é a imortalidade. Por esse

motivo, a imortalização de Menelau lhe conferiria uma prerrogativa dos deuses. Há

ainda outro impasse comum entre as interpretações de Erwin Rohde e Christiane

Sourvinou-Inwood: ambos afirmam que Menelau será imortal, porém essa ideia não

está expressa claramente na passagem em questão.

A observação atenta da sintaxe dos versos em que se narra o destino de

Menelau evidencia que não há uma promessa efetiva de imortalidade, como se pode

depreender da análise dos dois hexâmetros iniciais do citado passo: soi\ d’ ou0 qe/sfato/n

e0sti, diotrefe\v w] Mene/lae,/ 1Argei e0n i9ppobo/tw| qane/ein kai\ po/tmon e0pispei=n,. Há

nessa estrutura duas orações subjetivas reduzidas de infinitivo (qane/ein e po/tmon

e0pispei=n) cujo predicativo é qe/sfaton. Esse termo é formado, como indica Richard John

Cunliffe (1963, p. 189), das raízes qes- do substantivo qeo/v e fa-, do verbo fhmi,/

traduzido por “prometido”, ordenado pelos deuses ou por desejos divinos”. Convém

observar os infinitivos com função sintática de sujeito qane/ein (morrer) e e0pispei=n cujo

complemento é po/tmon. Essa última forma verbal é aoristo do verbo e0fe/pw, composta

da preposição e0f-, (e0pi\) e e3pw, traduzida, conforme Richard John Cunliffe (1963,

p.171), por dirigir ou conduzir (cavalos), negociar, tomar nas mãos ou encontrar.

97 Confira a afirmação de Erwin Rohde, (op. cit. p. 57) He is to become a “god”, for since to the homeric poets “god” and “immortal” are interchangeables terms, a man who is granted immortality (that is, whose psyche never is never separated from his visible self becomes for them a god.

147

As promessas feitas a Menelau, expressas nos referidos versos, dizem respeito

à determinação divina de que ele não morrerá em Argos (ou0 ... 1Argei e0n i9ppobo/tw|

qane/ein), nem encontrará ali98 seu destino, (ou0...po/tmon e0pispei=n). O termo po/tmon,

complemento do verbo e0pispei=n, conforme Richard John Cunliffe (op. cit., p. 341),

significa “alguma coisa que pode acontecer com alguém”, destino”, “sorte”, “

“desgraça”, “mal” e “morte”. Ao tudo indica, essa última acepção não parece ser a do

referido verso porque a ideia de morte, já mencionada na oração anterior, po/tmon

parece antes se referir ao desfecho da vida por uma via específica que culmina com a

morte. Qual seria, então, o destino final de Menelau, o seu po/tmov? Seria mesmo a

vida imortal?

Não é fácil responder a essa pergunta. Embora muitos estudiosos tenham

aceitado a solução99 proposta por Erwin Rohde e repetida por Christiane Sourvinou-

Iwood, não há nos versos, como se pôde perceber, dados que corroborem de modo

seguro a imortalização do herói; além disso, o sintagam adverbial em 1Argei e0n

i9ppobo/tw| (em Argos rica em pastagens para cavalos) somente evidencia que

Menelau não morrerá em Argos, mas será levado para “e0v 0Hlu/sion pedi/on”, onde a vida

é mais fácil para os homens que lá vivem.

Convém, ainda, mencionar outra dificuldade no que diz respeito à imortalização

do herói, já que o termo po/tmov, nas epopeias, sempre se apresenta relacionado com

destino final ou morte, como, por exemplo, em Ilíada XVI, 857, na fórmula “o4 po/tmon

goo/wsa” (“lamentando seu destino”) referente à morte de Pátroclo, e, em Odisseia XI,

197, no passo em que se narra o destino de Anticleia; “ou3tw ga\r kai\ e0gw\n o0lo/mhn kai\

po/tmon e0pe/spon:” (“e assim, eu, de fato, morri e encontrei meu destino:”)100.

Portanto, o fato evidente é que Menelau não morrerá em Argos, mas será levado

para “e0v 0Hlu/sion pedi/on” situado no extremo da terra. Esse local, conforme observou

Erwin Rohde (p. 56), não é uma parte do Hades: “O lugar para o qual ele será enviado

não é uma parte do reino de Hades, mas um local sobre a superfície da terra, separado

como uma morada, não das "almas" desencarnadas, mas de homens cujas almas não

98

Considero que há elisão do sintagma adverbial 1Argei e0n i9ppobo/tw | que pode ser presumido na segunda oração. Assim, ele também não encontrará seu destino em Argos. 99

Há ainda outros autores que aceitam a mesma solução entre os quais podem ser destacados M. P. Nilsson (p. 622); Maria Helena da Rocha Pereira (1955, p. 23) e George E. Dimock (1989, p. 54). 100

Confira Ilíada II, 359; III, 337; IV, 170; VI, 412; VII, 52; XI, 263; XVII, 96; XXI, 588 e Odisseia II, 250; III, 16; IV, 196; XI, 197; XIX, 550, XXIV, 471.

148

foram separadas de seus eus visíveis.”. Somente a abdução do homem vivo lhe

permitiria desfrutar dos benefícios disponíveis naquele local de vida bem-aventurada.

Na verdade, como se pôde perceber ao longo dessa reflexão, Erwin Rohde não

considerava que a concepção da abdução de alguém fosse incongruente com as

crenças homéricas, ao contrário, para o pesquisador, ela encontra-se ancorada nas

epopeias. Para o autor (1925, p. 59), a novidade presente nos versos é que Menelau

viverá em uma terra separada, um lugar especial que não coincide com uma terra de

deuses para a qual alguns homens já foram levados. Erwin Rohde ainda argumentou

que esses versos não devem ser considerados invenção do poeta tendo em vista que a

ideia é mencionada de forma muito breve. Isso só se justificaria se essa concepção

fosse conhecida pelos ouvintes. A presença de Radamanto apontaria nessa direção,

pois ele era conhecido já em uma antiga tradição sobre a qual o autor não dá

esclarecimentos.

Numa época em que se iniciavam os estudos sobre as influências da cultura do

Oriente Médio na formação de concepções gregas, Erwin Rohde (1925, p. 60) afirmava

que, embora houvesse uma inclinação para derivar do Oriente a concepção de

abdução de alguém para um lugar especial, pouco se ganharia com esse

posicionamento porque ele acarretaria problemas difíceis de ser resolvidos, como, por

exemplo, responder porque os Gregos adotaram essa concepção religiosa estrangeira

tão específica nesse momento de sua história. Nota Erwin Rohde que não havia motivo

especial para considerar a tese de empréstimo cultural em detrimento da compreensão

do fenômeno como uma evolução independente motivada pelas necessidades

similares de povos distintos.

Embora Erwin Rohde não tenha dado atenção à origem dessa concepção, foi

ela objeto de discussão de uma série de pesquisadores de gerações posteriores como,

Martin P. Nilsson, Walter Burkert, R. Drews Griffith e Christiane Sourvinou-Inwood.

Esses autores apresentam teorias adversas que não permitem conclusões herméticas.

A tese proposta por Martin P. Nilsson foi a que mais repercutiu e encontrou

aceitação entre os estudiosos, de modo que Anthony T. Edwards (1985, p. 218)

considera os estudos do referido estudioso sobre o tema uma leitura imprescindível.

Na verdade, Martin P. Nilsson (1950, p. 622) julga que os versos referentes ao

destino de Menelau refletem uma crença muito antiga comum aos povos que faziam

comércio marítimo e a insulanos segundo os quais o morto empreendia uma viagem

marítima a uma terra remota, para além do oceano onde estaria situado o outro mundo.

149

O pesquisador ainda afirma que, quando os Gregos começaram a navegar pelo

Mediterrâneo, essa crença foi combinada com a concepção de um mundo sob a

superfície da terra, concebida como um disco plano cercado pelo oceano, com uma

borda através da qual se podia chegar ao outro mundo. Essa seria precisamente, para

o autor, a ideia presente na descida de Odisseu ao Hades.

Pondera Martin P. Nilsson que há uma noção presente nos versos referentes à

abdução de Menelau que difere da crença de uma existência no Hades, pois naquela

terra, para onde o indivíduo é levado, sua existência é corporal e ele possui uma vida

bem-aventurada. Para o estudioso, essas referências evidenciam uma concepção de

post-mortem em que a imagem da vida humana é idealizada, ideia contrária à

concepção tradicional grega do reino dos mortos e do morto: “habitante de um mundo

subterrâneo que é uma sombra pálida incapaz de se alegrar com alguma coisa.”101. É

conveniente observar que para Martin P. Nilsson (1950, p. 622) a presença das duas

concepções tem como consequência uma incompatibilidade entre elas, pois a jornada

para a Ilha dos Bem-aventurados não é concebida, nos Poemas Homéricos, como uma

passagem da alma. O homem iria vivo para esse local que é uma terra habitada por

pessoas que não morrem. Esse destino privilegiado não seria possível para o homem

comum, e Menelau só o recebeu porque era genro de Zeus.

Observação digna de nota é que Martin P. Nilsson (op. cit. p. 623) julga que a

concepção dos Campos Elísios, embora oposta à tese tradicional homérica do mundo

subterrâneo, também era, originariamente, uma concepção de vida post-mortem. A

oposição das noções, no entanto, dificilmente apontaria para uma origem comum,

embora ambas sejam, para o autor, uma herança da civilização minoica. “A prova é

uma curta referência na citação homérica da transferência de Menelau para os Campos

Elísios dada nessas palavras: o3qi canqo\v 9Rada/manquv.”102.

A interpretação do nome Radamanto como indicativo da origem minoica dessa

concepção de vida futura baseia-se na tese do autor de que há uma continuidade de

elementos da religião minoica na religião grega. A menção da personagem no episódio

da abdução de Menelau é, para Martin P. Nilsson, uma prova de sua tese:

101

Martin P. Nilsson, op. cit., p. 622. 102 The extreme briefness of expression can only be due to the fact that he was commonly known and recognized as intimately bound up With Elysium. the name, containing the element -nq is for Minona origin, and he belongs to crete not only as the brother of Minos, but his home is more especially Southern

central crete with which he is connected in the genealogies. (NILSSON, op. cit., p. 623)

150

A continuidade às vezes pode ser mostrada. Duas figuras mitológicas bem conhecidas, até mesmo possuem obviamente nomes pré-gregos, Hyakinthos e Rhadamanthos. Hyakinthos é o nome tanto de uma flor como de um deus antigo a quem Apolo suplantou e assumiu a principal festividade que pertencera àquele. Rhadamanthys pertence ao sul de Creta. Com ele está associada a ideia de Elysium, a Ilha dos bem-aventurados, longe, ao oeste. A ideia está em oposição irreconciliável com a concepção comum grega de vida futura, e essa peculiaridade encontra sua explicação no fato de que nós temos aqui uma imagem pré-grega de outro mundo. (NILSSON, 1949, p. 23. Tradução nossa.).

Um dos argumentos do autor para justificar a origem da concepção de Campos

Elísios fundamenta-se, em primeiro lugar, como ele próprio observa (op. cit. p. 624), no

fato de os Minoicos serem um povo navegador, de sorte que a ideia de um outro

mundo, situado além do mar, seria natural para eles. Para os Gregos que conquistaram

aquela civilização, essa noção permaneceu estranha até século XIV a. C., momento

em que aprenderam a navegar.

Outro ponto que Martin P. Nilsson considera fundamental para a compreensão

da origem dos Campos Elísios leva em conta as cenas retratadas no sarcófago de

Hagia Triada, com base nas quais o autor interpreta que há uma representação de

divinização de um homem. A esse respeito, porém, vale mencionar que o estudioso

(op. cit. p. 625) considerava que essa “apoteose” só se aplicava aos governantes e,

mesmo com essa característica, a concepção da divinização de uma pessoa é

totalmente inconsistente quando comparada com as crenças homéricas, com aquelas

do período clássico e com o culto aos heróis, pois esses não eram deuses. Desse

modo, a imortalização se harmonizaria melhor com a concepção de outro mundo, ou

seja, uma terra de bem-aventurança.

Como se vê, os fundamentos apresentados pelo autor são subjetivos porque ele

parte de uma interpretação pessoal das imagens gravadas no sarcófago de Hagia

Triada e, portanto, não são passíveis de comprovação empírica, embora isso não os

invalide como hipóteses.

As interpretações desse passo de Odisseia, como se pode notar, são diversas, e

as hipóteses dos autores ora convergem, ora se distanciam. Christiane Sourvinou-

Inwood (2005, p. 32), por exemplo, rejeita, veementemente, a origem minoica dos

Campos Elísios proposta por Martin P. Nilsson e assumida por outros autores103.

103 Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 34) inicia sua argumentação apresentando resumidamente as

considerações de S. West sobre a origem minoica de Elísios, segundo a qual, (apud Sourvinou-Inwood, op. cit., p. 33) a proveniência cretense dessa concepção estranha à crença grega de uma vida post-mortem como uma sombra é indicada pela breve referência ao louro Radamanto. Para S. West, a

151

A refutação da tese da origem minoica de Elísios é iniciada por Christiane

Sourvinou-Inwood (1995, p. 34) com a afirmação de que a associação de Radamanto

com os Elísios só é possível aceitando em princípio que o soberano se encontra nesse

local, conforme os versos 561-9 do canto IV de Odisseia. Essa associação, baseada

apenas nos referidos versos, na opinião da autora, indicaria que o nexo com a origem

cretense pode ser inválido, porque, na verdade, estaria fundamentado em dados

minoicos cuja interpretação foi feita projetanto sobre eles elementos de um período

posterior.

Christiane Sourvinou-Inwood (op. cit. p. 34) considera Malten o primeiro

pesquisador a propor a tese da origem minoica dos Elísios baseando-se na citada

passagem de Odisseia. De acordo com o estudioso, o conceito de Elísios, comenta a

pesquisadora, é uma herança minoica porque Homero associa esse lugar a

Radamanto que é pré-grego, dedução possível a partir do elemento cretense –nth, que

indicaria a origem desse nome. Christiane Sourvinou-Inwood também nota que a

tentativa de Malten em provar que a própria palavra Elísios era de origem minoica

resultou em fracasso.

Nota a autora que o único elemento minoico nos Elísios é Radamanto, que no

mito é um rei minoico, o que não significa, porém, a concepção de Elísios, como um

paraíso, seja de origem minoica porque “as modalidades religiosas” desenvolvidas

tornam ilegítimo considerar uma associação de Radamanto, nos Poemas Homéricos,

com uma típica terra para os mortos, um paraíso para alguns poucos escolhidos que

estava vinculada a uma concepção similar na cultura minoica:

Assim, a crença de que Radamanto estivesse associado a um paraíso no período minoico porque ele estava relacionado com os Elísios em Homero é culturalmente dependente de uma determinada expectativa que está em conflito violento com outra construída como resultado da consideração das modalidades de desenvolvimento religioso e da natureza do texto no qual a crença é articulada. Além disso, essa noção da associação de Radamanto com Elísios provando que o último é de origem minoica depende de um uso muito seletivo de provas (SOURVINOU-INWOOD, 1995, p. 34. Tradução nossa)

associação entre Elísios e esse soberano era evidentemente familiar, pois Radamanto possui um nome pré-grego e está associado à Creta: “Essa visão da vida post-mortem está de acordo com o pouco que pode ser inferido sobre as crenças minoicas a partir de seus monumentos funerários.”A tese da origem minoica adotada por S. West é prontamente rejeitada por Christiane Sourvinou-Inwood (op. cit., p. 33), pois, em sua opinião, a tese da origem minoica dos Campos Elísios só é possível porque os dados minoicos foram interpretados à luz de certas concepções sobre as crenças religiosas gregas de um período posterior. A tese, como se observou, foi proposta por Martin P. Nilsson, e a pesquisadora pondera que escolheu comentar o posicionamento de S. West porque esta resume os mais importantes argumentos da tese do referido estudioso.

152

As palavras de Christiane Sourvinou-Inwood demonstram sua rejeição à tese da

origem minoica de Elísios, pois, para a autora, a modalidade religiosa minoica e a

grega homérica são sistemas104 diversos que se desenvolveram de modo autônomo,

não sendo possível, desse modo, que o mesmo elemento pertencesse a ambos. Nesse

aspecto, há um conflito quando se articula a citada passagem sobre a abdução de

Menelau com o sistema religioso minoico sobre o qual haveria uma projeção indevida

de conceitos posteriores.

Christiane Souvinou-Inwood ainda notou que Radamanto não é o único

governante minoico associado à “terra dos mortos” nos Poemas Homéricos, pois, além

dele, seu irmão Minos, como informa o canto XI de Odisseia, está no Hades, local de

natureza muito diferente dos Elísios. Para a pesquisadora, (op. cit. p. 35), a relação

entre esses governantes e os dois locais pode gerar a hipótese de que os dois mitos

são transformações diferentes de dois esquemas conceituais minoicos em que esses

governantes eram associados ao mundo dos mortos, e as transformações ocorridas no

esquema minoico e nos seus elementos parecem, na opinião da estudiosa, criar uma

relação entre aquela cultura e os mitos gregos históricos possibilitando a tese da

origem minoica dos Elísios.

A rejeição de Christiane Souvinou-Inwood (1995, p. 36) à teoria da origem

minoica de Elísios pauta-se no postulado da continuidade da cultura minoica na religião

grega, proposto e defendido por Martin P. Nilsson que se teria baseado em evidências

tardias equivocadas. Não há, na opinião da autora, razão105 para considerar que “os

Elísios” fossem uma crença minoica no post-mortem e qualquer resposta positiva

nesse sentido carece de fundamento.

Pondera a autora (1995, p. 37) que Martin P. Nilsson aceitou com entusiasmo a

tese da origem minoica dos Elísios proposta por Malten porque com ela seria possível

explicar aquilo que ele próprio considerara uma contradição existente entre as crenças

gregas no post-mortem, ou seja, entre os Elísios, para onde Menelau seria levado, e a

descrição do mundo dos mortos, presente no canto XI de Odisseia. Martin P. Nilsson

(apud Sourvinou-Inwood, op. cit. 37) considerou que, se a concepção de Elísios fosse

104

Confira página 4 dessa tese. 105 […] as to whether the Minoan evidence offers any reason for thinking that elysion was a minoan afterlife belief it will become clear that answer is negative, and that scholars have only been able to sustain the opposite view because their case implicitly relied on centring the interpretation of the Minoan data on the presumption of Minoan origin based on later evidence. (Sourvinou-Inwood, 1995, p. 36)

153

uma herança minoica, a suposta contradição entre os dois conceitos poderia ser

explicada. Assim, segundo Christiane Sourvinou-Inwood, o referido pesquisador criou

uma imagem das crenças gregas no post-mortem com base em um princípio que não é

legítimo, ou seja, a origem minoica de Elísios.

A autora critica os fundamentos utilizados por Martin P. Nilsson na elaboração

de sua tese por considerar que ele se equivocou ao afirmar que a crença no Hades,

lugar de pálidas sombras, era natural ao caráter dos Gregos do continente enquanto,

para um povo afeito à navegação, a viagem do morto para uma terra além do mar seria

uma concepção normal, assimilada pelo povo do continente somente depois que a

navegação foi aprendida em um período posterior. Sua crítica é que Martin P. Nilsson

não especifica quanto tempo de experiência na navegação seria necessário para que a

crença na existência de um lugar específico para o morto situado além-mar se

desenvolvesse entre os Gregos do continente, nem esclarece por que os Minoicos

teriam tido esse tempo para desenvolver essa concepção, e os Gregos do continente

não.

Observa a autora (op. cit. p. 37) que M. P. Nilsson adotou a Idade do Bronze

como período determinante para a associação entre a mencionada crença e a atividade

de navegação praticada pelos Minoicos. Porém, nota a pesquisadora que, no “tempo

de Homero”, não se pode negar que os “Gregos” já exerciam atividades marítimas

havia pelo menos sete séculos, período que coincide com aquele utilizado por M. P.

Nilsson em sua argumentação. Tal coincidência inviabilizaria o argumento do autor.

Para Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 38), Martin P. Nilsson também se

equivocou ao defender que a crença na imortalização dos governantes era

perfeitamente possível entre os Minoicos, mas estranha aos Gregos do período

posterior. Essa tese do autor está ancorada na combinação de três fundamentos: a

utilização do sarcófago de Hagia Triada, uma leitura particular do culto a um rei morto

e, implícita ou explicitamente, a adoção de um modelo historicamente muito diverso

para aplicar na leitura dos dados minoicos, ou seja, o modelo romano de deificação do

imperador. A respeito desse último aspecto mencionado deve-se atentar que, para

Christiane Sourvinou-Inwood, o modelo romano mencionado parece ter sido aplicado

por Martin P. Nilsson ao episódio de Menelau considerado por ele divinizado,

interpretação que leva em conta, portanto, a interferência de uma concepção alheia ao

povo minoico. Acentua a autora, ainda, que a primeira objeção que se pode fazer a

154

essa leitura do pesquisador é que no episódio da abdução de Menelau não é dito que

Radamanto é um ser divino nem que o Atrida será uma divindade.

Ainda sobre a teoria da divinização dos soberanos minoicos, Christiane

Sourvinou-Inwood considera que a teoria de Martin P. Nilsson deveria ser repensada,

pois o sarcófago de Hagia Triada não oferece suporte para a tese porque é um artefato

que não pertence ao período de hegemonia e independência do povo minoico, mas é

oriundo do período micênico em que havia um acentuado sincretismo religioso. Desse

modo, não se pode inferir que as cenas retratadas na superfície do sarcófago sejam

minoicas. Além de mencionar a dificuldade de interpretar as imagens, a autora afirma

que saber realmente o que cada objeto retratado significa é outro sério problema

porque não se pode saber com certeza se esses objetos seriam símbolos religiosos

genéricos ou se estariam relacionados com algum ritual realizado em favor do morto.

Quanto ao último fundamento da tese a ser rejeitado, isto é, o culto a um rei

minoico morto, afirma Christiane Sourvinou-Inwood (op. cit., p. 35) que, no período pré-

palaciano106, teria havido um culto a todos os mortos da comunidade, e,

posteriormente, ele seria sido oferecido somente aos mortos pertencentes à realeza.

No começo do período palaciano, teria ocorrido, segundo a autora, um processo de

declínio do culto aos mortos comuns, e depois de uma coexistência da atividade por

parte das duas classes, a prática teria se tornado mais direcionada aos membros da

realeza. Essas transformações devem ser entendidas no contexto da sociedade

palaciana minoica no qual se pode observar uma crescente tendência de controle do

culto, principalmente no período neopalaciano, no qual algumas atividades

administrativas e econômicas estavam descentralizadas. O controle do culto, segundo

Christiane Sourvinou-Inwood, é uma das mais importantes atividades na manutenção

da autoridade central e na “manipulação da realidade”.

Essa transformação deve ser vista no contexto de uma tendência clara e

progressiva do controle do culto como alguns artefatos pelos palácios, especialmente, no período neopalaciano, quando ele está combinado com a descentralização de algumas funções econômicas e administrativas, e como um aspecto particular, observável na sociedade minoica palaciana. Os palácios eram os locais de atividades religiosas abertos ao público. Este controle do culto, como um dos mais importantes da vida pública, permite um apoio simbólico da autoridade central e da manipulação simbólica da realidade. (SOURVINOU-INWOOD, 1995, p. 36. Tradução nossa)

106

A autora não oferece uma data para os períodos em questão. Considerou-se conveniente, por esse motivo, que não usasse cronologias determinadas por outros pesquisadores porque poderia haver conflitos das datas.

155

A compreensão do fenômeno do culto aos mortos praticado pelos Minoicos e

Micênicos é de grande importância na leitura da passagem referente à abdução de

Menelau feita pela autora que, analisando o sarcófago de Hagia Triada, afirma que os

elementos registrados em sua superfície foram analisados de modo equivocado por

aqueles que defendiam a tese da origem minoica da concepção de Elísios porque a

deificação do governante, como propõem alguns estudiosos, não pode ser comprovada

e está errada107. Nota Christiane Sourvinou-Iwood (1995, p. 43) que o sarcófago não

pertenceu a um soberano e, consequentemente, o morto que nele se encontra

encerrado não poderia ter recebido culto.

Outro aspecto considerado pela autora diz respeito a alguns elementos das

cenas que não se coadunam com o culto oferecido aos mortos da realeza não

podendo, por essa razão, ser utilizados a fim de justificar a deificação de um

governante minoico por estarem presentes em contextos funerários não pertencentes à

realeza. Esses elementos podem indicar a sacralidade dos componentes utilizados no

culto funerário ou serem referências às divindades relacionadas com os mortos no

intuito de atrair proteção.

De acordo com os pressupostos apresentados por Christiane Sourvinou-Inwood,

a deificação de um soberano minoico não poderia ser deduzida com base no sarcófago

de Hagia Triada. Sobre esse aspecto, a autora ainda faz a seguinte afirmação: “Mas

mesmo se nós supusermos para o bem do argumento que se acreditasse que um

governante minoico realmente se tornasse uma divindade depois da morte, não se

segue que a sua existência pode ser equiparada à de um habitante dos Elísios

homérico.”

A pesquisadora considera que a crença minoica de que os mortos da realeza

pudessem habitar com as divindades ou se tornassem seres divinos em um local para

o qual todos os mortos estavam destinados é somente uma hipótese, e a existência de

um lugar paradisíaco exclusivo para os soberanos minoicos, na opinião da estudiosa

(op. cit. p. 45), poderia ser uma opção, mas ela não seria congruente com a noção de

que os soberanos seriam deificados. A autora é perspicaz nessa última observação

porque não há sentido em conceber um lugar diverso para os soberanos minoicos

deificados porque, na condição de seres divinos, eles deveriam habitar com outros

deuses e não em um lugar à parte. 107

Confira SOURVINOU-INWOOD, (op. cit., p. 43).

156

Christiane Sourvinou-Inwood não nega a possibilidade de um destino final

privilegiado para os soberanos minoicos, ao contrário, a autora argumenta que há

evidências que permitem concluir que, na “escatologia minoica,” provavelmente os

soberanos tinham uma posição diferenciada e privilegiada após a morte. O que é

discutível, em sua opinião, é a afirmação de que esse lugar se situaria nos confins do

oceano apenas com base em réplicas de botes encontradas em alguns túmulos, pois

esses artefatos poderiam significar algo diferente da interpretação usual de que eles

representassem o veículo de condução do morto para o outro mundo.

Certamente, é atestada a existência de outras imagens que podem ser

relacionadas com a localização do mundo dos mortos em um lugar além do oceano,

como, por exemplo, o sarcófago de Larnax (Episkopoi) em que estão registradas

imagens funerárias entre as quais se destaca a de uma carruagem sobre um polvo.

Christiane Souvinou-Iwood, (op. cit., p. 47) interpreta essa imagem como a

representação de uma morte ritual, leitura diversa daquela proposta por Emily

Vermeule (apud. Christiane Souvinou-Iwood, op. cit., p. 47) para quem a imagem

representa uma grande procissão funerária que se dirige para um lugar como os

campos Elísios ou as Ilhas dos Bem-aventurados.

Observa Christiane Souvinou-Iwood que, mesmo supondo que essa cena

represente a partida do morto para uma terra além do oceano, não há nexo entre a

representação do sarcófago e a origem minoica da concepção de Elísios. Há algumas

contradições, observa a autora, nas evidências como, por exemplo, a viagem ser

empreendida em uma carruagem sobre o mar e não em um navio como seria de se

esperar e, ainda, o fato de esse outro artefato, assim como o sarcófago de Hagia

Triada, também não pertencer a um governante. Por esse motivo não se pode utilizar o

sarcófago de Larnax como prova de que havia um paraíso situado no além-mar para os

soberanos minoicos, como um dos fundamentos da teoria da origem minoica de

Elísios.

O fato é que para Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 49) as evidências não

permitem que se considere a concepção homérica de Elísios como a sobrevivência de

um aspecto da escatologia minoica na religião grega: “as evidências apontam

fortemente na direção de que os Elísios não são uma sobrevivência minoica, mas os

Elísios são um desenvolvimento recente do tempo em que os Poemas Homéricos

tiveram sua cristalização final.”.

157

A posição da autora, como se observou, é de completa rejeição à tese da origem

minoica da concepção dos Elísios para explicar o contraste entre as duas concepções

de destino final do homem, o Hades, lugar de sombras pálidas, e Elísios, lugar de

privilégios. Em sua opinião, ambas são partes da escatologia homérica implicando uma

coexistência que fizesse sentido para o poeta e sua audiência. Por esse motivo a

autora propõe que o foco da questão não deveria ser a origem do Elísios, mas como

essas duas concepções surgiram e de que modo elas faziam sentido no mesmo

sistema religioso.

Sobre a opinião de M. P. Nilsson de que a crença nos Elísios era estranha à

concepção grega normal108 de post-mortem, Christiane Sourivou-Inwood (1995, p. 38)

não aceita que seja verdadeira a proposição de que para os Gregos era normal a

crença em “almas sombras”, pois, mesmo em Odisseia XI, nem toda alma é uma

sombra. Além disso, havia, no período arcaico, concepções de um destino mais feliz,

oriundas, provavelmente, do ambiente das religiões de mistérios. Assim, a

incongruência entre as concepções distintas de Hades e Elísios está baseada, por

parte de M. P. Nilsson, em “julgamentos culturalmente determinados” e deve, na

opinião da pesquisadora, ser repensada.

O problema, para Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p. 38), deve ser pensado

de duas perspectivas: em primeiro lugar, no contraste entre a vida paradisíaca post-

mortem nos Elísios e a situação das ‘almas-sombras’ no Hades, conforme está descrito

em Odisseia XI; em segundo lugar, no conflito entre a concepção de um lugar para uns

poucos privilegiados que não morrem e o conceito de que todo homem dever morrer e

ir para o Hades.

Acrescenta ainda a estudiosa (op. cit., p. 38) que, depois de Homero, a

concepção de Elísios cresceu acentuadamente junto com a noção de que se podia

escapar da morte. Ao mesmo tempo, houve modificações na concepção de existência

no Hades a fim de que houvesse uma acomodação com a noção de uma vida mais

feliz gerada no contexto das religiões de mistérios, principalmente nos Mistérios de

Elêusis. Porém, o conflito entre a ideia de Elísios e o postulado de que todo homem

deve morrer entra em declínio formando uma pressão no sistema religioso no qual, em

um determinado momento, prevalece a segunda concepção. A autora, então, chega à

seguinte conclusão acerca desse fenômeno: “então, há muitas razões para pensar que

108

Confira a afirmação do autor na página 149 dessa tese.

158

a tendência do “tipo-Elísios” tenha sido gerada dentro do sistema.” Na opinião da

autora (op. cit. p. 55), mesmo que a ideia de um lugar destinado a apenas alguns

privilegiados vivos tenha vindo de outro sistema, houve uma adaptação ao sistema

religioso grego por um processo de “bricolagem” de modo que o conceito de Elísios

não poderia ser, essencialmente, o mesmo do sistema original.

A crença na concepção de um lugar destinado a apenas algumas pessoas, na

opinião de Christiane Sorvinou-Inwood (1995, p. 50), era pouco significativa na épica

homérica, mas adquiriu importância progressiva em resposta à pressão que promovia

mudanças no sistema escatológico tradicional em que se desenvolvia o culto dos

heróis a partir do século VIII a. C. Essa nova prática poderia explicar as mudanças no

sistema no qual havia uma interligação de cultos, isto é, o culto aos mortos e o culto

aos heróis. Assim, afirma a pesquisadora que esse é o nexo que permite inferir que a

concepção de Elísios era uma ideia recente, contemporânea à composição dos

Poemas Homéricos109.

Ao que parece, Christiane Sourvinou-Inwood está propondo que, nesse período,

começa a se estabelecer uma diferença entre o culto ao morto comum e o culto ao

herói morto, pois a este último seria atribuída uma condição especial e sua existência

no Hades, destino dos homens comuns, não corresponderia mais às práticas cultuais

que lhes eram prestadas. Sobre esse aspecto, convém observar que na Etiópida,

poema do ciclo épico, datado do século VII a. C.110, Aquiles, é levado por sua mãe para

uma terra distante semelhante aos Campos Elísios111. Essa noção poderia ter sido

gerada, segundo Christiane Sourvinou-Inwood, em um contexto no qual se cultuavam

109

Digno de nota é que, para Christiane Sourvinou-Inwood (op. cit. p. 52), a novidade da noção de um lugar destinado a alguns privilegiados vivos e a concepção de que todos devem morrer precisam ser refletidas, levando-se em conta a recepção por parte dos ouvintes, pois a “audiência épica” é, de certa forma, algo “mais acessível” aos estudiosos. Nota autora que a explicação dada pelo aedo sobre o motivo pelo qual Menelau terá o privilégio de ser levado para um lugar especial por ser ele genro de Zeus, faz sentido em um ambiente em que se considera que o conceito de abdução era novo e a audiência pouco familiarizada com ele. As seguintes palavras da autora são significativas: “it could also be argued that the generation of this belief that the death by lightning is more intelligible in a world in which the cremation is the normal - and therefore not a minoan , crete or Bronze age in general. For in such world lightning, which incinerated the victim, and was thought to affect directly communication with zeus, could be seen, with the help of the schema death - burial /cremation-hades as a supernatural sort of cremation in life that transferred the person to a paradise -while the ordinary cremation integrate the dead in to the hades. The dualism between a land of the blest and the a land of dead for the comum dead would , of course , be inherent in the interpretation of analysis as implying transference to a higher life instead of death, and thus ex hypothesis greek, in whatever period this concept is taken to have arisen. [...] i shall only say here that is extremely unlikely that the dualism common dead / hades v select few / paradise had existed in mycean times. 110

LESKY, A. 1995, 104. 111

Sobre o destino final de Aquiles em Etiópida, confira Edwards, Anthony T. 1985.

159

os heróis sendo incoerente conceber que o maior herói dos Aqueus tivesse o mesmo

fim que os demais mortais.

A pesquisadora (op. cit. p. 51) é de opinião que a existência de duas concepções

de “paraíso”, Campos Elísios e Ilha dos Bem-aventurados, pode ser bem explicada

como oriunda do século VIII. a. C., considerando-se seu desenvolvimento a partir dos

termos enelysioi (fulminados) e elysion (lugar de queda de um raio). Argumenta, ainda,

que em um ambiente onde a cremação era uma prática normal, seria mais inteligível

que se gerasse a crença de que a morte por fulminação afetaria o status da vítima

morta que teria sido cremada diretamente por Zeus e possibilitaria a criação de um

esquema religioso no qual a fulminação equivaleria a uma cremação sobrenatural que

transferiria a vítima para um paraíso. Tais noções, porém, foram posteriormente

ofuscadas: os fulminados (enelysioi) teriam sido obscurecidos pelo status dos heróis

cultuados, e os Elisíos (elysion) perderam importância para a Ilha dos bem-aventurados

local para o qual alguns heróis eram levados.

Essa interpretação de Christiane Sourvinou-Inwood ajusta-se aos conceitos

desenvolvidos por Walter Burkert no artigo Elysion112 no qual o estudioso esclarece a

etimologia de h0lu/sion, em sua opinião, um termo indubitavelmente pré-grego. Pondera

o autor (1961, p. 208) que era consenso entre linguistas e estudiosos da religião a

impossibilidade de explicação desse termo e que mesmo os antigos gramáticos não

lograram êxito quando tentaram relacionar h0lu/sion com e0leu/somai porque parecia não

haver relação semântica e formal entre ambas as palavras113.

112

A autora considera ser o estudo mais satisfatório e viável, pois até sua publicação em 1961 não havia propostas realmente válidas e, desde então, a tese proposta pelo autor não foi refutata. 113 Na opinião do autor, dificilmente pode haver dúvidas quanto ao significado, derivação e formação

dessa palavra: e0nhlu/siov é “algo” perigoso, o relâmpago, e0nhlu/sion é o lugar do impacto do raio e0iv a3 kerauno\v ei0sbe/bhken havendo uma série de deverbais precisos correspondentes à raiz de e0leu/somai, entre as quais a forma e0nhlu/sion (to\ e0nhlu/sion) “entrada, admissão”, pode ser depreendida. Há ainda outras

derivações como h9 e0phlusi/a, ei0shlu/sai (entrar), kathlusi/a (descer, ir para baixo), o9mhlusi/a (companhia), sunhlusi/a (encontro, reunião). A forma h0lusi/a seria uma derivação secundária. O

pesquisador nota que o termo e0phlusi/a tem um significado mágico especial nocivo para um homem

ou para uma terra estando relacionado, especialmente, com uma tempestade com relâmpagos e granizo. O alongamento do som inicial na formação da palavra é uma lei fonética para o autor que se opõe a Wackernagel (apud Burkert, op. cit. p. 210) para quem não se aplica uma conexão direta entre

e0leu/somai h0lu/sion nem entre e0leu/somai e0nhlu/sion. Walter Burkert afirma que, embora se possa

considerar estranha a mudança de som qu si, sem dúvida é possível uma derivação comum de

palavras da raiz e0lu/q- porque se registra no ático a sibilização do -qi em palavras como, por exemplo,

Probali/siov>probali/nqov, Trikoru/siov>trikoru/nqon e 0Amaru/siov> a0ma/runqov; o fenômeno é encontrado também em micênico nas formas: ko-ri-si-jo, ko-ri-si-ja que evoluem para Korinthos, za-ku-si-

jo para Zakynthos e epi-ko-ri-si-jo para ko/ruv –qov. Quanto as formações dos substantivos em –sia, o autor sugere que poderia se pensar no efeito da analogia. Pelos elementos elencados, o autor conclui que aqui vive uma tradição muito antiga, enraizada na camada micênica da língua que influencia na

160

Walter Burkert considerou que o termo e0lu/siov deriva de h0nelu/siov, “atingido por

um raio” cuja forma substantiva no neutro to\ e0nhlu/sion se refere ao lugar da queda do

raio. Considera o pesquisador (op. cit. p. 209) que, infelizmente, a forma adjetiva só é

encontrada em um fragmento corrompido de Ésquilo, em que aparece o sintagma

e0nhlu/sia a1qra significando aqueles que foram mortos por um “clarão/raio” no

Kapaneus, e o uso substantivo desse termo é atestado por Polemon de Ílon, em

Atenas. Fora essas referências, afirma Walter Burkert, o termo aparece apenas em

léxicos.

Walter Burkert (op. cit. p. 211) anota que o ponto onde cai o raio é, a partir desse

momento, sacralizado, inacessível aos homens (a1baton) e consagrado a Zeu\v

katabai/thv, o revelador do clarão. De modo semelhante, também um homem atingido

pelo raio é escolhido, tornando-se um tabu para a existência normal por ter sido

honrado dessa forma por Zeus (Zeu\v qhsauro/v) que atuaria como uma pira funerária.

Essa mudança no agente da incineração do cadáver, ou seja, a substituição do fogo,

utilizado nos ritos funerários, por Zeus, na forma de raio, enfatiza a situação especial

de e0nhlu/siov (fulminado) como uma expressão “mística”que significaria, na opinião do

autor, que aquele que fosse atingido pelo raio não estaria morto como os demais

mortos, uma força especial teria entrado nele exaltado-o a uma existência superior;

“e0nhlu/siov é estar no Elísios.”.

Os conceitos desenvolvidos por Walter Burkert, em Elysion, foram,

posteriormente, aplicados ao episódio do destino final de Menelau cuja abdução para

os Campos Elísios, na opinião do autor (1993, p. 386), se apresenta oposta à

concepção homérica tradicional, pois, nesse episódio, afirma-se que Menelau não

morrerá. O Atrida, portanto, teria o destino semelhante ao de um fulminado:

Entrar no Elísion significa evitar a morte. Esse é o destino exclusivo dos eleitos. <<Elísium>> tornou-se o nome misterioso e imperscrutável que designa o local ou a pessoa que foi atingida por um raio, enelysion, enelysios. Morte por fulminação é ao mesmo tempo destruição e eleição. Com ela se encontra entrosado o motivo mítico do transporte miraculoso para uma ilha pura e distante, motivo que parece ter origem na saga suméria do dilúvio (BURKERT, 1993, p. 386).

formação da palavra. Portanto, pode-se relacionar e0nhlu/siov –on com h0lu/sion não só pela harmonia fonética, mas por uma relação factual mais estreita embora à primeira vista isso possa parece absurdo.

161

A tese do autor, portanto, permanece inalterada nas duas obras referidas e sua

solução para explicar a origem etimológica de h0lu/siov e o conceito de Campos Elísios,

é satisfatória e viável sendo por esse motivo aceita entre os estudiosos, como

Christiane Sourvinou-Inwood e S. West.

Embora se reconheça nessa tese a importância da contribuição de Walter

Burkert sobre o tema, observa-se que, como a maioria dos autores, ele considera que

Menelau não conheceria a morte, pois “Entrar no Elísion significa evitar a morte.”. Os

versos em questão, no entanto, não evidenciam de modo explícito a imortalidade do

herói.

Na verdade, não há como propor uma solução ou uma interpretação definitiva da

passagem referente ao destino de Menelau, e as várias teorias propostas mostram a

complexidade do passo em questão. Na verdade, os versos esclarecem que o herói

não morrerá em Argos e será levado para um lugar afastado (e0v 0Hlu/sion pedi/on) onde

a vida é mais fácil para os homens. Qualquer afirmação a mais sobre o assunto é uma

hipótese que se soma a outra enriquecendo o debate e a reflexão.

162

4 A ESCATOLOGIA NA POESIA HESIÓDICA

4.1 Hesíodo e o destino final dos homens

Depois de ter examinado os fundamentos da escatologia nos Poemas

Homéricos e ponderado sobre os principais problemas inerentes ao tema, será objeto

de atenção a poesia hesiódica que, junto com a épica homérica, pode ser considerada

uma das mais importantes fontes literárias para o conhecimento da religião grega do

período arcaico, pois nela se registram concepções que se perpetuaram na tradição

religiosa grega, em alguns casos, com poucas modificações114. Antes, porém, de

abordar os poemas, convém tecer alguns comentários sobre esse poeta que inaugura

uma modalidade poética diferente da poesia homérica.

Com Hesíodo, pela primeira vez no Ocidente, revela-se o autor de uma obra

literária que introduz elementos biográficos,115 como seu nome, seu local de

nascimento e morada, e o nome de seu irmão Perses que o lesara em uma disputa

pela herança paterna. Além desse dado novo, que por si já poderia caracterizar a obra

hesiódica como diferente da épica grega tradicional, a despeito das semelhanças

formais, os temas tratados se distanciam muito da tradição épica que tinha como tema

os feitos valorosos dos heróis (kle/a a0ndrw=n), já que, em Teogonia, por meio de

narrativas de mitos cosmogônicos e de sucessão divina, se narra de que modo a

ordem e a justiça se estabeleceram no mundo116 sob a regência de Zeus, e em

Trabalhos e Dias, particularmente, valoriza-se a temática do esforço humano motivado

pela prática da justiça.

4.2 Hesíodo e o Oriente Próximo

114

Heródoto ( II, 53) faz a seguinte afirmação que ratifica a importância de Homero e de Hesíodo para a formação da religião grega: “Durante muito tempo, ignorou-se a origem de cada deus, sua forma e natureza, e se todos sempre existiram. Homero e Hesíodo, que viveram quatrocentos anos antes de mim, foram os primeiros a descrever em versos a Teogonia, a aludir aos sobrenomes dos deuses, seu culto e funções e a traçar-lhes o retrato.” 115

Não se trata aqui de aceitar como absoluta verdade as referências biográficas presentes nos poemas sobre a figura de Hesíodo. Observa Jose Alsina (1991, p. 28) que um dos métodos de investigação aplicado ao estudo da literatura grega consiste no biografismo que é uma forma de considerar a obra como fonte de dados biográficos do autor e, em consequência, interpretá-la como oriunda de uma experiência pessoal. 116

Confira o proêmio de Teogonia (1-115) em que se estabelecem os principais temas cantados sob a inspiração das Musas.

163

Como se comentou anteriormente, segundo Erwin Rohde117, desde o início do

século passado, crescia nos estudos clássicos uma tendência em considerar algumas

influências estrangeiras na formação da cultura helênica, tese da qual compartilha

Scott B. Noegel (2007, p. 21), no tocante à religião. De acordo com esse estudioso, há

muitos anos, a influência oriental exercida sobre a religião grega tem sido tema de

debates entre especialistas do assunto. Assinala, ainda, que as abordagens são

diversas: enquanto há pesquisadores que veem os suspostos indícios orientais como

desenvolvimentos independentes, outros sugerem que as similaridades existentes

entre aspectos gregos e orientais nos âmbitos da arte, da literatura e da arqueologia

são indícios de elementos que influenciaram a formação da religião grega.

Scott B. Noegel adota, como se pode perceber na citação seguinte, uma posição

mais cautelosa quanto às influências orientais na formação de alguns conceitos

religiosos gregos:

Em suas formas externas, pelo menos, as religiões do mar Egeu se apresentam muito semelhantes às do Oriente Próximo. Em ambas, por exemplo, encontram-se imagens de culto, altares e sacrifícios, libações e outras práticas rituais, santuários, templos e funcionários do templo, leis e ética, oração, hinos, encantamentos, maldições, dança cultual, festivais, adivinhação, êxtase, videntes e oráculos. Outras características comuns incluem a existência de divindades e demônios de ambos os sexos, uma associação de deuses com regiões cósmicas, noções de sagrado, e os conceitos de polução, purificação e expiação. No entanto, uma vez que se podem encontrar estas características em tradições religiosas que não tiveram contato com o mar Egeu ou com o Oriente Próximo, é possível que elas representem desenvolvimentos independentes. Por outro lado, a sua presença num outro lugar não necessariamente exclui a possibilidade de que eles sejam o resultado da influência cultural. Como alguns clássicos têm apontado, a influência do Oriente Médio é a explicação mais provável para alguns

elementos certos rituais de purificação, o uso de sacrifício de bodes

expiatórios e depósitos de fundação para citar apenas alguns. Mas como e quando é que esses elementos fizeram o seu caminho para o mundo grego? Tais questões não são facilmente respondidas (NOEGEL, 2007, p. 21. Tradução nossa.).

Há de se notar que o mesmo posicionamento foi assumido por Erwin Rohde ao

afirmar que muitas concepções gregas acerca do post-mortem eram comuns a outros

povos que não tiveram contato, isto é, poderiam elas ter se desenvolvido em tradições

culturais independentes. Do mesmo modo que Scott B. Noegel, o pesquisador

acrescentou que considerar qualquer semelhança entre aspectos culturais gregos e

orientais como mera influência somente acrescentaria, em alguns casos, mais

problemas que soluções. Por essa razão, ser prudente na aceitação da influência

117

Confira a página 147 dessa tese.

164

oriental, conforme propõem os mencionados autores, é pertinente, pois algumas

semelhanças podem ser apenas coincidências.

O tema é polêmico118, porém não se pode negar que houve no mundo antigo um

grande intercurso cultural entre povos que constantemente realizavam viagens de

natureza comercial ou migravam a fim de escapar de condições adversas que

colocavam em risco a sobrevivência de muitos. O poeta Hesíodo coloca-se nessa

condição ao mencionar que, junto com sua família, depois de fugir de situação penosa

em sua cidade natal, Cime, se estabelece na região da Beócia, em Ascra, cidade

desagradável em sua opinião:

w3v per e0mo/v te path\r kai\ so\v, me/ga nh/pie Pe/rsh,

plwi/zesk’ e0n nhusi/, bi/ou kexrhme/nov e0sqlou=:

o3v pote kai\ tei=d’ h]lqe polu\n dia\ po/nton a0nu/ssav, 635

Ku/mhn Ai0oli/da prolipw\n e0n nhi\ melai/nh|,

ou0k a1fenov feu/gwn ou0de\ plouto/n te kai\ o1lbon,

a0lla\ kakh\n peni/nh, th\n Zeu\v a1dressi di/dwsi.

na/ssato d’ a1gx’ 0Elikw=nov o0izurh|= e0ni\ kw/mh|,

1Askreh|, xei=ma kakh=|, qe/rei a0rgale/h|, ou0de/ pot’ e0sqlh|=. 640

Assim, certamente o meu e o teu pai, ó grande néscio Perses,

navegava em navios, necessitado de uma vida nobre;

118 Today, it is fair to say that a consensus view among classicists and Near Eastern scholars admits of some East-to-West influence. Yet vital questions remain. How much and what kind of influence are we speaking of? How early does this influence occur? And how does one differentiate evidence for mere contact from evidence for influence? Responses to these questions have been hotly debated, and typically they have fallen along disciplinary lines, with classicists seeing Near Eastern influence as largely intermittent until the late archaic and classical periods (Burkert 1992, 2004, 2005a; Scheid 2004) and Near Eastern scholars (and a few classicists: Morris 1992,2001; Walcot 1966; West 1995, 1997) pushing for greater influence and earlier dates(Burstein 1996; Dalley and Reyes 1998a; Naveh 1973; Redford 1992; Talon 2001). Influence in both directions is generally accepted for the hellenistic period and later (Kuhrt 1995; Linssen 2004). (Hoje, é justo dizer que há um consenso entre helenistas e estudiosos do Oriente Médio que admitem alguma influência de leste a oeste. No entanto, questões vitais permanecem. De quanta e de que tipo de influência que estamos falando? Quão cedo é que essa influência ocorre? E como é que se diferenciam evidências de simples contato e evidências de influência? As respostas a estas perguntas têm sido muito debatidas e, normalmente, elas caíram ao longo de linhas disciplinares, com helenistas vendo a influência oriental, como em grande parte intermitente até os períodos arcaico e clássico tardio (Burkert 1992, 2004,2005a; Scheid, 2004) e estudiosos do Oriente Próximo (e alguns clássicos: Morris 1992,2001; Walcot 1966; Oeste 1995, 1997) pressionando por uma maior influência e datas anteriores (Burstein, 1996; Dalley e Reyes 1998a; Naveh 1973; Redford 1992; Talon 2001). Influências em ambas as direções é geralmente aceita para o período helenístico e posterior (Kuhrt 1995; Linssen 2004).

165

um dia também ele chegou aqui cruzando o vasto mar, 635

depois de deixar Cime da Eólida em um navio escuro,

fugindo não da abundância, da riqueza ou da felicidade,

mas da perversa pobreza, que Zeus dá para os homens.

Habitou perto do Hélicon em uma miserável aldeia,

Ascra, no inverno ruim, no verão terrível, nunca agradável.

Trabalhos e Dias, 633-40

Vale lembrar que a cidade de origem de Hesíodo, Cime119, está situada na

Argólida, região da Ásia Menor que, na opinião de Martin West (1966, p. 31) parece

não pertencer à Europa: “a Grécia é parte da Ásia; a literatura grega é literatura do

Oriente Médio.”. Essa assertiva tão contundente ilustra a importância que alguns

pesquisadores deram à questão da influência de elementos da cultura do Oriente

Médio na formação de concepções que, até a primeira metade do século passado,

eram consideradas genuinamente gregas.

Martin West (1997, p. vii), à guisa de introdução a esse tema, propõe uma

metáfora bastante interessante ao comentar a disseminação cultural entre regiões

diversas: compara a expansão cultura à expansão gasosa que, a partir de um ponto

mais concentrado, se espalha menos densamente para áreas mais distantes. De modo

semelhante, na opinião do autor (West, op. cit., p. 1), um intercurso cultural, no que diz

respeito à arte e aos métodos de sua realização, se processou por milhares de anos,

do sétimo ao primeiro milênio, e teve curso do sudoeste da Ásia, região considerada

pelo autor como lugar de nascimento de uma revolução neolítica, até a parte sul

ocidental da Europa, chegando à “retorcida” região europeia denominada comumente

de Grécia.120

119

Aurelio Pérez Jimenez e Alfonso Martínez Díez (1978, p. 7) observam que a causa da migração mencionada no poema é um tanto estranha, pois a informação apresenta um problema quando se coloca a pergunta: por que depois de fugir da arruinada Cime, o pai de Hesíodo se estabeleceu em Ascra e como pôde fazer fortuna nessa cidade pobre e de recursos parcos? Os pesquisadores notam que, já na Antiguidade, o historiador Éforo considerou a informação sem sentido. O questionamento suscitou a tese de que o motivo da viagem teria sido um desterro motivado por um assassinato. 120

O autor considera (op. cit. p. 2) que as vias de contato entre a Grécia e o Oriente Médio podem ser traçadas em rotas definidas em termos geográficos e fatores práticos relativos a um tráfego marítimo condicionado pela necessidade de navegar tendo como referência a terra que não podia ser perdida de vista. Assim, acrescenta Martin West que se podem observar rotas do Oriente para o Ocidente a partir da Babilônia subindo na direção do rio Eufrates para Emar, no norte da Síria, com uma rota alternativa por Damasco a caminho do oásis de Palmira. Havia outros caminhos por cidades da Palestina e pelo delta do Nilo. Martin West ainda considera que havia caravanas egípcias que cruzavam rotas pelo Sinai,

166

Além das artes, acentua Martin West que o cultivo de cereais, a fabricação de

cerâmica e de tecido, primeiramente à mão e depois com o auxílio da roda e do tear, e

o desenvolvimento das técnicas de metalurgia, que trabalhavam o cobre, o bronze e o

ferro, a escrita e a música, entre outros dados, são exemplos de elementos que se

expandiram através dos tempos por regiões diversas. Porém, a investigação do

estudioso acerca da cultura oriental, principalmente a semítica e a anatólia, na

formação da literatura e dos mitos gregos, restringe-se ao período comprrendido entre

750-450 a. C.

Observa-se que Martin West, em detrimento da usual expressão “cultura do

Oriente Médio”121, denomina a relação intercultural entre o Oriente e a Grécia “West

Asiatic”, expressão que compõe o título de sua referida obra sobre assunto. O

pesquisador (1995, p. VII) justifica a denominação por ele adotada alegando que suas

pesquisas partiram de materiais provenientes da Babilônia, Anatólia e Síria, e de

algumas fontes bíblicas.

A obra de Hesíodo destaca-se como uma das principais fontes de informações

para aqueles que se dedicam à pesquisa das semelhanças entre a literatura grega e a

oriental. Aliás, Martin West assevera (op. cit. p. 276) que qualquer pesquisador que se

proponha estudar a poesia hesiódica seriamente deve levar em conta essa relação

intercultural, principalmente no que diz respeito às genealogias e às cosmogonias:

As obras análogas mais próximas do poema de Hesíodo podem ser encontradas no Oriente Próximo. Muitos povos têm cosmogonias ou genealogias divinas na poesia ou na literatura em prosa. Mas o tema de que o presente soberano dos deuses chegou ao poder ao derrotar ou desabilitar um deus mais antigo e que este não foi o primeiro evento crítico, parece ser especificamente do Oriente Próximo. A integração de Hesíodo com uma história dinástica desse tipo com uma genealogia divina, começando com a forma do início das coisas e terminando com o rei dos deuses estabelecido em glória, tem paralelo no Enuma Elish, um poema de força semelhante a de

mas a via de comunicação mais fácil entre o Egito e a Ásia Ocidental era o mar por onde se podia chegar até as ilhas do Egeu. Assim, possivelmente, o Egito já estivesse em contato com Creta no terceiro milênio. As relações entre a parte oriental, denominada Crescente Fértil, e a Grécia, na opinião do autor, foram mais intensas entre 1440 e 1340. a. C. Nota o pesquisador que, no Crescente Fértil, subindo de Tiro para Ugarit, se encontravam as terras de povos navegadores que podiam subir e descer a costa antes de 6000 a. C. Assim, podia-se navegar do sul do Egito para o Leste ou do Leste para Chipre ou Rodes e das Cicládicas para Eubeia e Ática, para o norte do Egeu ou para outras regiões, como o leste do Peloponeso, o Mar Jônio e a Itália. Quanto aos caminhos da Grécia para o Oriente, o autor os sintetiza nas seguintes palavras: “The Greek’s normal route to East was the same in reverse.”. 121

Vários autores, como, por exemplo, Emily Vermeule (1979), T. B. L. Webster (1958), Martin Bernal (2006), entre outros, argumentam a favor da influência da cultura do Oriente Médio na cultura grega usando a expressão Middle East. Destaca-se aqui o livro de Walter BURKERT, The Orientalizing Revolution: Near Eastern inluence on Greek Culture in the Early Archaic Age. Harvard University Press, 1993, em razão da importância do autor e da influência de suas ideias no âmbito dos estudos sobre a religião grega.

167

Teogonia. Este mito de sucessão também mostra significantes pontos de

contato com a canção Hurro-hitita de Kumarbi (WEST, op.cit. p. 276.

Tradução nossa).

Depois de assinalar as obras consideradas por ele análogas aos poemas

hesiódicos, a fim de demonstrar a relação intercultural, Martin West analisa os

mencionados mitos orientais ressaltando, inicialmente, suas semelhanças com

aqueles expressos em Teogonia.

Na opinião de Martin West (op. cit. p. 279), semelhanças entre a Canção de

Kumarbi e a Teogonia são evidentes: a primeira semelhança é a sucessão dinástica

por meio da violência. Do mesmo modo que no mito da sucessão divina, Urano,

Cronos, Zeus narrado em Teogonia, nesse mito oriental, o soberano Alalu é deposto,

depois de uma guerra empreendida pelo deus copeiro Anu que se instala no trono.

Porém, este é vencido posteriormente por Kumarbi, um dos filhos do antigo soberano

que, por sua vez, é destronado por uma nova divindade que se instaura no poder como

rei dos deuses, Teššub, o deus da tempestade.

Entre outros comentários do estudioso, vale destacar o significado do nome do

deus Anu, Céu, denominação da divindade hesiódica que122, unindo-se à deusa Gaia,

dá forma ao universo. Além disso, no mito Hurro-hitita, Anu, em um episódio

semelhante àquele narrado em Teogonia, também é castrado por seu sucessor

Kumarbi que tem como aliado um grupo de deuses que o apoiam na batalha pelo poder

em claro paralelo com o passo referente ao deus Cronos em Teogonia.

Duas outras características mencionadas por Martin West são bastante

sugestivas quanto às semelhanças entre a narrativa oriental e a hesiódica: a primeira,

diz respeito às hostilidades entre Teššub e seus antigos aliados, mesmo depois da

instalação no poder, situação análoga à de Zeus com os Titãs; a segunda é referente

ao passo do mito de Kumarbi, segundo o qual a Terra gera duas crianças no

subterrâneo Apsu que, na opinião do autor, é uma referência a uma futura ameaça a

Teššub. Martin West assinala o paralelo entre esse episódio da canção oriental e a

geração de Tifão, em Teogonia, que ameaçou o poder de Zeus recém-instalado no

poder.

Quanto ao poema babilônico Enuma Elish, Martin West (op. cit., p. 282) não o

considera uma teogonia porque seu tema é a ancestralidade do deus Marduk, sua

122

Confira Teogonia 123-202.

168

trajetória de ascensão ao poder e a organização do cosmos. Diferente do poema

hesiódico, ele não tem como tema a geração dos deuses. Porém, ainda assim, há

partes que podem ser elencadas como paralelas à Teogonia de Hesíodo, como, por

exemplo, a indicação de um casal originário no início da narrativa, Apsu e Tiamat, a

geração de filhos que são odiados pelo progenitor que deseja eliminá-los, apesar da

oposição da mãe, a deposição do pai opressor por um dos filhos. Também há no

poema babilônico referência a uma divindade que assume o poder depois de uma

batalha, Marduk, filho de Ea, porém, diferente da narrativa hesiódica, a batalha pelo

poder não acontece entre pai e filho. Marduk luta contra outro oponente e o vence

usando como armas ventos e raios.

Por outro lado, Martin West (op. cit. 306) considera o poema Trabalhos e Dias

uma obra de cunho exortativo e didático123 com fins de instrução moral e prática e

lembra que muitos povos possuem uma literatura sapiencial de alguma natureza. Além

disso, o estudioso acrescenta que a referida obra hesiódica apresenta uma clara

afinidade com a literatura do Oriente Médio, particularmente com as tradições

babilônicas e hebraicas que se estabeleceram ao longo dos séculos com duas

características distintivas: a presença de conselhos ou instruções endereçadas a

familiares próximos e instrução aos soberanos. Em Trabalhos e Dias, lembra o

estudioso, o poeta harmoniza essas duas particularidades da literatura oriental já que

Hesíodo dirige seus versos a seu irmão e aos reis exortando-os à prática da justiça.

123 Não há unanimidade entre os estudiosos quanto à classificação da poesia hesiódica como pertencente ao gênero didático. A esse respeito vale mencionar a opinião de Malcon Health (1985, p.

11): “Let us consider first the formal sense. In this sense, ‘didactic poetry’ is a covering term for those poetic genres (for example, the philosophical works of Empedocles or Lucretius, the paraenetic elegy of Theognis) which explicitly or implicitly claim to embody information or advice with a view to the instruction or edification of the audience of address. There is no such explicit claim in Theogony; the audience of that poem is never explicitly referred to at all. Works and Days does explicitly adopt an instructive stance towards Perses and the kings; but this does not answer to our present question, since it is clear that Perses and the kings are a literary device, characters within a poem that is really addressed to an unmentioned external audience (this, whether or not the figure of Perses is wholly or partly fictive). In both cases, then, the claim to be formally didactic would have to be implicit. But that presents us with a difficulty. What can be meant or conveyed by implication depends on shared presuppositions of the author and his audience; without access to that original Erwartungshorizont, any assessment of the implied content of a text must be highly speculative; and since Hesiod’s poetry is for us isolated at the beginning of the extant Greek poetic tradition, where very little contextual evidence survives, our ability to reconstruct the appropriate horizon of expectation must be in doubt. If in these circumstances we were to risk the conjecture that Hesiod’s poems were formally didactic (that is, that their audience of address would have understood them as claiming implicitly to be intended to instruct), we are likely to have been influenced unduly by later developments in the tradition. For it is true that in form and content the two poems do resemble later works that unquestionably were didactic (at least in the formal sense); and those later poets did look back to Hesiod’s works as paradigms of the genre.”.

169

Particularmente, sobre a exortação aos reis, Martin West (op. cit. p. 307)

pondera que há na literatura oriental uma preocupação com a prática da justiça e a ira

dos deuses advinda da negligência a essa prática. Nesse sentido, Hesíodo, na opinião

do autor, imprime em sua obra um tom profético ao dirigir-se aos reis porque se coloca

na condição de alguém que, por prerrogativa divina, conhece o desejo da divindade.

Lembra o pesquisador que há referência a profetas hebraicos em uma época quase

contemporânea à do poeta beócio, e a figura de Amós, pastor que recebeu o dom de

anunciar aos reis os desejos da divindade, é evocada como história paralela à vocação

poética de Hesíodo.

A existência do tom profético em Trabalhos e Dias, característico da literatura

hebraica, pode ser verificada, na opinião de Martin West, na narrativa do mito das

Cinco Raças, nos versos referentes ao destino dos homens da Raça de Ferro, passo

em que o uso do simbolismo dos metais nesse mito seria outra prova de sua origem

oriental posto que a metalurgia era uma tecnologia mais desenvolvida entre os povos

do Oriente.

Algumas das características da literatura oriental em Trabalhos e Dias,

mencionadas por Martin West, já tinham sido observadas por Aurélio Pérez Jiménez e

Alfonso Martinez Díez em uma obra sobre os possíveis conflitos entre Homero e

Hesíodo, entre os quais se destacam124 (1978, p. 36 ) o mito das Raças, o de Pandora,

o de Prometeu; a fábula do falcão e do rouxinol, o calendário do trabalhador etc.”.

Aurélio Pérez Jiménez e Alfonso Martinez Díez são ousados em determinar as

fontes egípcias que influenciaram Trabalhos e Dias ao afirmarem que a literatura

sapiencial grega tem antecedentes no Egito, em obras específicas:

O mais antigo exemplo conhecido é A instrução de Ptah-hotep, o conselho de um pai para seus filhos, em que se expressa a utilidade de ouvir os outros, a justiça, a generosidade e a falta de ambição, e adverte que somente a justiça é segura . Mas as obras mais semelhantes a Trabalhos e Dias são a Instrução de Amen-em-Opet a Onchsheshonqy, embora este último seja posterior à época

124

Sobre a procedência da influência oriental na obra hesíódica notam os pesquisadores (op. cit., p. 39): Estas influências orientales, mas probables en la Teogonia que en los Trabajos, plantean el problema de su penetracion en Beocia. ≪O bien los fenicios han sido los transmisores, o bien los griegos, ya que en el âmbito del Asia menor, en Mileto o Rodas, donde se encontraban establecidos desde la epoca micenica, llegaron a conocer la historia de la sucesion de los dioses e historias afines. Debemos precavernos frente a toda simplificacion artificial de estos problemas, y hay que tomar en consideracion que para Hesiodo debemos contar asimismo con una tradicion antigua, que se remontaba hasta la epoca prehelenica, y para cuya conservacion precisamente Beocia era un suelo propicio. Debemos considerar que en la Teogonia actuaba una tradicion multiple, atestiguada de manera convincente por el caracter polifacetico de la obra. Tampoco debemos olvidar que el padre de Hesíodo era natural del Asia Menor.

170

de Hesíodo (PÉREZ JIMÉNEZ e MARTINEZ DÍEZ, 1978, p. 37. Tradução nossa).

Há outros autores que adotam esse modelo de análise comparativa em seus

estudos, como, por exemplo, Ian Rutherford (2009, p. 9) ao afirmar que, entre as obras

gregas antigas, os poemas de Hesíodo são aquelas que apresentam paralelos mais

relevantes com a literatura asiática ocidental, com a egípcia e com a de povos situados

mais ao Leste, no Irã e na Índia. O pesquisador ainda adota uma posição análoga

àquela de Scoth B. Noegel no que se refere à dificuldade em determinar as bases

sobre as quais os possíveis empréstimos se processaram e quais são suas origens.

Os paralelos entre a literatura hesiódica e a do Oriente Médio podem ser

encontrados conforme o autor em “áreas-chave” como, por exemplo, naquela

denominada por Ian Rutherford (op. cit., p. 10) “Ciclo da Realeza Celeste” (Kingship of

Heaven Cycle) no qual está o mais proeminente paralelo com Teogonia e com a

Canção de Kumarbi, que é um mito de sucessão divina conforme se mencionou

anteriormente nessa tese.

Merecem destaque os comentários de Ian Rutherford (2009, p. 14) sobre as

semelhanças entre Trabalhos e Dias e a literatura oriental porque ele faz relações que

os autores citados anteriormente, por algum motivo, não o fizeram, apresentando

paralelos entre esse poema hesiódico e alguns textos egípcios.

O pesquisador considera que a história divina e a humana são vistas pelas

sociedades do Oriente Médio como um contínuo, de modo que fases de uma e de outra

se colocam em paralelo. Na poesia hesiódica, a história da humanidade é menos

desenvolvida que a divina, sendo a primeira narrada no mito das Quatro Idades em

Trabalhos e Dias “em que a miserável quinta geração”, a de ferro, está em contraste

com uma era utópica e outra distópica. O mito das raças está, na opinião do autor,

estruturado na sequência que parte do bem para o mal, e novamente do mal para o

bem. Desse modo, às Idades de Ouro e Prata, segue a Idade de Bronze. A Raça dos

Heróis seria uma volta ao bem. A essa Raça segue a Idade de Ferro, evocando

novamente a ideia de mal.

Ao contrário de Martin West, que considera o mito das Raças originário do

Oriente, Ian Rutherford (op. cit., p. 14) assevera que na literatura oriental não se pode

encontrar uma afirmação explícita de um mito de quatro raças e, embora haja paralelos

em antigas tradições iranianas e na mitologia indiana, não há como determinar que

171

essas sejam mais antigas que a obra hesiódica. Entre os paralelos existentes, o autor,

citando Ludwing Koene (apud Ian Rutherford p. 15), considera os seguintes: a ideia de

que essa era é ruim e a futura poderia ser pior é atestada em uma obra egípcia que

remonta ao segundo milênio a. C., cujo título é “Profecia de Nefertiti”; a ideia de

homens e deuses vivendo juntos em harmonia em uma era a qual segue outra de crise

provocada pela separação, conforme o “Mito do Boi Celestial”; a ideia de degradação

da relação entre deuses e homens depois do fim de uma era, em Épica de Atrahasis.

Essa postura na análise das influências orientais na literatura grega se aproxima

da proposta de Aurélio Pérez Jiménez e Alfonso Martinez Díez e diverge daquela

adotada por Martin L. West que, prudentemente, apontou características gerais comuns

na literatura oriental das quais algumas podem claramente ser percebidas na literatura

grega como indícios de influência oriental e deixou fora de sua reflexão textos da

literatura egípcia.

Os comentários de Martin West, Aurélio Pérez Jiménez e Alfonso Martinez Díez

e de Ian Rutherford ilustram de modo claro que não há como negligenciar a relação

entre alguns aspectos da literatura oriental e obra hesiódica, embora tenha de haver

prudência ao se especificar a origem de alguma concepção para evitar excesso.

Ainda que muitas sejam as coincidências temáticas encontradas nos mitos

gregos e orientais, determinar de modo seguro a origem de alguns conceitos presentes

na literatura grega, como o de escatologia, constitui tarefa complexa. Note-se que em

Trabalhos e Dias esse tema é tratado pelo mito das Cinco Raças, no qual se enfatiza a

necesssária prática da justiça entre os homens. São elas apresentadas em uma ordem

decrescente conforme o valor dos metais (ouro, prata, bronze e ferro), excetuando-se a

denominada Raça dos Heróis intercalada entre a Raça de Bronze e a de Ferro. Esse

mito retrata a decadência da humanidade e, em consequência, o destino post-mortem

dos integrantes de cada uma delas.

4.2.1O Destino dos homens no Mito das Cinco Raças

A investigação acerca do conceito de escatologia na poesia hesiódica pode ser

discutida seguindo os mesmos critérios utilizado no estudo desse tema nos Poemas

Homéricos: o primeiro, partindo do conceito de efemeridade humana, compreender

como o poeta beócio apresenta o destino do homem após a morte. Observa-se que a

ideia de efemeridade é evidenciada nos poemas pelos epítetos normalmente utilizados

172

para caracterizar os seres humanos: broto/v, (mortais), qnhtoi\ a1nqrwpoi (homens

mortais), mero/pwn a0nqrw/pwn (mortais) e a0lfhsth/v (comedor de pão), este último, ao

que parece, utilizado em referência ao homem que, após uma vida exaustiva de

trabalho para conseguir seu sustento, encontra seu fim125 em oposição à condição

perene e imortal dos deuses. O segundo critério consiste em considerar o destino de

uns poucos que, por merecimento ou por outro motivo qualquer, são alçados à esfera

do sobrenatural, adquirindo uma condição próxima à das divindades, podendo até

mesmo habitar um local de privilégios como a Ilha dos Bem-aventurados.

A primeira perspectiva é, pois, o núcleo da reflexão a ser realizada, tendo em

vista que a finitude do homem conduz a concepções sobre o que poderia sobrevir após

a morte. A segunda considera a abdução de alguns poucos privilegiados como um

desenvolvimento de concepções que se processavam no período arcaico sobre um

destino mais feliz depois da vida terrena.

Se, por um lado, é pertinente que se comece a tratar da escatologia hesiódica

observando como ela tem sido abordada nos estudos clássicos, por outro, é justo que

se inicie analisando as principais proposições de Erwin Rohde sobre o tema porque ele

é um pioneiro na pesquisa. Mas, antes de se passar às principais proposições do autor,

faz-se necessária a leitura da narrativa do mito:

Ei0 d’ e0qe/leiv, e3tero/n toi e0gw\ lógon e0kkorufw/sw

eu] kai\ e0pistame/nwv: su\ d’ e0ni\ fresi\ ba/lleo sh|=si

[w9v o9mo/qen gega/asi qeoi\ qnhtoi/ t’ a1nqrwpoi].

Xru/seon me\n prw/tista ge/nov mero/pwn a0nqrw/pwn

a0qa/natoi poi/hsan 0Olu/mpia dw/mat’ e1xontev. 110

oi3 me\n e0pi\ Kro/nou h]san, o3t’ ou0ranw|= e0mbasi/leuen:

w3ste qeoi\ d’ e1zwon a0khde/a qumo\n e1xontev

no/sfin a1ter te po/nou kai\ ai0zu/ov, ou0de/ ti deilo\n

gh=rav e0ph=n, aei0ei\ de\ po/dav kai\ xei=rav o9moi=oi

te/pont’ e0n qali/h|si, kakw=n e1ktosqen a9pa/ntwn: 115

qnh|=skon d’ w3sq’ u3pnnw| dedmhme/noi: e0sqla\ de\ pa/nta 125

Os primeiros epítetos são utilizados ao longo dos dois poemas. Confira, por exemplo, Teogonia, 218,

223 e 369, e Trabalhos e Dias 3, 24, 109 e 143. O epíteto a0lfhsth/v é um hápax sendo encontrado em Teogonia, 511 e Trabalhos e Dias, 82. Esse epíteto é forma atestada em Odisseia I, 349, no passo em que Telêmaco repreendera sua mãe por censurar o aedo Fêmio; VI, 8, em referência ao afastamento dos Feáceos em relação aos demais homens; e XIII, 261, passo em que Odisseu tenta enganar a deusa Atená ao afirmar que fugira de Creta, terra de homens que se alimentam de pão.

173

toi=si e1hn: karpo\ d’ e1fere zei/dwrov a1roura

au0toma/th pollo/n te kai\ a1fqonon: oi4 d’ e0qelhmoi\

h3suxoi e1rg’ e0ne/monto su\n e0sqloi=sin pole/essin. 119

au0ta\r e0pei\ dh\ tou=to ge/nov kata\ gai=a ka/luye, 121

toi\ me\n dai/mone/v ei0si Dio\v mega/lou dia\ boula\v

e0sqloi/, e0pixqo/nioi, fu/lakev qnhtw=n a0nqrw/pwn,

[oi4 r9a fula/kousin te di/kav kai\ sxe/tlia e1rga

h0e/ra e9ssamenoi pa/nth foitw=ntev e0p’ ai]an,] 125

ploutodo/tai: kai\ tou=to ge/rav basilh/íon e1sxon.

Deu/teron au]te ge/nov polu\ xeiro/teron meto/pisqen

a0rgu/reion poi/hsan 0Olu/mpia dw/mat’ e1xontev,

xruse/w| ou1te fuh/n e0nali/gkion ou1te no/hma:

a0ll’ e9kato\n me\n pai=v e1tea para\ mhte/ri kednh|= 130

e0tre/fet’ a0ta/llwn, me/ga nh/piov, w|[ e0ni\ oi1kw|:

a0ll’ o3t’ a1r’ h0bh/sai te kai\ h3bhv me/tron i3koito,

pauri/ Dion zw/eskon e0pi\ xro/non, a1lge’ e1xontev

a0fradi/h|v: u3brin ga\r a0ta/sqalon ou0k e0du/nanto

a0llh/lwn a0pe/xein, ou0d’ a0qana/touv qerapeu/ein 135

h1qelon ou0d’ e1rdein maka/rwn i9eroi=v epi\ bwmoi=v,

h[| qe/miv a1nqrwpoiv kata\ h1qea. tou\v me\n e1peita

Zeu\v Kroni/dhv e1kruye xolou/menov, ou3kena tima\v

ou0k e1didon maka/ressi qeoi=v oi4 1Olumpon e1xousin.

au0t\r e0pi\ kai\ tou=to ge/nov kata\ gai=a ka/luye, 140

toi\ me\n u9poxqo/nioi ma/karev qnhtoi\ kale/ontai,

deu/teroi, a0ll’ e1mphv timh\ kai\ toi=sin o0phdei=.

Zeu\v de\ path\r tri/ton a1llo ge/nov mero/pwn a0nqrw/pwn

xa/lkeion poi/hv’, ou0k a0rgure/w| ou0de\n o9moi=on,

e0k melia=n, deino/n te kai\ o1brimon: oi[sin 1Arhov 145

e1rg’ e1mele stono/enta kai\ u3bri/ev , ou0de/ ti si=ton

h1sqion, a0ll’ a0da/mantov e1xon kratero/frona qumo/n.

[a1plastoi: mega/lh de\ bi/h kai\ xei=ver a1aptoi

e0c w1mwn e0pe/fukon e0pi\ stibaroi=si me/lessi.]

tw=n d’ h]n xa/lkea me\n teu/xea, xa/lkeoi de/ te oi]koi, 150

174

xalkw|= d’ ei0ga/rzonto: me/lav d’ ou0k e1ske si/dhrov.

kai\ toi\ me\n xei/ressi u9po\ sfete/rh|si dame/ntev

bh=san e0v eu0rw/enta do/mon kruerou= 0Ai/dao,

nw/numnoi: qa/natov de\ kai\ e0kpa/glouv per e0o/ntav

ei]le me/lav, lampro\n d’ e1lipon fa/ov h0eli/oio. 155

Au0ta\r e0pei\ kai\ tou=to ge/nov kata\ gai=a ka/luyen,

au]tiv e1t’ a1llo te/tarton e0pi\ xqoni\ poulubotei/rh|

Zeu\v Kroni/dhv poi/hse, dikaio/teron kai\ a1reion,

a0ndrw=n h9rw/wn qei=on ge/nov, oi4 kale/ontai

h9mi/qeoi, prote/rh geneh\ kat’ a0pei/rona gai=na. 160

kai\ tou\v me\n po/lemo/v te kakao\v kai\ fu/lopiv ai0nh\

tou\v me\n u9f’ e9ptapolu/w| Qh/bh|, Kadmhi/di gai/h|,

w1lese marname/nouv mh/lwn e3nek’ 0Odipo/dao,

tou\v de\ kai\ e0n nh/essin u9pe\r me/g alai=tma qala/sshv

e0v Troi/hn a0gagwn 9Ele/nhv e3nek’ h0uko/moio. 165

e1nq’ h] toi tou\v me\n qana/tou te/lov a0mfeka/luye

toi=v de\ di/x’ a0nqrw/pwn bi/oton kai\ h1qe’ o0pa/ssav

Zeu\v Kroni/dhv kAtená/sse path\r e0v pei/rata gai/hv. 168

Kai\ toi\ me\n nai/ousin a0khde/a qumo\n e1xontev 170

e0n maka/rwn nh/soisi par’ 0Wkeano\n baqudi/nhn,

o1lboi h3rwev, toi=sin melide/a karpo\n

tri\v e1terov qa/llontav fe/rei zei/dwrov a1roura.

Mhke/t’ e1peit’ w1fellon e0gw\ pe/mpoisi metei=nai

a0ndra/sin, a1ll’ h2 pro/sqe qanei=n h2 e1peita gene/sqai. 175

nu=n ga\r dh\ ge/nov e0sti\ sidh/rion: ou0de\ pot’ h]mar

pau/sontai kama/tou kai\ o0izuov ou0de/ t nuktwr

teiro/menoi: xalepa\v de\ qeoi\ dw/sousi meri/mnav.

a0ll’ e1mphv kai\ toi=si memei/cetai e0sqla\ kakoi=sin.

Zeu\v d’ o0le/sei kai\ tou=to ge/nov mero/pwn a0nqrw/prwn, 180

eu]t’ a1n geino/menoi poliokro/tafoi tele/qwsin.

E se desejas, outra história te contarei

bem e com habilidade; e tu lance-a em teus pensamentos

como da mesma origem surgem os deuses e os homens

175

mortais.

Primeiro uma raça de ouro de homens mortais

fizeram os imortais que têm morada olímpia. 110

Eles eram do tempo de Cronos, quando ele reinava no céu;

como deuses viviam com o coração sem sofrimentos,

longe do trabalho e da miséria, nem a infeliz

velhice estava presente, sempre iguais nos pés e nas mãos.

Alegravam-se em festas, à parte de todos os males; 115

morriam como dominados pelo sono. Todos os bens

havia para eles: fruto a terra fértil produzia espontaneamente,

muitos e fartos, e eles contentes e tranquilos

partilhavam o trabalho com alegrias infinita.

Depois que a terra cobriu essa raça,

eles são divindades, pela vontade do grande Zeus,

nobres, subterrâneas, guardiãs dos homens mortais,

eles guardam a justiça e as ações perversas,

vestidos de bruma percorrendo toda a terra, 125

doadores de riquezas: e obtiveram esse prêmio real.

Uma segunda raça, em seguida, muito pior que a anterior,

de prata, fizeram aqueles que têm morada olímpia,

em nada semelhante à de ouro, nem no aspecto nem

no pensamento.

Mas por cem anos, o filho com a mãe prudente 130

era criado brincando, grande néscio, dentro de casa.

Mas quando crescia e alcançava a idade da juventude,

pouco tempo viviam sobre a terra, com sofrimento

pela imprudência. De fato, a insolência não podiam

conter um contra o outro, nem desejavam 135

cultuar nem sacrificar nos sagrados altares dos

bem-aventurados, conforme é lei natural e costume

para os mortais. Depois, Zeus filho de Cronos, irado,

ocultou-os porque não prestavam honras aos bem-aventurados

deuses que detêm o Olímpo. Em seguida, a terra também

cobriu essa raça, 140

176

eles são chamados bem-aventurados mortais subterrâneos,

os segundos, mas, de qualquer modo, uma honra os acompanha.

E Zeus pai uma terceira raça de homens mortais

de bronze fez, em nada semelhante à de prata,

dos freixos, terrível e vigorosa, a quem as obras funestas

de Ares 145

as insolências interessavam, nenhum trigo

comiam, mas tinham o selvagem coração de aço,

não modelado; grande violência e braços invencíveis

dos ombros brotavam sobre os corpos poderosos.

As armas deles eram de bronze; de bronze suas casas 150

e trabalhavam com bronze; o ferro negro não existia ainda.

Eles, subjugados pelos próprios braços,

desceram para a bolorenta casa de Hades gelado,

anônimos; e a morte negra, mesmo sendo eles terríveis,

os dominou, e deixaram a luz brilhante do sol. 155

Depois também a essa raça a terra cobriu.

De novo, outra, quarta raça, sobre a terra que muito alimenta,

Zeus Crônida fez, mais justa e melhor,

raça divina dos heróis, que são chamados

semideuses, raça anterior sobre a terra vasta. 160

A guerra danosa e o combate terrível, aniquilou-os,

uns em Tebas de Sete Portas, em Cadmo,

ao lutarem por causa dos rebanhos de Édipo,

outros, nos navios, sobre o grande abismo do mar,

indo a Troia por causa de Helena de bela cabeleira, 165

lá o termo da morte os encobriu.

A outros, longe dos homens, concedendo-lhes recursos e morada,

Zeus pai, filho de Cronos, estabeleceu-os

nos confins da terra.

E eles habitam com o coração sem sofrimentos 170

a Ilha dos Bem-aventurados, junto ao Oceano de profundas

correntes,

felizes heróis, para o quais melíferos frutos

177

três vezes ao ano florescendo produz a terra fecunda.

Não mais estivesse eu entre os quintos

homens, mas que morresse antes ou nascesse depois! 175

De fato, agora, existe a raça de ferro: nem de dia

nem de noite cessarão de consumi-los, o cansaço e

a miséria; e os deuses lhes darão duras preocupações;

contudo, para eles estarão misturados bens com males.

Zeus destruirá também essa raça de homens mortais,

Trabalhos e Dias 106-80

Considerado o pioneiro nos estudos de escatologia na Grécia antiga, Erwin

Rohde (1925, p. 58) aborda o tema da vida post-mortem na obra de Hesíodo, com base

no mito das Cinco Raças, cujo objetivo principal, segundo o autor, era relatar a

progressiva decadência moral da humanidade. A menção do que ocorre depois da

morte dos homens, em sua opinião, teria apenas um objetivo secundário que se

converte, porém, no tema central com a introdução da Raça dos Heróis, pois de outra

forma, essa parte do mito somente prejudicaria a construção da narrativa, ou seja, para

Erwin Rohde, se o primeiro objetivo do poeta fosse tratar do post-mortem, a estrutura

do Mito das Raças seria quebrada com a intercalação da Raça dos Heróis.

A inserção da Raça dos Heróis, segundo o autor, não teria como objetivo

destacar uma concepção moral elevada dos guerreiros, nem os combates, nem as

façanhas perpetradas em Tebas ou Troia às quais o poeta se cala. Os atos praticados

nessas guerras igualariam os heróis aos homens da Raça de Bronze. O objetivo do

poeta, anota Erwin Rohde, é apresentar o que distingue a Raça dos Heróis das outras,

isto é, o fato de alguns desses homens, sem experimentar a morte, serem separados

em vida: “Isso é o que interessa ao poeta e o que, sem dúvida, o move primeiramente a

intercalar no poema o episódio referente à quarta idade”. (1948, p. 50).

Após sua breve introdução com fins de resumir o Mito das Cinco Raças e

justificar a intercalação da Raça dos Heróis em um esquema que se baseia na

sequência de valores dos metais, Erwin Rohde (1925, p. 56) passa a analisar o destino

final dos homens de cada raça começando pela Raça de Ouro. Aos homens dessa

geração, a fim de evidenciar-lhes a nova fase de existência após a morte, Hesíodo lhes

178

confere o nome de daimones126, termo que, segundo o autor (op. cit. p. 58), é utilizado

por Homero para se referir aos deuses imortais. Acentua o pesquisador, porém, que o

poeta beócio evita que se confundam os deuses, habitantes do Olimpo, com os mortais

divinizados, afirmando que estes últimos são daimones que moram sobre a terra. Essa

nova forma de existência apenas alçaria os homens da Raça de Ouro a uma condição

superior àquela que tinham em vida:

Pois, não são outra coisa senão almas, de fato, as que aqui, depois de se separarem dos corpos, se transformam em demônios, isto é, levam, em todo o caso, uma existência superior e mais poderosa do que aquela que viveram enquanto estavam unidas aos seus corpos (ROHDE, 1948, p. 58. Tradução nossa).

Observou ainda Erwin Rohde que a ideia apresentada por Hesíodo contém uma

concepção inexistente na épica homérica que não faz referências a esses seres, mas

que encerraria vestígios de uma antiga crença mantida isolada na campesina Beócia e

cujas raízes devem ser buscadas fora da épica.

Os homens da Raça de Ouro são identificados pelo pesquisador (op. cit., p. 72)

com as trinta mil divindades que vagueiam pela terra, encarregadas por Zeus de

observar as ações dos mortais, conforme menciona Hesíodo em Trabalhos e Dias,

verso 252. Na opinião de Erwin Rohde, por questões éticas, essa concepção é

importante para o poeta que não pode tê-la inventado porque nada que pertencesse à

esfera religiosa ou à do culto, mesmo que fosse uma superstição, poderia ser criação

de Hesíodo que pertencia à escola beócia, que diferente da homérica afeita às

inovações, era contrária a essa prática, como se deduz do verso 27 de Teogonia: “i1dmen

yeu/dea polla\ le/gein e0tu/moisin o9moi=a,” (sabemos falar muitas coisas mentirosas

semelhantes a verdades). As palavras do autor são significativas nesse sentido: “os

poetas beócios nunca inovam na região puramente mitológica, mas simplesmente

ordenam ou colocam junto ou meramente registram aquilo que encontram na tradição.”

Assim, segundo Erwin Rohde, o destino dos homens da Raça de Ouro, que se tornam

daimones após a morte, origina-se de uma tradição mais antiga que Hesíodo podendo

ser uma especulação pós-homérica.

Na opinião de Erwin Rohde (1925, p. 72), nos Poemas Homéricos, há vestígios

do culto dos mortos para se admitir que, em tempos remotos, os Gregos, de modo

126

Trabalhos e Dias, 122

179

semelhante a outros povos, acreditavam na continuidade, na existência consciente da

psykhé, depois de sua separação do corpo, e em sua capacidade de influenciar o

mundo dos vivos. Essas ideias, que só com muita dificuldade podem ser extraídas das

epopeias, são confirmadas, segundo o autor, por Hesíodo em cujo poema se encontra

preservada a antiga crença na elevação da alma a uma existência mais sublime, como

ratifica o autor: “a crença na divindade deles, após a morte, deve, portanto, ser de

longa data, e o culto a essas almas como seres poderosos ainda continua.”. A narrativa

referente à divinização dos homens da Raça de Ouro seria, segundo Erwin Rohde,

indício de que a crença era corrente no tempo de Hesíodo.

Destino semelhante ao dos homens da Raça de Ouro, segundo o autor (op. cit.

p. 73), terá os da Raça de Prata aos quais se prestam culto e são denominados bem-

aventurados mortais. Esse sintagma é, na opinião do autor, usado nesse passo de

modo paradoxal, pois o termo makares se emprega, normalmente, para designar os

deuses e os seres colocados acima da mortalidade. O emprego do termo, como faz

Hesíodo, associando-o ao adjetivo mortais, (ma/karev qnhtoi/), é considerado por Erwin

Rohde estranho por equivaler à expressão deuses mortais na qual os termos são

excludentes. O pesquisador considera que essa utilização que causa estranhamento

pode estar associada a um incômodo do poeta que empregava um termo comum do

vocabulário homérico para designar seres que eram desconhecidos na poesia épica.

O emprego do termo daimones para designar os homens da Raça de Ouro após

a morte, na opinião de Erwin Rohde, parace não fazer distinção entre eles e os homens

da Raça de Prata. A diferença entre os modos de existência post-mortem dessas duas

raças reside, segundo o autor, apenas no fato de os homens da Raça de Ouro viverem

sobre a terra, enquanto os da Raça de Prata, nas profundezas da terra, sendo, por

esse motivo, considerados entidades subterrâneas: “Somente o local onde as duas

classes de espíritos têm suas habitações é diferente os daimones da Raça de Prata

viviam nas profundezas da terra [...]”. Essa localização, porém, na opinião de Erwin

Rohde (1925, p. 60), não pode ser tomada como equivalente à residência no Hades,

lugar de reunião de “alma-sombras” porque essas levam ali uma existência

inconsciente e vegetativa sem que lhes fossem prestados nenhuma forma de culto.

A interpretação de Erwin Rohde apresenta uma dificuldade porque, nos versos

relativos ao destino dos homens da Raça de Prata, não se usa o termo daimones para

denominá-los, fato que torna a argumentação do autor frágil porque, claramente, não

180

se pode sustentar que ambos tinham a mesma natureza e os termos daimones e

makares sejam sinônimos, conforme supõe Erwin Rhode.

Sobre a prestação de culto aos homens das duas primeiras raças, Erwin Rohde

faz uma curiosa observação com base no verso 142, referente à Raça de Prata:

“deu/teroi, a0ll’ e1mphv timh\ kai\ toi=sin o0phdei=.” (os segundos, também alguma honra é

para eles prestada.) que apresentando a expressão kai\ toi=sin permite inferir “a fortiori”

que aos homens da Raça de Ouro se prestava culto.

Quanto à Raça de Bronze e seu destino final, Erwin Rohde (op. cit., p. 74) afirma

que, pela narrativa do poeta, lhes é atribuído um destino final muito semelhante àquele

dos heróis dos Poemas Homéricos, isto é, o reino de Hades onde eles se convertem

em “um nada”. O uso do adjetivo “anônimos” que os caracteriza, segundo o autor,

talvez apenas indique que, diferente das Raças anteriores, não lhes eram prestadas

honras de qualquer natureza.

Erwin Rohde dá maior atenção à Raça dos Heróis e apresenta-lhes algumas

reflexões sobre essa, narrativa que, em sua opinião (op. cit., 1925, p. 75), corresponde

à primeira apresentação de uma história totalmente lendária cuja inserção,

imediatamente anterior ao tempo em que o poeta viveu, evidencia o parco

conhecimento que os Gregos antigos tinham de sua própria história. Nota-se que o

pesquisador considera que as raças são apresentadas por Hesíodo como eventos

históricos porque o poeta se inclui em uma delas, a Raça de Ferro, e a apresentação

Raça dos Heróis seria totalmente lendária devido à utilização que Hesíodo faz da épica

tradicional que narrava a aventura dos heróis, como, por exemplo, a Ilíada e outros

poemas do gênero.

O interesse de Hesíodo ao introduzir a quarta raça é, conforme Erwin Rohde

(1925, p. 75), mostrar o destino final dos homens da Raça dos Heróis, que se

relacionam com os homens da Raça de Bronze pelo destino final de alguns que

simplemente morrem e vão para o Hades. Outra parte dos heróis, porém, é destinada à

Ilha dos Bem-aventurados sem sofrerem o golpe da morte, ou seja, sem que a psykhé

se separe do corpo. Eles são levados vivos, ao contrário daqueles que, depois da

morte, foram para o Hades.

A concepção de um lugar isolado para onde alguns poucos são levados,

conforme apresenta Hesíodo, na opinião de Erwin Rohde (op. cit. p.; 75) é procedente

do ciclo de poesia épica tradicional sobre o qual se assenta a narrativa da abdução de

Menelau em Odisseia IV, 561-9. O estudioso acrescenta ainda que o poeta beócio, ao

181

colocar esse lugar afastado do mundo dos homens, no oceano, nos confins da terra, o

relaciona com os Campos Elísios presente na Odisseia. Desse modo, a Ilha dos Bem-

aventurados e os Campos Elísios seriam, na verdade, o mesmo lugar denominado de

modo diverso.

O mito hesiódico das Cinco Raças, segundo Erwin Rohde (op. cit.; p 62) ,

oferece a mais importante referência sobre a crença do povo grego antigo no destino

das almas porque nele estão inseridas uma prática de um passado distante, ou seja, o

culto aos mortos no qual subjaz a concepção do destino final dos homens da Raça de

Ouro e da Raça de Prata, e também a crença de que os mortos se fundiriam formando,

no Hades, uma massa homogênea, um nada em um reino de sombras, concepção

contemporânea ao poeta.

Parte das interpretações de Erwin Rohde foi aceita por Lewis Richard Farnell

que, em seu livro Greek Heros Cult and the Idea of Immortality, já mencionado

anteriormente, abordou o tema do destino final do homem no Mito das Raças,

analisando com cuidado particularidades referentes à Raça de Ouro porque, em sua

opinião, (1921, p. 12), algumas dificuldades inerentes à narrativa nunca foram

contempladas, como, por exemplo, as expressões dai/mone/v/e0sqloi/, e0pixqo/nioi, fu/lakev

qnhtw=n a0nqrw/pwn, nos versos 122-3, sobre as quais ele assegura que Erwin Rohde

agiu acertadamente ao relacioná-las com um antigo culto dos mortos sem, contudo,

resolver-lhes as dificuldades de interpretação.

O termo dai/mwn (daímon) é o ponto de partida da reflexão de Lewis Richard

Farnell (op. cit., p. 21) que pondera a utilização desse termo, nos Poemas Homéricos,

como sinônimo de palavras que designam uma divindade, significado jamais

empregado por Hesíodo em cuja obra só é usado em referência ao espírito “glorificado”

de um homem, conforme o passo de Teogonia127 sobre o rapto de Faéto por Afrodite,

que o eleva ao status de divindade (dai/mona d+i=on), e para designar “todos os dai/monev

128das Raças de Ouro e de Prata”. Esse fato, na opinião de Lewis Richard Farnell,

demonstra que o poeta estaria familiarizado com a ideia de homens, depois da morte,

serem alçados à condição divina.

De modo retórico, o pesquisador coloca a questão sobre quem seriam os

dai/monev e0pixqo/nioi / e os dai/monev u9poxqo/nioi e afirma que eles não podem ser

127

Teogonia, 986-91 128

Nota-se que o autor comete o mesmo equívoco de Erwin Rohde indentificando os homens da Raça de Prata como diamones, termo que não aparece no referido passo.

182

identificados com os heróis da épica, transladados para a um lugar feliz, porque

enquanto estes não recebiam qualquer forma de culto, aqueles eram cultuados.

Também não se pode identificá-los com a geração micênica representada pela Raça

de Bronze, pois essa pereceu pela violência e também não era cultuada.

A resposta dada por Lewis Richard Farnell é que, se os ancestrais e os heróis

fossem cultuados no tempo do poeta, talvez o sintagma dai/monev u9poxqo/nioi, conferido

aos homens da Raça de Prata significasse que o culto lhes seria prestado porque eles

seriam concebidos como seres u9poxqo/nioi (subterrâneos) que podiam causar

problemas aos vivos e que se alegravam ao receberem timh/ (honra), termo grego que

significa, na opinião do autor, culto por parte do povo. Observa o teórico que a prática

de culto ao ancestral e ao herói é atestada na religião popular posterior, embora as

informações dadas por Hesíodo sobre os homens da Raça de Prata permaneçam um

mistério e sua singularidade na literatura grega não contribui para uma interpretação

mais segura.

Os comentários do autor, principalmente no que diz respeito à situação post-

mortem dos homens da Raça de Prata relacionando-a com o culto aos ancestrais e aos

heróis, são válidos como tese, mas o autor incorre em equívoco ao denominar os

homens da referida raça como dai/monev u9poxqo/nioi (divindades subterrâneas) porque,

no passo em questão, se registra a expressão u9poxqo/nioi ma/karev (bem-aventurados

subterrâneos), não parecendo conveniente identificar dai/monev e ma/karev como

sinônimos, procedimento já adotado por Erwin Rohde a quem Lewis Richard Farnell

cita como pesquisador relevante sobre o tema.

A interpretação do Mito das Cinco Raças tem sido matéria de estudo de vários

autores mais recentes entre os quais se destaca J. S. Clay que, ao abordar a origem e

a natureza da humanidade na poesia hesiódica, o faz a partir da efemeridade humana,

postulado que, conforme se comentou nessa tese, se encontra presente na épica

homérica. Para a autora (2003, p. 94), a efemeridade humana, em oposição à

imortalidade dos deuses, consiste na principal diferença entre deuses e homens

estando presente na “primeira tentativa” em formar a humanidade representada pelos

homens da Raça de Ouro que, embora vivessem de modo semelhante aos deuses,

eram sobretudo mortais.

Após esclarecer essa diferença essencial entre os deuses e os homens e

evidenciar a natureza superior das divindades, com base na criação da humanidade

expressa no mito hesiódico das Raças, J. S. Clay tece alguns comentários sobre a

183

existência post-mortem dos homens das raças criadas por Zeus, sem uma intenção

específica de refletir sobre uma escatologia hesiódica e só menciona o assunto a fim

de esclarecer o processo de criação da humanidade, um processo que compreende

erros e acertos visando a corrigir as imperfeições de cada uma das raças à medida que

essas eram criadas e levadas a termo por Zeus.

A pesquisadora (2003, p. 87) considera que os homens da primeira Raça, a de

Ouro, viviam como deuses, em uma situação que se aproximava da perfeição, mas

apresentava o inconveniente de não se reproduzirem, estando, por esse motivo,

destinada a desaparecer sem deixar uma geração de descendentes. Ao perecerem,

porém, Zeus alça essa raça à condição de divindades (dai/monev e0sqloi/) que zelam

pelos homens. Essas novas divindades, na opinião da pesquisadora (op. cit., p. 88),

seriam os mesmos trinta mil seres encarregados de cuidar dos julgamentos e das más

ações dos mortais, conforme Hesíodo expressa em versos posteriores de Trabalhos e

Dias Trabalhos e Dias: tri\v ga\r mu/rioi/ ei0sin e0pi\ xqoni\ poulubotei/rh|/a0qa/natoi Zhno\v

fu/lakev qnhtw=n a0nqrw/pwn. (trinta mil são, na verdade, sobre a terra que nutre muitos,

os guardiões imortais de Zeus sobre os mortais.). Essa interpretação já havia sido

proposta por Erwin Rohde, conforme se analisou nessa tese129.

A natureza dos homens da Raça de Ouro aproximava-os das divindades e,

semelhante aos deuses, eles viviam em uma situação paradisíaca. Qual seria então a

imperfeição deles, o defeito que motivara o seu fim? questiona a pesquisadora,que

sugere, como imperfeição, a incapacidade de os homens se reproduzirem, o que

provocaria rapidamente extinção da Raça de Ouro sem a intervenção dos deuses.130

Ao contrário do que ocorre com os homens da Raça de Ouro, o destino daqueles

que pertencem à Raça de Prata, segundo J. S. Clay (2003, p. 89), tem suscitado

reflexões por parte de autores que observam nesse passo a menção do culto aos

heróis. Nesse aspecto, a pesquisadora considera que é difícil entender por que os

homens da Raça de Prata recebiam honra, mesmo que de segunda ‘categoria’, pois

eles eram muito inferiores à Raça de Ouro. Além dessa, duas outras dificuldades são

apontadas pela autora em relação à Raça de Prata. A primeira diz respeito ao motivo

pelo qual esses homens, considerados crianças crescidas e estúpidas, eram honrados

129

Confira página 178 dessa tese. 130

Estranhamente, J. S. Clay (2003, p. 87) é de opinião que essa raça seria composta só de homens, pois de outro modo não poderiam viver em estado de perfeição. A autora não apresenta nenhum argumento que justifique sua interpretação que não pode ser depreendida dos versos em questão. 130 Confira os versos 724- 60 sobre as prescrições de Hesíodo para que se evite a ira das divindades.

184

como heróis e protetores da comunidade local. A segunda consiste em entender a

denominação paradoxal “bem-aventurados mortais subterrâneos” atribuída a eles.

Essa última parece a mesma já observada por Erwin Rohde segundo o qual os termos

maka/rev e qnhtoi/ são excludentes.

A solução proposta por J. S. Clay (2003, p. 89) é que o termo ma/karev,

empregado nesse passo, é ‘apotropaico’ e também um ‘eufemismo’ porque em outros

versos o poeta emprega o mesmo termo para se referir a seres aos quais pertence a

noite escura, conforme o verso 729 de Trabalhos e Dias: maka/rwn toi nu/ktev e1asin. (as

noites pertencem aos bem-aventurados). Nesse passo, Hesíodo dá instruções131 para

evitar a quebra de tabus com práticas que provocassem a ira dessas divindades que

devia ser aplacada com algum tipo de honraria diferente daquela prestada aos deuses

e também da dirigida aos heróis cultuados.

J. S. Clay considera que a honra recebida pelos homens da Raça de Prata não

se assemelhava ao culto dos heróis como interpretara Erwin Rohde , mas sim à

honra devida à Eris que se alegrava com o mal, conforme os versos 15-6 de Trabalhos

e Dias, citados para corroborar sua interpretação: “ou1tiv th/n ge filei= broto/v, a0ll’ u9p’

a0na/gkhv/a0qana/twn boulh|=sin 1Erin timw=si barei=an.” (e nenhum mortal a ama, mas por

necessidade, pelos conselhos dos imortais, honram a pesada Éris.)

Hesíodo estaria, portanto, utilizando o termo ma/karev não para se referir a cultos

prestados aos heróis, mas como um eufemismo do poder maléfico exercido pelas

divindades das supertições populares, porque a estupidez pueril dos homens da Raça

de Prata, ligada a sua natureza terrestre, os teria transformado em um tipo de força

maléfica, status adverso daquele adquirido pelos homens da Raça de Ouro, forças

benfazejas.

Quanto à Raça de Bronze, J. S Clay (op. cit., p. 91) é de opinião que, ao criar

esta raça, Zeus corrigira um defeito da Raça de Prata, isto é, a infantilidade, fraqueza

que a caracterizava. Os homens da Raça de Bronze, fortes e violentos, destruíram-se

mutuamente e baixaram para a casa de Hades no anonimato, sendo a primeira raça a

sofrer o destino comum da humanidade. A autora anota que essa característica

aproxima os homens de hoje dos homens da Raça de Bronze do mito hesiódico: “ela

185

partilha conosco o carácter específico da mortalidade humana, ta lvez estejamos mais

perto deles do que realmente pensamos”132.

Como se pode notar, propor uma interpretação para conceitos escatológicos na

poesia hesiódica não é tarefa simples porque esse tema se encontra disperso na obra

do poeta, porém, é pertinente tecer mais alguns comentários sobre o mito das Cinco

Raças observando e selecionando outros termos do vocabulário utilizado na obra

porque ele permite vislumbrar outros aspectos do tema em questão133.

Uma das primeiras observações feitas sobre o vocabulário utilizado pelo poeta,

em referência ao destino final dos homens, é a ausência do termo psykhé, palavra

frequentemente empregada nos Poemas Homéricos para indicar um componente

humano que sobrevive de modo autônomo após a morte. Observa-se que, ao

mencionar o destino final dos homens da Raça de Bronze, o poeta se difere de

Homero:

kai\ toi\ me\n xei/ressi u9po\ sfete/rh|si dame/ntev

bh=san e0v eu0rw/enta do/mon kruerou= 0Ai/dao,

nw/numnoi: qa/natov de\ kai\ e0kpa/glouv per e0o/ntav

ei]le me/lav, lampro\n d’ e1lipon fa/ov h0eli/oio. 155

Eles, subjugados pelos próprios braços,

desceram para a bolorenta casa de Hades gelado,

anônimos; e a morte negra, mesmo sendo eles terríveis,

os dominou, e eles deixaram a luz brilhante do sol. 155

Trabalhos e Dias 152-5

132

A autora comenta a Raça dos Heróis observando, principalmente, como eles foram criados, isto é, com a intervenção direta dos deuses que, por meio de relações sexuais com mortais, deu origem aos semideuses, raça por meio da qual a justiça é introduzida no mundo. Observa J. S. Clay que o fato de Hesíodo mencionar que essa Raça é mais justa que a anterior, a Raça de Bronze, evidencia uma ligação entre elas. A Raça dos Heróis estaria, na opinião da autora, relacionada com a precedente e com a futura raça que seria criada, a Raça de Ferro. Quanto ao destino final dos heróis, a autora apenas comenta que parte deles morre e vai para o Hades enquanto a outra é levada para a Ilha dos Bem-aventurados. Esse destino “post-mortem” diferente para ambos, reflete, conforme a autora, a dupla natureza dos homens dessa raça, a humana e a divina. Nesse aspecto J. S. Clay não é muito clara, pois , no mito, evidencia-se somente que parte dos heróis morre e vai para o Hades e a outra parte é levada em vida para um lugar paradisíaco. O termo “post-mortem” utilizado pela autora só se aplica aos destinados à casa de Hades. 133

A respeito dessa metodologia, vale citar as palavras R. Wellek (apud Carles Mirales, 2008, p. 29), “El análisis literario empieza donde acaba el linguístico.”

186

Nesses versos, nota-se uma referência à morada definitiva dos mortos, a

morada de Hades, em claro paralelo com a tradição épica. Porém, ao se comparar a

referida passagem com versos de Ilíada e Odisseia, ver-se-á uma diferença

considerável, pois nesses poemas afirma-se que a psykhé é que parte para o Hades,

como, por exemplo, no verso 3 do canto I de Ilíada: “polla\v d’ i0fqi/mouv yuxa\v 1Ai+di

proi%ayen” (“muitas almas valentes precipitou no Hades”), enquanto os corpos são

deixados no campo de batalha: “h9rw/wn, au0tou\v de\ e9lw/ria teu=xe ku/nessin” (dos heróis,

e eles mesmos constituiu despojos para cães), como se verifica no verso 4, em que o

pronome au0tou\v está empregado como sinônimo de sw=ma (corpo). Nos versos

hesiódicos, menciona-se que foram os homens ─ indicados no verso 152 pelo

pronome toi\ ─ que desceram para sua morada derradeira, o Hades, não havendo a

distinção entre corpo e psykhé, assinalada nos citados versos.

A ausência do termo psykhé na passagem de Trabalhos e Dias talvez indique

uma mudança do conceito de homem134, no qual a psykhé seria identificada com o

próprio homem e não como um elemento que o compõe. Nesse aspecto, é importante

observar, sobre os homens da Raça de Ouro e da Raça de Prata, que eles são

cobertos pela terra (tou=to ge/nov kata\ gai=a ka/luye), referência alusiva à prática da

inumação. No entanto, o poeta continua a referir-se a eles como se o fato de terem sido

cobertos pela terra não lhes alterasse o modo de existir, isto é, a existência anterior

formada da parte física, o corpo, e da parte imaterial, a psykhé. A mudança da

condição existencial dos homens da Raça de Ouro para seres divinos só ocorre “pelos

planos de Zeus” (Dio\v mega/lou dia\ boula\v) que os transforma em dai/monev.

Condição semelhante é atribuída aos homens da Raça de Prata que, mesmo

após mortos e sepultados considerando que a fórmula “tou=to ge/nov kata\ gai=a

ka/luye” se refira ao processo de inumação , continuam a existir como “u9poxqo/nioi

ma/karev qnhtoi/” (bem-aventurados mortais subterrâneos). O termo ma/karev135, já

134

Sobre os elementos que constituem o homem, confira GONÇALVES, A. F. C, 2010, p. 29-47. 135 O termo ma/karev foi considerado por Martin Bernal (2006, p. 271) como de origem egípcia: “At this point, I shall consider the derivation of the Greek makar (H) from M—maoe h°rw “true of voice.” Maoe h°rw was the title shouted by the audience to Horus when he defeated Seth in his case brought against him. The title was applied to the virtuous dead who have stood their trial in judgment. The Greek mákar, makária is usually translated “blessed, happy.” Already, in Hesiod hoi mákares were “the blessed dead,” and the maka/rwn nh/swn makárōn nēsōn were the “Isles of the Dead”—the Egyptian dead also lived in the west. In Homer the adjective makar- was generally applied to gods and immortals rather than to mortal men or women. In the fifth century CE makarites meant one recently dead just as maka/riov, makários does in demotic Greek today.” Como o próprio autor observa, essa etimologia não é aceita por vários

187

referido anteriormente, é utilizado na poesia homérica para indicar não somente os

deuses, mas os homens vivos que se distinguiam dos outros pela riqueza e poder.136

No verso hesiódico, ao formar um sintagma com os adjetivos u9poxqo/nioi, que não

aparece nos Poemas Homéricos, e qnhtoi/ (u9poxqo/nioi ma/karev qnhtoi/), constata-se

uma novidade em relação à poesia épica tradicional porque se criou uma nova classe

de seres desconhecidos anteriormente, seres que, conforme observou Erwin Rohde, se

difereciavam das psykhaí e, provavelmente, não partilhavam o mesmo lugar como

destino final, ou seja, o Hades.

Outro aspecto que a leitura atenta do mito das Cinco Raças permite inferir é que

o poeta não considera que exista no homem algum elemento divino oriundo de sua

criação por parte de Zeus. A esse respeito, Hesíodo se assemelha a Homero e se

distancia dos mitos orientais, por exemplo, do mito babilônico da criação da

humanidade por Ea, que, por ordem de Marduk, formou os seres humanos com o

sangue de Qingu (1996, p. 384), e do mito hebraico que narra a criação do homem a

partir do barro e do sopro de Yahweh137 que lhe insufla a vida. Em ambos os mitos, há

no homem uma centelha divina que o constitui, o sangue de um deus, no mito

babilônico, e o sopro anímico no mito hebraico. Essa concepção é estranha a Hesíodo.

Nota-se ainda que, ao se referir ao modo pelo qual as primeiras gerações

humanas têm a existência levada a termo, o poeta utiliza expressões mais suaves

como comprova a fórmula ge/nov kata\ gai=a ka/luye, utilizada no verso 121 e repetida

nos versos 140 e 156. “Ser coberto pela terra” é, portanto um eufemismo para indicar a

morte. Quanto aos homens da Raça dos Heróis, no verso 165, emprega-se o sintagma

qana/tou te/lov a0mfeka/luye que evidencia o fenômeno da morte como termo da

existência humana, até mesmo do herói138.

pesquisadores, como, por exemplo, Pierre Chantraine, a quem o pesquisador acusa de rejeitar a origem egípcia do termo sem razões convincentes e sem apresentar outra alternativa. Observe que, embora Martin Bernal considere que o termo mákares fosse mais utilizado para designar “deuses e imortais”, nos Poemas Homéricos, emprega-se o termo igualmente para os homens, referindo à riqueza, prosperidade

e saúde, e para os deuses. O autor comete um deslize ao traduzir maka/rwn nh/swn por “ilha dos mortos”, pois os homens eram levados para esse local vivos. Digno de nota é que Martin Bernal utiliza ideias de Emily Vermeule (1979, p. 72) não só quanto à possível origem egípcia do termo mákares, mas também interpretações da autora em relação à Ilha dos Bem-Aventurados e seus habitantes. O pesquisador, no entanto, não se refere às diferenças consideráveis existentes entre a concepção post-mortem egípcia e a grega que Emily Vermeule apresenta na sua argumentação. 136

Confira Il. III, 181; XI, 68 e XXIV, 377; Od. I, 217; XI, 483 em referência aos homens. Il. I, 339, 406, 599 etc; Od. I, 82, V, 7; VII, 281 etc em referência aos deuses. 137

Confira Gn. 2, 4-25. 138 Sobre a natureza dos heróis, J. S. Clay (2003, p. 93) evidencia um defeito já observado por ela na Raça de Ouro, um problema de reprodução. Os homens da primeira raça não geravam descendentes e estavam, por esse motivo, destinados a perecer. Observa a autora: By definition, the heroes are a mixed

188

A mudança na fórmula pode indicar que, para o poeta beócio, a condição mortal

do homem vai se acentuando à medida que as Raças se distanciam pari passu à sua

degradação. O homem é, sobretudo, mortal e deve morrer, concepção enfatizada no

verso 180, referência ao destino dos homens da Raça de Ferro: “Zeu\v d’ o0le/sei kai\

tou=to ge/nov mero/pwn a0nqrw/prwn” (“e Zeus também destruirá essa raça de homens

mortais”). Nota-se que, ao longo do mito, houve uma mudança no agente da morte

(gai=a, qana/tou te/lov e Zeu\v) e uma variação no emprego das formas verbais para se

referir à morte. Os homens da última raça serão mortos por Zeus como indica a forma

o0le/sei, futuro do verbo o0/llumi, que pode ser traduzido por destruir, perecer, assassinar

e morrer. Em Ilíada139, esse é o principal verbo utilizado em referênca às mortes dos

combatentes, o que parece sugerir uma ação violenta. No verso hesiódico, seu uso

pode indicar que, por causa das atitudes dos homens, o fim da Raça de Ferro se dará

pela intervenção violenta de Zeus. Embora não seja mencionado qual será o destino

post-mortem dos homens da Raça de Ferro, pode-se inferir que eles habitarão o

Hades, morada final de todos.

4.2.2 Herança Homérica

A presença de elementos dos Poemas Homéricos na literatura grega posterior

faz-se notar não só como influência direta, mas também como objeto de comentários

críticos de filósofos que utilizavam o conteúdo da épica para reflexões diversas, como

por exemplo, críticas às concepções religiosas ou tentativas de explicar a natureza e a

função da poesia. Hesíodo é, nesse panorama, a figura que se encontra mais próxima

da época da composição das epopeias, isto é, do século VIII a. C., e, na Antiguidade,

alguns autores o colocaram em relação estreita com Homero. Na Sudae Vita, por

exemplo, menciona-se que ambos os poetas eram considerados parentes, e que

alguns divergiam, ora julgando o poeta beócio mais novo, ora tomando-os

race between men and gods that traces its origins to the mingling of divine and human blood. The dual parentage of the heroes is mirrored in their post-mortem fate. Some retire to the Isles of the Blest to enjoy a state that resembles the life of the gods as well as that of the golden race who lived “like the gods”. The rest simply die as we do. But if the gods intended to manufacture a race that could reproduce itself and prolong its existence independently, the heroes constitute a problem for them. Indeed, the production of heroes requires continual intervention on the part of the gods to preserve their mixed nature. And, in fact, the mythological tradition relates that from a certain moment on, the gods distanced themselves from intimate contact with human beings and refused to continue to bring forth such children of mixed parentage. 139

Il. I, 559; II, 115; XVI, 753

189

contemporâneos. Essa proximidade temporal deu origem à história narrada em Tzetzae

Vitae de uma disputa entre os dois na qual Hesíodo saiu vencedor em uma

performance na corte de Anfidamante140.

Sem levar em conta a validade histórica das informações sobre a relação dos

dois poetas nos mencionados textos, refletir-se-á aqui sobre elementos da escatologia

homérica que estão presentes na obra de Hesíodo, entre os quais dois passos são de

grande importância: o destino final de alguns heróis que, conforme o mito das Cinco

Raças, versos 106-181 de Trabalhos e Dias, são levados para a Ilha dos Bem-

aventurados ─ episódio que pode estar relacionado com a abdução de Menelau para

os Campos Elísios ─, e a situação de Héracles narrada em Odisseia XI, 601-4 cujo

paralelo com a narrativa presente em Teogonia 950-5, e no fragmento West 25, 25-8, é

evidente.

A possibilidade de os episódios narrados por Hesíodo serem uma herança

homérica é perfeitamente possível como tese, porém não há como determinar com

certeza a origem dessas informações porque elas podiam fazer parte de concepções

correntes sobre o destino final dos homens.

O destino final de Héracles é narrado em Teogonia, em versos nos quais o poeta

deixa claro que o herói, filho de Zeus não experimentou a morte e, no Olimpo, leva uma

vida isenta das mazelas humanas:

3Hbhn d’ 0Alkmh/nhv kallisfu/rou a1lkimov ui9o/v, 950

140

Hugo H. Coning (2010, p. 40), ao abordar o tema da anterioridade de Hesíodo em relação a Homero, afirma que a controvérsia, ao contrario do que muitos pensam, já era uma questão na Antiguidade. O autor considera que há, na disputa, uma questão de autoridade, isto é, o mais antigo possui mais autoridade e cita as seguintes palavras de Pausânias sobre o tema: “Quanto à idade de Homero e Hesíodo, eu tenho conduzido uma pesquisa cuidadosa, mas não gosto de escrever sobre o tema porque eu conheço as querelas, principalmente entre aqueles que constituem a moderna escola crítica da épica.” (PAUSANIAS, 9,30,3. apud CONING, p. 40. Tradução nossa). Hugo H, Coning ainda menciona outros autores que trataram do tema, como, por exemplo, Diógenes Laércio, Pseudo-Luciano e Xenófanes. Nota o pesquisador que, de qualquer forma, há um ponto de conexão na disputa: na Antiguidade, Homero era datado em relação a Hesíodo. Observe as seguintes palavras do autor sobre a questão: Although the question was never definitively resolved, the communis opinio among experts in antiquity seems to have been, much like today, that Homer was earlier. Apart from the passages already mentioned, there are few sources for the priority of Hesiod. Xenophanes was the earliest to claim that Homer was older than Hesiod, and even the greatest fan of Hesiod in antiquity, Plutarch, had to admit that Hesiod was second to Homer ‘in reputation as well as in time’ (th|= do/ca| kai\ tw|= xro/nw|).The idea of Homer’s priority is especially well-attested in the Homeric scholia; one of them even explicitly says that ‘Hesiod has read Homer because he was supposedly later’ (a0ne/gw 9Hsi/odov ta\ 9Omh/rou w9v a1n new/terov tou/tou ). Como se pode observar, a controvérsia não é resolvida facilmente. Embora Homero seja considerado por muitos autores anterior a Hesíodo, Martin West (1997, p. 276), é de opinião que o poeta beócio é anterior: “If I take Hesiod before Homer, is not simply because I beleive the Hesiodic Poems have been composed somewhat earlier than Iliad and Odyssey […]”

190

i2v 9Hraklh=ov, tele/sav stono/entav a0e/qlouv,

pai=da Dio\v mega/loio kai\ 3Hrhv xrusopedi/lon,

ai0doi/hn qe/t’ a1koitin e0n Ou0lu/mpw| nifo/enti,

o1lbiov, o4v me/ga e1rgon e0n a0qana/toisin a0nu/ssav

nai/ei a0ph/mantov kai\ a0gh/raov h1mata pa/nta. 955

E Hebe, o forte filho de Alcmene de belos tornozelos, 950

o vigor de Héracles, tendo completado amargas provas,

a filha do grande Zeus e de Hera sandália-douradas,

venerável esposa tomou no Olimpo nevoso,

feliz ele, que, tendo grande obra cumprido, entre os imortais,

habita sem penas e isento de velhice todos os dias. 955

Teog. 950-5

Hesíodo acentua a condição de Héracles ao utilizar o termo o1lbiov (afortunado,

feliz) para caracterizá-lo e a reforça no verso 955 enfatizando que ele não experimenta

as misérias e a velhice (a0ph/mantov kai\ a0gh/raov h1mata pa/nta). Essa condição se

assemelha àquela que os homens da Raça de Ouro experimentavam em vida e à de

alguns heróis levados para a Ilha dos Bem-aventurados. Eles, iguais a Héracles, são

o1lbioi h3rwev (heróis afortunados) e também não padecem de sofrimentos a0khde/a

qumo\n e1xontev (tendo o coração sem sofrimentos).

Nos Poemas Homéricos, particularmente em Odisseia XI, 601-26, versos em

que se narra o encontro de Odisseu com Héracles no Hades, encontra-se a mesma

concepção expressa em Teogonia sobre o destino de Héracles; o herói junto à esposa

Hebe, filha de Zeus e Hera, habita o Olímpo com os imortais:

To\n de\ me/t’ ei0seno/hsa bi/hn 9Hralhei/hn, 601

ei1dwlon: au0to\v de\ met’ a0qana/toisi qeoi=si

te/rpetai e0n qali/h|v kai\ e1xei kalli/sfuron 3Hbhn

pai=da Dio\v mega/loio kai\ 1Hrhv xrusopedi/lou.

a0mfi\ de/ min klaggh\ neku/wn h]n oi0wnw=n w3v,

E depois vi o violento Héracles,

191

sua imagem; ele mesmo junto aos deuses imortais

se alegra em festas e possui Hebe de belos tornozelos,

filha do grande Zeus e de Hera de sandálias douradas.

Od, XI, 601-4

Quando comparadas, observa-se, em ambas as passagens, a utilização dos

epítetos de Zeus (Dio\v mega/loio), de Hera ( 1Hrhv xrusopedi/lou) e de Hebe

(kalli/sfuron 3Hbhn), fato que permite inferir que Hesíodo faz uso de uma tradição da

épica homérica porque o estilo formular é uma característica formal dos Poemas

Homéricos; porém, nos versos de Teogonia, não está presente na concepção evidente

em Odisseia, no passo referente ao encontro de Odisseu e Héracles no Hades, ou

seja, que todo homem deve morrer e ir para o Hades.

Nas epopeias homéricas, todos os homens morrem, e suas psykhaí vão para o

Hades, concepção que, parcialmente está presente na obra de Hesíodo, pois os

homens das Raças de Ouro, da Raça de Prata e alguns membros da Raça dos Heróis

têm destino diferente. Essa concepção obrigou o aedo a conciliar duas tradições sobre

Héracles, que por um lado, como homem, devia morrer e ir para o Hades, por outro,

como filho de Zeus, obteve a prerrogativa de viver para sempre entre os imortais.

Odisseu, no Hades, não encontra e conversa, verdadeiramente, com Héracles. O herói

se dirige simplesmente à imagem do filho que Zeus: To\n de\ me/t’ ei0seno/hsa bi/hn

9Hraklhei/hn, ei1dwlon . Nota-se, nesse passo de Odisseia, que o rei de Ítaca, ao se

referir a Héracles, usa o termo ei1dwlon e não psykhé, termo que obrigaria interpretar

que Odisseu estava diante do próprio Héracles e não de uma falsa imagem do herói.

Por outro lado, o verso 602, au0to\v de\ met’ a0qana/toisi qeoi=si/te/rpetai (ele mesmo se

alegrava entre os imortais) concilia as duas concepções: todos os homens têm como

destino final o Hades, e mesmo Héracles, que não morreu, também possui ali uma

imagem falsa em tudo semelhante a ele141.

O destino final de Héracles, também é narrado no fragmento 25 West em que se

evidencia a concepção homérica que todo homem deve morrer, ainda que ele seja o

mais famoso filho de Zeus. O herói, antes de habitar o Olimpo junto aos imortais,

morreu e foi para o Hades e só, posteriormente, alcançou a imortalidade:

141

Sobre a diferença entre os termos psykhé e eídolon, confira GONÇALVES, A. F. C, 2010, p. 53.

192

kai\] qa/ne kai\ r9’ 9Ai+/d[ao polu/stonon i3ke]to dw=ma. 25

nu=n d’ h1dh qeo/v e0sti, kakw=n d’ e0ch/luqe pa/ntwn,

zw/ei d’ e1nqa/ per a1lloi 0Olu/mpia dw/mat’e1xontev

a0qa/natov kai\ a1ghrov, e1xwn kall[is]furon 3Hbhn

e ele morreu e foi para a mansão lamentosa de Hades.

E agora é um deus, e emergiu de todos os males,

e vive, certamente, com outros que habitam o Olimpo,

imortal sem envelhecer com Hebe de belos tornozelos.

(West. 25, 25-8)

Há a presença de duas ideias importantes: primeiro a concepção corrente de

que todo homem deve morrer e ir para o Hades, concepção que induziu, como se

observou, a uma tentativa de adequação de versos de Odisseia à tradição de que

Héracles estava no Olimpo. A segunda ideia, que constitui uma novidade em relação à

Odisseia e à Teogonia, é que Héracles se tornou uma divindade; nu=n d’ h1dh qeo/v e0sti (E

agora é um deus), sendo, pois imortalizado, conforme o termo a0qa/natov que, reforçado

por a1ghrov (sem envelhecer), expressa a nova condição do herói.

Hesíodo, ao abordar o fim do homem, apresenta, portanto, como se evidenciou

nesse estudo, elementos que, aparentemente, remontam à tradição escatológica

homérica. No entanto, não há como determinar de modo seguro que as concepções

presentes na poesia hesiódica dependam diretamente da épica. Elas poderiam

pertencer a uma tradição popular da qual ambos os poetas fazem uso ao compor suas

obras. O relato do destino final de Héracles parece apontar nessa direção.

193

5 CONCEPÇÕES ESCATOLÓGICAS NA POESIA NÃO HEXAMÉTRICA E NÃO

DRAMÁTICA

Os Poemas Homéricos são aqui tomados como ponto de partida para a

compreensão da poesia não hexamétrica142, tendo em vista que neles não há somente

referências à atividade do aedo, ao espaço físico e ao ambiente de performance, mas

também se encontram narrativas com base nas quais se pode inferir a existência de

um gênero poético diferente da épica tradicional. Observa-se, no entanto, que a poesia

dramática não é objeto de reflexão dessa tese, embora seja também ela uma gênero

não hexamétrico.

Se, por um lado, as narrativas das atividades de Fêmio,143 em Ítaca, e as de

Demódoco, na ilha dos Feáceos, evidenciam a atmosfera palaciana como palco para a

recitação da poesia épica, por outro também mostram a classe de que se compunha a

audiência. Nas referidas passagens, evidencia-se que o canto era realizado em

142

A tarefa de abordar o tema da escatologia na poesia não hexamétrica e não dramática apresenta um problema duplo: primeiro, porque a conceituação desse gênero de poesia é difícil e, sob esse termo, agrupam-se poemas de natureza variada, como o iambo, a elegia e poesia lírica ou mélica; o segundo problema consiste no fato de que os poetas, pelo menos a maioria deles, não tinha o destino final dos homens como tema principal de seus poemas. A dificuldade de classificação dos gêneros influenciou a escolha do título dessa sessão na qual, sob o termo poesia não hexamétrica, se investigará a escatologia em poemas de gêneros e temas diferentes. Convém observar que se rejeita, nesse estudo, a afirmação irrestrita de que os gêneros literários na Grécia antiga se tenham desenvolvido um após o outro, conforme afirma Bruno Snell (2012, p. 55) que considera parecer natural, na literatura do Ocidente, a existência de gêneros distintos como a épica, a lírica e o drama, gêneros que foram levados à mais alta expressão pelos gregos que lhes deram vida. O pesquisador pondera que não houve uma concomitância dos gêneros que se sucederam um após o outro: “Extinguia-se o canto da épica quando surgiu a lírica, e quando a lírica caminha para o ocaso, eis que surge o drama.” Essa discussão, que pode parecer, à primeira vista, estranha à reflexão desenvolvida no texto, objetiva evidenciar a rejeição à teoria da periodização da literatura grega, pois defende-se nessa tese a existência de uma poesia pré-literária de cunho diferente da épica tradicional em que concepções religiosas podiam estar presentes, um modelo de poesia que pode ser inferido da leitura do episódio da confecção do escudo de Aquiles no canto XVIII de Ilíada. Narra-se, no referido passo, que Hefestos cinzelou cenas em que se percebe a execução de cantos: himeneus e cantos de trabalho excecutados durante as atividades nos campos, principalmente, a colheita e a vindima. A atividade poética retratada na superfície do escudo de Aquiles parece corroborar a afirmação de Francisco Adrados (2008, p. 109) de que os cantos religiosos, os cantos fúnebres e os cantos de trabalho podem ter sido os precursores da poesia lírica. Acrescenta o autor que, como se trata de cantos ocasionais, é grande a possibilidade de que eles fossem executados empregando um dialeto e uma metrificação diferentes, afastando-se, portanto, da poesia épica. Essas são, pois, a principais características da poesia não hexamétrica. Assim, contrariando as afirmações de Hermann Fränkel e de Bruno Snell, nada obsta a que se possa sugerir a existência de um gênero lírico, ou de uma poesia não hexamétrica em concomitância com outros gêneros poéticos. Essa afirmação se torna ainda mais segura quando se atesta que a poesia épica, mesmo no século V a. C, era matéria de disputas nos festivais, como relata Platão no diálogo Íon. Vale lembrar que também Aristóteles na Poética discute a natureza de gêneros poéticos diversos acentuando as características que os diferem. Talvez, em relação ao assunto, fosse melhor falar em predominância de um gênero sobre outro com exceção da Tragédia e da Comédia porque ambos os gêneros, como é de conhecimento, podem ter seu início e fim parcialmente traçados. 143

Confira Il. VIII, 43-70 e Od. I, 145-55.

194

ocasiões festivas, em um espaço onde a aristocracia se reunia, tendo como principal

propósito, entre outras atividades, a diversão, ouvindo os cantos dos aedos cujo tema

eram os feitos gloriosos dos heróis; por outro lado, no episódio da confecção do escudo

de Aquiles, no canto XVIII de Ilíada, 468-605, infere-se das cenas cinzeladas por

Hefestos a prática de himeneus e de cantos executados durante as atividades no

campo, principalmente a colheita e a vidima.

Essas modalidades de cantos retratadas na superfície do escudo de Aquiles levam

a pensar que os cantos religiosos, os cantos fúnebres e os cantos de trabalho podem

ter sido os precursores da poesia não hexamétrica, pois, como se trata de cantos

ocasionais, é grande a possibilidade de que eles fossem executados empregando um

dialeto e uma metrificação diferentes, afastando-se, portanto, da poesia épica que

apresenta uma estrutura formal bastante uniforme144.

A partir da poesia de Hesíodo, como se percebe em Trabalhos e Dias, o

ambiente de performance e o tema do canto modificam-se. Como observa Anthony T.

Edward (2004, p. 21), o poeta de Ascra não objetiva narrar eventos heroicos sob

perspectivas diversas como faz a épica, seu canto é uma peça de persuasão narrada

em primeira pessoa com o objetivo de alterar o curso dos acontecimentos presentes e,

ao contrário da poesia homérica, não se endereça a uma audiência que busca

entretenimento, mas se destina, manifestamente, àquela que está envolvida em

disputas. Nesse sentido, embora Hesíodo também se refira a fatos de um passado

glorioso145, para Anthony T. Edward, Trabalhos e Dias dificilmelmente pode ser tomado

como um poema de exaltação aos “klea andron”, pois nessa obra é evidente uma

tentativa de verossimilhança entre a narrativa e a realidade da audiência. Pondera o

pesquisador (op. cit., p. 22) que essa observação coloca o poema como, talvez, a

melhor representação da diferença entre a épica e a poesia hesiódica já que está muito

mais relacionada com o contexto histórico do poeta.

A poesia não hexamétrica146, porém, difere da épica homérica e da poesia

hesiódica pelo conteúdo, forma e pelo ambiente de performance que muda conforme o

contexto histórico-social da Grécia arcaica no qual “o balanço das forças históricas e os 144

A esse respeito, confira as ideias de Francisco Adrados em Historia de la Literatura Griega, 2008, p. 106-12. 145

O autor não precisa especificamente quais são os fatos de um passado glorioso narrados por Hesíodo, mas subentende-se, por suas palavras, que ele se refere à Teogonia e a alguns passos de Trabalho e Dias, particularmente ao mito das Cinco Raças. 146

As dificuldades de classificação da poesia não hexamétrica são expostas de modo claro e sistemático por Giuliana Ragusa de Faria em Imagens de Afrodite: variações sobre a deusa na mélica grega arcaica (2008), especifcamente, no capítulo cujo título é A lírica: desarmando as armadilhas da nomeclatura.

195

acidentes históricos seguem livremente seu curso pelas suas próprias leis”147,

proporcionando uma reflexão por parte dos poetas sobre as mazelas da vida e a

efemeridade humana.

Sobre este último aspecto, convém notar as afirmações de Hermann Fränkel

(1962, p. 133) segundo o qual a lírica predomina como forma literária antes de o

pensamento filosófico entrar em cena (1962, p. 133), e a transição entre o gênero

épico e o lírico é entendida com base em uma concepção de efemeridade humana: “em

certo sentido, o lírico está a serviço do dia e do efêmero. É a partir da concepção grega

arcaica de dia e de efêmero que a transição da épica para a lírica pode ser entendida.”.

A noção de efemeridade humana, segundo Hermann Fränkel (op. cit., p. 136) faz

com que a situação presente de um indivíduo encontre expressão artística em poemas

líricos curtos por meio dos quais se revelava uma reação aos acontecimentos

cotidianos. Com isso, salienta o autor que o destino dos homens do passado não será

mais matéria de interesse porque a vida presente, a partir daquele momento, é a

matéria de reflexão. Essa afirmação pode ser corroborada pelos seguintes versos de

Mimnermo, poeta elegíaco de meados do século VI a. C:

h9mei=v d’,oi[a/ te fu/lla fu/ei polua/nqemov w3rh

e1arov, o1t’ ai]y’ au0gh=iv au1cetai h0eli/ou,

toi=v i1keloi ph/xuion e0pi\ xro/non a1nqesin h3bhv

terpo/meqa, pro\v qew=n ei0dotev ou1te kako\n

ou1t’ a0gaqo/n: Kh=rev de\ paresthkasi me/lainai, 5

h9 me\n e1xousa te/lov gh/raov a0rgale/ou,

h9 d’ e9te/rh qana/toio: [...] mi/nunqa de\ gi/gnetai h3bhv

karpo/v, o1son t’ e0pi\ gh=n ki/dnatai h0e/liov.

E nós, assim como a estação florida da primavera

faz nascer as folhas quando rapidamente crescem

sob os raios do sol,

semelhante a elas, com as flores da juventude por pouco

tempo nos alegramos, sem conhecer nem o mal nem o

bem vindo dos deuses; as negras Queres estão ao lado, 5

147

Hermann Fränkel, 1962, p. 133.

196

tendo uma o termo da terrível velhice,e a outra, da morte

[...] pouco tempo cresce o fruto da juventude,

tanto quanto o sol se dissipa sobre a terra.

Fragm. 29 West

A reação dos poetas a essa efemeridade, particularmente no tocante ao

fenômeno da morte, consequência inevitável para o homem, pode ser a chave de

interpretação de poemas que se referem à existência post-mortem, ainda que esse

tema não seja neles a tônica predominante.

A respeito da reação dos poetas ao fato inevitável da morte, vale lembrar a

afirmação de J. Bremmer148 segundo o qual a preocupação com a vida post-mortem

teria nascido em ambiente aristocrático149, entre os mais intelectuais preocupados com

o destino pessoal e com o desejo de um prolongamento da vida para além do seu

tempo natural. Nessa perspectiva, o poeta tebano Píndaro, cujo nascimento, segundo

citações da Vita Ambrosiana e da Suda, ocorreu em um festival pítico, na 65ª

Olimpíada em (520-516 a. C)150, pode ser tomado como um legítimo intelectual que

expressava valores, desejos e anseios da aristocracia, inclusive o desejo de

perenidade mencionado por J. Bremmer, pois muitos de seus poemas foram

compostos a fim de exaltar a figura e os feitos de algumas personagens151 ilustres do

seu tempo havendo, em alguns poemas, menção de um destino post-mortem

diferenciado para alguns.

148

Confira p. 64. 149 Precisamente nesse contexto está inserido o poeta Píndaro cuja magnitude, conforme observa William H. Race (1997, p.1), já fora observada por autores da Antiguidade, especificamente Quintiliano, em Institutio Oratoria X, I. 61, que se refere ao poeta com a as seguintes palavras: “Novem vero lyricorum longe Pindarus princeps spiritu, magnificentia, sententiis, figuris, beatissima rerum verborumque copia et velut quodam eloquentiae flumine: propter quae Horatius eum merito nemini credit imitabilem.” (Porém, dos nove líricos, de longe, Píndaro é o primeiro em inspiração, em magnificência, em pensamento, em estilos, na mais ditosa riqueza de temas e palavras e com uma determinada torrente de eloquência; por causa dessas coisas, Horácio não o considera imitável por ninguém que mereça). 150

Confira Willian H. Race (1997, p. 5). 151 Confira as palavras de Carla M. Antonaccio (2007, p. 265) sobre os mecenas paraos quais Píndaro

compunha seus poemas: Pindar’s patrons were located all over the Greek world, from Thessaly and Macedon to Cyrene, from Sicily and Italy to Ionia. He was particularly favoured, however, by patrons in the West. Of forty-five poems in four books of Pindaric epinikian, seventeen were commissioned for victors from what is customarily called ‘Western Greece’ or Magna Graecia. Most of the epinikia for these so-called western Greeks, moreover, were composed for Sicilians—only two celebrated south Italian victories, both of Hagesidamos of Epizephyrian Lokroi (Olympian 10 and 11), a victor in boys’ boxing in 476.

197

Corrobora a opinião de J. Bremmer sobre Píndaro e sua arte poética William H.

Race (1997, p. 3), ao acentuar que a poesia pindárica expressava valores aristocráticos

conservadores, bem como costumes dos séculos VI e V a. C., e seus poemas,

frequentemente, evocam lembranças das limitações humanas, da dependência dos

deuses, da natureza e da brevidade das alegrias da vida.

5.1 O conceito de Psykhé em alguns poemas não hexamétricos e não dramática

Com efeito, a finitude humana e a consciência da morte conduzem a uma

reflexão sobre a efemeridade humana, tendo em vista que, inevitavelmente, o homem

deve morrer e sua psykhé baixar para o Hades onde permanece encerrada

definitivamente, concepção presente em toda a poesia homérica, exceto no que se

refere ao destino final de Menelau a quem estava prometida a abdução para os

Campos Elísios e ao destino de alguns heróis conforme o mito hesiódico das raças. O

conceito de psykhé, portanto, deve ser o ponto de partida para a reflexão sobre o post-

mortem porque, como se observou em Ilíada e Odisseia, esse elemento imaterial opõe-

se ao corpo físico do homem e sobrevive depois da morte.

Porém, como há, em tese, um considerável espaço temporal152 entre a épica

homérica e a poesia não hexamétrica e não dramática, faz-se necessário esclarecer

como se concebe a psykhé e como se utiliza o termo em alguns poemas nos quais seu

emprego não leva em conta os artifícios da composição oral em que as fórmulas são

constantes153.

A esse respeito, David B.Claus (1981, p. 67) observa que o termo psykhé

denotando uma “sombra”, uso corrente na epopeia, só ocorre cerca de 20 vezes na

poesia do período posterior, quatro vezes na Ode V de Baquílides, cujo tema é o

mundo subterrâneo, duas vezes na tragédia Persas, três vezes em Alcestis e uma na

obra de Píndaro. As outras referências são, na opinião do autor, difíceis de ser

interpretadas com essa conotação. De acordo com o pesquisador, a concepção de

152

A afirmação sobre a existência de um espaço temporal entre a poesia épica tradicional e a poesia não hexamétrica leva em conta a poesia não hexamétrica escrita. Convém observar que, mesmo com o advento da escrita no século VIII a. C. (Rosalind Thomas, 2005, p. 73), a literatura grega arcaica mantinha-se essencialmente oral. 153

Nos Poemas Homéricos, o termo psykhé apresenta-se homogêneo quanto ao significado e ao uso, denotando sempre o elemento imaterial que se separa do homem na morte. Observa David B. Claus que na poesia posterior se emprega o termo de maneira variada e raramente com o mesmo significado que ele tem na épica.

198

psykhé como uma sombra era empregada no V século a. C. somente na “fantasia

poética”, fato que justificaria a baixa incidência no uso desse termo.

A primeira referência do autor acerca da utilização do termo psykhé com o

mesmo significado presente nos Poemas Homéricos encontra-se na Ode V de

Baquílides, composta para celebrar a vitória de Hierão de Siracusa em uma corrida de

cavalos na 76ª Olimpíada realizada em 476 a. C. O relato mítico que compõe a parte

central da ode, compreendida entre os versos 56-175, refere-se ao encontro de

Meleagro com Héracles, no passo em que o o filho de Zeus foi ao Hades para

capturar o cão de dentes afiados154 (karxaro/donta ku/n) e retirá-lo do mundo dos

mortos. Nessa katábasis155, Héracles vê as psykhaí dos mortos esvoaçando como

folhas junto às margens do Cocito:

e1nqa dusta/nwn brotw=n

yuxa\v e1da/h para\ Kwkutou= r9ee/qroiv

oi]a te fu/ll’ a1nemov

1Idav a0na\ mhlobo/touv

prw=nav a0rghsta\v donei=.

tai=sin de\ mete/prepen ei1dw-

lon qrasume/mnouv e0g-

xespa/lou Porqani/da:

Ali, dos infelizes mortais

as psykhaí ele percebeu junto às correntes do Cocito,

semelhantes as folhas o vento as balança

sobre o resplandecente Ida, pasto de ovelhas.

Entre elas, se distinguia o intrépido eidolon

do que brame a lança, o neto de Porteu; ...

Baquilides Ode V, 63-70

O termo psykhé é empregado também nos versos 77, yuxa\ profa/nh

Melea/grou (apareceu a psykhé de Meleagro) e 171, yuxa\ prose/fa Melea/grou: (falou

a psykhé de Meleagro); em referência, particularmente, à psykhé de Meleagro, sujeito

das mencionadas orações, e no verso 84 em que o termo aparece em dativo

154

Confira o verso 60. 155

Convém notar que esse episódio é análogo à katábasis de Odisseu no Canto XI de Odisseia.

199

relacionado com as psykhaí contra as quais Héracles estava a ponto de lançar suas

flechas: yuxai=sin e1pi fqime/nwn: (contra as psykhaí dos mortos).

A despeito da observação de David B. Claus que, estranhamente, só considera

uma ocorrência do termo psykhé nos poemas de Píndaro, com significado semelhante

àquele utilizado nos Poemas Homéricos, no Lexicon to Pindar (1969, p. 553), William J.

Slater registra 15 ocorrências do termo psykhé ora com a acepção de “alma que vive

depois da morte”, ora, “vida”, ora, ainda, “alma em geral” e outros termos do mesmo

campo semântico, como, por exemplo, “espírito e coração”.

A primeira referência citada por William J. Slater está inserida na fala do rei

Pélias dirigida a Jasão, na Pítica IV dedicada a Arcesilau IV, colonizador de Cirene.

Sobre esse poema, William H. Race (1997, p.258) afirma que ele se assemelha à

narrativa épica da busca de Jasão ao velo de ouro e é muito importante para Arcesilas

porque sua família pretendia descender de Eufamos, um dos argonautas. Na narrativa

do mito, o rei Pélias, ao referir-se à necessidade de cumprir um oráculo revelado em

sonho, segundo o qual deveria reconduzir a psykhé de Frixo para Iólcos, juntamente

com o velocino de ouro, reconheceu que estava velho e julgou que Jasão, por ser

ainda jovem, poderia realizar a façanha, conforme os versos 158-9:

[...] du/nasai d’ a0feilei=n

ma=nin xqoni/wn ke/letai ga\r e9a\n yuxa\n komi/cai

Fri/cov e0lqo/ntav pro\v Ai0h/ta qala/mouv 160

de/rma te kriou= baqu/mallon a1gein,

tw=| pot’ e0k po/nton saw/qh

Tu podes arrancar a ira dos que estão sob a terra, de

fato, Frixo manda reconduzir sua alma 160

depois de termos ido ao palácio de Eetes

para trazer a grossa lã do carneiro,

por meio do qual ele foi salvo do mar.

Pítica IV, 158-62

Nesses versos, a palavra psykhé é empregada em referência a um habitante do

mundo dos mortos, como evidencia o termo xqoni/wn (sob a terra), já analisado

200

anteriormente quando analisou versos da poesia hesiódica. Vale observar que a

aparição da psykhé de Frixo para o rei Pélias não se assemelha à manifestação da

psykhé de Pátroclo a Aquiles, embora ambas ocorram em sonhos. No primeiro caso, o

rei é quem menciona a aparição não sendo possível comprovar a veracidade do fato,

pois ele quer persuadir Jasão a executar a tarefa. Um dado, porém, chama a atenção

nesse mito: a condição da psykhé de Frixo cuja ma=nin (ira) pode ser aplacada. Essa

animosidade, conservada no mundo dos mortos, é idêntica àquela da psykhé de Ájax

descrita em Odisseia.

Sobre a referência do uso do termo psykhé na Pítica IV, David B. Claus (1981, p.

68) nota que pode estar relacionado com uma antiga superstição156 mencionada na

narrativa da fuga de Odisseu e seus companheiros da terra dos Cícones em Odisseia

IX, 62-6. Nessa passagem, no momento do embarque, o herói não deixa que o navio

parta sem que antes, um dos companheiros gritasse chamando as psykhaí dos que

foram mortos:

e1nqen de\ prote/rw ple/omen a0kaxh/menoi h]tor,

a1smenoi e0k qana/toio, fi/louv o0le/santev e0tai/rouv.

ou0d’ a1ra moi prote/rw nh=ev ki/on a0mfie/lissai,

tri\n tina tw=n deilw=n e9ta/rwn tri\v e3kaston au+=sai,

oi4 qa/non e0n pedi/w| Kiko/nwn u3po dh|wqe/ntev.

Dali, para frente navegamos com o coração entristecido,

contentes de escaparmos da morte, embora tivessem

morrido os queridos companheiros.

Então os navios de proas recurvas não iam

para frente,

antes de alguém gritar três vezes os nomes dos

companheiros infelizes,

os quais foram mortos na planície

assassinados pelos Cícones.

Od. IX, 62-6

156

Confira as palavras do autor (op. cit., p. 68) : [...] “the second unless, we follow the scholiasts who suggested an a0na/klhsiv like that of Odyssey 9. 65 presents the oddly superstitious idea that the yuxh/ of Phrixus will follow the ship that brings back his corpse.”

201

A ideia presente nesse passo é que as psykhaí dos falecidos poderiam

acompanhar o navio que partia, e os gritos do companheiro serviriam para orientá-las,

concepção subjacente, na opinião de David B Claus, aos mencionados versos do

poema de Píndaro relativos à condução da psykhé de Frixo por Jasão.

Outra ocorrência do termo psykhé nos poemas de Píndaro se encontra na Pítica

XI157, 21, denominada normalmente, conforme William H. Race (1997, p. 366),

Pequena Oresteia porque tem como tema o resgate de Orestes por uma serva e o

assassinato de Agamêmnon perpetrado por Clitemnestra, que também matou

Cassandra, filha do rei Príamo.

“Kassa/ndran poli/w| xalkw|= su\n 0Agamemnoni/a| 20

yuxa|= po/reu’ 0Axe/rontov a0kta\n par’ eu1skion

nhlh\v guna\ [...]

A Cassandra por meio do brilhante bronze, com a psykhé

de Agamêmnon, enviou para a sombria margem do Aqueronte,

a implacável mulher [...]

Pítica XI, 20-1

A imagem do rio Aqueronte evoca o episódio do encontro entre Aquiles e a

psykhé de Pátroclo que,158 em uma situação análoga, afirma que as outras psykhaí não

o deixam atravessar o rio e se juntar a elas do outro lado159. No referido passo da

epopeia, porém, o Pelida deixa clara a natureza do visitante: “h]lqe d’ e0pi\ yuxh\

Patroklh~ov deiloi~o” (Veio a psykhé do desgraçado Pátroclo), havendo uma distinção

entre o fillho de Menécio quando estava vivo e a imagem que aparece para

Aquiles. Nos versos do poema de Píndaro, a referência é Cassandra, identificada com

sua psykhé. Nota-se que o nome da troiana, Kassan/dran, é o complemento do verbo

157

Conforme William H. Race (p. 366), a Pítica XI foi composta para celebrar a vitória de Trasideu e seu pai. O autor afirma que o escólio referente ao poema apresenta dados conflitantes quanto à data de composição e ao evento celebrado, pois apresentam-se duas datas possíveis, 474 ou 454 a. C, a primeira seria referente a uma vitória em uma corrida de rapazes, a segunda a uma competição (diaulos) entre homens. 158

Il. XXIII, 72-3. 159

Il. XXIII, 65.

202

poreu/w, e somente pelo sintagma su\n 0Agamemnoni/a| yuxa|= percebe-se que se trata da

psykhé e não da própria jovem.

Convém notar que o assassinato de Agamêmnon e a estada de sua psykhé no

Hades, referidos em Pítica, ancoram-se na poesia épica, em Odisseia XI, 387-9, versos

em que se narra o encontro de Odisseu com a psykhé do Atrida. Neste passo,

menciona-se também a presença das psykhaí daqueles que foram mortos no mesmo

momento. Note-se, porém, na epopeia, que o termo psykhé não é utilizado de modo

idêntico àquele de Pítica, isto é, em referência à própria pessoa. Esse conceito, no

entanto, já se encontra em Trabalhos e Dias, conforme se mencionou anteriormente,

pois Hesíodo aponta nessa direção ao aludir ao destino dos homens da Raça de Prata

considerando que foram eles próprios que baixaram ao Hades, e não suas psykhaí.

Nesse sentido, o poeta de Ascra distancia-se da épica homérica e apresenta uma

concepção da qual Píndaro se aproxima.

Como se pode perceber, Píndaro emprega o termo psykhé com nuance

diferente, identificada à própria pessoa com o elemento que subsiste após a morte.

Porém, a principal proposição da escatologia homérica permanece inalterada, pois,

após a morte, a psykhé parte para um lugar específico, que, nos referidos versos de

Píndaro, corresponde às margens do Aqueronte.

A respeito da morada final dos mortos, nota Simon Hornblower, (2007, p. 28),

que Píndaro partilha a visão convencional de uma vida post-mortem que transcorre em

um lugar odioso, escuro. A fim de corroborar sua afirmação, o pesquisador apresenta

alguns versos de Olímpica XIV, poema dedicado à vitória de Asópico de Orcômeno,

onde tradicionalmente se cultuavam as Graças às quais Píndaro invoca como

protetoras dessa cidade. Entre elas, o poeta invoca Eco para que leve ao Hades

notícias da vitória do jovem Asópico a seu pai falecido Cleodamo:

Melanteixe/a nu=n do/mon 20

Ferserfo/nav e0lq’, 0Axoi=, patri\ klu=tan feroi/s’ a0ggeli/an,

Kleo/damwn o0fr’ i0doi=s’, ui9o\n ei1ph|v o9ti\ oi9 ne/an

ko/lpoiv par’ eu0do/coiv Pi/sav

e0sqefa/nwse kudi/mon a0e/qlwn pteroi=si xai/tan.

Agora para a sombria morada

de Perséfone, vai, ó Eco, para o pai levando a gloriosa

mensagem, a fim de que, quando vires

203

Cleodamo, de seu filho lhe digas que,

nos vales gloriosos de Pisa,

coroou a jovem cabeleira com as asas dos

jogos ilustres

Olímpica XIV, 20-4

A referência à casa de Hades e como morada derradeira dos homens, expressa

pelo sintagma “Melanteixe/a do/mon” no verso 20 da citada Olímpica, está presente

também em poemas de autorias diversas nos quais transparece a mesma ideia, como

nos versos dos Theognidea160 em que o sintagma dnoferh=v u9po\ keu/qesigai/hv

transmite a ideia de um lugar sombrio.

[...] kai\ o3tan dnoferh=v u9po\ keu/qesigai/hv

bh=iv polukwku/touv ei0v Ai0dao do/mouv,

ou0de/pot’ ou0de\ qanw\n a0polei=v kle/ov, a0lla\ melh/seiv 245

a1fqiton a0nqrw/poiv ai0e\n e1xwn o1noma

[...] E quando às sombrias regiões subterrâneas

chegares, às moradas lamentosas do Hades, jamais,

nem mesmo morto, perderás tua glória, mas, possuidor

sempre de um nome

imortal, serás reconhecido pelos homens, [...]

Theognidea, 243-6

Em ambos os poemas, porém, não se nota uma repulsa ao Hades161, como

morada derradeira, ideia que remonta à poesia épica162 na qual, em mais de uma

160

Tradução de Gloria Braga Onelley 161

Sobre o tema, confira o artigo escrito por Teodoro Rennó Assunção: Ulisses e Aquiles repensando a

morte (Odisseia XI, 478-491). 162 A repulsa ao Hades como morada derradeira, pode ser percebida nos versos homéricos referentes à resposta de Aquiles ao discurso proferido por Odisseu, a quem o Pelida, ironicamente, parece julgar um embusteiro: e0xqro\v ga/r moi kei=nov o9mw=v 0Ai/+dao pu/lh|sin /o3v x’ e3teron me\n keu/qh| e0ni\ fresi/n, a1llo de\ ei1ph|. (De fato, me é odioso, como os portões do Hades, aquele que oculta uma coisa na mente e fala outra.). Convém mencionar ainda que há um forte sentimento de rejeição à existência no Hades onde o melhor

estilo de “vida” mesmo que semelhante à de um rei é inferior à vida que transcorre sob o sol. Passo que corrobora essa rejeição é a declaração feita por Aquiles a Odisseu que o saudara como alguém afortunado por reinar, depois de morto, sobre os habitantes do Hades: [...] sei=o d’, 0Axilleu=,

204

ocasião, se menciona que a psykhé do morto parte para o mundo subterrâneo

lamentando sua sorte. Observa-se a identificação da psykhé com o próprio indivíduo

nos referidos poemas, nos quais a existência da psykhé no Hades não é apresentada

de modo negativo, mas como uma morada inevitável para a qual se deve partir, ideia

que pode conduzir à concepção de uma vida mais feliz e preferível163 mesmo estando

ali, conforme se pode perceber no fragmento 95164 de Safo:

ei]pon: 9 w] de/spot’ e0p’. [

o]u ma\ ga\r ma/karian [e1gwg’

o]u0de\n a1dom’ e1perqa ga=[v e1oisa,

katqa/nhn d’ i1mero/v tiv [e1xei me kai\

lwti/noiv droso/entav [o1-

x[q]oiv i1dhn 0Axe/r[ontov

Eu disse: ó senhor. [

Na verdade, pela bem-aventurada [eu de minha parte

nenhum prazer tenho de estar sobre a terra,

e um desejo de morrer me domina

e de ver as margens do Aqueronte úmidas de lótus

ou1 tiv a0nh\r propa/roiqe maka/ratov ou1t’ a1r’ o0pissw. pri\n me\n ga\r se zwo\n e0ti/omen i]sa qeoi=sin 0Aogei=oi, nu=n au[te me/ga krate/eiv neku/ssin e0nqa/’ 1 e0w/n: tw|= mh/ ti qanw\n a0kaxi/zeu, 0Axilleu=:” 4Wv e0fa/mhn, o9 de\ m’ au0ti/k’ a0meibo/menov prosse/eipe: “mh\ dh/ moi qa/nato/n ge parau/da, fai/dim’ 0Odusseu=. bouloi/mhn k’ e0pa/rourov e0w\n qhteue/men a1llw|, a0ndri\ par’ a0klh/rw|, w]| mh\ bi/otov polu\v ei1h, h4 pa=sin neku/essi katafqime/noisin a0na/ssein. [...] que tu, ó Aquiles nenhum homem antes ou depois é mais feliz. Na verdade, estando vivo, honrávamos-te como aos deuses nós, Argivos, mas agora reinas poderosamente entre os mortos, estando aqui. Não te lamentes por teres morrido, ó Aquiles.” Desse modo falei, e ele imediatamente me respondendo disse: “não me consoles a morte, ó glorioso Odisseu. Eu preferia sendo lavrador servir a outro, a um homem sem terra, para o qual não havia grandes recursos, a reinar entre todos os mortos sem força. Od. XI, 482-91 163

Sobre a possibilidade de uma existência mais feliz no Hades, confira Antonio Santamaría (2003, p. 200). 164

CAMPBELL, David A. Greek Lyric I, Sappho and Alceus.

205

Convém notar que, embora haja a mesma concepção de que o morto terá uma

existência no Hades, nos poemas supracitados de Safo e de Teógnis, percebe-se uma

diferença importante porque o poeta de Mégara não apresenta imagem alguma da

existência da psykhé do morto. Cirno se tornará imortal em função de seu nome ser

objeto perene de canto para os poetas, que espalharão sua glória entre os homens.

Não se trata de uma imortalização em sentido estrito, mas da continuidade existencial

perpetuada como memória por meio da poesia. Os referidos versos de Safo indicam

ser preferível a existência contemplativa nas margens do Aqueronte a uma vida infeliz

sobre a terra dos vivos. Para a poetisa, a existência perene no Hades é um fato.

Entretanto, as psykhaí dos mortos podem se reconhecer, concepção que pode ser

notada no seguinte poema:

Katqa/noisa de\ kei/sh| ou0de/ pota mnamosu/an se/qen

e1sset’ ou0de\ po/qa ei0v u1steron: ou0 ga\r pede/xh|v

bro/dwn

tw\n e0k Pieri/av, a0ll’ a0fa/nhv ka0n 0Ai/da do/mw|

foita/sh\v ped’ a0mau/rwn neku/wn e0kpepotame/na.

E depois de caires morta, jamais haverá lembrança de ti

nem haverá mais tarde saudade; de fato, não tomaste parte

das rosas165

165 Sobre a utilização do termo rosa no sintagma bro/dwn tw\n e0k Pieri/av, observa A. Hardie (2005, p.18) que Safo o utilizava de modo figurativo ou literal. Particularmente, nesse fragmento, o termo rosas estaria sendo empregado para evocar o costume de se utilizar uma coroa de rosas para marcar a iniciação de quem a usasse, um símbolo de dedicação à divindade a qual se consagrava. Nesse sentido, haveria práticas relacionadas com as musas que se realizariam nos moldes daquelas presentes nas religiões de mistérios. Essa ideia estaria corroborada pelo termo moisopo/loi empregado em um fragmento bastante corrompido da poetisa: ou0 ga\r qe/miv e0n moisopo/lwn oi0ki/a| qrh=non e1mmen’: ou1 k’ a1mmi pre/poi ta/de. Na verdade, não é uma lei que na casa dos moisopoloi haja lamentação fúnebre. Essas coisas não seriam convenientes para nós. Frag. 150 O termo moisopo/loi, segundo o A. Hardie (op. cit. p. 15), é utilizado para se referir a algum vínculo religioso que envolveria atividades de culto às Musas. Há registro do uso de palavras que possuem formação análoga, como, por exemplo, qalamh/polov (aquele que cuida do quarto) e ai0po/lov (aquele

que cuida de ovelhas) nos Poemas Homéricos em que se percebe o sufixo -po/lov. Lembra o estudioso que o historiador Heródoto (2, 135.1), também faz uso do termo de modo semelhante ao que fez Safo.

206

de Piéria, mas, desconhecida até na morada de Hades

vagarás, desvanecida junto aos mortos sem força.

Frag. 55

Pode argumentar-se contra a interpretação proposta de que as psykhaí se

reconheciam no Hades que os versos do poema de Safo se referem à memória do

morto. Contra esta interpretação, porém, vale lembrar que, diferentemente do que

ocorre no poema de Teógnis, em que a ideia da lembrança do morto é evidenciada

pela utilização do termo o1noma no verso 246, no poema de Safo a referência é sobre

alguém que depois de morta não será lembrada. Não há presença de um sintagma

adverbial vinculado à Katqa/noisa de\ kei/sh| determinando um lugar destinado à morta.

A forma verbal kei/sh| traduzida por “jazerá”, como fazem alguns tradutores, transmite a

noção de estar a morta deitada no sepulcro ou de o corpo estar presente em um rito

funerário. No entanto, a tradução do termo kei/sh| por cair,166 com a acepção de se

encontrar em uma situação específica, tradução aqui proposta, evidencia o status de

morta e se encontrar no Hades onde a psykhé da mulher vagará anônima (a0fa/nhv ka0n

0Ai/da do/mw) entre as outras psykhaí167. A tônica, portanto, recai sobre a condição de

morta da personagem.

A partida da psykhé para o Hades sombrio é consequência inevitável da

mortalidade, limitação humana que constitui diferença essencial entre deuses e

homens, pois enquanto aqueles existirão para sempre, esses perecerão porque são

mortais, embora a psykhé, elemento humano, continue a existir de maneria autônoma.

Se a concepção de que existe no homem um elemento imaterial que sobrevive à

morte tem seus fundamentos na épica e nos poemas hesiódicos, é conveniente refletir

Giuliana Lanata (apud Hardie, op. cit., p. 15) e de opinião que o termo moisopo/lwn indicaria uma associação cuja finalidade estaria relacionada com as atividades de culto às Musas. A autora utiliza-se de uma inscrição do século II a. C. para justiificar sua afirmação. A inscrição diz respeito a um sínodo de artistas de Dioniso (e0sqlh\ texnitw=n mousopo/lwn su/nodov) e ajuda a compreender o estabelecimento da

terminologia poética, para as atividades de cultos em Lesbos. Na opinião da autora, Safo estaria utilizando o termo com um significado aproximado a esse último. 166

A tradução do termo por jazer não é a única possível, pois o verbo em questão, kei=mai, é utilizado, por exemplo, nos Poemas Homéricos, significando situar ou localizar algo no espaço físico ou uma situação. Confira Odisseia, V, 457; VII, 244; IX, 25 e X, 196. Há uma série de passagens em que o termo é utilizado com acepções diferentes mantendo, porém, uma noção de espaço ou de uma situação na qual se encontra uma cidade ou pessoa como, por exemplo, cair em ruínas ou cair em doença. 167

Convém observar que a ideia de anonimato presente nesses versos é oposta à situação da psykhé de Aquiles que, no Hades, anda cercado pelas demais psykhaí, fato que permite a Odisseu tecer comentários sobre a situação do Pelida que, estando vivo, era honrado como os deuses e, depois de morto, no Hades, reinava sobre os mortos.

207

sobre uma diferença conceitual introduzida pelos poetas posteriores, isto é, a

concepção da continuidade existencial da psykhé considerada como um ente imortal168.

Ao abordar esse assunto, Erwin Rohde desenvolveu uma reflexão sobre a

introdução da ideia de imortalidade entre os Gregos com base no conceito de psykhé

presente nos Poemas Homéricos, ou seja, ela não é mais que uma sombra que vaga

no Hades, um ser que de modo algum poderia relacionar-se com o mundo dos vivos e,

em consequência, não se prestaria a ela qualquer espécie de culto. Assim, resulta para

o autor que é inútil buscar na épica homérica a existência de um culto dos mortos, e as

passagens que poderiam apontar nessa direção apenas remetem a uma época remota

da qual, pela tradição, o poeta tem conhecimento.

Uma importante consideração do autor (1921, p. 253) é que essa crença

popular, derivada dos ensinamentos presentes nos Poemas Homéricos, permaneceu

inalterada por muitos séculos, e nela não está presente uma “semente” que germinaria

dando origem a ideias mais profundas sobre a alma viva e sua condição depois da

separação do corpo. Assegura o autor que não há nada na crença homérica sobre a

subsistência da psykhé que pudesse conduzir à concepção de uma vida eterna, imortal

e indestrutível. A ideia de continuidade estaria relacionada, segundo Erwin Rohde, com

a memória do vivo sobre a terra e a algum culto que podia ser oferecido à alma do

ancestral falecido. A memória seria o único elemento que manteria a existência da

psykhé e, uma vez extinta, nada mais dela restava169.

A argumentação de Erwin Rohde (op. cit.; p. 254) baseia-se na mencionada

diferença entre homens e deuses, isto é, na imortalidade e na mortalidade que os

distinguem essencialmente, havendo, pois, uma barreira entre o mundo dos homens e

as divindades. Para o autor, a relação religiosa entre deuses e homens dependia

totalmente dessa distinção; além disso, assinala que as ideias éticas do povo grego se

ancoravam em uma consciência na qual estava enraizada a noção de limitação, de

finitude e de incapacidade humana. A aceitação do rompimento dessa distinção por

meio do conceito da imortalidade da psykhé, conforme Erwin Rohde, contradiz essa

168

Confira algumas obras de Platão, como por exemplo, Fédon e concepções apresentada por Aristóteles em Sobre a Alma. 169

As afirmações de Erwin Rohde podem parecer estranhas porque ele rejeita a existência do culto dos mortos nos Poemas Homéricos, embora fale de um culto aos ancestrais. Claramente o autor não identifica as duas ações, porém não esclarece a diferença entre elas. Ao que parece, rejeita-se o culto dos mortos como uma ação pautada na concepção de que o morto mantivesse alguma relação com o mundo dos vivos podendo interferir nele. Necessariamente, isso obrigaria a colocá-los em um patamar que os tornassem semelhantes às divindades. O culto ao ancestral seria apenas um ato de fazer memória sem reconhecer nenhum poder ao falecido.

208

singular ideia da religião popular grega e jamais poderia tornar-se largamente

anunciada e aceita como crença pelo povo grego.

Resta, portanto, depois dessas considerações, compreender como Erwin Rohde

entende a introdução da concepção da imortalidade da psykhé na cultura grega. Como

se pode observar, o estudioso não acreditava que o povo grego adotasse esse

conceito de psykhé imortal como uma crença predominante. Nesse sentido, as

seguintes palavras do autor são bastante esclarecedoras:

No entanto, em um determinado período da história grega, e em algum lugar muito cedo e incontestavelmente, surgiu, na Grécia, a ideia da divindade e da imortalidade, implicitamente, na divindade da alma humana. Essa ideia pertence inteiramente ao misticismo, uma segunda ordem de religião que, embora pouco significativa para a religião do povo e para praticantes ortodoxos, ganhou espaço em seitas isoladas e influenciou certas escolas filosóficas. Assim, ela afetou todas as épocas posteriores e transmitiu, de leste a oeste, o princípio elementar de toda a verdadeira mística; a unidade essencial do espírito divino e humano, sua unificação como objetivo da religião, a natureza divina da alma humana e da sua imortalidade (ROHDE, 1925, p. 254. Tradução nossa).

As palavras do pesquisador são significativas porque acentuam o caráter

singular da crença na imortalidade da alma como um desvio da religião tradicional na

qual imperaria, em sua opinião, uma crença distinta, isto é, a concepção de que a alma

não é um ser imortal. A aceitação dessa novidade implicaria destruir o fundamento da

religião popular grega que se baseava, essencialmente, na distinção entre o mundo

dos imortais e o mundo dos homens mortais.

A pergunta que se impõe, depois desses esclarecimentos, é a seguinte: que

corrente mística é essa mencionada por Erwin Rohde que teria dado origem à crença

na imortalidade da alma?

A crença na imortalidade da alma originou-se, conforme Erwin Rohde (op. cit., p.

255), de correntes místicas que chegaram à Grécia vindas do estrangeiro,

particularmente da Trácia, berço do culto a Dioniso que lançou as sementes dessa

concepção170.

O fenômento que Erwin Rohde denomina de “religião de segunda ordem”, qual

seja, as seitas místicas, também foi assinalado por Christiane Sourvinou-Inwood (1995,

p. 38) como um dos elementos responsáveis por mudanças no sistema escatológico

tradicional porque, segundo a autora, já em Odisseia XI, se pode perceber que nem

170

Erwin Rohde, ao longo do capítulo VIII, expõe de modo detalhado sua tese sobre a origem dionisíaca da doutrina da imortalidade da alma.

209

todas as psykhaí, no Hades, são tratadas como sombras. Para a pesquisadora, no

período arcaico, versões de um destino post-mortem mais feliz estavam sendo

geradas, principalmente no contexto das religiões de mistérios e das seitas, entre as

quais a pesquisadora destaca os Mistérios de Elêusis que estavam em estreita relação

com a religião ateniense.

Convém, por causa da importância do assunto, esclarecer como esse fenômeno

é definido pelos pesquisadores, entre os quais Walter Burket (1987, p. 12), que propõe

a seguinte definição de religião de mistérios: “Os mistérios são uma forma de religião

pessoal que depende de uma decisão privada almejando alguma forma de salvação

através de uma maior proximidade com a divindade.”. Observa o autor, no entanto,

que, apesar de ser proposta e aceita por vários estudiosos, essa definição pode induzir

a comparações com outras formas de religiões pessoais que se apresentam mais

próximas de pesquisadores, por exemplo, as religiões votivas mais largamente

difundidas no mundo antigo e que consistiam no ambiente para a prática dos

“mistérios”.

Argumenta o autor (1987, p. 14) que, nas religiões votivas, motivado por alguma

necessidade particular, o homem procura estabelecer uma relação mais pessoal com a

divindade em um consórcio que visava a resolver um problema, como doença ou

perigo iminente, por meio de uma promessa estabelecida, um voto que poderia ser feito

em público e cujo cumprimento se daria do mesmo modo, normalmente, com a

participação em um banquete junto com outras pessoas que realizariam os mesmos

procedimentos.

Notou Lewis Richard Farnell (1921, p. 373) que, também para aquele que tinha

uma maior preocupação com o post-mortem, os mistérios eram um caminho que podia

ser trilhado: “Alguém podia ser inciado em um ou mais dos mistérios que existiam na

Grécia, a maior parte dos quais, provavelmente, começaram a partir do século VI a. C.

e V a. C. que prometiam alguma recompensa escatológica para o iniciado.”. Observa

ainda o pesquisador que a promessa de felicidade futura era uma característica dos

mistérios de Elêusis:

o1lbiov o4v ta/d’ o1pwpen e0pixqoni/wn a0nqrw/pwn: 480

o4v d’ a0telh\v i9erw=n, o3v t’ a1mmorov, ou1 poq’ o9moi/wn

ai]san e1xei fqi/meno/v per u9po\ zo/fw| eu0rw/enti.

210

Feliz aquele que entre os homens que estão sobre 480

a terra viu essas coisas:

mas aquele não iniciado nas coisas sagradas e

e aquele que não as partilha, não tem

jamais destino semelhante mesmo perecendo sob as trevas

bolorentas.

h.Hom. 2, 480-2

De fato, nesses versos do Hino Homérico à Deméter, lê-se que o iniciado teria

um destino diferente daquele do homem comum, pois, embora ambos fossem

encerrados no reino de Hades, a iniciação nos Mistérios de Elêusis propiciaria uma

sorte diferenciada.

Os Mistérios de Elêusis, certamente, são os mais conhecidos do público em

geral171, e, segundo Walter Burkert (1987, p. 4), eles eram organizados pela pólis de

Atenas e celebrados em um grande festival de outono, ocasião em que uma grande

procissão se dirigia de Atenas a Elêusis onde se realizava uma celebração noturna no

telesterion (sala de iniciação), local capaz de acomodar milhares de iniciados. Ali, o

hierofante revelava as coisas sagradas.

Walter Burkert não menciona quais seriam os possíveis conteúdos dessas

revelações aos iniciados, mas talvez possam ser eles inferidos a partir da ideia

expressa no verso 480 “o1lbiov o4v ta/d’ o1pwpen e0pixqoni/wn a0nqrw/pwn” do Hino

Homérico a Deméter, ou seja, que se tratava de algo relativo à vida post-mortem, uma

promessa de uma vida futura melhor.

A referência dos pesquisadores sobre a importância das religiões de mistérios

para o desenvolvimento de novas concepções escatológicas, introduzidas na religião

tradicional do período arcaico, conduz a uma reflexão sobre o fenômeno relacionando-

o com a poesia do período arcaico, principalmente com a de Píndaro que, na opinião

de alguns estudiosos como, por exemplo, W. K. C. Guthrie, Hugh Lloyd-Jones, Daniel

Torres e Marco Antonio Santamaría Álvarez apresenta, em alguns de seus poemas,

concepções oriundas do pitagorismo e do orfismo. Sobre o orfismo, convém observar

que seu estudo se tem mostrado complexo e controverso e relacioná-lo com Píndaro,

171

Walter Burkert (1993, p. 4) aponta que por razões de economia, nessa obra em questão, serão abordados apenas os Mistérios de Elêusis, o culto a Dioniso ou os Mistérios Báquicos, o culto de Mitra e os Mistérios de Ísis. O autor afirma que, embora existam outros, esses são os mais proeminentes.

211

considerando que em alguns de seus poemas estão expressas doutrinas desse

fenômeno religioso, suscitou opiniões diferentes porque os pesquisadores não são

unânimes a respeito do assunto, conforme observa Santamaría Álvarez (2003, p. 156)

em seu trabalho sobre a escatologia na poesia de Píndaro, particularmente em

Olímpica II e nos trenos.

O autor refere-se às religiões de mistérios com a expressão “movimentos

mistéricos,” julgando-os como modalidades religiosas complementares à religião

“olímpica tradicional,” e nota (op. cit., p. 155) que a Olímpica II e os trenos de Píndaro

têm chamado a atenção de pesquisadores porque, nessas poemas, existem

referências a elementos dos mistérios, principalmente no que diz respeito à

escatologia172. Antonio Santamaría acentua, porém, que os pesquisadores divergem

quanto à aceitação dessa tese e observa (2003, p. 156) que estudiosos da poesia de

Píndaro, e, de modo semelhante, os pesquisadores do orfismo e do pitagorismo se

pronunciam sobre o grau de influência das mencionadas correntes místicas na obra do

poeta, havendo autores que até mesmo negam a existência de qualquer influência.

As principais opiniões de autores que se dedicaram ao estudo desse tema

podem ser sintetizadas, na opinião de Antonio Santamaría, em três correntes

principais, ou seja, aquela que nega qualquer influência dos mistérios na obra de

Píndaro; a que considera Píndaro um iniciado nos Mistérios de Elêusis e no Orfismo; e,

ainda, a corrente que acredita na presença dos elementos de mistérios sem, contudo,

interpretá-los como crença pessoal do poeta e sim como referência a concepções

religiosas do mecenas.

A primeira corrente rejeita a presença de elementos de mistérios na poesia de

Píndaro por considerá-lo possuidor de concepções religiosas tradicionais que

remontam a Homero e a Hesíodo, sendo um devoto do Oráculo de Delfos que não

172

Observe as palavras de Antonio Santamaría Álvarez (op. cit., p. 155): “Una de las particularidades de la Olímpica Segunda (y de los Trenos) que más ha llamado la atención de la crítica es la presencia de abundantes elementos mistéricos, sobre todo de carácter escatológico. Como señalaba en la Introducción, con la expresión “movimientos mistéricos” me refiero a aquellas corrientes religiosas surgidas en el s. VI a. C. que pretenden ser un complemento de la religión olímpica tradicional (tal como está reflejada en Homero y Hesíodo), por ofrecer a los creyentes posibilidades de contacto personal con la divinidad a través de iniciaciones y por la promesa de una vida mejordespués de la muerte para todos los que hubieran seguido los requisitos religiosos exigidos. Tales corrientes son el eleusismo, el pitagorismo y, sobre todo, el orfismo, que comparte elementos con las otras dos. El conocimiento de sus doctrinas, prácticas y organización (sobre todo para las épocas arcaica y clásica) es parcial y confuso, debido a diversas circunstancias: la escasez de documentos procedentes de forma directa de estos movimientos, las imprecisiones, poça fiabilidad y/o fecha tardía de los autores que nos informan sobre ellos y el carácter secreto de algunas enseñanzas (el eleusismo y el pitagorismo). En ocasiones, las

mutuas influencias hacen difícil delimitarlos con precisión, así como determinar el origen preciso de tal o

cualidea, enseñanza, rito o símbolo.”.

212

aceitaria inovações e, portanto, avesso a aspectos exotéricos e às práticas

supersticiosas, características de pessoas de classes menos educadas.

Em oposição a essa primeira corrente está a segunda, menos defendida, mas

não menos importante. Seus defensores pensam ser Píndaro um iniciado nos mistérios

que, em seus poemas, deixa transparecer algumas doutrinas místicas. Observa

Antonio Santamaría (2003, p. 160) que, já na Antiguidade, se supunha ter sido o poeta

um iniciado no pitagorismo, opinião expressa por Clemente de Alexandria, que, na

opinião do estudioso, foi o primeiro autor a fazer abertamente essa afirmação.

A maioria dos estudiosos, conforme Antonio Santamaría, é defensora da terceira

corrente, ou seja, defende a presença de elementos de religiões de mistérios na poesia

de Píndaro, apesar de não afirmarem de maneira assertiva que o poeta seria um

iniciado ou que partilhasse pessoalmente algumas das concepções veiculadas nos

seus poemas. As referências às doutrinas expressariam, na verdade, a crença do

destinatário de seus versos, daquele que patrocinava o poema. Particularmente as

doutrinas presentes em Olímpica II e nos trenos seriam características da crença de

Terão a quem o poema se destinava173.

Como se nota, a diversidade de opiniões aponta para uma dificuldade em

relação à presença de elementos das religiões de mistérios na obra de Píndaro,

particularmente Olímpica II, mas, ao que parece, posto que há no referido poema

concepções inegavelmente relativas às práticas dos iniciados, a terceira corrente de

interpretação mencionada defendida também por Antonio Santamaría174 se

apresenta como a mais plausível.

173 Antonio Santamaria (op. cit. p. 156-70) expõe, de modo breve, os argumentos apresentados pelos pesquisadores. Não cabe aqui repetir as palavras do autor, posto que sua exposição é uma síntese do assunto. Convém, no entanto, observar que entre aqueles que defendem a primeira corrente mencionada, ou seja, que afirmam não existir referências aos mistérios estão, entre outros, Wilamowizt, Hermann Fränkel, Hampe, Defradas, Diels, Kirkwood e Nisetich. A respeito desse último estudioso,

Antonio Santamaria faz a seguinte observação: “Por su parte, NISETICH ha destinado la mayor parte de su libro sobre la influencia de Homero en Píndaro (1989) a la Olímpica Segunda. Considera desastroso para la apreciación del poema el esfuerzo de los estudiosos en encontrar las fuentes de la escatología en corrientes como el orfismo o el pitagorismo [...]”. Entre os partidários da segunda corrente, a que defende a adesão pessoal de Píndaro às religiões de Mistério, estão Erwin Rohde, Rossi, Mondolfo, Thummer e Duchemin. Entre os principais defensores da terceira corrente, segundo a qual Píndaro expressa as crenças de seus mecenas, estão Carmenz, Von Fritz, Willcok, Farnell, Nilsson, Norwood , Guthrie e o próprio Antonio Santamaria. 174

O autor (op. cit., p. 167) observa que há um perigo quando se exagera na interpretação das doutrinas de mistérios presentes em Olímpica II considerando-as necessariamante como crença pessoal de Píndaro porque não se pode deduzir esse fato. O autor também assegura que a finalidade da lírica não seria expressar a subjetividade do poeta que estaria celebrando uma vitória esportiva de alguém perante sua família e comunidade. Essa proposta de interpretação teria sido na opinão de Antonio Santamaria, elaborada por Bundy que substituiu, com ela, o método histórico-biográfico. Bruno Gentilli (apud

213

Na verdade, dificilmente se pode negar a existência de concepções de religiões

de Mistérios em Olímpica II, porém atribuí-las à crença pessoal de Píndaro é um

problema de natureza diferente porque isso implicaria a utilização de uma metodologia

específica, ─ por exemplo, o método histórico-biográfico largamente utilizado no estudo

da literatura clássica, principalmente a partir do final do século XIX, e cujos ecos podem

ser percebidos até os dias de hoje ─ ou alguma outra metodologia que priorize a

investigação e o reconhecimento de aspectos pessoais do autor em sua obra. A

escolha de um dos métodos de pesquisa propostos pela teoria literária,175portanto,

condiciona o resultado da pesquisa dando origem às teses diversas, conforme se

observou.

Após esse introito sobre a existência de doutrinas das religiões de mistérios na

obra do poeta tebano, particularmente, na Olímpica II, convém algumas considerações

a respeito de concepções escatológicas veiculadas por Pindaro, melhor exemplo de

poeta não hexamétrico em cujos poemas se registram importantes concepções que se

diferenciam das transmitidas pelos Poemas Homéricos e na poesia hesiódica.

5.2 Elementos das religiões de mistérios e a vida post-mortem na poesia de Píndaro

A reflexão empreendida nessa pesquisa valeu-se de conceitos da épica

homérica na qual impera a noção de que o homem só está vivo enquanto seu corpo é

animado pela psykhé. A separação definitiva desses dois elementos consiste na morte

a partir da qual a psykhé passa a existir como autônoma no reino de Hades depois de

ter recebido os devidos ritos funerários. Deve-se ter claro, porém, que essa existência

não implica aceitar que, na épica homérica, haja um elemento humano imortal, já que a

imortalidade é um atributo divino.

O fato é que, nos Poemas Homéricos, o homem é mortal e, com a morte, a

psykhé é alçada a uma nova condição existencial que a rigor não se identifica com o

ato de estar vivo. No entanto, não se pode afirmar que a psykhé, em Ilíada e Odisseia,

seja mera sombra sem consciência. Ao contrário, como se refletiu anteriormente, a

Santamaria, op. cit., p, 156) adotou o mesmo método de Bundy e acentuou que era preciso levar em conta, na interpretação do poema, a ocasião “concreta” da composição, ou seja, o ambiente de performance em que estavam relacionados o poeta, aquele que encomendou o poema e a audiência. 175

Sobre a metologia de estudo da Literatura Clássica, confira Alsina, José. Teoría Literaria Griega. Madrid: Gredos, 1991.

214

relação dos vivos com aqueles que morreram só faz sentido em um contexto em que

se concebesse a psykhé do morto como um ente consciente.

A poesia de Píndaro traz concepções diferentes da noção homérica de post-

mortem; porém, não em relação à psykhé consciente, mas no tocante a sua natureza e

à sua origem. Se os Poemas Homéricos apresentam pela primeira vez, na literatura

ocidental, o homem constituído de dois princípios, o corpo físico e a psykhé imaterial, a

Píndaro, a julgar pelo fragmento Bowra 116, cabe o mérito de ter introduzido a ideia de

que esse princípio imaterial sobrevive depois da morte porque sua origem é divina.

Porém, antes de passar à análise do fragmento, convém alguns esclarecimentos sobre

as possíveis fontes dessa concepção, expondo, em primeiro lugar, algumas

proposições de Erwin Rohde para o qual a concepção de imortalidade da alma seria

oriunda de influências religiosas estrangeiras transmitidas por seitas, isto é, as religiões

de mistérios que destoavam da religião oficial.

Assim, na poesia de Píndaro, haveria elementos de doutrinas de mistérios,

principalmente do Orfismo, a religião de mistério sobre a qual mais se tem escrito. A

esse respeito R. Dodd’s (2002, p. 150) assinala que, por causa da abundância de

pesquisas realizadas e trabalhos escritos sobre o tema176, seu conhecimento parecia

diminuir à medida que suas leituras se aprofundavam, pois proposições outrora

consideradas verdadeiras, depois de duas décadas, se mostravam controversas177.

No entanto, a presença ou não de elementos das religiões de mistérios na obra

de Píndaro suscitou um intenso debate no qual os pesquisadores assumiram posições

diversas, alguns mais radicais negando qualquer indício das doutrinas mencionadas,

outros colocando o poeta tebano como um iniciado que deixou transparecer em seus

poemas postulados de sua crença pessoal, e outros, ainda, que, assumindo uma

posição mais moderada, defendem que as doutrinas existentes nos poemas se referem

a crenças dos mecenas e não do próprio poeta, tese que mostra mais plausível.

176

A primeira edição do livro citado data de 1951. 177

Vale observar, nesse sentido, as seguintes palavras do autor: Deixe-me ilustrar minha ignorância atual por meio de uma lista do que eu outrora soube. Houve um tempo que eu sabia: • Que havia uma seita ou comunidade órfica na Idade Clássica. • Que Empédocles e Eurípedes leram a “teogonia” órfica e que esta acabou parodiada por Aristófanes nos “Pássaros”. • Que o poema do qual encontramos fragmentos em placas de ouro de localidades como Thurii se refere a um apocalipse órfico. • Que Platão pegou os detalhes dos mitos que cita deste mesmo apocalipse órfico. • Que Hipólito de Eurípides é uma figura órfica. • Que swma-shma (“corpo é igual a uma tumba”) é uma doutrina órfica.

215

Já na Antiguidade, o Orfismo e suas doutrinas despertaram a atenção de alguns

autores178, e a mais antiga referência sobre essa seita, conforme observou Erwin

Rohde (1925, p. 355), foi escrita por Heródoto que, além de identificar seus praticantes

como bacantes, relacionou suas práticas a costumes religiosos egípcios e pitagóricos.

O estudioso valeu-se da informação presente em História179 e deduziu que Heródoto

considerava Pitágoras ou os pitagóricos fundadores do Orfismo fazendo-o sobre

modelos egípcios. Erwin Rohde afirma também que a citada referência sobre o Orfismo

indica que, para o historiador grego, os “Mistérios Órficos e Báquicos” não poderiam ter

existido antes da última década so século VI a. C. Essa afirmação, porém, não

encontra respaldo no texto que o pesquisador utilizou como suporte para sua

argumentação.

Ainda na opinião de Erwin Rohde, Heródoto, em suas viagens, ou mesmo em

Atenas, teria tomado conhecimento de alguns grupos religiosos privados que, para se

autodenominar, utilizavam o nome de Orfeu, conhecido personagem de lendas trácias.

O fato de os membros do Orfismo grego prestarem culto a Dioniso, “senhor da vida e

da morte”, faz com que Erwin Rohde afirme ter sido Orfeu fundador tanto do Orfismo

quanto dos mistérios dionisíacos.

Em relação a aspectos peculiares órficos, Erwin Rohde (1925, p. 340) considera

que um dos traços distintivos desse movimento era a mescla de elementos de religão

com uma “especulação quase filosófica”, característica que predominava nos textos

literários dessa seita, como, por exemplo, os escritos teogônicos em cujo ápice da

“especulação” se encontravam as mais importantes crenças do movimento. Observa

ainda o estudioso que, no final dessas narrativas religiosas órficas, estava Dioniso

denominado Zagreus, nome de uma divindade do mundo subterrâneo devorada pelos

Titãs180. Acrescenta Erwin Rohde (op. cit., p. 341) que os Titãs foram destruídos pelo

raio de Zeus, e, de suas cinzas espalhadas, originaram-se os homens em cuja

constituição está um elemento bom, proveniente de Dioniso Zagreus que fora

devorado, e outro mau, que se relaciona com natureza destrutiva dos Titãs. Assim,

interpreta o pesquisador que, por causa dessa constituição mista, os homens devem

178

Os mais importantes entre esses são Platão e Aristóteles. Confira, por exemplo, as obras mencionadas na bibliografia. 179

História II, 81. 180

Sobre a antiguidade desse mito, Walter Burkert (1995, p. 566) afirma que não há nele algo que possa remetê-lo a uma data anterior ao período helenístico, embora haja indícos indiretos de que a história de Diosniso Zagreus fosse bem conhecida entre os Gregos. O autor alude a comentários feitos por Platão em Fédon no qual o filósofo se refere à natureza titânica dos homens relacionando-a com crenças órficas. Essa alusão pode significar que o mito era bastante antigo.

216

dirigir seus esforços a fim de se libertarem desse princípio constitutivo mau e se

purificarem tornando evidente neles o elemento divino, ou seja, o traço herdado do

deus Dioniso:

A distinção entre os elementos titânico e dionisíaco no homem é uma expressão alegórica de uma distinção entre corpo e alma. Ela corresponde também a um profundo sentido estimado, relativo ao valor desses dois lados do ser humano. De acordo com a doutrina órfica, o dever do homem é libertar a si mesmo das correntes do corpo em que a alma se encontra atada como um prisioneiro em sua cela (Erwin Rohde 1925, p. 342. Tradução nossa).

A liberdade da alma, no entanto, observa Erwin Rohde (1925, p. 342) não

ocorreria simplesmente com a morte que a deixaria livre só por um curto período de

tempo, pois o encarceramento no corpo devia acontecer mais de uma vez com uma

sucessão contínua de encarnações em corpos humanos ou de animais, determinadas

por um “ciclo de necessidade” que não podia ser quebrado apenas com o esforço do

homem que, em razão de sua “cegueira” e “irreflexão” não seria capaz de se livrar

dessa situação.

Erwin Rohde (op. cit., p. 342) nota que a “salvação”, isto é, a quebra do ciclo de

necessidade, se daria por meio de Orfeu e dos Mistérios Báquicos, não pela simples

participação nos mistérios secretos da seita, pois “uma vida órfica completa devia ser

desenvolvida a partir deles. Ascetismo é a primeira condição de uma vida piedosa.”.

A distinção entre corpo e alma, a reencarnação sucessiva e a necessidade de

uma libertação daquilo que seria os grilhões que mantêm os dois elementos unidos,

segundo a tese de Erwin Rodhe, são crenças do Orfismo. Precisamente, a primeira

concepção está expressa em um breve fragmento de um poema de Píndaro, uns

poucos versos cujo conteúdo desperta enorme interesse porque versa sobre uma das

questões mais importantes da filosofia grega e da religião ocidental, a imortalidade da

alma humana e sua natureza:

kai\ sw=ma me\n pa/ntwn e3peita qana/tw| perisqenei=,

zwo\n d’ e1ti lei/petai ai0w=nov ei1dwlon: to\ ga\r e0sti mo/non

e0k qew=n eu3dei de\ prasso/ntwn mele/wn, a0ta\r eu0do/ntessin

e0n polloi=v o0nei/roiv

dei/knusi terpnw=n e0fe/rpoisan xalepw=n te kri/sin.

217

E enquanto o corpo de todos segue para a morte inevitável,

vivo é deixado para trás o eídolon da vida: na verdade,

somente ele

proveniente dos deuses, dorme, enquanto os membros agem; e

contudo, para aqueles que dormem, em muitos sonhos,

ele mostra o julgamento que vem lentamente das coisas

agradáveis e das penosas.

Frag Bowra. 116

O poema ilustra a mencionada crença de que o homem é constituído de dois

princípios, sw=ma (corpo) e ei1dwlon (imagem) que se opõem, concepção que Erwin

Rohde considerou órfica, embora o pesquisador não afirme que Píndaro fosse um

iniciado nos mistérios do Orfismo. O estudioso é de opinião (op. cit., p. 6) que o poeta

tebano foi quem explicitamente descreveu a natureza da psykhé afirmando, nesse

poema, que o corpo segue para a morte enquanto a alma, de origem divina, é deixada

viva. Essa última ideia, acentua Erwin Rohde, não é uma concepção homérica, ainda

que, em Ilíada e Odisseia, também se concebesse o homem com uma existência dupla

nos moldes daquela mencionada por Píndaro.

A esse respeito, porém, Erwin Rohde (1925, p. 6) se equivocou 181 ao utilizar

postulados indevidos para fazer suas afirmações, principalmente a pesquisa do

sociólogo inglês Herbert Spencer, decisiva em suas investigações, porque, em sua

opinião, esse pesquisador demonstrara que a existência de um eu duplo habitando o

homem era uma crença característica de povos primitivos. Erwin Rohde afirma que,

embora tal concepção possa parecer estranha ao homem moderno, os Gregos antigos

compartilhavam essa crença que já estaria presente na “mente da humanidade

primitiva”. Portanto, por mais que soe estranho, não haveria para Erwin Rohde como

negar que os Gregos partilhassem essa crença universal.

181

Werner Jaeger (1998, p. 78) criticou Erwin Rohde acusando-o de partir de uma concepção cristã de alma imortal em sua interpretação de psykhé nos Poemas Homéricos. Na opinião do autor, Erwin Rohde incorreu em erro, ao adotar esse procedimento que, tornou sua equivocada. J. Bremer (1983, p. 7) também criticou a interpretação de Erwin Rohde e fez a seguinte observação: Like the great majority of his contemporaries, he was exclusively interested in the destination of the soul, and had no eye for the rich and varied Homeric psychological terminology. His interpretation was entusiatically received by some and silently rejected by others, particulary by the greatest classical scholar of that time, Wilamowitz, but it remaind the starting point for all subsequent discussion.

218

Além de aplicar os resultados das pesquisas do sociólogo aos Gregos

“primitivos,” a fim de legitimar a validade de suas afirmações sobre a crença homérica

em um eu duplo, Erwin Rohde (1925, p. 7) utilizou também o citado fragmento de

Píndaro que, como se comentou anteriormente aqui, traz novidades em relação às

crenças presentes nos Poemas Homéricos nos quais não existe nenhum passo

específico que contemple a ideia expressa no poema de Píndaro, pois na épica

apresenta-se a concepção de que somente quando vive, sob o sol, levando uma

existência em que corpo e psykhé constituem uma realidade única, o homem pode ser

tomado como vivo. Essa ideia difere radicalmente da concepção apresentada no

fragmento supracitado no qual se menciona que a vida continua mesmo depois da

separação entre o corpo, a psykhé ou eídolon182.

As principais concepções escatológicas presentes no fragmento pindárico se

distanciam muito daquelas expressas nos Poemas Homéricos. Observa-se, por

exemplo, que a palavra sw=ma (corpo), referente ao corpo vivo, não é registrada em

Ilíada e Odisseia nessa acepção, pois designa o cadáver.183 Porém, nos poemas de

Píndaro, seguindo o comentário de William J. Slater, (1969, p. 483), sw=ma (corpo)

refere-se ao corpo do homem ou de outro animal que pode estar vivo ou morto.

Para referir-se ao elemento imaterial que subsiste depois da morte, o poeta

tebano utiliza, no segundo verso, o termo ei1dwlon (eídolon) que também é equivalente

nos Poemas Homéricos a uma imagem que corresponde exatamente à forma que o

indivíduo possuía em vida. Uma diferença, porém, é notável, pois em Ilíada e Odisseia,

o eídolon pode indicar uma imagem enganosa como aquela criada por Apolo a fim de

evitar a morte de Eneias prestes a ser morto por Diomedes, ou ainda, o eídolon de

Iftímia que Atená criou para consolar Penélope que chorava a ausência de Odisseu.

Em ambos os episódios, vê-se claramente que se trata de simulacros que não

correspondem à existência real do indivíduo184. Ainda sobre o uso desse termo, outro

exemplo digno de nota é o passo referente ao encontro de Odisseu com Héracles,

182

Sobre o uso e as diferenças na utilização dos termos psykhé e eídolon nos Poemas Homéricos,

confira GONÇALVES, Alex Fabiano Campos. A Yuxh/ nos Poemas Homéricos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. 183

Confira os usos do termo com significado de cadáver humano em Ilíada VII, 79; XXII, 342, em Odisseia XI, 54; XII, 67; XXIV, 187. Para o uso do termo como cadáver de animal confira Ilíada III, 23; XVIII, 161 e XXIII, 169. 184

Iliada V, 449 e Odisseia IV, 796.

219

conforme Odisseia XI, 601-29, ocasião em o filho de Laertes afirma que viu o eídolon

do herói, pois, na verdade, Héracles mesmo se encontrava entre os deuses185.

A origem do ei1dwlon, mencionada no fragmento supracitado, constitui a grande

novidade em relação aos Poemas Homéricos, pois, pela primeira vez na literatura, se

expressa, de modo claro, a existência de um princípio humano que não está destinado

à morte porque sua origem é divina: “to\ ga\r e0sti mo/non, e0k qew=n”. Assim, enquanto o

corpo, sw=ma, segue para a morte (“kai\ sw=ma me\n pa/ntwn e1peita qana/tw| peri/sqenei)

esse elemento, em consequência de sua origem, é deixado vivo (zwo\n d’ e1ti lei/petai

ai0w=nov ei1dwlon).

Corrobora-o Antonio Santamaría (2003, p. 230) acrescentando que, embora o

termo eidolon lembre a concepção homérica de alma, sua origem divina, expressa no

fragmento, é uma crença órfica.

Outro postulado da crença órfica, segundo o autor, é a forte oposição entre o

corpo e alma186: [...] “a alma dorme enquanto os membros atuam, porém alcança sua

máxima plenitude quando o corpo está inativo, em outras palavras, quando dorme ou

está morto” [...]. Na opinião de Antonio Santamaría (2003, p. 230), no citado fragmento,

a concepção órfica do corpo como o túmulo para a alma é apresentada por Píndaro de

uma forma mais “adocicada”187.

185

Sobre esse passo, confira a interpretação jocosa que Luciano de Samósata faz em Diálogo dos

Mortos, V intitulado MENIPOU KAI ERMOU. 186

This doctrine is menctoned by Plato, and we may be eternally gratful that for once the whim took him to ascribe it, not vaguely and mysteriously to ‘the wise’, or the ‘old and sacred writings’, but expressely to the Orphics. In the Cratylus (400c) he is discussing the etymology of the word soma, body, and its possible connexion with sema, which meant (a) a sign or token, (b) a tomb (which was built ‘to mark the spot’). He says: ‘Now some say that the body (soma) is the sema of the soul, as if were buried in its present existence; and also because through it the soul makes signs of whatever it has to express, for in this way also they clain that is rightly namaed form sema. In my opinion it is the followers of Orpheus who are chiefly responsible for giving it hth name, holding that the soul is undergoing punishment for some reason or other, and has this husk around it, like a prision, to keep it from running away’. This central doctrine of the Orphics had a tremendous, and one is sometimes tempted to say unfortunate fascination for Plato. Some of finest parts of the dialogues give the imppressiton not that he dispised the body, but that, although the soul was the righer principle and maintain the lead, soul and body could work in harmony together (GUTHRIE, 1993, p. 157). 187 Convém observar que a opinião de Antonio Santamaria Alvarezsobre a origem órfica da ideia de oposição entre corpo e alma, consistindo o primeiro num túmulo para a segunda, não era aceita por R. E. Dodd’s. Esse último autor (2005, p. 171) expressou sua opinião da seguinte forma: Erro que continua sendo defendido. Ver R. Harder. Über Ciceros Somnium Scipionis, 121, n, 4; Wilamowitz., II. 199; Thomas, 51 sg. ; Linforth, 174 sg. Entretanto, como ela ainda é repetida por estudiosos extremamentes respeitados, parece que vale a pena dizer algo mais: a) que o que é atribuído por Platão (Crátilo, 400C) a oiamf Orfea é uma forma derivada de swma (touto to anoma) de swzein, ina swzhtai (h yuxh): isto

posto fora de dúvida pelas palavras kai ouden dein paragein oud en gramma, que contrasta swma-swzw com swma-shma e swma-shmainw; b) que swma-shma é atribuído na mesma passagem a tinev, sem

maiores especificações; c) que quando o autor diz “algumas pessoas ligam swma a shma, mas creio que

foram provavelmente os poetas órficos que cunharam o termo derivando-o de swzw”, não podemos

220

Quanto aos últimos versos do fragmento, Antonio Santamaría (2003, p. 230)

observa a valorização do sonho como forma de a alma ter acesso às coisas futuras,

característica que, na opinião do autor, seria consequência da origem divina do eídolon

e de sua capacidade de se libertar do corpo, o que constitui uma novidade introduzida

pelas religiões de mistérios no mundo grego.

O pesquisador nota que há referências claras sobre o valor que os pitagóricos

davam aos sonhos e ainda acentua que, nos Poemas Homéricos, o sonho já era

concebido como um meio pelo qual se tinha acesso ao desconhecido, pois os deuses

se manifestavam aos homens nos sonhos e faziam revelações neles as coisas que

eram desconhecidas. Nesse aspecto, porém, a concepção presente no fragmento

pindárico difere porque fica expresso que o eídolon teria acesso às coisas futuras sem

que essas fossem reveladas pelos deuses188.

Para Antonio Santamaría (2003, p. 228) a concepção de duplicidade do homem

é uma crença órfica e pitagórica e está fundamentada, como também pensou Erwin

Rohde, no mito de Dioniso Zagreus devorado pelos Titãs. Porém, observa aquele

estudioso, não convém identificar o princípio titânico com o corpo nem o dionisíaco com

supor que “poetas órficos sejam o mesmo que “algumas pessoas” ou que estejam incuídos ali. ( Estou inclinado a pensar assim mesmo que malista é entendido qualificando wv dikhn didoushv ktl). A opinião de R. E. Dodd’s, portanto, era completamente diferente da de Antonio Santamaría Alvarez. O contraste pode ser conferido lendo as palavras desse último autor (op. cit. p, 229): Es muy importante el célebre

pasaje del Crátilo (400c =OF 8) de Platón sobre la etimología de sw=ma, através de la cual se ofrecen

varias interpretaciones de la naturaleza del cuerpo: unos dicen que el cuerpo es la tumba (sh=ma) del alma, y que también se llama así porque se expresa (shmai/nei) a través de él; pero Sócrates interpreta

que oi9 a0mfi\ 0Orfe/a, esto es, los seguidores de Orfeo le aplicaron tal nombre como fuera un envoltorio,

resguardo (de sw/zw) o prisión del alma. Para esta interpretación utiliza parte de la doctrina órfica: w9v di/khn didou/shv th=v yuxh=v, w[n dh\ e3neka di/dowsin, tou=to de\ Peri/bolon e1xein, i3na sw|/zhtai, desmethri/ou ei0ko/na. ei]nai ou]n th=v yuxh=v tou=to, w3sper au0to o0noma/zetai, e3wv a1n e0ktei/sh| ta\ o0feilo/mena [to\] sw=ma, kai\ ou0de\n dei=n para/gein ou0d’ e3n gra/mma: “[creo que los órficos le han aplicado al cuerpo el nombre de sw=ma

sobre todo] porque el alma tiene que pagar una pena por sus culpas y [creo que] tiene esta envoltura para resguardarse, semejante a una prisión. Y esto es el cuerpo respecto al alma [‘salvamento’ = sw=ma], como su nombre indica, hasta que pague sus deudas, y no hay que cambiar nada, ni una letra” (es decir: esta explicación sería mejor que las anteriores, que obligaban a cambiar sw=ma en sh=ma). Si Sócrates sólo menciona a los órficos a propósito de la última etimologia es claro que las anteriores (al menos la de sw=ma – sh=ma) también caen en su órbita. 188

Antonio Santamaría Alvarez(2003, p. 231) observa que Xenofonte, em Ciropédia VIII, 7.20-1, faz uma longa explicação sobre a concepção presente no fragmento Bowra116. Confira as palavras do prosador grego: [20] Ou0 de\ o3pwv a1frwn e1stai h9 yuxh/, e0peida\n tou= a1fronov sw/matov di/xa ge/nhtai, ou0de\ tou=to pe/reismai: a0ll’ o3tan a1kratov kai\ kaqaro/v o9 nou=v e0kkriqh|=, to/te kai\ fronimw/taton au0to\n ei0ko\v ei]nai. dialuome/nou de a0nqrw/pou dh=la/ e0stin e3kasta a0pi/onta pro\v to\ o9mo/fulon plh=n th=v yuxh=v: au3th de\ mo/nh ou1te parou=sa ou1te a0piou=sa o9ra=tai. [21] e0nnoh/sate d’, e1fh, o3ti e0ggu/teron me\n tw=n a0nqrw/pwn qana/tw| ou0de/n e0stin u3pnou: h9 de\ tou= a0nqrw/pou yuxh\ tote\ dh/pou qeiota/th katafai/netai kai\ to/te ti tw=n mello/ntwn proora=|. Sobre essa referência, R. E. Dodd’s (2002, p. 139) afirma que Xenofonte, fazendo uso de uma prosa simples, apresentou a mesma doutrina expressa por Pindaro e ofereceu interpretações lógicas que a poesia não poderia expressar em razão da natureza de seu gênero literário.

221

a alma porque, na verdade, a crença órfica seria de que na alma humana estariam

presentes duas “inclinações” oriundas dessas duas naturezas.

Nota o teórico que, para os órficos, não só a origem do eidolon era divina, mas

também o era sua natureza, concepção que Píndaro, talvez influenciado pela crença

délfica de separação essencial entre deuses e homens189, não adota a fim de evitar a

“hybris”:

Isto é, no orfismo, se produz uma sobreposição de duas concepções duais do ser humano. Conjecturalmente, pode se supor que no orfismo originário acreditava-se na dupla natureza dionisíaca-titânica do homem e adotou-se a dualidade alma-corpo (talvez juntamente com a reencarnação) por infuência do pitagorismo. Lamentavelmente, carecemos de provas documentais para provar tal conjectura (Antonio Santamaría, p. 235. Tradução nossa).

O fragmento 116190 de Píndaro faz parte de um grupo de fragmentos

denominados por Daniel Torres (2007, p. 360) “fragmentos escatológicos”, e foram

transmitidos, segundo o estudioso, em obras de autores191 de períodos distintos, como

Platão, Plutarco e Clemente de Alexandria. A doutrina nele expressa, conforme

Antonio Santamaría Alvarez (op. cit., p. 227), é uma das quatro principais proposições

da escatologia pindárica, a saber, a duplicidade do homem ─ composto de corpo e

alma ─, a reencarnação da alma, a distribuição de prêmios e castigos em outra vida e o

juízo post-mortem da alma.

Evidencia-se, no supracitado fragmento, a doutrina em que se concebia o

homem como um ser composto de dois elementos que se opunham, o corpo (sw=ma) e

a “alma” (ei1dwlon), posto que o primeiro (sw=ma) perece com a morte, enquanto o

segundo (ei1dwlon) segue vivo. Não há indicação, porém, de um local para onde se

dirige o eidolon após se separar do corpo, mas, tendo em vista que o poeta partilhava

a visão tradicional do mundo dos mortos192, pode-se supor que o eidolon também

habitava o Hades. Note-se que eídolon é um hápax e está sendo empregado como

189

Convém observa que o autor não esclarece qual era a “crença délfica” mencionada por ele, mas pode se supor que a distinção apontada, é a mesma defendida por Erwin Rohde como o fundamento da religião grega, isto é, a distinção entre a natureza mortal dos homens e a imortal dos deuses. Assim, mesmo que a alma humana tenha se originado de um elemento divino, sua naturezea se difere daquela dos deuses porque o homem deve morrer para que a alma separada sobreviva. Essa é a principal característica do homem grego a mortalidade. 190

A referência utilizada por Daniel Torres 131b corresponde à Bowra 116. 191

Os fragmentos 129, 130, 131a e 131b foram transmitidos por Plutarco, o 133 por Platão e o por Clemente de Alexandria. Os escólios também são considerados por Daniel A. Torres como importantes para que se compreenda algumas doutrinas escatológicas pindáricas. Observe que os são diferentes daqueles presentes no texto porque Daniel Torres utiliza uma edição diferente. 192

Confira página 202 dessa tese.

222

sinônimo de psykhé cujo destino era o reino sombrio dos mortos onde habitaria, de

modo definitivo, após ter recebido o morto os ritos funerários devidos, concepção que

prevalece nos Poemas Homéricos, na obra de Hesíodo e de outros poetas do período

posterior.

Em alguns poemas de Píndaro, no entanto, não está expressa a noção do

Hades como morada definitiva da psykhé, pois neles se transmitem concepções novas,

talvez decorrentes da mencionada noção de imortalidade da alma (eídolon) e de sua

origem divina, características mencionadas no fragmento Bowra 116, conforme se pôde

observar. No fragmento 127, por exemplo, menciona-se que a almas daqueles que

viveram de forma piedosa não ficarão encerradas definitivamente no Hades193.

oi]si de\ Fersefo/na poina\n palaiou= pe/nqeov

de/cetai, e0v to\n u3perqen a3lion kei/nwn e0na/tw| e1tei+

a0ndidoi= yuxa\v pa/lin, e0k ta=n basilh=ev a0gauoi/

kai\ sqe/nei kraipnoi\ sofi/a| te me/gistoi

a1ndrev au1cont’: e0v de\ to\n loipo\n xro/non h3roev a9-

gnoi\ pro\v a0nqrw/pwn kale/ontai

E a todos de quem Perséfone recebeu expiação pela

antiga aflição,

no nono ano, para o sol de cima as almas daqueles

eleva novamente, delas crescerão reis ilustres

e homens rápidos em força e maiores em sabedoria;

serão chamados, no futuro, heróis célebres

entre os homens.

Frag. Bowra 127

O fragmento é transmitido no diálogo Mênon 81C, em que, ao discutir a origem

do conhecimento, Platão afirma que ouviu coisas importantes da parte de homens,

mulheres sábias em coisas divinas (peri\ ta\ qei=a pra/gmata), sacerdotes e sacerdotisas

que cuidavam com zelo de suas funções. Afirma o filósofo que, também Píndaro, entre

193

O trecho do diálogo em questão trata da teoria do conhecimento. Sócrates e Mênon estão discutindo as possíveis fontes do conhecimento. A fim de refutar um argumento sofista, Sócrates evoca coisas que ouviu da parte de mulheres e de homens sábios e argumenta, com base nas informações, que o conhecimento é uma recordação de algo já contemplado anteriormente.

223

outros poetas que são divinos (o3soi qei=oi\ ei0sin), dizia que a alma era imortal, pois o

homem ora chega ao fim, isto é, morre, ora nasce de novo.

A concepção de que a psykhé renasce expressa no fragmento pela ideia de

retorno à luz do sol de cima, conforme os versos e0v to\n u3perqen a3lion kei/nwn e0na/tw|

e1tei / a0ndidoi= yuxa\v pa/lin como nota Antonio Santamaría (2003, p. 237), é

denominada normalmente na literatura grega, pelos seguintes termos: metemyu/xwsiv,

metenswma/twsiv e paliggenesi/a, traduzidos os três por transmigração, reencarnação

ou metempsicose. O autor observa, ainda, que essa concepção é uma das mais

características e inovadoras doutrinas das religiões de mistérios ainda que não se

tenha certeza de que ela tenha sido formada na religião grega ou se constitua um

empréstimo oriundo de outra cultura194.

Infelizmente, no passo em questão, Platão omite quem são os homens e

mulheres sábias e não dá maiores esclarecimentos sobre a identidade dos sacerdotes

e sacerdotisas que conheciam certas doutrinas entre as quais destaca o renascimento.

Essa omissão permite a Antonio Santamaría (2003, p. 142) supor que se trate dos

órficos, embora ele reconheça que não há como afirmar que no Orfismo se professasse

a doutrina da reencarnação (metempsicose), considerada uma das principais

características das religiões de mistérios.

Outro aspecto que suscita questionamento é a oração o3soi qei=oi\ ei0sin (todos

quantos são divinos) porque não há explicação do motivo pelo qual os poetas, entre os

quais está Píndaro, são considerados divinos (qei/oi). A menção do filósofo aos poetas

para legitimar a argumentação também soa um tanto estranha, pois, em mais de uma

194 Confira as palavras de Antonio Santamaria sobre a discussão do assunto: “Son varios los que defienden que se originó desde la propia religión griega, de manera paralela a lo que ocurrió en la India, como PEARSON (1921, 432) o LONG (1948, 10-12). Para BURNET (1930, 100-10) en ambos lugares sería una elaboración de la creencia em el parentesco de hombres y animales, aunque el salto de una idea a otra no parece tan evidente y fácil. En opinión de NILSSON (1941b, 12), la transmigración sería una inferencia lógica realizada por los griegos, lógicos natos: primero se diferenció el alma del cuerpo, luego se preguntaron de dónde venía aquélla y la respuesta lógica fue que del Hades, adonde iban a parar las almas de los difuntos. DODDS (1960, 145ss.) cuestiona con razón que la lógica sea una motivación en el campo de las creencias religiosas. PHILIP (1966, 168) sigue a NILSSON, pensando que fue un producto de la evolución de la noción de personalidad. Otra corriente de estudiosos ha buscado su origen en una civilización extranjera. Tracia, asociada al culto de Dioniso, ha sido considerada por algunos (ROHDE 1893 = 1995, 497-500) como el posible lugar de origen de la creencia. Pero los testimonios aducidos (Hdt. 4, 95, que cuenta la relación del tracio Zalmoxis con Pitágoras; Eur. Hec. 1266-69; más tardío: Pomp. Mela 2, 18) no demuestran que en Tracia se creyera en la transmigración antes que en Grecia (cfr. LONG 1948, 7-8). César se la atribuye a los galos (Bell. Gall. 6, 14): “In primis hoc [sc. Druides] voluntpersuadere: non interire animas, sed ab aliis post mortem transire ad alios, atque hoc maxime ad virtutem excitari putant, metu mortis neglecto”.

224

vez, nos diálogos platônicos, a sabedoria desses personagens não se apresenta como

totalmente digna de crédito195.

O fragmento 127 é interpretado por Larry J. Alderikin (1981, p. 72) em relação à

doutrina da natureza humana, na qual participam um elemento dionisíaco e outro

titânico, porque há evidência, nos versos, da menção de uma força exterior que atua

para que a alma exista no corpo. O pesquisador, porém, observa que não há nenhuma

referência que permita identificar que a doutrina expressa seja órfica.

Para o citado pesquisador, H. J. Rose (apud. Larry J. Alderikin, op. cit.; p. 72)

acentua que a doutrina mencionada é órfica e nota que a palavra pe/nqeov (aflição),

utilizada no primeiro verso, se refere mais a um sentimento de aflição do que a sua

causa. O sentimento expresso seria principalmente o de aflição pela morte de alguém.

Nesse passo, o termo indicaria a aflição sofrida por Perséfone em um tempo já distante

como se pode depreender do termo palaiou= que compõe o sintagma. O termo aflição

não pode referir-se a um sentimento causado na esposa de Hades por uma atitude

humana, pois, na religião grega, não existia a noção de que o homem pudesse atingir

um deus por meio de suas ações. Por esse motivo, nota o autor que a aflição só pode

estar relacionada com história de Perséfone, o seu rapto por Hades.

A única explicação, na opinião de H. J. Rose (apud Larry J. Alderikin 1981, p. 73)

é relacionar a aflição de Perséfone com a morte de Dioniso, seu filho, morto pelos

Titãs. Essa relação, afirma a autora, permite concluir que o fragmento é um antigo

documento alusivo a uma concepção teológica órfica na qual existia uma doutrina de

“pecado original” conhecida por sacerdotes, sacerdotisas e, igualmente, por Píndaro e

outros poetas conforme menciona Platão, e que o estudioso considerou figuras

religiosas órficas.

Afirma Larry J. Alderikin (op. cit., p. 73) a respeito dessa tese que, se esses

argumentos de H. J. Rose estiverem corretos, pode-se concluir que Píndaro conhecia

a teoria da “origem titânica” da humanidade, caso contrário não haveria como conceber

que os homens partilhassem da culpa que teria afligido Perséfone que recebia por esse

motivo expiação pela “antiga aflição”196.

195

Confira, por exemplo, o diálogo Íon em que a figura do poeta e seu conhecimento são motivos de troça. 196 Segundo Larry J. Alderikin (1981, p. 74.), podem ser deduzidos ainda outros seis argumentos com base no fragmento 133: “ The fragment from Pindar does, however, justify six other conclusions for this study of Orphic Anthopology. First, human being are subject to events which transpired prior to their existence and for which thay must be pay a penality; the gods envolved ara Persephone, Dionysos and the Titans. This conclusion parallels the earlier contention that “titanic nature” is not interior to humans as

225

Quanto ao tempo de permanência no Hades, antes que a psykhé retornasse

para a luz do sol de cima: e0v to\n u3perqen a3lion kei/nwn e0na/tw| e1tei+, Larry J. Alderikin

(1981, p. 73.) considera que há no verso uma alusão ao período de oito anos197 de

banimento por crime de ofensa grave ou de assassinato.

Convém observar ainda que a ideia expressa nesse fragmento com a menção

ao sol de cima (e0v to\n u3perqen a3lion), lugar para o qual as psykhaí retornam, se

relaciona com outra noção apresentada no fragmento 129, no qual se atesta a

existência de um sol que brilha no mundo subterrâneo:

toi=sin la/mpei me\n me/nov a0eli/ou

ta\n e0qa/de nu/kta ka//tw,

foinikoro/doiv <d’> e9ni\ leimw/nessi proa/stion au0tw=n

kai\ liba/nwn skiara=n < >

kai\ xrusoka/rpoisin be/briqe <dendre/oiv>

kai\ toi\ me\n i3ppoiv gumnasi/oisi <te>

toi\ de\ pessoi=v

toi\ de\ formi/ggessi te/rpontai, para\ sfisin

eu0anqh\v a3pav te/qalen o1lbiov:

o0dma\ d’ e0rato\n kata\ xw=ron ki/dnatai

ai0ei\ .. qu/mata meignuntwn puri\ thlefanei=

<pantoi=a qew=n e0pi\ bemoi=v>

[ ] eoi moi=r’ e1nqa. [

[ ] dw/roiv bouqu. [

[ ] fan a1loxo/n [

part of their nature but resides in the divine word and is, thus, exterior to the human. Here, too, Persephone and Dionysos are not “in” humans but it is to Persephone that the penality is paid. In both cases, the human is subject to what is outside or other than thenselves. Second, there is a obvious indication that the body and soul are separable and a clear indication that the soul undergoes both a a judgment and journey, but whether there was a cultic practice underlying Pindar’s words is beyond the reach of our information, although Plato does make the suggestion. Third, the iniciatory pattern of the soul’s experience is clear, for the destiny of the soul is distant from its bodily existence: the soul have a existence beyond its body. Fourth, we have the Plato’s words that Pindar’ lines referred to many births of the soul, but nothing additional to the brief mantion, and no hint elsewere in the dialoge of this significance other than as a metaphorical way of speaking of anamnesis. Fifth, we have also found a partial resolution to the problem of the soul’s entrance to the body: a deed, a prior mans’ existence and performed by the gods, explaind for the orphics the present existence of man. And finaly, and perhaps the most importly is the clear statement that the “salvation” offered by the orphics included both Persephone’s acceptance of men and her “soteriological” interest in them.”. 197

Embora o pesquisador faça essa observação, não há menção alguma de dados que corroborem sua afirmação.

226

[ ] an:

[ ] pro\v [ 1O] lumpon [

Para eles brilha a força do sol

durante a noite aqui embaixo,

e há nos prados de rosas escarlates um assentamento deles

e de árvores de incenso sombrias < >

e está carregado de árvores de frutos dourados

e enquanto alguns se alegram com cavalos e ginástica,

outros se alegram com dados e outros, ainda,

com liras, entre eles

de tudo florido sempre florece feliz

e um odor amável se espalha pela região

†sempre que (eles) misturam no fogo que se vê de longe

todo tipo de oferendas nos altares dos deuses.

Frag. Bowra 114

O primeiro verso, toi=sin la/mpei me\n me/nov a0eli/ou (para eles brilha a força do sol)

introduz uma noção positiva da vida no Hades198, embora não haja referência explícita

sobre esse local que só pode ser inferido do advérbio ka/tw presente no segundo

verso, ta\n e0qa/de nu/kta ka//tw (durante a noite aqui em baixo). Essa concepção pode ser

interpretada como um distanciamento da ideia presente na épica segundo a qual, em

mais de um momento, ao morrer, a psykhé deixa a luz do sol e parte gemendo para o

mundo sombrio dos mortos. É conveniente perceber que, no fragmento 133, para

indicar que o homem renascerá, apresenta-se a imagem do sol como referência ao

status do homem que será enviado para a luz do sol199. Estar vivo é, pois poder gozar

da luz do sol.

Esse lugar onde o sol brilha durante a noite está destinado às pessoas piedosas,

ideia que , segundo Daniel A. Torres (2007, p. 362), reitera concepções apresentadas

pelo poeta na segunda parte da Olímpica II, ou seja, precisamente, a partir do verso

198

Koniaris (apud. Antonio Santamaría Alvarez, 2003. P. 176) observou que Píndaro apresentava a vida sobre a terra mais infeliz que a existência no Hades. 199

Confira as palavras de Erwin Rohde (1925, p. 3) sobre essa concepção.

227

56b ao verso 80, em que as concepções escatológicas apresentadas têm atraído o

interesse de vários pesquisadores:200.

[...] ei0 de/ nin e1xwn tiv oi]den to\ me/llon, 56

o3ti qano/ntwn me\n e0n-

qa/d’ au0tik’ a0pa/lamnoi fre/nev

poina\n e1teisan ta\ d’ e0n ta|=de Dio\v a0rxa|=

a0litra\ kata\ ga=v dika/zei tiv e0xqra=|

lo/gon fra/saiv a0na/gka|: 60

D' i1saiv d’ de\ nu/ktessin ai0ei/

i1saiv d’ a9me/raiv a1lion e1xontev, a0pone/steron

e0sloi\ de/kontai bi/oton, ou0 xqo/na ta-

ra/ssontev e0n xero\v a0kma|=

ou0de\ po/ntion u3dwr

keina\n para\ di/aitan, a0lla\ para\ me\n timi/oiv 65

qew=n oi3 e1xairon eu0orki/aiv

200 Como não se pretende uma abordagem de toda a ode, considerou-se mais adequado fazer uso das palavras de Antonio Santamaria (2003, p. 21) que introduz o tema com muita clareza: La Olímpica Segunda de Píndaro celebra, junto con la Tercera, la victoria de Terón en la carrera de cuadrigas o

carros de caballos () de los Juegos Olímpicos del año 476 a. C. (Olimpíada 76,4). Terón fue

tirano de Agrigento (la antigua 1Akragav) del 488 al 472, fecha de su muerte. Parece que éste se encontraba en Agrigento, celebrando lãs Teoxenias, cuando la victoria sucedió, según um escolio: a1gontov de\ Qh/rwnov th\n e9orth\n tw=n Dioskou/rwn kai\ 9Ele/nhv e0gge/lqh h9 ni/kh (sch. O. 3 p. 105, 14-8 Drachmann). Esto se explica porque el auriga no era el propio Terón, sino Nicómaco, que solía competir para el tirano y su hermano Jenócrates. En la Ístmica Segunda, que celebra una victoria de este último, se nombra a Nicómaco (sin duda por ser el auriga en tal competición) y se recuerdan los triunfos que logró en Atenas (para Jenócrates, vv. 18-22) y en Olimpia (para los hijos de Enesidamo, es decir, Jenócrates y Terón, vv. 23-9). Esta victoria en Olimpia tuvo que ser la del 476. Que Jenócrates participara también de este triunfo olímpico del 476 es inexacto, pues ya Píndaro (en O. 2, 48-9) dice que en Olimpia obtuvo el galardón Terón solo (au0to/v), y así lo señala el escolio a I. 2, 28b, confirmando que

Nicómaco fue auriga para Terón en tal ocasión (“los eleos acogieron entre ellos a Nicómaco” o3te Qh/rwni h9nio/xei ). No hay duda de que la oda se ejecutó en Agrigento y no en Olimpia, pues Píndaro No hay duda de que la oda se ejecutó en Agrigento y no en Olimpia, pues Píndaro habla de ésta en pasado y desde la lejanía: 0Olumpi/a| me\n ga\r au0to/v [sc. Qh/rwn] / ge/rav e1dekto -9). Parece ser que el poeta estuvo

presente en los Juegos Olímpicos del 476 a. C., pues vio la victoria de Agesidamo de Locros, como dice en O. 10, 99-105, y luego visito Sicilia (cfr. O. 1, 16-7; P. 1, 17-28; v. BOECKH 1821, 114). Si bien la

expresión de los vv. 90-2 “apuntando a Agrigento proclamaré mi palabra de honor” ( e0pi\ toi/ 0Akra/ganti tanu/saiv /au0da/somai e0nor/kion lo/gon), haría pensar que Píndaro se encontraba fuera de Agrigento, es

muy probable que se refiera al momento de la composición, no de la ejecución, y que, estando en Sicilia, acudiera a la celebración de Terón como un invitado privilegiado. PUECH (1949, 34) considera probable que Píndaro asistiera a su ejecución em Agrigento, pero admite la posibilidad de que fuera encargada y escrita de inmediato para ser ejecutada en Olimpia, por el comienzo y por los vv. 90-2. Sin embargo, esto parece del todo descartable, como se indicará a continuación.

228

a1dakrun ne/montai

ai0w=na, toi\ d’ a0proso/raton o0kxe/onti po/non.

o3soi d’ e1to/lmasan e0stri/v

e9kate/rwqi mei/natev a0po\ pa/mpan a0di/kwn e1xein

yuxa/n, e1teilan Dio\v o9do\n para\ Kro- / 70

nou tu/rsin: e1nqa maka/rwn

na=son w0keani/dev

au]rai peripne/oisin: a1nqema de\ xrousou= fle/gei,

ta\ me\n xerso/qen a0p’ a0glaw=n dendre/wn,

u3dwr d’ a1lla fe/rbei,

o3moisi tw=n Xe/rav anaple/konti kai\ stefa/nouv 75

boulai=v e0n o0rqai=v 9Rdama/nquov,

o2n path\r e1xei me/gav e9toi=mon au0tw=| pa/redron,

po/siv o9 pa/ntwn 9Re/av

u9pe/rtaton e0xoi/sav qro/non.

Phleu/v te kai\ Ka/dmouv e0n toi=sin a0le/gontai:

0Axille/a t’ e1neik’ e0pei\ Zhno\v h]tor

litai=v e1peise, ma/thr: 80

[...] se quem possui a riqueza conhece a as coisas

que virão,

pois, daqueles que morreram aqui

imediatamente os espíritos impotentes

pagam as faltas e os delitos cometidos nesse reino de Zeus

alguém os julga sob a terra,

declarando uma sentença com hostil necessidade. 60

Em noites sempre iguais

em dias iguais tendo a luz do sol, uma vida menos penosa

os nobres recebem, a terra e a água do mar não

revolvendo com a força de seus braços,

ao longo de uma existência vazia, mas junto aos

honrados 65

pelos deuses, enquanto aqueles que se alegram com a fidelidade

229

ao juramento

mantêm uma vida sem lágrimas,

os outros suportam um sofrimento que não se pode ver.

E todos quantos ousaram, por três vezes,

permanecendo em ambos os lados,

afastar completamente a alma de injustiças, 70

perfazem o caminho de Zeus até a

fortaleza de Cronos; lá, em volta da Ilha dos Bem-Aventurados,

sopram as brisas oceânicas; flores de ouro brilham,

enquanto umas da terra, oriundas das árvores luminosas,

outras a água as nutre;

dessas entrelaçam com grinaldas mãos e coroas,

sob as justas sentenças de Radamanto, 75

a quem o grande pai de todos tem como seu ilustre assistente,

o esposo de Reia,

a que ocupa o trono mais elevado.

Peleu e Cadmo são estimados entre eles.

E a mãe trouxe Aquiles, depois que,

com súplicas, persuadiu o coração de Zeus. 80

Olimp. II, 56b-80

A Olímpica II, pelo fato de conter uma elaborada visão da vida post-mortem,

entre os versos 56b e 80, conforme Frank J. Nisetich (1988, p. 1), é o poema de

Píndaro que mais tem suscitado investigação por parte de estudiosos201 interessados

principalmente nos elementos que seriam oriundos das religiões de mistérios.

A reflexão aqui proposta para a compreensão de aspectos da escatologia em

Olímpica II será norteada pela noção de que Píndaro não se referia ao destino final de

todos os homens, mas restringia-se ao de alguns poucos, concepção que evidencia o

201 Particularmente, para esse autor, interessa entender o poema em termos poéticos e religiosos, ou seja, como Píndaro concilia a concepção de fama imortal com a noção de vida imortal, pois, em sua opinião, esses dois aspectos estão intimamente relacionados, fato que deve ser observado a fim de evitar que o poema seja distorcido ao ser interpretado de maneira muito literal.

230

caráter aristocrático da poesia pindárica. Assim, a abordagem difere daquelas

propostas por alguns autores como, por exemplo, Daniel A. Torres e Antonio

Santamaría para os quais há no poema uma espécie de democratização do mundo dos

mortos, principalmente da Ilha dos Bem-aventurados.

Quanto à concepção aristocrática, o segundo verso da ode é bastante

esclarecedor “ti/na qeo/n, ti/n’ h3rwa, ti/na d’ a1ndra keladh/somen:” (“qual deus, qual

herói, qual homem cantaremos?”) porque contém uma pergunta retórica a fim de

despertar a atenção da audiência para a figura que será contemplada no canto. Vale

notar que o verbo kelade/w (keladh/somen), segundo Pierre Chantraine (p. 511), é um

denomintativo de ke/ladov cujos significados, ruído, som de pessoas lutando ou

disputando algo, som de gritos ou de uma lira, são registrados nos Poemas

Homéricos202 em contextos de alarido geral. No epinício pindárico, o emprego desse

termo parece evocar a noção de uma celebração203 que devia soar de forma mais

atrativa e ruidosa possível para a audiência. Essa é a noção que o verbo empregado

por Píndaro encerra, parecendo despertar os ouvintes não só para o tom solene do

poema, mas também a retumbância requerida pelo momento.

No terceiro verso, ao responder a pergunta proposta, destaca-se, primeiramente,

a figura de Zeus, o que parece ser uma referência à tradição poética anterior, ou seja, à

poesia homérica e à hesiódica. Convém notar que, em Teogonia, Zeus é exaltado

como a primeira divindade a ser cantada depois das Musas204: deu/teron au]te Zh=na,

qew=n Pate/r’ h0de\ kai\ a0ndrw=n (depois, de novo, Zeus, pai dos deuse e dos homens).

Em seguida, destaca-se na ode a figura de Héracles como aquele que instituiu os

Jogos Olímpicos.

Sobre Héracles, é conveniente observar que seu destino final é narrado em

Teogonia e em Odisseia,205 poemas em que se narra a imortalização do herói alçado à

condição de imortal passando a habitar o Olimpo entre os demais deuses, depois de

ter cumprido as tarefas que lhe foram impostas. Essa menção a Héracles parece

202

Confira o emprego desse termo e seus cognatos em Ilíada VI, 542; XVIII, 310 e XXIII, 869, e em Odisseia IX, 547 e XVIII, 402 e 530. 203

Convém notar que Hesíodo utiliza verbos diferentes para expressar formas de cantos, por exemplo, em Teogonia, no verso 1, encontra-se a0ei/dein e, no verso 33, u3mnein, ambos dirigidos às divindades. Nos Poemas Homéricos, o verbo a0ei/dein se refere aos feitos gloriosos dos heróis, como em Ilíada I, 1 e Odisseia VIII, 73. 204

Teogonia, 47. Embora a figura de Zeus não seja exaltada nos Poemas Homéricos, de forma direta, o Cronida é a dividadade responsável pelos grandes eventos cantados pelo aedo. Convém notar que os eventos narrados na Ilíada ocorreram por determinação do pai dos deuses de dos homens, conforme o

canto I, verso 5: Dio\v d’e0telei/to boulh/, (Cumpriu-se a determinação de Zeus,). 205

Confira as páginas 158-61 dessa tese.

231

preparar a audiência para a figura a ser cantada, Terão de Agrigento, deixando

entrever que o tirano, semelhante ao herói, também terá um destino diferenciado em

razão de seus feitos206.

De fato, dos versos 49 ao 55a de Olímpica II, menciona-se o feito heroico de

Terão e as vantagens advindas de sua vitória na quadriga e, em consequência, a partir

do verso 55b, qual será o destino post-mortem daqueles que procederam como o tirano

que não é citado diretamente, talvez porque, como observa Antonio Santamaría (2003,

p.172), o poeta julgasse inapropriado mencionar a morte do patrono no contexto da ode

celebrativa e considerasse “hybris” assegurar que Terão seria “salvo” e estaria entre

importantes heróis do passado, explicitamente, Cadmo, Peleu e Aquiles, o melhor dos

Aqueus.

O conteúdo escatológico de Olímpica II se inicia no verso 55b; ei0 de/ nin e1xwn tiv

oi]den to\ me/llon (se quem possui a riqueza conhece as coisas que virão) em que o

pronome nin refere-se ao termo plou=tov empregado no verso 52; o9 ma\n plou=tov

a0retai=v dedaidalme/nov (certamente a riqueza, adornada de virtudes) e indica que a

riqueza é o traço distintivo daquele que conhece as coisas que virão, restringindo,

desse modo, os benefícios advindos do conhecimento das concepções escatológicas a

alguns poucos privilegiados.

Nesse sentido, é pertinente observar que o termo plou=tov poderia estar sendo

empregado com a acepção de ma/karev que, na poesia homérica207, designa não

somente os deuses, mas os homens vivos que se distinguiam dos outros pela riqueza e

pelo poder e, na poesia hesiódica, refere-se aos homens da Raça de Prata que depois

de mortos são “u9poxqo/nioi ma/karev qnhtoi/” (bem-aventurados mortais subterrâneos).

Em Trabalhos e Dias, o termo é usado para qualificar o lugar para onde alguns heróis

da quarta Raça são levados vivos: e0n maka/rwn nh/soisi par’ 0Wkeano\n baqudi/nhn, (na

Ilha dos Bem-aventurados junto à fronteira do Oceano).

Para a oração que compreende a segunda metade do verso 55b de Olímpica II

(oi]den to\ me/llon) opta-se, nessa tese, pela tradução do termo to\ me/llon por “as coisas

que virão”, em detrimento da tradução conhece o futuro, conforme propõem alguns

tradutores como, por exemplo, Willian H. Race, Hugh Lloyd-Jones, Antonio

Santamaría Alvarez e Daniel A. Torres. A tradução proposta salienta que o termo 206 De fato, os versos seguintes que introduzem a figura de Terão refletem a concepção expressa no episódio das duas cidades narrado em Trabalhos e Dias, versos 225-37. A prosperidade da cidade e o bem-estar de seus cidadãos dependem da prática da justiça. 207

Confira as informações sobre o termo mákares nas página 179-187 dessa tese.

232

me/llon pode aludir às doutrinas escatológicas conhecidas somente pelos iniciados nas

religiões de mistérios que teriam uma existência post-mortem diferenciada daquela dos

demais homens, concepção já assinalada. Essa interpretação é corroborada pelo verso

seguinte iniciado pela conjunção o#ti que introduz a explicação sobre o conteúdo do

termo me/llon, isto é, a expiação post-mortem das faltas cometidas pelos espíritos

impotentes , a0pa/lamnoi fre/nev dos que morreram.

O sintagma a0pa/lamnoi fre/nev mereceu a atenção de Hugh Lloyd-Jones (1984,

p. 252) que, ao comentá-lo, afirmou que a maior parte dos pesquisadores o interpreta

em relação aos versos posteriores, a saber, aqueles referentes ao pagamento de

penalidade por faltas cometidas que são julgadas por alguém. Nota o autor que

aqueles que adotam esse posicionamento traduzem o termo a0pa/lamnoi por “wicked”

embora, em geral, concordem que esse não é o melhor significado e assinalem a

tradução “helpless” a mais adequada208. Para o autor o termo a0pa/lamnoi está

fundamentado em pala/mh ─ palavra considerada pelo referido estudioso, sinônimo de

a0mh/xanov, derivada de mhxanh/ ─ e não expressa a noção que a palavra “wicked”

transmite.

A fim de justificar sua interpretação, Hugh Lloyd-Jones utiliza, como exemplo,

uma passagem de outro poema de Píndaro, a saber, o verso 59 da Olímpica I que

celebra a vitória de Hierão em uma corrida de cavalos realizada em 476 a. C: “e1xei

d’a0pa/lamon bi/on tou=ton e0mpedo/moxqon” (e ele tem essa vida impotente de infindável

dor). De fato, nesse verso, o poeta utiliza a palavra com uma acepção que, de modo

algum, se aproxima do significado da palavra inglesa “wicked”.

O pesquisador comenta ainda, a argumentação de seus oponentes que utilizam

quatro passagens209 em que o termos a0pa/lamnon ou a0pa/lamna parecem significar

“wicked”. Hugh Lloyd-Jones lembra que nessas passagens esses termos se referem

sempre à “coisas” sendo equivalente a a0mh/xana, ou seja, coisas sobre as quais nada

pode ser feito. Na verdade, a objeção do autor é pertinente, pois, nos exemplos citados

por seus opositores, o significado do termo se distancia muito daquele empregado no

poema de Píndaro, ora ele indica um sofrimento inevitável, um trabalho inútil, ora um

ato estouvado. Esses usos, portanto, diferem daquele de Olímpica II em que

208

Optou-se por manter as palavras inglesas no texto porque há uma variedade de possibilidades de tradução em língua portuguesa e isso dificultaria a apreensão da argumentação de Hugh Lloyd-Jones. 209

As respectivas passagens são as seguintes: Eurípides, Ciclope 597-8; Sólon, fragm. 27, 11-12 West; Theognidea 279-82 e 481.

233

a0pa/lamnoi qualifica o substantivo espírito (fre/nev). Para Hugh Lloyd-Jones não é

possível reduzir o significado da forma ao de um adjetivo que denota simplesmente

uma coisa ruim.

A solução proposta por Hugh Lloyd-Jones (1984, p. 252) é ancorada na

interpretação de Erwin Rohde segundo o qual a psykhé do morto é considerada débil,

não dotada de força. Valendo-se dessa concepção, o pesquisador afirma que, na

morte, há um enfraquecimento das atividades mentais do homem, fre/nev (phrénes).

Para o estudioso210, a morte é, pois, a pena referida nos versos 58-9 da Olímpica II:

au0tik’ a0pa/lamnoi fre/nev/poina\n e1teisan (imediatamente, os espíritos impotentes

pagam as faltas). Assim, para Hugh Lloyd-Jones, se a pena consiste na morte, não há

motivos para considerar que a pena paga por aqueles que cometeram crimes e são

julgados sob a terra seja a mesma. 211

Essa interpretação de Hugh Lloyd-Jones difere daquela proposta por Antonio

Santamaría (2003, p. 172) que criticou os estudos de outros pesquisadores sobre a

Olímpica II argumentando que, embora esse poema tenha recebido muita atenção, a

maior parte dos estudos não ofereceram mais que paráfrases ou comentários

superficiais respaldados em dados existentes em alguns trenos. Para o pesquisador,

na melhor das hipóteses, tenta-se esclarecer algumas expressões e problemas

pontuais. Por esse motivo, Antonio Santamaría propõe uma interpretação que supra a

lacuna deixada pelos pesquisadores ao interpretarem o poema e212inicia (op. cit., p.

172) seu comentário sobre a escatologia em Olímpica II afirmando que o poeta,

basicamente, descreve o processo pelo qual a alma passa depois da morte e os

diferentes destinos que ela pode ter. Essa alusão, implicitamente, se referiria a Terão

que possuiria as qualidades necessárias para que seu destino post-mortem fosse

diferenciado: “o ser e0slo/v, o respeito aos juramentos, a prática da justiça, o bom

emprego das riquezas”.

210

Confira as palavras do autor:“The penalty consists in their minds becoming feeble, that is to say, in death. “Hugh Lloyd-Jones (1984, p. 252) 211

A opinião de Hugh Lloyd-Jones é que não há relação entre a pena a ser paga por todos (poi/na) e os delitos (a0lita/) que serão julgados. A pena referida deve ser paga por todo mortal e consiste na própria morte e no enfraquecimento da consciência da psykhé do morto. 212 Con la intención de subsanar las carencias e insuficiencias de la investigación, trataré de efectuar un análisis sistemático de la escatología expuesta en la Olímpica Segunda, basándome en las explicaciones y conclusiones de aspectos concretos contenidas en el comentario y en textos de similar naturaleza, especialmente de los fragmentos de lós Trenos 96 de Píndaro (concretamente los nn. 128d, 128e, 129-131a-130, 131b, 13397, 137), com el fin de clarificar muchos de los puntos oscuros o incompletos de la oda. (Antonio Santamaria, 2003, p. 172).

234

A concepção escatológica presente nos primeiros versos leva o autor a

questionar que motivo teria levado Píndaro a iniciar o tema, a partir do verso 56b,

refererindo-se à pena que deve ser paga pelas almas dos que morreram. Para o

pesquisador, essa afirmação do poeta deve ser entendida considerando os versos

precedentes em que se exalta o valor da riqueza, atributo possuído por Terão que, em

consequência, possui o conhecimento das coisas “futuras”. A referência ao tirano é

mais evidente porque, segundo o autor, Terão acreditava nas doutrinas de mistérios213.

Embora Antonio Santamaría tenha deixado claro que pretende oferecer uma

interpretação das concepções escatológicas presentes em Olímpica II, tendo em vista

suprir a carência de estudos mais sólidos sobre o tema, a reflexão desenvolvida por

ele, pelo menos quanto aos primeiros versos, limita-se a discutir, como se pode

observar, os significados dos termos poina/ e ti/nw concluindo que eles se referem a

uma ameaça:

A primeira frase é um aviso: "os culpados pagam", com termos monetários a pena: poina/ (o que significava no início "multa por crime de sangue"), e ti/nw, «remuneração». A riqueza desperdiçada vai acabar por ser uma fonte de dívidas que não pode ser paga, a não ser com punição no outro mundo. Portanto, essa espécie de ameaça atua como admoestação moral ao vencedor

olímpico (Antonio Santamaría, 2003, p. 173. Tradução nossa).

A interpretação que o autor faz dos versos posteriores difere da proposta por

Hugh Lloyd-Jones para o qual a pena referida no verso 58 é a morte e o

enfraquecimento da conciência da psykhé do morto, não havendo relação com os

delitos julgados no mundo subterrâneo conforme os versos subsequentes do poema.

Antonio Santamaría (op. cit. p. 174), por sua vez, considera que poina/ se harmoniza

com o termo religioso a0litra/, utilizado para designar os delitos julgados no mundo

subterrâneo, que, para o pesquisador, são [...] “as infrações religiosas (ofensas aos

deuses, transgressões rituais) e morais (injustiças, faltas contra os homens).”

As consequências desse julgamento, na opinião Antonio Santamaría, são o

prêmio para os nobres (e0sloi/) e para aqueles que se alegram com os juramentos

preservados (oi3tinev e1xairon eu0orki/aiv); e a condenação (a0proso/ratov po/non) para

213 Confira as palavras de Antonio Santamaria sobre a crença de Terão de Agrigento (2003, p. 173): Aún más, cree en doctrinas mistéricas, probablemente órficas, que prometían a los justos la bienaventuranza después de la vida terrena y, tras varias reencarnaciones, la bendición definitiva, en la IB. Por tanto, la unión de riqueza, virtudes y conocimiento debería ser la luz más auténtica para su vida: sabría qué conducta seguir, y, em concreto, en qué invertir sus posesiones para obtener la salvación.

235

os maus, indicados pelo sintagma toi\ d’ no verso 67. O autor conclui que ambos

recebem a recompensa no Hades.

A audiência do poeta, no momento da performance de Olímpica II, afirma

Antonio Santamaría (2003, p. 174), em razão de já ter sido mencionada a sorte dos

condenados no verso “toi\ d’ a0proso/raton o0kxe/onti po/non” (“e os outros suportam um

sofrimento que não se pode ver.”), teria diante de si duas expectativas: que o tema do

castigo fosse aprofundado nos versos seguintes pois a existência post-mortem

daqueles que tiveram um juízo favorável fora anteriormente detalhada ou que o poeta

iniciasse um novo tema. Píndaro, porém, rompe com essas expectativas e introduz

uma possibilidade existencial superior às anteriores, a Ilha dos Bem-aventurados, local

onde aqueles que praticaram a justiça levarão uma vida “ditosa”:

o3soi d’ e1to/lmasan e0stri/v

e9kate/rwqi mei/natev a0po\ pa/mpan a0di/kwn e1xein 70

yuxa/n, e1teilan Dio\v o9do\n para\ Kro- /

nou tu/rsin: e1nqa maka/rwn

na=son w0keani/dev

au]rai peripne/oisin: [...]

E todos quantos ousaram, por três vezes,

permanecendo em ambos os lados,

afastar completamente a alma de injustiças, 70

perfazem o caminho de Zeus até a

fortaleza de Cronos; lá, em volta da Ilha dos Bem-Aventurados,

sopram as brisas oceânicas; [...]

Para se alcançar essa alternativa, na opinião de Antonio Santamaría (2003, p.

174), é exigido um requisito moral-religioso, e aqueles que não possuíssem a0litra/ que

devessem ser expiadas, após o julgamento, receberiam a felicidade. Esses são os

bons, e0sloi/, que se mantiveram afastados das injustiças214. “A condição exigida para

ascender o máximo grau da glória, a vida eterna na IB215, é a abstenção da injustiça.”.

214

El papel de la justicia es central en el proceso escatológico, tanto en las almas de lós hombres como en los dioses que lo controlan. Las almas han de pasar por el juicio de um juez, seguramente configurado a imitación de los tribunales humanos, que determine la sentencia que merece la conducta

236

O autor observa (op. cit., 176), ainda, que há problemas quanto à interpretação

das diferentes alternativas de vida ditosa mencionadas no poema, ou seja, uma vida

menos penosa, isenta de sofrimento, sem a fadiga do trabalho e sem lágrimas aos que

se abstiveram das injustiças e guardaram os juramentos; e a vida feliz na Ilha dos Bem-

aventurados, também destinada aos justos. Questiona, então, o autor, se uma

alternativa precede a outra ou ambas seriam excludentes e simultâneas.

O pesquisador (2003, p.176) é de opinião que a primeira alternativa de vida post-

mortem transcorre, provavelmente no Hades e é retratada em termos negativos, ou

seja, a partir da descrição de como a existência não será: “não revolvem a terra com a

força dos braços nem a água do mar”. A única imagem positiva, na opinião do autor, é

a luz do sol. A vida na Ilha dos Bem-aventurados, ao contrário, é descrita como idílica

“de maneira plástica e literária”.

Antonio Santamaría afirma que na primeira a narrativa se incluem concepções

que eram correntes nas religiões de mistérios, enquanto na segunda, na existência na

Ilha dos Bem-aventurados, o poeta se utiliza de materiais oriundos da tradição poética

anterior, a fim de, intencionalmente, provocar ambiguidades, pois a presença de figuras

míticas na Ilha dos Bem-aventurados poderia levar à interpretação de que eles se

encontram ali por simples privilégio divino ou porque cumpriram o processo de

reencarnação necessário.

Embora faça observações pertinentes, Antonio Santamaría não chega a uma

solução. O teórico observa (op. cit., p. 177) apenas que, no poema, há muitas lacunas

sobre as alternativas de existência post-mortem, e talvez Píndaro as conhecesse e não

considerasse conveniente mencioná-las, como a questão da duração do tempo de vida

no Hades ou a indefinição do ciclo de reencarnação até que se alcançasse a “liberdade

final”, ou, em caso contrário, a possibilidade de uma condenação ao castigo eterno.

Acertadamente, Antonio Santamaría (op. cit., p. 174) afirma que a prática da

justiça tem um papel fundamental no processo escatológico que seria controlado pelos

deuses e que Píndaro utiliza materiais da poesia tradicional ao se referir às alternativas

existenciais post-mortem. Ao que parece, as ideias de destino final remontam à

tradição hesiódica mencionada anteriormente, especificamente o destino dos homens

terrena de éstas. La condición exigida para acceder AL máximo grado de gloria, la vida eterna en la IB, es la abstención de injusticias. El poeta parece estar proclamando la omnipotencia de la justicia de Zeus, que si no actúa en la tierra para castigar a los ofensores, lo hará en la otra vida (a través del juez), con lo que queda exonerado de cualquier acusación de arbitrariedad o inacción. (Antonio Santamaria, 2003, p. 174) 215

* Ilha dos Bem-aventurados

237

da cidade justa, passo em que se descreve a vida nesse local de modo semelhante à

passagem da Olímpica II, conforme se pode observar quando se comparam os versos

de ambos os poemas:

oi3de\ di/kav cei/noisi kai\ e0ndh/moisi didou=sin 225

i0qei/av kai\ mh\ ti parekbai/nousi dikai/ou,

toi=sin te/qhle po/liv, laoi\ d’ a0naqeu=si e0n au0th|=:

Ei0rh/nh d’ a0na\ gh=n kou=rotro/fov, ou0de/ pot’ au0toi=v

a0rgale/on po/lemon termai/retai eu0ru/opa Zeu/v:

ou0de/ pot’ i0qudi/kh|si met’ a0ndra/si limo\v o0pedei= 230

ou0d’ 1Ath, qali/h|v de\ memhlo/nta e1rga ne/montai.

toi=si fe/rei me\n gai=a polu\n bi/on, ou1resi de\ dru=v

a1krh me\n te fe/rei bala/nouv, me/ssh de\ melissav:

ei0ropo/koi d’ o1iev malloi=v katabebri/qasi:

tiktousin de\ gunai=kev e0oiko/ta te/kna goneu=si: 235

qa/llousin d’ a0gaqoi=sin diampere/v: ou0d’ e0pi\ nhw=n

ni/sontai, karpo\n de\ fe/rei zei/dwrov a1roura.

Aqueles que dão para o estrangeiro e para concidãos 225

retas sentenças e não se desviam do que é justo,

para eles a cidade floresce, e as pessoas nela prosperam;

e a Paz que nutre os jovens está na terra, e nunca para eles

Zeus de vasto olhar decreta a penosa guerra:

jamais a fome acompanha os homens de retas sentenças

nem a Fatalidade, eles repartem festas e frutos do trabalho.

Para eles a terra traz abundante alimento, e nas montanhas

o carvalho no alto produz bolotas e,no meio, as abelhas;

e as ovelhas lanosas se curvam com o peso dos velos;

as mulheres geram filhos semelhantes aos pais;

sem cessar florescem em bens, nunca sobre barcos

partem, a terra fértil produz o fruto.

Trabalhos e Dias 225-37

238

As linhas fundamentais na narrativa hesiódica, embora não verse sobre uma

passagem escatológica, encontram ressonância nos versos de Olímpica II, pois em

ambos os poemas a prática da justiça é condição indispensável para uma vida de

abundância, retribuição concedida por Zeus:

D' i1saiv d’ de\ nu/ktessin ai0ei/

i1saiv d’ a9me/raiv a1lion e1xontev, a0pone/steron

e0sloi\ de/kontai bi/oton, ou0 xqo/na ta-

ra/ssontev e0n xero\v a0kma|=

ou0de\ po/ntion u3dwr

keina\n para\ di/aitan, a0lla\ para\ me\n timi/oiv 65

qew=n oi3 e1xairon eu0orki/aiv

a1dakrun ne/montai

ai0w=na, [...]

Em noites sempre iguais

em dias iguais tendo a luz do sol, uma vida menos penosa

os nobres recebem, a terra e a água do mar não

revolvendo com a força de seus braços,

ao longo de uma existência vazia, mas junto aos

honrados 65

pelos deuses, enquanto aqueles que se alegram com a fidelidade

ao juramento

mantêm uma vida sem lágrimas,

Olímpica II, 63-6

Note-se que, em Olímpica II, os benefícios que, em Trabalhos e Dias, são

concedidos para a cidade justa são transferidos por Píndaro para o homem justo que

está no mundo dos mortos. Curiosamente, até a faina no mar é referida por Píndaro

que utiliza a expressão ou0de\ po/ntion u3dwr, (nem a água do mar), semelhante a ou0d’

e0pi nhw=n ni/sontai (nem navegam sobre o mar) expressa em Trabalhos em Dias.

Atividade marítima era um perigo para aqueles que se aventuravam a empreendê-la,

239

pois não havia garantia de sucesso. Além do perigo enfrentado no mar, os marinheiros,

constantemente eram visto como pessoas suspeitas de praticarem a pirataria216.

Apesar das semelhanças entre concepções existentes em Olímpica II e em

Trabalhos e Dias, convém observar um aspecto que surge como um problema na

interpretação dos referidos versos do poema pindárico em que se mencionam os dois

destinos post-mortem, principalmente no que diz respeito à condição em que o homem

chega à Ilha dos Bem-aventurados.

A Ilha dos Bem-aventurados, conforme o mito hesiódico, é um lugar destinado a

alguns homens da Raça dos Heróis que não conheceram a morte e passaram a habitar

ali vivos: Kai\ toi\ me\n nai/ousin a0khde/a a0khde/a qumo\n e1xontev / e0n maka/rwn nh/soisi par’

0Wkeano\n baqudi/nhn / o1lboi h3rwev, (E eles habitam com o coração sem sofrimento / na

Ilha dos Bem-aventurados, junto ao oceano de profundas correntes, felizes heróis,).

Nesse local, a vida transcorreria sem os sofrimentos e as mazelas comuns no mundo.

Os Campos Elísios, segundo a narrativa do destino de Menelau, indicado em

Odisseia, constituem outro local para onde um homem poderia ser levado a fim de

gozar de uma vida mais feliz e sem penúrias. Em ambos os exemplos, os habitantes

desses locais chegariam ali sem passar pelo fado da morte. Portanto, a rigor, não se

poderiam conceber os Campos Elísios ou a Ilha dos Bem-aventurados como uma

concepção escatológica semelhante a do Hades para onde todos os homens estavam

destinados, com exceção de alguns indivíduos singulares.

Em Olímpica II, Píndaro, fundamentado na tradição poética, utiliza uma imagem

conhecida da audiência, a Ilha dos Bem-aventurados (maka/rwn na=son); no entanto, há

uma mudança na concepção, pois o poeta tebano destina esse lugar aos mortos, ou

seja, às psykhai daqueles que se abstiveram da prática de injustiças durante três

existências sobre a superfície da terra. Nesse sentido, conforme Antonio Santamaría

(2006, p. 4), haveria um processo de democratização desse local outrora destinado

somente a alguns poucos privilegiados que habitariam ali por prerrogativa divina sem

que se levasse em conta qualquer outro critério. Essa noção seria, na opinião do autor,

a novidade mais “transcendente” na concepção de Ilha dos Bem-aventurados que

Píndaro apresenta, pois o requisito para se ingressar nesse local é claramente moral e

qualquer homem que o cumprisse poderia ser admitido nele.

216

Confira as palavras de Claude Mossé (1989, p. 127) sobre a desconfiança que pairava sobre quem exercia essa atividade.

240

Observa o autor (2006, p. 11) que nesse aspecto há uma conciliação coerente

do conceito tradicional com as doutrinas das religiões de mistérios. Porém, a fim de não

contradizer a tradição poética na qual a eleição divina era um critério, Píndaro, ao

introduzir o episódio da transferência de Aquiles para a Ilha dos Bem-aventurados,

deixa aberta a possibilidade da intervenção divina, pois o Pelida obtém esse privilégio

não por méritos próprios, mas por decisão de Zeus em atenção à solicitação de Tétis,

mãe do herói.

Nota-se, porém, que a interpretação dessa passagem da ode pindárica como

uma “democratização” da Ilha dos Bem-aventurados parece um tanto forçada quando

esses versos são relacionados com o fragmento Bowra127 em que se expressa a

concepção de que as psykhaí reencarnadas, ao retornarem para a luz do sol, depois de

expiadas as culpas, surgem sob a forma de reis ilustres e de homens que são

denominados heróis valorosos: a0ndidoi= yuxa\v pa/lin, e0k ta=n basilh=ev a0gauoi/ / h3roev a9

gnoi\ pro\v a0nqrw/pwn kale/ontai (as almas daqueles eleva novamente, delas crescerão

reis ilustres / serão chamandos heróis célebres entre os homens.). Cria-se, desse

modo, um ciclo, pois os homens possuíriam, nessa perspectiva de modo inato, as

características necessárias para assumir as formas mencionadas e,

consequentemente, já estariam predestinados a um post-mortem melhor. Não se pode

pensar, portanto, em democratização da Ilha dos Bem-aventurados.

Os versos de Olímpica II referentes à doutrina da reencarnação constituem um

problema cuja solução não parece possível porque não há no poema informação

alguma que possa ajudar na interpretação, principalmente, quanto à expressão e0stri/v

e9kate/roqi, sobre a qual, observa Antonio Santamaría (2003, p. 184), muitos estudiosos

dão interpretações diversas. Entre os pesquisadores que propuseram estudos sobre

esses versos, encontra-se Kurt Von Fritz cuja interpretação Antonio Santamaría rejeita

com veemência por considerá-la equivocada.

De fato, Kurt Von Fritz (1957, p. 85) aborda o tema, primeiramente, observando

as soluções propostas por H. S. Long que, tendo por base os estudos de Mommsen,

discute (apud Kurt Von Fritz, op. cit., p. 84) se a expressão e0stri/v e9kate/roqi significa:

três vezes nesse mundo e três vezes no outro; ou duas vezes nesse mundo e uma no

outro.

O autor é de opinião que H. S. Long adota a segunda alternativa, já proposta por

Mommsen, pois este acreditava que, em toda parte, a crença na imortalidade,

conforme a religião grega, se processava desse mundo para outro no qual a alma

241

passaria a habitar. A primeira alternativa implicaria considerar que a alma passaria

diretamente de sua última estadia no Hades para a Ilha dos Bem-aventurados.

Contra a interpretação de H. S Long, Kurt Von Fritz (op. cit., p. 85) argumenta

que, em primeiro lugar, a expressão e0stri/v e9kate/rwqi mei/natev dificilmente significaria

duas vezes aqui e uma lá, pois seu sentido é de três vezes em ambos os locais. Em

segundo lugar, para o autor, a quantidade de vezes, citada no verso, em todas as

superstições e crenças religiosas, é concebida como o número de ocasiões em que a

alma se devia mostrar digna antes de alcançar o status de felicidade eterna.

A objeção mais séria, na opinião do autor, é que em nenhum lugar há indicação

de que a alma pudesse receber algum mérito quando estivesse no Hades onde poderia

ser purificada pelos castigos em um processo no qual ela seria totalmente passiva.

Somente depois de completadas as punições, as almas teriam de provar, no mundo

dos vivos, único local onde elas podiam agir de fato, serem dignas de mérito.

A solução proposta por Kurt Von Fritz segue a mesma metodologia utilizada por

outros pesquisadores, ou seja, interpretar a passagem de Olímpica II relacionando-a

com alguns fragmentos da poesia pindárica, entre os quais o autor menciona o

fragmento 127, pois, em sua opinião, nele se expressa, claramente, que o processo de

reencarnação não começa no mundo dos vivos, mas no Hades com a purificação

porque, afinal de contas, uma ação de aflição tinha sido cometida em um lugar

indeterminado. Haveria, portanto, no Hades, uma existência sem especificação e,

qualquer que fosse sua natureza, ela não seria contada como uma das vezes em que a

alma se manteve afastada do mal.

Na verdade, a leitura que o pesquisador faz da passagem de Olímpica II,

fundamenta-se no fragmento Bowra 127, em Fédon e em fragmentos de textos de

Empédocles nos quais há referência à pré-existência da alma humana. Essa

concepção é estendida pelo autor ao poema de Píndaro. Assim, para ele, na expressão

e0stri/v e9kate/roqi estaria incluída uma existência prévia antes de qualquer contato com

esse mundo. Em resumo, para o pesquisador, a alma devia existir no Hades antes de

se encarnar na terra dos vivos, concepção baseada na aceitação da pré-existência da

alma humana.

Kurt Von Fritz conclui que, entre a pena “necessária”, mencionada no fragmento,

e a admissão na “morada final”, haveria de fato, três estadas no Hades e três nesse

mundo, e a passagem para a Ilha dos Bem-aventurados se processaria a partir do

mundo dos vivos, como naturalmente devia ocorrer.

242

Na opinião do autor (1957, p. 87), essa interpretação dos versos da Olímpica II é

vantajosa, pois, além de estar de acordo com as concepções do fragmento Bowra 127,

ela também tem uma relação mais estreita com as noções apresentadas por

passagens do diálogo de Platão, Fédron, e com fragmentos de Empédocles217. Nota o

autor (op. cit., p. 87) que, nesse diálogo, para Platão somente aqueles que se tornaram

verdadeiros filósofos retornariam depois de três mil anos, se de fato tivessem vivido

uma perfeita vida filosófica, ou seja, uma vida de perfeita justiça, três vezes

sucessivamente.

Essa referência à condição de três vidas na verdadeira filosofia ou perfeita

justiça, na opinião do autor, pode indicar que uma crença comum dera origem à noção

mencionada por Platão e por Píndaro, embora haja diferença entre a exposição que

ambos fazem, pois, para o filósofo, a alma retornaria ao mundo super-urânico e para o

poeta o destino seria a Ilha dos Bem-aventurados.

A mencionada diferença pode ser facilmente explicada, afirma Kurt Von Fritz

(1957, p. 87), porque, na verdade, enquanto a versão apresentada por Platão seria

uma adaptação da “doutrina” ─ segundo a qual a alma deveria passar por três estágios

antes de ser alçada ao status de bem-aventurança ─ a seu pensamento filosófico no

qual há a preocupação em explicar a relação entre o cosmos e o Mundo das Ideias.

Píndaro teria feito uma adaptação da mesma ideia a crenças populares.

A interpretação de Kurt Von Fritz, conforme se pôde observar, segue o mesmo

procedimento de outros autores que escreveram sobre o tema explicando os versos

pindáricos com noções existentes em outros textos. Essa atitude, porém, pode levar a

conclusões que talvez não correspondam realmente ao que o poeta tebano quis

transmitir ao escrever seu poema.

217 Confira as palavras do autor (1957, p. 87) ao se referir a Empédocles que apresenta a mesma concepção com algumas diferenças: For this reason it is difficult, if at all possible, to determine what kind of existence Pindar had in mind, when in frgt. 137 he spoke of a palaio\n pe/nqov for which Persephone has to accept atonement before the soul is allowed to return to the upper world to become incorporated in a king or a wise man. In Plato's dialogue it is quite logical that the soul, after having gone through many existences and in the intervals between them having stood trial in Hades, may return to the place from which it has come in the beginning. The same idea can be found in the fragments of Empedocles' poems, when, for instance in 31 B 155, 12 ff. (Diels) the poet says of himself that he is a fuga\v qeo/qen kai\ a0lh/thv nei/kei+ mainome/nw| pu/sinov and when earlier in the same fragment it is said that, if anyone of the demons commits a murder or another crime, he must wander for thirty thousand seasons far from the blessed, while in 31 B 149 it is said that at the end of their wanderings the souls become sooth-sayers, poets, and princes and then from there "shoot up afresh" as gods. In both cases the souls ultimately return to the place from which they have started and from which they have been driven in consequence of a failure or a guilt.

243

A tese proposta por Kurt Von Fritz, observa Antonio Santamaría (2003, p.184),

parece inadequada porque em sua opinião não há registros legados por autores

antigos que corroborem a noção de uma pré-existência da alma que transcorreria no

Hades como propõe Kurt Von Fritz. Platão e Empédocles, evocados pelo pesquisador

ao elaborar sua interpretação, na verdade, afirmam que a pré-existência acontecia no

mundo celeste junto aos deuses. Essas almas, em função de um grave delito cometido,

perderiam sua condição e se encarnariam em corpos passando a existir na terra. Não

há indicação de que elas passariam a existir no Hades como afirmou Kurt von Fritz.

Observa, ainda, Antonio Santamaría que, talvez por se tratar de uma crença

órfica sobre a origem do homem, a concepção de uma existência “celeste” concorria

com outra ideia tradicional, ou seja, que a culpa originária a ser expiada seria

consequência do assassinato de Dioniso-Zagreus pelos Titãs que, fulminados por

Zeus, a legaram aos homens. Píndaro, na opinião do autor, seguiria essa concepção

no fragmento 133. Para o estudioso, não há nada em Olímpica II ou nos trenos que

sustente a pré-existência da alma.

A concepção, deduzida do fragmento Bowra127, de que o homem herdara uma

culpa original, afirma Antonio Santamaría, é aceita por Kurt von Fritz segundo o qual a

expiação ocorreria no Hades antes da primeira existência sobre a terra.

A interpretação de que, no fragmento, haja alusão a uma primeira vida sobre a

terra é impossível para o crítico que, valendo-se do sintagma a0ndidoi= e de pa/lin,

afirma que eles não se referem à alma de todos os homens, mas somente à dos justos

que expiaram sua culpa e, por isso, retornariam à vida terrena como reis ilustres e

homens sábios. Portanto, está claro, no fragmento, que a última existência do homem

ocorre na terra.

A concepção da passagem direta da vida terrena para a Ilha dos Bem-

aventurados, como defendeu Kurt Von Fritz aplicada à passagem pindárica, também é

rejeitada por Antonio Santamaría (2003, p. 85) que afirma a necessidade de, depois da

vida terrena, passar-se para o Hades, a fim de que, após um julgamento, fosse

determinado qual seria o destino final da alma do morto.

Após apresentar suas objeções à interpretação de Kurt von Fritz, Antonio

Santamaría (op. cit., p. 185) conclui218 o seguinte sobre a expressão e0stri/v e9kate/roqi:

218 El alma sale del Hades y pasa a través del reino de Zeus, la Tierra, a la isla donde gobierna Crono, territorios que forman una tríada. En la oda se mencionan otros dos lugares dichosos, que a su vez, constituyen otra tríada con la IB: el Olimpo para Sémele y el fondo del Océano para Ino (con sus

244

“Por todas essas razões expostas, há de se concluir que o ciclo de seis vidas ou

“estadias” de que fala Píndaro, a primeira deve ser na terra e a última no Hades:”.

Na verdade, apesar das importantes observações de Antonio Santamaría sobre

a tese de Kurt Von Fritz, não há solução definitiva para a interpretação das concepções

escatológicas em Olímpica II, e os pesquisadores, mesmo usando metodologia

semelhante, qual seja, interpretar o poema valendo-se de concepções existentes em

outros textos antigos, apresentam teorias diferentes e, às vezes, conflitantes.

Talvez, ao citar os comentários de Wilamowitz e de Erwin Rohde, Kurt Von Fritz,

(1957, p. 88) se tenha colocado aberto a possíveis críticas à sua interpretação. Para o

autor, os estudiosos supracitados agiram acertadamente ao afirmarem que nos

poemas de Píndaro em que aspectos da escatologia são contemplados não há

noções consistentes sobre a vida no outro mundo porque o poeta teria combinado

livremente noções oriundas de várias fontes. Se essa afirmação for aceita como

verdadeira, as dificuldades na interpertação de Olímpica II, quanto às concepções

escatológicas, são mais compreensíveis.

respectivas jerarquías de dioses). Se situaría igualmente a medio camino de ambas y formando otra tríada: Olimpo IB Terra Mar Hades

245

7 CONCLUSÃO

A reflexão empreendia ao longo da pesquisa evidenciou que o tema da

escatologia na poesia grega arcaica, mormente nos Poemas Homéricos, gera

controvérsias entre os pesquisadores, e as teses propostas, de modo algum, podem

ser aceitas de modo conclusivo, tendência que, como se pode observar, predominou

desde os estudos publicados por Erwin Rohde e George E. Mylonas, autores que, sem

dúvidas, exerceram grande influência sobre as pesquisas posteriores acerca desse

tema. Esses estudiosos defenderam que, na poesia homérica, não existem concepções

escatológicas como a crença na vida post-mortem, na imortalidade da psykhé e,

consequentemente, a inexistência de culto aos mortos.

Apesar da importância dos estudos dos referidos autores, o desenvolvimento

das técnicas de arqueologia, antropologia, sociologia e das ciências da religião

permitiu que se recolocassem algumas questões sobre a escatologia na poesia grega

do período arcaico. Essas questões suscitaram respostas diversas daquelas

tradicionalmente aceitas em moldes quase dogmáticos como, por exemplo, a assertiva

de George E. Mylonas que negava a existência na crença de uma realidade post-

mortem entre os Micênicos que não mantinham com seus antepassados falecidos

algum tipo de relação de culto ou respeito.

Sobre as respostas dadas por Erwin Rohde acerca da relação entre os Poemas

Homéricos e algumas concepções como a manutenção da consciência da psykhé do

morto, a prática do culto aos mortos e sua motivação, verificou-se que elas não são

suficientes quando examinadas à luz dos versos homéricos.

As pesquisas arqueológicas mais recentes, como aquelas empreendidas por

Chrysanthi Gallou, evidenciaram que os Micênicos, ao contrário da tese de G. E

Mylonas, acreditavam na vida além da morte e cultuavam seus antepassados falecidos

prestando-lhes ofertas votivas regulares em visitas a seus túmulos, conforme as

evidências arqueológicas atestam.

Depois de esclarecer que os Micênicos possuíam uma prática cultual em relação

aos mortos, verificaram-se que algumas ações rituais daquele povo são descritas nos

Poemas Homéricos cuja composição data do século VIII a. C., isto é,

aproximadamente, quatro séculos após o colapso daquela civilização. A forma

empregada pelos Micênicos para se desfazer dos cadáveres, por exemplo, durante

muito tempo foi considerada irreconciliável com a prática descrita nas epopeias nas

246

quais há o predomínio da cremação, processo que alguns autores consideraram

desconhecido pelos Micênicos.

Sobre essse aspecto, conclui-se que não há incongruência quando se relaciona

as práticas da inumação e cremação com o mundo micênico e com os Poemas

Homéricos, pois estudos arqueológicos comprovam que ambos os processos eram

conhecidos e levados a cabo na maior parte da Hélade desde tempos mais remotos.

Seria, pois mais adequado falar da predominância de uma forma sobre outra em

determinados momentos históricos. Assim, nas epopeias, em que se menciona

explicitamente apenas a cremação, há indícios de que a inumação também fosse

praticada. Quanto à cremação, como Martin P. Nilsson já acenara no início do século

XX, os Micênicos a praticavam, conforme comprovam pesquisas modernas.

Práticas religiosas gregas do período micênico permitiram afirmar que há nos

Poemas Homéricos um legado tradicional transmitido de geração em geração, uma

herança que sofreu alterações motivadas pelos processos histórico-sociais inclusive

com possível influência de povos distintos que mantinham intercurso cultural ao longo

do Mediterrâneo.

As concepções escatológicas nos Poemas Homéricos apresentam-se bastante

homogêneas tanto em Ilíada quanto em Odisseia, poemas em que duas crenças

fundamentais foram constatadas: a noção de efemeridade humana, pois todo homem

deve morrer, e sua psykhé, com a morte e depois de receber os devidos ritos

funerários, fica encerrada no Hades para sempre; a psykhé do morto mantém sua

consciência mesmo depois de se tornar súdito do reino de Hades.

A aceitação dessa proposição é muito importante porque possibilita

compreender as motivações de ritos presentes nas epopeias como, por exemplo, as

preces dirigidas aos mortos e o sacrifício de animais oferecido por Odisseu em sua

visita ao mundo dos mortos. Esses atos careceriam de sentido se a psykhé fosse

considerada apenas um ente sem consciência que necessitaria do sangue das vítimas

sacrificadas para recobrar momentaneamente essa faculdade, tese tradicionalmente

defendida. Como se refletiu ao longo da pesquisa, já no mundo micênico tais rituais

podem ser constatados com base na análise de construções singulares encontradas

em alguns túmulos, construções identificadas como altares destinados a práticas

relacionadas com mortos.

Há nos Poemas Homéricos, portanto, sólidas noções sobre o destino post-

mortem dos homens, sua morada final e sobre as formas de manter com eles uma

247

relação cultual. A esse conjunto de noções denominou-se concepções escatológicas

homéricas cujas noções fundamentais seriam repetidas na tradição poética posterior.

Quanto à poesia de Hesíodo, não apresenta novidades em relação à

escatologia, pois a concepção expressa nos poemas hesiódicos, em especial em

Trabalhos e Dias, é de que o homem morre e vai para o Hades.

As linhas fundamentais de reflexão da escatologia hesiódica encontram-se no

Mito das Cinco Raças narrado em Trabalhos e Dias. Esse mito narra a geração e a

destruição das raças dos homens criados por Zeus, raças elencadas seguindo a ordem

de valorização dos metais. Aos homens da Raça de Ouro e de Prata, coube um destino

de divinização que os alçou à categoria de divindades, concepção inexistente nos

Poemas Homéricos. Os homens da Raça de Bronze, por outro lado, baixam à casa de

Hades onde, desconhecidos, se fundem em uma massa anônima.

Mereceu destaque o destino da Raça dos Heróis porque parte deles não

conhece a morte; são eles abduzidos e levados para a Ilha dos Bem-Aventurados onde

passam a ter uma existência muito semelhante àquela que os homens da Raça de

Ouro tinham antes da morte, ou seja, viviam com o coração isento de sofrimentos. A

outra parte dos heróis dessa raça morre simplesmente e, embora não se mencione seu

destino final, pode deduzir-se que ela tem como fim o Hades do mesmo modo que os

homens da Raça de Bronze.

Verificou-se que Hesíodo apresenta concepções que podem ser uma herança

homérica como, por exemplo, a concepção de um lugar destinado a uns poucos que se

assemelha ao do destino de Menelau descrito em Odisseia. A imortalização de

Héracles, apresentada no fragmento 25 West e em Teogonia, também pode ser outro

indício de uma provável herança de Homero, muito embora não seja possível afirmar

essa tese com segurança, tendo em vista que ambos os poetas poderiam estar

fazendo uso de uma tradição comum.

A poesia do período posterior, a poesia não hexamétrica, trouxe como grande

novidade, principalmente, as inovações de Píndaro que pela primeira vez, como se

pôde observar na análise do fragmento 116 Bowra, concebe a alma como imortal

conferindo-lhe uma origem divina. Essa concepção é completamente estranha às

noções anteriores tanto homéricas quanto hesiódicas e influenciou reflexões filosóficas

e religiosas posteriores.

Outra novidade transmitida pelo poeta tebano é a possibilidade de uma nova

existência após a morte para aqueles que agiram em conformidade com a justiça. Essa

248

concepção, assim como a noção da origem divina da alma, pode ser oriunda das

religiões de mistérios, principalmente o Pitagorismo e o Orfismo. A Ilha dos Bem-

aventurados é a habitação final para aquele que cumpriu as exigências para que tal

existência pudesse ser alcançada. No entanto, diferente da concepção hesiódica em

que o herói vivo, isto é, corpo e psykhé unidos, habitaria a ilha paradisíaca, nos versos

da Olímpica II, essa morada final seria destinada à alma liberta depois de sucessivas

reencarnações.

A concepção pindárica, porém, não significa que o poeta estivesse

democratizando a Ilha dos Bem-aventurados, pois Píndaro, aristocrata e cantor de

valores da aristocracia, reservava essa sorte somente a uns poucos.

As conclusões dessa pesquisa podem ser sumariadas da seguinte forma:

concepções escatológicas presentes na cultura ocidental remontam à cultura grega

antiga, mormente àquelas presentes na poesia homérica herdeira de conceitos do

período micênico. Concepções dos tempos de composição dos Poemas Homéricos se

fundem com noções micênicas mais antigas de modo que se torna muito difícil separá-

las. Assim, as ações relativas aos mortos descritas nas epopeias devem ser

interpretadas tendo como postulado que, desde o período micênico, havia a crença na

sobrevivência da psykhé que, nas epopeias, subsistia no Hades não como mera

sombra sem consciência, mas como um ente que mantinha essa faculdade. Tal noção

justifica as preces e algumas práticas concernentes aos mortos descritas em Ilíada e

Odisseia; por sua vez, a poesia hesiódica não apresentou grandes novidades em

relação ao tema a não ser a colocação dos homens das Raças de Ouro e de Prata na

categoria de seres divinos (dai/monev), fenômeno que não é conhecido na poesia épica.

A grande novidade seria introduzida por Píndaro que, pela primeira vez na literatura,

afirmou que o eídolon do homem, usado como sinônimo de psykhé, é imortal por causa

de sua origem divina. Essa concepção predominará no pensamento filosófico e

religioso das gerações futuras como se já comentou.

249

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