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Assembleia Nacional do CNLB – 07-10/06/2012 Tema: Concílio Vaticano II: Sinais dos Tempos e o Agir Cristão Objetivos: buscar o que nos reencanta como leigos e leigas a partir do Vaticano II; como as novas diretrizes da CNBB nos animam na caminhada. Assessoria: Eva Aparecida Rezende de Moraes – [email protected] (21) 9881-4102 PARTE I: O CONCÍLIO VATICANO II 1. Introdução Este ano – 2012 – foi proclamado pelo nosso Papa Bento XVI como o “Ano da Fé”, devido aos 50 anos do início do Concílio Vaticano II. Em 28 de outubro de 2008, pela Rádio Vaticano, a voz de nosso Papa Bento XVI já se fazia ouvir, saudando o Concílio Vaticano II que, segundo ele, foi um “extraordinário evento eclesial”, “nascido do coração de Deus”, por meio de uma intuição de João XXIII, e que teve, em João Paulo II, “um intérprete qualificado e uma testemunha coerente1 . Com essas palavras, Bento XVI saudou, na época, os participantes do Congresso Internacional, intitulado "Cristo-Igreja- Homem. O Vaticano II no pontificado de João Paulo II", organizado pela Pontifícia Faculdade Teológica "São Boaventura", de Roma. 1 Cf. http://www.catedralsaojose.org.br/catedral2011/noticias/6446-bento-xvi:-diretrizes-do-vaticano-ii- permanecem-atuais-para-a-igreja-e-o-homem-de-hoje.html .

Concílio Vaticano II: Sinais dos Tempos e o Agir Cristão

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Concílio Vaticano II: Sinais dos Tempos e o Agir Cristão

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Assembleia Nacional do CNLB – 07-10/06/2012 Tema: Concílio Vaticano II: Sinais dos Tempos e o Agir Cristão Objetivos: buscar o que nos reencanta como leigos e leigas a partir do Vaticano II; como as novas diretrizes da CNBB nos animam na caminhada.

Assessoria: Eva Aparecida Rezende de Moraes – [email protected] (21) 9881-4102

PARTE I: O CONCÍLIO VATICANO II

1. Introdução

Este ano – 2012 – foi proclamado pelo nosso Papa Bento XVI como o “Ano da Fé”, devido aos 50 anos do início do Concílio Vaticano II. Em 28 de outubro de 2008, pela Rádio Vaticano, a voz de nosso Papa Bento XVI já se fazia ouvir, saudando o Concílio Vaticano II que, segundo ele, foi um “extraordinário evento eclesial”, “nascido do coração de Deus”, por meio de uma intuição de João XXIII, e que teve, em João Paulo II, “um intérprete qualificado e uma testemunha coerente”1. Com essas palavras, Bento XVI saudou, na época, os participantes do Congresso Internacional, intitulado "Cristo-Igreja-Homem. O Vaticano II no pontificado de João Paulo II", organizado pela Pontifícia Faculdade Teológica "São Boaventura", de Roma.

1 Cf. http://www.catedralsaojose.org.br/catedral2011/noticias/6446-bento-xvi:-diretrizes-do-vaticano-ii-permanecem-atuais-para-a-igreja-e-o-homem-de-hoje.html .

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A afirmação segundo a qual o Vaticano II “nasceu do coração de Deus” dá a noção exata da importância que Bento XVI atribui a esse histórico encontro eclesial que, 50 anos atrás, foi a locomotiva do profundo processo de renovação da Igreja contemporânea. Esse processo ainda não se encerrou e se mostra inesgotável, pois continua apresentando “chaves de leitura atuais”, tanto para as instâncias eclesiais quanto para a sociedade de hoje. O Papa Bento XVI acrescentou, em sua mensagem, que, para o Papa Roncalli (João XXIII), o motivo fundamental para a convocação do Vaticano II foi tornar possível ao homem de hoje a salvação divina – perspectiva de fundo sobre a qual os padres conciliares trabalharam. Para Bento XVI, “os documentos conciliares não perderam a atualidade, com o passar dos anos”, mas, ao contrário, se revelam “particularmente pertinentes, em relação às novas instâncias da Igreja e da sociedade globalizada atual”; o papa ainda recorda que “todos nós somos realmente devedores desse extraordinário evento eclesial”. O papa Bento XVI terminou essa locução, dizendo que “a multiplicidade de heranças doutrinais que encontramos em suas constituições dogmáticas e em suas declarações e decretos nos estimula, ainda hoje, a aprofundar a Palavra do Senhor, para aplicá-la à atualidade da Igreja, tendo presente as numerosas exigências dos homens e das mulheres do mundo contemporâneo, que têm grande necessidade de conhecer e experimentar a luz da esperança cristã”. É bom sempre lembrar que Bento XVI – então teólogo Joseph Ratzinger – foi um dos artesãos que teceram o

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Concílio Vaticano II. É-nos difícil especificar quando começou este Concílio. Sabemos com detalhes sua abertura e sua realização, mas quando ele foi gestado2? Estudando os Concílios, percebemos que eles “brotam” da história, das questões da vida e, geralmente, das controvérsias. O Vaticano II nasceu de uma série de fatores, como veremos logo a seguir, e foi tecido por muitas mãos! São alguns dos seus “protagonistas”: de Bea, Ottaviani, Ruffini, Frings, Léger, Suenens, Lercaro, Liénart, Máximos IV, Montini, Larraín, Malula. Alguns de seus peritos foram: Tromp, Schillebeeckx, Congar, Ratzinger, Rahner, Daniélou. Quanto aos organizadores, podemos destacar: o jesuíta Gréco (artífice da unidade do episcopado africano) e Prignon... Mas o Concílio teve muitos “artesãos” anônimos: ele foi gestado pelo amadurecimento eclesiológico de muitas e brilhantes pessoas, envolvidas com o destino da Igreja! Uma das funções dos seus protagonistas foi serem a voz destas pessoas. No dia 20 de outubro, o Vaticano II aprovou e enviou uma mensagem ao mundo, primeiro fruto de debate do Concílio: “Voltamos sem cessar nossa atenção para todas as angústias que hoje afligem os homens; nossa preocupação, por isso, volta-se para os humildes, os mais pobres e mais fracos; a exemplo de Cristo, sentimos dó da multidão que sofre fome, miséria e ignorância; sem cessar, voltados para aqueles que, desprovidos das ajudas necessárias, ainda não chegaram a um modo digno de vida. Por esses motivos, ao desenvolver nossos trabalhos, teremos em grande consideração tudo o que diz respeito à

2 Cf. CONGAR, Y. M-J.; DUPUY, B. D. L’Épiscopat et l’Église Universelle. Paris. 1964. Principalmente Capítulo IV. P. 441-478.

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dignidade do homem e contribui para a verdadeira fraternidade dos povos”3. Não se sabia ao certo sobre o que seria o Concílio Vaticano II; muitos o sentiam como um risco e um possível desdobramento de pressões centrífugas; muitos estavam temerosos de que se tornasse um Concílio meramente cerimonial. Havia, portanto, grande expectativa, muito despreparo e pouca experiência, além do costume que os bispos tinham de, geralmente, delegar as causas maiores a Roma – nem os próprios núncios ou delegados com os quais o episcopado estava em contato tinham ideia clara do que seria o Vaticano II... Os bispos não tinham a experiência das Assembleias parlamentares da democracia ocidental e, além disso, no Concílio Vaticano I, as Congregações romanas submeteram o resultado dos votos dos membros à decisão do papa... Mas, para o papa João XXIII, o Concílio Vaticano II era o caminho para renovar a missão da Igreja, frente aos problemas do mundo e dos pobres e frente aos anelos de paz do mundo. Era necessário que a Igreja quisesse ser uma Igreja-para-o-mundo, na segunda metade do século XX: ao reconhecer a autonomia do temporal, afirmando um novo tipo de bispo e de papa, a Igreja queria ser a consciência evangélica do mundo e lhe oferecer seus serviços para ajudar a resolver seus problemas. Se a Igreja deve exercer, no mundo, sua função profética, lhe é preciso uma colaboração, desde a base – um magistério e uma teologia assim querem a

3 AS I/1. P. 230-232. Apud ALBERIGO, G. (direção); BEOZZO, J. O. (coordenador da edição brasileira). História do Concílio Vaticano II. Volume 2 (A formação da consciência conciliar – o primeiro período e a primeira intercessão – outubro de 1962 a setembro de 1963). Petrópolis. Editora Vozes. 2000. P. 62.

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cooperação de todo o povo de Deus; por isto, é lamentável o Decreto Ad Gentes (AG) nº 5, que coloca a missão da Igreja, primeiramente, sobre o corpo ou colégio dos bispos, presidido pelo sucessor de Pedro e, em segundo lugar, sobre toda a Igreja, ferindo a lógica profunda da eclesiologia da Constituição Dogmática Lumen Gentium (LG), que fala, primeiramente, do povo de Deus, e, depois, de cada tipo de membro! Por época do falecimento de João XXIII, a Igreja recebeu o novo papa: Paulo VI. Este participara tanto da preparação como do primeiro período conciliar. O novo papa possuía caráter e formação, longa experiência de serviço na Cúria Romana e uma viva preocupação de garantir o máximo consenso nas decisões que o Concílio buscava produzir. Nos primeiros cem dias do sucessor, o mundo ainda sentia uma profunda emoção pela morte de João XXIII, uma sensação de terem ficado órfãos. Paulo VI sentia este e outro peso: a continuidade do Concílio. Entre o primeiro e o segundo períodos, suas intervenções mais relevantes foram: a decisão de antepor, aos trabalhos da Assembleia e de suas Comissões, um órgão colegiado de direção (os “moderadores”), e a admissão de “‘auditores’ leigos”. Mas o novo papa enfrentava grandes expectativas: com que sentimentos os bispos retornariam a Roma? Como se portaria a continuação do Concílio, frente às mudanças no grande cenário mundial da época? Disporia, o Concílio, de um patrimônio de reflexão capaz de sustentar adequadamente uma formação conciliar? Para onde caminharia a Igreja?

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Em épocas tranquilas, a Igreja sentiu-se segura e recorreu a uma prova baseada no caráter ininterrupto e inalterável de sua Tradição4; em épocas modernas, este argumento perdeu sua força. Em momentos de transição, uma das posições da Igreja pode ser a de refugiar-se em si mesma ou voltar-se radicalmente às suas origens e assumir com resolução sua tarefa frente ao mundo. A Igreja do Concílio optou pela segunda postura. A consciência da Igreja comoveu-se ao encontrar-se em um mundo radicalmente transformado, que não era mais seu teto e seu solo: des-tetada e des-solada, a Igreja perguntou-se de seu firmamento e fundamento, o que é que a constitui e a diferencia, porque está no mundo e qual sua esperança. Ela re-descobriu o que é mutante através do permanente e a Tradição através da reforma. Tradição não é sinônimo de estagnação, mas abarca reforma, fidelidade e conversão, que não estão em contradição dentro da história do Espírito! Uma Igreja autêntica e genuína não se inquieta somente devido à agitação social à sua volta, mas leva esta inquietação em si mesma, por remeter-se ao Cristo e ao Espírito.

Além das dimensões missionária e escatológica, outro aspecto muito caro ao Vaticano II foi o horizonte ecumênico, no qual a comunidade-Igreja perde seu caráter particularista. O caminho do movimento ecumênico foi claro: do anátema ao diálogo, do diálogo à cooperação na práxis e, da cooperação ao concílio. O viver ecumênico de modo conciliar não significou ausência de conflitos, mas deixar-se aconselhar pelas outras igrejas.

4 Cf. MORAES, E. A R. Um líquido precioso em vaso de barro: a Trindade presente na Igreja. Tese de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 1999. P. 72s.

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Assim, o Vaticano II se distingue muito mais pelo novo espírito, que pelas novas explicitações da doutrina cristã5. O que foi especificamente novo foram: a atitude pastoral, ecumênica e missionária perante o mundo de hoje; o espírito de abertura a novos valores; a disposição em dialogar e até cooperar com os não católicos, os não cristãos e os não crentes; o clima de compreensão dos outros; a convicção de ser apenas o sinal, o instrumento ou o sacramento (= mysterium) do Senhor glorificado; o conhecimento de dever aparelhar-se para ser de fato o sacramento universal de salvação; a sua afirmação sobre os caminhos de salvação sobrenatural que só Deus conhece; a sua maior confiança na presença e na ação do Espírito Santo; o seu admirável cristocentrismo; a redescoberta da liturgia como principal meio de santificação; a ênfase com que busca uma vida cristã mais personalista e ao mesmo tempo comunitária que se realiza na caridade; o reconhecimento dos sinais dos tempos como manifestação da vontade de Deus; a consequente manifestação da vontade de Deus; a consequente valorização do existencial e das situações concretas; no seu novo conceito de unidade (que não é sinônimo de uniformidade) e catolicidade (que admite e deseja o pluralismo teológico, litúrgico, disciplinar e espiritual); a sua surpreendente humildade em reconhecer os próprios limites e sombras; o seu decidido propósito de renovar e purificar a face da Igreja; a sua intenção de identificar-se mais com Cristo e seu Evangelho; a sua maior compreensão da força da Palavra de Deus; a sua determinação para o serviço, sobretudo dos pobres e humildes; o abandono do juridicismo e do extrinsecismo; o seu comportamento menos triunfalista; o seu maior 5 Cf. Cf. MÖELLER, C. “O Fermento das Idéias na Elaboração da Constituição”. In: A Igreja do Vaticano II. Editora Vozes. 1965. P. 16-17.

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respeito à liberdade e aos direitos universais e inalienáveis do humano e da consciência reta; o seu reconhecimento de autonomias; a sua confiança no humano e em sua dignidade e seu senso de responsabilidade; o seu otimismo perante as realidades terrestres; a sua vontade de ajudar na construção da cidade temporal e no desenvolvimento dos povos; a sua disposição de desligar-se dos compromissos humanos; a sua renúncia ao fixismo e legalismo; a sua consciência de ser peregrina, essencialmente escatológica, sempre em marcha, inacabada, dinâmica, viva, colocada na história do presente, um mundo que passa, entre criaturas que gemem e sofrem, até que Ele volte... Por ser menos inibida e formalista, a Igreja do Vaticano II se tornou, na verdade, mais rica e espontânea, mais humana e cristã e, por ser menos legalista e juridicista (o que, evidentemente, não impede a existência de leis necessárias e estruturas), sobretudo por ser menos minuciosamente determinada e organizada, ela pode ser mais sinal e instrumento vivo do Espírito Santo6. As excessivas determinação e organização correm sempre o perigo de não deixar suficiente lugar ao Espírito Santo: o homem, mesmo o cristão, até o Papa, pode extinguir o Espírito – tudo irá bem, “contanto que os [hierarcas] se deixem instruir pelo Espírito de Cristo que os vivifica e guia” (PO 12c/1183). Para a Igreja cumprir sua missão, ela necessita, a todo momento, perscrutar os sinais dos tempos (GS 4a/205; 11a/232; 44b/340). [Apenas] Neste sentido, a Igreja (suas verdades e suas práticas) é, necessariamente, relativa e mutável – sem isto, ela não estaria em condições de cumprir sua missão pastoral, que é a mais importante. Houve, no Concílio, notável 6 Cf. ibidem. P. 18.

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transposição de acentos – entretanto, mudança de acento não significa nem implica alteração na doutrina: o acento é acidental, mas é precisamente o acidente que dá o colorido e o estilo.

2. O Concílio Vaticano II Não é possível entender o impacto e a novidade avassaladora que foi o Concílio Vaticano II, se não nos detivermos em seu pré-texto e con-texto. É o que buscaremos mostrar nesse primeiro item de reflexão.

2.1 – Pré-texto O Concílio Vaticano II encerrou a longa etapa da Contra-reforma e da neocristandade7. Esse período se caracterizou por um modelo de Igreja que prevaleceu durante os séculos que se seguiram e que ficou conhecido como “a Igreja da Contra-reforma”8. Ele valorizava a necessidade de se salvar a alma e evitar a condenação eterna, sendo o principal caminho para tal objetivo a prática sacramental. Além dos sacramentos, exigia-se, do fiel, professar e obedecer a doutrina da fé e da moral ensinada pelo magistério da Igreja. A identidade da Igreja se moldava pelo modelo de São Roberto Bellarmino

7 Cf. LIBÂNIO, João Batista. In: http://www.jblibanio.com.br/modules/mastop_publish/?tac=102. Texto publicado, inicialmente, pela Unisinos, em 2005. 8 O autor J. Delumeau nos ajuda a compreender essa figura de Igreja surgida depois da Reforma Protestante: ele considera um mito a ideia de uma massa cristã essencialmente rural na Idade Média; segundo ele, havia um grupo bem evangelizado de cristãos. O povo professava uma religiosidade voltada para as realidades deste mundo, por meio das devoções, promessas e ritos, mas voltados para resolver os problemas imediatos da vida cotidiana. Cf. DELUMEAU, J. Le catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris: Presses Universitaires de France. 1971. P. 5. Apud ibidem.

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(1542-1621): o de uma Igreja como comunidade dos homens reunidos mediante a profissão da verdadeira fé, a comunhão dos mesmos sacramentos, sob o governo dos legítimos pastores, e, principalmente, do único vigário de Cristo sobre a terra, o Romano Pontífice. Não se exige nenhuma virtude interior: basta professar exteriormente a fé e participar visivelmente dos sacramentos... Enquanto a Igreja Católica reforçava mais e mais essa visibilidade sacramental, as Igrejas saídas da Reforma insistiam na fé fiducial (sola fide), na graça imputada (sola gratia) e no livre exame da Escritura (sola scriptura). Ao defrontar-se com a modernidade, a Igreja Católica acentuou ainda mais a visibilidade sacramental, a ortodoxia das verdades de fé e da moral, e a obediência à hierarquia em oposição à autonomia da razão científica e à liberdade dos sujeitos, tão afirmadas pela cultura moderna9. A teologia que embasava esse modelo eclesiológico nutria a obsessão das definições essenciais para exprimir a substância mesma das coisas, das verdades, da fé, do dogma – chamada de teologia dogmatista por Cl. Geffré. As respostas já vinham prontas dos catecismos e manuais, que permaneceram intocados durante séculos, visto que as modificações não afetavam realmente o conteúdo. Subjazia, a essa teologia, uma posição dualista da realidade humana: natureza/graça, ou, natural/sobrenatural... Este era o contexto eclesiástico principal que prevalecia na Igreja. No Concílio Vaticano I, foram firmadas as definições do Primado e da Infalibilidade do Magistério Pontifício, concentrando mais e mais a compreensão de 9 Cf. LIBÂNIO, João Batista. In: http://www.jblibanio.com.br/modules/mastop_publish/?tac=102.

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Igreja na pessoa do Papa. Muitos pensaram, por época do anúncio do Concílio Vaticano II, que este seria unicamente para reafirmar as verdades de Trento e do Vaticano I e denunciar os erros surgidos na modernidade mais recente. Fatores externos e internos da Igreja provocaram o desmoronamento dessa concepção de Igreja, abrindo o espaço para a novidade do Concílio Vaticano II... Assim, nas primeiras décadas do século XX, a Igreja se apresentava como uma sociedade organizada, constituída pelo exercício de poderes investidos no papa, nos bispos e nos sacerdotes – a eclesiologia consistia, quase que exclusivamente, em um tratado de direito público10. Yves Congar criou, em 1930, a palavra “hierarquiologia” para referir-se a esse modelo de Igreja; mas a Tradição católica nos dava outra ideia de Igreja: uma Tradição mais antiga e mais profunda que os esquemas jurídicos e puramente hierarquiológicos que prevaleceram na polêmica anticonciliarista, depois antiprotestante, na restauração da época de Gregório XVI e de Pio IX, e nos manuais apologéticos modernos... Portanto, esperava-se que o aggiornamento proposto pelo Concílio Vaticano II apresentasse um modo de ser, de falar e de se comprometer que respondesse às exigências de um pleno serviço evangélico do mundo.

2.2 – Con-texto Por volta do fim da guerra de 1939-1945 e no imediato pós-guerra, a necessidade da reforma na Igreja tomou uma magnitude e uma urgência novas: foi uma “explosão” de 10 Cf. CONGAR, Yves. Ministères et Communion Ecclésiale, ob. cit. P. 10-11.

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reformismo11. O movimento litúrgico, por exemplo, não teria sido o que ele foi se não tivesse sido precedido pelo esforço dos pesquisadores; o mesmo com o movimento apostólico; a própria eclesiologia, que nada mais é do que o prolongamento ou a aplicação da pastoral... Em 1962-1963, eram exigências imperiosas para a Igreja: superar a antropologia da Escolástica, reintegrar a pneumatologia na concepção da Igreja, ir além da problemática Igreja-Estado e promover a unidade dos cristãos (sem uniformismos nem “retornos”)12. A ideia de Corpo místico (a qual muitos Padres do Concílio Vaticano I haviam preterido à ideia de sociedade) foi uma alegre redescoberta: apareceram, nos anos de 1920-1925, mais artigos sobre o Corpo místico do que nos vinte anos precedentes! Assim, este recentramento sobre o Cristo e o mistério cristão, alimentado pelo movimento litúrgico, seduzia! Algo somente explicado pelo novo contexto, uma reação ao estado anterior de coisas, quando o papa Pio X escrevera: “Somente na hierarquia residem o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros para o fim da sociedade. Quanto à multidão, ela não possui outro direito que aquele de se deixar conduzir e, docilmente, seguir seus pastores”13. No entanto, no pós-guerra dos anos 46-47, os leigos e as leigas não eram mais vistos assim: a questão do estatuto e do papel dos leigos na Igreja se impôs de uma maneira inteiramente nova14.

11 Cf. idem. Vraie et fausse reforme dans l’Église, ob. cit. P. 28; 9-12; 44-45. 12 Cf. ALBERIGO, G. (direção); BEOZZO, J. O. (coordenador da edição brasileira). História do Concílio Vaticano II, ob. Cit.. P. 516-519. 13 Encíclica Vehementer Nos, de 11/2/1906. ASS 39 (1906). Apud CONGAR, Yves. Ministères et Communion Ecclésiale. P. 12. 14 Cf. CONGAR, Yves. « Sacerdoce et laïcat dans l’Église ». In : Vie Intellectuelle 14 91946). P. 6-39 e em Masses Ouvrières 18 (1946). P. 19-56. Idem. I »Pour une théologie du laïcat ». In : Études, janeiro 1948, p. 42-54, e fevereiro 1948, p. 194-218. Apud ibidem. P. 13.

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Sinais preconizadores do Vaticano II foram, principalmente: a ultrapassagem de uma eclesiologia “hierarqueológica” e do juridicismo; o primado dado à ontologia da graça; o batismo, em conexão com as situações do Povo de Deus na sociedade e na Igreja; a concepção apostólica do sacerdote; o lugar da Palavra e da catequese; o reconhecimento dos carismas e dos ministérios. Não se discutia o adaptar, mas reformular as realidades cristãs, em resposta à contestação de um mundo do qual o homem se sentia o centro15. O Vaticano II foi movido pelos sinais do seu tempo... A Europa terminou a Segunda Guerra em ruínas materiais e espirituais, ainda sob o impacto dos inomináveis crimes cometidos pelo nazifascismo; surge uma crise de valores, de credibilidade, de verdade, de ética; início de um processo de reerguimento econômico jamais visto, principalmente com uma nova industrialização; triunfo da economia de mercado; por outro lado, pressão dos movimentos sociais e da Doutrina Social da Igreja; entre outros sintomas16... Convívio nebuloso de duas realidades paradoxais: de um lado, o abismo de miséria física e moral e, do outro, uma euforia de natureza materialista, de confiança no modelo econômico americano e na sua cultura, marcada por um regime democrático de separação Igreja/Estado. Aprofunda-se a descolonização na África e na Ásia: o Terceiro Mundo ascendia, reinando um clima libertário... Os sinais assinalavam que a modernidade se impunha fora do ambiente eclesiástico com força crescente: quatro sinais dos tempos da cultura moderna foram decisivos para 15 Cf. idem. Introdução ao Mistério da Igreja. P. 44. 16 Cf. LIBÂNIO, João Batista. In: http://www.jblibanio.com.br/modules/mastop_publish/?tac=102.

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modificar profundamente o contexto envolvente do Concílio. O primeiro forte sinal da modernidade, segundo João Batista Libânio, foram as ciências modernas, que desfizeram a imagem do mundo antigo – que já começara a desmoronar em séculos passados, com Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1642-1727)17. No período próximo do Vaticano II, circulavam as teorias darwinianas do evolucionismo, apresentando um ser humano que se originava de ondas evolutivas, fato corroborado por diversas descobertas científicas. O segundo sinal se deu com a emergência da subjetividade: a tomada de consciência, por parte do sujeito moderno, de sua liberdade, autenticidade e autonomia. Este sinal era bem forte, se posto em contraste com a situação anterior do ser humano frente à história: a de dependência das forças da natureza, das tradições familiares, religiosas e culturais. O ser humano da segunda metade do século XX as fazia, agora, passar pelo crivo de sua própria experiência; verdades e valores que, antes, se impunham pela força da autoridade e das tradições, passavam a ser questionados pelas pessoas. O terceiro sinal foi a relativização dos conhecimentos, através do uso da metodologia histórica, que quebrou a rigidez escolástica; e, finalmente, um quarto sinal vinha da 2a Ilustração, que levantara a suspeita de alienação no agir das Igrejas, através da teoria marxista e sua categoria da “práxis”. Na Europa, antes do Vaticano II, começara a se gestar um pensamento crítico contra posições ideológicas conservadoras dos cristãos no campo da política – um dos fatores do surgimento de uma secularização das instâncias religiosas. 17 Cf. GUSDORF, G. A agonia da nossa civilização. São Paulo: Convívio. 1978. P. 32s. Apud ibidem.

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Desde o século XIX e, sobretudo, na primeira metade do século XX, explodiu, dentro da Igreja católica, uma série de movimentos que carregavam dentro de si essas e outras demandas. Frente a elas, ainda segundo João Batista Libânio, duas reações atravessavam a Igreja, no final da década de 50: uma nítida resistência aos embates da modernidade e um penetrar dela na Igreja pela via dos movimentos de renovação, que brotavam nos diversos campos da vida eclesial (especialmente, o movimento bíblico18, o movimento litúrgico19, o movimento ecumênico20, o movimento dos leigos21, o movimento teológico22 e o movimento social23). O Concílio Vaticano

18 Pio X aprovou medidas restritas nas investigações bíblicas, por meio de Declarações da Comissão Bíblica de Roma (DS 3505-3528), mas fundou o Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, que se entregou a investigações sérias no campo bíblico, trazendo avanços na compreensão da inspiração, da inerrância na Escritura, da redação dos livros bíblicos. Pio XII apoiou os trabalhos corajosos de exegetas do Pontifício Instituto Bíblico, que usavam métodos modernos. Cf. ibidem. 19 Ressaltava as reivindicações modernas da existencialidade (celebrações não distantes das experiências das pessoas), compreensibilidade do que se celebra e participação (subjetiva e intersubjetiva). Cf. ibidem. 20 O modelo tridentino, que abrira um embate com a Reforma e com a modernidade, era alimentado pelo espírito apologético. No início, a Igreja trabalhou com a imagem de ser ela o redil, que acolheria de volta as ovelhas que a Reforma afastou, mas o movimento ecumênico exigiu um espírito de diálogo e de respeito à verdade do outro. Cf. ibidem. 21 O modelo tridentino reforçava a estrutura clerical; diante dele, se afastaram da Igreja aqueles leigos que já não conseguiam articular os ensinamentos dogmáticos e morais oficiais com a sua mentalidade moderna; principalmente dois grupos se afastaram: o mundo operário e as classes ilustradas. Outros leigos permaneceram no interior da Igreja, seja por submissão, seja por uma profunda fé que não lhes permitiu se afastarem da Igreja. Um terceiro grupo – principalmente de operários e ilustrados liberais – constituiu movimentos de leigos, que buscavam o difícil equilíbrio entre a fidelidade e a crítica. A Ação Católica da década de 50 e 60 foi uma bela página dessa história. Neste contexto, emergiu a extraordinária figura do sacerdote belga J. Cardijn (1882-1967), que intuíra a importância de viver a fé inserida no próprio meio. A Ação Católica preparava o jovem para manter a dupla fidelidade à fé e o fazia evangelizador de seus companheiros jovens; os “padres operários” serviram de ponte para a modernidade operária e a Igreja. A Ação Católica formou um leigo autônomo, crítico, com iniciativas. O movimento leigo teve um reforço na teologia do laicato de Yves Congar e à influência de J. Maritain e E. Mounier. Cf. ibidem. 22 A teologia se confrontou com a modernidade. As primeiras tentativas de aproximação com o pensamento moderno aconteceram no século XIX, por meio da Escola de Tubinga. O movimento que mais marcou o contexto teológico anterior ao Concílio, chamou-se “Nova Teologia”, cuja plataforma de ação foi lançada por Jean Daniélou (cf. J. Daniélou. “Les orientations présentes de la pensée religieuse”. In: Études 249, 1946). No campo teológico, eram exigências da modernidade: a dimensão de sujeito, as experiências do homem moderno, a ciência, a história, a literatura, a filosofia e uma compreensão global da existência. Essa nova teologia usou os métodos crítico-históricos na interpretação da Escritura; valorizou, na concepção de Igreja, as dimensões de mistério, de comunidade e de participação; olhava as realidades terrestres com olhar otimista, percebendo nelas a presença e ação de Deus; buscava uma compreensão integrada das dimensões natural e sobrenatural; defendia uma intelecção processual e histórica das verdades de fé, em oposição ao fixismo e formalismo da letra; dialogou com a concepção evolucionista de Teilhard de Chardin; entre outras. Mesmo que uma intervenção romana lhe tenha bloqueado o avanço explícito, já estavam aí os germes do que o Concilio assumiria. Cf. ibidem.

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II não fugiu dos desafios trazidos pelos sinais de seu tempo: assumiu reinterpretar verdades de fé no novo horizonte das ciências modernas e rompeu com a concepção estática das formulações das verdades dogmáticas e morais.

2.3 – Desenvolvimento Pelo relato dos especialistas, percebemos o quanto o Concílio Vaticano II precisou ser construído! E há muitos eclesiólogos que analisam os fatos do Concílio Vaticano II; escolhemos João Batista Libânio24, que apresenta alguns fatores que foram decisivos para o sucesso do Concílio. Primeiramente, a personalidade do Papa João XXIII, não simplesmente pelo fato de ele ter convocado o Concílio, mas pelo clima que ele criou na Igreja em torno da convocação. A morte de seu antecessor, Pio XII, deixara enorme vazio, frente a um enorme desafio: o embate da cultura moderna a impor-se e a tradição tridentina resistindo. A Igreja do final do pontificado de Pio XII mostrava-se cansada, devido ao duro embate entre a defesa da verdade dogmática, moral e disciplina, e os ataques da modernidade. Para sucedê-lo, o colégio cardinalício escolheu um ancião de 77 anos, para oferecer à Igreja um tempo de transição e João XXIII parecia responder às expectativas para esse tempo de passagem; era um homem sábio, que tinha enfrentado situações

23 O Papa Leão XIII é considerado o pai da Doutrina Social da Igreja na sua forma atual, principalmente com sua Encíclica Rerum novarum (1891). Os Papas Pio XI e Pio XII continuaram a caminhada; depois, a Igreja se defrontou com os problemas da modernidade econômica, política e social. Cf. ibidem. 24 Cf. LIBÂNIO, João Batista. In: http://www.jblibanio.com.br/modules/mastop_publish/?tac=102. Texto publicado, inicialmente, pela Unisinos, em 2005.

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delicadas no tempo da guerra e pós-guerra, com enorme prudência e sagacidade. Tudo parecia muito previsto, mas o Espírito suscitou uma imprevisibilidade: geralmente, depois de um grande Papa, o seu sucessor corre o risco de ficar preso à sua sombra, mas não foi assim com João XXIII. Ele não buscou substituir Pio XII, nem lhe seguiu o modo de governar a Igreja: João XXIII apresentou uma maneira simples, humana e direta de viver e, com originalidade, decidiu-se pelo Concílio Vaticano II. O beato João XXIII unia sua enorme capacidade de discernimento, de sabedoria e de sagacidade à sua humildade corajosa; era muito tranquilo, revelava sadia psicologia, apoiada em piedosa e devota confiança em Deus. Foi um Papa ousado, com um conjunto humano de virtudes muito rico: simplicidade, sabedoria, experiência plural, sagacidade, tranquilidade,..., frutos de profunda fé e confiança em Deus. Desde o início, mostrou enorme interesse ecumênico; olhava o mundo de sua época e perscrutava os sinais dos tempos, para entender neles o significado do agir de Deus. Para ele, a comunhão nos ideais humanos e cristãos pesavam muito mais do que as divergências dogmáticas e políticas – por exemplo, é surpreendente sua abertura para o mundo comunista: pela primeira vez, depois da Revolução de 1917, os soviéticos batiam à porta do Papa e a encontraram aberta, e, nela, um papa com enorme sensibilidade humana. João XXIII tomou algumas decisões que construíram o ambiente de abertura do Concílio: criou, em 1960, o Secretariado para a União dos Cristãos; impulsionou a abertura à modernidade social, política e econômica, por meio das duas luminosas encíclicas Mater et magistra

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(1961) e Pacem in terris (1963); diante das tensões, das correntes opostas, das forças antagônicas, que atravessavam toda a Igreja, renunciou tomar posição a partir unicamente do centro romano e convocou o Concílio. No Vaticano II, se deu o embate de duas visões de realidade, dois paradigmas, que penetravam as estruturas da Igreja, o conteúdo dogmático do magistério, o comportamento dos hierarcas, as práticas religiosas do cristão comum, o agir moral e a disciplina eclesiástica. Pio XII abriu algumas janelas para a modernidade, mas as que ele queria; João XXIII usou outra pedagogia, ao permitir que toda a Igreja participasse – noutras palavras, o conteúdo e a forma de proceder de João XXIII foram modernos. Com olhos do final do pontificado de Pio XII, a convocação de um Concílio era improvável e mesmo imprevisível. Depois das definições do Primado e do magistério infalível do Romano Pontífice, promulgadas pelo Concílio Vaticano I, julgava-se que o Papa e seus auxiliares imediatos poderiam resolver os problemas da Igreja universal. Mas, ao encerrar a Semana da Unidade, a 25 de janeiro de 1959, diante de cardeais da Cúria, João XXIII anunciou o desejo de convocar um Concílio. A repercussão foi paradoxal: na publicidade, choveram vozes entusiastas, mas, nos bastidores, ouviam-se opiniões temerosas25. Os temores vinham tanto dos conservadores como dos progressistas: os primeiros temiam que a tranquila ordem da Igreja fosse abalada e, os 25 SOUZA, N. “Contexto e desenvolvimento histórico do Concílio Vaticano II”. In: GONÇALVES, P. S. Lopes; BOMBONATTO, V. I. (org.). Concílio Vaticano II. Análise e prospectivas. São Paulo: Paulinas. 2004. P. 27. Apud ibidem.

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progressistas, temiam que se firmassem os sinais de fechamento na Igreja (precedidos, por exemplo, pelas decisões do Sínodo romano, pela insistência da Constituição apostólica Veterum sapientia (1962) quanto ao ensino na língua latina [e não vernácula] da filosofia e teologia nas instituições eclesiásticas, pelas punições de exegetas devido novas pesquisas, entre outras). Quando a preparação do Concílio se pôs em movimento, os prognósticos pareciam ainda mais escuros: as presidências das comissões preparatórias do Concílio foram confiadas à Cúria romana, que era, na época, oposta às mudanças; para a presidência da Comissão Teológica (que iria supervisionar a teologia conciliar), foi designado o temido Cardeal A. Ottaviani. Havia, porém, sinais de abertura, que vinham, sobretudo, de discursos e gestos proféticos de João XXIII, que estabeleceu normas importantes sobre a relação entre o Concílio e a Cúria: insistiu em que os órgãos do Concílio eram autônomos em relação à Cúria, constituídos por ampla representatividade do episcopado mundial, sob a direção do próprio Papa26. Logo no início da preparação, era desejo do Papa ouvir, de toda a Igreja, quais seriam as questões importantes a serem trabalhadas no Concílio; foi organizado um questionário longo e minucioso e enviado a todos os que tinham direito de vir ao Concílio, segundo o Direito Canônico27. Essa iniciativa modificava bastante o clima da preparação e marcava a enorme diferença em relação ao Concílio Vaticano I, quando somente trinta e cinco bispos foram consultados28. Quanto ao conteúdo das

26 Cf. ZIZOLA, G. A utopia do Papa João. São Paulo: Loyola. 1983. P. 306. Apud ibidem. 27 Cf. BEOZZO, J. O. “O Concílio Vaticano II: Etapa preparatória”. In: Vida Pastoral 46 (2005), n. 243, p. 5. Apud ibidem. 28 Cf. ZIZOLA, G., op. cit., p. 304. Apud ibidem.

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respostas, elas refletiam a mente de bispos desabituados a serem consultados... No discurso de Inauguração, João XXIII traçou a orientação fundamental para o Concílio, mostrou-se esperançoso nos sinais que percebia no mundo e na Igreja. Para ele, o Concílio não deveria repetir e proclamar o que já era conhecido, mas oferecer “um progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências”, articulando “fidelidade à doutrina autêntica” e “indagação e formulação literária do pensamento moderno”29. Diferentemente dos concílios anteriores, o Vaticano II não pretendeu tomar posições dogmáticas condenatórias, mas intensificar o diálogo com o homem e a mulher de hoje, em nítido contraste com as posições conservadoras de Gregório XVI (1831-1846) e Pio IX (1846-1878), que conflitavam fortemente com a modernidade30. João XXIII marcou nitidamente as características ecumênica, pastoral e de atualização do Concílio, usando a palavra italiana “aggiornamento” (= atualização)31. João XXIII tinha bem nítida a ideia de que a Igreja devia atualizar-se, responder ao mundo moderno e caminhar na linha da paz, da unidade da humanidade. Entretanto, uma leitura sintética descobre o confronto de duas teologias básicas, no Concílio Vaticano II, marcando embates fundamentais nos campos teológico, bíblico, litúrgico, sociocultural e institucional. De um lado, a teologia dogmatista, centrada na afirmação clara das 29 João XXIII. “O Programático Discurso de Abertura”. In: KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II. V.II: Primeira Sessão (set.- dez. 1962). Petrópolis: Vozes. 1963. P. 308. Apud ibidem. 30 Entre as sentenças condenadas do Syllabus de Pio IX consta essa afirmação: "O Pontífice Romano pode e deve reconciliar-se e transigir com o progresso, com o liberalismo e com a recente civilização": DS 2980. Cf. ibidem. 31 RUGGIERI, G. “Foi et histoire”. In: ALBERIGO, G.; JOSSUA, J.-P. La réception de Vatican II. Paris: Éditions du Cerf. 1985. P. 136-141. Apud ibidem.

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verdades universais e imutáveis e, de outro, a teologia hermenêutica, que pretende interpretar para o mundo de hoje a revelação de Deus. Esse choque se deu especialmente na discussão sobre as “Fontes da Revelação” (Constituição Dogmática Dei Verbum), onde houve um deslocamento: de uma interpretação “especular” (a modo de espelho), para uma interpretação histórico-existencial (marcada pela história, pela subjetividade, pela experiência, pela intersubjetividade, como mediações interpretativas fundamentais). Ela herdou, do movimento bíblico, a articulação da dimensão de Revelação com as regras de interpretação textual e a relação entre Escritura, Tradição e Magistério. Sua redação veio cheia de cuidados, para criar o consenso com os conservadores. A discussão sobre a Liturgia girou em torno de duas concepções fundamentais a respeito do mistério eucarístico: a centralização no ato cúltico sacerdotal (de modo que os fiéis se compreendiam como receptores dos frutos do sacrifício celebrado) e a contribuição do movimento litúrgico, que valorizava a assembleia litúrgica como o sujeito da celebração. Como consequências práticas, surgiram: a importância da participação pessoal e comunitária, e a maior transparência dos ritos, para que os fiéis percebessem mais claramente o seu significado. No campo religioso, o debate sociocultural se travou em torno de dois universos: a liberdade religiosa e a concepção da relação Igreja-mundo moderno. Subjacente ao debate, estavam as concepções conflituosas de modernidade e pré-modernidade. Os acordos mostraram a predominância do pensar moderno, que superou a defesa

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agressiva da verdade e a consciência de que só a Igreja católica possuía toda a verdade. Quebrar essa espinha dorsal da pré-modernidade custou muito sofrimento e discussão ao Concílio32. Ainda no campo sociocultural, foram debatidos temas como: o pluralismo religioso, o respeito à liberdade de opinião e de consciência e o direito de existência pública de qualquer religião. A posição conservadora se manifestou, mas o Concílio aceitou a liberdade religiosa, desde a perspectiva da dignidade e liberdade da pessoa humana, nos diversos campos da pesquisa, da associação, da comunicação, das finanças, do testemunho público, do culto e dos costumes, desde que não conflitem com a paz comum33. Na mesma linha de ideias, os temas do ecumenismo, do diálogo inter-religioso e com os humanistas ateus reafirmavam a existência da verdade fora dos redutos da Igreja católica, a historicidade de toda expressão religiosa, a pluralidade cultural e religiosa como expressão de riqueza e não de desvio ou erro. No campo eclesiológico, também foi árdua a polêmica: alguns padres conciliares encarnavam mais a Instituição central, enquanto outros refletiam a problemática local, seja sob o enfoque da modernidade, seja no da pré-modernidade... Eram duas sensibilidades distintas, que tiveram que trabalhar consensos, com renúncia de pontos de vista, em prol do bem maior da Igreja. Em relação a si mesma, a Igreja, no Vaticano II, pensou a si mesma (Constituição Dogmática Lumen gentium), na clarificação de sua mensagem (Constituição Dogmática Dei Verbum), 32 HÄRING, B. “Minha participação no Concílio Vaticano II”. In: Revista Eclesiástica Brasileira 54 (1994). P. 394. Apud ibidem. 33 BURTCHAELL, J. T. “Religious freedom (Dignitatis humanae)”. In: HASTINGS, A. Ed.: Modern Catholicism. Vatican II and After, London/New York: SPCK/Oxford Univesity Press. 1991. P. 118-125. Apud ibidem.

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na sua relação cúltica (Constituição Sacrosanctum concilium), nos seus ministérios episcopal e presbiteral (Decretos Christus Dominus e Presbyterorum ordinis), na vida e formação de seus membros religiosos (Decreto Perfectae caritatis), seminaristas (Decreto Optatam totius), leigos (Decreto Apostolicam actuositatem) e na crucial questão da Educação (Declaração Gravissimum educationis). No campo fora de si, a Igreja (latina), no Vaticano II, refletiu suas relações com as denominações cristãs (Decreto Unitatis redintegratio), com as Igrejas orientais católicas e ortodoxas (Decreto Orientalium ecclesiarum), com a sua vocação missionária (Decreto Ad gentes), com as religiões não-cristãs (Declaração Nostra aetate), com o direito à liberdade religiosa (Declaração Dignitatis humanae), com os meios de comunicação (Inter mirifica) e com o Mundo de hoje (Constituição pastoral Gaudium et spes). Com a morte de João XXIII, ao iniciar a 2ª Sessão do Concílio, o novo Papa Paulo VI destacou quatro pontos do trabalho conciliar: “a consciência da Igreja, sua renovação, o restabelecimento da unidade de todos os cristãos e o diálogo da Igreja com os homens de hoje”; o Papa insistiu que o tema principal da Segunda Sessão do Concílio fosse a Igreja, sua natureza íntima, sua autodefinição, sua constituição real e fundamental e os múltiplos aspectos da sua missão salvadora34. Os textos oficiais propostos deixavam a desejar; os “observadores” (ortodoxos, protestantes, anglicanos) reprovaram a falta da pneumatologia nos textos... Aos poucos, nos textos oficiais, nas discussões e preparações 34 Paulo VI. “O Discurso de Abertura da II Sessão”. In: KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II. V.III: Segunda Sessão (set.- dez. 1963). Petrópolis: Vozes. 1964. P. 512-513. Apud ibidem.

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das propostas de textos, foi-se observando duas eclesiologias de fundo: uma, jurídico-societária, e, outra, mais atenta ao mistério que a Igreja é. O texto De ecclesia (LG) provocou uma “revolução”, uma reviravolta decisiva para o futuro do Concílio: quando este se apossou de si, de sua natureza e finalidade, entrando em sintonia com o papa João XXIII35. Mas muitos que dele participaram testemunharam o quanto ele foi ecumênico, no sentido canônico-dogmático da palavra – embora tenham ficado intactas as questões dos “concílios ecumênicos” e da restauração da plena comunhão com os Ortodoxos36. O Concílio foi ecumênico no convite, na presença e na colaboração dos Observadores de diversas Comunhões cristãs – evidentemente, nem tudo é adquirido com o simples voto de um texto, mas o ecumenismo recebeu, do Concílio, uma carta aberta para o futuro. Teve imensa importância, na época, a criação, em Roma, de cinco novos Secretariados, saídos do Concílio: Unidade dos Cristãos, Religiões Não-Cristãs, Não-Crentes, Conselho dos Leigos e Comissão Pontifical “Justiça e Paz” – órgãos de diálogo e de relação entre a Igreja e os “diferentes”.

PARTE II: O REENCANTAMENTO PELO VATICANO II

1. Os ganhos irreversíveis do Vaticano II

O Concílio Vaticano II terminou no dia 08 de dezembro de 1965 e pertence já à história – lembra-nos o Pe. João

35 Cf. G. ALBERIGO. J. O. BEOZZO, ob. cit. P. 221. 36 Cf. CONGAR, Yves. Une passion: l’unité. Réflexions et souvenirs 1929-1973. P. 90-92.

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Batista Libânio37. Seus textos estão entregues a todo o Povo de Deus, que podem dele se apropriar para estudar, aplicar, rezar, enfim, viver! O Vaticano II ainda não foi completamente assimilado e encarnado: ainda estamos em tempos de recepção do Concílio38! O Concílio criou instituições específicas, gerou um espírito renovado, capacitou a teologia para dialogar com os desafios abertos pela Reforma protestante, pelas ciências modernas, pelo novo espírito de autonomia trazido pela modernidade, pela situação de opressão e marginalização no 3o Mundo e por todo o clima cultural que se acentuou depois da 2a Guerra Mundial39. O Vaticano II provocou o nascimento ou o amadurecimento da teologia moderna europeia e da teologia da libertação; provocou profunda renovação na pregação, na catequese, no ensino dos Institutos de Teologia e na pastoral; prolongou a reforma da liturgia; impulsionou o diálogo ecumênico e inter-religioso e com os não crentes. Um ganho indiscutível do Vaticano II para a Igreja como um todo foi a consciência do “colégio episcopal”: as Igrejas particulares se perceberam verdadeiras igrejas40. Passou-se da ordem meramente jurídica para a simbólica: cada Igreja local possui sua relevância, sua originalidade e sua real autonomia no colégio episcopal e na comunhão com a Igreja de Roma. A colegialidade se estendeu a todas

37 Cf. LIBÂNIO, João Batista. “A quarenta anos do final do Concílio”. In: http://www.jblibanio.com.br/modules/mastop_publish/?tac=98 . Texto originalmente publicado no Jornal de Opinião, em abril de 2005. 38 Cf. ALBERIGO, G.; POSSUA, J.-P. La réception de Vatican II. Paris: Éditions du Cerf. 1985. 39 Cf. LIBÂNIO, João Batista. “A quarenta anos do final do Concílio”. In: http://www.jblibanio.com.br/modules/mastop_publish/?tac=98 . 40 Cf., por exemplo, LÉCUYER, J. Etudes sur la collégialité épiscopale. Le Puy, Xavier Mappus, 1964. ALMEIDA, Antônio J. Igrejas locais e colegialidade episcopal. São Paulo: Paulus. 2001. Apud ibidem.

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as estruturas da Igreja: nem monarquia, nem democracia, mas colegialidade. A comunhão entre os bispos conciliares trouxe suas vantagens, pois, juntos, sentiam-se fortes para defenderem as ideias necessárias ao avanço da Igreja; sabemos que o regulamento do Concílio não levou em consideração as Conferências Episcopais. Aliás, Congar preconizava que o significado mais promissor e seguro do Vaticano II seria a articulação do episcopado: afinal, um Concílio é, essencialmente, assembleia de bispos41!

Entretanto, isto teve que ser construído42. As conferências episcopais eram “pauta de agenda”, do ponto de vista legislativo e teológico – um dos problemas mais importantes deste Concílio, e ligado ao da colegialidade episcopal. Os bispos de todas as partes do mundo, quando foram convocados por João XXIII, estavam inseguros: era um corpo episcopal muito vasto e não acostumado a trabalhar colegialmente. Mas emociona-nos, ao ler Congar: “Jamais me senti tão imenso na Igreja de Deus como hoje: a presença do papa, de todo ou quase todo o Sacro Colégio, dos bispos de todo o mundo, em torno do altar que estava no centro e sobre o qual se celebrou antes o Sacrifício, depois se colocou no trono o evangelho; o olhar do mundo inteiro fixo no acontecimento, como se tornava evidente pela presença das delegações de tantas nações e pela presença das Igrejas separadas...; tudo isso fazia sentir a vitalidade da Igreja, sua unidade e variedade ao mesmo tempo; sua humanidade e divindade...”43. 41 Cf. Journal Y. M.-J. Congar. 15/10/1962, ob. cit. P. 76. Apud ibidem. P. 49. 42 Cf. ibidem. P. 23-25; 41-52; 184. 43 LERCARO, G. Lettere dal concilio.Bolonha.1980(11/10/1962).Apud ibidem. Nota no.28 da p. 31.

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Porém, as Conferências Episcopais (intermédios entre as dioceses e a Igreja universal) surgiram como que por geração espontânea e, antes do Concílio, estavam privadas de sólido fundamento teológico44. Com o advento desse, algo importante se dá: todos os bispos participaram e, durante o mesmo, suas reuniões (inclusive enquanto Conferências) tornaram-se mais freqüentes. Além disso, eles fizeram a experiência da colegialidade (que não veio por mandato). Além das Conferências Episcopais, pôde-se notar no Concílio a formação de grupos para além das fronteiras nacionais, como o da “Igreja dos Pobres”, o do “Bloco centro-europeu”, o da “Conferência de Delegados” (ou “Comitê internacional”, “Comitê dos vinte oito” ou “Interconferência”), o Francês, o Latino-Americano, o dos Superiores Religiosos, o dos Bispos Religiosos, o dos Bispos Missionários e o “Área curial”. Em nossa análise, percebemos que os Bispos, ali, estavam aprendendo a se organizar enquanto estrutura, enquanto grupo e, assim, estruturaram melhor a comunhão.

O Vaticano II trouxe várias mutações nas relações dos bispos: entre si e pessoais (a renovação teórica na aula conciliar em Roma levou a uma renovação prática em sua própria Igreja local: abertura aos leigos, fraternidade para com os padres e colegialidade nas conferências episcopais – embora outros bispos, ao retornarem, voltassem a sofrer o peso de seu aparelho administrativo). Outro fruto foi a relação entre o papa e os bispos: João XXIII representou o ponto de referência para os trabalhos iniciais do Vaticano II45: João XXIII acreditava no Concílio e na função que 44 Cf. ALBERIGO, G. ; BEOZZO, J. O., ob. cit. P. 195-207, inclusive nota nº 113 da p. 197. 45 Sabemos a enorme importância de seu sucessor, papa Paulo VI, e que mereceria aqui muitas páginas; entretanto, devido à exiguidade desse nosso trabalho, nos limitaremos a enfocar o papa João XXIII.

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os bispos do mundo podiam desenvolver junto ao papa, na dinâmica das Assembleias – para isso, ofereceu uma orientação profunda e criou condições para os padres se exprimirem livremente; o papa tinha algumas ideias e aspirações, mas acreditava que se devia deixar a execução dos trabalhos aos bispos. A dinâmica de João XXIII era: deixar fazer, dar para fazer e fazer fazer. Sua linha era ser ele mesmo quem mais deveria calar-se no Concílio. Ele compreendeu que, entre os padres, havia ideias, problemas, perspectivas, conflitos e experiências que deviam vir à tona; acreditava que os bispos também deviam conhecer-se entre si (aliás, os diários dos padres da época são ricos sinais disto). O Concílio Vaticano II, assim, ensaiava seus primeiros passos para uma vivência da refontalização teórico-teológica que fazia, que nada mais era que a redescoberta da comunidade como o fundamento das estruturas da Igreja. A questão não é quem governa, ensina e santifica na Igreja, mas o como. A autoridade não deve verter-se em autoritarismo; a eclesiologia, em eclesiocentrismo; a hierarquia, em hierarquismo ou hierarquiologia,... O mundo aprofundou as grandes transformações já iniciadas antes do Vaticano II46. Ela tem feito muitos esforços, desde e a partir do Concílio Vaticano II, para dialogar com o mundo pós-moderno; a teologia tem tentado responder às questões, discernindo a voz de Deus. É incomensurável o serviço que uma boa teologia pode prestar à Igreja – como, por exemplo, no evento do Concílio Vaticano II47. Este, realmente, abriu (ou 46 Cf. HOBSBAWM, E. Era dos Extremos. O breve século XX (1914-1991). São Paulo, 19972. Apud E. MORAES. “Um líquido precioso em vaso de barro: a Trindade presente na Igreja”. Tese de Mestrado em Teologia, pela Puc-Rio. 1999. P. 7-8. 47 Cf. Journal Y. M.-J. Congar. Paris. 4 de novembro de 1962. Apud ALBERIGO, G;. BEOZZO, J. O., ob. cit. P. 80-88; 91-92; 94-97; 167-168; notas nn. 30 e 37.

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ampliou) uma perspectiva ímpar à pluralidade teológica. Alguns se posicionam contra os novos paradigmas teológicos, argumentando (erroneamente) com a fidelidade à Tradição. A teologia atual deverá ser – como, aliás, a de todos os tempos – segura de seus fundamentos e humilde com respeito às suas traduções históricas; deverá atrever-se a experimentar e a equivocar-se, próprio de toda tarefa humana. Após o Concílio, percebemos um avanço na reflexão teológica, com as teologias política, da libertação, feminista e, enfim, das exclusões. A Teologia da Libertação foi um aporte eminentemente latino-americano dado à Igreja universal. Ela nasceu antes do Vaticano II (história que requer um pouco mais de tempo para contar do que esse nosso aqui), mas foi profundamente alicerçada e confirmada por ele. Muitos alegam que a Teologia da Libertação morreu; mas ela está viva. Está cuidando de outros itens importantes da agenda atual de mundo. Alfonso Garcia Rubio nos acrescenta as seguintes sugestões, no campo epistemológico da teologia da libertação48: o esforço ainda indispensável para a superação da visão dicotômica do ser humano, a vigilância crítica ao neoliberalismo e elaboração de projetos alternativos, “desideologizar” a própria teologia, a pastoral e toda a vida da Igreja, a valorização do afetivo e ruptura da epistemologia racionalista, redescoberta da íntima relação entre teologia e espiritualidade, a relação entre teologia e subjetividade aberta, a mulher como sujeito da teologia, teologia e sexualidade humanizante, teologia e cura, teologia ecológica, teologia inculturada, teologia e diálogo inter-

48 Cf. “Prática da Teologia em novos paradigmas”. In: Teologia..., ob. cit. P. 223-261.

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religioso, o horizonte escatológico e, finalmente, o desafio do mal e do pecado.

No campo pastoral, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) ganharam força na América Latina, principalmente. Esta experiência foi embasada pelo vaticano II, que mostrou que a base primeira da Igreja é a condição “laical” e colegial49. O termo “laical” possui origem etimológica na palavra “laos” (= povo): todos os membros da Igreja são, antes de tudo, “Povo de Deus”, chamado por Deus e marcado pelo batismo. A categoria “Povo de Deus” lança suas raízes na experiência de Israel, que se constitui povo pela força do chamado de Deus, do cativeiro para a terra da liberdade, entrando em jogo as experiências de dominação e libertação, a consciência coletiva de ser povo e sua construção num percurso histórico, sob a certeza da presença de Deus, numa perspectiva escatológica, na vivência da dialética do “já” e do “ainda não”. A categoria Povo de Deus permite uma compreensão da Igreja sempre a caminho na história: já não cabe entendê-la como uma sociedade perfeita, acabada – é, antes, um mistério, que se revela em múltiplas formas e expressões, segundo os tempos e espaços. As CEBs encarnaram muito bem essa dimensão de “Povo de Deus” do Vaticano II. Segundo Luiz Alberto Gómez de Souza50, as CEBs estão bem. Na vida eclesial concreta, elas continuam a ser determinantes, segundo informações das próprias Igrejas particulares; elas continuam nos lembrando que a transformação da sociedade não se faz de

49 Cf. LIBÂNIO, J. Batista. “Concílio Vaticano II: abordagem pastoral”. In: http://www.jblibanio.com.br/modules/mastop_publish/?tac=97 . 50 Cf. SOUSA, Luiz Alberto Gómez. Do Vaticano II a um novo concílio? O olhar de um cristão leigo sobre a Igreja. São Paulo. Edições Loyola/CERIS/Editora Rede da Paz. P. 131-147.

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cima para baixo, mas se prepara dentro dela. A caminhada das CEBs, certamente, é uma contribuição importante no processo de construção amplo da Igreja latino-americana – uma rede de experiências eclesiais diversificadas, respondendo com criatividade aos desafios da história. As CEBs são “novos jeitos de ser Igreja”, no plural sim, uma pluralidade na unidade, na comunhão com toda a Igreja. As CEBs continuam vitais, porque experimentais, ágeis e pluriformes; são a Igreja que se experimenta na base, sem perder sua identidade de fé cristã católica, com práticas que procuram seus caminhos.

Segundo ainda Luiz Alberto, novos horizontes se descortinam para as CEBs – temas de gênero, de subjetividade, de raça, do corpo e do prazer, da ecologia. Mas segundo Comblin, outro resgate necessário deverá ser o dos intelectuais, que deverão somar-se à pastoral, através de um trabalho de verdadeira inculturação, visto que o modo de pensar e o linguajar populares são diferentes dos desenvolvidos nas escolas e universidades; o mesmo trabalho intelectual importante deverá ser encontrado nos Institutos e Faculdades Teológicas, incluindo, evidentemente, a teologia voltada para e feita pelos leigos e leigas. Na América Latina, uma teologia própria é fundamental, visto que não encontramos entre nós um ateísmo que requer nova evangelização, mas cristãos que se encontram oprimidos, onde a teologia é chamada a continuar sua contribuição.

2. As lacunas (ou desafios?) existentes frente aos avanços provocados pelo Vaticano II

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a) Volta do autoritarismo e do juridicismo

Além dos avanços trazidos pelo Concílio, abateram-se também ondas conservadoras, provocando retornos a aspectos tradicionalistas da teologia e da pastoral em alguns setores da Igreja e em algumas Igrejas locais. Alguns autores nos ajudam a entender esse processo. Segundo J. B. Libânio51, já no Sínodo dos Bispos, começamos a perceber esses sinais: este Sínodo foi a principal instituição eclesiástica pós-conciliar, mas não foi o que se esperava: ele não ultrapassou o nível da consulta, não adquiriu autonomia e poder próprio. Os dois pontífices que foram a “alma” do Vaticano II – João XXIII e Paulo VI – foram sucedidos por João Paulo II, que marcou a Igreja com suas características próprias, mas nem sempre na onda principal de renovação desencadeada pelo Concílio. Uma longa entrevista do então Cardeal Ratzinger sobre o pós-Concílio revela uma ala interpretativa (outrora minoritária) de que o Concílio foi desvirtuado na sua implantação e que se impunha uma restauração de seus primeiros ideais (lembremos da abertura desse pequeno artigo com a fala do atual Papa Bento XVI, valorizando os frutos do Vaticano II...). A comunhão das igrejas particulares entre si e com o bispo de Roma tem enfrentado desafios: o Papa João Paulo II já havia percebido a inadequação do atual exercício do ministério petrino... No período após o Vaticano II, tem se registrado um enorme desconforto em pontos importantes, como, por exemplo, a nomeação de bispos, o funcionamento das conferências episcopais, o controle

51 Cf. LIBÂNIO, João Batista. “A quarenta anos do final do Concílio”. In: http://www.jblibanio.com.br/modules/mastop_publish/?tac=98 . Texto originalmente publicado no Jornal de Opinião, em abril de 2005.

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doutrinal, as questões referentes ao ministério ordenado, e muitas outras. Outro desafio nesse campo tem sofrido a riquíssima categoria bíblico-teológica “Povo de Deus”, que teve dois destinos opostos, na Igreja pós-Concílio: um silêncio crescente na teologia oficial e uma valorização insistente por parte da teologia da libertação52. O Povo de Deus sintoniza com a opção pelos pobres53. Muitos autores advertem a necessidade de articular a Igreja “do Espírito” (das fontes bíblicas) com a “visível” (estruturada). A dificuldade neste campo ainda é fundante de “velhas” práticas em nossa Igreja, como o rigorismo, de um lado, e a irresponsabilidade de outro. Outros autores acrescentariam: absolutização de uma doutrina, ou de uma forma cultual, ou de um modo de distribuir o poder; ausência de espírito crítico, de criatividade; presença de falsas seguranças, sufocamento de tensões, repressão,... O que mais falta é uma reforma profunda das instituições de poder da Igreja, possibilitando maior e melhor concretização do espírito que ele gerou. Segundo Queiruga, hoje, o que constitui o núcleo mais determinante e o dinamismo mais irreversível do processo moderno é a progressiva autonomia alcançada por distintos estratos ou âmbitos da realidade54 - algo praticamente adquirido; entretanto, ainda subsistem, por

52 Cf. SEMMELROTH, O. “A Igreja, novo Povo de Deus”. In: BARAÚNA, G. A Igreja do Vaticano II. Petrópolis: Vozes. 1965. P. 471-485. Apud LIBÂNIO, J. Batista. “Concílio Vaticano II: abordagem pastoral”. In: http://www.jblibanio.com.br/modules/mastop_publish/?tac=97 . 53 Cf. COMBLIN, J. O povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002. Apud ibidem. 54 Cf. J. B. VICO. Scienza nuova. 1725. Cf. CONGAR, Y.. El Espíritu Santo. P. 161. Apud ibidem. P. 22-25.

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um lado, conservadorismo eclesiástico e teológico e, de outro, crítica secularista e atéia – necessitamos urgentemente de um equilíbrio!

b) Proliferação de novos movimentos religiosos

No campo religioso, subsiste a questão da proliferação de novas religiosidades, cristãs e não-cristãs, cujas causas muitos autores nos ajudam hoje a refletir, sendo quase unânime o pensamento de que o fenômeno busca responder a uma insatisfação religiosa generalizada55. Essa insatisfação possui suas explicações, segundo o autor Andrés Torres Queiruga; uma delas poderia ser o fato do cristianismo ter reagido apologeticamente à Modernidade e à Pós-Modernidade, embora ambas tenham cometido seus excessos56. No novo processo cultural que emergiu no mundo ocidental depois do Vaticano II, se enraízam duas valências fundamentais: uma negativa, como renúncia a toda utopia e esperança de renovar o mundo e a sociedade, e, outra, positiva, na percepção de novos valores, seja no âmbito individual (revalorização do pequeno, tolerância para com o diferente, desabsolutização do estabelecido, apreço do corpo, revitalização da experiência,...), seja no coletivo (captação e vivência de uma nova universalidade, expressa numa espiritualidade centrada na harmonia com a natureza e o cosmos, e numa fraternidade humana sem exclusivismos).

Alguns autores passaram a defender a tese de que a era da religião estruturada está terminada, mas não como cultura: a religião perdeu sua função social, mas não sua 55 Cf. QUEIRUGA, Andrés Torres. Fim do cristianismo pré-moderno. Paulus. 2003. P. 107-111. 56 Cf. THEODOR W. ADORNO e MAX HORKHEIMER La dialéctica de la Ilustración. Madri. 1994. Apud QUEIRUGA, A. T. Ob. cit. P. 111-112.

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força subjetiva57. Decepcionada com alguns frutos negativos da modernidade ocidental, marcada uma boa parte pelo materialismo consumista, a humanidade busca novas formas de expressão do religioso. Exercem uma grande sedução sobre a nova população as novas seitas, magia, astrologia, pentecostalismos, entre outras: um mundo pluri-religioso, como bens de consumo oferecidos em um supermercado... As religiões passaram a ser buscadas por muitas pessoas segundo as necessidades em momentos precisos da vida individual. Ao nascer de um descontentamento ou de uma falta de conexão com as ofertas religiosas tradicionais, a tendência geral das pessoas é renová-las ou recriá-las de outra forma. A reação cristã só será crível se conseguir acolher o que de genuíno há nestas chamadas do novo e de mostrar-se capaz de integrá-lo, dinamizá-lo e enriquecê-lo. A reação apologética extremada seria um caminho equivocado (Comblin diria um suicídio58). Não há motivo para o medo ou o acanhamento da fé (a oligopistia): fiel à sua origem, o cristianismo é uma religião profética e de resposta à crise, a exemplo mesmo de seu próprio Fundador. É preciso buscar hoje aqueles vetores que, desde sua própria entranha, se mostram capazes de enfrentar criativamente o novo desafio. Iniciativas foram tomadas frente à Modernidade59 e à Pós-Modernidade60; entretanto, hoje, se exige um passo a mais. 57 Cf. ibidem. P. 29-32. 58 Cf. COMBLIN, J. O Espírito Santo e a libertação. Petrópolis: Vozes. P. 36. 59 Cf. HANS URS VON BALTHASAR. Teologia y santidad”, em Verbum Caro. Madri. 1964. P. 235-268; G. EBELING. “Die Klage über das Erfahrungsdefizit in der Theologie als Frage nach ihrer Sache”, em Wort und Wahrheit III. Tübingen. 1975. P. 3-28. Cf. G. GUTIÉRREZ (Beber en su próprio pozo. Salamanca. 1983; J. B. METZ (Las ordenes religiosas. Barcelona. 1988; El clamor de la tierra. El problema dramático de la Teodicea. Estella. 1996. Cf. ANDRÉS TORRES QUEIRUGA. P. 119. 60 Cf. Las nuevas formas de la religion. Estella. 1994. P. 177; Postmodernidad y cristianismo. El desafio del fragmento. Santander. 1988. L. KOLAKOWSKI. Cristianos sem iglesia. Madri. 1982. L. FORSLER (Hrsg.). Religiös ohne Kirche. Mainz. 1977. Apud ibidem. P. 119-121;17-21.

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Não estaríamos enfrentando, então, uma crise de fé, mas uma crise das instituições religiosas. “O religioso é, de agora em diante, um componente essencial da cena geopolítica mundial”61 – essa frase não é tão surpreendente, se observarmos o cenário das últimas décadas... As características históricas que explicam o atual fenômeno do ressurgimento do religioso se reportam ao Iluminismo, que anunciou o desaparecimento de qualquer fenômeno religioso na humanidade. Tal onda cresceu após a Segunda Guerra Mundial, que mexeu profundamente com os valores da cultura europeia, afetando diretamente a prática religiosa. Contribuíram significativamente para o desgaste das instituições religiosas o avanço espetacular da tecnologia e o bem-estar social promovido pelos “milagres econômicos”. Várias vozes prenunciaram a “volta do Sagrado”, como a de Karl Rahner: “Já se disse que o cristão do futuro ou será um místico ou não o será. (...) Desde que não se entendam por mística, fenômenos parapsicológicos raros, mas uma experiência de Deus autêntica que brota do interior da existência...”62. Além de Rahner, outros preconizaram o ressurgimento do fenômeno religioso em tempos contemporâneos; entre eles, por exemplo, o literato francês A. Malraux: ele percebeu que o século XX entrara em uma terrível crise espiritual e propôs, para o século XXI, o tempo religioso63. Além de Malraux, nos inícios da década de 1990, dois autores americanos

61 CLÉVENOT, M. L´état das religions dans le monde. Paris: La Découverte. 1987. P. 4. Apud ibidem. P. 11-15. 62 RAHNER, K. “Elemente der Spiritualität in der Kirche der Zukunft”. In: SchzTh. Einsiedeln. Ed. Bezinger. 1980. Volume 14. P. 375s. Apud ibidem. P. 21. 63 Cf. MOTA, L. Dantas. Malraux. No caminho das tentações. São Paulo. Ed. Brasiliense. 1982. P. 99-101. Apud ibidem. P. 22.

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esboçavam as dez principais tendências do próximo século, com o redespertar religioso sendo uma delas... O padre Mário França Miranda64 apresenta quatro características, ao analisar o quadro religioso atual brasileiro: uma irrupção ambígua, um pluralismo inédito, um desenraizamento perigoso e um sincretismo desafiante. É preciso, segundo ele, definir, em primeiro lugar, o novo religioso cristão, que emerge desse cenário. Nos lembra que a fé precisa de um encontro prévio com Deus, uma experiência de salvação, que implica, para o homem e a mulher de hoje, resposta para seus anseios mais profundos. Na atualidade, portanto, para o cristianismo, não basta ter o religioso – que não significa, a priori e imediatamente, crescimento do Reino de Deus: é necessária a fé cristã, que se propaga pela vivência da práxis de Jesus Cristo.

c) Os radicalismos religiosos A ideologia marxista se tornou, para muitos, uma religião, com seus próprios dogmas, ritos, liturgia, hierarquia, etc65... O desmoronamento repentino da ideologia marxista – nitidamente simbolizada pela “queda do muro de Berlim”, em 1989 – deixou um vazio. O neoliberalismo seguiu adiante, sem contraponto de esquerda forte o suficiente que lhe pudesse ameaçar. Os Estados Unidos visibilizavam e simbolizavam, em grau máximo, a vitória e o senhorio do neoliberalismo... Mas o ataque terrorista religioso abalou o mundo e o Papa João Paulo II assim se manifestou: “O terrorismo transformou-se numa rede 64 Cf. MIRANDA, Mario Franca. Um Catolicismo desafiado. Igreja e pluralismo religioso no Brasil. São Paulo. Ed. Paulinas. 1996. P. 10-17. 65 Cf. ibidem. P. 23.

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sofisticada de conluios políticos, técnicos e econômicos, que ultrapassa as fronteiras nacionais e se estende até abranger o mundo inteiro. Trata-se de verdadeiras organizações, dotadas frequentemente de enormes recursos financeiros, que elaboram estratégias em vasta escala, atingindo pessoas inocentes, de forma alguma envolvidas nos objetivos que se propõem os terroristas”66. Desde o final da década de 1970, com a revolução religiosa islâmica do aiatolá Imam Khomeini, o fundamentalismo vem crescendo e ganhando força nos países muçulmanos67. A resposta dos Estados Unidos – ou melhor, do Presidente Bush – se revestiu também de um colorido religioso, para enfrentar o terrorismo: os discursos do presidente americano apelavam para a “justiça infinita” de Deus e convocou a humanidade para uma guerra que ele define como a do bem contra o mal...

d) Ameaça do secularismo

O auge do fenômeno da secularização foi na década de 1960 e 1970. A propagada “morte de Deus” vinha de todas as ciências – as naturais, a antropologia, a psicologia, a sociologia política, entre outras; vinha, também, da prática das pessoas (= ateísmo prático e indiferentismo) e das cosmovisões circulantes, para reduzir a religião ao silêncio e, Deus, a um retiro afastado de nossa realidade... A secularização impunha-se como evidência68. Como já se expressava Marx: A abolição da religião enquanto

66 Mensagem do Papa JOÃO PAULO II para a Celebração do Dia Mundial da Paz, 1o. de Janeiro de 2002. Nº 2. Apud ibidem. P. 23. 67 Cf. ibidem. P. 24. 68 Cf. ibidem. P. 17.

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felicidade ilusória do povo é necessária para sua felicidade real69. Diante desse quadro, uma vasta literatura teológica tomou posição. Duas linhas fundamentais demarcaram os extremos das interpretações70: uma, de cunho apologético, que identificava secularização com o secularismo e o ateísmo – a modernidade manifestava-se absolutamente irreconciliável com qualquer religião e fé cristã. A outra, tomou distância dos juízos desconfiados da secularização: F. Gogarten e outros teólogos, numa atitude positiva frente à secularização, introduziram uma distinção fundamental entre secularização e secularismo – onde este último seria uma degeneração da primeira. A secularização seria um valor positivo, uma autonomia do mundo frente aos “deuses”... Segundo ainda esses autores, as atitudes de Jesus em conflito crescente com os poderes religiosos de sua época inspiram um cristianismo a-religioso: o cristianismo se torna a “a religião da saída da religião”71. Nessa onda, embarcaram muitos teólogos católicos, invocando o espírito do Concílio Vaticano II: “Desta maneira, orientados pelo Concílio Vaticano II, (...) temos agora em nossas mãos os elementos necessários para entender e tentar viver o ideal de um ´cristão secularizado´, ao mesmo tempo fiel a Deus e Seu Reino e aos homens e sua Cidade...”72. P. Berger, em seu livro The Sacred Canopy73, exprimia bem o clima 69 MARX, Karl. “Contribuición a la crítica de la filosofia Del derecho de Hegel”.In: MARX, K. ENGELS, F. Sobre la religión. Ed. Por ASSMANN, Hugo., MATE, Reyes. Salamanca. Ed. Sigueme. 19792. P. 94s. Apud ibidem. 70 Cf. ibidem. P. 17-18. 71 GAUCHET, M. Le désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion. Paris. Gallimard. 1985. P. 133. Apud ibidem. 72 KLOPPENBURG. Bruno. O cristão secularizado. Petrópolis: Vozes. 19712. P. 279. Apud ibidem. P. 18-19. 73 BERGER, Paul. The Sacred Canopy. Elements of a Sociological Theory of Religion. New York. Anchor Books. 1969. Ou, na versão brasileira: O Dossel Sagrado. São Paulo. Paulinas. 1985. Apud ibidem. P. 19.

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desse momento histórico – soava como “um tratado sobre o ateísmo”74, conjugando a tese de que houve uma “evasão do sobrenatural do mundo moderno”, mas que persistiam rumores de Deus no mundo... Tais rumores aumentaram nas décadas seguintes, a ponto de tornarem-se um gigantesco clamor religioso! Os principais teólogos do “Movimento da Morte de Deus” foram, entre outros, Th. Altizer, W. Hamilton, G. Vahanian, P. van Buren75. Em 1963, o bispo anglicano J. Robinson estava na lista dos mais vendidos com seu livro Honest to God76, uma espécie de abertura da nova sinfonia teológica da secularização – que teve adeptos de peso teológico, como Paul Tillich, F. Gogarten, R. Bultmann, entre outros. Quase quarenta anos depois, um outro bispo anglicano, J. Shelby Spong, proclamou-se discípulo e continuador de J. Robinson e prosseguiu, numa postura mais radical, a linha de desmitização da secularização. Ele continua essa linha, visto duas de suas obras contemporâneas: Why Christianity Must Change or Die: A Bishop Speaks to Believers in Exile, 1998 (“Por que o Cristianismo deve mudar ou morrer: um bispo fala a fieis no exílio”), e, mais recentemente, A New Christianity for a New York (“Um novo cristianismo para um novo mundo”).

e) Crise da Modernidade

O mundo ocidental vive um momento que só é compreensível dentro da trajetória maior de um 74 BERGER, Paul. Um rumor de anjos. Petrópolis. Vozes. 1973. P. 7. Apud ibidem. P. 19. 75 Cf. BENT, Ch. O movimento da morte de Deus. Lisboa/Rio de Janeiro. Livraria Moraes. 1968. Apud ibidem. 76 ROBINSON, J. Honest to God. Bloombury. SCM Press. 196313. Ou, em português: Um Deus diferente. Lisboa. Livraria Moraes. 1967. Apud ibidem. P. 19-20.

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processo77. Esse processo toma, hoje, a forma de crise de modelos, paradigmas, valores: é a chamada crise da modernidade. Modernidade, culturalmente, é o período de secularização total das artes e das ciências. Economicamente, o período marcado pelo primado da produtividade, da intensificação exacerbada do trabalho humano (que hoje se degenerou em uma civilização do consumo, da obsolescência imediata e rápida, e do lazer como impune fruição). Politicamente, pela transcendência abstrata do estado, marcado por traços como a institucionalização do individualismo, da propriedade privada. Cronológica e temporalmente, uma nova concepção e vivência do tempo, cronométrico, linear e histórico – não se pensa mais miticamente, mas historicamente, nem se deixa reger por parâmetros religiosos, mas por uma nova visão de mundo que não pretende conhecer absolutos. O progresso era compreendido como caminhar para frente, avançar, conquistar, dominar o mundo através da ciência e da técnica. Na modernidade, o ser humano – antropocêntrico – divorciou-se da natureza e de sua relação com o meio ambiente, colocou-se à parte de toda e qualquer aliança e verdadeira relação – não apenas com as coisas, mas também com os outros seres humanos78. Um claro sintoma disso são os perversos frutos do antropocentrismo moderno, entre eles o racismo, o etnocentrismo e o machismo. O ser humano moderno sentiu dolorosamente uma falência de sentido e, falindo o sentido da existência,

77 Cf. BINGEMER, Maria Clara Luchetti. Alteridade, Vulnerabilidade. Experiência de Deus e pluralismo religioso no moderno em crise. São Paulo: Ed. Loyola. 1993. P. 13-17. 78 Cf. MIRANDA, Mário França. Um Catolicismo desafiado. Igreja e pluralismo religioso no Brasil. São Paulo. Ed. Paulinas. 1996. P. 19-27.

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o ser humano faliu a si mesmo! Feito para a relação, o ser humano moderno não consegue relacionar-se com nada nem ninguém; profundamente emancipado, encontra-se acorrentado e escravizado em si mesmo, no seu próprio ego... A razão se tornou a grande companheira do ser humano moderno: ela foi compartimentando o saber, o conhecer, e, por conseguinte, o viver da pessoa humana na modernidade. Ela, com sua visão diferenciada em subsistemas, substituiu a visão tradicional, que entendia o mundo como unidade cósmica integrada. Com isso, o sagrado e o religioso foram excluídos, caracterizados como pré-científicos e pré-modernos: as respostas para a humanidade se encontrariam na razão e, não mais, no sagrado e no transcendente. Entretanto, o primado da razão instrumental não se mostrou homogêneo e sem conflitos: os valores existenciais, como o desejo, a afetividade, o poético, a gratuidade, a relacionalidade, entre outros, começaram a questioná-lo... Delineia-se, em várias partes do Ocidente contemporâneo, uma retomada ou uma nova visibilização do interesse pela religião, pela transcendência, obrigando a modernidade a confrontar-se com seu próprio modelo! Nossos tempos atuais não são mais os mesmos da época do Vaticano II: alguns contextos da modernidade foram mudados, outros foram aprofundados. Um neoliberalismo excludente ocupa o espaço econômico, revelando a face desumana do capitalismo; a democracia mostra sinais de inércia, corrupção, com o triste quadro de políticos sem ética e sem comprometimento social; a cultura pós-moderna parece dissolver valores cristãos permanentes; entre outros sintomas desafiadores à fé cristã.

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f) Uma ainda não compreensão do que seja a salvação

Trata-se da pertinência salvífica das religiões não cristãs, principalmente, no Brasil, as de origem indígena e africana. Segundo Mário França de Miranda, a fé cristã testemunha um Deus que quer a salvação de todas as pessoas, mas ligamos esta salvação à história e à pessoa de Jesus Cristo. Hoje, a consciência da fé cristã já reconhece a possibilidade de certa manifestação de Deus em outras religiões. Exige-se, como critério, o coração sincero e os ditames da consciência. Essas religiões são, para o cristianismo, uma adesão implícita à oferta salvífica de Jesus Cristo – ou seja: a resposta à proposta salvífica de Deus ao ser humano pode acontecer diversamente, devido aos diferentes contextos socioculturais e às várias tradições religiosas. Aqui entra a importância do diálogo inter-religioso. Entretanto, uma experiência só é salvífica para o individuo se for vivida como tal, no contexto concreto em que se encontra. Isso levou a Igreja a repensar a questão da inculturação da fé: o que, geralmente, leva as pessoas a buscarem em outras religiões o que não encontram na sua é o divórcio entre, de um lado, o contexto sociocultural onde vivem e, de outro, as expressões e práticas desta fé. Mesmo o cristianismo não existe em estado puro, mas expresso no interior de uma cultura; neste caso, a embalagem pode esconder o conteúdo, se a fé que ele professa nada disser para homens e mulheres da outra cultura! O processo de inculturação da fé e longo e difícil, mas muito necessário; segundo o Papa João Paulo II: Uma fé que não se faz cultura é uma fé que não foi plenamente recebida, não inteiramente

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pensada , não fielmente vivida79. O agente da inculturação é a própria comunidade cristã, comprometida com o Evangelho.

A ação salvífica de Deus dá-se no contexto sócio-cultural: a fé é sempre inculturada. A história da fé cristã pode ser estudada a partir da perspectiva do relacionamento entre a vivência cristã e o seu respectivo contexto. A GS n. 53 oferece a definição de cultura: “Pela maneira diversa de utilizar as coisas, de trabalhar e de se exprimir, de praticar a religião e formar os costumes, de estabelecer as leis e as instituições jurídicas, de favorecer as ciências e artes e de cultivar o belo, surgem diversas condições de vida em comum e formas diversas de dispor os bens da vida...”. Portanto, a inculturação da fé cristã, nesse nosso contexto pós-Vaticano II, desafia a Igreja. Para Clodovis Boff80, ela necessitará ser mística: pneumática e não somente cristológica, mais sopro que eficiência, mais inspiração que instituição. Deverá ser orante e adorante. Uma Igreja amorosa, de comunhão e alegria. Uma Igreja mistagógica, catecumenal, que caminhe sempre para o encontro vivo com Cristo. Uma Igreja profética, dialetizando espiritual e social. A Igreja deverá ser querigmática: apresentar o anúncio evangélico de Cristo, que nos revelou o Rosto e o Reino do Pai – um falar de Cristo ardoroso, entusiasmado e radiante – o que não significa, sem mais, proselitismo religioso e marketing da fé! A Igreja deverá ser hospitaleira: que acolha as diferenças, aberta, magnânima e generosa. Uma Igreja que deverá estar em diálogo com a dimensão feminina, com as demais Igrejas cristãs e com as 79 Apud ibidem. P. 23. 80 Cf. BOFF, Clodovis. Uma Igreja para o próximo milênio. São Paulo: Paulus. 1998.

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outras religiões e com as culturas. E, finalmente, deverá ser a Igreja da misericórdia, especialmente com o sofredor, o excluído, o perdido e o inimigo! A misericórdia está na raiz da bíblica “opção pelos pobres”, que requer compromisso com a justiça e com a dignidade da pessoa humana e seu lar, o Universo.

g) Ecumenismo e diálogo inter-religioso

O ecumenismo e o diálogo inter-religioso, incentivado pelo Concílio, esbarraram em impasses estruturais, jurídicos e canônicos, que impedem a plena comunhão ou criam desconforto – como, por exemplo, a Declaração Dominus Iesus81 -, apesar das esperanças provocadas pelos Encontros do Papa com líderes religiosos de todo o mundo em Assis (1986 e 2002). Torna-se difícil falar em diálogo inter-religioso, tendo em vista a realidade de violência que pontua o cenário contemporâneo82. Vivemos tempos de acirramento das identidades e de radicalização etnocêntrica. O horizonte do pluralismo cultural e religioso nem sempre é acolhido na sua positividade. O pluralismo provoca uma crise nas estruturas de plausibilidade que asseguram o nomos das identidades singulares e das comunidades de sentido. Sua incidência sobre os sistemas de crença suscita insegurança intelectual e afetiva, na medida em que rompe os diques de proteção territorial e convoca ao alargamento das fronteiras. 81 Cf. Congregação para a Doutrina da Fé. Declaração Dominus Jesus: sobre a unidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja. São Paulo: Loyola. 2000. Apud CLIBÂNIO, João Batista. “A quarenta anos do final do Concílio”. In: http://www.jblibanio.com.br/modules/mastop_publish/?tac=98 . Texto originalmente publicado no Jornal de Opinião, em abril de 2005. 82 Cf. SUSIN, Luis Carlos (org). Sarça Ardente: Teologia na América Latina: Prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2000. P.415-434. Texto original de FAUSTINO TEIXEIRA, mas, infelizmente, não temos a fonte do texto...

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As religiões, de fato, são marcadas por ambigüidades: ativaram muitas vezes violências, mas também favoreceram o crescimento, a generosidade e a convivialidade. A intolerância não pertence à natureza da religião: traduz sua desfiguração ou abuso prático e teórico, o que atraiçoa "o dinamismo mais profundo da relação com o Absoluto"83.

Neste limiar do terceiro milênio, o diálogo inter-religioso aparece como um dos desafios mais fundamentais para a humanidade. Apesar da presença crescente da exclusão e violência, constata-se o crescimento de uma nova sensibilidade: a nova consciência da unidade da família humana, a abertura ao mútuo enriquecimento e cooperação entre as culturas e religiões em favor da afirmação de vida no mundo. No campo católico, o Concílio Vaticano II teve uma importância decisiva nessa abertura dialogal. Essa nova sensibilidade de comunhão inter-religiosa vem hoje expressa de formas diversificadas; na América Latina, a expressão mais importante tem sido o macroecumenismo84.

O diálogo inter-religioso constitui um dos âmbitos de realização do diálogo: ele diz respeito ao "conjunto de relações inter-religiosas, positivas e construtivas, com pessoas e comunidades de outros credos para um conhecimento mútuo e um recíproco enriquecimento"85. 83 Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Religião e violência. Concilium, 272 (4): 170-171, 1997. Ver também: MENEZES, Paulo. Tolerância e religiões. In: TEIXEIRA, Faustino, org. O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São Paulo, Paulinas, 1997. P. 49-50; GEFFRÉ, Claude. Profession théologien: quelle pensée chrétienne pour le XXIe siècle. Paris, Albin Michel, 1999, pp. 33-35. Cf. DALAI LAMA & CUTLER, Howard. A arte da felicidade. São Paulo, Martins Fontes, 2000. P. 63-70. 84 Cf. MANIFESTO do I Encontro da Assembléia do Povo de Deus (Quito/Equador., 1992). In: TEIXEIRA. O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. P. 147-151. 85 SECRETARIADO PARA OS NÃO-CRENTES. O Cristianismo e as outras religiões. Sedoc, 17(176): 387, 1984 (n.3). Esse Documento vem conhecido como Diálogo e Missão. Ver também: PONTÍFICIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO. Diálogo e anúncio. Petrópolis, Vozes, 1991, n. 9. Ver ainda: Theological Advisory Commission of the Federation of Asian Bishops Conferences

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No profundo respeito à singularidade de cada interlocutor, esse diálogo possibilita um compartilhar de vida, de experiência e de fé, captar o trabalho e a presença do Espírito. Os outros com os quais se dialoga deixam de ser estrangeiros ou estranhos, e passam a ser os "nossos amigos"; navega-se na certeza da universalidade da graça, na dinâmica do mistério do Deus que é surpresa permanente86. O diálogo inter-religioso acontece em vários níveis; é diálogo de vida, de colaboração em projetos comuns, de partilha teológica e comunhão espiritual, mas é, antes de tudo, um estilo de ação, uma atitude e um espírito87. Essa dimensão de corresponsabilidade do diálogo tem sido bem enfatizada por muitos teólogos das religiões, entre os quais pode ser mencionado Paul Knitter: para este autor, as religiões devem assumir a responsabilidade global contra o sofrimento humano e a destruição das águas e da terra88.

A emergência de uma nova sensibilidade macroecumênica constitui uma das grandes novidades da reflexão teológica latino-americana nestes últimos anos, em particular a partir da década de 1990. A primeira incidência dessa temática ocorreu a partir dos autores que trabalhavam com a questão indígena. A nova reflexão ajudou a ampliar a visão da Teologia da Libertação, que em sua fase inicial concentrava-se na questão da classe, do pobre, da luta social e da política, abrindo espaço, então, para a percepção

(FABC). Theses on Interreligeous Dialogue. FABC Papers (48): 10, 1987 (Thesis 4). Esse Documento foi igualmente publicado no Brasil: Sedoc, 33(281): 51-73, 2000. 86 Cf. FÉDÉRATION DES CONFÉRENCES ÉPISCOPALES D’ASIE. Ce que l’Esprit dit aux Églises. La Documentation Catholique, n. 2217, 2 janvier 2000, p. 41. Documento igualmente publicado no Brasil: Sedoc, 33 (281): 38-50, 2000. 87 Secretariado para os Não-Crentes, art. cit., pp. 387-399, 1984 (em particular nn. 29, 31, 33 e 35). 88 Cf. KNITTER, Paul. Uma terra molte religioni:dialogo interreligioso e responsabilità globale. Assis, Cittadella, 1998. Cf. TEIXEIRA, Fautino. “O diálogo inter-religioso face ao desafio da responsabilidade global”. In: Numen, 2(1): 155-170, 1999.

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da especificidade étnica89. Xavier Albó sublinhara: "O problema de ajudar os pobres em sua luta para que cheguem a superar a pobreza é algo muito diverso da luta para ajudar o distinto a ser respeitado como distinto. Está havendo hoje um processo de reflexão sobre o que quer dizer este ser distinto"90. Em sintonia com a reflexão sobre a questão indígena, outros teólogos introduziam na reflexão teológica latino-americana a problemática da inculturação. Vale lembrar o papel pioneiro de Marcello Azevedo: a singularidade de sua reflexão foi mostrar a importância da dimensão cultural para a reflexão teológica e a necessidade de conjugação da evangelização da sociedade com a evangelização da cultura91. Na mesma trilha aberta pelos teólogos que trabalhavam a questão indígena e da inculturação, pode ser mencionado também o aporte trazido pelos teólogos que desenvolveram a problemática da teologia das religiões afro no Brasil. Já no final dos anos 70 e início dos anos 80, despontam os primeiros estudos92. O padre François de l'Espinay inaugurou uma experiência singular de solidariedade integral com os fiéis do candomblé na cidade de Salvador (Bahia)93; ele faz uma crítica radical ao exclusivismo católico, apontando a riqueza multifacetada da experiência do Deus que fala sob 89 Cf. LIBÂNIO, João Batista. Panorama da Teologia da América Latina nos últimos 20 anos. Perspectiva Teológica (63): 173-175, 1992: BOFF, Leonardo & BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. Petrópolis, Vozes, 1986. pp. 46-48. Cf. SUESS, Paulo. Culturas indígenas e evangelização – pressupostos para uma pastoral inculturada da libertação. REB, 41 (162): 211. 1981. 90 Cf. TEIXEIRA, Faustino (org). Teologia da Libertação: Novos desafios. São Paulo: Paulinas, 1991. P. 104. Cf. VV. AA. O rosto índio de Deus. Petrópolis: Vozes, 1989. 91 Cf. AZEVEDO, Marcello. Comunidades eclesiais de base e inculturação da fé. São Paulo: Loyola, 1986. P. 257-258. 92 Duas teses aparecem sobre o tema nos anos 80: Valdeli Carvalho da Costa. Umbanda. Os “seres superiores” e os Orixás/santos: um estudo sobre a fenomenologia do sincretismo umbandístico na perspectiva da teologia católica (São Paulo, Loyola, 1983); Franziska C. Rehbein. Candomblé e salvação: a salvação na religião nagô à luz da teologia cristã. São Paulo: Loyola. 1985. 93 Cf. L’ESPINAY, François de. A religião dos orixás, outra palavra do Deus único? REB, 47 (187)): 639-650, 1987.

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formas muito diversas. O verdadeiro diálogo implica a acolhida da alteridade que se manifesta nas religiões afro94.

Na trajetória das CEBs no Brasil, verifica-se de forma bem nítida esse progressivo processo de abertura ecumênica e inter-religiosa. No início da experiência, nos anos 60 e 70, a temática sociolibertadora ocupava todo o repertório das comunidades. Nessa etapa inicial a sensibilidade para essa temática era bem menos definida. As resistências à temática da religião popular e das festas populares obstruíam um caminho mais promissor de dinâmica dialogal, mas, paulatinamente, essa sensibilidade foi se firmando, reforçada pela abertura ecumênica, que pontuou a história das comunidades desde os primeiros Intereclesiais nos anos 70. Como sublinha Jether Ramalho, o compromisso em favor da luta pela justiça coloca em segundo plano as divisões confessionais95. O aprofundamento da experiência ecumênica e dialogal foi sendo reforçado ao longo da experiência das CEBs, ganhando uma expressão mais decisiva no final dos anos 80 e inícios dos anos 90. A participação dos evangélicos, indígenas e membros das tradições afro foram ganhando densidade nos Intereclesiais. O Concílio Vaticano II reconheceu, no Decreto sobre o ecumenismo (Unitatis redintegratio), ao falar sobre a índole própria da teologia dos orientais, a singularidade de métodos e modos diferentes para conhecer e exprimir os mistérios divinos. O documento sublinha que "alguns aspectos do mistério revelado" podem ser "captados mais 94 Cf. FRISOTTI, Heitor. Passos no diálogo: Igreja católica e religiões afro-brasileiras. São Paulo: Paulus, 1986. Pp. 57-69. 95 Cf. RAMALHO, Jether Pereira. Ecumenismo brotando da base. Sedoc, 11 (118): 842-845, 1979.

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congruamente e postos em melhor luz por um que por outro" (n. 17). Nesse sentido, pode-se afirmar que a plenitude do mistério de Deus não se esgota numa experiência revelacional particular. Estas reflexões favorecem a tomada de tons, ciência da presença de um pluralismo de princípio ou de direito, que vem reconhecido como uma riqueza, um sinal da livre criatividade de Deus. A Igreja vem convocada a valorizar "todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus"96.

h) Desafios éticos e morais

As questões da moral, tocantes ao campo da vida, da sexualidade, da família, da ordem político-econômica parecem chagas expostas. O pano de fundo para a análise das questões éticas e morais é o da relação. O ser humano, somente saindo de si permanece em si, somente dando recebe: a pessoa é uma substância relacionada (“quem quiser reter a sua vida....” – Mt 16,24-25).

Mas toda relação corre riscos; um perigo é o de se valorizar a relação, sem ter em conta a pessoa que se relaciona. A verdadeira relação é sempre um êxodo – buscar e ir ao “tu” do outro, por cima dos próprios interesses ou, até, contra eles. Isto é se autotranscender, que só é possível pela relação que se estabelece com o Absoluto, presente nas relações interpessoais sustentadas pelo bem e pelo amor. A experiência da transcendência nas relações abre-se ao infinito: realmente, ao meu desejo

96 Diálogo e Missão, n. 41. Para a fundamentação desta questão cf.: GEFFRÉ, Claude. Profession Théologien: quelle pensée chrétienne pour le XXI e siècle. Paris, Albin Michel, 1999. P. 138-139; DUPUIS, Jacques. Rumo a uma Teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. P. 526-528.

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de comunhão e de diálogo, de amor e de superação,...,não encontramos resposta na experiência de cada dia – nesta experiência de finitude se faz presente a infinitude. Este núcleo pessoal existente, que entra em relação, carece da relação com Deus.

Sabemos que a graça feita a nosso mundo, em sua universalidade e de modo definitivo, veio por Jesus Cristo (cf. Jo 1,17) e ela entrou para sempre no mundo sob uma forma corporal97. Salvos por Jesus Cristo, somos membros de seu Corpo Místico. De tais afirmações, advêm algumas consequências: o criado, o todo, possuem um corpo, uma “carne” - somos corpos que se relacionam na afetividade. Muitos autores reconhecem, hoje, uma vigência da afetividade nas relações interpessoais98. Primeiramente, a afetividade é integradora da unidade da pessoa – um princípio psicológico, e, ao mesmo tempo, espiritual; devemos lutar contra um dualismo que destrói a pessoa humana, do mesmo modo que urge uma integração dos elementos que se apresentam, na pessoa, como díspares. Em segundo lugar, é imprescindível não dissociar a afetividade da caridade: ela é amor afetuoso. Em terceiro lugar, devemos estabelecer a insuficiência do compromisso sem a gratuidade – ambos são essenciais, mas geram desequilíbrios quando desarticulados. O quarto ponto é a relação cristianismo & ética – devemos superar o mero cumprimento em atitudes segundo o Evangelho. Devemos tabular uma nova relação com Deus, com afetividade, inclusive na oração. A quinta observação refere-se à insuficiência da vivência do cristianismo como mero cumprimento de práticas, ou seja, não devemos 97 Cf. CONGAR, Y. Cette Église que j´aime, ob. cit. P. 45-46. 98 Cf. GAMARRA, S. Teologia espiritual. Sapientia Fidei – Serie de Manuales de Teologia. Biblioteca de Autores Cristianos. Madrid. 1997. P. 146-148.

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seguir a Jesus para fazer-nos filhos, mas devemos fazê-lo sendo já, n’Ele, filhos. É insuficiente, igualmente, o conhecimento racional sem a afetividade – somos um todo: para o conhecimento profundo das pessoas e de Deus, é de todo necessário o amor; entretanto, o amor, que deve procurar o bem da pessoa, deve perguntar-se pelo bem objetivo dela, porque, mesmo com muito boa vontade e com muita afetividade, pode-se prestar um des-serviço à pessoa amada. A caridade, o amor, a afetividade são o que estruturam a pessoa humana.

Uma das formas mais sublimes de amor é o toque. Buscamos, aqui, resgatar a questão do corpo, tão em voga e, ao mesmo tempo, tão carente de referenciais profundos, que suplantem um dualismo nocivo e desintegrador de nossas relações. O cristianismo foi moldado, entre outros dogmas de fé, pela crença na ressurreição do corpo: os cristãos esperavam que o corpo, em vez de ser abandonado no momento da morte, seria transformado naquilo que São Paulo chamou de “corpo espiritual” (1Cor 15,42-44)99, equivalente ao da primeira criação (cf. Gn 3,21), desfigurado em finitude através da queda, mas capaz de eliminar estas expressões finitas através de rigores ascéticos. Reconhecemos que é uma brevíssima exposição, mas suficiente para que percebamos que não é o corpo finito que o cristianismo valorizou, mas sua capacidade de ser purificado de todos os limites finitos. Com R. Ruether, refletimos que o mundo medieval valorizou o material-corporal e os corpos virginais e martirizados dos santos, mas, apenas, como manifestações que apontam para um corpo transformado, liberto da “escória” mortal. A Renascença, a Reforma e o início da ciência moderna 99 Cf. RUETHER, R. R., “Refletindo sobre criação e destruição – Reavaliação do corpo no ecofeminismo”. In: Concilium 295 – 2002/2. Petrópolis: Vozes. P. 44[180]-54[190].

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representam uma série de mudanças nesta visão, constituindo, ao mesmo tempo, uma recuperação do mundo da natureza como esfera humana de poder e controle e a perda da noção de corpo sacramental. A primeira ciência moderna, a princípio, exorcizou da natureza as forças demoníacas; mas, no século XVII, as tradições mais animistas dos “mágicos da natureza” foram desbancadas por um dualismo entre intelecto transcendente e matéria morta. Este processo de controle sobre a natureza através da aplicação tecnológica do conhecimento científico, começou a trazer grandes lucros na revolução industrial dos séculos XVIII-XIX, precedidos desde o século XVI pela abertura, pelo colonialismo, de novas e amplas fontes de riqueza das Américas, Ásia e África, reduzindo suas populações à escravidão. O que aconteceu num breve período de 3/4 de século de progresso infinito já o sabemos bem; vários teólogos atualmente preocupam-se claramente com tais efeitos sobre as relações. R. Ruether nos alerta que, repensar nossa relação com o corpo e com a natureza, implica também repensar as relações com aqueles grupos de pessoas que, segundo nossa visão estereotipada, são identificadas com ele (e, não, com a mente): as mulheres, os negros e indígenas, a classe trabalhadora e os pobres. Urge uma nova ética de reciprocidade, que orientará as relações entre nós mesmos, como também nossa relação com nosso corpo e com o mundo corpóreo de plantas e animais, terra, ar e solo, que sustenta a nossa vida. Afinal de contas, este mundo nosso é, metaforicamente, corpo de Deus, como nos oferece a reflexão de S. McFague100: se a 100 Cf. MC FAGUE, Sallie. “O mundo como corpo de Deus”. In: Concilium 295-2002/2. Petrópolis: Vozes. P. 55[191]-62[198].

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plenitude da revelação de Deus a nós, é encarnada, feito carne, então, devemos tratar o modelo do mundo como corpo de Deus – nesta perspectiva, há continuidade (embora não identidade) entre Deus e mundo.

O mundo é um corpo em relação com Deus, pois a doutrina da criação não se refere, primariamente, ao poder, mas ao amor de Deus: vivemos como corpo, em relação com outros corpos, dentro do “corpo” de Deus. Encontramos Deus na carne do mundo, ao alimentar o faminto, curar o doente, libertar o oprimido, relativizar os conflitos, amar a quem nos ama, ter caridade com o incapaz, perdoar o inimigo... Assim, a doutrina da criação é, primeiramente, uma questão de experiência e vivência, de sensibilidade e toque, e, somente depois, intelectual.

O corpo é o único objeto do mundo que pode ser dirigido diretamente pela consciência101. É material, entidade psicofísica; através dele, que é uma parte do mundo, temos um acesso direto ao mundo. O corpo é o que constantemente nos está presente, mas que só excepcionalmente e em perspectiva, é objeto de nossa vida intencional. Seu estar-presente é, por um lado, não-anônimo, mas, por outro, nos é dado à maneira de um conteúdo explícito de consciência. Sua presença se expressa em disposições e estados de ânimo que acompanham os conteúdos de nossa consciência – trata-se, portanto, de uma presença pré-conceitual. O corpo nos dá capacidade para o raciocinar (é o órgão para o universal e o objetivo) e capacidade para o sentir (é o órgão para o contingente e o subjetivo); ele é, assim, expressão de nossa individualidade. O corpo não apenas nos posiciona, 101 Cf WIEGERLING, K. “O corpo supérfluo – utopias das tecnologias de informação e comunicação”. In: Concilium 295 – 2002/2. Petrópolis. Editora Vozes. P.19[155]-30[166].ibidem. P.19[155]-30[166].

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como também nos orienta; como entidade psicofísica, é disposto não apenas geneticamente, mas também culturalmente. Todo ser vivo possui uma história e as impressões se conservam mesmo quando sua causa já deixou de existir, já que todo estímulo deixa um vestígio fisiológico, um “engrama”. Mas, a soma destes estímulos reproduz uma disposição cultural especial, atua sobre nosso corpo a partir de um determinado universo cultural. O corpo é, ele próprio, a primeira expressão da cultura (até a linguagem possui uma disposição corporal). Além disso, o corpo funciona como um limite entre o mediato e o imediato: está ligado diretamente à nossa psique e aos nossos hábitos, mas é, ao mesmo tempo, o meio que nos liga àquilo que nós não somos (não somos planta, árvore, bicho, Deus, o outro,...).

A tendência histórica de nossas ideias do corpo pode ser resumida sob a palavra-chave: da comunhão à comunicação – o primeiro veículo para o mundo é o próprio corpo. Na communio, ocorre uma participação direta, visto que a proximidade é produzida pelo contato corporal. Podemos dizer, então, que a comunhão é baseada sobre o intercâmbio corporal direto. Nas culturas dominadas pela escrita, as ideias corporais se tornam mais abstratas (nos contextos religiosos, os corpos se tornam personificações simbólicas); D. Kamper102 afirma a existência de uma metáfora exclusiva de um corpo especial situado a meio caminho, entre “comunhão” e “comunicação”, a saber: a irradiação do “corpo” de Deus (a quintessência da ordem simbólica do Ocidente, onde se tornou possível um cruzamento de matéria e espírito, de 102 Cf. KAMPER, D. “Poesie, Prosa, Klartext. Von der Kommunion der Körper zur Kommunikation der Maschinen”. In: GUMBRECHT/K, H.U.; PFEIFFER, L. Materialität der Kommunikation. Frankfurt/M. 1988, 49. Apud ibidem. P. 25[161].

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carne e palavra). Com o predomínio das codificações escritas, ocorre um distanciamento entre o mundo visível e o corpo: o meio da escrita abrange, sobretudo, coisas estruturais, isto é, coisas que se encontram abaixo da superfície visível. Com a mídia, por sua vez, acontece uma superficialização: o corpo passa a ser um pedaço de matéria moldável – algo ligado a mim, mas já não uma entidade psicofísica: ou seja, o humano é expulso de seu próprio corpo. Com esta refração, não somos mais seres eróticos, mas pornográficos – o erótico não pode ser pensado sem alma, mas não a pornografia. E, por fim, com as codificações informáticas, acontece o pleno desligamento entre as representações pictóricas e as individuais – isto é, não temos necessidade de atores e, portanto, de corpos: o conjunto da criação se compõe de elementos que podem ser substituídos e combinados à vontade, cuja simbologia seria o “cyborg”. Este é a negação do corpo; o mesmo corpo que, além de beleza, é também expressão de processos irreversíveis de envelhecimento: é expressão de nossa fragilidade e das limitações de nosso querer – em nenhum outro lugar, o nosso ser-para-a-morte se torna mais claramente visível do que na decadência de nosso corpo. Daí o sonho da cyberexistência: como anjos, as existências cibernéticas não precisam de nenhuma ética, pois não existem corpos, e, portanto, não existem as consequências da relação. Por conseguinte, a superação do corporal é, nada mais, nada menos, do que a superação do próprio ser humano, a fuga para a não história das relações, um autoesquecimento.

Depois de toda essa reflexão, apreendemos, de uma forma evidente e iminente, que precisamos libertar, primeiramente, nossos corpos (nosso ser-estar no mundo)

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e, conseqüentemente, nossas relações interpessoais e com a natureza, de tudo o que nos impede de viver a comunhão. Mas, a liberdade é dom, e para ser vivido na própria liberdade. Muito nos ajuda nesta reflexão Mário de França Miranda, ao nos propor a “libertação da liberdade”103. Fundamentado em São Paulo (cf. Gl), este autor afirma que é uma libertação que se dá, primeiramente, com relação à lei (cf. Rm 7,10.13s; Gl 3,12), ao pecado (cf. Rm 7,18-20) e à morte (cf. Rm 6,8.10.23; 8,10). Cristo ter-nos libertado para a liberdade significa que a libertação nos foi dada e é meta da ação libertadora do Cristo (Ele nos liberta para sermos libertos): nos encontramos num estado salvífico estável, possibilitado (cf. Rm 8,2) e conservado pelo Espírito (cf. 2Cor 4,7b). Este estado de liberdade (ontológico) é que possibilita a liberdade de opção (ética) e, diríamos, de relação. É na liberdade que somos chamados a responder a Deus e aos outros – uma resposta que, no NT, recebeu vários nomes: metanóia (sinóticos), fé (Paulo) ou amor (João) – uma adesão que reivindica a totalidade da pessoa (cf. Mt 22,37; Mc 12,30; Lc 10,27).

Segundo Mário França Miranda, o amor (ágape) é o referencial para nossas relações interpessoais com Deus, os outros e a eco-logia – na antropologia bíblica, o nível do coração (= afetividade) corresponde ao nível da liberdade profunda, lugar onde a pessoa está presente a si mesma, numa unidade primordial, fonte e sede de suas opções decisivas. O ágape (ou Amor) é a realização total do ser humano; ao dar-se ao outro, a pessoa encontra sua própria realização, e, ao dar-se ao Outro, encontra o próprio núcleo de sua salvação. Onde há Amor, há 103 Cf. MIRANDA, Mário França. Libertados para a práxis da justiça. São Paulo: Loyola. 1991. P. 97-104.

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salvação. Os atos livres da pessoa são a expressão e a autenticidade do Amor, num processo que desemboca no próprio Amor (este, só em sentimento ou palavra não nos transforma – cf. 1Jo 3,17s). Deus, o Transcendente, que capacita nossa liberdade para o Amor (cf. 2Cor 3,6; Rm 8,2; Gl 5,1-13), só pode ser “atingido”, experimentado, no Amor – e, como o Amor sublime se dá entre pessoas, é aí que Deus Se faz presente. O Amor, enquanto simplesmente ato, ou enquanto atitude fundamental de vida possui sua razão no “outro”: encontrando o outro, encontramos a nós mesmos e Deus.

A ágape cristã é, simultânea e necessariamente, amor a Deus e amor ao próximo. Deus está nas relações de Amor, porque Ele é Amor (cf. Mt 22,39s; Mc 12,31), nosso comportamento com o próximo será o critério decisivo para nossa salvação (cf. Mt 25,34-46; Rm 13,8-10; Gl 5,14; Cl 3,14), o carisma supremo (cf. 1Cor 12,31; 13,13), Deus nos amou para que nos amássemos uns aos outros (cf. Jo 13,34; 1Jo 4,11; 1Jo 4,12), possibilitado pelo Seu Espírito (cf. 1Jo 4,13) – daí ser o próprio amor fraterno o critério para a autenticidade de nosso Amor (cf. 1Jo 4,20). É o Amor quem cura a fragilidade de nossas relações.

i) A (ainda) questão ministerial Uma última vertente interna da vida eclesial enfrenta a questão do papel do leigo e, em especial, da mulher no interior da Igreja. O episcopado da América Latina, de modo mais genérico, abstrato e convencional, optou em Santo Domingo pelo protagonismo do leigo. Mas falta

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toda uma transformação institucional, canônico-jurídica que crie canais de efetividade. O batismo garante-nos a presença do Espírito da Trindade em nós. Somos possuídos por Deus, nos tornamos novas pessoas e somos enviados para uma obra especial. Esta missão é, indiscutivelmente, pessoal, mas possui um âmbito coletivo. Enquanto batizados e exatamente porque batizados, somos um só Corpo em um só Espírito104. Percebemos, entretanto, em nossas diversas expressões relacionais na Igreja, das micro às macro estruturas, dificuldades fundamentais no campo da alteridade e da reciprocidade. Alteridade, porque somos diferentes a partir mesmo do batismo, e reciprocidade, porque cada membro possui sua importância: não podemos abdicar de ninguém. A primeira consequência, imediata, desta reflexão, é o caráter de inclusão (cf. Gl 3,26-29)105. Uma segunda conseqüência seria a inter-relação entre carisma & História da Salvação – o Espírito atua, em primeiro lugar, para realizar o plano de Deus na história. Como o Espírito não faz acepção de pessoas, desde o batismo, cada um e todos, somos fundamentais, e, cada um e cada uma, a seu modo, experimentamos o Espírito. A interconexão entre os diversos modos pessoais de se ser Templo do Espírito é a visibilidade do Corpo de Cristo ao mundo. Onde não exercemos nosso protagonismo, com nossa identidade e dignidade, todo o corpo eclesial perde a riqueza pluriforme. Congar já destacava, inspirado no Decreto do Vaticano II Apostolicam Actuositatem 2,2:

104 Cf. DANIÉLOU, J. “L’horizon patristique”. In: Le Point théologique 1. Inst. Cathol. De Paris. Orientations actuelles. Paris. 1971. P. 22-23. 105 Cf. CNBB, Setor Vocações e Ministérios. Batismo: fonte de todas vocações – ‘avancem para águas mais profundas’ (cf. Lc 5,4). Brasília, DF. 2002. P. 50.

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“Há na Igreja diversidade de ministérios, mas unidade de missão”106. Segundo ele, esta é uma afirmação concretamente necessária para a desclericalização de nossa visão da Igreja. Muitas conseqüências podemos extrair desta frase: primeiramente, antes de sermos uma classe ou um grupo específico ministerial, somos pessoas batizadas, com identidade e protagonismo próprios; depois, enquanto carismáticos, exercemos ministérios específicos; e, em terceiro lugar, quando temos ministérios comuns, ou seja, com características similares de protagonismo, somos um rosto coletivo, grupal. Quanto mais cada um e o grupo ministerial reforçam sua identidade e seu protagonismo, mais os outros descobrem sua identidade e protagonismo, e vice-versa.

Agora, uma palavra (breve) quanto aos membros da Igreja. Ouso iniciar pela realidade dos leigos e das leigas, na Igreja e como Igreja. Segundo Yves Congar, antes do Concílio Vaticano II, houve uma re-descoberta dos leigos e de seu papel insubstituível, mas, ainda, como “participação” nos atributos essenciais que definem a hierarquia, principalmente quanto ao apostolado107 (que ousamos substituir por protagonismo). Sabemos que, ao se recuperar a noção de “povo de Deus”, cresceu o interesse pelo leigo e, inseparável dele, o pensamento de Congar, principalmente com sua obra Jalons pour une théologie du laïcat108. Após séculos considerados como “massa 106 Cf. os nn. 6,1; 7,4; 10,1 e 3; 24,6. Apud CONGAR, Y. M.-J. À mes frères, ob. cit. P. 60. 107 Cf. BRITO, E.J.C. O leigo cristão no mundo e na Igreja, ob. cit. P. 13-14. 108 Sobre a importância da obra e de Congar, cf., por exemplo, BORNE, E. “De l’éminente dignité des laics dans l’Église”. In: La Vie Intellectuelle, 25 (1953). P. 21-38. DANIÉLOU, J. “Compte-rendu des Jalons”. In: Dieu Vivant, 25 (1953). P. 149-152. LIALINE, D.C. “Jalons pour une théologie du Laïcat”. In: Irenikon, 29 (1956). P. 99-101. CESCHI, J.R. El apostolado de los laicos en la Teologia de Yves Congar.Roma. Vicenza. 1973. P. 226-231. JOSSUA, J.-P. Le Père Congar. La théologie au service du

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amorfa”, apenas “receptores” do Mistério da Igreja, algumas décadas antes do Vaticano II, passamos a ser “vistos” como extensão da hierarquia no mundo (Ação Católica); no Vaticano II, fomos descobertos como agentes do mundo, assumindo a missão global da Igreja, mas na devida distinção de papéis – ou seja, em função do mundo. Falta-nos, a nós, sermos “vistos” e respeitados como nós somos em função de nós mesmos, ou seja, como batizados em comunhão, com identidade, autonomia relacionada e protagonismo próprios. Discordamos de E. J. C. Brito, quando afirma que “o problema do leigo continua vivo e sempre atual na Igreja...”: embora entendamos que não foi sua intenção, queremos esclarecer que o leigo não é problema: o problema da e na Igreja é a não comunhão.

A dificuldade de Congar, em sua época, permanece ainda hoje para nós: como definir o leigo? Mesmo nosso autor opinava ser impossível fazê-lo; inclusive, pensava ser desnecessário: quem, para ele, precisa ser definido é o clérigo e o religioso, pois o leigo é um cristão sine addito, simplesmente109. Já de início, a conceituação: a palavra “leigo”, em nosso idioma110, não traduz o que somos teológica e eclesialmente111. Somos, portanto, conhecidos, inicialmente, pela via da negação: somos o que não somos! O Vaticano II esforçou-se em definir o leigo, mas, no Peuple de Dieu. Paris. 1967. P. 183-209. MONDIN, B. I grandi teologi del secolo ventesimo.I teologi cattolici. Torino. 1969. P. 195-226. LE GUILLOU, M.-J. “Yves M. J. Congar”. In: Mysterium Salutis. Supplemento. Brescia. 1978. P. 538-544. Apud ibidem. Nota nn. 3, 4 e 5 das p. 14-16. 109 Cf. CONGAR, Y. M.-J. La vocation religieuse et sacerdotale. Éditions du Cerf. Paris. 1968. Apud DAVID, B., num estudo publicado no Boletim do Secretariado da Conferência Episcopal Francesa. In: SEDOC 18/183 (1985). P. 53. Apud NETO, M. O. S. Maturidade eclesial, comunhão e ministérios. Tese Doutoral, pela Puc-Rio.1994. P. 51. CONGAR, Y. M.-J. “Ministères et laïcat dans les recherches actuelles de la théologie catholique romaine”.In: Verbum Caro, 71/72 (1964). P.127-148(138-139). Apud BRITO, E.J.C. O leigo cristão no mundo e na Igreja. São Paulo: Loyola. 1980. P. 27. 110 DICIONARIO HOUAISS DA LINGUA PORTUGUESA, ob. cit. 111 Cf., por exemplo, PINHEIRO, E. “Evolução do Apostolado Leigo no Brasil a partir do Concílio Vaticano II”. In: Instrumento de Trabalho. CNLB. 2003. P. 11.

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entanto, não o fez no sentido exato da palavra: o aspecto acentuado foi o exclusivo112. Congar buscou definir o laicato na sua relação com a hierarquia e a vida monástica113. Precisamos, então, que nós, leigos, digamos de nós mesmos, agradecida qualquer contribuição que se some à nossa expectativa.

Uma segunda problemática é o que Congar114 e LG definem como índole própria do leigo: a secular. Numa eclesiologia total, onde a Igreja toda é comunhão e envolvida com a missão de evangelizar o mundo, entendemos que toda ela está no mundo. Embora Congar tenha tentado evitar o dualismo115, ele ainda continua presente. Criticamos este dualismo, amparados em J. Danielou116. “Delimitar” o mundo como espaço específico dos leigos, o que se instala, confirma e permanece no imaginário cultural-eclesiológico não só dos leigos como de todos os membros da Igreja é que o âmbito secular é exclusivo aos leigos e, o sagrado-litúrgico, aos ordenados e religiosos. O que se deve respeitar em cada membro, ordenado, religioso ou “leigo”, é o seu carisma e, portanto, seu ministério, no “mundo” e na comunidade eclesial. Como nos diz Congar: “Todas as pessoas estão vinculadas a essas ordens gerais, como ao próprio Deus”117.

Outra questão séria é a sacramental: quando se afirma que o fundamento do apostolado leigo é a consagração

112 Cf. BRITO, E.J.C., ob. cit. P. 20. 113 Cf. CONGAR, Y. M.-J. Jalons pour une théologie du laïcat, ob. cit. P. 38. Apud ibidem. P. 23. 114 Cf. idem. “Pour une théologie du laïcat”. In: Études, 256 (1948). P. 42-54; 194-218. Idem. Jalons pour une théologie du laïcat, ob. cit. P. 38. Apud ibidem. P. 22. 115 Cf. idem. Jalons pour une théologie du laïcat, ob. cit. P. 38. Apud ibidem. P. 23. 116 Cf. “Compte-rendu des Jalons”. In: Dieu Vivant, 25 (1953). P. 149-152 .Apud ibidem. P. 28. 117 Lay People. P. 414-415. Apud J. D. GERKEN. Teologia do Laicato.São Paulo.Editora Herder.1968. P.122-123.

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batismal e a confirmação118, novamente se instala a confusão: todos os cristãos são batizados e crismados, ambos sacramentos são a base de qualquer apostolado, de qualquer membro na Igreja. Afirmar que são sacramentos específicos de nosso apostolado significa, então, que todos na Igreja são leigos. E, se todos somos leigos na Igreja, a diferenciação vem com a ordenação e o estado religioso: estes, então, é que precisam ser definidos. Parece-nos, portanto, que a base de uma in-definição ou errada definição não advém de nossa existência como leigos, mas de uma in-compreensão acerca da teologia sacramental e, principalmente, teologia do batismo.

Ainda no campo batismal, advém a questão da tríplice participação nos múnus (sacerdote-profeta-rei); quando a participação é nos múnus de Cristo, entendemos que fica salvaguardada a identidade, o protagonismo e a autonomia relacionada – o problema emerge quando se afirma que a hierarquia participa nas funções messiânicas de Cristo, como forma de vida e poder, enquanto que nós, leigos, participamos nela somente como forma de vida – nossa participação não é constitutiva da Igreja, embora tendamos a plenificá-la119. A beleza do final da frase não apaga a dificuldade do começo; quando se afirma que a Igreja é constituída de dois pólos, um hierárquico, e, outro, comunitário, os ordenados são associados ao primeiro e, os leigos, ao segundo – permanece o binômio, além de ofender a integralidade da Igreja, que é toda hierárquica, pois todos os seus membros, pelo batismo, possuem uma igualdade ontológica e nossa diferença, não nos advém

118 Cf. CONGAR, Y. M.-J. “Pour une théologie du laïcat”. In: Études, 256 (1948). P. 42-54; 194-218. Apud BRITO, E. J. C., ob. cit. P. 22. 119 Cf. CONGAR, Y. M.-J. Jalons pour une théologie du laïcat, ob. cit. P. 640. Idem. Sacerdoce et laïcat devant leurs taches d’évangelisation et de civilization. Paris. Lês Éditions du Cerf. 1965. P. 319-320.

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devido a uma não-constituição ou a uma participação (ou seja, uma não-plenificação), mas nos advém, exatamente, dos carismas dados a cada membro pelo Espírito no batismo. Numa eclesiologia de comunhão, se e quando há polaridade, ela é integrada (o modo como os ordenados participam do tríplice múnus e o modo como os não ordenados participamos são modos diferentes, mas devido ao ministério que cada membro possui, advindo do carisma: dito assim, a nosso ver, ajuda a eliminar divisões e separações).

No tocante ao protagonismo dos fiéis conhecidos como “leigos”, houve, no Brasil, uma autêntica história (muitas vezes subsumida) que precisa ser resgatada (o que, infelizmente, aqui, não nos é possível). Desde a descoberta do país, essa história “leiga” se faz presente e atuante120. Foram os colonos portugueses, leigos(as) e pobres, os primeiros a atuarem na catequese e evangelização do Brasil. Nas origens da colônia, foi bastante comum a atuação do “padre leigo”, que coordenava a reza do terço, batizava e oficiava as celebrações fúnebres; os cristãos leigos e leigas souberam manter viva a chama da fé cristã, transmitiram a reta doutrina, e, com criatividade litúrgica popular, celebraram a memória de Jesus em suas vidas. Do Brasil-Colônia até a metade do século XIX, tivemos um período de padroado, o que não impediu uma atuação leiga ativa, principalmente no tocante à prática devocional, no âmbito das confrarias e irmandades. Durante este período, não existiu um antagonismo entre a religião do(a) leigo(a) e a religião do padre; contudo, houve uma

120 Cf. TEIXEIRA, F. A Gênese das CEBs no Brasil. Ed. Paulinas. 1988. BRUNEAU, T. Catolicismo em época de transição. Vozes. CAVALIERI, E. “A construção da identidade do leigo na Igreja e no mundo”. In: Documento de Estudos do Conselho Nacional de Leigos à 1ª Conferência Nacional dos Leigos e Leigas Católicos do Brasil. 1999. P. 18-23.

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“oposição complementar”: “muito santo, pouco padre, muita reza, pouca missa”. Os contatos entre o padre e os leigos eram esporádicos, mas de grande impacto; assim, o “aparelho eclesiástico” (clero + leigos) formava uma “rede”: padres e missionários ensinavam doutrinas e práticas rituais aos capelães; estes, as passavam aos rezadores, que passavam aos agentes locais. Muito conhecidos no Brasil foram os leigos chamados beatos e beatas, que chegavam a renunciar ao casamento e se dedicavam exclusivamente aos pobres, doentes, órfãos, abandonados e à pregação.

Essa religiosidade popular sofreu, na segunda metade do século XIX, o duro impacto do processo de romanização121. Este processo foi a restauração católica na Europa, com o pontificado de Pio IX e o Concílio Vaticano I, que afetou o Brasil. Com a proclamação da República, houve o fim do padroado (que durou quatro séculos!) e a tutela do Estado sobre a Igreja cedeu lugar ao estrito controle por parte de Roma. Passou-se a cuidar mais da formação do clero brasileiro, desenvolveu-se uma espiritualidade mais individual e centrada na prática sacramental, eliminou-se a produção religiosa popular e os líderes religiosos populares foram substituídos por novas organizações leigas (Conferências Vicentinas, Congregação Mariana, Cruzada Eucarística,...), substituiu-se devoções tradicionais populares pelas europeias, substituiu-se antigas festas religiosas populares por outras consideradas mais litúrgicas. Houve raras reações no Brasil, sendo um caso paradigmático o do beato Antônio Conselheiro, em 1885.

121 Cf. BRUNEAU, T. Catolicismo em época de transição. Vozes. Cf. NETO, M. O. S., ob. cit.

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Mas a expressão leiga da religiosidade católica no Brasil resistiu, e inaugurou, no século XX, uma verdadeira “nova era”: o século XX foi um grande referencial, não somente na Igreja universal, como na do Brasil122. Em 1922, o cardeal D. Leme fundou o Centro D. Vital que, em 1933, coordenou vários movimentos leigos, que passaram a fazer parte da Coligação Católica Brasileira e, em 1935, foram reorganizados em torno da Ação Católica. Em 1935, foi oficializado o Movimento de Ação Católica no Brasil, por Dom Leme. O modelo inicial adotado pela Ação Católica foi o italiano; desde o final da década de 30, sob a influência de Jacques Maritain e seu livro Humanismo Integral, foi acontecendo uma mudança de perspectiva. Em 1950, o modelo italiano da Ação Católica é substituído pelo da Ação Católica especializada (JAC, JEC, JIC, JOC, JUC), sob a coordenação nacional do Pe. Helder Câmara.

Em 1948, surge um conjunto de atividades sociais e religiosas desenvolvidas na Diocese de Natal, no sentido de combater a miséria e o subdesenvolvimento, sob a moção de Pe. Eugênio Araújo Sales. Em 1956, houve a experiência da catequese popular da Diocese de Barra do Piraí: D. Agnello Rossi lançou a idéia de aproveitar os leigos para a formação de catequistas populares; em geral, promoviam o “domingo sem missa” ou “missa sem padre”. Em 1958, o Movimento de Natal, inspirado nas escolas radiofônicas da Colômbia, funda-as aqui; após três anos de atividade. Estas escolas foram estendidas pela CNBB a vastas áreas do país e, em 1961, em convênio com o Governo Federal, fundou-se o MEB. Além da educação popular, outra área de atuação do Movimento de

122 Cf. ibidem.

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Natal foi a sindicalização rural, com o incentivo à criação de sindicatos agrícolas.

Em 1960, o Movimento por um Mundo Melhor é trazido e adaptado ao Brasil por Pe. José Marins; caracterizava-se pela necessidade de adaptação da pastoral da Igreja às exigências da realidade. Na Ação Católica, desde 1960, o novo campo de influência já vinha se deslocando de Maritain para Emmanuel Mounier, com seu tema do “ideal histórico”; destacam-se Herbert José de Souza e o Pe. Henrique Lima Vaz (conhecido filósofo jesuíta, com sua concepção de “consciência histórica”, mais dinâmica e fundada no real que o “ideal histórico”). Em 1961, os estudantes da Puc-Rio lançam um Manifesto, denunciando a estrutura liberal-burguesa. Essas posturas vão se solidificar no Congresso Nacional da JUC em 1961; nesse ano, a assembléia da CNBB apresenta uma declaração das diretrizes do Movimento da Ação Católica, manifestando preocupação com as tendências de certos grupos. Ainda no ano de 1962, os militantes da JUC romperam com a Ação Católica e fundaram a Ação Popular – que visava a preparação revolucionária.

Em 1962, dá-se a experiência pastoral de Nízia Floresta, em Natal: nas paróquias sem padre, um grupo de religiosas se dispuseram a assumir o trabalho de evangelização, apoiadas por uma equipe. Nesse mesmo ano, a CNBB iniciou o Plano de Emergência, que deu início à renovação paroquial e de presença da Igreja no campo sócio-econômico. Em 1964, enquanto, em Roma, a Igreja se abria, com o Vaticano II, aqui, no Brasil, acontecia o Golpe Militar, que dizimou vidas, calou vozes e perseguiu pessoas, grupos e instituições, inclusive a Igreja. Com o

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Golpe, a Ação Católica foi reprimida; o MEB foi acusado de subversão; eclesiásticos deixaram o país; militantes e ex-militantes tiveram problemas com Inquéritos Policiais Militares. Enquanto a ditadura tenta “fechar” a ação dos militantes da Igreja no Brasil, em Roma, a Igreja universal “abre-se” ao mundo no Concílio Vaticano II. Houve uma profunda divisão do episcopado e de setores católicos organizados, mas muitos se mobilizaram em defesa dos direitos humanos, destacando-se os bispos: Hélder Câmara, Adriano Hipólito, Waldyr Calheiros, Paulo Evaristo Arns, Moacyr Grecchi, Luiz Fernandes, entre outros. Em 1965, a CNBB aprovou o Plano de Pastoral de Conjunto, que teve um impulso de renovação pastoral, principalmente com as CEBs, mas decidiu descentralizar a Ação Católica Brasileira; em 1966, o Secretariado Nacional do Apostolado dos Leigos dissolve as equipes JUC, JEC e JIC.

As CEBs concretizaram o ideal da Conferência Episcopal de Medellín, em 1968, mas já existiam anteriormente. Por época da Conferência Episcopal de Puebla, em 1979, haviam se multiplicado por toda parte. Os frutos das mesmas começavam a despontar através dos novos ministérios leigos. Elas experimentam novas relações interpessoais na fé e incentivam maiores compromissos com a justiça na realidade social. São verdadeiros centros de evangelização. Nelas, as forças populares se expressam, se organizam, proferem a sua palavra de fé e justiça, ensaiam formas de organização e estruturas de participação para um tipo mais humano de sociedade. Expressam uma autêntica eclesialidade na leitura e vivência da Palavra de Deus, ligando-a à vida, e no amor aos seus Pastores. São comunidades integradas por pobres

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e marginalizados sob todos os aspectos; nelas, os animadores possuem influência moral natural e dão ânimo às Comunidades, assumem a execução ou direção dos trabalhos, são pessoas provenientes da própria base popular, se dedicam incondicionalmente. Ao lado deles, atuam os agentes de pastoral. Na liturgia, a vida é celebrada por todos. Nos últimos anos, alguns têm apontado perigos nas CEBs, mas, segundo B. Bucker, são a missão da Igreja no Povo da América Latina123.

Para suprir a ausência de um organismo específico para os leigos, como foi a Ação Católica, a Conferência dos Religiosos do Brasil criou o Conselho Nacional dos Leigos do Brasil, o CNLB. Esta criação foi fruto de uma série de iniciativas anteriores. Em 1970, a CNBB definiu o “ano dos leigos”. O CNLB é a organização do laicato no Brasil desde 1985, empreparação à participação de leigos católicos do Brasil no futuro Sínodo Mundial dos Bispos de 1987, voltado para a realidade do laicato. O CNLB já realizou 25 Assembléias Nacionais, possui 16 CNLBs Regionais e está em mais de 150 Conselhos Diocesanos; tem 8 pastorais e 22 movimentos filiados; já organizou 4 Encontros Nacionais de Leigos(as) prepara o quinto para este ano, em junho, em São Paulo. Publicou vários subsídios; pensou, formulou e realizou cursos de formação; ajudou a organizar e participou de todas as Assembléias Nacionais dos Organismos do Povo de Deus; colaborou com as Conferências de Puebla e Santo Domingo; participou da preparação do Sínodo da Igreja Universal sobre os Leigos(as) de 1987, entre outros.

123 Para aprofundamento, cf. BOFF L. Eclesiogênese, NETO, M. O. S., ob. cit., BUCKER, B. O Feminino da Igreja e o Conflito. Petrópolis. 1996. P. 110-111.

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O CNLB possui forte acento no protagonismo e acredita que todo empenho apostólico deve ser alicerçado em bases institucionais, canonicamente reconhecidas na Igreja. O CNLB é um espaço que busca agregar todas as organizações do laicato para pensar o que é comum a todos. Há quem condene a organização do laicato porque ela reforçaria o modelo hierárquico da Igreja, mas não é essa nossa intenção. Nos últimos tempos, o CNLB tem buscado a autorização da Santa Sé para tornar-se Conferência, porque: os conselhos sempre estão “dentro” de uma Sociedade, Conferência ou Instituição; o conselho tinha dentro de si mais dois conselhos; a expressão “conferência” já está firmada no “imaginário cultural” e na prática como organização de grande alcance e representatividade; o laicato poderá expressar mais a real autonomia (não independência); abrir espaço para novas possibilidades de diálogo com as emergentes forças da sociedade brasileira; adequar-se melhor às exigências da nova evangelização do novo milênio; criar (melhores) condições para um autêntico processo de “inculturação”; transformar canonicamente o CNLB em “associações de fiéis de direito público”124. Refletida a questão dos leigos, passemos, agora, aos ministérios ordenados. Para Congar, um novo tipo de bispo foi afirmado no Vaticano II, do qual, para ele, o Papa Paulo VI é o modelo125. O bispo permanece o pastor dos fiéis e dos sacerdotes – o que parece alargar-se é a ideia de seu rebanho e de sua missão. Considerou-o mais, não no plano de poderes, mas no de um serviço evangélico e

124 Cf. SIGNORELLI, M. M. D. A. “Formação e organização...”. In: Caderno do CNL, ob. cit. SOBRINHO, B.; AMADO, W. T. “Conferência dos Leigos Católicos do Brasil: Proposta de Organização”. In: Caderno do CNL, op. cit. P. 24-32. 125 Cf. CONGAR, Y. M.-J. À mes frères, ob. cit. P. 81-82.

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profético. Os sacerdotes (que se sentiram esquecidos pelo Vaticano II126), igualmente como os leigos, necessitam de uma re-construção de identidade, autonomia e protagonismo. Congar nos apresenta algumas reflexões de sua época que ainda ecoam em nossa realidade: ele já afirmava, quanto aos ordenados, a necessidade de buscar sua identidade. Perguntava-nos: num mundo tecnicizado, urbanizado, para que serve um padre? Para celebrar algumas cerimônias? Primeiramente, o sacerdote é um homem entre os homens; é preciso desclericalizar o sacerdote! Em seguida, Congar afirma que o sacerdócio não é uma “carreira”, mas um ministério, de caráter indelével, é constitutivo da essência da Igreja. Finalmente, quanto ao ministério do diácono permanente. Para G. Lafont127, a sua restauração, operada pelo Concílio, parece ter sido um pouco dolosa: observou-se que quase todas as tarefas oficialmente confiadas aos diáconos podem ser cumpridas pelos leigos. Numa visão e numa prática de Igreja fundada sobre os carismas e sua instituição, o diaconato permanente poderia talvez se reaproximar mais de suas origens. O autor sugere reservar a ordem do diaconato àqueles que, em volta do bispo, são responsáveis pelo bom andamento das diaconias na Igreja (os que suscitam, organizam, verificam e, sobretudo, promovem os carismas): todas as Igrejas particulares têm seus organismos centrais de liturgia, de catequese, de ensino religioso, de ecumenismo, de pastoral da saúde, de administração e de finanças, etc, e estes organismos têm à sua testa um sacerdote, um leigo, uma religiosa. O diácono ou a diaconisa permanente estaria a título de colaborador(a) do bispo, não na direção das comunidades 126 Cf. idem. Au milieu des orages. Paris. Les Éditions du Cerf. 1969. P. 19-40. 127 Cf. LAFONT, G.Imaginer l´Église Catholique. P.193-194.

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locais (paróquias, movimentos,...), mas na administração dos “serviços” (diaconias).

A re-descoberta da ministerialidade da Igreja pós-Vaticano II provocou uma profunda crise, tanto no ministério ordenado, quanto nos religiosos e nos diáconos permanentes. Vez ou outra lemos ou ouvimos que o motivo da “crise” foi o laicato, mas o problema não é o laicato, mas uma inautêntica teologia da ministerialidade da Igreja. No tocante aos diáconos, o que fazer? Enquanto alguns se obstinam em afirmar que a “única” delimitação entre ordenados e leigos é a consagração eucarística, a situação se complicaria para os diáconos, que não veriam nenhuma linha demarcatória entre o seu ministério e o dos leigos. Encontramos aqui um erro eclesiológico profundo, e somos auxiliados na reflexão por M. Keller128: o que define o ministério não é apenas a visibilidade do serviço, mas a pessoa que o exerce; o diácono exercerá seu ministério naquilo que o faz ser ele próprio. Quanto aos religiosos, a questão é mais tranquila, devido à presença dos carismas específicos dos fundadores, revelam sua identidade, autonomia e protagonismo.

j) A evangelização de grandes centros urbanos

Refletindo José Comblin129, percebemos a necessidade de uma revisão ou revigoramento da pastoral da cidade – que engloba o centro, a periferia, o bairro, a favela. O “mundo” não é mais ruralizado: por um lado, amplia-se a aprendizagem da cidadania, mas os problemas – antes, 128 Cf. “Teologia del laicato”. In: Mysterium Salutis, IV, 2 (Brescia, 1975). P. 485-519 (512). Apud BRITO, E. J. C, ob. cit. P. 31. 129 Cf. COMBLIN, José. Cristãos rumo ao século XXI. Paulus. 1996. P. 361s.

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“da cidade” – agora afetam em todos os lugares, como, igualmente, seus valores. A situação atual nos obriga a re-organizar a vizinhança, as diversas relações afetivas, o combate ao individualismo e ao consumismo sem mais; as reuniões comunitárias, os grupos menores, continuam em pauta, mas devemos acrescentar a “rua” e seus desafios em nossas formas de ação pastoral, o resgate do bairro como lugar da cultura popular, como salvação da invasão da indústria cultural.

k) O estatuto dos pobres

Indiscutivelmente, os pobres possuem um estatuto bíblico-epistemológico. Sua presença perpassa toda a Bíblia130. Entretanto, nem sempre os pobres foram respeitados nesse estatuto ao longo da vida da Igreja. Mais uma vez, ilustramos com o Concílio Vaticano II, onde encontramos o grupo da “Igreja dos Pobres”131, alimentado, muitas vezes, pelas palavras do papa João XXIII132. O grupo “dos pobres” já se articulara antes da inauguração do Concílio. Os membros desse grupo eram personagens provenientes da área de fala francesa e latino-americana; a urgência do tema dos pobres era trazida pela própria história e a perspectiva do discurso do cardeal Lercaro133, propondo colocar o tema dos pobres no centro da atenção do Concílio, estava muito à frente da consciência comum conciliar (talvez, por isto, tenha provocado apenas alguns efêmeros aplausos...).

130 Cf. CONGAR, Y. M.-J. À mes frères, ob. cit. P. 111-112. 131 Cf. ALBERIGO, G.; BEOZZO, J. O., ob. cit. P. 193s. 132“...A Igreja apresenta-se como é e como quer ser, como Igreja de todos, e em particular como Igreja dos pobres”. Radiomensagem de 11/9/1962. O que foi repetido, aos bispos e aos fiéis, à margem do teatro internacional. Cf. ibidem. P. 24; 192-195. 133 Cf. GAUTHIER, P. Les pauvres, Jésus et l’Église. Paris. 1963. P.47-78. Apud ibidem. P. 314s.

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Entretanto, a solução para se viver o modelo da Igreja-Comunhão não é nem a pobreza, nem a riqueza, mas a dimensão do serviço; a presença de uma ou outra, ou de ambas, escandaliza a fé cristã – um dos sinais de que a Comunidade dos Atos era igreja era o fato de não haver necessitados entre eles (cf. At 2,42-47). Na verdade, é o próprio Cristo, em sua kênosis, quem nos revelou que amar é servir134. Se a contingencialidade da natureza humana nos lança à incompreensão diante de nós mesmos, a miserabilidade imposta, além da natural, deveria nos indignar; fazemos nossas as palavras de P. Trigo135. O mundo pós-moderno dirigiu um grande desafio a todos nós: o cristianismo foi incapaz de descartar a dominação do dinheiro e construir uma sociedade fraterna136: não se viu jamais classes ricas ou povos ricos limitarem voluntária ou pacificamente sua riqueza em benefício de povos ou classes empobrecidas, os quais as estruturas econômicas contribuíam em empobrecer a cada ano, enquanto enriqueciam os ricos...

A questão da relação pobreza/riqueza interessa, evidentemente, à teologia da libertação – esta tem trabalhado a questão do pobre desde as Conferências de Medellín e Puebla, e, à luz do Concílio Vaticano II137, embora alguns autores defendam o desenvolvimento da mesma antes de Medellín138. O pobre recebeu nova categoria epistemológica nessa teologia, a de excluído, diante das atuais conjunturas de mundo globalizado. A opção pelos pobres tornou-se a chave hermenêutica da reflexão teológica, na medida em que é valor universal o 134 Cf. CONGAR, Y. M.-J. Cette Église que j’aime. P. 44. 135 Cf. TRIGO, P. Criação e História. Petrópolis: Vozes. 1988. P. 135. 136 Cf. CONGAR, Y. M.-J. À mes frères, ob. cit. P. 72-74; 90; 100-101. 137 Cf. FERRARO, B. “Teologia em tempos de crise”. In: Teologia aberta..., ob. cit. P. 174-177. 138 Cf. GUTIÉRREZ, G., Pobres e Libertação em Puebla. São Paulo, 1980. P. 14.

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critério escatológico de salvação ou perdição. Construir a teologia da libertação é refletir concretamente, olhando a realidade com a ótica da vítima, que denuncia a não-vida (cf. Mt 11,25-26; 25,31-46; Dt 15,7-8; etc). Alguns preconizam erroneamente o fim da teologia da libertação, por motivos vários; discordamos profundamente: se entendemos, evidentemente, que os pobres e excluídos existem devido a um contexto estrutural de não-libertação, de jugo, de dominação, de não-vida, então ela ainda é necessária. Se, nos atuais tempos, a subjetividade, as relações interconectadas e a cultura são pontos de honra da pauta, as refletiremos a partir da opção pelos pobres – a eles é negada a vida e, portanto, tudo o mais. D. Luciano Mendes de Almeida – que deixou-nos há pouco tempo, indo ao encontro do Pai e deixando uma ausência extremamente sofrida – foi uma das personalidades convidadas a preparar um “memorandum” para o G-8 de Gênova em nome dos fracos da terra139. D. Luciano foi por muito tempo Presidente da mais numerosa Conferência Episcopal do mundo (a CNBB), distinguido como porta voz dos “sem voz” em tantos momentos dramáticos da história do seu povo e da humanidade. Encontrou-se em Roma com o Presidente Ciampi e com o Governo Italiano, representado por Berlusconi e alguns ministros. Se entende que, quando o “memorandum” afirma que “ a pessoa humana deve estar no centro das preocupações do G-8” e que portanto o respeito aos direitos e á dignidade de cada ser humano deverá guiar as 139 Texto de D. BRUNO FORTE. Infelizmente, não temos a fonte para citar...

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ações dos “grandes” da terra, estas palavras não são enunciados teóricos, mas ressoam carregados de vultos e corações reais, daqueles dos inumeráveis habitantes das “favelas” brasileiras ou das “bidonvilles” africanas, dos doentes de AIDS que, em alguns países, chegam a percentuais impressionantes, dos leprosos, dos famintos, dos quantos vivem sobre a chamada porta da pobreza, ainda hoje tantos também em países com recursos naturais ilimitados como o Brasil.

No mesmo modo, o apelo à solução dos conflitos através da intervenção decisiva e honesta sobre as suas causas ressoa muito diferente do que uma vaga afirmação de princípio: a inteira ação de Dom Luciano e de tantos como ele presentes na Assembleia da CNBB, pobres no estilo de vida e dedicados, sem medidas, ao serviço dos pobres, demonstra como a retórica da paz se pode fazer somente onde falta a coragem de pagar, pessoalmente, e como – onde esta coragem existe – a condenação de cada guerra e apelo à paz na justiça desmascara a hipocrisia e acaba com interesses, verdadeira causa dos conflitos.

São seis os pontos apresentados no “memorandum”: o dado da pobreza extrema, que sozinho deveria escandir a agenda dos “grandes” da terra para que se empenhem em uma primeira, essencial, redistribuição dos bens; o cancelamento da dívida dos países mais pobres, sobre o qual insistiu tanto o Papa no ano do Jubileu; o desenvolvimento de uma cultura universal dos direitos humanos, que suscitem uma ação solidária contra o racismo, a xenofobia, a intolerância e a discriminação; o empenho pela educação (que se forneça a todas as crianças e aos jovens da terra oportunidades paritárias de

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atingir às riquezas do saber e, consequentemente, ao crescimento moral, econômico e social); a questão África, continente marcado do maior cúmulo de pobreza em todos os campos; a luta pela AIDS, da percentual altíssima de povos especialmente do continente africano. Pode parecer utópico um tal conjunto de exigências: em termos rigorosamente mundanos e históricos, provavelmente é. Mesmo por isto, porém, o que dá força às palavras é a vida de quem as escreve: e aquela de Dom Luciano Mendes – e de tantos dos pastores do Brasil são um exemplo eloquente. Somente quem fez do amor aos pobres o quotidiano empenho da própria existência e motivou este serviço com absoluta gratuidade que nasce do saber-se amados por Deus, além e até mesmo contra toda a lógica de interesses egoísticos e de grupos, pode desafiar o impossível. Era Dom Hélder Câmara – o Bispo dos pobres do Brasil e do mundo inteiro – a repetir com os lábios e com a vida esta verdade simples e grande: “Bem-aventurados aqueles que sonham: levaram a esperança a muitos corações e correrão o doce risco de ver o seu sonho realizado.” E o mesmo Dom Hélder acrescentava que os protagonistas desta realização deverão ser, antes de tudo eles, os pobres da terra: “Creio - ele amava repetir – que o mundo será melhor quando o menor que sofre aprenderá a Ter confiança no pequeno”.

Na lógica do diálogo inter-religioso, a missão vem compreendida numa nova perspectiva, enriquecida pelo sentido amplo de evangelização, que não pode se restringir a uma de suas dimensões, a do anúncio. Evangelizar, como sublinha a Evangelii nuntiandi, de

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Paulo VI, é "tornar nova a própria humanidade"140. Essa compreensão mais abrangente da evangelização repercute no modo de compreender a missão, agora entendida como o trabalho de afirmação do Reino de Deus na história, de manifestação da riqueza e radicalidade do amor de Deus para os seres humanos. Trata-se de um convite, direcionado a todos, no sentido da partilha de comunhão no futuro de Deus, de difusão de um novo alento vital. Conforme o teólogo Jürgen Moltmann, a missão passa a ser o trabalho de favorecimento da "nova criação de todas as coisas", o convite para aceitar a vida, para afirmá-la, defendê-la, em comunhão com os outros141.

A resposta sobre “o que é o ser humano” não é única – cada cultura ou subcultura, cada ideologia, cada religião explica, a seu modo, a realidade da natureza humana142. GS 58 afirma que, ao longo do tempo, a ação salvífica de Deus fez uso dos recursos culturais na expressão, no culto e na vida da comunidade e que a Igreja ganha com este processo. O Concílio Vaticano II enumera os efeitos benéficos do Evangelho nas culturas, corrigindo, purificando, completando e fecundando de dentro as riquezas culturais dos povos. Não se trata de “inculturar” uma doutrina ou valores do Evangelho, mas permitir que a vivência da fé de uma comunidade eclesial se realize nesta cultura. A teologia que possui uma ligação forte com a cultura, principalmente no atual contexto de mudança dinâmica cultural, onde as pessoas buscam, por elas mesmas, um “espaço para respirar”, é a da libertação.

140 PAULO VI. Exortação apostólica Evangelii nuntiandi – A evangelização no mundo contemporâneo. 4. ed. Petrópolis, Vozes, 1979, n. 18. 141 MOLTMANN, Jürgen. Dio nel progetto del mondo moderno. Brescia, Queriniana, 1999. Pp. 226-231; AMALADOSS, Michael. Le Royaume, but de la Mission. Spiritus, 36(140): 291-304, p. 1995. 142 Cf. RUSSEL, L. M., ob. cit. P. 71-72; 141; 23.

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Falar, hoje, teológica e pastoralmente, acerca da cultura, significa usarmos os referenciais desta teologia143.

l) A questão ecológica Uma grande tarefa teológica hoje é a de repensar a teologia da criação. L. C. Susin, por exemplo, reforça a ideia da criação como uma “apologia do mundo”, por ser criação de Deus, tendo futuro, sendo apelo de futuro e de responsabilidade de futuro144. Ele elenca problemas que clamam urgência numa teologia da criação. Além dos sinais de alerta da ecologia, as ciências contemporâneas não perderam a inspiração libertadora, a busca de remédio e vida, transformando-se em aliadas da teologia. Contamos hoje com uma nova configuração do universo, que gera uma nova concepção de vida, graças aos novos conhecimentos da física, da biologia, da mente, além dos métodos interdisciplinares e transdisciplinares surpreendentes. Concordamos que uma saída viável, possível e necessária é o “diálogo interdisciplinar”: dentro de nossa atual realidade, de complexidade de relações multicausais e multirreferenciais, onde tudo tem a ver com tudo, a interdisciplinaridade é uma exigência. Na nova cosmogênese, onde encontramos a “rede” de relações ou “teia” viva, a relação holística é uma de reciprocidade plural, do tipo pericorese. A teologia trinitária, quando começa pela categoria de pericorese, torna-se hoje uma figura paradigmática. A nova cosmologia nos apresenta que a oposição entre “ordem” e “caos” se revela, ao contrário, uma fecunda relação de regiões do universo e da vida. Segundo I. Prigogine, a vida acontece longe do 143 Cf. BOFF, C. (org). Ensaios de Libertação. São Paulo/Petrópolis. Editora CESEP/Vozes. 1991. 144 Cf. SUSIN, L. C. “Teologia da Criação: uma proposta de programa para uma reflexão sistemática atual”. In: I. MÜLLER (organizador). Perspectivas..., ob. cit. P. 15-16; 18-20; 22-30.

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equilíbrio e supõe doses de desordem e de caos, pois o equilíbrio completo seria rigidez e morte.

Susin apresenta critérios para uma teologia da criação hoje145. O primeiro é o da fé com mística ecológica, que evoca um “saber ambiental”, visto que a fé cristã não pode ser reduzida nem à subjetividade fiducial (fides qua creditur), nem à objetividade de conteúdos doutrinais (fides quae creditur), e nem à participação institucional ou comunitária (fides cum creditur). Outro seria o do conhecimento por simpatia e participação: frente ao conhecimento reduzido à relação, a tarefa de recuperar e ampliar as formas de conhecimento mais simbólicas e comunicativas. A ecologia nos aporta mais um critério, o do da ética, que, como a justiça e o direito, não podem mais ser pensados somente para as relações humanas, mas, para o todo criado. Precisamos, também, refazer a interpretação de textos fundantes da tradição diante de novos contextos e novas perguntas: um último critério é o da recirculação – ou “dialético”, ou de “recapitulação hermenêutica”, descobrindo e trabalhando relações recíprocas e complexas. Segundo ainda o autor, alguns temas bíblicos referentes à teologia da criação precisam ser retomados: a criação para o sábado, a criação em êxodo criativo, a forma esponsal da criação, criação como ambientes e tempos da vida, a criação como obra da Trindade, “criação do nada” e “criação da plenitude”146, uma criação sem antropocentrismo, o sofrimento e o pecado na criação (reinterpretar Gn, Jó e Jesus). 145 Cf. ibidem. P. 34-50. 146 Cf. BOFF, L. Experimentar Deus. Campinas. Editora Verus. P. 97-98.

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m) O diálogo com os novos paradigmas científicos

Diante dos novos paradigmas, uma reaproximação entre ciência & fé pôde ser encetada. Alguns autores afirmam a proximidade entre ambos os saberes, como o filósofo M. A. Oliveira, que afirma que a física contemporânea manifesta a unidade fundamental do universo147; outros, como Hugo Assmann, entendem que, nas últimas décadas, a convulsão paradigmática mais revolucionária já não se limita às novidades na Física e na Astrofísica, mas se intensificou enormemente no campo das Ciências da Vida e na Tecnotrônica, a Complexidade e os Sistemas Dinâmicos Complexos148. Uma tradição positivista, ainda não totalmente apagada, tende a dar como evidente que entre ambas exista uma oposição irreconciliável; contudo, autores como H. Blumenberg, afirmam que a modernidade teve que se impor precisamente contra a resistência e a oposição do cristianismo149. Não convém aqui distribuir os papéis entre bons e maus, mas aprender da história: a relação correta é a de diferenciação formal. Entendemos que o diálogo entre ambas especificidades é necessário.

No passado, os conflitos nasciam de uma leitura acrítica e fundamentalista do texto bíblico; hoje, o problema deslocou-se para discussões mais sutis, onde se distinguem três questões fundamentais: o caráter radicalmente humano e, por isso, “verificável” da experiência religiosa, o novo modo de colocar o problema da existência de Deus 147 Cf. WEIZSÄCKER, C. F. Die Einheit der Natur. München. 1995. Sobretudo p. 207s. Apud MOLIVEIRA, M. A. “A mudança de paradigmas nas ciências contemporâneas”. In: VV.AA. Teologia aberta ao futuro, ob. cit. P. 21-39. 148 Cf. ASSMANN, H., ob. cit. P. 41-66. 149 Cf. BLUMENBERG, H. Die Legitimität der Neuzeit. Frankfurt a.M. 1966; Säkularisierung und Selbstbehauptung. Frankfurt a.M. 1974. BERGER, P. L. Para uma teoria sociológica de la religión. Barcelona. 1971. P. 180. Apud ibidem. P. 201-206, inclusive nota nº 13.

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e o modo de compreender sua ação no mundo. Portanto, o desafiador, hoje, não é tanto reconhecer a nova visão científica do mundo, mas levar a cabo a correspondente reinterpretação teológica. Uma primeira tentativa foi o deísmo (Deus como o grande “relojoeiro” ou o genial “arquiteto” do universo); após, surgiu o deísmo intervencionista (Deus, no céu, mas com intervenções pontuais na terra, movido pelas petições e sacrifícios). Hoje, embora alguns vejam possibilidades de elaboração a partir das descobertas da física quântica, Queiruga opina que o caminho passa por uma mudança mais radical: a redescoberta do sentido da criação150: necessariamente, a transformação há de se realizar, partindo do pensamento, chegando à instituição, passando pela teologia e pelo governo eclesial.

Não somente no campo da teologia, como também em outras ciências, os novos paradigmas têm afirmado uma nova agenda; na Filosofia, as descobertas da física determinaram uma nova compreensão da totalidade do real, sendo gestada uma nova ontologia: as novas descobertas da física transcenderam a cosmologia em direção a uma cosmogênese151. Pensar um universo assim significa pressupor uma filosofia que pensa o mundo como processo de desdobramento: é uma dinâmica cosmogênica, cuja tendência básica é a complexificação. Todos os níveis da matéria viva são sistemas abertos, cujo equilíbrio tem de ser refeito permanentemente pela mediação da auto-organização e de um nível mais alto de ordem interna. Os processos vivos emergem como 150 Cf. ZUBIRI. “Transcendência e física”. In: Gran Enciclopédia del Mundo (Durvan) 19, 1964. P. 419-424. Idem. El problema teologal del hombre: Cristianismo. Madri. 1997. P. 149-231. Apud ibidem. P. 241-249. 151 Cf. OLIVEIRA, M. A. “A mudança de paradigmas nas ciências contemporâneas”. In: Teologia aberta para o futuro. P. 21-39.

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unidade de contrários: vencem as forças que levam a uma desordem crescente – ou seja: sua tendência básica é serem, cada vez mais, ordenados e criativos. No “novo” universo, as relações passam para o primeiro plano! Estamos, assim, numa situação em trânsito152. Conclusão Nessas breves linhas (o tema mereceria muito mais), foi oferecida uma pequena reflexão sobre o Vaticano II, sua importância e relevância e as implicâncias para o agir cristão de toda a Igreja – mas, especificamente nessa Assembleia, do laicato. Sabemos que muito ainda deve ser dito e aqui complementado; quero, portanto, “concluir”, com a fala de nossas irmãs leigas e irmãos leigos, que partilharam suas ressonâncias do estudo aqui apresentado com toda a Assembleia, aprofundando, questionando ou complementando. Eles estão relacionados a seguir. Alguns apresentaram uma preocupação com certa “espiritualização” exacerbada presente hoje em algumas Igrejas locais; uma “linguagem” ainda usada não muito autêntica – até certo cinismo com relação à expressão “unidade na pluralidade”. Nomes importantes da história do Vaticano II e pós-Vaticano II – como D. Hélder Câmara e D. Pedro Casaldáliga – estão esquecidos. Esse passado da vida da Igreja é muito importante, principalmente a Ação Católica; João XXIII, por exemplo, era um militante firme da Ação Católica. A Ação Católica é um movimento anterior ao Vaticano II: por que ela desapareceu no Brasil? Toda essa parte histórica apresentada tem, como grande articulador, o Papa Paulo 152 Cf. QUEIRUGA, A. T., ob. cit. P. 53-64.

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VI – não foi citada nos trabalhos, por exemplo, a Populorum Progressio, onde ele apresenta a verdadeira paz e o verdadeiro desenvolvimento, que foi a base de muitas afirmações de Medellín. Na Conferência Episcopal de Puebla, os militantes da Ação Católica foram participantes muito importantes, e defenderam as prioridades votadas em Medellín. Uma preocupação de muitos participantes é a questão do poder na Igreja. Foi citado Pe. Comblin, que coloca em suas obras que a modernidade questiona todo tipo de poder, daí as crises de todas as instituições hoje. Foi citado que a questão do poder já se observa desde alguns vocacionados, nos seminários... Os bispos deveriam se “despojar” um pouco mais – até mesmo no vestuário, porque distancia das pessoas. O Vaticano II falava muito de “Reino de Deus”, tema que não está mais presente nas homilias; as Campanhas da Fraternidade também não estão sendo muito bem assimiladas e elas são muito importantes: alguns padres nem sequer leem o Manual da CF... Esse tema da Assembleia Nacional (Vaticano II e o agir cristão) foi muito bom para a nossa Assembleia. A proposta do Vaticano II era essa: focada no agir cristão. Os ganhos, as conquistas do Vaticano II são irreversíveis, não há volta atrás. Nosso papel é atuar, ao vermos as manobras de tentativa de esquecimento desses ganhos conciliares; atuar nas lacunas que ainda ficaram; trabalhar mais o diálogo entre nós e o diálogo intercultural; discernir bem quais são esses modelos que estavam subjacentes aos textos do Concílio. Nós trabalhamos

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juntos, nos unimos na defesa dos Direitos Humanos – façamos o mesmo agora. Esse Concílio é um divisor das águas – como na passagem do Povo de Deus no Mar Vermelho. No êxodo bíblico, Moisés preparou o povo e, mesmo assim, o povo reclamou da caminhada que precisou fazer para a libertação – hoje, somos um pouco desse povo... O pré-texto do Vaticano II já nos dá uma pista de como deve ser nosso agir cristão. Nossa Igreja hoje também enfrenta problemas, como a da época conciliar. Os movimentos, na época pré-conciliar, reagiram e prepararam o Vaticano II, e nós precisamos responder hoje também. O CNLB deve ser mais atuante, dar respostas a essas questões. Existem muitos leigos e leigas realizando muitas coisas bonitas em vários movimentos hoje: eles servem para ajudar a mostrar nosso agir hoje. Santana, Bahia: entre as várias teologias, a da libertação tem trazido problemas dentro da Igreja; nem todos sabem usar a libertação que tem; alguns membros que se dizem da Renovação Carismática Católica insistem que essa teologia é um “anexo” na Igreja e ela não é isso; há um Documento da CNBB sobre orientações para a RCC na questão do repouso do Espírito e a glossolalia, mas ainda acontecem abusos em alguns grupos que dizem ser desse movimento – faltam limites ao pentecostalismo católico, que deveriam ser dados pela CNBB. Geraldo, Lins: vivemos um momento de crise em nossa Igreja hoje, e não é a primeira vez que isso acontece: desde os Atos dos Apóstolos, tensões e conflitos fazem parte de nossa vida de Igreja; durante e depois do Vaticano

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II, surgiram muitas expressões e associações laicais, que não estão hoje no CNLB: este nasceu da Ação Católica, de Movimentos anteriores ao Vaticano II e, nesse conjunto todo, há diversas teologias, diversas percepções da realidade; estamos num espaço plural: temos que dialogar com as diversidades ou vamos “morrer na praia”; andando pelo Brasil inteiro, ele percebeu que a tarefa principal desta Assembleia é olhar para o CNLB e descobrir o que devemos renovar e o que devemos recriar. Temos que ter coragem de olhar para o CNBL daqui para a frente. Carlos Signorelli: temos que assumir decididamente que estamos em crise hoje – crise muito grave. Há problemas na Cúria Romana de uns tempos para cá – há dioceses sendo entregues para movimentos integristas, há padres sendo “demitidos” por causa de suas homilias, entre outros. D. Celso ontem disse: temos na nossa origem um leigo: Jesus de Nazaré. E nós, leigos e leigas, não podemos nos afastar da Igreja nesse momento de crise. Temos que nos organizar em todo o Brasil. Segundo Puebla, os leigos são o mundo na Igreja e a Igreja no mundo – mas a Igreja não quer ouvir a nós, leigos. Nilson, Manaus: partilhou sua preocupação com o prolongamento da Reforma Litúrgica e a outra questão: acreditar ou não em Deus? Denunciou uma realidade: num questionário em um determinado educandário, perguntavam “qual é a sua religião”. Alguns pais responderam que não possuem religião, enquanto outros, que não acreditam em Deus. Isso é preocupante. Com relação à Reforma Litúrgica: existem vários “tipos” de missa, como, por exemplo, a “missa da cura” – o que podemos mesmo celebrar? Não há um rito que devemos

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seguir? Desejou coragem ao povo do Amazonas, que está “sob as águas”. Geraldo: sentiu necessidade de voltarmos a alguns assuntos pertinentes. Por exemplo, a RCC foi citada várias vezes e não houve espaço para dialogar. Muitos grupos da RCC tentaram se adequar às propostas do Vaticano II; o Documento de Aparecida também está provocando uma revisão no Movimento... Não somos inimigos internamente, temos que dialogar entre nós. São assuntos muito importantes para a Organização do laicato. Há problemas muito sérios que precisam ser enfrentados. Relatividade do entendimento da dimensão do feminino: isso passa pela questão do poder, pelo entendimento do que é ser humano integralmente, e isso se reflete muito na Igreja. A maioria, na Igreja, é feita por mulheres – mas essa questão não passa apenas pelo dado biológico. Há campanhas fervorosas sobre o aborto, mas não existem tantas tão fervorosas assim em situações de exclusão e morte de muitos irmãos. Temos, ainda, uma restrita visão do que é essa dimensão feminina. É importante estarmos resgatando isso, porque a Igreja defende a vida em todos os momentos, não somente no aborto. A Igreja prega o amor. O campo de missão dos leigos e das leigas é muito maior do que essas quatro paredes e a Igreja deve acolher todas as frentes de ação. Ainda há disputa de poder na Igreja. A Igreja possui a beleza para fazer diferente da “lei do mercado” que reina hoje na sociedade. Os primeiros cristãos seduziram: “Vede como são amados”.

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Obrigada. Eva Aparecida Rezende de Moraes