26
CAPÍTULO 29 905 Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia J. F. Ade. Ajayi Neste último capítulo, nós gostaríamos de lançar luz sobre as grandes cor- rentes da evolução histórica que conduziu a África ao princípio do último quarto do século XIX. Tendências estas particularmente originadas no curso do período 1875-1885, durante o qual acompanhamos o redirecionamento do interesse suscitado pela África na Europa, com a Conferência de Berlim sobre a África do Oeste encaminhando uma trajetória que desembocaria na partilha e, finalmente, na conquista do continente. Um olhar sobre o conjunto da África, às vésperas da conquista europeia, permite entrever assaz nitidamente, por um lado, uma tendência dominante que se afirma a despeito do número e da diver- sidade dos Estados, povos e regiões, e, por outra parte, algumas tendências quiçá divergentes. Aparentemente, a tendência dominante seria aquela que conduz os diversos detentores do poder na África a dedicarem-se deliberadamente ao fortalecimento da sua potência e dos seus meios de defesa dos territórios e interesses africanos. Estes esforços foram todavia sistematicamente solapados e, ao final das contas, anulados pela presença europeia. Tal como demonstraram os sucessivos capítulos deste volume, o século XIX foi na África um período de rápidas e, por vezes, contraditórias transformações. Até o terceiro quarto deste século, as mais profundas mudanças, aquelas de maior amplitude, estiveram ligadas a fatores de ordem interna. Outras mudan- ças produziram-se em grande parte sob a influência ou mesmo provocadas pela

Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia · esta demanda, o comércio, do qual dependiam a aquisição de armas de fogo e a acumulação de riquezas, tornou-se um

  • Upload
    vophuc

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

CA P Í T U L O 2 9

905Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

J. F. Ade. Ajayi

Neste último capítulo, nós gostaríamos de lançar luz sobre as grandes cor-rentes da evolução histórica que conduziu a África ao princípio do último quarto do século XIX. Tendências estas particularmente originadas no curso do período 1875-1885, durante o qual acompanhamos o redirecionamento do interesse suscitado pela África na Europa, com a Conferência de Berlim sobre a África do Oeste encaminhando uma trajetória que desembocaria na partilha e, finalmente, na conquista do continente. Um olhar sobre o conjunto da África, às vésperas da conquista europeia, permite entrever assaz nitidamente, por um lado, uma tendência dominante que se afirma a despeito do número e da diver-sidade dos Estados, povos e regiões, e, por outra parte, algumas tendências quiçá divergentes. Aparentemente, a tendência dominante seria aquela que conduz os diversos detentores do poder na África a dedicarem-se deliberadamente ao fortalecimento da sua potência e dos seus meios de defesa dos territórios e interesses africanos. Estes esforços foram todavia sistematicamente solapados e, ao final das contas, anulados pela presença europeia.

Tal como demonstraram os sucessivos capítulos deste volume, o século XIX foi na África um período de rápidas e, por vezes, contraditórias transformações. Até o terceiro quarto deste século, as mais profundas mudanças, aquelas de maior amplitude, estiveram ligadas a fatores de ordem interna. Outras mudan-ças produziram-se em grande parte sob a influência ou mesmo provocadas pela

906 África do século XIX à década de 1880

incidência das atividades dos negociantes, missionários ou cônsules europeus, primeiramente concentrados nas regiões litorâneas e posteriormente, sobretudo a partir de 1850, penetrando progressivamente nas regiões interioranas. Algumas iniciativas transformadoras, à imagem dos esforços realizados pelos soberanos da Etiópia para unificar o país e reformar as instituições, não tiveram senão alcance local. Alhures, atividades a exemplo daquelas próprias aos ambiciosos quedivas do Egito, no vale do Nilo, repercutiram sobre toda uma região. O Mfecane, fenômeno originalmente local, não tardou a expandir-se, propagando-se em toda a África Austral e Central, assim como em algumas partes da África do Leste, com tamanha intensidade que, às vésperas da conquista europeia, a histó-ria destas regiões correspondia, em larga medida, àquela de Estados que haviam surgido deste fenômeno ou que haviam sofrido reviravoltas em função dele1.

A jihad estendeu os seus movimentos pela reforma islâmica à totalidade do Sudão e ao Saara Oriental, até a Cirenaica; eles se prolongaram para o Sul, até os limites da zona das florestas, atingindo a Senegâmbia, as regiões do Volta e aquelas ocupadas pelos malinquês do Sul, pelos iorubás do Norte e pelas populações de língua edo. Juntamente com o crescimento da demanda europeia por óleo de palma, amendoim, marfim, sisal e borracha, e na justa medida que uma rede interna de rotas comerciais de longa distância permitia responder a esta demanda, o comércio, do qual dependiam a aquisição de armas de fogo e a acumulação de riquezas, tornou-se um fator essencial e capaz de determinar a ascensão e a queda de Estados, em vastas regiões da África. Em decorrência desta expansão do comércio europeu, bem como das atividades dos missionários europeus e norte-americanos, o cristianismo e as ideias europeias relativas à organização social e política tornaram-se igualmente fatores de transformação, atravessando uma vasta zona estendida de Serra Leoa até a África Austral, alcançando Madagascar.

O aspecto mais impactante destes diferentes movimentos é o esforço empre-endido, no século XIX, por grande número de soberanos africanos para reforma-rem a sua sociedade, em diferentes partes do continente. Algumas dentre as suas iniciativas tinham como fonte a herança cultural africana; outras eram animadas pelas ideias reformistas do islã. Na maioria dos casos, os chefes não demonstra-vam grande inclinação para tirar proveito das possibilidades oferecidas pela nova dimensão dos intercâmbios comerciais e pelas atividades dos europeus, fossem estes últimos negociantes, missionários ou caçadores de animais ou concessões.

1 Consultar I. N. Kimambo, capítulo 10 do presente volume.

907Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

Outro traço, igualmente marcante, é o modo através do qual os projetos refor-mistas dos dirigentes africanos foram sistematicamente solapados pelas próprias atividades destes comerciantes, missionários e caçadores, das quais os dirigentes africanos pretendiam tirar proveito.

É espantoso que este aspecto do século XIX africano − o esforço interno por reformas sistematicamente abafado pela intervenção externa − tenha até os nossos dias retido tão pouca atenção. Convencidos que o colonialismo e a integração ao sistema capitalista mundial representavam as condições necessá-rias para a modernização, a maioria dos historiadores não percebeu a enorme vontade de autodesenvolvimento que animava o esforço dos africanos ao longo deste século e tampouco a qual ponto a conquista europeia e o colonialismo constituíram uma subversão deste esforço.

As estruturas políticas

A esfera na qual mais fortemente manifestou-se o esforço de autodesenvolvi-mento talvez tenha sido aquela referente às estruturas políticas e ao poder estatal. A grande lição que os povos da África Central e do Oeste tiraram do tráfico de escravos, à época já antiga − justamente esta lição que a África do Leste reteve, por sua vez, no transcorrer do século XIX −, equivaleu a saber que o meio de sobreviver ao tráfico, quiçá dele tirar proveito, era reforçar as estruturas e a base militar do poder de Estado.

Ao início do século XIX, como nós observamos, “as estruturas políticas e econômicas em grande parte da África aparentavam caracterizar-se por certa fragilidade. Os limites dos sistemas estatais indicavam estarem submetidos a um perpétuo movimento de fluxo e refluxo e os centros administrativos, por sua vez, a movimentos alternados de ascensão e queda2”. O grau de submissão, as contribuições materiais e o serviço militar que o Estado exigia do povo em troca da sua proteção reduziam-se ao estrito necessário. Em grande parte dos casos, a vida cotidiana dos indivíduos inscrevia-se em larga escala em um tecido de relações nas quais intervinham os laços de parentesco e as instituições religiosas, jurídicas e econômicas que, muito amiúde, não se circunscreviam às fronteiras dos Estados. O Magreb e o Egito eram as únicas regiões onde se haviam de longa data estabelecido estruturas políticas relativamente duráveis, derivadas de vários séculos de aplicação da lei islâmica. Invariavelmente, alhures no conti-

2 Consultar, acima, o capítulo 1.

908 África do século XIX à década de 1880

nente, havia no século XIX um enorme esforço para instaurar novas estruturas políticas, capazes de se manterem por certo tempo. No jogo de intensas rivali-dades políticas, resultantes destes esforços, algumas dentre as ações foram, sem sombra de dúvida, ineficazes e, em determinadas localidades, o seu mais nítido resultado foi a desintegração dos impérios e a descentralização, por vezes frag-mentação, da autoridade. Como observam J. Ki-Zerbo e K. Arhin no tocante às regiões voltaicas:

O século XIX acompanhou a generalização da instabilidade política e dos des-locamentos populacionais; certo número de massacres e movimentos secessionistas reproduziram-se sob a responsabilidade daqueles, propriamente aqueles, que supos-tamente deveriam representar a autoridade; embora tenha havido notáveis exceções, por via de regra, a frequência e a amplitude destes conflitos acentuaram-se; a ten-dência para o deslocamento das sociedades esteve, indubitavelmente, ligada ao fato de as potências periféricas e rebeldes terem progressiva possibilidade de adquirirem armas e delas servirem-se contra os chefes reinantes3.

Esta tendência foi especialmente ilustrada pelo impacto inicial do Mfecane e do comércio, assim como pelo domínio conquistado pelos chokwe e ovimbun-dus sobre os territórios dos Estados luba e lunda4. Muitos Estados e impérios desapareceram. Porém, ainda mais impactante é o surgimento de novos centros de poder nos quais eram experimentadas novas estruturas administrativas que tendiam, com maior frequência: a um fortalecimento dos meios disponíveis ao soberano; a uma mais nítida definição dos seus poderes; a um mais estrito controle sobre os dignatários do Estado, os quais deviam a sua condição muito mais ao príncipe que aos seus direitos hereditários; e finalmente, para um aper-feiçoamento do sistema fiscal e de outras reformas da mesma ordem5.

Alguns historiadores identificaram estes movimentos de reforma com as ati-vidades de “protonacionalistas e fundadores de impérios” africanos, uma espécie de corrida africana que teria parcialmente provocado ou, ao menos contribuiria, para explicar a corrida dos europeus6. Na realidade, estas atividades reformistas de modo algum constituíram um acesso febril, comparável à corrida europeia. A África buscara estruturas políticas mais estáveis ao longo de todo o século XIX e, inclusive, anteriormente a esta época; o estado de coisas reproduzido

3 K. Arhin e J. Ki-Zerbo, acima no capítulo 25.

4 Consultar acima nos capítulos 4, 5 e 11.

5 Conferir T. C. McCaskie, 1980.

6 Referir-se, por exemplo, a R. Robinson, 1985.

909Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

no continente não era senão o prolongamento de uma tendência constituinte da evolução geral destes povos. Talvez tenha havido uma aceleração no século XIX e as mudanças associadas até então à ascensão de Estados como o antigo Oyo, no século XVII, ou o Ashanti, o Daomé, o Fouta-Djalon, o Fouta Toro e o Bondu, no século XVIII, generalizar-se-iam muito mais nesta época. Em todo caso e aparentemente, houve um esforço mais deliberado para institucionalizar as transformações políticas, inscrevendo-as em estruturas de caráter mais per-manente e apoiando-se em novos dispositivos militares, econômicos e sociais.

Dentre os principais Estados sobreviventes ao século XVIII, raros seriam aqueles que alcançariam esta condição sem realizarem grandes reformas internas. Com efeito, as rivalidades políticas eram de tamanha intensidade e a necessi-dade de canalizar o desenvolvimento das relações comerciais impunha proble-mas a tal ponto que cada Estado devia escolher entre um esforço reformista e expansionista à custa dos seus vizinhos ou as perspectivas da desintegração e da fragmentação. Reduzidos em seu número foram os Estados que, à imagem do Benin, puderam sobreviver simplesmente voltando-se para si7. A maioria foi obrigada, a exemplo do Ashanti, do Daomé, do Buganda, entre outros, a zelar constantemente pela preservação e inclusive pelo aumento da eficácia do poder − em amplo grau proporcionada pela capacidade do chefe em centralizar este poder, enfraquecer os seus subordinados e impor crescentes contribuições a estes últimos; monopolizar os principais recursos econômicos e estratégicos; instituir uma função pública e hierarquizada na qual as nomeações, as promo-ções e a disciplina estivessem submetidas ao controle do monarca; e consolidar estes poderes através da criação e do enquadramento de uma força armada permanente e comandada por oficiais similarmente submetidos à autoridade do chefe de Estado. Tratava-se então de uma verdadeira revolução, eventualmente exitosa e sem aparente mudança do sistema político; em alguns casos, tal como o Borno, ela não pôde realizar-se sem uma mudança de dinastia8. Frequentemente, esta revolução derivou de um compromisso, “novos homens” eram nomeados à frente de antigas chefaturas conduzidas a respeitarem o estilo burocrático recém-introduzido na administração ou, ainda, novas funções adotavam par-cialmente os ritos ligados aos títulos tradicionais.

O Mfecane expandiu e difundiu amplamente o novo modelo de Estado nguni do Norte, tal como revolucionado por Shaka. O novo Estado equivalia, essen-cialmente, a uma adaptação do sistema de grupos etários, com vistas a criar uma

7 A. I. Asiwaju, acima no capítulo 26.

8 M. Last, acima no capítulo 22.

910 África do século XIX à década de 1880

força armada quase constantemente em pé-de-guerra que recrutava em todo o reino jovens homens a mobilizar, além de mulheres como esposas; todos estavam ao serviço do rei, ao qual pertencia a totalidade dos recursos, inclusive o gado e a produção agrícola; pois era necessário alimentar a força armada e uma corte de mais em mais numerosa. O sistema igualmente organizava a aculturação dos povos conquistados, integrando-os à cultura dominante, além de introduzir uma concepção totalmente nova das relações entre o soberano e os seus assujeitados9. A personalidade do soberano e a sua capacidade em governar aparentemente continuavam a desempenhar um papel mais importante, comparativamente às estruturas de Estado, além deste último, ele próprio, estar muito amiúde rasgado por conflitos opondo famílias rivais no seio das dinastias reais.

Entretanto, é incontestável que, além das devastações e da confusão geral pelas quais ele foi inicialmente responsável, o Mfecane logrou criar muitos gran-des Estados, mais fortes e eficazes que os seus precedentes e assentados sobre estruturas mais duráveis. Os novos Estados igualmente possuíam fronteiras mais nítidas, senão porque as exigências por eles impostas aos seus assujeitados não deixavam dúvida alguma quanto à extensão ou aos limites dos territórios submetidos à sua autoridade. Em suplemento, o soberano eventualmente podia valer-se da função suprema na realização de diversos rituais; no entanto, mani-festa e progressivamente, ele deixava de ser unicamente um chefe religioso. As suas capacidades de organização e administração, bem como a sua aptidão para o comando militar, em sua função de chefe do executivo no seio do aparelho de Estado, tendiam a sobressair em detrimento das considerações de parentesco e de laços rituais, este estado de coisas não impedia que, em alguns casos, estes últimos conservassem um importante papel no plano ideológico e na qualidade de fontes de reconhecida legitimidade.

No caso etíope, o objetivo da reforma não consistia em criar um novo Estado ou reforçar o Estado existente, mas em fazer reviver um Estado muito ancião, o antigo império de inspiração cristã copta que, sob a dupla pressão dos oromos muçulmanos e dos cristãos na Europa, decompusera-se em várias chefaturas rivais. Os chefes, assim opostos entre si, tinham sempre o mesmo objetivo: reivindicar pessoalmente e impor a autoridade do imperador; restabelecer a sua aliança com a Igreja; reformar esta última, dotando-a de novos meios e utilizando a sua influência para levar as potências rivais, fossem elas cristãs ou muçulmanas, a renderem fidelidade ao imperador. As tradições históricas do

9 L. D. Ngcongco, acima no capítulo 5.

911Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

império, a quantidade de chefes rivais entre si e as relações de força existentes entre eles não concediam senão estreita margem de manobra aos imperadores Tewodros II e Yohannès IV para o restabelecimento do império. Além disso, inclusive não se podia imaginar o estabelecimento de novas estruturas enquanto a supremacia militar não estivesse assegurada. A ação sucessiva dos dois impe-radores foi assaz exitosa, no tocante aos resultados, a ponto de despertar a cons-ciência nacional; porém, ela se demonstrou insuficiente para monopolizar os recursos econômicos e estratégicos ou para totalmente reduzir as ambições das potências vassalas, inclinadas a colaborarem com os inimigos vindos do Egito pelo Norte ou com os invasores europeus pela costa10.

Trata-se, exatamente e em certa medida, desta mesma nostalgia do passado que encontramos nos esforços realizados pelos quedivas do Egito com o obje-tivo de transformarem os seus poderes mantidos em uma potente monarquia hereditária e nacional, estenderem o domínio do Egito no vale do Nilo e, senão para fazê-la renascer, ao menos para rivalizar com a antiga glória dos faraós ou com aquela mais recente, do Egito dos califas fatímidas. O objetivo de Muham-mad ‘Alī era solapar o poder dos mamlūk e dizimá-los, reorganizar a função pública e os seus conselhos, bem como levar a cabo uma reforma agrária com uma redistribuição das terras que permitisse fortalecer o controle exercido pelo soberano sobre as regiões rurais e a agricultura; conjunto de ações que deveria permitir uma maior extração de recursos deste setor e assim criar os meios para a construção de uma economia industrial moderna, para manter uma força armada e organizada e para se libertar, através da negociação, da tutela otomana. O quediva Ismā‘īl reacendia e levou adiante este espírito reformista: ele engajou europeus para dirigirem empresas abolicionistas e comerciais no Sudão, concluiu a abertura do canal de Suez e construiu outros canais, realizou obras de irrigação, assim como abriu vias férreas e outras redes de comunicação. O seu objetivo era, tanto quanto permitisse a tutela otomana, explorada pelas potências europeias para imporem tratados desiguais que garantiam os seus interesses, adquirir uma tecnologia europeia que modernizasse as estruturas e as instituições egípcias11.

O objetivo declarado dos movimentos da jihad era fazer renascerem as clás-sicas instituições islâmicas da época dos califas ortodoxos. Na prática, tratava-se de instaurar Estados islâmicos teocráticos, em lugar das tradicionais sociedades governadas por muçulmanos e tradicionalistas. Era imperioso levar ao poder dirigentes escolhidos pelas suas sapiência e piedade, consagrados à gestão dos

10 R. Pankhurst, acima no capítulo 15. Consultar igualmente R. A. Caulkc, 1972.

11 A. Abdel-Malek, acima no capítulo 13.

912 África do século XIX à década de 1880

assuntos do Estado, segundo os preceitos do Alcorão e das leis islâmicas, e dedicados a estabelecerem instituições autenticamente islâmicas. Durante os anos 1870, os sucessores dos fundadores de Sokoto haviam em larga medida alcançado os seus fins. Os emires, atuando sob a autoridade comum do califa, haviam incontestavelmente logrado estabelecer estruturas políticas mais durá-veis que aquelas dos reis huassa, anteriormente por eles eliminados. Certamente, os soberanos e as classes aristocráticas que os rodeavam haviam assimilado boa parte da nobreza huassa, além de terem retomado para si grande parte dos privilégios dos feudais e dos príncipes-mercadores. Entretanto, a paz relativa usufruída pelo califado, o esforço de desenvolvimento dos mercados, indústrias, artesanato e rotas comercias, os poderes conferidos aos juízes e outros funcio-nários, bem como o controle exercido pelos emires sobre a função pública eram fatores relevantes que concorriam para consideravelmente reforçar a autoridade no seio do Estado.

Ahmadu Sayku, sucessor de al-Hadjdj ‘Umar Tal, pouco após a incorporação do Macina ao império, foi obrigado a simultaneamente enfrentar rivalidades dinásticas internas e a hostilidade dos franceses, os quais encorajavam, pela sua postura, os grupos dissidentes do interior. Malgrado estas dificuldades e obstácu-los, o império fornecera o quadro geral de um Estado, dotado de princípios jurí-dicos e estruturas administrativas que consolidavam a unidade das populações muito diversas que viviam neste vasto território. Inclusive independentemente das estruturas de Estado, a ordem tijāni introduzia o suporte de uma religião e de um modo de vida que constituíam um fator suplementar de unidade e fideli-dade ao soberano. O exemplo da revolução do Dinguiraye incitou muitos chefes religiosos a levarem a jihad a outras regiões, a fim de nelas substituir os muçul-manos de tendência secularista e os tradicionalistas, através de clérigos dispostos a criarem Estados teocráticos islâmicos. Assim sendo, no império desmembrado do Jolof, os Estado do Kayor e do Jolof, em razão de terem passado para o raio de influência dos clérigos, dedicaram-se a propagar o islã como fermento para a reforma na Senegâmbia. Junto aos malinquês do Sul, região na qual os muçul-manos constituíam uma minoria, Samori Touré, guerreiro juula (dioula) com passado de negociador, decidiu servir-se do islã para unificar as populações do seu país, fossem elas inicialmente muçulmanas ou tradicionalistas12. Nós assim descobrimos o islã sendo utilizado com os mesmos fins em Nupe e Ilorin, onde os soberanos aderiram a esta religião, à sua tradição escrita e ao seu modelo de

12 Y. Person, acima no capítulo 24.

913Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

instituições políticas e sociais, não tão somente porque pretendiam transformar uma realeza de tipo ritual tradicional em Estado teocrático funcional, mas, igualmente, em virtude de identificarem no islã um fator de expansão, através das conversões, junto aos povos não muçulmanos.

O cristianismo respondeu a uma necessidade análoga, fornecendo o quadro cultural para a criação de uma sociedade crioula a partir de um conjunto díspar de povos que se haviam fixado em Freetown e nas localidades circunvizinhas, assim como em diversos estabelecimentos do litoral liberiano ou ainda em Libreville, Freretown e em outros estabelecimentos de escravos libertos. Em diversos luga-res, missionários vindos para obterem conversões receberam frequentemente um caloroso apoio da parte dos soberanos africanos, os quais demonstravam, todavia, muito zelo pela sua independência e pouca inclinação a permitirem a conversão do seu povo; porém, aos olhos deste último as atividades dos missionários ofe-reciam uma possibilidade de acesso à educação europeia: alfabetização e aquisi-ção de algumas capacidades técnicas, especialmente em matéria de marcenaria, impressão gráfica e, caso possível, igualmente de fabricação de armas de fogo e da pólvora para canhão. Os soberanos de Madagascar, a seu turno, tentaram manter o equilíbrio entre protestantes ingleses e católicos franceses, em seguida, rejeitaram ambos e ensejaram proibir as suas atividades religiosas e, finalmente, viram a corte e a elite administrativa tornarem-se protestantes, ao passo que o catolicismo progredia sensivelmente em algumas das províncias. Os soberanos desejaram se inspirar nas ideias europeias em matéria de diplomacia, reforma judicial e reorganização das forças armadas, assim como para estabelecerem uma monarquia constitucional13. De modo semelhante, certo número de novos Estados da África Austral, a exemplo do reino sotho de Moshoeshoe, os quais enfrentavam as ações agressivas do nacionalismo branco, aceitaram missionários como conselheiros e defensores da sua causa vis-à-vis do mundo exterior, eles os protegeram e inclusive tomaram medidas de ordem legislativa para ajudá-los em seu trabalho de conversão14. Nos Estados fantis da Costa do Ouro e em alguns importantes centros missionários, especialmente Abeokuta, no Sudoeste do país Iorubá, alguns chefes africanos, possuidores de uma educação ocidental, esforçavam-se para tirar proveito da sua instrução e das suas relações na Europa para introduzirem reformas nas estruturas do Estado tradicional: por exemplo, criando uma chancelaria dirigida por africanos instruídos, com vistas a regula-mentar as relações diplomáticas com os europeus e as relações inter-Estados;

13 P. H. Mutibwa, acima no capítulo 16.

14 N. Bhebe, acima no capítulo 7.

914 África do século XIX à década de 1880

reformando os sistemas fiscais para a introdução de impostos regulamentares destinados a substituírem o tributo ou as taxas; e aperfeiçoando o sistema judi-cial, graças ao registro dos atos e à introdução de leis escritas15.

A organização militar

Em última análise, a solidez das estruturas políticas repousava no aparato militar. Jamais isso foi tão verdadeiro quanto no século XIX. Até então, os laços entrecruzados das relações de parentesco e das relações religiosas provavelmente contavam muito mais que a organização militar. A tal ponto que esta última consistia em, episodicamente, decretar a mobilização em massa da população que, ela própria, trazia as armas e provisões com vistas à defesa das localidades, quando atacadas, situação que se reproduzia somente durante breves períodos, na estação das secas e nos intervalos da atividade agrícola normal. A armada tinha maior importância para as relações com os povos vizinhos que para a estru-tura do poder no próprio seio do Estado. A capacidade de mobilizar tropas era função do senso político do soberano e, raramente, este último pôde atribuir-se o monopólio sobre ela. A formação de um corpo de cavalaria teve como efeito a criação de uma elite na armada e, geralmente, aconteceu simultaneamente à constituição de uma classe aristocrática que dividia com o soberano o acesso aos recursos necessários para adquirir e equipar cavalos, recrutar cavaleiros e abastecer a tropa.

Sabemos atualmente que, até meados do século XIX, o emprego do mosquete de carregamento pelo canhão ou dos seus derivados (o fuzil Darne, por exem-plo), quer fossem eles importados ou de fabricação local, não modificou senão muito pouco o desfecho dos combates e as estruturas de Estado na África. Indu-bitavelmente ele propiciou às tropas disciplinadas, durante um período, ganha-rem vantagem sobre adversários que não estivessem habituados ao emprego das armas de fogo; tal foi o caso de soldados egípcios no Sudão Meridional, ao longo dos anos 1840. Todavia, os mosquetes em nada eram capazes de enfrentar uma cavalaria disciplinada, armada de lanças ou flechas envenenadas, haja vista que os cavaleiros podiam, tão logo lançada a primeira salva de tiros, contra-atacar os mosqueteiros antes que eles recarregassem os mosquetes. Os impis de Shaka demonstraram a superioridade da curta lança sagaie, para o combate corpo-a-corpo, quando ela estava nas mãos de soldados disciplinados. Os guerreiros

15 Consultar A. Pallinder-Law, 1974; igualmente conferir A. A. Boahen, acima no capítulo 3.

915Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

egba de Abeokuta adquiriram armamento europeu, inclusive alguns canhões, contribuindo para a sua resistência contra as invasões daomeanas; entretanto, durante os anos 1860, eles não puderam fazer frente aos soldados de Ibadan, mais disciplinados e combatentes, em sua maioria munidos de um equipamento de fabricação local. Do mesmo modo, Téwodros, à frente de soldados dotados de um equipamento leve, venceu em várias ocasiões, através de ataques-surpresa e de avanços frontais, tropas que possuíam, no entanto, a vantagem de estarem armadas com mosquetes16.

A maior revolução ocorrida na arte da guerra, no século XIX, foi o surgi-mento do guerreiro profissional. A força das lutas políticas e a frequência das guerras haviam criado tal situação que um pequeno número de indivíduos per-manecia constantemente armado; deste modo surgiu o guerreiro profissional, na qualidade de membro de pleno direito na sociedade. Por via de regra, não existia armada propriamente permanente. A guerra era, de certo modo, uma empreitada entre outras ou um aspecto da ação conduzida para a conquista do poder político e para dispor dos recursos econômicos. O guerreiro era, muito amiúde, um empreendedor que, após ter acumulado certa fortuna graças aos negócios, encontrava-se em condições de se juntar aos guerreiros ou de recrutar/capturar escravos, por ele mobilizados em sua armada privada. Assim preparado, ele se lançava em busca dos seus interesses; em outros termos, à procura da conquista do poder político, quer fosse para si próprio ou porque este poder lhe garantiria uma parte dos recursos econômicos dos quais normalmente dispõe um Estado. Caso lograsse êxito, ele adquiriria os títulos de uma função que lhe permitia integrar-se a um sistema político. Por vezes, um soberano, a exemplo de Moshoeshoe, era ele próprio o empreendedor que melhor alcançava reunir os meios necessários para formar uma armada de recrutas e clientes; quanto aos outros empreendedores de menor envergadura, estes não tinham outra escolha senão aceitarem a integração segundo as condições ditadas pelo soberano17.

Shaka foi o protótipo de um rei que se impôs como chefe de guerra. Sozinho, ele formou os seus regimentos em grupos etários, organizou o seu treinamento e a sua provisão, fixou as regras disciplinares e decidiu acerca do equipamento necessário, de modo a constituir um exército profissional. Ele dotou os seus guer-reiros de novos equipamentos, cuja fabricação, in loco, foi por ele determinada. A armada tornou-se, deste modo, o principal sustentáculo do Estado. Numerosos

16 Conferir em JAH, 1971, vol. XII, 2 e 4, os artigos concernentes às armas de fogo na África subsaariana, I e II, 1971. Igualmente referir-se a J. P. Smaldone, 1972, e R. A. Caulk, 1972.

17 B. Awe, 1973; L. D. Ngcongco, acima no capítulo 5.

916 África do século XIX à década de 1880

generais secessionistas levaram consigo uma fração da armada, à qual impuseram o seu comando; pilharam vastos territórios e, consequentemente, engrossaram as suas fileiras com novos recrutas durante o percurso; adquiriram gado, mulheres; e, finalmente, serviram-se das suas tropas para agrupar, sob a sua autoridade, comunidades muito diversas, constituindo um reino. A principal força dos guer-reiros profissionais residia em menor grau no seu armamento que em sua disci-plina, seu treinamento e na organização do seu abastecimento. Mesmo quando eles deviam sobreviver com os recursos locais, a requisição era uma operação organizada que não degenerava em pilhagem. Em meio às armadas permanentes africanas do século XIX, as mais eficazes apoiavam-se nos recursos locais, em todos os níveis − treinamento, equipamento, comando. Elas assim se situavam, em oposição àquelas forças armadas que se buscava moldar segundo o modelo europeu, quer fosse no tocante aos uniformes, à vida na caserna, ao perfil de treinamento ou às patentes. No caso de Madagascar, chegou-se ao ponto de adotar, relativamente às reformas, a prática da compra de patentes, assim como outras práticas habituais nas armadas europeias do início do século XIX.

Como o exemplo das armadas europeias causara grande impressão, o uso do mosquete europeu expandiu-se; numerosas foram as novas armadas que o ado-taram, algumas em razão do seu poder de fogo (caso dos fuzis Enfield), outras em virtude do poder de detonação e da eficácia do efeito produzido por uma salva de mosquetes, cujo estrondo, somente ele, podia semear o pânico à distân-cia em um regimento de cavalaria. Numerosos soberanos africanos igualmente pretenderam adquirir peças de artilharia. Em função do peso dos canhões e da quantidade da pólvora que eles consumiam, eles tentaram com muito pouco sucesso, produzi-los in loco. Aproximadamente nos anos 1870, teve início a importação de um equipamento de guerra mais aperfeiçoado − fuzis com car-regamento pela culatra, carabinas de repetição, metralhadoras e canhões − cujo nec plus ultra era a metralhadora Maxim que os europeus lograriam monopolizar. Alguns chefes, à imagem dos chefes egba, empregaram canhões europeus, antes e sobretudo como arma psicológica, muito mais que na guerra propriamente dita. Na realidade, desde antes do século XIX, numerosos soberanos haviam buscado importar armas de fogo europeias. Entretanto, foi necessário esperar a segunda metade do século, época na qual se começou a importar armas de fogo mais eficazes, para que os armamentos europeus fossem incontestavelmente vistos como capazes de decidirem o desfecho dos combates na África. Como as armas europeias se haviam tornado um fator indiscutível de superioridade, era desde logo imperioso poder importá-las em tempos de guerra; por conseguinte,

917Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

os esforços realizados para adquiri-las tornaram-se um aspecto essencial do comércio, da diplomacia e da arte de governar.

A revolução ligada a esta crescente importância é ilustrada pela diferença de comportamento entre os imperadores da Etiópia, Téwodros e Yohannès. Téwo-dros tentara produzir in loco canhões de pólvora através de técnicos europeus; contudo, ele provou ser capaz, mesmo sem isso, de vencer armadas mais bem equipadas que a sua e munidas de mosquetes. Contrariamente, Yohannès − e com maior ênfase Ménélik, posteriormente a ele − compreendeu não lhe ser possível livrar-se dos seus inimigos do Tigre e das planícies litorâneas, senão na justa medida do incremento da sua capacidade em tirar proveito da situação para adquirir armamento europeu em maior quantidade e de melhor qualidade, comparativamente ao que dispunha. Com este mesmo espírito, os soberanos da África do Norte e igualmente do Saara e do Sudão dedicaram-se, através do comércio e da diplomacia, a constituir estoques de armas europeias, principal-mente importadas pela África do Norte, mas, igualmente, pelas vias comerciais da costa da África do Oeste e do Leste. Os dirigentes de Madagascar proce-deram do mesmo modo. No centro e ao leste da África, a principal atividade comercial era a caça ao elefante; portanto, o marfim, constituindo uma razão suplementar para a importação das armas de fogo, pela mesma ocasião fortaleceu a tendência à militarização da sociedade.

Uma das consequências maiores desta crescente importância das armas de fogo foi o relativo declínio da cavalaria como corpo de elite e tropa de choque, bem como a sua substituição por uma infantaria armada à moda europeia. Nas regiões florestais e naquelas onde havia a influência militar nguni, a força de elite era tradicionalmente a infantaria. A tendência, no século XIX, consistiu essencialmente em intensificar o treinamento desta infantaria, progressivamente transformada em armada profissional e, ulteriormente, dotada de um armamento europeu. Em meio a vastos deslocamentos populacionais que se produziram, por exemplo, após o Mfecane e o esfacelamento do antigo Império oyo, era possível que um povo da mata, até então defendido por cavaleiros, penetrasse em região de mata mais densa onde a guerra a cavalo era mais difícil; estado que coisas que acentuava o declínio da cavalaria. Em contrapartida, em alguns Estados diretamente confrontados com colonos europeus, tradicionalmente defendidos por cavaleiros equipados com armas de fogo, iniciou-se a criação de pequenos cavalos, com o objetivo de formar novas tropas, capazes de realizarem movi-mentos rápidos, assim como a importação de armas europeias; permitindo deste modo a estes Estados garantirem, por algum tempo, a sua superioridade militar. Quase invariavelmente alhures na África e, particularmente no Sudão, onde

918 África do século XIX à década de 1880

durante séculos a cavalaria fora o núcleo e a elite das forças militares, soldados de infantaria profissionais, bem treinados e armados de fuzil, tornaram-se o prin-cipal componente armado e impuseram-se, a seu turno, como elite. A cavalaria começava então a ser relegada à segunda linha defensiva e à reserva. Este fator suplementar da revolução ocorrida nas forças armadas africanas não deixaria de produzir importantes efeitos sociais e econômicos, todos tendencialmente convergentes para o fortalecimento da posição do soberano, na qualidade de chefe do poder executivo do Estado.

A transformação econômica e social

O que sabemos sobre o século XIX na África evidencia que a reprodução, neste continente, de mutações sociais de primeira grandeza, notadamente a trans-formação do caráter da escravatura, o surgimento de uma classe de guerreiros e de uma classe de mercadores politicamente muito influente. Estas transforma-ções facilitaram e, em certa medida, provocaram as mudanças ocorridas − como mencionado acima − nas estruturas políticas e na organização militar, tanto quanto foram, em parte, estas mesmas transformações o resultado destas últimas. Além disso, havia uma crescente demanda por mão-de-obra, exercida além dos tradicionais limites do grupo familiar, das pequenas comunidades locais ou dos grupos etários organizados. Como no passado, as diversas sociedades africanas repugnavam a ideia segundo a qual seria possível para um homem livre vender o seu trabalho; e a tendência dominante, no século XIX, era promover a utilização de escravos, o trabalho obrigatório e o emprego da mão-de-obra importada. A tendência global, no terceiro quarto do século XIX, era para uma generalização da prática escravocrata, inclusive nas zonas rurais; para o aumento do número de escravos em cada grupo familiar; e para o incremento da sua utilização, com vistas a alcançar uma produção organizada segundo um modo quase-capitalista, mediante o qual, as suas condições tornar-se-iam piores que nunca18.

A partir do início do século, as tensões causadas pelas rivalidades políticas agravaram-se progressivamente, tornando-se corriqueiro que os litígios refe-rentes a terras, gado e, até mesmo, diferenças doutrinais, fossem resolvidos pela eliminação pura e simples de um dos adversários ou, ao menos, da sua perso-nalidade própria. Comunidades inteiras foram assim absorvidas por estruturas políticas existentes, salvo quando eram dispersas, situação que levava à captura

18 G. M. McSche}rey, 1983.

919Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

dos jovens de ambos os sexos. Estes prisioneiros serviam para satisfazer a cres-cente demanda por mão-de-obra nos setores agrícola, artesanal e no trabalho nas minas, além de igualmente contribuírem para prover guerreiros às armadas em vias de constituição. As novas estruturas estatais e militares afirmavam-se a despeito das velhas aristocracias, cuja influência, no triplo plano social, político e econômico, era garantida pelo grande número de esposas e pela importância da rede familiar; outrossim, simultaneamente e como consequência destas novas estruturas, constituíram-se novas categorias sociais, compostas de funcionários, os quais seriam liberados das tarefas agrícolas ordinárias. Estas novas aristo-cracias não se apoiavam em redes parentais, propriamente ditas, mas, antes, em vastas “famílias” de “clientes” e cativos que exploravam terras cuja superfície cres-cia progressivamente para assegurar não somente a subsistência do grupo fami-liar expandido, mas, igualmente, a manutenção dos contingentes de guerreiros, quando a armada estivesse em campanha. Todos estes indivíduos eram também empregados na produção de mercadorias destinadas à venda no mercado local e no grande comércio, com vistas a se adquirir os recursos financeiros necessários para atrair mais clientes e comprar armas e munições importadas.

Quando terminou o tráfico atlântico e aumentou a demanda por ouro, óleo de palma, semente de palmiste e amendoim, na África do Oeste, a demanda por cana-de-açúcar, nas Ilhas Maurício, na Reunião e em Comores, no Oceano Índico, assim como aquela por marfim e cravo, na África Oriental e Central, houve necessidade de crescente volume de mão-de-obra cativa, não somente para produzir estes artigos, mas, igualmente, para transportá-los, por carregado-res ou pirogas, até o litoral. A escravatura ligada às plantações surgiu, quer seja sob a forma de comunidades de escravos organizados segundo o direito consue-tudinário, na costa da Guiné; com base na lei islâmica, nas regiões muçulmanas; ou, tal o caso das ilhas do Oceano Índico, de formas análogas às plantações de tipo americano. Considerando o crescente número de escravos mobilizados nos exércitos ou em funções administrativas junto a diversas cortes, alguns estima-ram que, em numerosas regiões africanas, a população de escravos teria atingido entre 20 e 50% da população total19. Embora existissem casos de revoltas entre os escravos, notadamente aquele dos lozi, os quais se liberaram dos seus senhores kololo20, as populações reduzidas à escravidão não constituíam, por via de regra, uma classe distinta. Certamente, a maioria dos escravos estava encarregada de tarefas subalternas, geralmente agrícolas. Todavia, havia outros grupos relati-

19 Consultar igualmente K. Arhin e J. Ki-Zerbo, acima no capítulo 25.

20 W. G Clarence Smith, 1979b.

920 África do século XIX à década de 1880

vamente importantes, a saber, os guerreiros e escravos domésticos, aos quais se acrescentavam aqueles que, em número reduzido embora considerável, haviam logrado assumir postos de confiança ou responsabilidade em virtude de se terem destacado na guerra, no comércio ou na administração. A condição e o modo de vida destes últimos eram muito variáveis, tornando muito difícil a constituição de uma classe de escravos homogênea. Somente em algumas regiões, como, por exemplo, no antigo Calabar, onde os escravos viviam em perpétuo estado de alienação, onde praticamente nada era feito para integrá-los culturalmente e onde, tradicionalmente, os membros da elite dirigente vangloriavam-se da sua fortuna aumentando o número de escravos sacrificados em cerimônias fúne-bres21, unicamente sob tais condições ocorreu o reagrupamento dos escravos em torno de rituais secretos para exigirem uma melhoria em sua condição. Alhures, a tendência era a aculturação e a integração à sociedade no seio de lares aristocráticos. Certamente, esta integração não ultrapassava determinado nível − como atesta o número daqueles que aspiravam serem libertados ou daqueles que, emancipados pelas leis coloniais, pediram para retornar ao seu lugar de origem −, conquanto fosse ela real, de todo modo e suficientemente, a ponto de permitir supor que a dinâmica da mudança, na maioria das comunidades africanas, seria regida pelas oposições entre os grupos etários e os sexos, no quadro de cada “casa”, assim como por questões estatutárias e ligadas à rivalidade na luta pelo poder entre linhagens e grupos parentais, muito mais que por tensões entre as classes sociais lato sensu.

Não é fácil apreciar, do ponto de vista quantitativo, os efeitos do desenvol-vimento das atividades comerciais nas formações sociais. Não há dúvida que os efetivos e a força da classe dos mercadores tenham aumentado. Menos nítida é a medida da pertinência em se poder falar de surgimento de uma classe mercantil ou capitalista. O comércio longínquo, com os seus centros de caravanas e a sua organização, sob todos os aspectos e especialmente aqueles ligados à segurança, ao reabastecimento, às facilidades de crédito e do transporte, era praticado de longa data na África do Norte e do Oeste e esta atividade expandia-se rapida-mente no século XIX, na África Central e do Leste. Este fenômeno produziu-se, tanto em regiões islamizadas, onde a contabilidade era feita em árabe, quanto nas regiões da África do Oeste, onde se praticava há muito tempo o tráfico de escravos e nas quais as línguas comerciais eram as europeias, assim como nas regiões da África do Leste, onde o kiswahili ganhava espaço, por sua vez, como

21 K. K. Nair, 1972, p. 48; igualmente conferir acima o capítulo 27.

921Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

língua do negócio. É bem provável que, em algumas partes do litoral oeste-africano, a utilização da mão-de-obra servil começasse a ser complementada por antigas formas de trabalho forçado, em curso de expansão, como o empréstimo de recursos mediante “refém”, prática na qual o trabalho do “refém” representava os interesses do tomador de empréstimo e a sua pessoa uma garantia para o provedor do capital. O considerável desenvolvimento desta forma de trabalho forçado era um sinal da crescente influência dos grupos mercantis e da função do banqueiro. Diz-se que na Costa do Ouro, durante os anos 1870, esta prática ganhou uma amplitude comparável àquela da escravatura propriamente dita, esta última permitindo recrutar mão-de-obra além da circunvizinhança imediata da comunidade, ao passo que o sistema de “reféns” consistia no meio de recruta-mento de trabalhadores no interior da própria comunidade22. Entretanto, fora das cidades litorâneas da África do Norte, os mercadores levaram muito tempo para se constituírem como classe distinta. Nas regiões submetidas à influência do cristianismo e das ideias europeias, começava a surgir um grupo de mercadores comparável à classe média vitoriana. Contudo, mesmo nesta região, excetuando-se a Serra Leoa e a Libéria, os mercadores que pretendiam ganhar influência e poder no interior dos Estados tradicionais, alcançavam-no principalmente adquirindo títulos de chefia no seio das estruturas estatais em formação. Em muitas regiões do Sudão e da Senegâmbia, o grupo dominante de mercadores estava estreitamente ligado aos chefes religiosos muçulmanos, a tal ponto que não havia uma classe distinta de mercadores, mas, antes e sobretudo, uma classe de religiosos que praticavam comércio. Alhures, não existia distinção nítida entre os mercadores ou guerreiros e a elite dirigente. Numerosos dentre aqueles que, em sua juventude, lançavam-se em projetos comerciais, posteriormente, tornavam-se suficientemente prósperos para financiarem os projetos similares de outros, comprando, com a fortuna alcançada, funções tradicionais que lhes conferiam poderes oficiais, por eles exercidos simultaneamente à sua adminis-tração das terras, dos rebanhos e de outros bens e à organização, mediante uma estrutura paramilitar, dos seus clientes e partidários.

Desde os anos 1870, na África Austral, as necessidades da agricultura comer-cial, sobretudo praticada pelos bôeres, mas, igualmente, por alguns britânicos, haviam criado uma insaciável demanda por mão-de-obra. A colônia do Cabo pudera dispor de escravos libertos, “aprendizes” e trabalhadores do exterior, a exemplo dos mfengu, os quais haviam fugido do Mfecane, ao passo que o Natal,

22 G. M. McShe}rey, 1983.

922 África do século XIX à década de 1880

o Estado livre de Orange e o Transvaal obtiveram os seus contingentes sobre-tudo entre os seus vizinhos africanos espoliados das suas terras, cuja liberdade de deslocamento era restringida pelas Pass Laws. Quando foram descobertas as jazidas de diamante do Griqualand Ocidental, aumentou sobremaneira a demanda por mão-de-obra e fez-se necessário trazer de regiões mais distantes os trabalhadores imigrantes. Embora oficialmente não tenha havido escravatura na África do Sul e tampouco sistema de “reféns”, era notável o nascimento de um processo de proletarização, ainda pior e cuja receita era a seguinte: arrancar dos Estados africanos as suas melhores terras, criando populações sem-terra, as quais não possuíam outra escolha senão trabalharem nas rigorosas condições fixadas pelos seus impiedosos rivais. Deste modo, a sinistra disputa entre as colônias brancas e os Estados africanos, desenvolvida com arbitragem parcial do soberano britânico, não mais e tão somente possuía como objeto terras ou gado, mas, desta feita, a supremacia total, o poder de obrigar as pessoas a trabalharem a partir de uma posição de força inexpugnável. Tal combate não poderia encon-trar desfecho em uma federação no seio de um “império informal”. Contudo, ao passo que esta situação começava a tornar-se progressivamente mais nítida para os europeus, fossem eles colonos, funcionários coloniais ou membros do governo imperial, os chefes dos diferentes Estados africanos, por sua vez, não percebiam a qual ponto a regra do jogo mudara com a aproximação do último quarto do século XIX.

A evolução das relações de força

Houve, ao longo dos anos 1870, transformações capitais não somente na estrutura interna dos Estados africanos, mas, igualmente, no tocante ao respec-tivo papel dos europeus na África e no âmbito dos meios dos quais dispunham estes últimos. Em 1870, as repercussões da Revolução Industrial e da guerra na Europa sobre a organização dos Estados e o seu poderio militar tornavam-se evidentes. Entre as nações europeias e os Estados africanos, as relações de força começavam a adquirir contornos progressivamente desiguais. Naquele ano, a Alemanha e a Itália tornaram-se Estados unificados, desde logo mais fortes, cujos cidadãos não tardariam a exigir uma participação mais ativa na obtenção dos recursos africanos. Em 1870-1871, Bismarck selou a unidade alemã através de uma vitória sobre a França, no desfecho de uma guerra que inaugurara o emprego de novas técnicas militares, especialmente no tocante aos armamentos, ao treinamento das tropas e à tática. O efeito destas novidades rapidamente foi

923Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

sentido na África, onde se iniciou a importação de armas de fogo mais aper-feiçoadas. Na França, a necessidade de recuperação após a derrota mencionada traduziu-se pela vontade de erguer um império na África, tanto pelo valor intrínseco da empreitada quanto pelas suas repercussões no estado moral da nação. A França lançou-se portanto em uma nova política de expansão dinâmica e defesa dos seus interesses nacionais na África, política geralmente aplicada através de agentes comerciais ou missionários e, mais especificamente, graças ao fortalecimento da posição francesa na Argélia e na Senegâmbia. A revolta ocorrida na Kabília foi violentamente reprimida. Ela ofereceu oportunidade de confisco de consideráveis superfícies de terra cultivável junto aos árabes e de pastagens a serem distribuídas entre os colonos europeus, ao passo que os árabes sem-terra foram reduzidos a constituírem uma mão-de-obra barata. Aos colonos franceses, espanhóis, italianos, malteses ou gregos, cristãos ou judeus, se lhes foi atribuída a cidadania francesa, situação privilegiada em relação aos árabes que, por sua vez, eram sujeitos franceses.

Estes acontecimentos tiveram globalmente como efeito o fortalecimento da concorrência existente entre os europeus. Em face da ação incisiva e deliberada da França, os britânicos não se mostravam menos pretensos a consolidarem e defenderem as suas próprias posições. A descoberta de diamantes, em 1869-1870, na Griqualand Ocidental e a perspectiva de descoberta de ouro em grande quantidade elevaram a febre por concorrência e profundamente modificaram as bases sobre as quais repousavam as relações entre europeus na África, assim como as relações entre europeus e africanos. Diversas atividades às quais os europeus se haviam aparentemente dedicado até então, de modo desinteres-sado ou com fins humanitários, passaram a ser consideradas segundo o que elas eventualmente pudessem oferecer aos interesses nacionais europeus. Já se fora o tempo em que os exploradores agiam simplesmente movidos pela curio-sidade científica; neste período tratar-se-ia sobretudo de agentes encarregados de recolherem informações estratégicas e segredos comerciais. Os missionários não eram somente servidores de Deus, obedecendo à vocação de evangeliza-ção, doravante seriam agentes organizados em prol de um esforço nacional de aculturação que tinha como objetivo exclusivo enfraquecer a posição cultural e comercial dos seus anfitriões. Os mercadores não buscavam unicamente o lucro; eles preparavam o terreno com vistas à instalação do seu país nos postos de comando. Desta forma, a frequente colaboração entre africanos e europeus que, até bem pouco, aparentemente tendia a colocar as ideias e as técnicas ao serviço do fortalecimento das nações africanas, durante a situação revolucionária do século XIX, transformava-se em um plano de subversão que contribuía dire-

924 África do século XIX à década de 1880

tamente para sistematicamente levar ao aborto os esforços empreendidos pelos dirigentes africanos com vistas a reformar e modernizar as suas sociedades.

Seguindo a mesma lógica, os soberanos africanos geralmente consideravam as atividades dos abolicionistas como negativas. Em muitos casos, após resisti-rem e contemporizarem, eles finalmente aceitaram contribuir para o término do tráfico transatlântico, na justa medida em que outras possibilidades de exporta-ção (produtos agrícolas, ouro, marfim etc.) eram-lhes ofertadas em substituição e mediante a condição de poderem, eles próprios, continuar a possuir escravos, bem como recorrer a outras formas de trabalho forçado. Existia, portanto, uma base de cooperação. Tratava-se, como indicamos anteriormente, da crescente utilização da mão-de-obra escrava. Os europeus reconheceram o estado de fato, porém, ao longo dos anos 1870 e sem contudo renunciarem à sua postura, eles passaram a utilizar a emancipação como um fator de natureza a enfraquecer as bases econômicas dos Estados africanos. Deve-se expressamente notar, a este respeito, que a maioria das tropas levadas pelos europeus à África, nesta época, eram compostas por escravos africanos emancipados e que estes últimos perma-neciam leais aos seus libertadores, os quais os armavam e comandavam.

A maioria dos dirigentes africanos estava igualmente muito preocupada com os missionários europeus. Por conseguinte, numerosos foram aqueles que finalmente ofereceram-lhes bom acolhimento, conquanto estes missionários colocassem, em sua tarefa, menor ênfase sobre as conversões comparativamente àquela dedicada à educação. Numerosos soberanos demonstravam-se felizes com a possibilidade oferecida a alguns dos seus escravos ou, inclusive aos seus pró-prios filhos, de aprenderem a ler e escrever, capacidade considerada a chave do saber do homem branco, além de um elemento essencial nas relações comerciais. Os missionários recebiam ainda melhor acolhimento quando ensinavam novas técnicas, tais como a impressão gráfica, a construção de habitações, a agricultura mecanizada, a vacinação etc. Eventualmente se lhes solicitava o ensino da arte de fabricação das armas de fogo e da pólvora, assim como de outros artigos de importância estratégica ou, ao menos, se lhes requeria assistência na importação destes artigos. No curso dos anos 1870, já era possível constatar que o processo de aculturação tinha como efeito o enfraquecimento da identidade dos países de acolhida e o despertar da sua vontade em manterem a sua independência. As atividades missionárias igualmente tornaram-se um fator de divisão, na justa medida em que elas incitaram tal ou qual Estado africano a apoiar os habitantes locais europeus, ao passo que outros se opunham a eles.

A mais subversiva dentre todas as atividades europeias talvez tenha sido o comércio. Os intercâmbios comerciais normalmente compunham a base da

925Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

cooperação entre africanos e europeus, os quais demonstravam, ambos, todo o interesse em promover o desenvolvimento. Cabia aos soberanos africanos, por razões estratégicas, regulamentar o comércio e permitir aos Estados e merca-dores africanos dele extraírem as maiores vantagens possíveis. Os comerciantes europeus igualmente dedicavam-se, bem entendido, a negociar condições que lhes garantissem os maiores lucros possíveis. Na África do Norte, eles haviam explorado as fraquezas do imperador otomano para provocar a concessão aos europeus de privilégios exorbitantes, através de tratado, engajando-se em con-trapartida a contribuírem para o fortalecimento da tutela otomana; situação esta que enfraquecia a capacidade dos dirigentes norte-africanos em regulamentarem o comércio nos seus próprios territórios. Os europeus reservavam-se, outrossim, o direito de se atribuírem tal ou qual parte do Império Otomano, sempre que isso parecesse oportuno para o concerto das potências europeias. A França impôs uma derrota ao dei de Argel, em 1830, fazendo valer pretensões sobre o conjunto do beilhique e, posteriormente, em 1878, ela reclamou a Tunísia, do mesmo modo que a Grã-Bretanha o faria em relação ao Egito, no ano de 1882.

Durante os anos 1870, o livre comércio era a palavra de ordem com a qual os europeus opunham-se ao direito dos chefes africanos de regulamentarem o comér-cio23. Em nome do livre comércio, eles se esforçavam em obter maiores privilégios para os seus negociantes. Eles encorajavam os soberanos africanos a endividarem-se pesadamente junto aos bancos europeus e a aventureiros europeus de passado duvidoso. Eles manipulavam o serviço da dívida de modo a adquirirem, com anos de antecedência, direitos sobre a produção agrícola e as receitas aduaneiras. Eles assinavam acordos desiguais para a cobrança das dívidas e, fortalecidos com estes privilégios, além de outros que haviam sido concedidos aos seus negociantes, empe-nhavam-se no enfraquecimento da economia dos Estados, assim como e sobre-tudo, dedicavam-se a debilitar o controle que os soberanos africanos eram capazes de exercer sobre os mecanismos econômicos. No Egito e na Tunísia, os europeus impuseram a vigilância de comissões internacionais da dívida, cuja ação atingia gravemente a autonomia dos dirigentes, além de provocarem levantes, bloquearem as reformas e conduzirem, em linha reta, para a perda da independência, pratica-mente sem combate. Porém, o livre comércio não passava de um slogan que marcava o desejo de passar as rédeas da economia aos negociantes europeus para que estes

23 A mais nítida expressão deste estado de espírito está contida no Ato Geral da Conferência de Berlim, no qual o princípio da “porta aberta” foi proclamado para o Congo e o Níger, constituindo o prelúdio da política de monopólio praticada pela Associação Internacional Africana, patrocinada por Léopold da Bélgica e pela Companhia Real do Níger.

926 África do século XIX à década de 1880

pudessem excluir não somente os negociantes africanos, mas, igualmente, outros habitantes de origem europeia.

A razão da confiança e da agressividade recém-demonstrada pelos europeus, a partir dos anos 1870, era a industrialização e um capitalismo em plena maturi-dade, situação atestada, por exemplo, pelos novos tipos de armas de fogo, as quais fizeram pender o equilíbrio de forças para o lado dos exércitos conduzidos pelos europeus. Esta mudança não ocorrera da noite para o dia e os próprios europeus não forçaram a aceleração do processo. Certamente, até 1871, talvez em grande parte pela proximidade do país, os franceses mobilizaram até 110.000 homens na guerra por eles travada na Argélia. Entretanto, caso excetuarmos o caso refe-rente à guerra anglo-bôer de 1899-1902, a qual aparenta efetivamente ser uma exceção na qual a Grã-Bretanha engajou um contingente militar ainda maior, nenhuma outra potência podia manter forças tão importantes na África. A Grã-Bretanha utilizou até 12.000 homens (em sua maioria tropas indianas) na invasão da Etiópia, em 1868; no entanto, não mais que 2.500 soldados britânicos foram comandados por sir Garnet Wolseley, quando o Ashanti foi invadido e Kumasi saqueada. Posteriormente, os europeus empregariam preferencialmente escravos emancipados, recrutados e treinados por eles. Várias armadas africanas − à imagem dos impis zulu, dos amazonas do Daomé e dos balouchis de Zanzibar − eram reputadas pela sua disciplina e pela qualidade do seu treinamento. Havia igualmente generais africanos capazes de rivalizarem com os chefes militares europeus, além de estarem, os primeiros, mais familiarizados com o terreno. Os europeus logravam, invariavelmente, não somente recrutar tropas africanas em número suficiente, mas, igualmente, realizavam alianças. Os serviços de infor-mação militares, bem como os mercadores e missionários, sempre forneciam bons indicativos para a abordagem junto a eventuais aliados. Todavia, se os oficiais europeus e as suas tropas africanas conservavam um moral elevado, isso se devia antes a um novo sentimento: a confiança nascida da certeza, segundo a qual, enquanto conservassem a superioridade quanta e qualitativa no tocante ao armamento, mesmo em caso de possível derrota em batalhas aqui ou acolá, a guerra finalmente teria um desfecho favorável a eles.

A herança das guerras

Podemos dizer à guisa de conclusão que, nos anos 1870, os esforços empre-endidos em diferentes partes do continente, para integralmente reconstruir a sociedade, haviam produzido grandes transformações, as quais, além das tendên-

927Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

cias divergentes, em seu conjunto haviam reforçado a capacidade dos africanos em se defenderem e preservarem os seus interesses. Igual e nitidamente, durante este período, a presença europeia operava solapando estas estruturas e fazendo pesar uma grave ameaça futura; situação exacerbada em razão do altíssimo preço pago pelos chefes africanos em suas vitórias, ao qual podemos denominar herança das guerras.

Acompanhamos o surgimento de Estados mais extensos e fortes, nos quais o poder executivo tinha tendência a se concentrar nas mãos de certo número de elementos que, a título individual ou na qualidade de detentores de tal ou qual função, dependiam muito mais diretamente da autoridade do soberano e de funcionários que deviam as suas atribuições, sobretudo, ao seu mérito, aos seus atos pregressos e à ação do príncipe, comparativamente à interferência de antigos direitos hereditários. O processo que conduzira à instauração destes Estados mais fortes, onde esta concentração tornara o poder executivo mais eficaz, dilapidara outros Estados, mais fracos. Diversas categorias de indivíduos em risco de perda do poder, sobre as quais pesava uma ameaça a interesses de toda espécie por eles anteriormente adquiridos, haviam reagido e a guerra tor-nara-se um fenômeno endêmico. Tanto mais os europeus tomavam consciência do aumento do poder estatal na África, mais eles demonstravam decisão em lhe impor obstáculos; e a sua tarefa era facilitada pela possibilidade que se lhes oferecia de explorar a herança deste constante estado de guerra para suscitarem divisões e criarem oportunidades de intervenção.

Os Estados formados haviam constituído instituições políticas mais estáveis e geralmente mais eficazes que todas as instituições precedentes, com objetivo atingir a satisfação das exigências do soberano em sua relação com os seus sujei-tos. Isso supunha, como indicamos anteriormente, uma definição mais precisa da autoridade, além de um traçado mais nítido das fronteiras. Talvez este fator tenha igualmente favorecido uma tomada de consciência mais precisa sobre o valor do solo. De todo modo, os conflitos tornaram-se mais implacáveis que no passado e tenderam para a guerra total. Eles não tinham simplesmente como objetivo determinar os limites dos poderes respectivos dos chefes em conflito, pois que, desta feita, colocava-se em jogo o destino de sociedades inteiras. Não é raro observar o vencedor fazer prisioneira toda a população ativa, amparar-se das terras, dos rebanhos e, por vezes, anexar a comunidade inteira, levando-a à consequente perda da sua identidade.

É imperioso aqui sublinhar que, em larga escala, as guerras do século XIX não fortaleceram o poder de Estado senão em detrimento de outras formas de solidariedade. As rivalidades políticas e a concorrência econômica, colocadas em

928 África do século XIX à década de 1880

jogo por estas guerras, eram de tamanha intensidade que sequer respeitavam aquilo que nós denominaríamos atualmente etnicidade − ou seja, as afinidades culturais criadas pelo emprego de uma mesma língua, pela crença nos mesmos mitos sobre a origem do homem ou do grupo, assim como pelas redes paren-tais ou pela interconexão de crenças religiosas que, por via de regra, haviam no passado transcendido as fronteiras de poder dos Estados. Se este declínio da etnicidade sem dúvida não era novo, ele certamente jamais fora tão gene-ralizado quanto no século XIX. Nos enfrentamentos e processos de formação dos Estados ligados ao Mfecane ou às guerras iorubás, ashanti ou massai deste século, o poder de Estado sem dúvida alguma desempenhou um papel muito mais importante que a etnicidade. Com efeito, caso considerarmos a amplitude das guerras e dos deslocamentos populacionais, ligados ao tráfico de escravos e ao processo de formação ou reconstrução dos Estados, é paradoxal que tenha sido possível, no tocante aos povos africanos às vésperas da conquista colonial, evocar a velha noção antropológica de tribo, cujas características seriam aquelas de uma entidade biológica imutável. Muito em contrário, na realidade, as novas estruturas estatais que não repousavam sobre a etnicidade se haviam tornado mais importantes que a solidariedade étnica, no que dizia respeito a determinar a reação dos diversos povos africanos frente ao desafio europeu.

A estratégia dos europeus, quando tomaram consciência do fortalecimento do poder estatal na África, equivaleu primeiramente a cerrar fileiras sob o impe-rativo do interesse nacional. Os missionários, mercadores, exploradores e agentes consulares europeus, outrora pretensos a agirem de forma dispersa e, muito ami-úde, oposta entre si, começaram a se unir sob a bandeira dos interesses nacionais. A situação ao início do século, época em que era possível observar missionários alemães patrocinados por instituições britânicas ou ainda negociantes franceses e britânicos cooperarem na corte de Zanzibar, era progressiva e dificilmente imaginável nos anos 1870. Esta estratégia dos europeus todavia mostrou-se ineficaz, haja vista que os soberanos africanos passaram a considerar que todos os habitantes europeus, fossem eles missionários, comerciantes ou exploradores, serviam em última análise aos mesmos interesses. Além disso, estes reis se haviam tornado peritos na arte de jogar as nações europeias umas contra as outras, de tal modo que os europeus decidiram comportarem-se diferentemente.

Como observamos, o fator que definitivamente fez pender o equilíbrio de forças na África, nos anos 1870, não foi a natureza das armadas ou a excelência do seu treinamento, da sua disciplina ou do seu comando, mas a qualidade e a quantidade das armas de fogo. A última palavra, na luta pelo poder na África, pertenceria portanto àqueles que tivessem o controle das armas e munições. A

929Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia

situação tenderia a permanecer incerta por tanto tempo quanto os europeus buscassem separadamente satisfazer os seus interesses nacionais e os chefes de Estado africanos pudessem jogar as potências umas contra as outras. Ademais, os europeus, com absoluta necessidade de terem aliados, resignar-se-iam a for-necer armas de fogo para a obtenção de tratados, concessões, garantias de neu-tralidade ou, em contrário, para conseguirem a participação ativa em guerras que os opunham a Estados africanos rivais. Portanto, se lhes tornou essencial subme-terem a corrida para a África a certas regras baseadas em acordos internacionais e, muito especialmente, limitarem o fornecimento de armas e munições. A mais intensa rivalidade colocava em disputa britânicos e franceses. Os britânicos tentaram, para garantir os seus interesses, constituir-se em protetores, inclusive dos interesses portugueses, situação que ofereceu a Bismarck a oportunidade de se intrometer de modo interessado, reunindo em Berlim uma conferência internacional. O encontro de Berlim, por sua vez, concedeu ao rei Léopold da Bélgica a ocasião de obter o aval da comunidade internacional acerca das suas pretensões no Congo, razão pela qual ele proclamou, em alto e bom tom, o livre comércio e as ideias humanitárias antiescravagistas24. Esta evolução abriria caminho para o Ato de Bruxelas, o qual, em nome da campanha antiescravista, interditou o fornecimento de armas aos chefes de Estado africanos.

O fato é que, invocando a limitação dos armamentos e a campanha contra o escravismo, os britânicos puderam isentar os colonos “autônomos” da África do Sul da aplicação dos dispositivos adotados em Bruxelas. Segundo a mesma lógica, sem deixar de combater tal ou qual Estado da África e negociar múlti-plos tratados e convenções com soberanos africanos, eles igualmente puderam sustentar que, em razão de possuírem escravos e serem comerciantes, os Esta-dos africanos não eram reconhecidos pelo direito internacional. Portanto, foi possível declarar no Ato Geral da Conferência de Berlim (1885) e no Ato de Bruxelas (1889) que, segundo o direito internacional, a África era terra nullius e que somente as potências europeias e os seus colonos nela possuíam interesses, os quais deviam ser protegidos.

Em outros termos, enquanto na África os países europeus tratavam com tal ou qual Estado africano, reconhecendo-os, aliando-se com alguns ou comba-tendo outros, na Europa, ao contrário, eles cerravam fileiras como irmãos de raça e formavam um cartel para regulamentar o fornecimento dos principais armamentos aos africanos. Os chefes africanos não tinham nenhum meio de

24 S. Miers, 1971.

930 África do século XIX à década de 1880

resposta a tal estratégia. A luta pelo poder na África encontrava-se portanto entrelaçada à política internacional do concerto das potências europeias, domí-nio no qual a diplomacia africana sofria de uma grave desvantagem. É duvidoso que os africanos se tenham dado conta, antes que fosse tarde demais, da gra-vidade do perigo que os ameaçava. Habitualmente, eles contavam com o fato dos europeus estarem, na África, distantes das suas bases e, especialmente, com a invariável vantagem numérica dos africanos. Eles preservaram a sua conduta como se pudessem indefinidamente jogar as potências europeias umas contra as outras. Na África Austral, eles inclusive acreditaram serem capazes de apelar à rainha da Inglaterra e aos seus representantes diretos para fazer respeitar as obrigações decorrentes dos tratados, contra a vontade dos colonos anglo-bôeres e de alguns aventureiros. A mil léguas de imaginar o contrapeso que poderia ter representado a solidariedade africana, cada Estado comportava-se como julgava adequado fazê-lo, isoladamente e em seu próprio interesse.

Caso pretendamos encontrar a explicação para este estado de coisas, é neces-sário invocar, aparentemente, não somente os talentos diplomáticos das estra-tégias europeias, mas, igualmente, a herança das guerras, aspecto indissociável das situações revolucionárias que caracterizaram a África no século XIX. Foi a intensidade e a crueldade das guerras que impediu os dirigentes africanos de a tempo compreenderem que a resposta à investida europeia deveria tomar a frente das oposições existentes entre Estados africanos, os quais deveriam se unir para enfrentar esta ameaça.