Contemporaneidade e Vida Privada. Olhares ... · PDF filePalavras-chave: História da vida privada – Interdisciplinaridade – Brasil, século XX. O livro Contrastes da intimidade

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  • HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 511

    Contemporaneidade e Vida Privada. Olhares interdisciplinares sobre o Brasil

    Marcos SILVA

    Resumo: Este artigo discute o livro Contrastes da intimidade contempornea. O texto analisa suas concepes de periodizao, territorialidade, sociabilidades e outras dimenses de mtodo em Histria. Ele aponta conquistas e limites nesse dilogo entre Cincias Sociais e Conhecimento Histrico. Palavras-chave: Histria da vida privada Interdisciplinaridade Brasil, sculo XX. O livro Contrastes da intimidade contempornea o ltimo

    e mais extenso volume da srie Histria da vida privada no Brasil, dirigida por Fernando Novais. A antroploga Lilia Moritz Schwarcz coordenou esse tomo1.

    A trajetria profissional de Schwarcz marcada pelo dilogo com o conhecimento histrico, a partir de estudos sobre relaes raciais e racismo no Brasil. Sua tese de livre-docncia traou um perfil de Pedro II, imperador brasileiro.

    A importncia da interdisciplinaridade para o conhecimento histrico foi salientada especialmente a partir da criao da revista erudita francesa Annales, em 1929. Suas ligaes com a Antropologia se deram, nesse incio, atravs da tradio durkheimiana, em especial, de Marcel Mauss. possvel identificar tpicos desse dilogo (materialidade da cultura e dimenso cultural do corpo) nos livros de Marc Bloch Os reis taumaturgos, Caracteres originais da histria rural francesa e Apologia da Histria ou Ofcio do historiador. O tempo

    Professor Titular Departamento de Histria FFLCH Universidade de So Paulo USP 05508-900 So Paulo SP Brasil. E-mail: [email protected]

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    histrico aparece como o outro etnogrfico em O problema da descrena no sculo XVI, de Lucien Febvre, que salienta a importncia do olfato para os homens da Frana quinhentista. Historiadores mais recentes ligados a essa tradio ampliaram tal dilogo2.

    A abrangncia do conhecimento histrico, em termos de temas e explicaes, foi lembrada por um dos historiadores da Nova Histria, Paul Veyne, retomando discusses que vm do sculo XIX e embasam a possibilidade infinita do debate interdisciplinar3. Um risco, nesse passo, transferir para outras disciplinas tarefas tcnicas e tericas que so tambm da Histria, transformando interdisciplinaridade em parasitismo. Seria limitador dividir papis entre historiadores e cientistas sociais atravs de critrios temticos ou de periodizaes. Trata-se de pensar sobre sutis nuances (nfase conceitual, peso e crtica da referenciao documental, reflexo sobre a temporalidade das experincias), compartilhadas entre as Cincias Humanas.

    Lilia argumenta que, entre ns, (...) poucos profissionais da rea (Histria) vm se dedicando, de forma prioritria, anlise da 'histria imediata". Da, justificar a opo por uma equipe interdisciplinar para o volume. Trs dos ensaios que o compem resultaram do trabalho das antroplogas. Um obra de cientista poltica, junto com jornalista. Outro veio de uma demgrafa. Dois mereceram a abordagem de socilogos. Por fim, trs foram escritos por historiadores, um em colaborao com economista.

    Alguns indcios sugerem que o argumento de Schwarcz sobre escassa ateno de historiadores brasileiros em relao Histria do passado recente ou do presente no tem fundamento, observando-se que: 1) existe uma tradio clssica na Historiografia brasileira de abordar essas questes, representada por nomes como Euclides da Cunha, Srgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre4; 2) tambm existe uma tradio de abordar tais questes entre os jovens pesquisadores arrolados num balano de teses e dissertaes dos principais programas brasileiros de ps-graduao em Histria. Nele, podem ser identificados temas

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    como MST, sindicalismo na ditadura e depois, redemocratizao e cultura brasileira recente5; 3) a Histria Oral se consolidou, no Brasil, como gnero de pesquisa, desde a segunda metade dos anos 70 do sculo XX, est disseminada em diferentes programas brasileiros de pesquisa e h uma instituio de referncia nessa rea, entre ns: o CPDOC/FGV (Rio de Janeiro).

    Apesar dessa inadequao argumentativa, cabe ressaltar a excelncia intelectual dos no-historiadores convidados. So pesquisadores prestigiados em suas reas e ligados a horizontes de historicidade.

    O recorte central de periodizao anunciado por Lilia vai dos anos 40 aos 90 do sculo XX. Seu final diz respeito ao momento em que o livro foi escrito. O ponto de partida evoca Getlio Vargas (CIC, p. 8) e ampliao do setor industrial. So marcos da poltica institucional e da economia, duvidosos em relao vida privada.

    Trata-se de uma dificuldade geral da srie: em Cotidiano e vida privada na Amrica Portuguesa, ausncia de estado nacional e definio dessa Amrica como portuguesa (vis administrativo: na vida social, a presena indgena e africana muito forte, como demonstrado desde Freyre, com os antecedentes de Sylvio Romero6); em Imprio A Corte e a modernidade nacional, existncia de estado nacional monrquico e ao centralizadora da Corte; em Repblica: Da Belle poque Era do rdio, existncia de estado nacional republicano e ao centralizadora da Capital Federal.

    A prioridade atribuda aos marcos da poltica institucional vlida, em termos de periodizao, para a poltica institucional. Transferi-la para a vida privada anula especificidades desse campo. E perde de vista a flexibilidade das periodizaes prpria ao conhecimento histrico: cada modalidade de experincia remete a mltiplas articulaes. possvel que essa escolha se deva maior facilidade de contato com o leitor, j habituado a recortes clssicos. Trata-se de critrio de mercado prprio a uma coleo voltada para pblico diversificado.

    Os diversos ensaios que compem Contrastes da intimidade contempornea realizam diferentes recortes de

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    periodizao, de acordo com especificidades temticas ou preferncias interpretativas de seus autores.

    Boris Fausto (Imigrao: cortes e continuidades) volta-se para o incio do sculo XX. Essa concentrao se articula ao grande peso dos movimentos populacionais, em escala internacional, naquele perodo. Como se concentra no perodo anterior aos anos 30 do sculo XX, Fausto no aborda o racismo brasileiro em relao a judeus e asiticos, que se manifestou especialmente durante o Estado Novo (tempo de Nazismo e Segunda Guerra). Encerrando o ensaio, Boris cita a crescente importncia das migraes internas para So Paulo e Sudeste, desde os anos 30 do sculo XX, e a presena recente de novos contingentes imigrantes, representados por asiticos, latino-americanos e africanos. Nada diz sobre a inverso internacional dos deslocamentos humanos, nas duas ltimas dcadas do mesmo sculo, com a sada de milhares de brasileiros para outros pases - EUA, Japo, travestis na Europa. No comenta as denncias de trabalho escravo entre chineses, coreanos e latino-americanos ilegais no Brasil, nem as diferentes mfias na So Paulo da passagem para o sculo XXI.

    ngela de Castro Gomes, no texto A poltica brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o pblico e o privado, tambm atribui um peso decisivo s dcadas iniciais do sculo XX (abre e fecha o ensaio falando de Rui Barbosa), mas desdobra essa ateno para Revoluo de 1930, Estado Novo e Populismo, tratando concisamente da ditadura de 1964/1985 e da redemocratizao. Alm de comentar o legalismo de Barbosa, em contraste com o caudilhismo de Pinheiro Machado, Gomes assinala a importncia de Oliveira Vianna para a definio daquela modernidade7. Sobre o perodo mais recente, d especial ateno a Juscelino Kubitschek. ngela pensa esses tempos a partir da ao de Estado, lideranas e intelectuais, atribuindo menor peso s prticas das bases sociais, que figuram no ensaio como projetos daqueles outros sujeitos.

    Os textos de Montes, Schwarcz, Berqu e Martins so exemplos de dilogos entre a segunda metade do sculo XX e perodos anteriores.

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    Abordando o Catolicismo na tradio brasileira, Maria Lcia Montes (As figuras do sagrado: entre o pblico e o privado) aponta um processo de decadncia da Igreja Catlica, no plano internacional, a partir do sculo XIX, compensado, na passagem para o sculo XX, pela experincia da romanizao8. Maria Lucia tambm salienta o teor "privatizante" da Igreja Catlica Romana no Brasil, desde o incio da repblica at meados do sculo XX, atravs da prioridade atribuda prtica espiritual, no mbito da famlia e na ao do indivduo. Caracteriza-a, ainda, por elitismo e ligao privilegiada com hierarquia do estado ou das classes dirigentes.

    Um primeiro trao das tradies afro-brasileiras que Montes reala a experincia de distoro nas relaes com o poder colonial. Tais tradies, no plano religioso, estavam apoiadas no culto dos ancestrais, e a viso senhorial as tolerava como divertimento, ou as reprimia como feitiaria. A partir de fins do sculo XIX, as elites nacionais passaram a desqualific-las em nome de modernidade, razo e cincia, perseguindo os fiis do Candombl, inclusive no plano policial, at os anos 30 do sculo XX. Algumas mudanas nesse panorama se fizeram sentir quando as tradies culturais africanas passaram a ser entendidas como parte da identidade nacional, pelos modernistas e seus sucessores. Nos anos 20 e 30, Maria Lcia identifica o nascimento da Umbanda a partir de mesclas entre elementos de Candombl, Espiritismo, Evolucionismo e Positivismo. J o Candombl, em sua vertente mais "clssica", manteve-se em alguns ncleos (Salvador e Rio de Janeiro) e cresceu em So Paulo a partir dos anos 60, num