71
Revista História & Luta de Classes Nº 18 – Setembro de 2014 SUMÁRIO Editor: Gilberto Calil (Unioeste) Comissão Editorial: David Maciel (GO), Diorge Konrad (RS), Gilberto Calil (PR), Igor Santos Gomes (BA), Kênia Miranda (RJ), Mônica Piccolo (MA), Rômulo Costa Mattos (RJ), Tiago Bernardon (PB), Vicente Ribeiro (SC), Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UFFS), Alessandra Gasparotto (UFPEL), Alexandre Tavares Lira (RJ), Anderson Tavares (UFF), Andrea Lemos Xavier Galucio ((UFF) Angélica Lovatto (UNESP), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Aruã Silva de Lima (UFAL), Caio Graco Cobério (USP), Carlos Bauer (UNINOVE); Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Zacarias de Sena Júnior (UFBA), Cláudia Trindade (RJ) Cláudio Lopes Maia (UFG), Clécio Ferreira Mendes (UFG), Danilo Martuscelli (UFFS), David Maciel (UFG), David Rehem (BA), Demian Melo (UFF), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho Maciel (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Ednaldo Sacramento (UEFS), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Eurelino Coelho (UEFS), Fabiano Faria (UFRJ), Fábio Bacila Sahd (USP), Fábio Frizzo (UFF), Felipe Demier (UERJ), Gelsom Rozentino (UERJ), Gerson Fraga (UFFS), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gláucia Konrad (UFSM), Hélio Rodrigues (IESB/CEUB), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Hugo Bellucco (UFF), Igor Gomes Santos (IFBA), Isabel Gritti (URI), Jorge Fernández (UFMS). José Ernesto Moura Knust (UFF), Juliana Lessa Vieira (UFF), Kátia Paranhos (UFU), Kênia Miranda (UFF), Larissa Costard (UFF), Leandro Galastri (UNESP), Lorene Figueiredo (UFF), Lucas Patschiki (UFG), Luciana Lombardo Costa Pereira (PUC-RJ), Lúcio Flávio de Almeida (PUC-SP), Luiz Cláudio Duarte (UFF), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Marco Marques Pestana (UFF), Marcos Smaniotto (UFGD), Marilia Trajtemberg (UFF), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Martina Spohr (FGV), Maurício Gonçalves (UNESP), Michel Goulart da Silva (IFSC), Mônica Piccolo (UEMA), Muniz Ferreira (UFRJ), Osvaldo Maciel (UNEAL/UFAL), Paulo Douglas Barsotti (FGV-SP), Paulo Henrique Pachá (UFF), Paulo Villaça (UFF), Paulo Zarth (UFSC), Pedro Leão da Costa Neto (TUIUTI), Pedro Marinho (MAST/UNIRIO), Rafael Caruccio (RS), Rafael Maul (RJ), Rafael Mota (UFF), Rafael Rossi (RJ), Rejane Carolina Hoeveler (UFF), Renata Gonçalves (UNIFESP), Renato Della Vecchia (UCPEL), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo da Gama Rosa Costa (FFSD), Ricardo Teixeira (UFF), Rodrigo Jurucê Gonçalves (UEG), Rodrigo Santos de Oliveira (FURG), Rômulo Costa Mattos (PUCRJ), Selma Martins Duarte (UNIOESTE), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina Mendonça (UFF), Sydenham Lourenço Neto (UERJ), Thiago Reis Marques Ribeiro (UFF), Tiago Bernardon (UEPB), Valerio Arcary (CEFET-SP), Vera Barroso (FAPA), Vicente Ribeiro (UFFS), Virgínia Fontes (UFF/FIOCRUZ), Wanderson Fábio de Melo (UFF), Zilda Alves de Moura (UFMS), Zuleide Simas da Silveira (UFF). Próximos Números: Crítica Historiográfica. Envio de contribuições até 30.08.2014. Exploração e Opressões. Envio de contribuições até 30.03.2015. Questão Urbana e Políticas Públicas. Envio de contribuições até 31.08.2015. Distribuição: [email protected]. Capa e Diagramação: André Rodrigo Defrain. Imagens da Capa: 1. Desocupados (Antonio Berni); 2. O demolidor (Paul Signac, 1889); 4. 3. Antonio Gramsci; 4. Walter Benjamin; 5. George Lucaks; 6. Edward Thompson; 7. Tierra y Libertad (Diego Rivera); Revisão: Gilberto Calil e Carla Luciana Silva. Edição: Gilberto Calil. Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45-3254-1892 – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - PR Foram impressos 1.000 exemplares em Setembro de 2014. APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................................................................................................................... 5 RESUMOS / ABSTRACTS ......................................................................................................................................................................................................... 7 CULTURA E PROJETO SOCIAL CONCEITO DE CULTURA E CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS.......................11 ZULEIDE S. SILVEIRA UMA VIDA PARA OS QUADRINHOS: MOACY CIRNE E SUA INTERPRETAÇÃO MARXISTA PARA AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO BRASIL...................................................................,,................................................................................................................................17 IVAN LIMA GOMES A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO...............................................................22 HUGO BELLUCCO CONDENADO PELA RAÇA, ABSOLVIDO PELO TRABALHO: NOTAS SOBRE HISTORIOGRAFIA E IDEOLOGIA NO JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO...........................................................................................................................................................................29 WESLEY RODRIGUES DE CARVALHO CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO......................................................36 BÁRBARA ARAÚJO MACHADO O ROCK COMO REVOLUÇÃO: A RADICALIZAÇÃO POLÍTICA DE JOHN LENNON EM SUA OBRA MUSICAL E NA “ENTREVISTA PERDIDA” AO JORNAL RED MOLE (1971)......................................................................................................................................,43 ROMULO COSTA MATTOS POLÊMICA SENTIDO TRÁGICO E RESPONSABILIDADE HISTÓRICA: UM DEBATE NECESSÁRIO SOBRE A LUTA ARMADA NO BRASIL...................50 TIAGO COELHO FERNANDES ARTIGOS ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS.......................................................................................................................................................55 CLAUDIO KATZ O CORPO, A HISTÓRIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA...............................................................................................................................................63 SILMARA APARECIDA LOPES RESENHA RUMOS PARA A PRODUÇÃO DE EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS SOBRE A POLÍTICA E AS CLASSES SOCIAIS NO BRASIL..................................69 LUCAS MASSIMO NORMAS PARA AUTORES .................................................................................................................................................................................................. 72

CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Na dissertação que deu origem a este artigo, intitulada “'Recordar é preciso': Conceição Evaristo e a intelectualidade negra no contexto do movimento negro brasileiro contemporâneo (1982-2008)”, procurei compreender a relação entre literatura e militância e, mais amplamente, entre cultura e política no movimento negro brasileiro contemporâneo. Para isto, analisei a trajetória e a obra literária da escritora negra Conceição Evaristo, intelectual orgânica do movimento, segundo a concepção de Antonio Gramsci. Neste artigo, me deterei na análise do romance Becos da Memória, publicado por Conceição em 2006, buscando compreender a relação entre memória, literatura e história na obra da autora.

Citation preview

Page 1: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Revista História & Luta de Classes Nº 18 – Setembro de 2014

SUMÁRIO

Editor: Gilberto Calil (Unioeste)Comissão Editorial: David Maciel (GO), Diorge Konrad (RS), Gilberto Calil (PR), Igor Santos Gomes (BA), Kênia Miranda (RJ), Mônica Piccolo (MA), Rômulo Costa Mattos (RJ), Tiago Bernardon (PB), Vicente Ribeiro (SC),Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UFFS), Alessandra Gasparotto (UFPEL), Alexandre Tavares Lira (RJ), Anderson Tavares (UFF), Andrea Lemos Xavier Galucio ((UFF) Angélica Lovatto (UNESP), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Aruã Silva de Lima (UFAL), Caio Graco Cobério (USP), Carlos Bauer (UNINOVE); Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Zacarias de Sena Júnior (UFBA), Cláudia Trindade (RJ) Cláudio Lopes Maia (UFG), Clécio Ferreira Mendes (UFG), Danilo Martuscelli (UFFS), David Maciel (UFG), David Rehem (BA), Demian Melo (UFF), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho Maciel (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Ednaldo Sacramento (UEFS), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Eurelino Coelho (UEFS), Fabiano Faria (UFRJ), Fábio Bacila Sahd (USP), Fábio Frizzo (UFF), Felipe Demier (UERJ), Gelsom Rozentino (UERJ), Gerson Fraga (UFFS), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gláucia Konrad (UFSM), Hélio Rodrigues (IESB/CEUB), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Hugo Bellucco (UFF), Igor Gomes Santos (IFBA), Isabel Gritti (URI), Jorge Fernández (UFMS). José Ernesto Moura Knust (UFF), Juliana Lessa Vieira (UFF), Kátia Paranhos (UFU), Kênia Miranda (UFF), Larissa Costard (UFF), Leandro Galastri (UNESP), Lorene Figueiredo (UFF), Lucas Patschiki (UFG), Luciana Lombardo Costa Pereira (PUC-RJ), Lúcio Flávio de Almeida (PUC-SP), Luiz Cláudio Duarte (UFF), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Marco Marques Pestana (UFF), Marcos Smaniotto (UFGD), Marilia Trajtemberg (UFF), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Martina Spohr (FGV), Maurício Gonçalves (UNESP), Michel Goulart da Silva (IFSC), Mônica Piccolo (UEMA), Muniz Ferreira (UFRJ), Osvaldo Maciel (UNEAL/UFAL), Paulo Douglas Barsotti (FGV-SP), Paulo Henrique Pachá (UFF), Paulo Villaça (UFF), Paulo Zarth (UFSC), Pedro Leão da Costa Neto (TUIUTI), Pedro Marinho (MAST/UNIRIO), Rafael Caruccio (RS), Rafael Maul (RJ), Rafael Mota (UFF), Rafael Rossi (RJ), Rejane Carolina Hoeveler (UFF), Renata Gonçalves (UNIFESP), Renato Della Vecchia (UCPEL), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo da Gama Rosa Costa (FFSD), Ricardo Teixeira (UFF), Rodrigo Jurucê Gonçalves (UEG), Rodrigo Santos de Oliveira (FURG), Rômulo Costa Mattos (PUCRJ), Selma Martins Duarte (UNIOESTE), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina Mendonça (UFF), Sydenham Lourenço Neto (UERJ), Thiago Reis Marques Ribeiro (UFF), Tiago Bernardon (UEPB), Valerio Arcary (CEFET-SP), Vera Barroso (FAPA), Vicente Ribeiro (UFFS), Virgínia Fontes (UFF/FIOCRUZ), Wanderson Fábio de Melo (UFF), Zilda Alves de Moura (UFMS), Zuleide Simas da Silveira (UFF).Próximos Números: Crítica Historiográfica. Envio de contribuições até 30.08.2014. Exploração e Opressões. Envio de contribuições até 30.03.2015. Questão Urbana e Políticas Públicas.

Envio de contribuições até 31.08.2015.Distribuição: [email protected]. Capa e Diagramação: André Rodrigo Defrain. Imagens da Capa: 1. Desocupados (Antonio Berni); 2. O demolidor (Paul Signac, 1889); 4. 3. Antonio Gramsci; 4. Walter Benjamin; 5.

George Lucaks; 6. Edward Thompson; 7. Tierra y Libertad (Diego Rivera); Revisão: Gilberto Calil e Carla Luciana Silva. Edição: Gilberto Calil. Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45-3254-1892 – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - PR

Foram impressos 1.000 exemplares em Setembro de 2014.

APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................................................................................................................... 5

RESUMOS / ABSTRACTS ......................................................................................................................................................................................................... 7

CULTURA E PROJETO SOCIAL

CONCEITO DE CULTURA E CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS.......................11ZULEIDE S. SILVEIRA

UMA VIDA PARA OS QUADRINHOS: MOACY CIRNE E SUA INTERPRETAÇÃO MARXISTA PARA AS HISTÓRIAS EMQUADRINHOS NO BRASIL...................................................................,,................................................................................................................................17IVAN LIMA GOMES

A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO...............................................................22HUGO BELLUCCO

CONDENADO PELA RAÇA, ABSOLVIDO PELO TRABALHO: NOTAS SOBRE HISTORIOGRAFIA E IDEOLOGIANO JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO...........................................................................................................................................................................29WESLEY RODRIGUES DE CARVALHO

CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO......................................................36BÁRBARA ARAÚJO MACHADO

O ROCK COMO REVOLUÇÃO: A RADICALIZAÇÃO POLÍTICA DE JOHN LENNON EM SUA OBRA MUSICAL ENA “ENTREVISTA PERDIDA” AO JORNAL RED MOLE (1971)......................................................................................................................................,43ROMULO COSTA MATTOS

POLÊMICA

SENTIDO TRÁGICO E RESPONSABILIDADE HISTÓRICA: UM DEBATE NECESSÁRIO SOBRE A LUTA ARMADA NO BRASIL...................50TIAGO COELHO FERNANDES

ARTIGOS

ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS.......................................................................................................................................................55CLAUDIO KATZ

O CORPO, A HISTÓRIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA...............................................................................................................................................63SILMARA APARECIDA LOPES

RESENHA

RUMOS PARA A PRODUÇÃO DE EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS SOBRE A POLÍTICA E AS CLASSES SOCIAIS NO BRASIL..................................69LUCAS MASSIMO

NORMAS PARA AUTORES .................................................................................................................................................................................................. 72

Page 2: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

SÍTIO ELETRÔNICOwww.projetoham.com.br

* Versão Integral disponível das 14 primeiras edições:

1. Golpe de 1964

2. Comunicação, Cultura, Linguagem

3. Escravidão, Resistência, Trabalho

4. América Latina Contemporânea

5. Trabalhadores e suas Organizações

6. Imperialismo: teoria, experiência histórica e características

contemporâneas

7. Estado e Poder

8. Questão Agrária e Reforma Agrária

9. Teoria da História

10. Militares e Luta de Classes

11. Criminalização e Violência

12. Revolução e Contra‐Revolução

13. Educação e Ensino de História

14. Sociedades Pré‐Capitalistas

15. História e Memória

* Capa, Sumário e Apresentação dos números 16 e 17

* Ficha de Assinatura

* Chamada de Artigos

ASSINATURAS e AQUISIÇÃO DE EXEMPLARES ANTERIORES:

[email protected]

Assinatura 4 edições: R$ 60,00

Assinatura 6 edições: R$ 90,00

Aquisição exemplar avulso: R$ 15,00

Page 3: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Apresentação

APRESENTAÇÃO

ECultura e Projeto Social

- 5

sta é a segunda edição publicada por História e Luta de Classes centralmente dedicada a temas vinculados à cultura. É custoso reconhecer queas leituras que reduzem as manifestações culturais a lógicas fenomenológicas já se tornaram um lugar comum nas Ciências Humanas. A busca da problematização da cultura – com a preocupação em inseri-la em seu devido contexto e relacioná-la a processos históricos – é uma prática cada vez mais rara entre os historiadores, no momento em que a cultura foi separada da história e os estudos culturais ganharam status de autonomia. Contrários a este movimento da historiografia, os organizadores deste volume acreditam na necessidade de historicizar os produtos culturais, o que se traduz em uma atitude analítica que explicita a consciência de que artistas, escritores, intelectuais e quaisquer manifestações culturais são frutos de sua época ou sociedade.

Recusa-se aqui um tipo de visão idealista de cultura como algo abstrato e absoluto, que a concebe como uma instância autônoma que paira sobre o mundo social, portadora de regras próprias. Do mesmo modo, questiona-se uma abordagem em que a cultura é um derivado direto e mecânico das condições econômicas e políticas. À ideia de cultura como um domínio separado contrapõe-se a abordagem que a entende como uma atividade material da sociedade, e também um elemento fundamental de sua organização. Em resumo, propõe-se nesta edição uma teoria materialista da cultura que leve em conta o seu papel social, atentando para as suas conexões dialéticas com a economia, a ideologia e a história

Os textos apresentados neste dossiê demonstram como o marxismo pode contribuir para os debates culturais, ao enfatizar o caráter concreto da cultura e enxergá-la como uma arena de luta social e política. No primeiro artigo, Zuleide Silveira aborda o conceito de cultura a partir de uma concepção materialista de história, buscando a origem dos estudos culturais britânicos, e apontando para alguns pontos de inflexão. Autores por vezes transformados em culturalistas são devidamente problematizados em uma perspectiva marxista: E. P. Thompson, Raymond Willians e Antonio Gramsci. Tratam-se de estudiosos que, de formas distintas, compreenderam a cultura como parte indissociável do processo histórico.

O segundo texto, escrito por Ivan Lima Gomes, recupera a importante contribuição do comunicólogo Moacy Cirne à história das Histórias em Quadrinho no Brasil, o qual articulou leituras marxistas e nacionalistas às discussões sobre a arte e a cultura de massas. Em seus estudos, produzidos entre as décadas de 1960 e 1980, o diálogo com a semiótica estruturalista de Barthes e Peirce e com o marxismo francês de Althusser resultou em uma abordagem original – a partir da qual Ivan Gomes propõe novas abordagens materialistas sobre as HQs.

Em seguida, Hugo Belluco investe no estudo das crônicas de João Antônio, publicadas em jornais de oposição dos anos 1970. Por meio de alguns perfis de personagens pertencentes à classe trabalhadora, o historiador ressalta o diálogo literário estabelecido entre o narrador e suas fontes populares. O seu artigo mostra ainda como o escritor buscava atualizar o legado de Lima Barreto e configurar um projeto literário identificado com a crítica social e a pesquisa da linguagem das classes subalternas.

Ainda no campo da literatura, Wesley Rodrigues de Carvalho analisa a relação do pensamento sanitarista de Monteiro Lobato com o desenvolvimento do capital no Brasil, acusando lacunas existentes nas leituras recentes sobre o pensamento do escritor. Assim, há o destaque para a profunda relação que as formulações históricas sobre saúde e raça tiveram com as transformações do mundo do trabalho no começo do século XX.

Também privilegiando o estudo de obras literárias, Bárbara Araújo Machadocontribui para uma abordagem transversal dos temas de gênero, raça e classe ao enfocar o romance Becos da Memória, publicado em 2006 por Conceição Evaristo – considerada, nos termos de Gramsci, uma intelectual orgânica do movimento negro. Tendo em vista a centralidade da memória na obra dessa escritora, a pesquisadora demonstra como a narrativa daquela contribui para a construção de uma perspectiva contra-hegemônica em

Page 4: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

6 - Apresentação

relação à História oficial, que torna invisível a população negra (em particular as mulheres) e pobre no Brasil.

Finalizando o dossiê, Romulo Costa Mattos discute a guinada política à esquerda de John Lennon entre o fim da década de 1960 e o início da de 1970. Ressalta como o artista colocou a sua obra a serviço de tarefas políticas e utilizou a sua inserção privilegiada na indústria cultural para militar em prol da transformação social, num período em que se aproximou da Nova Esquerda inglesa. Para tanto, o historiador analisa a entrevista que o cantor concedeu ao jornal trotskista Red Mole, em 1971, e também letras de música produzidas naquele contexto.

Desta forma, os diferentes autores publicados no dossiê utilizam conceitos diversos dos principais pensadores da cultura na tradição marxista – como Walter Benjamin, E.P. Thompson, Antonio Gramsci, Escola de Frankfurt, entre outros – na compreensão de seus objetos de análise. Demonstram, assim, a possibilidade de abordar a cultura como um processo social complexo e contraditório, sendo, portanto, capazes de chamar atenção para a importância de sua compreensão na medida que refletem as tentativas de intervenção social, condições de classe e projetos sociais.

A polêmica aberta e direta é muito cara às melhores tradições do marxismo, e neste edição História & Luta de Classes abre espaço para a crítica de Tiago Coelho Fernandes à interpretação sobre a experiência da luta armada proposta no artigo de Claudinei Resende, publicado na edição passada. O autor propõe uma reavaliação que enfatiza o contexto histórico concreto no qual escolhas e opções foram realizadas, reivindicando os militantes de organizações armadas como sujeitos conscientes e capazes de realizar uma leitura crítica de suas ações.

A edição complementa-se com dois artigos e uma resenha. O artigo do economista argentino Claudio Katz propõe uma interpretação para o estágio atual da crise capitalista, desnudando opções e ações dos Estados Unidos e da Alemanha, bem como suas consequências e desdobramentos antidemocráticos, bem como o crescimento da influência dos Estados Unidos sobre a Europa unificada. Por sua vez, o artigo de Silmara Lopes propõe uma abordagem histórica da tratamento conferido às pessoas com deficiência, relacionando-o com os diferentes modos de produção, para refletir sobre a condição de marginalidade imposta pelo sistema capitalista. A resenha de Lucas Massimo analisa a coletânea Política e Classes Sociais no Brasil dos anos 2000, obra coletiva que propõe interpretações relativas às relações de classe no Brasil nos últimos anos.

História & Luta de Classes chega à sua edição de número 18, prestes a completar dez anos de trajetória. Nossa última edição, dedicada aos 50 anos do Golpe de 1964, teve circulação e impacto muito expressivos. Pela primeira vez na trajetória da revista uma edição esgotou-se em poucos dias, obrigando-nos à impressão de uma segunda tiragem, atingindo 1.800 exemplares distribuídos. Tal repercussão expressa, além da relevância do tema e qualidade dos artigos reunidos, a consolidação e credibilidade do projeto editorial que ensejou a criação desta revista e orienta o trabalho de seu coletivo editorial.

Setembro de 2014

Gilberto CalilEditor

Carla Luciana SilvaLarissa Costard

Rômulo Costa Mattos Coordenadores do Dossiê

Page 5: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Resumos

Resumos e Abstracts - 7

Conceito de Cultura e concepção materialista da História: um debate sobre os estudos culturais. Zuleide Silveira. O artigo refuta análises que separam a dimensão cultural da dimensão social e estas dos fenômenos econômicos. Resgata o debate em torno do conceito de cultura e de alguns de seus aspectos, analisando criticamente as implicações do pensamento pós-moderno nos temas culturais. Recorre ao método do materialismo histórico dialético para examinar o conceito de cultura com os clássicos Antonio Gramsci, Edward Thompson, e Raymond Williams, evidenciando que o estudo cultural não se faz sem a relação entre ideias, dominação e transformação econômica e sociocultural. Neste sentido, procura mostrar que a cultura é produzida no e pelo trabalho, não sendo, pois, esfera autônoma e independente do mundo dos homens. Palavras chave: Cultura; Materialismo cultural; Estudos culturais.

Uma vida para os quadrinhos: Moacy Cirne e sua interpretação marxista para as histórias em quadrinhos no Brasil. Ivan Lima Gomes. Moacy Cirne pode ser considerado um verdadeiro pioneiro dos estudos brasileiros sobre quadrinhos. Infelizmente sua obra desperta pouco entusiasmo tanto entre os interessados em quadrinhos (HQs) tanto pelos adeptos de teoria marxista sobre as artes, temas sobre os quais propôs leituras bastante originais. O corpus do seu trabalho foi produzido nos anos de Guerra Fria e de ditadura que marcaram o Brasil das décadas de 1960 a 1980 e articulam leituras marxistas e nacionalistas às discussões sobre arte e cultura de massas. Todas essas preocupações políticas e estéticas (ele também era um poeta de vanguarda) vêm à tona em seus estudos sobre HQs, a partir do diálogo com a semiótica estruturalista de Barthes e Peirce e com o marxismo francês de Althusser. Daí resulta uma abordagem original sobre o tema discutida aqui, assim como, a partir dele, são propostas novas leituras materialistas sobre as HQs. Palavras-chave: Quadrinhos; Moacy Cirne; Teoria Marxista.

.A Noite dos Pingentes: experiência e crítica social nas crônicas de João Antônio. Hugo Bellucco Por meio da análise de alguns perfis de personagens da classe trabalhadora produzidos por João Antônio em jornais de oposição nos anos 1970, investiga-se o diálogo literário estabelecido entre o narrador e suas fontes populares. Naquela década, João Antônio dedica-se à produção de diversas crônicas publicadas em jornais oposicionistas, onde buscava atualizar o legado de Lima Barreto e configurar um projeto literário identificado ao compromisso com a crítica social e com a pesquisa da linguagem das classes subalternas. Palavras-chave: João Antônio-Literatura e Sociedade-Década de 1970.

Condenado pela raça, absolvido pelo trabalho: notas sobre historiografia e ideologia no Jeca Tatu de Monteiro Lobato. Wesley Rodrigues de Carvalho. O texto analisa a relação do pensamento sanitarista de Monteiro Lobato com o desenvolvimento do capital no Brasil, apontando assim uma lacuna em algumas leituras recentes sobre o pensamento do escritor. O argumento perpassa a profunda relação que formulações históricas sobre saúde e raça tiveram com transformações do mundo do trabalho em torno do começo do século XX. Palavras-chave: Movimento Sanitarista, Classe trabalhadora, ideologia

Contra-hegemonia e literatura negra nos Becos da Memória de Conceição Evaristo. Bárbara Araújo Machado. O presente artigo é decorrente da dissertação de mestrado em História intitulada “'Recordar é preciso': Conceição Evaristo e a intelectualidade negra no contexto do movimento negro brasileiro contemporâneo (1982-2008)”. Nela, analisei a trajetória e a obra literária da escritora negra Conceição Evaristo, considerada como uma intelectual orgânica do movimento, segundo a concepção de Antonio Gramsci. Neste artigo, me deterei na análise do romance Becos da Memória, publicado por Conceição em 2006. Considerando a centralidade da memória na obra da autora, buscarei perceber de que forma sua narrativa contribui para a construção de uma perspectiva contra-hegemônica em relação à História oficial, que invisibiliza a população negra (em particular as mulheres) e pobre no Brasil. Palavras-chave: Literatura negra; memória; favela.

O rock como revolução: a radicalização política de John Lennon em sua obra musical e na “entrevista perdida” ao jornal Red Mole (1971). Rômulo Costa Mattos. Este trabalho discute a guinada política à esquerda de John Lennon entre o fim da década de 1960 e o início da de 1970. Mostrará como o artista colocou a sua obra a serviço de tarefas políticas e utilizou a sua inserção privilegiada na indústria cultural para militar em prol da transformação social, num período em que se aproximou da Nova Esquerda inglesa. O documento que conduz este trabalho é a entrevista concedida pelo cantor ao jornal trotskista Red Mole, em 1971. Os argumentos de Lennon ali expostos serão exemplificados com trechos de letras de músicas compostas desde os tempos dos Beatles, o que possibilitará também a recuperação de sua trajetória artística até aquele ano. Palavras-chave: John Lennon, História do rock, Red Mole

Sentido trágico e responsabilidade histórica: um debate necessário sobre a luta armada no Brasil. Tiago Coelho Fernandes. A partir de uma leitura crítica do artigo de Claudinei Cássio de Rezende publicado no dossiê “1964: golpe de estado” desta revista, apresento alguns eixos de interpretação para a luta armada no Brasil. Proponho uma análise do processo das esquerdas

Page 6: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

8 - Resumos e Abstracts

revolucionárias dentro de uma perspectiva de devir histórico, através de um diálogo com as fontes e de uma leitura da práxis que reconheça os militantes das organizações armadas como sujeitos conscientes da história, capazes de uma leitura crítica de suas ações e do contexto em que se inseriam. Palavras-chave: Revolução, Luta Armada, Polêmica

Estados Unidos e Europa frente à crise. Claudio Katz. Estados Unidos exportou a crise e define o ciclo financeiro global porque mantém a supremacia do dólar, o manejo dos grandes bancos e o controle sobre o FMI. Mas a dívida pública e a regressividade impositiva acentuam sua deterioração industrial. Mantém protagonismo por uma preeminência militar, que reorganiza com mais tecnologia e menos tropas. Reajusta prioridades estreitando a coordenação com os aliados. Alemanha reforça seu predomínio na Europa. O ideário federalista keynesiano foi substituido pela centralização neoliberal em sua conformação de um proto-estado continental. Para moldar Europa à competitividade global se acentua o despotismo da Troika. A reduzida estrutura estatal europea é funcional ao ajuste, mas não à concorrência internacional. Isto é demonstrado pela política monetaria defensiva e pelo abandono de projetos militares.

O corpo, a História e a pessoa com deficiência. Silmara Aparecida Lopes. Este artigo se propõe à compreensão da trajetória das pessoas com deficiência, relacionando as formas como o corpo e a deficiência foram sendo encarados nos diferentes modos de produção e que concepções, métodos e recursos foram utilizados para a eliminação, segregação e exclusão. Sendo possível observar que em diferentes épocas e culturas, o tratamento dispensado aos indivíduos com deficiência, especialmente àqueles das classes sociais dominadas, tem variado, entretanto, percebe-se que sempre existiu uma constante histórica: a “estigmatização” que legitima o preconceito e a continuidade do “prejuízo histórico” que carregam em relação ao usufruto dos bens sociais, culturais, econômicos e políticos. Nos tempos hodiernos, observamos várias lutas sendo realizadas para que possam ter seus direitos garantidos. Porém, a lógica capitalista cuja finalidade é o lucro e o investimento em retornos imediatos, é contraditória à solução de vários problemas sociais, dos quais podemos destacar a situação de pauperismo e marginalidade a que boa parte da população é submetida, incluindo-se um elevado número de pessoas com deficiência. Palavras-chave: Corpo, Modo de Produção, Pessoas com Deficiência

Page 7: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Abstracts

Resumos e Abstracts - 9

Concept of Culture and materialist conception of History: a debat about the cultura studies. Zuleide Silveira. This article refute the analysis that separates the cultural dimension of these social and economic phenomena. It recovers the debate around the concept of culture and some of its aspects and analyses the implications of postmodern thought on cultural themes. It refers to the method of dialectical historical materialism in order to examine the concept of culture with the classic Antonio Gramsci, Edward Thompson and Raymond Williams, showing that cultural study is not make itself without the relationship between ideas, domination and socio-cultural and economic transformation. In this direction, it seeks to show that culture is produced in and through work and it isn't an autonomous and a independent sphere of man's world. Keywords: Culture; Cultural materialism; Cultural studies.

A life for comics: Moacy Cirne and his Marxist interpretation for comics in Brazil. Ivan Lima Gomes. Moacy Cirne can be considered one true pioneer of Brazilian comics studies. Unfortunately his work arouses little enthusiasm for both comics and Marxists theorists, areas which Cirne contributed with very original insights. The main corpus of his works was produced under the Cold War and the authoritarian dictatorship that ruled Brazil between from 1960's to 1980's, and is defined by the articulation of Marxist and nationalism readings on art and mass culture. All these political and aesthetical worries(he was also an avant-garde poet) came through his studies on comics, which dialogued with the Semiotic Structuralism of Barthes and Peirce and the French Marxism of Althusser. From this resulted a very original approach on comics, discussed here, as well as, in dialogue with it, new materialist approaches through comics are proposed. Keywords: Comics; Moacy Cirne; Marxist Theory.

The “Pingentes” Night: experience and social criticism in João Antônio's chronicles. Hugo Bellucco. Through the analysis of some working class characters profiles produced by JoãoAntônio and published in opposition newspapers in the 1970s, this article investigates the literary dialogue between the narrator and his popular sources. At that time, JoãoAntônio was dedicated to the production of numerous chronicles published in opposition media, seeking to update the legacy of Lima Barreto and creating a literary project identified with a commitment to a social critique and to a research of the subaltern classes language. Keywords: João Antônio, Literature and Society, 1970s.

Condenmened by race, saved by labour: notes on historiography and ideology towards Jeca Tatu from Monteiro Lobato. Wesley Rodrigues de Carvalho. This paper analyses the Lobato's thinking about health and its relation to the development of capitalism in Brazil, which is not considered by some studies on the writer. Our argument brings the deep relations that writings on health and race had with the transformations on labour in the early twentieth century. Keywords: Movimento Sanitarista, ideology, working class

Counter-hegemony and Black literature in Conceição Evaristo's Becos da Memória. Bárbara Araújo Machado. This paper presents some of the results obtained from my M.A. dissertation in History, intitled “'Recordar é preciso': Conceição Evaristo e a intelectualidade negra no contexto do movimento negro brasileiro contemporâneo (1982-2008)”. My investigation consisted in analysing the trajectory and literary work of Brazilian black writer Conceição Evaristo, who I characterised as an organic intellectual, according to Antonio Gramsci's concept. In this particular paper, I focused on analyzing the novel entitled Becos da Memória, published in 2006. The objective of the paper is to perceive in which way her narrative contributes to the construction of a counter-hegemonic perspective against Official History, highlighting the role that memory plays in Conceição Evaristo's work. The Official History in Brazil turns Black people invisible (particularly Black women), as well as poor people, but Evaristo's novel presents a divergent perspective. Keywords: Black literature; memory; favela.

Rock as revolution: the political radicalization of John Lennon in his musical work and in the “lost interview” to the newspaper Red Mole (1971). Rômulo Costa Mattos. This paper aims to discuss John Lennon's political lurch to the left between the late 1960s and early 1970s. It'll show how the artist had put his work at the service of political tasks and also used his privileged position in the cultural industry for social transformation, in a period in which he had approached the English New Left. The document that guides this work is the interview given by the singer on the Trotskyist newspaper Red Mole in 1971. Lennon's arguments there exposed will be exemplified with excerpts of lyrics written since the Beatles'days, what will allow the recovery of his artistic career until 1971. Keywords: John Lennon, History of rock music, Red Mole

Tragic sense and historical responsibility: a necessary debate on the armed struggle in Brazil. Tiago Coelho Fernandes. From a critical reading of Rezende's article published in the dossier "1964: coup" of this magazine, I present some lines of interpretation for the armed struggle in Brazil. I propose an analysis of the revolutionary left's processes within a perspective of historical development, through dialogue with the sources and recognizing the praxis of militants from armed organizations as conscious subjects of history, capable of a critical reading of their actions and the context in which it operated. Keywords: Revolution; Armed Struggle; Polemics.

Page 8: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

10 - Resumos e Abstracts

United States and Europe front the crisis. Claudio Katz. U.S. exported the crisis and define global financial cycle because it maintains the supremacy of the dollar, the management of large control over banks and the IMF. Maintained by a leadership military preeminence, which reorganized with more technology and less tropas.Pero public debt and tax regressivity accentuate its industrial spoilage. Germany strengthens its dominance in Europe. The federalist ideology Keynesian has been replaced by the neoliberal centralization formation of a proto-continental state. For mold to Europe global competitiveness despotism Troika is accentuated. the small European state structure is functional but not adjustment international competition. Evidenced by the monetary policy defensive and abandonment of military projects. Keywords: Crisis, neoliberalism, imperialism.The body, the History and the person with disabilities. Silmara Aparecida Lopes. This article aims to understand the trajectory of people with disabilities , listing the ways the body and disability were being seen in the different production methods and concepts , methods and resources were used for disposal, segregation and exclusion. Revealing that in different times and cultures, the treatment of individuals with disabilities, especially those of social classes dominated, has varied, however, one realizes that there has always been a historical constant: the " stigma " that legitimizes prejudice and continuity the "historical prejudice " bearing in relation to the enjoyment of social , cultural, economic and political goods. In modern times, we observed several fights being held so they can have their rights guaranteed. However, the capitalist logic whose purpose is profit and immediate returns on investment, is contradictory to the solution of various social problems , of which we highlight the situation of pauperism and marginality that much of the population is subjected , including a large number people with disabilities. Keywords: Body, Production Mode, People with Disabilities

Page 9: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 11História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (11 - 16)

Conceito de Cultura e concepção materialista1

da História: um debate sobre os estudos culturais

2Zuleide S. Silveira

Trabalho e Cultura

O materialismo histórico dialético, em sentido geral, afirma que a gênese e o desenvolvimento de tudo que existe dependem da matéria e da natureza, em permanente movimento e transformação. Trata-se de um entendimento da realidade física que é anterior ao

3pensamento e dele independe .

4Segundo Bottomore , o materialismo histórico dialético compreende: o materialismo ontológico, que afirma a dependência unilateral do ser social em relação ao ser biológico-físico e a emergência do primeiro a partir do segundo; o materialismo epistemológico, que afirma a existência independente e a atuação transfactual de pelo menos alguns dos objetos do pensamento científico; o materialismo prático, que afirma o papel constitutivo da ação transformadora do homem na reprodução e transformação das formas sociais.

Em Marx, esses três materialismos argumentam entre si e complementam-se. Neste texto, nos deteremos no materialismo prático, cuja perspectiva fundamenta-se na concepção da centralidade da práxis humana, na produção e reprodução da vida sócio-cultural e, por conseguinte, no relevo do significado do trabalho enquanto atividade transformadora da natureza e mediação das relações sociais. "Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem ao misticismo encontram sua solução racional

5na práxis humana e na compreensão dessa práxis" .

Daí, o homem distinguir-se de outras espécies animais. Raiz e suporte da técnica, as características de sua corporalidade não são apenas órgãos do trabalho, mas também produto dele, construídas historicamente: a postura vertical; as mãos livres do primitivismo selvagem que adquirem habilidade e destreza; a laringe, pouco desenvolvida, transformada lenta e firmemente até

produzir modulações que seriam pronunciadas, em som articulado, pela boca; o desenvolvimento do cérebro e dos sentidos, da consciência e da capacidade de abstração e de visão projetiva, reagiram sobre o trabalho e a palavra,

6definindo o fenótipo do Homo sapiens .

No processo de trabalho, constituído de três momentos determinados pela natureza - a atividade transformadora, a matéria transformada e os meios dessa transformação -, a ação mobiliza forças naturais: mãos,

7braços, pernas, cérebro, etc. É por esta razão que Engels aponta para o fato de, primeiro vir o trabalho e, depois dele e com ele, a palavra articulada, que juntos estimularam o cérebro dos primeiros hominídeos na transformação, histórica e gradual, em cérebro humano.

Para além de constituir-se em uma atividade transformadora, o trabalho somente se concretiza quando o télos se manifesta. A manipulação da natureza, além de possibilitar a avaliação da espécie como seu próprio ser, propicia a criação da técnica, representando a edificação prática do mundo objetivo, no sentido da emancipação humana em relação ao seu estado bruto. Encontra-se aí a gênese do desenvolvimento do ser sociocultural, em meio à transição complexa do biológico para o ser social e cultural do homem.

O que os homens fazem ou produzem, em sociedade no e pelo trabalho é o que torna visível àquilo que chamamos de cultura. A cultura material inclui tudo que é produzido ou transformado como parte da vida social e coletiva. A cultura não material inclui símbolos, como a linguagem escrita e falada, além de ideias, que modelam e informam a reprodução da vida tais como, atitudes, crenças, valores e normas.

8Trata-se de um sistema concreto de relações

sócio-culturais e econômicas recíprocas, onde opera o 9

processo de aculturação . Este processo diz respeito ao modo como os homens se relacionam para produzir e reproduzir sua existência, do que encarnam aspectos comportamentais expressos nos processos educativos e de comunicação, bem como nos padrões de consumo e de rotinas.

Breve nota sobre o materialismo cultural

A contribuição da concepção materialista da

1 Este artigo tem por base SILVEIRA, Zuleide Simas da. Concepções de educação tecnológica na reforma da educação superior: finalidades, continuidades, e rupturas - estudo comparado Brasil e Portugal (1995-2010). Niterói, 2011. 445f. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF); Professora Adjunta da Faculdade de Educação da mesma Universidade.3 BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.4 Idem., p. 254-5.5 MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 3ª reimpr. 2. Ed. São Paulo; Martins Fontes, 2002.

6 ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 20007 Idem.8 BARATA-MOURA, José. Materialismo e subjectividade. Estudos em torno de Marx. Lisboa: Edições "Avante!", 1997.9 PARIS, Carlos. O animal cultural. São Carlos: EdUFSCar, 2002.

Page 10: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

12 -

história ao conceito de cultura compreende quatro aspectos: (i) a compreensão do conjunto da criação essencialmente humana, em sua totalidade, que analisa desde as relações de produção, a base econômica da sociedade, até as formas de consciência social, expressas nas formas jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas e

10artísticas ; (ii) a totalidade não é fechada em si. Diferentemente da ciência positiva que executa reduções, a totalidade é articulada de tal modo que, os elementos

11nela inseridos determinam-se mutuamente . Ela procede de leis tendenciais e de uma causalidade orgânica, sob o

12impulso de suas próprias contradições ; (iii) a compreensão de que o desenvolvimento, histórico e contraditório, da relação produção e forças produtivas engendra modificações nos modelos de produção até a

13transformação do modo produtivo . Isto quer dizer que, não é a consciência que conduz as formações sócio-culturais e históricas, mas sim a estrutura econômica e tecnológica da sociedade, materializada em suas relações de produção, que define o mundo dos homens ‒ o da cultura e o da formação socioeconômica e política. (iv) o mundo dos homens não está em contraposição à

14natureza . Não existe oposição entre espírito e matéria, homem e natureza. A vida física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes, isto é, a natureza se interrelaciona consigo mesma, já que o homem é uma parte da natureza.

Estes quatro aspectos do materialismo histórico dialético contribuem para a apreensão de que a dimensão cultural de uma sociedade não se encontra dissociada dos planos econômico e político-ideológico de seu contexto histórico. Ao contrário, todo nosso modo de vida "da forma de nossas comunidades à organização e conteúdo da educação, da estrutura familiar ao estatuto das artes e do entretenimento, está sendo profundamente afetado pelo progresso e pela interação da democracia e da

15indústria, e pela extensão das comunicações" .

Se, de um lado, a organização geral da cultura tende a dirigir a satisfação das necessidades humanas, a exemplo da produção dos artefatos tecnológicos e dos

16meios de comunicação , essas necessidades são recriadas 17

pelo fetiche dos artefatos tornados mercadoria . Isto é, a experiência vivenciada por homens de determinada

10 MARX Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.5.11 BARATA-MOURA, op.cit.; LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e o positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2003; SCHAFF, Adam. História e verdade. 3. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 2000.12 BENSAID, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 335-340.13 MARX. Contribuição à Crítica da Economia Política, op.cit., p.6. 14 ENGELS, op.cit.; FOSTER, op.cit.; PARIS, op.cit.; MARX Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 116. 15 Williams, 1961 apud CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2008, p13.16 PARIS, op.cit.17 MARX Karl. Capítulo VI inédito de O Capital, resultados do processo de produção imediata. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2004; MARX Karl. O capital: crítica da economia política: livro I, v. I. 22. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004; MARX Karl. O capital: o processo de produção do capital: livro I, v. II. 19. ed. Rio de

classe social é delimitada, em grande medida, pelas relações de produção em que nascem ou entram

18involuntariamente .

Neste sentido, a cultura acaba re-informando e sobredeterminando a essência humana, como no presente histórico: a ideologia dominante, ao veicular o capitalismo como sistema democrático e humanizador, apresenta como resolvidos muitos dos problemas da humanidade, restando aos sujeitos não apenas gozar das facilidades da vida oferecidas pela esfera das relações econômicas, mas também apertar botões de novos produtos lançados desenfreadamente no mercado.

Por outro lado, a lógica da dimensão cultural não se sobrepõe a todas as outras dimensões da sociedade como um mecanismo que contribui na reprodução do

19sistema. Com Williams , aponto para questões fundamentais no que diz respeito ao leque de significados daquilo que define cultura: desde a antiga ênfase em um

espírito formador ─ ideal, religioso ou nacional ─; passando pela ênfase moderna em que os processos sociais , de ordem econômica e polí t ica, são determinantes e determinados da e pela cultura vivida, chegando a alternativas que tem na cultura um fragmento da realidade; e, aquele que entende a dimensão cultural como campo contraditório de disputas e tensões em torno de projetos de sociedades. Cada uma destas posições implica um método. Na primeira, ilustração, iluminismo, elucidação do espírito formador, busca-se evidenciar os interesses e valores de um grupo dominante, expressando-os como de interesses da nação, com base nas histórias nacionais, no trabalhos de arte, etc.; na segunda, examina-se uma formação social desde questões de ordem geral até as formas específicas assumidas por suas manifestações culturais. Na terceira encontra-se o desafio do materialismo cultural: redefinir a cultura como campo de luta para transformar a sociedade.

Os estudos culturais e implicações políticas20Os estudos culturais têm sido objeto de grande

interesse nas instituições de ensino superior. Farta documentação tem sido emanada dos programas de pós-graduação, por meio de pesquisas, seminários, conferências e editoras que dedicam catálogos inteiros à produção de estudos sobre cultura. Esses estudos fazem p a r t e d e u m m o v i m e n t o d e i n t e l e c t u a i s ,

Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; MARX Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.18 THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária inglesa, v. I: a árvore da Liberdade. 3. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. 19 WILLIAMS, Raymond. Cultura. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.20 Segundo Mulhern, a definição clássica do que veio a ser denominado Estudos Culturais coube a Raymond Williams. Sua proposta era investigar a criação de significados (descrições, explicações, interpretações, avaliações de todo tipo) como parte formativa de um estilo de vida, contestando, assim, o sistema de valores que vinha respaldando o entendimento de crítica cultural capitaneado pelo espanhol José Ortega y Gasset e pelo alemão Thomas Mann. MULHERN, Francis. A política dos estudos culturais. In: WOOD, Ellen; FOSTER, John Bellamy (Orgs.). Em defesa da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

CONCEITO DE CULTURA E CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS

Page 11: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 13

autodenominados pós-modernos, e de um projeto maior que se propõe, com crescente sucesso, a remodelar o ensino e a pesquisa na área das ciências humanas e sociais.

Longe de serem um grupo homogêneo, os pós-modernos de direita, por um lado, crêem no poder democratizante e humanizador do capitalismo, bem como nos prazeres trazidos pelo consumismo,

21proclamando o fim da História ou triunfo do capitalismo diante da queda do Muro de Berlim. De outro lado, os intelectuais da esquerda pós-moderna repetem o discurso do fim de época e o nascimento de tempos pós-modernos, que marcariam o fim do Iluminismo, dos velhos princípios de racionalidade e de antigas verdades e ideologias. O paradigma emergente possibilitaria a construção de um mundo melhor com base na harmonia entre Estado, mercado e comunidade.

2 2Segundo Wood , os in te lec tua is pós-2 3

modernistas revelam descaso pela história , desconsiderando as crises estruturais do capitalismo ocorridas desde a Era de Ouro, o que os impede de produzir uma teoria crítica. Para alguns, as oportunidades de oposição ao capitalismo são limitadas. Para outros, não há possibilidade de mudança ou mesmo de compreensão do sistema ou sequer de pensá-lo como sistema.

Sua concepção de conhecimento científico parte do pressuposto de que a ciência moderna entende a natureza, em geral, e a sociedade ocidental, em particular, regidas por um certo racionalismo e determinismo, de cuja manifestação é imperialista e opressiva. Desta perspectiva, o marxismo, com seu ideal revolucionário e determinista, além do método rígido e pressupostos metateóricos que privilegiam a economia, usando categorias gerais, como de produção e de classe, teria produzido vários tipos de opressão, bem como deslegitimado a reivindicação das minorias (grupos feministas, étnicos, gays, lésbicas, religiosos, regionais, etc.).

Ao buscar se libertar da suposta opressão do método totalizante, a ênfase da esquerda pós-modernista recai na visão fragmentada de mundo e de ceticismo epistemológico. Os pós-modernos se interessam por temas vinculados à linguagem, ao discurso e à "cultura", nos quais tanto os sujeitos históricos, quanto as relações sociais são construídos no e pelo discurso. A ciência do paradigma emergente, primando pelo local, incentiva os conceitos e teorias desenvolvidos localmente e constitui-se em torno de determinados tópicos, "sejam eles reconstruir a história de um lugar, manter um espaço

21 A visão de história é um constructo ou representações sob diversos signos de um poder capaz de extrair saberes alternativos do narrador. Para os pós-modernos, não há história, mas sim, histórias de e para determinados grupos que ocupam “lugares de onde falam”. Desse modo, existe a história da mulher, a história do homossexual, etc.22 WOOD, Ellen. O que é a agenda “pós-moderna”? In: WOOD & FOSTER, op. cit., p. 15-16. 23 Wood (op, cit.) emprega o termo pós-modernista para designar uma vasta gama de tendências intelectuais e políticas, incluindo o pós-marxismo e o pós-estruturalismo. Neste texto, adoto o termo pós-modernista como sinonímia de pós-moderno.

verde, construir um computador adequado às necessidades locais, inventar um novo instrumento

24musical, etc ."

A produção deste conhecimento constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica. Cada método é uma linguagem, segundo a realidade pesquisada, que pretende captar o silêncio que persiste nos grupos

25minoritários .

Para os pós-modernistas, a centralidade das relações sociais está na língua. Insistem na pluralidade de formações de poder-discurso (Foucault) ou de jogos de linguagem (Lyotard). Ora, se os sujeitos encontram-se subsumidos à língua, não existe, fora dos discursos, nenhuma outra verdade e tampouco referencial teórico que não seja o dos discursos. Portanto, esquemas interpretativos da realidade concreta, como os produzidos por Marx e Freud, tidos como totalizantes, são invalidados.

As implicações políticas desta visão fragmentada de mundo e de produção do conhecimento, com bases em subculturas, se manifestam na impossibilidade de qualquer política emancipadora que: (i) tenha por base a solidariedade e a ação coletiva, (ii) pressuponha a formação da identidade de classe ou de experiência comum ou, ainda, de interesses comuns, (iii) busque qualquer tipo de mobilização global. Daí o esforço realizado no sentido de destruir a categoria revolução enquanto objeto de análise, buscando demonstrar que as revoluções são grandes equívocos. A revolução passa a ser confundida com eventos do cotidiano, como festa, ritual ou cultura, ao mesmo tempo em que é

26descaracterizada como revolução social .

Conceitos como democracia substituem o de revolução; movimentos e sujeitos sociais deslocam o conceito de classe e seu correlato luta de classes; a terceira via substitui a possibilidade de as classes sociais construírem um modo de produção e reprodução da existência diferente do determinado pelo sistema capitalista; o conceito de Estado cede lugar para setor público, enquanto o imperialismo fica ofuscado pela globalização ou, quando menos, escamoteado pela

27categoria império de Negri e Hardt . Qualquer política que se volte contra o poder de Estado e da classe

28dominante é vista como totalizante ou universalista .

Ao condenar as metanarrativas, os pós-modernos cedem espaço para análises que destacam o papel da cultura e de uma ação política baseada em diferenças de identidade. É um ponto de vista que envereda pelo

29determinismo cultural relativista , cuja realidade

24 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 13ª ed. Porto: Edições Afrontamento, 2002, p. 47-48. 25 Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Da ciência moderna ao novo senso comum. Porto: Edições Afrontamento, 2000; SANTOS, Um discurso (op. cit., p. 55-7).26 CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru: EDUSC, 2005, p.84.27 Cf. BORON, Atílio. Império & imperialismo: uma leitura crítica de Michael Hardt e Antonio Negri. Buenos Aires: CLACSO, 2002. 28 Para maiores detalhes, ver HARVEY, David. Condição pós-moderna. 14ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 50. 29 Para uma análise do determinismo e relativismos culturais ver

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (11 - 16)

Page 12: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

14 -

estudada só é explicável através do particularismo de diferenças culturais.

A despeito de um número considerável de intelectuais alegar que sua crítica em matéria de cultura é socialmente subversiva, eles consideram vulgares trabalhos que vinculam a teoria à luta política. Trata-se de dissolver a política na cultura, de modo que esta é transformada em instrumento de reivindicação dos diretos humanos, em geral, e dos direitos culturais particulares. Assim entendida, a cultura seria capaz de abrir canais para que as minorias não apenas expressem suas identidades, mas também exerçam sua palavra e

30ação, reconhecidas como legítimas no espaço público .

Esta concepção restrita de política e de cultura apoia-se, muitas vezes, nos estudos culturais de marxistas, como Antonio Gramsci, Edward Thompson e Raymond Williams, apartando, por completo, o conteúdo revolucionário que perpassa as obras daqueles autores.

No início do século XX, Gramsci volta-se para os temas da cultura, seja nas questões relacionadas ao papel do intelectual, à construção do consenso e de hegemonia; seja como afirma em Americanismo e fordismo, como modo de organização da produção, que, refletindo em todas as dimensões da sociedade, engendra uma cultura peculiar à transformação técnico-econômica requerida por aquele modelo de produção.

Atento à relação entre ideias, dominação e transformação econômica e sociocultural, o marxista italiano empreende uma análise inteiramente nova da cultura e da literatura popular. Gramsci estuda tanto os gêneros (melodrama, folhetim, romance policial, romance de suspense), quanto os instrumentos de produção e difusão da cultura (jornais, revistas, anuários, almanaques); além de obras de grande circulação, formando um conjunto que deveria ser entendido como um problema político e explicitamente teorizado em relação ao seu papel na manutenção ou subversão da ordem social.

31Na esfera da cultura, aliás, as 'explosões' são ainda menos freqüentes e menos intensas do que na esfera da técnica, na qual uma inovação se difunde, pelo menos no plano mais elevado, com relativa rapidez e simultaneidade. Confunde-se a 'explosão' de paixões políticas acumuladas num

SPIRO, Melford E. Algumas reflexões sobre o determinismo e o relativismo culturais com especial referência à emoção e à razão. Educação, Sociedade & Culturas. Porto: Universidade do Porto, 1 9 9 8 , p p . 1 9 7 - 2 3 0 . D i s p o n í v e l e m : http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ESC9/9-arquivo.pdf.30 Não é a esmo que a cultura popular vem sendo apropriada pelos organismos supranacionais, Estado e empresariado, segundo o que Williams (2008) considera uma complexa combinação de elementos que produzem e reproduzem as condições de vida em um campo de conflitos, cultural e social, na direção de uma universalidade burguesa. As especificidades culturais têm sido vistas como subsetores econômicos que geram renda, est imulam o desenvolvimento local e incentivam a criatividade, fortalecendo, assim, setores do ramo empresarial, como o do turismo, do agronegócio, da propaganda e marketing, etc. 31 Gramsci faz referência às modificações no modo de pensar, nas crenças, nas opiniões que, não explodem espontaneamente, mas ocorrem gradual e lentamente, por meio de “combinações sucessivas” de coerção e produção de consenso, por meio de material ideológico.

32 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, v.2. Os intelectuais; O princípio educativo; Jornalismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 207.33 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v.1. Introdução ao estudo da filosofia; A filosofia de Benedetto Croce. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 114 .34 Idem., p.95-6.35 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914 – 1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.36 Associação para a Educação Universitária de Trabalhadores.37 CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2008.38 Refere-se à Fabian Society, fundada em 1883 com o objetivo de "reconstruir a sociedade de acordo com o mais alto ideal moral", recusando vários conceitos marxistas.

período de transformações técnicas, às quais não correspondem novas formas de organização jurídica adequada, mas sim imediatamente certo grau de coerções diretas e indiretas, com transformações culturais, que são lentas e graduais; e isto porque, se a paixão é impulsiva, a cultura é produto de uma complexa elaboração. (A referência ao fato de que por vezes, o que se tornou 'ferro velho' na cidade ainda é 'utensílio' na província pode ser desenvolvida com

32utilidade) .

Contudo, Gramsci não é um culturalista porquanto vê a cultura popular como folclore da filosofia, do mesmo modo que, manifestação do senso comum que se apresenta de inúmeras formas, contraditórias e fragmentadas. "Seu traço fundamental e característico é o de ser uma concepção (inclusive nos cérebros individuais) desagregada, incoerente,

33inconsequente" .

Com isto, Gramsci quer dizer que a cultura popular não contribui, por si só, para a criação de nova cultura ou de novo paradigma de ciência, que sejam capazes de difundir criticamente o conhecimento e as descobertas, no sentido de uma transformação de ordem

34intelectual e moral com vistas à revolução .

35Mais tarde, no contexto da Era de Ouro , quando a distribuição de renda mostrava uma face igualitária, ampliando o poder de consumo da classe trabalhadora nos países industrializados, localiza-se o debate em torno do conceito de cultura. A ideia de cultura como escol de um grupo seleto passa a ceder lugar para a visão antropológica que entende a cultura como modo de vida.

Neste contexto, Edward Thompson, Raymond Williams e Richard Hoggat, ministravam aulas para trabalhadores, no turno da noite, no seio da Worker's

36Educational Association (WEA) , o que lhes propicia a formulação de uma teoria e análise da cultura que se valha da relação entre ser social e consciência social. Teoria esta produzida a partir do mundo real das relações de

37produção e reprodução da vida dos estudantes .

Junto a Raymond Williams e Richard Hoggat, o historiador Edward Thompson enfrenta os métodos estrutural-funcionalista, marxista-estruturalista,

38marxista-existencialista, a ortodoxia fabiana , bem como os equívocos que consistem em separar a dimensão cultural da dimensão social e estas dos fenômenos

CONCEITO DE CULTURA E CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS

Page 13: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

econômicos. Militantes do Partido Comunista da Grã-Bretanha (PCGB), Thompson, Williams e Hoggat integram os primeiros intelectuais dos Estudos Culturais, posicionando-se contra o "marxismo de Moscou", de cuja ortodoxia stalinista se manifestava no PCGB.

A Thompson, entre outros historiadores como Eric Hobsbawm, Richard Hoggat, Arthur Morton, Maurice Dobb, Christopher Hill, é imputada a ligação indissolúvel entre militância e produção intelectual. Aliás, destaca-se a contribuição deste grupo de intelectuais no que diz respeito à organização, no interior do partido, de seções de estudo que vieram substituir o paradigma das ciências naturais pelo método do materialismo histórico dialético. Esta mudança possibilitou (i) a crítica à visão etapista da história e seu determinismo econômico- tecnológico; ( i i ) o questionamento às teses de aburguesamento da classe operária; (iii) a redefinição do campo de debates em torno do desenvolvimento do capitalismo inglês; (iv) o desenvolvimento da teoria materialista da cultura.

Já dissidente do PCGB, o grupo passa a constituir o principal núcleo do movimento político de esquerda,

39conhecido como a New Left . "O movimento da New left foi o solo histórico da floração de um instigante pensamento de esquerda na Grã-Bretanha", que empreendia "a crítica da situação vigente com vistas à sua transformação", nos moldes do marxismo ocidental, cuja produção teórica se une em torno do espectro

40cultural .

Thompson lança, no ano de 1959, a New Left 41Review , principal instrumento de debate político e

teórico da New Left, que se abre, até os dias que correm, como espaço de debates e divulgação de reflexões da dissidência comunista, criticando o stalinismo, a política social-democrata, o colonialismo e ao armamento nuclear, tendo por base as contribuições de Antonio Gramsci.

Todo este movimento foi fundamental para a transformação do conceito de cultura, seja no sentido em que Raymond Williams operou com o materialismo cultural, contribuindo para uma teoria materialista da

42cultura ; seja no sentido de Edward Thompson que alarga a ênfase tradicional da historiografia marxista em história econômica, salientando o modo de vida da classe trabalhadora, seus hábitos, esperanças e experiências

43compartilhadas .

Para Thompson (2002; 2004) e Williams (2008), a cultura não é uma esfera da consciência separada do ser social. Ao contrário, a dimensão cultural denota campo de luta social e política, de disputas e tensões, de afirmação

- 15

39 Nova Esquerda.40 CEVASCO, op.cit.41 Revista Nova Esquerda 42 WILLIAMS, Raymond. Cultura. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.43 THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária, v. I: a árvore da Liberdade, op. cit; THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária inglesa, v. II: A maldição de Adão. 4ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002; THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária inglesa, v. III: A força dos trabalhadores. 3. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

de valores e significados existentes na produção e reprodução da vida dos trabalhadores.

Desta perspectiva, o conceito de cultura está intimamente relacionado às experiências dos sujeitos históricos em determinada formação socioeconômica. Trata-se de considerar, em análises históricas, sociológicas ou políticas, que "os fenômenos sociais e culturais não correm atrás dos econômicos, após longa demora; estão na sua origem, imersos no mesmo nexo

44relacional" .

Ao analisar A formação da classe operária inglesa, Thompson ressalta que a classe "precisa estar encarnada de pessoas e contextos reais". Sendo assim, ela se forma somente "quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens, cujos interesses diferem". Se a experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram, ou entraram involuntariamente, "a consciência de classe, [ao contrário, será construída], sendo a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e

45formas institucionais" . Estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do 'obsoleto' tear manual, o artesão 'utópico' e mesmo o iludido seguidor de Joanna Southcott, dos imensos a res de condescendênc ia da posteridade. Seus ofícios e tradições podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo industrialismo podia ser retrógrada. Seus ideais comunitários podiam ser fantasiosos. Suas conspirações insurrecionais podiam ser temerárias. Mas eles viveram nesses tempos de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência; se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser condenados em vida,

46vítimas acidentais .

Nesse processo de resgate, a categoria experiência torna-se mediação na analise de Thompson, que com foco na dimensão cultural, reconstitui modos de comportamentos, condutas e costumes, em perspectiva de classe, histórica e geograficamente datados. A experiência, em Thompson, longe de reduzir a análise ao micro e ao local, denota tempo, imprimindo à classe uma dimensão histórica. A classe trabalhadora é uma formação tanto social e cultural, quanto econômica, possuindo identidade de interesses contra seus dirigentes

47e empregadores .

Ressalte-se que uma classe social, em tempo algum, é culturalmente monolítica. Quanto a esse e outros

44 THOMPSON, Edward. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. 2ª reimp. Campinas, S.P.: EdUnicamp, 2007, p. 167.45 THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária inglesa, op. cit., p. 10. 46 Idem, p. 13.47 Idem, ibidem.

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (11 - 16)

Page 14: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

16 -

48aspectos, Williams elucida que determinados grupos dentro de uma classe podem estar subindo ou descendo de importância, segundo o desenvolvimento geral da classe e da sociedade. Além disso, determinados grupos intraclasse podem ter filiações culturais, religiosas, alternativas, que não são características da classe como um todo, bem como formas diferenciadas de trabalho, que, no entanto, contribuem para existência de variações

49na produção cultural .

Tanto Thompson quanto Williams apontam para a aparente diversidade entre as culturas individuais como parte do todo; parte de uma experiência comum que diz respeito às formas de exploração, simultaneamente, econômicas, morais e culturais. Isto quer dizer que a exploração não é apenas uma categoria de análise econômica, mas, sobretudo, uma realidade, vivenciada pelos que experimentam a exploração, seja como produtores, seja como consumidores.

A Escola de Estudos Culturais manteve uma crítica sistemática à visão reducionista e mecânica dos processos ideológicos e da cultura como esfera autônoma até a afirmação do neoliberalismo, por meio do Consenso de Washington. A Escola foi transferida para os Estados Unidos e reformula seu conteúdo e visão global, sob a perspectiva fragmentada e pós-moderna, dando origem ao multiculturalismo, que passa a exercer influência

50marcante na América Latina .

Os argumentos supracitados permitem-me 51afirmar com Wood que, o enfoque materialista dialético

da história não refuta ou denigre as dimensões culturais da experiência humana. Ao contrário, a compreensão materialista histórico-dialética é um passo essencial para libertar a cultura do confinamento capitalista que penetra em todas as dimensões da vida social e do ambiente natural, transformando tudo quanto pode em mercadoria.

Tal compreensão não nega a importância de outras "identidades" além da de classe, das lutas contra a opressão sexual e racial, ou das complexidades da experiência humana em um mundo instável e mutável como o nosso, onde as solidariedades são frágeis e incertas; não ignora o ressurgimento de identidades, na qualidade de nacionalismo, fascismo, etc., como forças históricas poderosas e destrutivas; não desconsidera que a reestruturação do capitalismo transformou a composição da classe trabalhadora; não rebate o argumento de que existem divisões raciais e sexuais

48 WILLIAMS, op.cit.49 Idem, p. 74.50 Segundo Valencia, a teoria pós-colonial ou estudos subalternos tem origem em um grupo de pesquisadores latino-americanos que passaram a incorporar o multiculturalismo nos estudos sobre a América Latina. Entretanto, suas coordenadas geopolíticas encontram-se nas linhas pós-moderna europeia e norte-americana: na genealogia de Michael Foucault, na psicanálise de Jaques Lacan, na teoria (des) construtivista e (meta) narrativa de Jaques Derrida, Lyotard e Braudillard e na filosofia de Martín Heidegger. O pós-colonialismo é abraçado por autores como Mignolo, Coronil, Dussel, Quijano e Lander, Guha, Baba, Spivak e Edward W. Said. VALENCIA, Adr ián Sote lo . Teor ia da dependência e desenvolvimento do capitalismo na América Latina. Londrina: Práxis, 2008, p. 109-10. 51 WOOD, op.cit.

intraclasse trabalhadora; muito menos contesta que o imperialismo ideológico e cultural reprime a multiplicidade dos valores e culturas humanos; tampouco nega a importância da língua e da política cultural em um mundo tão dominado por símbolos, imagens e comunicação de massa.

Considerações Finais

Incorporar a dimensão cultural ao exame da realidade concreta não significa aceitar os pressupostos pós-modernos. Ao contrário, a adoção do método do materialismo histórico dialético implica numa "atividade

52humana sensível" , que adota a visão de mundo a partir da perspectiva da classe trabalhadora.

Isto significa dizer que, incorporar a dimensão cultural ao exame da realidade concreta é buscar entender como os homens, mulheres e crianças (comuns) vivem e experienciam suas relações de produção e reprodução da vida, segundo situações determinadas e no conjunto de suas particularidades. É apreender a cultura como totalidade complexa e contraditória, condicionada não apenas pelas classes sociais, mas também, por outras determinações socia is , não-c lass is tas , como nacionalidade e espaço demográfico, religião, cor, gênero e idade. E, ainda, reunir e interrelacionar todas as histórias setoriais, tais como a história econômica, a história do trabalho, da cultura, da política, pondo em destaque a formação da classe trabalhadora por mediação daquilo que os sujeitos históricos experienciam e compartilham no terreno movediço das contradições.

Para concluir, cabe lembrar com Gramsci que, para um sistema de acumulação funcionar é necessário que todos os sujeitos, em sociedade, assumam uma forma de comportamento tal que garanta aquele funcionamento. Isto implica modificar as normas, hábitos, leis e, sobretudo, o processo de disciplina ou (con)formação da força de trabalho, por meio de reformas cultural, intelectual e moral. Sendo assim, a análise da totalidade social tem muito a ganhar de densidade teórico-metodológica na medida em que recorre ao materialismo histórico dialético, investigando desde o caráter conhecido ou verificável de uma ordem social geral, até as formas específicas assumidas por suas manifestações

53culturais .

Artigo recebido em 3.3.2014

Aprovado em 18.5.2014

52 MARX. Teses sobre Feuerbach, op. cit..53 WILLIAMS, op.cit., p. 11-12.

CONCEITO DE CULTURA E CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS

Page 15: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 17

1 Professor de Teoria e Metodologia da História pela Universidade Estadual de Goiás e doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista Cnpq. E-mail: [email protected] Uma síntese geral deste cenário, que inclui outros nomes como Roberto Marinho, Edmar Morel, Carlos Lacerda e outros se encontra em JUNIOR, Gonçalo. A guerra dos gibis: formação do mercado editorial brasileiro e a censura nos quadrinhos. 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

3 ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.4 DORFMAN, Ariel, MATTELART, Armand. Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.5 GOMES, Ivan Lima. Entrevista Armand Mattelart. História e cultura, v. 2, n. 2, 2013. p. 206-207.

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (17 - 21)

IntroduçãoNo Brasil, as primeiras reflexões que se

preocuparam com o impacto social e cultural próprio das histórias em quadrinhos (HQs) datam de meados dos anos 1960. Se jornalistas, pedagogos e um pensador social do porte de Gilberto Freyre chegaram a esboçar comentários sobre os quadrinhos em jornais e artigos de revista, suas análises eram centradas em respostas imediatas a problemas como o papel dos quadrinhos na formação da criança e a necessidade ou não da sua nacionalização – temas estes que foram objeto de exaustivas discussões durante os anos 1950 e

21960 . Problemáticas próprias aos quadrinhos surgem apenas após tais debates, que indicam também, por sua vez, que a indústria de revistas em quadrinhos, estabelecida a partir de 1945 com a criação da principal editora do ramo, a Editora Brasil-América (EBAL), encontrava-se consolidada durante os anos 1960. Situação análoga se observa nos Estados Unidos, principal fornecedor de HQs para o Brasil neste momento: os quadrinhos despertavam tanto interesse – e pavor – entre psiquiatras, pedagogos e políticos ao ponto de ter sido objeto de debates no Senado que resultaram na criação de um código de conduta para a mídia, o Comics Code Authority. O impacto gerado por tal regulação no mercado só seria revertido criativamente a partir dos anos 1960, com a introdução dos heróis problemáticos da editora Marvel Comics – conhecidos no Brasil como Homem-Aranha, X-Men, Quarteto Fantástico e outros – e por meio de uma estética alheia ao mercado e que se tornaria conhecida através da obra de nomes como Robert Crumb, Gilbert Shelton e S. Clay Wilson como comix.

Ao longo dos anos de 1960, cineastas como Fellini e Resnais já polemizavam ao declararem seu fascínio por personagens como Flash Gordon e Mandrake; no universo das artes plásticas, a pop art de Roy Lichtenstein partia dos quadrinhos de Jack Kirby, assim como Andy Warhol produzia obras a partir de Popeye e Dick Tracy; na música, ressalta-se o caso de nomes como Cathy Berberian e sua Stripsody, cuja pauta musical era inspirada em onomatopeias e expressões das HQs, e de Sun Ra, que participa em The Sensational Guitars of Dan & Dale com músicas e encartes diretamente inspiradas na série televisiva de sucesso do homem-morcego da segunda metade dos anos 1960. No Brasil, o cenário não foi diferente: desde Brucutu (1965),

versão cantada por Roberto Carlos para Alley Oop, sucesso em 1960 nos Estados Unidos pelo grupo The Hollywood Argyles às tropicalistas Superbacana (1967), de Caetano Veloso e Batmacumba (1968), de Caetano Veloso e Gilberto Gil, passando pelo cinema marginal de Rogério Sganzerla (com o curta de 1969 intitulado História em quadrinhos, produzido com o pesquisador de HQs Álvaro de Moya), ou ainda pela estética de terror do diretor José Mojica Marins e seu personagem Zé do Caixão – que saiu das telas para as páginas de revistas em quadrinhos em 1969, com roteiros de Rubens Lucchetti e desenhos de Nico Rosso e Rodolfo Zalla –, os quadrinhos foram objeto de interesse por movimentos culturais que buscavam um status de “antenados” ou por projetos artísticos que buscavam romper dicotomias de “alta” e “baixa” cultura.

Entre os intelectuais, o exemplo que se relaciona mais diretamente com a temática do artigo é o de Umberto Eco que, em 1964, lançava sua coletânea de ensaios traduzida para o Brasil como Apocalípticos e Integrados. Além das considerações em torno das posturas que considerava predominantes quando se discutia a cultura de massas – ora uma crítica elitista, ora um entusiasmo irrestrito –, o livro de Eco propunha uma análise formalista sobre uma página de Steve Canyon, de Milton Caniff, e interpretações

3sobre Superman e Peanuts . Diante deste cenário, os debates sobre os quadrinhos

ganham fôlego em várias partes do globo. Na América Latina, nos marcos das discussões relacionadas à Teoria da Dependência, ao subdesenvolvimento e às especificidades do desenvolvimento capitalista na região, marcada por ser uma esfera de influência norte-americana e pelo sonho revolucionário que representava Cuba, um olhar próprio sobre as histórias em quadrinhos se desenvolveu. Um dos trabalhos de maior influência mundial sobre os quadrinhos foi gerado neste contexto – mais precisamente no Chile, em meio à efervescência política e cultural que caracterizou os chamados “mil dias” do governo de Salvador Allende. Fruto da colaboração de um crítico literário e escritor e de um demógrafo que gradativamente se interessou pela análise dos meios de comunicação, Para leer al Pato Donald é hoje um clássico da Teoria da Comunicação e já foi traduzida para

4mais de dez países . Produzido em meio ao debate mais amplo ligado à produção cultural em um governo inclinado ao socialismo, Para leer al Pato Donald ajudou a projetar a

Uma vida para os quadrinhos: Moacy Cirnee sua interpretação marxista para as

histórias em quadrinhos no Brasil

1Ivan Lima Gomes

Page 16: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

18 -

6 Por exemplo, cf. CIRNE, Moacy. Vanguarda: um projeto semiológico. Rio de Janeiro: Vozes, 1975b.7 CIRNE, Moacy. Bum! A explosão criativa dos quadrinhos. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1970. p. 64-66.8 MASOTTA, Oscar. Reflexiones presemiológicas sobre la historieta. El esquematismo. In: VERÓN, Eliseo (org.). Lenguaje y comunicación social. Buenos Aires: Nueva Visión, 1969.

9 CIRNE, Moacy. A biblioteca de Caicó. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. p. 80-81.10 CIRNE, Moacy. A linguagem dos quadrinhos: o universo estrutural de Ziraldo e Maurício de Souza. 4ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1975, p. 9-10, 11.11 CIRNE, Moacy. A escrita dos quadrinhos. Natal: Sebo Vermelho, 2005. p. 108-120.

figura dos autores para além do âmbito estritamente acadêmico, embora essa não fosse a intenção inicial de Dorfman e Mattelart. Os autores procuravam expor os valores ideológicos presentes nas HQs, o que foi acusado por segmentos conservadores da sociedade chilena de ser uma

5inapropriada politização do mundo infantil .

Moacy Cirne: pensando os quadrinhos no BrasilNo Brasil, os primeiros trabalhos que tomaram as

HQs como objeto privilegiado de estudo logo priorizaram os quadrinhos brasileiros, considerados detentores de especificidades caras ao seu contexto de produção e que apresentam, assim, uma historicidade própria. Um dos principais autores de reflexões específicas sobre o tema é Moacy Cirne, nascido em 1943 na cidade de Caicó (RN), e considerado um pioneiro nos estudos sobre os quadrinhos no Brasil e no mundo. Suas primeiras obras surgiram ainda no final dos anos 1960 e seguem ao longo dos anos 1970, quando atuou como colaborador e, mais tarde, editor da Revista de Cultura Vozes. As reflexões de Cirne apontam para um grande elogio aos quadrinhos enquanto manifestação cultural da cultura de massas, na esteira de autores como Umberto Eco e de cineastas associados a movimentos como “Novo Realismo Italiano” e a “Nouvelle Vague” francesa. Simpático a leituras marxistas críticas ao imperialismo norte-americano, a abordagem de Cirne é também permeada por suas próprias preocupações políticas e estéticas: inserida nos anos de ditadura militar, ela promove uma defesa dos quadrinhos brasileiros em contraponto ao comics estrangeiros, ao mesmo tempo em que lança mão da estética das HQs para abordar um movimento estético do

6qual fazia parte .A leitura de Cirne sobre os quadrinhos, pois, será

fortemente marcada por três dimensões. A primeira delas resulta do seu interesse na experimentação artística que parte das discussões sobre linguagem, promovidas pelos estudos de “semiologia” realizados por autores como Sausurre, Peirce e Barthes, aplicadas ao movimento de vanguarda literário “Poema-Processo”, que durou entre 1967 e 1972 e do qual Cirne foi integrante e grande defensor. Em linhas gerais, esse movimento propunha uma radicalização das noções concretistas ao direcionar seu interesse a experimentações envolvendo signos, em oposição à dicotomia significante/significado que seria paradigmática nos trabalhos dos poetas concretos. Dentre os signos que chamavam a atenção de Cirne e de outros integrantes do Poema-Processo, estavam aqueles ligados ao universo gráfico dos quadrinhos, tais como os balões de fala e enquadramentos, por exemplos. Para além do “gibi tamanho família” e da “cópia ampliada”, características que observava nos trabalhos da pop-art baseados em quadrinhos – e cujos “resultados são bastante discutíveis”, como faz questão de ressaltar –, as HQs auxiliariam o Poema-Processo ao promoverem “uma elevada voltagem criativa para as pesquisas do poema”, onde aspectos formais e críticos contribuiriam para uma problematização criativa (e criadora)

sobre a linguagem e a ideologia estadunidense presente nos 7comics .

A crítica à ideologia norte-americana integra a segunda dimensão que caracteriza a obra cirneana sobre os quadrinhos. Cirne é o principal autor brasileiro a se preocupar em “politizar” as interpretações sobre os quadrinhos, na esteira de autores como os já citados Dorfman e Mattellart e o argentino Oscar Masotta, cujos trabalhos já nos anos 1960 procuravam articular uma leitura estruturalista ao marxismo para a análise das HQs. Nele, as preocupações estéticas se articulam à inclinação política marxista de forma bastante difusa, lançando mão de uma leitura das narrativas

8das HQs próxima às de pensadores como Althusser e Balibar. Não obstante, suas obras assumem um viés explicitamente militante dos pontos de vista artístico e político, comprometidas com os debates presentes na sociedade brasileira dos anos 1970 e 1980 e preocupadas em discutir o imperialismo que estaria presente nos quadrinhos. Ao afirmar que, a despeito da sua importância na “fixação de determinados valores gráfico-narrativos quadrinhísticos”, a invasão dos comics no Brasil a partir dos anos 1930 ocupou “um espaço editorial que deveria nos pertencer” e impôs “uma ideologia e uma estética alheias à nossa problemática cultural”, Cirne critica estudiosos que não teriam levado em conta a presença de experiências como as de Ângelo Agostini em fins do século XIX ou os quadrinhos publicados em O Tico-Tico desde 1905:

E o imperialismo cultural, na área dos quadrinhos, é tão acentuado que, ainda em 1970, alguns estudiosos de comics entre nós consideravam o 14 de março de 1934, dada (sic) de lançamento do referido Suplemento [Suplemento Juvenil, primeira publicação a veicular comics de forma sistemática no Brasil], como 'o verdadeiro início da História em Quadrinho no Brasil'. E pretendem ser levados a sério, quando não passam de uns colonizados

9mentais !

Resulta dessa postura uma forte valorização dos quadrinhos produzidos no Brasil, ao ponto de defender que “entre um poema de Drummond e uma estória qualquer do Pererê, optamos pela estória de Pererê”, ou destacar a revista de Ziraldo sob um grau de importância estética e histórica equivalente ao “cinema de Glauber Rocha, o romance de Guimarães Rosa ou a poesia de Oswald de Andrade, apresentando es tór ias do mais ouro dimensionamento estético, refletindo sem masturbações

10intelectuais a nossa realidade social” .Critérios de valor estão presentes em boa parte das

reflexões cirneanas sobre quadrinhos, entremeadas às suas reflexões estéticas e políticas – o que nos leva, pois, ao último aspecto que norteia a sua abordagem e a “operação Cirne” sobre as HQs. Na busca por estabelecer os quadrinhos como bem cultural próprio, constituído por artistas que apresentaram soluções estéticas e políticas criativas para as questões do seu tempo, Cirne promove um processo de

UMA VIDA PARA OS QUADRINHOS: MOACY CIRNE E SUA INTERPRETAÇÃO MARXISTA PARA AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO BRASIL

Page 17: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 19

12 CIRNE, Moacy. op. cit., 1975. p. 16-17; 33-34.13 PIMENTEL, Sidney Valadares. Feitiço contra o feiticeiro: histórias em quadrinhos e manifestação ideológica. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1989. As ponderações estão em CIRNE, Moacy. História e crítica dos quadrinhos brasileiros. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1990. p. 50-52.14 Pimentel, Sidney Valadares. op. Cit..p. 66. Ao longo da obra predominam as HQs publicadas ao longo dos anos 1970, com exceção das referências a algumas “biografias ilustradas” presentes na edição de outubro de 1962. 15 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 165-196.

16 VERGUEIRO, Waldomiro; SANTOS, Roberto Elísio dos. A pesquisa sobre histórias em quadrinhos na Universidade de São Paulo: análise da produção de 1972 a 2005. UNIrevista, v. 1, n. 3, jul. 2006, p. 1-12.17 Ainda é possível encontrar tal interpretação, por exemplo, nos artigos de Nildo Viana e Edmilson Marques presentes em recente coletânea sobre os quadrinhos. Cf. VIANA, Nildo. REBLIN, Iuri; Super-heróis, cultura e sociedade. Aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. São Paulo: Ideias& Letras, 2011.18 HALL, Stuart. The work of representation. In: HALL, Stuart (org.). Representation: cultural representations and signifying practices. London: Sage Publications, 1997. 24-26.

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (17 - 21)

canonização de determinados quadrinhos em detrimento de outros. Chama a atenção, por exemplo, o silêncio do autor para obras como as séries em quadrinhos dos personagens Superman e Batman, em contraposição às reflexões que dedicou em mais de uma obra a Pererê ou aos trabalhos de Guido Crepax, considerado por Cirne um inovador na linguagem das HQs. Não raro nos deparamos com listas de

11“obras-primas” e de “melhores entre os melhores” .A fim de reforçar os principais elementos

constitutivos da escrita de Cirne sobre os quadrinhos e o seu impacto na bibliografia subsequente, vamos nos deter a um objeto abordado pelo autor. Podemos dividir o trabalho de Cirne sobre Pererê em três partes: a primeira discute o mito do Saci Pererê e sua relação com Monteiro Lobato; a segunda contextualiza a revista junto aos marcos gerais do seu contexto social, definindo-a como um “reflexo marcante dessa fase”; e a última é um levantamento mais impressionista, com a listagem de onomatopeias presentes, um perfil de cada personagem e algumas HQs que Cirne considerou interessantes. Como referência teórica para sua pesquisa, o autor lança mão do conceito althusseriano de “aparelhos ideológicos de Estado” para entender os quadrinhos, tidos como “representações de um determinado aparelho ideológico” – o que o leva a dizer que “mesmo o Pererê, por mais livre que pareça ser, será uma parte do

12aparelho ideológico de Estado” .Esta chave interpretativa sobre Pererê se tornará

ponto comum em boa parte dos estudos sobre quadrinhos até os dias de hoje. Curioso é que esta associação, estabelecida entre Pererê e o governo Goulart, se por vezes assume coloração positiva em Cirne, será interpretada de maneira divergente em outros trabalhos. Enquanto para Cirne ela é importante por indicar de “tomada de consciência” dos quadrinhos brasileiros, para Pimentel os quadrinhos, incluindo aí Pererê que lhe serve de objeto de análise, são compreendidos a partir das reflexões de Adorno e Horkheimer e, assim, inserem-se na lógica instrumental presente na indústria cultural. À ideia de um modelamento de um “homem universal” inerte a conflitos, objetivo último da indústria cultural, Pimentel termina por associar a noção de “aparelhos ideológicos de Estado”, também trabalhada por Cirne. Cabe apontar, porém, que a afirmação de Pimentel de que “Pererê se apresenta sempre como discurso unificador de toda uma ideologia política dominante, vigente à época de sua transformação em herói burguês”, é considerada “discutível” por Cirne, uma vez que este considera que a obra de Ziraldo conseguiria partir do populismo para superá-lo esteticamente, assim como o cinema de Glauber Rocha, por

13exemplo .A afirmação de Pimentel carece, porém, de rigor

metodológico. Sua análise se baseia tanto em HQs produzidas na primeira metade da década de 1960 quanto no

contexto político diverso presente nos anos 1970, com predomínio destas últimas. Ainda assim afirma que “Pererê veio a se constituir em um aparelho ideológico do estado

14populista” . Fora o fato de que os anos 1970 foram marcados por um Estado ditatorial longe de ser populista, consideramos igualmente questionável a leitura que o autor empreende sobre as formulações de Adorno e Horkheimer, excluindo qualquer possibilidade de desdobramento criativo dentro da indústria cultural, conforme apontam Walter Benjamin, em seu estudo “A obra de arte na era da

15reprodutibilidade técnica” , e Cirne, em sua leitura atenta ao papel criativo e ao potencial transformador inerente às práticas de consumo. Neste sentido, cabe a pergunta: como uma análise materialista das HQs pode contribuir para a compreensão desta prática social?

Aprofundando leituras materialistas sobre os quadrinhos

A consolidação de pesquisas em pós-graduação, a ascensão da História Cultural e as possibilidades que a internet introduziu na pesquisa acadêmica, por um lado, e o êxito comercial de uma cultura nerd marcada em parte por filmes de super-heróis, ao lado da legitimação cultural obtida por coletâneas de luxo e graphic novels, por outro lado, são alguns dos fatores que contribuíram para o novo fôlego dos estudos em torno das HQs nos primeiros anos do século

16XXI . Contudo, as reflexões ainda se mostram carentes de referenciais teórico-metodológicos sensíveis às propriedades das HQs. Longe de resultar em propostas que contribuam para novas abordagens historiográficas ao tema, muitos dos n o v o s t r a b a l h o s t e n d e m a r e t o m a r u m o l h a r instrumentalizado dos quadrinhos, repetindo em outros termos uma “teoria do reflexo” de limitada sustentação em

17dados concretos .Em oposição a tais propostas de análise,

sustentamos que os quadrinhos, tal como todo prática cultural, devem ser discutidos como uma atividade social que, construída socialmente – e com práticas de olhar e de consumo historicamente localizadas –, termina também por problematizar ativamente o seu tempo de forma original e heterogênea. Publicadas sob a forma de “tiras” em jornais e suplementos, em revistas contendo histórias curtas e com personagens diversos, ou mesmo em publicações exclusivas a um único personagem ou série, as HQs foram uma das mais representativas formas de consumo juvenil em diversos momentos do século XX. Se isso pode nos indicar pistas sobre eventuais usos políticos sofridos pelos quadrinhos, doravante defendemos aqui uma leitura que escape de conclusões apressadas que os restrinjam a meras expressões da “acumulação capitalista” e que, antes, enfatize as mediações sociais presentes em tal manifestação cultural.

Apontar o papel das publicações em quadrinhos na

Page 18: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

20 -

constituição de práticas de leitura próprias é uma saída que se contrapõe a “enfoques reflexivos” que avaliam as produções culturais como expressões diretas dos interesses de determinados grupos sociais, ignorando a complexidade presente na sua composição. Neste sentido, criar uma HQ implica no diálogo com a produção corrente e com as práticas relacionadas aos quadrinhos já desenvolvidas entre seus leitores, em uma tensão envolvendo editores, artistas e

18consumidores, entre outros agentes . Ao invés de uma abordagem reflexiva, Stuart Hall destaca uma abordagem construtivista sobre os sistemas de representação, onde o sentido se produz na prática: sem negar o mundo material, os atores sociais lançam mão das representações para criar sentidos às suas práticas simbólicas. A noção de mediação, conforme desenvolvidas por Raymond Williams e Jesús Martín-Barbero, pode servir de auxílio para analisar tal quadro.

Williams destaca as conexões diretas entre sociedade e cultura na produção das práticas em oposição a uma teoria da arte que tomaria a produção cultural sob a responsabilidade, para o bem ou para o mal, de refletir a sociedade. A impossibilidade disso se dá em virtude da realidade de que todo artefato cultural sofrer mediações em sua própria constituição, afinal: “Todas as relações ativas entre diferentes tipos de ser e consciência são antes inevitavelmente mediadas, e esse processo não é uma agência separável – um meio – mas intrínseco às propriedades dos tipos correlatos. A 'mediação' está no

19objeto em si (...)” . Como uma dada linguagem se encontra ligada a todo e qualquer ato social realizado, combater a teoria do reflexo significa problematizar a supressão do trabalho real no material que constitui toda a obra de arte,

20prerrogativa cara a esta teoria . Destaca-se, pois, o caráter processual da cultura, onde o que é produzido não responde apenas às determinações econômicas, mas também a demandas culturais socialmente construídas. Pensar as publicações de quadrinhos, que se estabelecem a partir das publicações em série presentes em jornais e revistas, como um diálogo com a “trama cultural e os modos de ver” de seus leitores pode contribuir para uma análise materialista sobre

21os quadrinhos .A análise formal sobre os quadrinhos carece de uma

leitura teórico-metodológica que articule as dimensões da produção, distribuição e consumo para a construção do sentido de uma dada HQ. Uma saída que podemos articular aos quadrinhos, tomando a noção de mediação como norte básico, é a proposta desenvolvida por Fredric Jameson de “leitura sinóptica” para a produção serializada dos romances policiais de Raymond Chandler. Em seu artigo, o filósofo norte-americano destaca que o sentido da produção de Chandler é reforçado a partir da repetição de “motivos” variados ao longo de suas obras, o que explica que seus

personagens nem sempre sejam tão surpreendentes: é justamente a repetição de determinadas situações ao longo de suas novelas que ajudam a trazer novos sentidos e a formar a

22visão de mundo chandleriana . Tal como os romances policiais, boa parte da

produção de histórias em quadrinhos é marcada pela serialidade. Sejam aquelas do início do século XX, publicadas em tiras de jornal e que apresentavam sempre o mesmo início, meio e fim (onde um dos exemplos mais conhecido é Little Nemo in Slumberland, onde o protagonista começa dormindo, sonha ao longo da HQ e a encerra acordando surpreso), sejam as revistas em quadrinhos, diretamente tributárias da literatura pulp que incluía também gêneros como o policial e de romances, a publicação em série de HQs é uma etapa produtiva central para a construção do seu sentido. A leitura sinóptica de Jameson, de início, aproxima-se à análise de orientação estruturalista que Ciro Cardoso propôs para sua semiótica dos textos.

Cardoso articula as análises formais de teóricos como Todorov e Greimas e Courtés para sintetizar uma leitura de fontes aplicada aos historiadores. Ela também pode auxiliar a leitura de obras em série por defender a construção gradativa de eixos axiológicos fundados a partir de valores euforizados ou disforizados, inseridos em quadrados

23semióticos que determinam seu sentido . Suas discussões interessam às nossas preocupações na medida em que pretendem estabelecer uma “estrutura narrativa” ou “narratividade” presente em um “nível imanente”, “prévio

24aos modos concretos de manifestação” . Ou seja, para Cardoso, a semiótica servirá como ferramenta que possibilitará a apreensão do significado “profundo” das narrativas presentes em linguagens diversas, como livros, filmes e quadrinhos.

Tal discussão é válida para HQs que apresentam, em geral, narrativas marcadas por histórias que se desenvolviam em série, comum a boa parte das revistas em quadrinhos

25lançadas desde meados dos anos 1930 . Tal modelo narrativo, compreendido, de acordo com Todorov, sob uma

26ordem lógica e temporal , é bastante recorrente em tais

19 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. p. 101-102.20 WILLIAMS, Raymond. op. cit.. p. 100.21 MARTÍN-BARBERO, Jesús; MUÑOZ, Sonia (orgs.). Televisión y Melodrama. Bogotá: Tecer Mundos, 1992. p. 20. (tradução minha). O trabalho clássico sobre o tema é MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 6ª edição: Ed.UFRJ, 2009.22 JAMESON, Fredric. The synoptic Chandler. In: COPJEC, Joan. Shades of noir: a reader. London/New York: Verso, 1993. p. 33-56.23 CARDOSO, Ciro. Narrativa, sentido, história. Campinas: Papirus, 1997.24 Idem, p. 12-13.

25 Obviamente temos exceções, sendo o caso mais conhecido as graphic novels. Por se tratar de uma proposta de aproximação teórica em nível preliminar, optou-se por uma leitura mais genérica da linearidade, sem tangenciarmos os problemas específicos que enxergamos nas graphic novels. Não obstante, como lembra Gardner, a grande maioria das graphicnovels (Maus, Jimmy Corrigan...) começaram como publicações periódicas em série. GARDNER, Jared. From the editors' chair: periodical comics.American periodicals, v. 17, n. 2, 2007, p. 140.26 Apud CARDOSO, Ciro Flamarion. op. cit.. p. 42.27 CHUTE, Hillary. Temporality and seriality in Spiegelman's "In the Shadow of No Towers"..American periodicals, v. 17, n. 2, 2007, p. 231.28 Jameson trata o debate a partir de um diálogo com a hermenêutica heideggeriana. JAMESON, Fredric. op. Cit.. p. 45-50.29 EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. WOLK, Douglas. Reading comics: how graphic novels work and what they mean. Cambridge: Da Capo Press, 2007.30 EISNER, Will. op. cit.,. p. 30.31 ANDRAUS, Gazy. As histórias em quadrinhos como informação imagética integrada ao ensino universitário. Tese de doutorado. São Paulo: ECA-USP, 2006. COHN, Neil. The visual language of comics. Introduction to the structure and cognition of sequential images. London/New York: Bloomsbury, 2013. MIODRAG, Hannah. Comics and language: reimagining critical discourse on the form. Jackson: University Press of Mississipi, 2013. p. 248-249.

UMA VIDA PARA OS QUADRINHOS: MOACY CIRNE E SUA INTERPRETAÇÃO MARXISTA PARA AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO BRASIL

Page 19: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 21História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (17 - 21)

publicações. Neste sentido vale apontar o interessante trabalho de Hillary Chute, que discute o papel formativo da linguagem em série nos quadrinhos em sua análise sobre À sombra das torres ausentes, de Art Spiegelman. Nesta obra, a princípio compreendida como uma graphic novel, a autora aponta como o autor de Maus trata a serialidade como uma solução formal para discutir a presença do trauma nas narrativas contemporâneas – questão que também enxergamos em sua já citada obra sobre as memórias de seu

27pai, sobrevivente do Holocausto .Seguindo a esteira do problema epistemológico

colocado por Jameson para sua análise marxista da obra de Chandler, relativa à construção de uma análise sensível às soluções estéticas e conjunturais e que não se restrinja a uma

28análise estruturalista do texto , é necessário integrá-la a uma análise sistemática dos recursos da própria linguagem dos quadrinhos. Aqui a base vem de alguns autores que se

29debruçaram sobre o tema, como Eisner, McCloud e Wolk , preocupados em perceber como aspectos da linguagem dos quadrinhos que, a princípio, tendem a ser naturalizados conseguem transmitir sensações e valores que trazem novos sentidos à narrativa das HQs. Eisner exemplifica: “Os formatos dos quadrinhos também têm uma função. Numa página onde é preciso transmitir uma regularidade de ação,

30dá-se aos quadrinhos o formato de quadrados perfeitos” . Trabalhos mais recentes, como os de Andraus e Cohn procuram analisar as articulações mentais que a narrativa visual das HQs implica aos seus leitores, ao passo que um trabalho recente como o de Miodrag reforça a especificidade das HQs ao diferenciá-las em meios aos debates em torno do predomínio verbal ou visual dos quadrinhos, a partir da problematização da própria noção de “arte sequencial”

3 1proposta por Eisner . Com um olhar atento às especificidades da linguagem das HQs, os sentidos da narrativa reverberam em relação aos diversos contextos sob os quais uma dada HQ se encontra historicamente inserida e contribuem, portanto, para uma melhor compreensão do papel social dos quadrinhos.

ConclusãoDentro do processo de legitimação social e

acadêmica que se observa entre consumidores e estudiosos dos quadrinhos, é frequente encontrarmos debates em torno das especificidades desta forma de expressão. Um desdobramento de tal leitura é uma defesa por vezes apressada e que revela uma crise de ansiedade sobre o tema, com a reprodução de tradicionais estratégias de distinção

32social e de estruturação do campo acadêmico . Outra consequência é a construção de uma análise desencarnada, onde o desenvolvimento da linguagem das HQs se dá alheio a questões históricas de vários níveis – editoriais, gráficos,

33técnicos, sociais e culturais – e que, se serve para demonstrar a relevância dos estudos sobre quadrinhos, pouco contribui para a sua compreensão como parte integrante de processos sociais mais amplos.

A abordagem cirneana, rica em idiossincrasias e

longe das normas acadêmicas que, por vezes, mais limitam do que contribuem para a construção do conhecimento científico, é objeto ainda hoje de incompreensões e silêncios. Se, por um lado, a obra de Moacy Cirne contribuiu para a construção de cânones no interior da história das histórias em quadrinhos no Brasil, por outro lado muitas das suas contribuições e sugestões são recusadas ou simplesmente deixadas de lado por estudiosos mais recentes – e, infelizmente, sem termos novos problemas de fôlego apresentados. Desta forma, o artigo procurou discutir aspectos gerais da sua obra, procurando entender os usos da teoria marxista presentes no conjunto da obra do autor potiguar.

A leitura de Cirne sobre os quadrinhos, em diálogo tanto com outras formas de expressão quanto com problemas sociais, estéticos e políticos de seu tempo são, curiosamente, um contraponto impor tante para o t ra tamento “desencarnado” tão presentes nas análises sobre HQs. Ela demonstra que uma leitura estritamente formalista ou apenas baseada nas paixões dos fãs de quadrinhos, ainda que tenham lá sua importância, não dá conta de apreender a complexidade inerente às HQs. Por isso que se considerou válido aqui retomar as ideias do estudioso brasileiro e articulá-las às reflexões em torno da ideia de “mediação”, conforme desenvolvida por Williams. Em geral composta por imagens e textos articulados e distribuídos em sequência, publicados em álbuns de luxo ou revistas baratas, a organização peculiar dos quadrinhos enquanto prática cultural clama por uma leitura sensível às suas especificidades. Seguindo a leitura de Mitchell sobre Williams, podemos definir os quadrinhos como uma “prática material e social”, cuja essência não é ditada por aspectos elementares da técnica – e, acrescentamos, por sua submissão a expressar os valores exatos de um determinado grupo social. Antes, “materiais e tecnologias atuam no interior do meio, bem como habilidades, costumes, espaços sociais, instituições e mercados”; é a sua mistura peculiar, a partir das tensões entre cada ingrediente, que determinará as

34características de uma dada produção cultural .Por meio da categoria desenvolvida por Williams e

uma leitura sinóptica (ou isotópica) dos quadrinhos que não perca de vista, por sua vez, suas especificidades gráficas e formais articuladas em vários níveis com o contexto histórico de sua produção, temos enfrentada a questão colocada pelo próprio Jameson quanto aos perigos de uma leitura estruturalista restrita. Avançando nas questões colocadas por Cirne e superando sua preocupação “modernista” em estabelecer marcos, origens e cânones, enfrenta-se a especificidade dos quadrinhos menos como uma essência e mais como uma mediação entre as expectativas de

35produtores e consumidores específicos . Consideramos fundamental, assim, retomar a proposta cirneana inicial de uma leitura materialista das histórias em quadrinhos para atualizá-la junto a outras leituras que reforçam o seu caráter social e histórico.

Artigo recebido em 29.3.2014Aprovada em 22.5.2014

32 HATFIELD, Charles. Alternative comics: an emerging literature. Jackson: University Press of Mississipi, 2005. p. XII-XIII.33 Exemplo recente de tal interpretação se encontra em VERGUEIRO, Waldomiro. De marginais a integrados: o processo de legitimação intelectual dos quadrinhos. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho de 2011.34 MITCHELL, W. J. T..There are no visual media. Journalof visual culture, , v. 4, n. 2, Agosto 2005, p. 260-261 (tradução minha).

35 BAETENS, Jan; SURDIACOURT, Steven. European graphic narratives: towards a cultural and mediological history. In: STEIN, Daniel; THON, Jan-Nöel (orgs.). From comic strips to graphic novels Contributions to the theory and history of graphic narrative. Berlim/Boston: De Gruyter, 2013. p. 347-348.

Page 20: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

22 -

Mais do que pobres, os passageiros da Central do Brasil parecem não apenas pingentes nos trens, mas pingentes da cidade, uma espécie, em quantidade e qualidade, de sobreviventes urbanos, sempre pendurados na cidade e nunca

2fixos .

3O texto “Casa de Loucos” , publicado na revista

Realidade em 1971, representa um momento crucial na trajetória do escritor e jornalista João Antônio. Essa reportagem relata seu internamento no Sanatório da Muda, no Rio de Janeiro, e marca o início do período em que o autor de Abraçado ao meu Rancor passou a se

4dedicar com afinco tanto à obra de Lima Barreto como à crítica social através de diversas crônicas publicadas na imprensa. Quanto a esse episódio, importa lembrar de dois registros, em cartas a Fábio Lucas postumamente publicadas. O primeiro é sobre a experiência de que resultou a reportagem, em missiva de junho de 1970:

Lobato, o nosso Lobato, já deve ter lhe dito que (faz ontem um mês) estou internado no Sanatório da Muda para tratamento dos nervos, de possível esgotamento, estafa, desequilíbrio emocional e não sei mais quantos nomes para fazer a caracterização de saco cheio, paciência

5esgotada .

Em outra carta, duas semanas depois, após dizer que entrara “no rol dos mais atingidos”, manifesta a necessidade de “fazer alguma coisa com este mundo de

6sofrimentos, asperezas, humilhações e vergonhas” . Mas é em carta de 1973 que as opções literárias de João Antônio naquele período se apresentam com mais clareza:

Não posso lhe dizer, Fábio Lucas, que a minha literatura tenha caminhado. Nem muito, nem pouco. Provavelmente, ela mudou. Malagueta, Perus e Bacanaço é um livro da juventude. Hoje, dentro de mim, há revoltas, mágoas, descréditos e até entendimentos das pessoas do País em que

vivo. Que me levariam fatalmente a uma linha de produção nos lados de Lima Barreto, talvez. Uma visão ácida do social e do psicológico deste

7País .

Esta forma de situar a própria trajetória em relação ao romance consagrado de 1963 envolve, portanto, o registro de uma crise pessoal e de uma mudança de rota em suas orientações estéticas, relacionadas pelo autor à experiência coletiva do país. O episódio biográfico do internamento de João Antônio também coincide com o início de seu entusiasmo crescente com a obra de Lima Barreto e com sua participação ativa em diversos veículos da chamada “imprensa alternativa”. Na reportagem sobre a passagem pelo sanatório, de 1971, apresenta-se o texto com a seguinte chamada:

Por causa de um esgotamento nervoso, o repórter João Antônio foi internado em um sanatório psiquiátrico. Agora ele conta um dos

8seus trinta dias num mundo à parte .

O narrador é um repórter, mas está internado no hospício, o que explica o equilíbrio instável entre o distanciamento e a participação nos dramas cotidianos dos pacientes. Trata-se da narração de um dia no sanatório, começando às seis horas da manhã com o partido-alto do faxineiro Leogivildo, acordando “os doentes mais próximos, do Vietnam e do primeiro pavimento”. Após a descrição da fachada do prédio – “três casarões de dois pavimentos, desses que têm mais de cinqüenta anos” – descreve-se a chegada dos dez funcionários: “gente do povo-povo”, além dos psiquiatras e do diretor, Dr. Aires. A fala deste último, tal como o narrador a reproduz, revela já um conflito, expresso nas denominações inventadas pela comunidade do Sanatório: “Não me chamem mais aquilo de Vietnam. É Departamento Masculino. E não me chamem mais aquilo de Rio de Janeiro. É Pavilhão de Repouso. E não me chamem mais aquilo de Brasília. É Pavilhão Patronal”.

O sanatório é apresentado a partir de quatro seções delimitadas por subtítulos, seqüências que pontuam o percurso do dia narrado, das seis da manhã ao crepúsculo. Os pacientes mais destacados pelo narrador são os internados Xará, Professor Gaspar e Rute, a rezadeira epilética. Mas o primeiro a ser apresentado com

1 Professor de História no Município de Duque de Caxias, Mestre em Teoria e História Literária na UNICAMP e doutorando em História Social pela UFF. 2 ANTÔNIO, João. Pingentes. In: Malhação do Judas Carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 3 ANTÔNIO, João. Casa de Loucos, Realidade, s.n., Agosto de 1971. 4 Sobre a presença de Lima Barreto na literatura de João Antônio ver PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto personagem de João Antônio. In: Trincheira, Palco e Letras: crítica, literatura e utopia no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 241-257. 5 ANTÔNIO, João. Carta Aos Amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. p. 91.

A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO

A Noite dos Pingentes: experiênciae crítica social nas crônicas de João Antônio

1Hugo Bellucco

6 Idem.7 dem, p. 93. 8 ANTÔNIO, João. Casa de Loucos, op.cit.

Page 21: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 23

mais detalhes é o dr. Aires, diretor do sanatório. De sua fala retirou-se o título do texto: “Isto aqui parece uma Casa de Loucos”. Do Professor Gaspar, “um velho esclerosado do repouso”, diz-se que possui “um vocabulário inusitado e mistura certas preciosidades a falas muito brasileiras, cometendo francesismos ao lado de palavras cablocas: gadanhar, jetées, jetar, azígias, relar, punhaletas, vaporetos, pindaíba, piançado.”

Professor Gaspar, que já aparecera no início, é apresentado após a descrição de um “choque quente”, quando “o corpo estrebucha, como um frango degolado”, e de uma espécie de footing formado no pátio depois do almoço. Ele é a principal fonte do paciente-repórter-escritor, a quem informa: “Somos duzentos e noventa, entre enganados e desenganados”.

O segundo personagem, Xará, aparece depois e some rapidamente, no meio da tarde, ao lado do esquizofrênico Chiquinho, que se limita a gritar: “Isto é que é vida, hein, rapaz! Isto é que é vida!”. Xará está junto a este último quando ocorre o diálogo abaixo reproduzido:

Um homem, estranho ao sanatório, quer entrar no Pavilhão Masculino. Quando pede licença aos dois doentes no piso da porta, Xará deseja explicações:

-O senhor me desculpe, mas é médico sanitarista?

-Não, sou psiquiatra.

- É u m a p e n a . P r e c i s a m o s c o n t r a t a r imediatamente um sanitarista. Isto aqui está cheio de ratos e baratas. Olhe, doutor, cá entre nós, o senhor não poderia nos enviar um sanitarista?

Esse trecho reencena uma estratégia corriqueira em João Antônio: valorizar a fala despropositada ou irônica de um personagem popular que ninguém ouve, falando através dele, como um gesto de dignidade frente a uma situação comum desfavorável. Note-se que tal procedimento pode confundir ou aproximar a perspectiva do narrador com as personagens, apresentadas muitas vezes somente para dizer uma frase e desaparecer. Retomando a sucessão cronológica que organiza a descrição do espaço do sanatório, o narrador passa à hora do jantar, “bem antes do lusco-fusco”, quando surge Rute, desenhada resumidamente como alguém de cabelos esbranquiçados, traços delicados e voz “fininha”. Trechos das orações de Rute vão intercalar a narração indireta, marcando todo o último segmento, intitulado “Rute, a epilética, reclama do seu vale de lágrimas”, direcionando-se finalmente à chegada da noite e ao fim da reportagem:

'A vós suspiramos, gemendo e chorando, neste vale de lágrimas.'

Mas, por enquanto, Rute está rezando – e podem contar – são mais de seis horas, que os pássaros revoaram sobre as árvores e as coisas já se pintam de preto. Um dia acabou. Quem torcer o pescoço e olhar para o alto, para além desses muros, paredes e árvores, verá uma estrela no céu. Morre um dia, morre o sol. A noite desce sobre todos nós.

A imagem da noite surge como signo e metáfora de uma experiência coletiva, à qual remete o leitor após o dia no sanatório. Na passagem do narrador invisível dominante na maior parte do texto ao foco narrativo direto e coletivo, na última frase, passamos também do “mundo à parte” onde o narrador está, mas onde não se apresenta, à noite comum dos pacientes, do autor e dos leitores.

Após a experiência desse internamento, João Antônio passa a se dedicar a uma intensa nos jornais de oposição que se multiplicaram ao longo dos anos 1970,

9chamados por ele de “nanicos” . Em suas crônicas nesses jornais, há uma nítida preocupação em construir um certo ponto de vista literário associado à vivência das classes subalternas. Tal objetivo é exposto de modo mais programático no texto “Corpo-a-corpo com a vida”,

10escrito no Rio de Janeiro em 1975 . Nesse texto, João Antônio tocava também no problema da construção de uma “forma brasileira”, considerada por ele como resultado da tomada de posição por “uma literatura que se rale nos fatos e não que rele neles”. Em um tom no qual

11Flávio Aguiar já apontou um “exagero necessário” , em algumas passagens pode-se mesmo observar a “simplicidade alarmante” que, em outra direção, o autor de Lambões de Caçarola reprovava na excessiva “preocupação vinculada à forma, sob a denominação de um ismo qualquer”, associada por ele à permanência de posições beletristas exóticas à circunstância brasileira. Tomava então o partido da experiência em oposição a “uma falsa estética, importada, empostada, mal adquirida, sujeita a todas as ondas e sempre mal digerida”. Fazia também um balanço de sua trajetória como escritor e dos significados a um só tempo autobiográficos e políticos de suas narrativas. Afirmando sua literatura como uma “estratificação” de sua vida, ali João Antônio também questiona o caráter “literário” de seus personagens, apresentando-se como um escritor cuja matéria não seria mais que a experiência vivida:

Eu vivi a aventura de Malagueta, Perus e Bacanaço um pote de vezes. Um tufo de vezes, um derrame, uma profusão. Sair da Lapa, catar a Barra Funda, desguiar para o centro da cidade, pegar os lados de Pinheiros procurando jogo e acabar na Lapa, era a aventura diária de quem

12estava naquele fogo .

Ao mesmo tempo, tratava-se, para ele, de seguir os passos de escritores como aqueles “que firmaram um compromisso sério com o fato social, com o povo e a terra - Lima Barreto, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Oswald de Andrade, Manuel Antônio de Almeida lá trás”. Servindo como uma espécie de posfácio a Malhação do

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (22 - 28)

9 Cf. ANTÔNIO, João. Aviso aos Nanicos, Pasquim, n.318, 01/08/1975. 10 ANTÔNIO, João. Corpo-a-corpo com a vida. In: Malhação do Judas Carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. 11 AGUIAR, Flávio. Evocação de João Antônio ou do purgatório ao inferno In: CHIAPPINI. Ligia et alli (orgs). Brasil: País do Passado? São Paulo: Boitempo Editorial, Edusp, 2000. p. 149.12 ANTÔNIO, João. Corpo a Corpo com a Vida, op.cit, p. 50.

Page 22: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

24 -

Judas Carioca, o “Corpo-a–corpo com a vida” indica a postura crítica de João Antônio frente aos formalismos do momento e a mobilidade dos gêneros em sua trajetória literária, marcada sempre pela tentativa de unir a urgência da crítica social, o testemunho biográfico e o esforço do fino lavor na criação ficcional. É significativo, portanto, que João Antônio tenha sido consagrado com a imagem polêmica de um escritor “popular”, cuja capacidade de comunicar a experiência vivida entre seus personagens foi um dos principais eixos da consagração de sua obra. Em artigo publicado em 1976 na coluna de literatura de Movimento, encontra-se um testemunho eloquente do processo de superposição, concentrado na persona pública de João Antônio, entre os campos da literatura, da política e do jornalismo:

O paulistano João Antônio saiu do relativo recesso em que se achava e de taco em punho pôs-se a malhar a torto e a direito, lascando lenha em quem passasse perto. E vieram as necessárias malaguetas, os melhores perus, os grandes bacanaços, os infernais leões de chácara, os Judas desancados. A ponto de nenhum jornal que se preze deixar de ostentar, orgulhoso, o seu João Antônio, seja na forma de entrevista, reportagem, crônica ou depoimento. E se falta João Antônio a gente arranja outro que tenha barba e saiba falar dessas quebradas do

13mundaréu sem eira nem beira .

Devido a essa identificação, já atacaram seu 14

“populismo” ou, por outro lado, louvaram sua capacidade de “esposar a intimidade, a essência

15daqueles que a sociedade marginaliza” . Essas polarizações balizariam a avaliação crítica de João

16Antônio e têm em sua definição como cronista durante meados da década de 1970 um momento decisivo. Em alguns perfis de personagens pertencentes às classe subalternas, os “pingentes”, identifica-se a seguir a relação estabelecida entre o narrador de seus textos e suas fontes populares, característico do processo de “autocompreensão através da alteridade” que, nas palavras de Bakthin, definiriam uma postura narrativa

17dialógica .18A crônica “Um Alcebíades” , publicada em

1978, é um dos diversos perfis traçados por João Antônio nas páginas dos diversos jornais onde atuou naquela

década. Nesse texto o argumento é sugerido por um evento prosaico, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro: o narrador precisa consertar a torneira de seu “falso mirante”, a quitinete onde reside em Copacabana. Todo o texto é feito de contrastes entre a sua situação de classe média e o cotidiano do bombeiro hidráulico Alcebíades. O enredo situa-se no bairro de Copacabana e no ambiente dos “sobreviventes urbanos” da Praça Serzedelo Correia, onde o narrador localiza a si próprio: “Nós nem moramos nestes caixot ins humanos também chamados Kitchenette. Só nos escondemos”. Afirmando a própria incapacidade em fazer o conserto, em seguida apresenta o Alcebíades, cuja figura é composta pelo acúmulo de nove pequenos quadros compostos por três ou quatro parágrafos, através da fala de Alcebíades enquanto conserta a torneira ou pela sua fusão com a voz do narrador. Desse modo sabemos, no segundo segmento, do interior do “esconderijo” de Alcebíades, na Cidade de Deus: “Tem um guarda roupa cambaio e uma cama no quarto. A tarimba, que é mais tarimba que cama, precisa de um plástico que a forre, pois, pode chover. O resto dos trens são banquinhos e uma mesa feita com caixotes

19repintados” .

As falas de Alcebíades são recortadas por informações simultâneas do que está ocorrendo em sua lembrança da Cidade de Deus e no apartamento, ambas no tempo presente. Assim, do mesmo modo que o narrador diz que está reclamando da torneira que enguiçou, logo depois afirma também que “um pedaço de plástico está forrando a tarimba de colchão furado”, duplicando sua perspectiva em direção ao espaço de Alcebíades. Flávio Aguiar já apontou uma “perspectiva

20multidimensional da ação” nos contos de João Antônio. Aqui, essa perspectiva afasta e aproxima as duas posições diferentes, sugerindo somente uma solidariedade possível, através do aprendizado do narrador, ao perceber a frivolidade das próprias preocupações caseiras em comparação com a rotina de Alcebíades, à qual demonstra querer se aproximar. Essa empatia, junto aos seus limites, determinados no texto pela demarcação espacial das posições sociais diferentes, manifesta-se também na observação do narrador enquanto Alcebíades dá notícias da Cidade de Deus: “Saudades da Rocinha andam brilhando nos dois olhos que se apertam no parafuso da torneira”. Quando termina o conserto, encerra-se o diálogo: “Alcebíades terminou o conserto. Recebe o trocado e aceita café. Timidamente recusa continuar o papo. Copacabana é grande e ele tem que se virar.”

A caracterização do narrador como alguém isolado da experiência popular por sua condição de classe, ao início, se contradiz por outro lado com a sua vontade de abertura ao mundo de Alcebíades, tentando se permitir uma conversa não mediatizada pela divisão dos papéis sociais, os quais reconhece. Superficial, esse contato constitui uma brecha por onde a divisão se expõe. No entanto, ele não basta para integrá-los numa

A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO

13 AGUIAR, Flávio, Feijoada na Literatura, Movimento, Janeiro de 1976. Essa tendência também pode ser vista nos autores da coletânea organizada por João Antônio nos anos 1970, chamada Malditos Escritores!, Extra Realidade Brasileira, n. 4, Março de 1977.14 HOLLANDA, Heloísa Buarque. Anos 70 – Literatura. Rio de Janeiro: Edições Funarte, 1981. 15 CANDIDO, Antonio. Na Noite Enxovalhada. Remate de Males. Departamento de Teoria Literária IEL/UNICAMP, n. 19, Campinas, 1999, p-p. 83-89.16 PEREIRA, Jane Christine. Estudo Crítico da Bibliografia sobre João Antônio (1963-1976 ). Dissertação de Mestrado– Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista, 2003.17 BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. Ver, principalmente, o capítulo 3: Filosofia da Linguagem e Psicologia Objetiva. p-p. 48-66.18 CooJornal, s.n., Setembro de 1978.

19 Idem.20 AGUIAR, Flávio. Evocação de João Antônio ou do Purgatório ao Inferno. op.cit. p. 115.

Page 23: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 25

experiência comum. Isso também fica claro no último segmento do texto, depois que Alcebíades parte e o narrador lembra de um folheto do BNH, noticiando a mudança do nome das ruas em Cidade de Deus:

Alcebíades, magro, troncho, puxando de uma perna, provavelmente não tenha notado nada disso.

Ele já se mandou de minha casa. A torneira consertada, funcionando. Tudo sob controle na área doméstica do banheiro.

O narrador está implicado na situação, problematizando sua circunstância pessoal através do diálogo com Alcebíades, que fala sobre o cotidiano no conjunto habitacional através do cronista. Ainda que a partir de lugares sociais diferentes e do controle da narração pelo cronista, busca-se um contraponto das duas vozes na apresentação das mazelas da Cidade de Deus e do bairro de Copacabana. Pode-se dizer que essa narrativa se estrutura simultaneamente sobre dois problemas: o encontro entre o narrador e o personagem como reconhecimento conflituoso de posições demarcadas pela divisão de classes, e a história representativa da Cidade de Deus, um símbolo dos programas habitacionais de remoção. Através do contato interpessoal por onde esses motivos se apresentam, os dois registros se entrelaçam no diálogo interno da consciência do narrador, que vive a questão social em termos pessoais, em que uns e outros se condicionam mutuamente. Trata-se de uma consciência construída na própria busca, e não preexistente, refletindo assim o “intercâmbio entre a práxis e a vida interior” que,

21segundo Luckács , define a diferença do narrar em relação ao descrever.

O modo como o narrador das crônicas representa a si mesmo e aos personagens identificados às classes subalternas – designada em trechos mais programáticos sob a noção genérica de “povo”, mas extremamente plural e particularizado nas narrativas – bem como os momentos cambiantes de identificação, crise e aprendizagem com a experiência dos “pingentes”, inscrevem-se de diferentes maneiras nos enfoques narrativos das crônicas. Por exemplo, em “Policarpo

22Quaresma na Copa de 1974” , publicada quatro anos antes de “Um Alcebíades”, essa questão aparece de modo diverso. Trata-se de um narrador mais distanciado, curioso com a peregrinação de Gabreno da Rocha pelos correios na tentativa de enviar um urubu para a concentração da seleção brasileira na Copa da Alemanha. Antes de passar à história de Gabreno da Rocha, o cronista apresenta uma nota prévia, partindo do ano de 1972. Transcreve-se abaixo essa introdução da crônica, pois ela alinhava com veemência algumas das principais motivações de João Antônio como cronista, na década de 1970.

Até hoje (faz um mês) permanece sem registro

de importância, um fato extraordinário, acontecido no último dia de São João ou antevéspera do jogo do selecionado brasileiro contra o da Alemanha Oriental. Um favelado do Morro da Mangueira andou às voltas com as agências do correio carioca tentando remeter um urubu engaiolado ao preparador técnico

23Zagalo .

No trecho reproduzido acima, o narrador expõe o enfoque a ser adotado sobre o acontecimento, destinado que está a fazer o seu “registro de importância”. Então se aproxima do caso de Gabreno da Rocha, dizendo que ali havia “o espírito de Lima Barreto”, principalmente (importa sublinhar) no que se refere ao “desencontro do homem pobre no cotidiano das chamadas grandes cidades brasileiras”.

Acompanham o texto a foto de Gabreno da Rocha, morador do morro da Mangueira, com dísticos do Flamengo e do Corinthians, ao lado de uma gaiola com um urubu. Lembre-se que a crônica foi publicada após a derrota da seleção em 1974, na copa seguinte à euforia nacionalista do tricampeonato de 1970. O esporte é reconhecido em sua relevância para Gabreno, em quem o narrador vê “certa loucura comovente, ao modo dos quixotes tupiniquins (solitários e ridículos, muitas vezes; e, afinal, quase sempre patriotas)”. Assim, a atitude performática de Gabreno é desfiada, em sua ambigüidade: “Ainda não se esclareceu até onde foi ingenuidade, espírito ou troça, a bizarra demonstração de misticismo de Gabreno da Rocha”.

Acompanhando o périplo frustrado de Gabreno, a crônica “transcreve” um requerimento de seu advogado ao diretor dos Correios, “digna das melhores reformas radicais de Policarpo Quaresma”. Ocupando uma grande parte da crônica, esse requerimento se interpõe às falas do personagem e à voz do narrador, predominante no começo. Reproduzimos abaixo seus três primeiros itens (são sete, entre petições e explicações).

1 – O requerente, a exemplo de cerca de 100 milhões de brasileiros, é supersticioso e apaixonado pelo futebol;

2 – Torcedor do Flamengo, acredita piamente, por razões já de domínio público, na figura do u rubu como expressão de uma fo rça sobrenatural capaz de reanimar os homens a ponto de conduzi-los à vitória quando a derrota parece consumada;

3 – Trata-se de mística ou crendice que, em verdade, é comum à maioria dos brasileiros, versados ou leigos nos mistérios do balípodo, embora os adeptos de outros clubes e os indiferentes só as manifestem em circunstâncias especiais, como a presente participação do

24Brasil na Copa do Mundo .

Ao discurso burocrático do advogado segue-se a conclusão da crônica, quando Gabreno “está desiludido ao lado do urubu, do charuto-símbolo, do dístico do

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (22 - 28)

21 LUKÁCS, Georg. Narrar ou Descrever: contribuição para uma discussão sobre o naturalismo e o formalismo. In: Ensaios Sobre Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 63. 22 Policarpo Quaresma na Copa de 1974, Crítica, s.n., Agosto de 1974.

23 Idem.24 Idem.

Page 24: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

26 - A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO

coríntians, da bandeira e da faixa do flamengo”. Até que o funcionário do correio, regulamento na mão, encerra: “Aves não seguem nem vivas e nem mortas”.

Alcebíades e Gabreno são surpreendidos em situações diferentes. Porém, o traçado de seus respectivos perfis coincide na posição emblemática em que os indivíduos são colocados, desde o título: Alcebíades é “um Alcebíades” e Gabreno da Rocha, além de agir como “um Policarpo Quaresma”, é um “quixote tupiniquim”. Não estão ali como pretexto, mas em torno deles se comprimem imagens literárias de uma situação representativa da experiência dos trabalhadores. Esses dois relatos são constituídos justamente pela intertextualidade entre as vozes evocadas pelo narrador, dedicado a estabelecer um plano onde pudesse compor uma experiência cúmplice da cidade e do país. Por isso, essas duas crônicas não apresentam o tom de quem pretende representar uma situação típica, uma tese, a partir da análise externa do caso individual, embora a relação com o segundo personagem, Gabreno da Rocha, seja mais distanciada e próxima do estilo da reportagem. Detendo-se no foco do personagem o narrador procura sua própria posição, interna à situação narrada. A narrativa da experiência interior e da situação social se elabora no choque de perspectivas de classe diferentes e no estranhamento, através de artifícios que revelam não

25só a identificação, mas também o conflito .

No Pasquim, João Antônio escreveu algumas crônicas cujo tema é o futebol, como no perfil de Gabreno da Rocha, refletindo através do esporte sobre alguns dos temas de sua predileção. A dedicação ao jogo também acompanha seu projeto literário de fazer-se um intérprete identificado à sensibilidade popular. Nas crônicas escritas para o Pasquim, o vínculo entre o esporte e a investigação da realidade social faz-se pela associação deliberada do narrador à linguagem do torcedor e à posição daqueles jogadores que, segundo o seu olhar, representariam uma condição marginal e contestatória à engrenagem do esporte. Esse é o caso do “maldito” Almir Pernambuco, sobre quem escreveu “Cartão Vermelho

26Para os Valentões” . Esse texto aborda o tema do futebol a partir de uma análise do caso de Almir, assassinado um ano antes, durante uma briga na galeria Alaska, em Copacabana. A motivação é o lançamento do livro Eu e o Futebol, que reúne depoimentos do jogador aos

27jornalistas Fausto Neto e Maurício Azêdo . Mas, antes de entrar no caso Almir, João Antônio expõe seu desconforto com o tratamento reservado ao esporte. Segundo o cronista:

Continua absurdo o distanciamento dos nossos

chamados criadores para os aspectos mais óbvios, mais terra-a-terra, cotidianos, da vida deste País. O futebol, um exemplo: numa terra em que este esporte (a esta altura dos acontecimentos, dos troféus, das mazelas, das idas e vindas pelo mundo todo, mais difundido que o café, o cacau, a banana, ou o couro off Brazil – será apenas e simplesmente um esporte?) atua como uma espécie de arroz e feijão obrigatório até nas mesas dos ricos, ele que é feito em todo e qualquer imaginável campo para movimento de uma bola, desde os campinhos suburbanos, as praias e os estádios – que, sem exorbitar na ironia, chegam a ser o maior monumento em algumas cidades brasileiras - passando por corredores apertados e apartamentos, entradas de edifícios, calçadas, jardins. Bem, ele e seu mundo íntimo ou paralelo estão longe de haver encontrado entre nós um reflexo na literatura, no teatro, no cinema ou em outros meios de manifestação artística à altura de

28sua importância como fenômeno nacional,

Tal desconforto é explicitado pelo cronista também em relação ao jornalismo, cuja linguagem não seria capaz de penetrar com profundidade nos meandros

29do esporte . Assim, por exemplo, a visão do torcedor é valorizada como uma expressão mais verdadeira, porque mais próxima da experiência de quem vive o cotidiano do esporte sem as mediações dos contratos publicitários e do prestígio. Ao relatar seu próprio contato com os torcedores do Corinthians, por ocasião do levantamento de fontes para uma reportagem sobre Rivelino, lembra que os torcedores do Parque São Jorge teriam sido os únicos que falaram dos tricampeões Pelé, Jairzinho e Paulo César “sem nenhum dos arroubos estereotipados de grandezas sacrossantas”. Da mesma maneira, teriam sido eles, os torcedores, que convenceram-no de uma pequena verdade, “mesmo do ponto de vista da análise do estilo futebolístico de cada jogador”: a de que “o jogador brasileiro de toque mais seco e rápido na bola não é Pelé: é o Riva, o Rivelino lá do Parque São Jorge. E coisas assim”.

Mais do que simples espectadores, os torcedores assumem, na visão do cronista, o lugar dos verdadeiros intérpretes do esporte, constituindo uma lição para escritores e jornalistas, em quem aponta uma incapacidade, quanto à linguagem, em aproximar-se da experiência do universo futebolístico. Na observação sobre Rivelino e em outros comentários sobre o protagonista Almir Pernambuco, vistos mais adiante, podemos observar um importante traço do escritor, tantas vezes identificado a referências lúdicas e musicais. Trata-se do sentido metafórico dos comentários de João

25 Para diferentes abordagens sobre a relação entre experiência e narrativa na história social da literatura, ver os ensaios fundamentais de THOMPSON, Edward. Educação e Experiência. In: Os Românticos: a Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. pp. 11-49 e BENJAMIN, Walter. O Narrrador: considerações sobrea obra de Nikolai Leskov, Experiência e Pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.26 Pasquim, Agosto de 1974.27 ALBUQUERQUE, Almir. Eu e o Futebol. São Paulo: Biblioteca Esportiva Placar, Abril, s.d.

28 Idem. 29 Sobre a adoção de uma linguagem coloquial na imprensa esportiva, com o uso de expressões próximas do universo dos torcedores, concomitante à profissionalização no futebol, ao desenvolvimento do jornalismo e a instituição do futebol como símbolo de uma identidade nacional-popular, ver: LOPES, José Sérgio Leite. A Vitória do Futebol que incorporou a pelada: a invenção do jornalismo esportivo e a entrada dos negros no futebol brasileiro, Revista Usp, n. 22. São Paulo, 1994, p.68.

Page 25: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 27História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (22 - 28)

30Antônio sobre o estilo de jogadores , presente também em anotações sobre o choro e a sinuca. No texto intitulado “Merdunchos”, depoimento publicado pela primeira vez

31em forma de “conto oral” no jornal Ex- , João Antônio se refere ao estilo de Carne Frita, um “cobra” da sinuca: “Ele é um artista, um esteta, jogando, e é dentro da malandragem uma certa aristocracia, certo estilo de Gerson, de Nilton Santos, dessa categoria, apesar de malandro e sórdido, como todos os outros”.

Na crônica lembrada anter iormente, a apresentação de Almir Pernambuco passa por alguns episódios biográficos do mundo do futebol, lembrando da folclorização de Heleno de Freitas e do isolamento de Afonsinho, jogadores tidos como contestadores e problemáticos. O jogador de futebol, definido como “um indivíduo de manada”, é investigado a partir dessas exceções, antes do aprofundamento na particularidade de Almir, visto como um “marginal”. Interessante notar a viva preocupação do cronista em definir a natureza da marginalidade de Almir:

Alguém observou que, ao contrário do que Almir disse em seu depoimento rasgado, ele não foi um marginal no nosso futebol. No entanto, Almir foi exatamente um marginal, na medida em que marginal é o homem que procura, através da marginalidade, no todo esportivo (engrenagem) um caminho para a sua integridade como pessoa. Ele terá sido um marginal não porque fosse um brigão ou catimbeiro, que esses eram, afinal, recursos de seu temperamento, dentro e fora dos gramados e por isso foi assassinado – um homem que, não aceitando a engrenagem montada, insiste em continuar dentro dela e até tenta, debalde e dentro de suas tremendas limitações, uma mod i f i cação , um caminho , uma desembocadura para a sua afirmação como pessoa humana (personificação, aceitação de si mesmo). Aparentemente complicado, Almir tinha uma inconformada lucidez daquilo que representava; cavador de vitórias, homem do jogo duro e feio nas grandes áreas, saco de pancadas, objeto:

-Por que fui um marginal?

Além do objetivo de desmistificar a imagem triunfalista da nação formada na fantasia em torno dos “fenômenos” do esporte, objeto naquele momento de intensa campanha governamental, o foco no jogador “marginal” revela uma preocupação do cronista com a dimensão sócio-econômica do problema, interpretando o caso particular como signo de uma condição social, ressoando do caso de Almir para outras esferas. Assim, no parágrafo que encerra a crônica, a exceção vista em Almir e alguns outros serve a uma postura compreensiva do todo que envolve aquele caso de exceção, onde a situação do jogador de futebol é colocada em termos mais universais:

O desajuste econômico transcende o social e chega a um problema de existência. Esse

desacompanhamento não é um problema apenas de Almir, Ponce de Leon ou Heleno. Também independe das raízes, das origens, porque o jogador tem apenas no futebol o seu meio de expressão, a sua forma (brilhante, quando bem executada) de fintar a solidão e não ser um ex (ex-jogador, ex-homem, ex-pessoa).

Não é difícil notar que a caracterização de Almir nos dois últimos trechos citados diz muito sobre a imagem que João Antônio via em sua própria posição no campo literário. Seu olhar sobre o fenômeno futebolístico, captado por ele como fenômeno nacional, ilumina de modo oblíquo sua auto-identificação. Por isso, ao definir a sociabilidade problemática do jogador Almir, a narrativa citada aponta na circunstância futebolística uma situação existencial, mais do que esportiva. O problema da marginalização social, nessa crônica, coloca-se nos termos de uma afirmação pessoal “dentro da engrenagem e contra ela”, conforme sua expressão ao definir a imagem contraditória do jogador assassinado.

Para terminar, um epitáfio. Assim como Lima Barreto e o próprio João Antônio, o repórter e escritor Esdras Passaes foi mais um “pingente” de sua época, um “herói trágico” retratado simbolicamente pelo nosso autor, criador intermitente de perfis e também personagem de si mesmo. Esdras, apresentado por João Antônio como autor de um livro chamado Joãozinho Babá de Viúvas, seria o protagonista de um texto planejado àquela época, conforme noticiara no Diário Popular:

Eu vou agora dar uma de escritor aqui, empombado, cheio de mim, e dizer o seguinte: estou vivendo um grande livro. [...] Ele poderá se chamar “Os Alegres Rapazes da Imprensa Carioca” ou “Grande Prêmio Brasil”, ou ele poderá se chamar “Pistoleiros do Entardecer”. Essa história é a do massacre que houve na minha geração[...]. Essa é a história de Esdras Passaes, o meu valete de copos. É a história do único amigo meu que eu saudei com epitáfio no

32Pasquim .

No epitáfio publicado no Pasquim, propõe-se fazer uma “antologia precária de seus mais fecundos comportamentos”, contando em treze itens os casos cotidianos, hábitos excêntricos, projetos literários frustrados e histórias exemplares daquele que é apresentado como “dono dessa grandeza paradoxal dos homens de uma época de transição”: “gostava de tangos, baixelas e pratarias e ainda de uma carne seca com

33jirimum no Beco-da-Fome” . Assim, na introdução do epitáfio, expõe-se a motivação do narrador em dizer algo sobre o morto:

É uma espécie, a meu jeito e gosto, de ditirambo, para que a dor de toda a minha geração não seja mais a dor inútil de toda uma geração de calados à força, de enganados e manipulados pelos

30 ANTÔNIO, João. Merdunchos. In: Casa de Loucos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. pp. 53-60. 31 Idem, Merdunchos, Ex-, n. 6, Setembro de 1974.

32 Olho no Olho, Diário Popular, s.n., setembro de 1978.33 A Hora de Esdras Passaes, O Valete de Copos, Pasquim, n.299, março de 1975.

Page 26: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

28 - A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO

patrões e pelos patrões dos patrões, de artistas de seu próprio sofrimento. A geração dos feios e malditos.

Na lente de João Antônio, Esdras simboliza um equilíbrio provisório numa circunstância hostil: ele também estava “pendurado na cidade”. O perfil do destino individual interrompido se une à reflexão geracional e à história dos exílios e das partidas precoces, deixando sua marca sensível na visão de uma trajetória coletiva. Como um espelho partido do narrador, Esdras é uma espécie de duplo: escritor, repórter e boêmio, às voltas com o “massacre que houve na nossa geração”.

João Antônio realizou uma aproximação cuidadosa da grandeza e da precariedade da vida dos “pingentes”: com procedimentos destinados a pôr em relevo a voz desses personagens, ocorre um processo de identificação que, no entanto, também revela o estranhamento surgido na busca de uma experiência e uma linguagem comuns. Por isso, essa identificação não corresponde à imagem da busca romântica do povo, presente em determinados lugares comuns construídos em torno dos artistas engajados da época. Ao contrário, ela foi definida pelo autor como tentativa autobiográfica de encontrar um alvo esquivo: o “homem do povo-povo nas capitais, na maioria dos casos, herói sem nenhum

34caráter” .

Artigo recebido em 31.3.2014

Aprovada em 7.5.2014

34 ANTÔNIO, João. Literatura Urbana: Isso Existe? Arquivo João Antônio. UNESP – Assis, São Paulo. Texto datiloscrito, sem data.

Page 27: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 29

Condenado pela raça, absolvido pelo trabalho:notas sobre historiografia e ideologia no

Jeca Tatu de Monteiro Lobato1

Wesley Rodrigues de Carvalho

1

Não é pequeno o roll daqueles que desde o século XIX pensaram a miscigenação racial como um problema brasileiro. Não raro, a mistura das cores da pele, principalmente com a diluição do branco, era elencada como a principal questão nacional. Pensavam-na, dentro de variadas tendências, como uma questão de identidade brasileira e articulavam-na nas reflexões sobre o “progresso”. Muitos dos diversos postulados etnográficos de então acusavam os inúmeros vícios, a imoralidade, a tendência à vadiagem e aos motins que os não brancos puros carregariam nos seus corpos e mentes. Entre as diversas vozes, ressoavam forte aquelas que clamavam pelo branqueamento como uma das poucas possibilidades de alcance do reluzente status europeu, tendo como pano de fundo o fatalismo de que negros e mestiços não teriam características próprias para conduzir o Brasil rumo ao desenvolvimento. À infeliz herança racial, somaria-se um fatalismo climático e geográfico também nada abonadores.

Um dos grandes exemplos dessa mentalidade é o escritor Monteiro Lobato, que em certo momento apontava deficiências da raça como responsáveis por várias características das populações rurais. Criou o personagem Jeca Tatu para expressar toda a impossibilidade brasileira, demonstrando, não sem muito ressentimento, que no centro da indolência, apatia e incapacidade, estava a miscigenação:

Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé. (...)

Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se.

Jeca Tatu é um piraquara da Paraíba,

1 Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense.2 LOBATO, Monteiro. Urupês. In: Urupês. São Paulo. Brasiliense, 1994. p. 167-8

maravilhoso epítome de carne onde se resumem 2todas as características da espécie .

Loba to , a s s im , comba t i a concepções heroicizadoras do caboclo e outras que, desde o século XIX, vinham romantizando a vida e a população rural do país. Diante do que chamava de “caboclismo”, defendia que este tipo era, na verdade, o “ai jesús nacional”:

Esse funesto parasita da terra é o caboclo, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra de zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugiando em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau [espingarda] e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se (…)

3O caboclo é uma quantidade negativa

Porém, alguns estudiosos nos apontam que houve uma alternativa de superação ao pensamento racialista por parte do “Movimento Sanitarista”, – ao qual o autor de Taubaté aderiu ferrenhamente. Quando expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz publicaram suas considerações sobre as condições higiênicas do interior brasileiro, gerou-se um debate de vulto na sociedade. Sensíveis ao tema, diversos membros da sociedade formaram a Liga Pró-Saneamento do Brasil, em fevereiro de 1918. Todo esse movimento teria promovido um deslocamento sobre qual seria a causa da condenação brasileira ao atraso: não mais o inatismo referente à cor da pele e outras causas mais ou menos relacionadas, mas as condições de saúde é que foram eleitas as responsáveis por manter o país nos degraus debaixo da escada mundial. Conhecidos o diagnóstico e o remédio, pôde nascer um certo otimismo e uma mobilização política: a salvação viria através do investimento estatal no saneamento e era sobre as “elites políticas” que deveria haver pressão para que o panorama se transformasse.

É o mesmo Lobato quem melhor evidenciaria a mudança de perspectiva que o Movimento Sanitarista, segundo alguns historiadores, tentava promover.

O nosso dilema é este: ou doença ou

3 Velha Praga IN: Urupês. op. cit. p. 161 e 164. Velha Praga foi publicado originalmente em 12/11/1914, no Estado de São Paulo.

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (29 - 35)

Quero mostrar a esta paulama quanto vale um homem que tomou remédio de Nha Ciência...M. Lobato

Page 28: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

30 -

incapacidade racial. (…)

O nosso problema, verificado que foi o mau estado da população nativa, é simples e uno: sanear. (...) Tudo mais rola para plano secundário. Sanear é a grande questão. Não há

4problema nacional que não se entrose nesse.

Como pontua Castro-Santos, Lobato não fala 5

mais a linguagem da incapacidade racial a partir de 1918 . Sofrendo influência da “idéia-força avassaladora do saneamento” transfere a causa do problema da raça para as endemias rurais, que categorizou como um “problema vital”. Lobato então escreve a parábola da ressurreição do Jeca, na qual demonstra que a preguiça e a miséria do caboclo deviam-se ao amarelão, uma doença parasitária. Depois de devidamente tratado por um doutor, Jeca se dedica ao progresso no campo e se torna um homem moderno triunfante. De acordo com título de artigo escrito por Gilberto Hochman e Nísia Lima, o Brasil, antes condenado pela raça, seria absolvido pela

6medicina .

Talvez seja imprudente pensar que a saúde tenha expelido todo racismo daqueles que aderiram à sua causa. A tese de Ricardo Santos nos permite ver como o ideário sanitarista se encaixava plenamente no pensamento de um eugenista radical como Renato Kehl. E mesmo Roquete-Pinto, antropólogo com posições anti-

7eugênicas, fazia uso de considerações racistas . De qualquer forma, temos nessa década de 1910 um pequeno episódio do confronto que o determinismo da ideologia racista ia tendo à medida que outros temas entravam na pauta do pensamento social e político no país. Para além do registro da (relativa) conversão de Lobato, a questão que tentamos explorar aqui é: qual o significado histórico dessa circulação de ideias sociais? Que contexto histórico a conformou?

2

Sem dúvida, o pensamento racialista é algo múltiplo, que assumiu ao longo da história e em um mesmo momento diversas expressões. Entretanto, trago o foco aqui para um aspecto sobre o negro, mas que também inclui o mestiço, presente em várias sociedades que passaram pelo processo de abolição. Conforme colocam Cooper, Holt e Scott, existiu nas sociedades

4 LOBATO, Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital. São Paulo, Brasiliense, 1972. p. 156.5 SANTOS, Luiz Antônio de Castro. O pensamento sanitarista na Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 193-210, 1985.6 LIMA, Nísia Trindade & HOCHMAN, Gilberto. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: O Brasil descoberto pelo Movimento Sanitarista da Primeira República IN: MAIO, Marcos Chor & SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro, Ed. Fiocurz, Centro Cultural Banco do Brasil, 1996.7 “Do ponto de vista moral, no entanto, é preciso reconhecer que os mestiços manifestam acentuada fraqueza: a emotividade exagerada, ótima condição para o surto dos estados passionais” Apud. SANTOS, Ricardo Augusto dos. Lobato, os Jecas e a questão racial no pensamento social brasileiro. Achegas. Número 7, Maio 2003. www.achegas.net/numero/sete/ricardo_santos.htm. p. 32.

coloniais, à medida em que ia se dando o fim da escravidão, por parte das classes dominantes, a questão de se os negros libertos trabalhariam (perguntavam-se também se o risco de uma convulsão social seria maior). Na Índia, por exemplo:

Para os parlamentares curiosos, o problema era encontrar meios de realizar a transição da vivência da escravidão, que negava a disciplina pessoal e degradava o trabalho, às condições reais do trabalho assalariado, nas quais os ex-escravos teriam de calcular seus interesses e, assim, comparecer ao trabalho toda manhã. Rascunhos alternativos de lei de emancipação tentaram resolver o que se concebia como problema de cultura, disciplina e incentivo. As a u t o r i d a d e s p r e o c u p a v a m - s e c o m a possibilidade de os escravos perambularem em busca de terra desocupada onde pudessem levar uma vida de “preguiça selvagem”. Os escravos teriam de aprender que o trabalho livre significava “medo da fome” em vez de “medo do chicote”; era isso que os arquitetos da emancipação queriam dizer com “transição das dificuldades brutais para as racionais”. A inferência dessa discussão foi que os ex-escravos negros poderiam, talvez, realizar esta transição, ainda que a mão invisível do Estado

8tivesse de forçá-los a isso .

Podemos observar o mesmo receio aristocrático diante da libertação dos escravizados em fonte utilizada por Florestan Fernandes. Trata-se de uma carta do escravista Paula Souza endereçada a um colega:

Deves lembrar-te que o meu grande argumento de escravista era que o corpo escravo era o único com que podíamos contar para o trabalho constante e indispensável do agricultor (…) Quem argumentava assim podia ser considerado um pessimista mas não um emperrado.

Pois bem: os teus patrícios que percam este receio. Trabalhadores não faltam a quem os sabe procurar. Primeiramente, temos os próprios escravos, que não se derretem e nem desaparecem e que precisam de viver e de alimentar-se e, portanto, de trabalhar, coisa que

9eles compreendem em breve prazo .

A questão de se o braço do negro estaria disponível uma vez liberto foi resolvida para Paula de Souza pela dependência material que os negros teriam em relação à lavoura. Entretanto, ficou claro para setores da classe dominante, no Brasil e alhures, que o enquadramento do negro nas novas relações de produção passaria também por uma questão de mentalidade e disciplina. Retomando a argumentação de Cooper, Holt e Scott de onde havíamos parado, temos:

A transição teria de ser dirigida e a metáfora que

8 COOPER, Frederic; HOLT, Thomas & SCOTT, Rebeca. Introdução. In: Além da escravidão Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2005. p. 68.9 FERNANDES, Florestan. A Integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Ática, 1978. p. 32.

CONDENADO PELA RAÇA, ABSOLVIDO PELO TRABALHO: NOTAS SOBRE HISTORIOGRAFIA E IDEOLOGIA NO JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO

Page 29: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 31

as autoridades escolheram para descrever esta solução foi reveladora: aprendizagem. (…) Aplicava-lhes uma disciplina que então se supunha salutar. Era um estado conscientemente “intermediário” que pretendia forçar os escravos a “adquirir os hábitos dos trabalhadores livres e

10preparar-se para gozar a inteira liberdade .

O estigma da “preguiça selvagem” trazia o pessimismo em relação ao progresso social, pondo culpa sobre as costas (ou sobre os genes) dos negros. A “preguiça selvagem” trata na realidade, como mostra um dos autores citados acima, de uma visão alternativa de vida econômica e de trabalho que na Jamaica, por exemplo, procurou se combater através de uma “reeducação” - além de, é claro, uma dificultação do acesso à terra. Voltando ao Brasil, e mais exatamente a São Paulo, Florestan Fernandes procura explicar o porquê de à época membros da classe dominante considerarem os negros como avessos ao trabalho e fugitivos deste - uma formulação que encontrou expressões racialistas. Para Florestan, como que imbuídos de uma mentalidade pré-capitalista, os negros encontravam dificuldades de ajuste na nova configuração

11de trabalho que se lhes apresentava .

A recusa de certas tarefas e serviços; a inconstância na frequência ao trabalho; o fascínio por ocupações real ou aparentemente nobilitantes; a tendência a alternar períodos de trabalho regular com fases mais ou menos longas de ócio; a indisciplina agressiva contra o controle direto e a supervisão organizada; a ausência de incent ivos para compet i r individualmente com os colegas e para fazer do trabalho assalariado uma fonte de independência econômica – essas e outras “deficiências” do negro e do mulato se entrosavam à complexa situação humana com que se defrontavam no regime de trabalho livre.

Tornava-se difícil ou impossível, para o negro e o mulato, dissociar o contrato de trabalho de transações que envolviam, diretamente, a pessoa humana. Ao contrário do imigrante, que percebia com clareza que somente vendia sua força de trabalho, em dadas condições de prestação de serviços, eles ajustavam-se à relação contratual como se estivessem em jogo direitos substantivos sobre a própria pessoa. Ou seja, como se se vendessem, em parte ou totalmente, ao aceitar e ao praticar as

12estipulações do contrato .

A dura caracterização que Fernandes faz do 13

negro liberto é problemática mas o importante é pontuar

10 COOPER, op. cit., p.69.11 Nesta parte, a argumentação de Fernandes procura pontuar que mesmo com os elementos levantados acima, o negro procurou participar dos fluxos da vida econômica da cidade.12 FERNANDES, op. cit., p. 3013 Há críticas em CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas: UNICAMP, 2001. p. 64-88

aqui que as novas relações de produção que iam substituindo a escravidão exigiam novas concepções sobre o trabalho, que passava desde o século XIX por um processo ideológico de valorização. Há, então, um investimento em novas disciplinas - que atravessam o campo restrito do trabalho e incluem diversas áreas da vida como o amor e o lazer- de forma a adequar os

14homens às especificidades do capitalismo , ou seja a transformação do homem livre em assalariado, o que para Chalhoub constituiu a tarefa mais urgente da República nascida em 1889. Em 1888, temerosos de um colapso social (também produtivo, pois quem trabalharia nas fazendas?), deputados discutiam o projeto de repressão à ociosidade. Esse e outros vícios desagregadores “seriam vencidos através da educação, e educar libertos significava criar o hábito do trabalho através da

15repressão, da obrigatoriedade” . Esta política “pública” não se deu somente através de aparatos judiciários e policiais, mas também por construções ideológicas. Naquele mesmo ano, alguém do Parlamento citava o caipira paulista (pela idade, o pai do Jeca Tatu), como “um verdadeiro parasita, que consome apenas e não

16produz nada” . Um deputado argumentava também ali que no Brasil, infelizmente, o indivíduo encontrava muitas facilidades para subsistir por conta das abundâncias naturais. Por conta do bom solo e clima, a população não precisaria ter hábitos ativos de trabalho, sendo necessário que neste país se obrigasse os indivíduos pois a tentação da ociosidade seria irresistível.

Essas construções discursivas, correspondentes à alarmante necessidade de disponibilidade de força-de-trabalho nas décadas subsequentes à abolição, (que na realidade havia começado antes mesmo desta se efetivar), se articularam também em termos racistas. Da postura “colonial” de rejeição ao trabalho manual, a classe dominante passou a positivar o trabalho, dissociando-o do trabalho de escravos, o que também incluía outros elementos da cultura africana. A imigração, tida como grande solução do problema, esteve assim envolta na concepção de que os europeus possuíam, além de virtudes técnicas não desenvolvidas entre os brasileiros, maior disposição física e cultural para o trabalho. Os europeus responderiam melhor ao ideal que se impunha à base da sociedade e, mais do que isso, promoveriam entre os brasileiros os “altos valores” da sociedade europeia, além de, é claro, serem os braços que faltavam por aqui. Se no pensamento a oposição destes às raças “inferiores” nacionais tem raízes seculares, me parece que por outro lado ela é indissociável, nos períodos próximos à abolição, da histórica diferença de enfrentamento das condições de trabalho. Os negros foram largamente preteridos pelos brancos no emprego, pela maior confiança na capacidade de trabalho desses últimos. Eram tidos, dentre outras características, como mais produtivos - segundo um certo cálculo da época, em uma

17relação de 3 para 1 . Sem dúvida, é importante considerar

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (29 - 35)

14 Idem.15 Idem. p. 6816 Idem. p. 7417 Idem p. 35.

Page 30: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

32 -

que a inadequação do negro ao trabalho livre tem especificidades regionais, temporais, etc., podendo mesmo ser bastante relativizada. Também, a questão de se o imigrante era de fato mais apto é discutível em vários termos e sua competitividade com o negro, bem como a integração deste último, apresentam configurações várias ao longo do tempo e do espaço. Mas nosso objeto aqui é o pensamento histórico e, nesse sentido, é interessante notar como a leitura de Fernandes supracitada é próxima ou igual daquela veiculada por setores da classe

18dominante, como observou Chalhoub . Os imigrantes assim eram os brancos que traziam possibilidades de alavancamento civilizacional que os mestiços daqui já demonstravam não querer. Para o secretário colonial inglês Lord Glenelg, citado por Cooper, Holt e Scott, os ex-escravos jamaicanos encontrariam o mesmo caminho do progresso e da civilização justamente à medida em que dessem certo enquanto mão-de-obra livre, dentro do “tipo certo de sociedade e cultura” que o Estado ali, assim como no Brasil, estava empenhado em construir.

3

Conforme colocam historiadores como Nísia Lima, Gilberto Hochman e Luiz Castro-Santos e André Campos, a identificação da doença como traço distintivo do brasileiro trazida a público pelo Movimento Sanitarista pôde fomentar um novo sentido de nacionalidade. E não apenas pelo fato de haver orientações político administrativas centralistas críticas de um federalismo que fazia do Brasil apenas um “punhado de províncias” mal integradas. Quando Miguel Pereira, médico e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, pronunciou a célebre frase “o Brasil é um imenso hospital”, foi deflagrada uma preocupação com o interior nacional na qual os sertões puderam ser assimilados simbolicamente enquanto parte constituinte da nação. Houve, então, ainda segundo a historiografia citada, uma “descoberta dos sertões”, e o sertanejo pode ser incluído (ou retomado) como força maior e central do país, mesmo que ainda estivesse sob o signo da doença. A saúde então se figurou, em mais de um nível, como um elemento central para uma “nova organização nacional” capaz de, finalmente, pôr o país nos eixos do progresso.

Diante do exposto, entretanto, acredito ser necessário um deslocamento no nosso olhar sobre essas ideias em voga nos anos 1910. A ênfase da citada historiografia na doença como constituinte da nacionalidade brasileira e na saúde como elemento chave para sua superação, muito embora correta porque correspondente ao que colocavam intelectuais da época, deixa à sombra um sentido mais preciso de nacionalidade e os meios para a sua construção que estavam em processo no pensamento político nacional, do qual esta segunda década do século é apenas um momento, tal como procurarei demonstrar.

É abundante em “O problema vital” a preocupação de Lobato com a produtividade econômica, em especial da lavoura, comprometida pela doença dos

18 Idem. p. 83

trabalhadores rurais (estes que seriam o “cerne das nacionalidades”, “a melhor riqueza das nações”):

Em todos os países do mundo as populações rurais constituem o cerne das nacionalidades. Taurinos, torrados de sol, enrijados pela vida sadia ao ar livre, os camponeses, pela sua robustez e saúde, constituem a melhor riqueza das nações. São a força, são o futuro, são a garantia biológica dos grupos étnicos. Pela capacidade de trabalho mantém eles sempre elevado o nível da produção econômica; pela saúde física, mantêm em alta o índice biológico da raça, pois é com o sangue o músculo forte do camponês que os centros urbanos retemperam a

19sua vitalidade .

No mesmo livro:Deste deperecimento progressivo da população deflui nosso craque econômico. As lavouras organizadas, como a do café, entanguem-se no desespero da falta de braços, mal se interrompe a corrente da imigração europeia.

Braços! Braços! Há fome de braços. Um país de 25 milhões de habitantes não consegue fornecer braços para a lavoura do café, lavoura que produz menos que uma das grandes empresas açucareiras de Cuba.

É que os braços estão aleijados.

Há os de sobra, mas ineficientes, de músculos roídos pela infecção parasitária, o que obriga a lavoura ao ônus indireto de importar músculos europeus, ou chins, ou japoneses – o que haja, contanto que seja carne sadia e não fibras em decomposição.

Entretanto, a solução definitiva do problema 20eterno da lavoura quem a dará é a higiene .

Quando Lobato se lamentava do entrave ao progresso nacional que era o caboclo, pensava na sua inaptidão para o trabalho: este vendia na feira apenas uma ou outra coisa que poderia recolher sem esforço pelos caminhos em que passava, e tinha com esse mesmo gesto o suficiente para a sua subsistência.

Da terra fértil extraem, quase sem nenhum trabalho, o bastante em caça, frutos e cereais para viverem vida frugal e indolente. Representam o tipo do pequeno produtor-consumidor, vegetando ao lado do grande

21produtor fazendeiro .

Para Lobato, que repudiava a vida tranquila do Jeca, uma terra hostil produziria um povo melhor porque

22mais laborioso . É muito ilustrativa a carta que escreve para seu amigo Godofredo Rangel. A forma com que os agregados de sua fazenda lidavam com a produção lhe irritava.

Começo a acompanhar o piolho desde o estado da lêndea, no útero de uma cabocla suja por fora

19 Problema..., op.cit., p. 13720 Idem. p. 132.21 Urupês, op. cit.22 Problema... op. cit

CONDENADO PELA RAÇA, ABSOLVIDO PELO TRABALHO: NOTAS SOBRE HISTORIOGRAFIA E IDEOLOGIA NO JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO

Page 31: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 33

e inçada de superstições por dentro. (…) Havia uma gameleira colossal perto da choça. Pois ele derrubou-a com três dias de machado – atorou-a e dela extraiu uma gamelinha de dois palmos. Como aproveitou a gameleira, assim aproveita a terra. Queima toda uma face de morro para plantar um litro de milho. O piolho, afugentado,

23vai parasitar um chão mais virgem adiante .

Condena também o escritor que “Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de

24galinhas” .

Observe-se, então, que o homem do interior tem uma forma peculiar de lidar com a natureza, com a produção, com o tempo, com a própria vida. Peculiar e não natural também era a perspectiva moderna de Lobato, e o essencial é entender que seu horizonte era a produção generalizada de mercadorias, diferente daquela com a qual os displicentes “jecas” reproduziam sua existência. “Produção generalizada de mercadorias” ou, se quisermos utilizar um termo marxiano mais referente à expectativa de Lobato para o Jeca, a “subordinação real do trabalho ao capital” (evolução da “subordinação formal”). Os “jecas” já viviam em uma sociedade em certa medida mediada pelas mercadorias, mas sem que o capital tivesse revolucionado inteiramente os processos técnicos do trabalho e a organização social , principalmente no que tange à conversão do próprio homem em mercadoria, a mercadoria força de trabalho, realidade que naquele momento se configurava a Lobato como escapável: a sua frustração se dava justamente porque o Jeca era “fronteiriço” e ia se isolando em relação à “via férrea”, ao “italiano”, ao “arado”, à “valorização da propriedade”, etc. Portanto, um significado histórico fundamental da parábola do Jeca é o de que a transformação a ser propiciada pela higiene, embalada pela cruzada contra o atraso, confronta um modo de ser específico. O economicamente pulsante Jeca ressuscitado sonhado por Lobato, antes de ser uma natural potência latente do caipira, é uma criação que parte de uma antropologia historicamente conformada, uma antropologia burguesa, não compartilhada pelo seu alvo. O Jeca ressuscitado é o mesmo “homem novo”, orientado para o trabalho produtivista e enquadrado em disciplinas várias, que o Estado Novo procurará produzir no seu intento de formação de nação (a nação como formada por trabalhadores, Vargas como trabalhador número um, produzir mais e mais como mote iluminador

25da vida, etc.) A estória da ressurreição do Jeca serve justamente como parábola para i lustrar essa

26possibilidade , que ali se concretiza de forma positiva, tranquila e naturalizada.

Como já citado acima, o caboclo é aquele que se acocora e, com este movimento, estagna o Brasil. Lima nota que, mesmo antes de Lobato, cronistas e contistas viam a ociosidade e a preguiça como as características mais fortes do caboclo, ao lado da ignorância e do

27isolamento . Sobre a questão, a historiadora sublinha que “de particular importância, a meu ver, é o fato de a ressurreição do Jeca Tatu implicar a superação da mentalidade tradicional do caboclo, que não se

28interessava mais em trabalhar apenas para viver .”

É essencial aqui entender que essa é justamente uma das invenções do capital, que subsume o trabalho para fazer dele algo maior do que a vida. Novamente a autora:

Da mesma forma, a prosperidade não implicara comportamento de cigarra, encontrando-se o Jeca regenerado igualmente distante de uma vida de prazeres e ócio, assumindo a previdência como um valor básico. A higiene parece, assim, representar um papel equivalente ao da ética

29protestante de que nos fala Weber .

Ora, como vimos, o ideal hegemônico que se afirmava naquele momento histórico (e que se afirma ainda hoje), para fazer referência à fábula trazida pela autora, é o comportamento de formiga. E não é exatamente a previdência que Jeca assume como valor básico: na estória, o remédio que o sanitarista dá ao caipira lhe provê forças e suspende sua preguiça. Abre assim o espaço necessário para que Jeca oriente a sua vida em torno do elevado objetivo de se tornar rico. O logro é retumbante: Jeca se torna um homem moderno, um farmer empreendedor que passa a só pensar em “melhoramentos, progressos, coisas americanas”. Investe no aprendizado do inglês e em várias tecnologias que lhe permitem grande controle e mando nos seus empregados.

Ainda sobre a citação de Lima, considero que se tem algo que parece representar um equivalente da ética protestante é mais propriamente a ética do trabalho. A saúde, se não quisermos reproduzir os discursos da época, não é um fim, mas um meio para a constituição da nacionalidade, que terá suas feições mais claras nos discursos do Estado varguista, com toda sua apologia ao trabalhador e ao trabalho, este sim encarnando o potencial redentor para a sociedade. Fica ali mais evidente - e entendo que o discurso do Estado Novo faz com o Movimento Sanitarista parte de um mesmo processo - que o grande papel da saúde é o de possibilitadora do homem novo, isto é, do homem trabalhador, e não tão simplesmente do homem saudável. Alguém poderia fazer uma objeção afirmando que a perspectiva do escritor paulista era o empreendedorismo empresarial, e não a proletarização. Caberia-nos apontar, então, que esta diferença é irrelevante: o primordial é o

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (29 - 35)

23 Lobato, em correspondência enviada ao amigo Godofredo Rangel, em 1914. Apud. Santos, op. cit.24 Jeca Tatu - A ressurreição. In: LOBATO, Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital. São Paulo, Brasiliense, 1972.25 Sobre esta questão, ver A construção do homem novo: o trabalhador brasileiro IN: OLIVEIRA, Lucia Lippi. VELOSO, Monica Pimenta. & GOMES, Angela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1982.26 Jeca Tatu. A ressurreição, op. cit. p. 170-7.

27 LIMA, Nísia. Um sertão chamado Brasil. Revan, 1999 p. 134.28 Idem, p. 134.29 Lima, op. cit., p. 147.

Page 32: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

34 -

conjunto de valores e perspectivas que lhes são comuns. Assim, o pensamento político e social no qual se inscreve a saúde deve ser situado dentro do processo de constituição de hegemonia burguesa e desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

Nesse sentido, não podemos deixar de notar a congruência entre as ideias de Lobato e do Movimento Sanitarista e o projeto modernizador de fração não imigrantista da oligarquia brasileira (a Sociedade Nacional de Agricultura - SNA) para a população do campo, expressos em sua atuação junto ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC). Conforme

30análise empreendida por Sônia Mendonça , o MAIC estava, à época da Primeira República, engajado em ações “pedagógicas sobre a mão-de-obra”, promovendo “um conjunto de saberes e práticas que impedissem o acesso à terra e o desenvolvimento de atividades produtivas fora do circuito mercantil”, formulando um discurso destinado “a dar substrato à Nação pela incorporação de todos os elementos tidos como marginais a ela, sobretudo caboclos, mulatos e negros associados à recém-abolida escravidão”. A atuação do MAIC buscava assim “construir um espaço nacional enquanto representação simbólica do mercado de trabalho e elaborar uma 'ética do trabalho' para a agricultura.” A autora mostra todo o investimento técnico na formação de um trabalhador agrícola moderno, que apontava sempre para uma “direção civilizadora” . Guiando-se pelos princípios da racionalidade econômica, buscava-se “precipitar o trabalhador rural, para e pelo consumo, no jogo da economia de mercado”. Dessa forma, escolas agrícolas negavam formas de produção “arcaizantes”. Esse discurso não deixava de ser acompanhado por uma ideia de “democracia rural” que afirmava que o pequeno produtor, tal qual o grande proprietário, tinha a possibilidade do acesso à terra e à instrução e condições para a prosperidade. E como mais do que uma simples congruência de ideias, é importante sublinhar que a SNA serviu como sede da Liga Pró-Saneamento e foi palco de

31muitas de suas reuniões .

Como evidência de que a militância sanitarista de Lobato tem como cerne ideológico a afirmação de uma ética do trabalho burguesa, temos também a experiência daquilo que se tornou o novo evangelho do escritor na década de 1920, o fordismo. Editor e tradutor dos sucessos de público “Minha vida e minha obra” e “Hoje e amanhã”, Lobato esteve empolgado com a doutrina do empresário Henry Ford pelas possibilidades que trariam, as mesmas que antes esperava dos cientistas e médicos. O fordismo apontaria para a “superação da miséria humana” pois este seria “como remédio de todos os males que o não-trabalho, que o mau trabalho, que a iníqua organização do trabalho criou.”. Como pontua Antonacci, “Monteiro Lobato difundiu um novo conceito e um novo moral de trabalho”, que era contraponto ao

30 MENDONÇA, Sônia. O ruralismo brasileiro (1888-1931). Hucitec. São Paulo, 1997. p 162-7.31 A informação está na página 73 de HOCHMAN, Sérgio. A era do saneamento. As bases da política de Saúde Pública no Brasil. Hucitec. São Paulo, 1998.

CONDENADO PELA RAÇA, ABSOLVIDO PELO TRABALHO: NOTAS SOBRE HISTORIOGRAFIA E IDEOLOGIA NO JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO

ócio, à vagabundagem e ao vício (não trabalho), 32características centrais do caipira .

Conclusão33“Jeca, por que não trabalhas?”

Não procurei neste texto encerrar a questão do pensamento racial ou do pensamento sobre a saúde, reduzindo-os a um projeto de hegemonia burguesa. Em especial, o racismo de Lobato, com toda a sua visceralidade e raiva, está fora do escopo deste historiador e sua limitada carga conceitual. É importante dizer também, uma vez que é da seguinte forma com que análises marxistas da ideologia são não raro deturpadas, que não se procurou colocar que Lobato seria um títere de interesses oligárquicos ou industriais organizados, ou que maquiavelicamente procurava enquadrar a população em modelos pré-concebidos.

O ponto é que, multifacetadas e complexas que sejam, as ideias sociais não vagam soltas no ar. Em Monteiro Lobato, a questão da saúde e da raça só encontra seu profundo significado histórico quando a associamos ao enquadramento que o pensamento brasileiro projetava para a sociedade, hipótese que não marca a abordagem de

34trabalhos mais recentes . Esse projeto diz respeito à mais profunda transformação social que é a transição ao modo de produção de mercadorias. Aqui a invocamos não para apontá-la como fonte causal de construções intelectuais (ou o cachorro morto cheio de agressores que é o mecanicismo economicista), mas para observar que era diante deste pano de fundo que se concretizavam dinâmicas centrais da vida social que abalariam os “jecas” Brasil adentro. Ângulo importante para que não caiamos no risco de reduzir a “Ressurreição do Jeca” de Lobato a um progressista desenvolvimento de mentalidade ou a uma neutra vontade de modernização, e para que não deixemos soterrado como tema aquilo que é humanamente mais relevante: o trágico atropelo que a modernização realizou sobre outras formas de vida. Cronis tas da Bél le Époque o chamavam de “regeneração”, enquanto condenavam a boemia e o violão e tudo quanto interferisse na nova disciplina que a

35nova sociedade exigia .

Se sabemos que idéias não encerram significado em si mesmas, mas provém de um contexto social e repercutem sobre ele, podemos ver que o discurso de Lobato pela visão de mundo que carrega e pelos seus apontes performativos enquadra-se e reproduz o ideário burguês. Fala inclusive a linguagem da civilização e do progresso, a mesma dos personagens citados por Cooper,

32 ANTONACCI, M. Antonieta. A vitória da razão (?) O Idort e a sociedade paulista. São Paulo. Marco Zero, 1993.33 Frase de propaganda do tônico Fontoura que traria vitalidade. Lobato, conforme disse de si mesmo, era uma marca. A empresa Fontoura difundiu milhões de exemplares da história do Jeca Tatu. Apud Santos, op. cit.34 A historiografia sobre Lobato não é pequena, e este artigo considerou apenas uma parte dela. A abordagem aqui advogada aparece em outros trabalhos como o de ESCOBAR, Antonius. Política e poder. Rio de Janeiro. Diadorim, 1996.35 Ver Chalhoub, op. cit.

Page 33: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 35História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (29 - 35)

Holt e Scott, todos muito empenhados em ensinar as “raças” a trabalhar. Cronistas contemporâneos continuam notando o choque entre distintos modos de viver, de pensar e de sentir e há que se lamentar sempre que alguém cede dos seus: “Prepara o teu documento/ Carimba o teu coração/ Não perde nem um momento/ Perde a razão” (Chico Buarque, “Vai trabalhar, vagabundo”).

Artigo recebido em 30.3.2014

Aprovada em 18.5.2014

Page 34: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

36 -

Introdução

Na dissertação que deu origem a este artigo, intitulada “'Recordar é preciso': Conceição Evaristo e a intelectualidade negra no contexto do movimento negro brasileiro contemporâneo (1982-2008)”, procurei compreender a relação entre literatura e militância e, mais amplamente, entre cultura e política no movimento negro brasileiro contemporâneo. Para isto, analisei a trajetória e a obra literária da escritora negra Conceição Evaristo, intelectual orgânica do movimento, segundo a concepção de Antonio Gramsci. Neste artigo, me deterei na análise do romance Becos da Memória, publicado por Conceição em 2006, buscando compreender a relação entre memória, literatura e história na obra da autora.

Conceição nasceu em uma favela de Belo Horizonte em 1946. Filha de uma lavadeira que, assim

como a escritora favelada Carolina Maria de Jesus,mantinha um diário onde falava sobre seu cotidiano,

2Conceição afirma ter crescido rodeada por palavras . Ela enfatiza, em entrevista, que não tratavam-se de palavras escritas, mas de uma intensa memória oral familiar, desvelada nas histórias que os mais velhos lhe contavam.

No início dos anos 1970, se mudou para o Rio de Janeiro, onde encontrou um movimento negro ascendente, em consonância com um momento histórico marcado pela luta da população negra norte-americana por direitos civis e pelos movimentos de descolonização dos países africanos. Tendo sido exposta às crueldades do racismo desde a infância, Conceição afirma que foi nesse contexto que passou a compreender “os valores negros

3como cultura, como possibilidade política” .

Em 1976, iniciou a graduação em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, interrompida em 1980, por conta do nascimento de sua filha Ainá, e concluída em 1989. Durante a década de 1980, Conceição participou do grupo Negrícia – Poesia e Arte de Crioulo. O grupo atuava realizando recitais de textos literários em favelas, presídios e bibliotecas públicas, entre outras atividades. Em 1990, Conceição publicou seu primeiro poema nos Cadernos Negros, editados pelo grupo paulista Quilombhoje. Desde então, publicou diversos poemas e contos nos Cadernos, bem como dois romances (2003, 2006), uma coletânea de poemas (2008) e um livro

1 Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense.2 Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é autora de Quarto de Despejo – Diário de uma favelada (1950). Best-seller à época de sua publicação e traduzido em 13 idiomas desde então, o livro narra as mazelas e discriminações enfrentadas pela autora na periferia de São Paulo.3 EVARISTO, Conceição. Entrevista concedida a Bárbara Araújo Machado em 30 set. 2010, Rio de Janeiro.

de contos (2011). Além disso, Conceição Evaristo é mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1996) e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (2011).

A trajetória de Conceição se localiza naquela que tem sido considerada por alguns autores como a fase contemporânea do movimento negro, cujo marco foi a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) em

41978 . Em linhas gerais, essa fase foi marcada pelo “combate à discriminação racial e a denúncia do mito da democracia racial” e pela “afirmação de uma identidade

5racial negra positivada” .

Para compreender a dinâmica de funcionamento do mito da democracia racial brasileira, o sociólogo norte-americano Michael Hanchard desenvolveu a noção de “hegemonia racial” a partir do conceito gramsciano de hegemonia. A hegemonia racial, segundo Hanchard, se articula “através de processos de socialização que fomentam a discriminação racial ao mesmo tempo [em] que negam sua existência, [o que] contribui para a reprodução das desigualdades sociais entre brancos e não brancos, promovendo, simultaneamente, uma falsa

6premissa de igualdade entre eles” .

Apesar de concordar com a utilização do conceito de hegemonia para compreender o mito da democracia racial brasileira, discordo do modo como Hanchard formula sua ideia de “hegemonia racial”. O autor afirma fazer uma “análise neogramsciana” do problema, trazendo a questão racial para o centro da discussão e deixando de lado a perspectiva marxista da luta de classes. Acredito, contudo, que o mito da democracia racial só pode ser compreendido profundamente se considerarmos a questão racial em

7relação constante com a luta de classes e a questão de gênero. Sobre o caráter histórico da construção hegemônica desse mito, Liv Sovik argumenta:

A adoção do discurso da mestiçagem é uma antiga concessão [dos setores dominantes], incorporada no decorrer dos anos pelo senso comum, à presença maciça de não-brancos em

CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Contra-hegemonia e literatura negra nos Becos da Memória de Conceição Evaristo

1Bárbara Araújo Machado

4 DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Rio de Janeiro, nº. 23, pp. 100-122, 2007; PEREIRA, Amílcar Araújo. O Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas / FAPERJ, 2013.5 PEREIRA, op. cit., p. 83-84.6 HANCHARD, Michael George. Orfeu e o Poder: o movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 21.7 HANCHARD, op. cit., p. 38.

Page 35: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 37

uma sociedade que valoriza a branquitude e uma antiga e atual forma de resistência ao olhar eurocêntrico. O que um dia foi uma vitória cultural e política contra a opressão eurocêntrica já foi capturado pelo conservadorismo reinante e a naturalização de relações racistas. Incorporar o discurso da mestiçagem a esse conservadorismo e controlar o sentido do discurso da mestiçagem (...) [reitera] que, por ser um país mestiço, não há ódio racial (...) [, o que reforça] esse controle dos

8sentidos da vida em sociedade .

Diante de tal quadro, a atuação do movimento negro tem se dado no sentido de construir um discurso contra-hegemônico que denuncie o racismo como um fator estruturante das relações sociais no Brasil. Escritores e escritoras engajadas/os na produção de literatura negra brasileira tiveram papel estratégico nessa construção. Segundo Conceição Evaristo, “ao falarmos de literatura negra, (...) falamos de uma literatura cujos criadores buscam conscientes e politicamente a construção de um discurso que dê voz e vez ao negro

9como sujeito que auto se representa em sua escritura” . Considerando estas questões, analisarei a seguir o romance Becos da Memória, no qual Conceição Evaristo apresenta elementos basilares de seu discurso contra-hegemônico.

Becos da Memória“Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de

10minha favela. ”

Embora o livro Becos da memória tenha sido publicado em 2006, foi escrito nos anos de 1987 e 1988. Nesse importante momento da história do movimento negro brasileiro, quando do centenário da abolição da escravidão, Conceição Evaristo elaborou seu “primeiro

11experimento em construir uma narrativa” . Após a tentativa de publicação pela Fundação Palmares nesse período não ter ido adiante, o romance acabou “esquecido

12na gaveta”, vindo a ser publicado quase 20 anos depois .

Ainda que Becos não seja apresentado como uma auto-biografia – na orelha do livro, Eduardo de Assis Duarte se refere a ele como um “romance coletivo” cuja linguagem “desliza fácil do prosaico para o poético” –, a presença de elementos autobiográficos é inegável, a começar pela coincidência entre os nomes da protagonista e de seus familiares com os de Conceição. No romance, Maria-Nova era filha de Mãe Joana, cujos irmãos eram Maria-Velha, casada com Tio Totó, e Tio Tatão. Esses personagens podem corresponder a Maria

da Conceição, sua mãe, chamada Joana, sua tia Maria Filomena da Silva, seu tio Antonio João da Silva (Totó) e seu outro tio, Oswaldo Catarino Evaristo (que, assim como tio Tatão, serviu ao exército brasileiro). Eduardo de Assis Duarte comenta, ainda na orelha do livro, que “a favela [do romance] não tem nome nem referências geográficas precisas, fato que amplia seu simbolismo”. Entretanto, há uma única referência geográfica, a da fazenda onde Tio Totó trabalhou na infância, localizada em “Tombos de Carangola”, município da Zona da Mata

13Mineira . O forte fator autobiográfico do romance nos permite imaginar que ele retrata uma favela localizada na área urbana de Minas Gerais, possivelmente Belo Horizonte, na década de 1950, quando da adolescência da Conceição. Assim como o Rio de Janeiro, a cidade de Belo Horizonte tem sua história marcada por uma política violenta de remoção de favelas desde os anos 1920, o que teve como resposta a organização dos moradores de

14favelas em diversos movimentos de resistência . Becos da memória conta histórias das vidas de moradoras/es dessa favela não-especificada que sofria um processo de remoção.

Como numa tecelagem de memórias, o romance entrelaça trechos de histórias de diferentes personagens da favela: os membros do núcleo familiar de Maria-Nova; uma doméstica que morava com o pai doente e três filhos; um andarilho misterioso que ajudava e fazia amizade com todos, tornando-se o contador de histórias preferido da protagonista; um homem que abusava sexualmente e agredia sua mulher e sua filha; uma prostituta bonita que foi tomada pela loucura na mesma época em que teve curso a desfavelização; uma mulher portadora de hanseníase que se escondia das vistas de todos na favela; entre outros. Não fica claro se todos os personagens em destaque no romance são negros, mas a maior parte deles, sim. A presença da violência doméstica, assim como a desconfiança e o esquecimento quase generalizado da mulher portadora de hanseníase, são alguns dos temas que complexificam o que poderia ter sido um retrato idílico e idealizado da favela.

Já nas primeiras páginas do romance há menção ao “banzo”, definido por Nei Lopes como “espécie de melancolia ou nostalgia com depressão profunda, quase sempre fatal, em que caíam alguns africanos

15escravizados nas Américas” . Ao contar histórias de sua infância para Maria-Nova, Tio Totó lembra que seu pai “dizia sempre de uma dor estranha que, nos dias de muito sol, apertava o peito dele. Uma dor que era eterna como Deus e como o sofrimento”. O próprio Totó, ainda menino, “sentia aquela punhalada no peito. Uma dor aguda, fria, que sem querer fazia com que ele soltasse fundos suspiros. O pai de Totó chamava aquela dor de

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (36 - 42)

8 SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009, p. 39.9 EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: Uma poética de nossa afro-brasilidade. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996, p. 2.10 EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006, p. 21.11 Idem, p. 11.12 Idem, p. 11.

13 Idem, p. 23.14 PINTO, Maria Luiza Costa; ROCHA NETO, Pedro Veríssimo. A c i d a d e , a s f a v e l a s e a U r b e . D i s p o n í v e l e m http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=urbel&tax=17484&lang=pt_BR&pg=5580&taxp=0&idConteudo=50494&chPlc=50494. Acesso em 26 de maio de 2013.15 LOPES, Nei. Dicionário escolar afro-brasileiro. São Paulo: Selo Negro, 2006, p. 27.

Page 36: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

38 -

16banzo” . O banzo aparece novamente na história do avô de Maria-Velha que, apesar de toda a violência sofrida por sua família nas mãos do “sinhô”, continuava “sem se

17rebelar, apenas a dor, o banzo alimentando a vida” . O sofrimento, nesse caso, gera apatia, não incorre em reação.

A própria Maria-Nova, vivendo uma realidade diversa daquelas/es que trabalharam nas fazendas dos “sinhôs”, sentia uma dor profunda que não sabia identificar ao certo, mas suspeitava ser o banzo. Tinha “saudades de um tempo, de um lugar, de uma vida que ela

18nunca tivera” . Mas, ao invés de apatia, o banzo a incomodava e a impulsionava para uma necessidade de reação. Sabendo “que aquela dor toda não era só sua”, percebia “que era preciso pôr tudo para fora, porém,

19como, como?” .

A relação de violência com os “sinhôs” (que permaneciam sendo os mesmos após a libertação dos/as escravos/as) gerou no pai de Maria-Velha, avô de Maria-Nova, uma resposta diferente. Por ser “inteligente demais, indagador da vida”, rebelde e odiar os sinhôs,

20Luís era tido como louco . Essa loucura não é aprofundada no romance, mas é um elemento importante que retomaremos na análise de Ponciá Vicêncio.

Muitas/os moradoras/es da favela são provenientes de áreas rurais, onde a continuidade das relações escravistas entre negras/os e brancas/os era flagrante mesmo após seu fim formal. Um argumento central do livro é que, mesmo com o êxodo para a favela, as relações de subalternidade persistem. Isso fica claro na repetição da expressão “senzala-favela” associada às considerações de Maria-Nova. Essa percepção tornou-se clara para a menina a partir dos estudos de história no colégio:

Duas idéias, duas realidades, imagens coladas no tempo. Senzala-favela. Nesta época, ela iniciava seus estudos de ginásio. Lera e aprendera também o que era casa-grande. Sentiu vontade de falar à professora. Queria citar como exemplo de casa-grande, o bairro nobre vizinho

21e como senzala, a favela onde morava .

A relação com o bairro rico proporciona trechos em que a complexidade da relação entre classe, raça e gênero aparece claramente. Comentando a lavagem da roupa das vizinhas ricas, Maria-Nova sintetiza a desigualdade entre as mulheres ricas e as moradoras da favela: “roupas das patroas que quaravam ao sol. Molambos nossos lavados com o sabão restante. Eu tinha

22nojo de lavar sangue alheio” . A admiração e o medo de Ditinha, empregada doméstica, por sua patroa branca também são reveladores da opressão sofrida pelas mulheres negras trabalhadoras. Diante da riqueza da casa em que trabalhava e da patroa que se embelezava com

suas jóias, Ditinha desgostava de si: “Olhou-se no espelho e sentiu-se tão feia, mais feia do que normalmente se sentia. 'E se eu tivesse vestidos e soubesse arrumar os meus cabelos? (Ditinha detestava o cabelo dela), Mesmo assim eu não assentaria com essas

23jóias” .

A relação estabelecida entre brancos/as ricos/as e “favelados”/as está bem resumida na passagem que fala da tradicional festa junina da favela:

Quem bancava tudo eram os ricos que moravam no bairro nobre bem ao lado da favela. Bancavam para que os favelados não os importunassem. Havia outros bairros perto de favelas em que as casas eram constantemente arrombadas. Parece mesmo que havia um acordo tácito entre os favelados e seus vizinhos ricos. Vocês banquem a nossa festa junina, dêem-nos a sobra de suas riquezas, oportunidades de trabalho para nossas mulheres e filhas e, antes de tudo, dêem-nos água quando faltar aqui na favela. Respeitem nosso local, nunca venham com plano de desfavelamento, que nós também não arrombaremos a casa de vocês. Assim, a vida seguia aparentemente tranquila. E dois grupos tão diversos teciam, desta forma, uma política da

24boa vizinhança .

Nos trechos que destacamos até aqui, é possível identificar uma escolha formal bastante interessante feita por Conceição Evaristo. Trata-se da utilização de nomes com uma carga sociológica que amplia os personagens para além de suas existências individuais, com o objetivo de ressaltar sua representatividade. É o caso de Maria-Velha e Maria-Nova, tia e sobrinha, cuja nomeação ressalta uma continuidade sociológica que, é possível inferir, se refere à condição de subalternidade das mulheres negras. Nesse mesmo sentido, a autora opta pela utilização de palavras como “sinhôs”, “sinhô-moço” e “coronel” para se referir aos fazendeiros, tanto enquanto senhores de escravos como após a abolição formal da escravidão. Ao analisar as leituras críticas feitas sobre o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel de Antônio de Almeida, Antônio Cândido fala desse tipo de opção formal como se tratando de “manifestações de cunho arquetípico”. O autor explica que o

anonimato de vários personagens, importantes e secundários, designados pela profissão ou posição no grupo, (...) de um lado os dissolve em categorias sociais típicas, mas de outro os aproxima de paradigmas lendários e da indeterminação da fábula, onde há sempre “um rei”, “um homem”, “um lenhador”, “a mulher do

25soldado”, etc. .

Essa nomeação arquetípica se apresenta novamente no personagem de Negro Alírio, cuja história

CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

16 EVARISTO, op. cit., p. 24.17 Idem, p. 37.18 Idem, p. 62.19 Idem, p. 73.20 Idem, p. 36.21 Idem, p. 70.22 Idem, p. 20.

23 Idem, p. 93.24 Idem, p. 48.25 CÂNDIDO, Antônio. Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. Rio de Janeiro, São Paulo: Ouro sobre azul, Duas cidades, 2004, p. 23-24.

Page 37: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 39

vale ser destacada dentre as demais presentes na narrativa. Como muitos/as outros/as chegados/as na favela, Negro Alírio nascera em uma fazenda onde a relação entre trabalhadores/as e patrão era carregada por uma reminiscência escravista. Tendo testemunhado em criança as injustiças cometidas pelo Coronel, era tido por ele como uma ameaça. Como tentativa de controlar e cooptar o rapaz, o Coronel providenciou sua alfabetização, mas a capacidade de ler aprofundou seu olhar crítico em relação à realidade: “A leitura veio aguçar-lhe a observação. E da observação à descoberta,

26da descoberta a análise, da análise a ação” . Esse processo, da leitura da realidade à ação, se exemplifica em sua percepção de que os capangas do Coronel, igualmente subalternizados, “eram gente nossa, (...) antes de serem capangas do Coronel, eram nossos irmãos. Só quando estavam sob a proteção e a ordem do Coronel, passavam a nos desconhecer. O que

27acontecia?” . Negro Alírio liderou uma confrontação à autoridade do Coronel e estimulou a autogestão do trabalho em seu povoado; “estava estudando com eles o que era sindicato, greve, liga camponesa, reforma

28agrária” e suas intervenções resultaram na percepção do grupo de “que, se ficassem cada um para o seu lado, eles não seriam ninguém. A ideia da cooperativa, que há muito o Homem discutia com os irmãos, começou a

29tomar corpo” . Com essa conquista, seguiu para a cidade, onde trabalhou como estivador. No porto, os trabalhadores

sabiam tudo de sindicato, de leis, de direitos e deveres. (...) Tinham consciência de suas forças. Conseguiam incomodar, quando faziam greve, o Brasil inteiro. (...) Havia companheiros fiéis que eram capazes de morrer pelos outros. Esses tinham feito a escolha na vida de lutar pela causa operária e não desistiam por nada. (...) Lá no porto, havia companheiros assim, normalmente

30falavam do Partido .

Com os estivadores, portanto, Negro Alírio aprofundou seu conhecimento sobre a luta social, os direitos trabalhistas e pôde conhecer de perto a dinâmica do movimento operário. Não é a atuação no “Partido” – outra manifestação arquetípica –, todavia, o caminho escolhido pelo heróico personagem. O que se destaca na narrativa, aquilo que realmente “havia concorrido para a sua compreensão do mundo” era a capacidade de ler: “Ele acreditava que, quando um sujeito sabia ler o que estava escrito e o que não estava, dava um passo muito

31importante na sua libertação” . Assim, onde quer que passasse, Negro Alírio motivava todo mundo a aprender a ler. Antes de tudo, explicava que era preciso de que todos aprendessem a ler a realidade, o modo de vida em que todos viviam. Em cada local de trabalho, Negro Alírio fazia novos irmãos, se bem que

entre os patrões ele sempre ganhava novos 32inimigos” .

A capacidade de ler as letras e de ler a realidade fez de Negro Alírio o único morador da favela que insistia na necessidade de resistência à remoção. Se inicialmente “não se sabia se os pretensos donos seriam de uma companhia particular ou se gente do Governo”, quando o desfavelamento se deu na prática as/os moradoras/es concluíram que “os pretensos donos éramos nós. Eles, sim, é que eram os donos verdadeiros ou se portavam

33como tais” . Frente a essa crença generalizada, que gerava medo, conflitos internos e relativa passividade ante a injustiça, Negro Alírio “era o único que pisava num

34solo que sabia ser seu” . Ele “insistia em injetar esperança em nós”, afirmando “que tudo aquilo estava acontecendo, mas muita coisa poderia mudar. E quem mudaria? Quem mudaria seria quem estivesse no sofrimento. Quem arreda a pedra não é aquele que

35sufoca o outro, mas justo aquele que sufocado está” . Somente quando a última leva de barracos é removida, Negro Alírio reconhece que “não adiantava resistir, pelo menos naquele momento”. Ainda assim, acreditava ser preciso insistir na denúncia daquele processo, “que todo mundo fizesse uma voz única em coro, que fosse capaz de produzir um som eternamente audível, ressoando os

36lamentos pelos direitos sonegados a todos” .

Negro Alírio, manifestação arquetípica de “negro”, é um personagem exemplar, no sentido de que sua história cumpre uma função didática junto ao leitor. Ele reúne as características de um herói: é bonito, inteligente, pessoalmente e politicamente fraterno, ponderado, justo, consciente dos conflitos de classe e de raça e disseminador dessa consciência – Negro Alírio é “o

37Homem” . A centralidade da leitura e da ação política em sua trajetória configuram elementos que Conceição Evaristo considera como fatores essenciais para o processo de conscientização de negras e negros, principais interlocutores da narrativa.

Negro Alírio funciona como exemplo no próprio enredo do romance. A admiração e o interesse que Maria-Nova sente por ele desembocam na solução para sua dúvida de como pôr o banzo para fora. Sempre atenta a todas as histórias contadas por moradores de favelas, a menina absorvia o sofrimento contido em cada depoimento e sentia necessidade de passá-los adiante. Ao confrontar-se com a história da escravidão em seu livro de história da escola,

pensou em Negro Alírio e reconheceu que ele agia querendo construir uma nova e outra História. Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma História muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez,

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 36 - 42)

26 EVARISTO, op. cit., p, 54.27 Idem, p. 55.28 Idem, 63.29 Idem, 65.30 Idem, 90.31 Idem, 134.

32 Idem, 90.33 Idem, 108.34 Idem, 141.35 Idem, 125.36 Idem, 150.37 Idem, 65.

Page 38: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

40 -

veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no

38seu corpo, na sua alma na sua mente .

A leitura das letras e da realidade era comum a Negro Alírio e a Maria-Nova. O banzo e o sofrimento provocado pelo desfavelamento seriam respondidos pela menina com o compromisso de não desistir da vida e ir adiante. Para tal, “ela já sabia qual seria sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito

39abafado que existia, que era de cada um e de todos” .

Sobre o compromisso de seguir adiante apesar das adversidades fala um trecho comovente de Becos. Tio Tatão, que pouco aparece na história (ele contava histórias de guerra de que Maria-Nova não gostava), faz o seguinte discurso para a menina:

Nossa gente não tem conseguido quase nada. Todos aqueles que morrem sem se realizar, todos os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de hoje, libertam-se na vida de cada um de nós que consegue viver, que consegue se realizar. A sua vida, menina, não pode ser só sua. Muitos vão se libertar, vão se realizar por meio de você. Os gemidos estão sempre presentes. É preciso ter os ouvidos, os

40olhos e o coração abertos .

Tio Tatão teria sido inspirado no tio Oswaldo de Conceição Evar is to , a quem ela a t r ibui nos agradecimentos do livro suas “primeiras lições de negritude”. Assim, é possível identificar nos últimos trechos citados uma síntese daquilo que Conceição considera como sendo missão sua: transcender a própria individualidade e contar através de suas memórias a história dos seus, com o objetivo de construir um futuro diverso.

Vale destacar, ainda, a expressão “se realizar”, utilizada na fala de tio Tatão, que pode significar algo como “atingir seus objetivos pessoais”, “conquistar aquilo que se deseja na vida”. Creio, contudo, que “se realizar” aqui tenha um sentido como o de “vingar”, “existir”, ter uma vida que, contra as probabilidades, persiste. Me remeto, nesse ponto, à observação feita pelo pesquisador Alessandro Portelli quando conheceu o Survival Centre em sua pesquisa no Harlan County, nos Estados Unidos. Portelli se surpreendeu com o fato de que, em uma comunidade que vivia em condições adversas, “sobreviver é, em si, resistir; a luta de classe não se faz mais nas greves e nos sindicatos, mas na luta

41contra a morte” . Considerando o genocídio de jovens negros e negras e moradores/as de favelas no Brasil, que se dá em um contexto de guerra sistemática aos/às pobres através de perseguição policial, de um sistema penal

discriminatório etc., tem sentido afirmar que a própria sobrevivência de pretos e pretas pobres assume a forma

42de resistência na luta de classes . A presença no romance da remoção da favela, prática presente em todo o século XX nas capitais brasileiras e violentamente persistente nos dias atuais, é muito simbólica nesse sentido. Consiste na tentativa de dar cabo à existência da favela, ao menos sob as vistas do “bairro rico”. Contar essa história – “era

43preciso que as pessoas pelo menos falassem” – e as histórias de moradoras/es de favelas que, a despeito das tentativas no sentido contrário, resistiram e viveram, é a necessária ação política na qual se engajaria Maria-Nova e se engajou Conceição Evaristo.

Memória, literatura e outra história da população negra no Brasil

Como pudemos perceber, Conceição Evaristo tem como matéria-prima literária a memória, tanto em seu aspecto individual quanto no social. A autora caracteriza sua trajetória como uma “escre(vivência) em uma dupla-face”, remetendo-se à sua experiência como

4 4m u l h e r e c o m o n e g r a . A c r e d i t o q u e e s s a “escre(vivência)” pode ser desdobrada em uma tripla face, já que não só o gênero e a raça, mas também a classe se apresentam como aspectos fundamentais na trajetória e na produção literária da autora. Essa percepção aponta para a vinculação orgânica da autora à população negra subalternizada, com ênfase nas mulheres, como ela, negras e pobres. Ao retomar em seus romances situações históricas como a remoção de favelas, o êxodo rural de descendentes de escravos/as e a experiência violenta da escravidão brasileira, Conceição toma partido em uma importante disputa de memória. Sua perspectiva se apresenta como uma narrativa contra-hegemônica que visa desautorizar o discurso da democracia racial brasileira. Pode-se afirmar que tem sido esse o sentido de parte importante da literatura negra brasileira: fazer emergir vozes “subterrâneas”, para usar a expressão de Michel Pollak, e subverter o lugar social reservado a negros e negras, que passam de meros objetos históricos e literários a sujeitos, agentes de sua própria história e donos/as de

45seu próprio discurso .

Ao analisar o romance histórico Um defeito de cor, da escritora negra Ana Maria Gonçalves, Eduardo de Assis Duarte levanta a hipótese de que, mais do que uma afirmação literária baseada na memória social afro-brasileira, a literatura negra se apresenta por vezes como uma intervenção na História enquanto disciplina:

CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

38 Idem, 138.39 Idem, 161.40 Idem, 103.41 PORTELLI, Alessandro. Éramos pobres, mas… Narrar a pobreza na cultura apalachiana. In: Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010, p. 104.

42 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Apontando para o genocídio: o racismo como fundamento do extermínio. In: Corpo negro caído no chão. O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.43 EVARISTO, op. cit., p. 150.44 EVARISTO, Conceição. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face. Texto publicado em MOREIRA; SCHNEIDER (orgs.), Mulheres no Mundo – Etnia, Marginalidade e Diáspora. João Pessoa, UFPB: Idéia/Editora Universitária, 2005. Cópia do texto original cedida pela autora.45 POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos, vol. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1989, p. 3-15.

Page 39: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 41História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (36 - 42)

Vinculado à descrença pós-moderna que interpreta o discurso da História como narrativa, o texto de Ana Maria Gonçalves se faz metaficção historiográfica para abrigar outros relatos, inclusive aqueles não-reconhecidos como fontes científicas, origem de uma possível verdade dos fatos. Nesse dialogismo, emergem as vozes de uma memória afro-brasileira colocada nos antípodas da história oficial, que tensiona o discurso do romance rumo ao acoplamento e co-habitação de versões

46díspares” .

Mais amplamente do que o caso da literatura negra brasileira, existe um debate acadêmico, ao menos na área de teoria literária, que se questiona sobre o papel da literatura histórica como contribuição ao debate histórico e historiográfico – em especial aquela

47produzida no sentido de questionar narrativas oficiais . Conforme visto no trecho de Duarte, esse debate envolve em alguma medida uma perspectiva pós-moderna que c o m p r e e n d e a H i s t ó r i a c o m o n a r r a t i v a e , consequentemente, pressupõe a possibilidade de diferentes versões dela – a despeito de qualquer concretude factual. Nesse contexto, obras de literatura histórica escritas sob a perspectiva de grupos sociais subalternos se apresentariam como versões “colocadas nos antípodas da história oficial”. Longe de querer esgotar esse debate, creio que ele levante uma questão interessante para compreendermos o sentido da obra literária de Conceição Evaristo. Embora a produção literária da autora não seja propriamente classificada em termos de literatura histórica, vimos que em Becos da Memória há um forte elemento histórico e um diálogo intenso com a realidade material da população negra no Brasil. Coloca-se então a seguinte questão: a literatura de Conceição Evaristo exerce um papel de intervenção no conhecimento histórico?

A princípio, é preciso considerar a adequação da perspectiva pós-moderna contida na proposta de Eduardo de Assis Duarte, baseada na ideia de “metaficção

48historiográfica” . Creio que ela destoe do objetivo da literatura negra e, mais amplamente, do movimento negro brasileiro, de resgate de uma memória e construção de uma história que têm sido silenciadas. Não se trata de contribuir com mais uma versão entre tantas, mas de fazer frente a uma História oficial que apaga as experiências de negros e negras brasileiros/as, trazendo essas experiências, concretas e reais, à tona.

A escrita da História que silencia a experiência dos grupos subalternos pode ser vista como um “monumento de barbárie”, conforme a reflexão do

49filósofo marxista Walter Benjamin . Ao falar em “barbárie”, Benjamin alude à história de exploração de seres humanos por outros, à existência de dominantes e dominados. Diante de um passado histórico marcado pela barbárie, o filósofo afirma que “o passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção” e que a cada geração é “concedida uma frágil força messiânica para qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não

50pode ser rejeitado impunemente” .

A ideia de que um passado de barbárie – de dor, de sofrimento – dirige ao presente um apelo por redenção está contida no coração da obra literária de Conceição Evaristo. O sentido de “redenção”, em Benjamin e em Conceição, relaciona-se com o entendimento de que é preciso prestar contas com o passado para que se possa construir um futuro de liberdade. Segundo Benjamin, “o dom de despertar no passado as centelhas de esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança de o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de

51vencer” . Tal passagem lembra o trecho de outro romance de Conceição, Ponciá Vicêncio, em que a protagonista, moradora de favela e descendente de escravas/os, se questiona:

De que valera o padecimento de todos aqueles que ficaram para trás? De que adiantara a coragem de muitos em escolher a fuga, de viverem o ideal quilombola? (...) A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de

52vida que se repetia .

É preciso, portanto, fazer valer o sofrimento do passado, conferir a ele um sentido, construir a partir dele algo novo. Benjamin imputa essa tarefa a historiadores/as que tenham tal entendimento, mas o questionamento que enfrento agora trata do papel da literatura, de uma escritora, no processo de “despertar no passado as centelhas de esperança”.

A desobrigação da comprovação documental, que historiadores/as carregam em seu ofício, e a licença poética dão à literatura possibilidades de construções narrativas livres e diversas. Middleton e Woods fazem uma importante distinção entre a responsabilidade histórica de historiadores/as e a de escritores/as que usam memória e história como matérias-primas literárias:

A consciência histórica do historiador profissional (...) difere do desejo em curso na literatura histórica de extrair as possibilidades não-realizadas do passado, inspirado pelas relações cambiantes com o passado na vida

46 DUARTE, Eduardo de Assis. Na Cartografia do Romance Afro-brasileiro: “Um defeito de cor” de Ana Maria Gonçalves. In: LAHNI, Cláudia Regina et al. (orgs.) Culturas e diásporas africanas. Juiz de Fora: UFJF, 2009, p. 22-23.47 MIDDLETON, Peter; WOODS, Tim. Literatures of Memory: history, time and space in postwar writing. Manchester: Manchester University Press, 2000.48 O termo “metaficção historiográfica” se refere a “romances que refletem sobre o próprio processo de elaboração artística, daí o caráter metaficcional; e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, utilizam a história para, em seguida, contestar a própria veracidade histórica”. AZEVEDO, Edjane. Metaficção historiográfica e autoria feminina em Dias e Dias. Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura, vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010.

49 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 225.50 Idem, p. 223.51 Idem, p. 225.52 EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003, p. 83.

Page 40: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

42 -

cotidiana. Esse é especialmente o caso para as fantasias sociais do passado – fantasias de esconder-se dele, de perdê-lo, de redimi-lo, até de revisitá-lo – e para a política radical, que também discerne questões inacabadas do passado, assim como seus horrores, mas que trata o passado como uma demanda ética para qual é preciso prestar testemunho em suas ações. A literatura histórica se move entre esses pólos

53de fantasia e intervenção .

A literatura produzida por militantes negras/os atua justamente segundo essa percepção do passado como algo a que se deve prestar contas – em vez de esquecê-lo, deve-se mantê-lo vivo com vistas na transformação do presente e do futuro. É possível afirmar, então, que as narrativas literárias têm um peso significativo na disputa travada entre os grupos subalternos e a História oficial, cuja narrativa canônica é autorizada e defendida pelos grupos dominantes. Embora escritoras/es como Conceição Evaristo não tenham pretensão de intervir diretamente no conhecimento historiográfico, elas/es têm importância na disputa política da memória, fazendo emergir perspectivas marginalizadas de atores históricos fundamentais: negros e negras, mulheres, trabalhadores/as, moradores e moradoras de favelas, etc. Nesse sentido, a memória é elaborada criticamente na obra da autora a partir de um olhar do presente, visando contribuir para a construção de um futuro no qual os grupos marginalizados que protagonizam seus textos possam ser reconhecidos como protagonistas de suas próprias vidas e histórias.

Artigo recebido em 31.3.2014

Aprovada em 19.5.2014

CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

53 MIDDLETON, WOODS, op. cit., p. 3, tradução minha.

Page 41: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 43

O rock como revolução: a radicalização políticade John Lennon em sua obra musical e na

“entrevista perdida” ao jornal Red Mole (1971)1Romulo Costa Mattos

I

Este trabalho discute a guinada política à esquerda de John Lennon entre o fim da década de 1960 e o início da de 1970. Mostrará como o artista colocou a sua obra a serviço de tarefas políticas e utilizou a sua inserção privilegiada na indústria cultural para militar em prol da transformação social, num período em que se aproximou da Nova Esquerda inglesa. O documento que conduz este trabalho é a entrevista concedida pelo cantor ao jornal trotskista Red Mole, em 1971. Os argumentos de Lennon ali expostos serão exemplificados com trechos de letras de músicas compostas desde os tempos dos Beatles, o que possibilitará também a recuperação de sua trajetória artística até aquele ano.

Apesar de certas divergências, em 1969, os agentes da Nova Esquerda britânica já nutriam simpatia pela figura de John Lennon, principalmente devido ao fato de que o protesto do artista contra a Guerra do Vietnã ia ao encontro dos objetivos daquele movimento político. Um de seus intelectuais mais atuantes, Tariq Ali apreciava a originalidade dos métodos empregados pelo

2cantor, verificada nos bed-ins promovidos em Amsterdã

3e Montreal, no seu bagism e também na campanha natalina internacional “War is over (if you want it)” – “A guerra acabou (se você quiser)” –, com cartazes e outdoors pagos pelo próprio cantor, que considerava o custo dessa operação “mais barato que a vida de uma

4pessoa” .

Em 1970, as entrevistas concedidas por Lennon à grande imprensa, assim como as suas composições, passaram a entusiasmar os partidários da Nova Esquerda britânica. As ideias do artista estavam mais radicais e engajadas, e as discordâncias entre as duas partes desapareciam. Ao mesmo tempo, Ali começou a ser procurado por Lennon, interessado em saber a opinião daquele sobre temas contemporâneos. Certo dia, entusiasmado com a visita do astro ao seu apartamento, o intelectual lhe pediu uma entrevista exclusiva para o jornal Red Mole, no que foi atendido.

1 Doutor em História Social pela UFF e professor do Departamento de História da PUC-Rio.2 Protestos políticos pacíficos realizados por Lennon e Yoko Ono em quartos de hotéis, onde, deitados em uma cama, conversavam com jornalistas sobre a paz mundial, entre outras ações.3 Atividade relacionada com a campanha pela paz promovida no mesmo ano, em que o citado casal permanecia dentro de um saco branco enquanto era entrevistado. Dessa forma, a dupla ironizava o preconceito e a estereotipagem, e sinalizava que não deveria ser julgada pela aparência.4 LEAF, David, SHEINFELD, John.The U.S. vs. John Lennon. Lions Gate Films (United States), 2006.

Essa publicação tinha nascido de um racha entre os membros do conselho editorial do The Black Dwarf, fundado em 1967 por jovens ligados ao Vietnam Solidarity Campaign (Campanha de Solidariedade ao Vietnã), que queriam a paz duradoura e acreditavam em que isso só pudesse acontecer com a vitória vietnamita. Assim, diferentemente da Brit ish Campaign for Peace in Vietnam (Campanha Britânica pela Paz no Vietnã), clássica organização de fachada do Partido Comunista – que confiava na política de

5“pressão discreta” –, os ativistas responsáveis pelo The Black Dwarf insistiam na solidariedade à luta vietnamita e organizavam manifestações para enraizar a sua maneira de agir.

Com o tempo, alguns membros do conselho editorial daquele jornal entraram para o International Marxist Group (Grupo Marxista Internacional), filiado à Quarta Internacional, constituída por seguidores de Leon Trotski. Haviam se tornado trotskistas pela influência de Ernest Mandel e porque entendiam que teoria e realidade tinham se aproximado. Pertencente ao Grupo Marxista, Ali achava que o The Black Dwarf precisava de uma organização para sustentá-lo. Esse pensamento encontrou resistência entre os intelectuais que não queriam comprometer a independência da publicação em relação aos demais grupos de esquerda. Finalmente houve um racha e os que eram membros do Grupo

6Marxista criaram o Red Mole, em 1970 .

Lennon recusou o pedido de 15.000 libras para a fundação que tinha por fim custear o jornal, porque esse veículo não teria “nada mais que um apelo intelectual restrito a poucos estudantes, [o] que seria um desperdício

7completo de dinheiro” . Mas depois liberou 3.000 libras do “Fundo da Liberdade de John & Yoko” para o Red Mole, do qual era leitor. Além da ajuda financeira, o artista foi entrevistado por dois de seus editores – Ali e Robin Blackburn – no dia 21 de janeiro de 1971. A hoje chamada “entrevista perdida” foi originalmente publicada com o título “Poder ao Povo!”, e contou ainda com a participação de Yoko Ono. Questionado por Ali sobre a recente radicalização de suas ideias, o cantor afirmou que sempre pensou

5 Segundo Ali, “Os que mexiam os pauzinhos dentro da entidade apoiavam os vietnamitas, mas em segredo e aos cochichos. Em público, eram simplesmente pela paz”. ALI, Tariq. O poder das barricadas. Uma autobiografia dos anos 60. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 206. 6 Idem, p. 345. 7 DAVIES, Hunter. As cartas de John Lennon. São Paulo: Planeta, 2012. p. 200.

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (43 - 49)

Page 42: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

44 -

politicamente e contra o status quo. É o básico para quem foi criado como eu, odiando e temendo a polícia como um inimigo natural, e desprezando o Exército por levar todo mundo embora e largar morto em algum lugar (...). Diziam, meio zangados comigo, que eu tinha muita consciência de classe, porque sabia o que acontecia comigo e sabia da repressão de classe em cima da gente – que merda, era um fato, mas no furacão dos Beatles isso acabou ficando de fora. Durante um tempo eu me afastei ainda mais

8da realidade .

Ressaltado no trecho acima, o tema da consciência de classe aparece em “Working Class Hero” (“Herói da classe trabalhadora”), do disco John Lennon/Plastic Ono Band, lançado em novembro de 1970. A expressão presente no título indica não um militante e sim uma pessoa que, nascida na classe trabalhadora, ascendeu socialmente. É muito usada para pop stars, jogadores de futebol, astros de cinema, entre outros. Por meio dessa canção, Lennon despreza a sua condição de ídolo da música popular, à medida que essa

9“É a opção que permitem; agora a saída é ser popstar” . Entendia que “o superastro da classe operária não passava de uma conveniente válvula de escape para a

10sociedade burguesa” , conforme resumiu Ali.

Primeiramente, o cantor denuncia as regras da família e da escola, capazes de oprimir o indivíduo: “Te machucam em casa e te batem na escola/ Te odeiam se você é esperto e desprezam os tolos/ Até você ficar tão pirado que não consegue seguir as regras deles/ Vale a pena ser um herói da classe trabalhadora” (“They hurt you at home and they hit you at school/ They hate you if you're clever and they despise a fool/ Till you're so fucking crazy you can't follow their rules/ A working class hero is something to be”). Na entrevista ao Red Mole, ao mesmo tempo que Lennon via a família como uma fonte de repressão, explicava que era necessário falar diretamente aos jovens operários, dando a entender que a escola era um empecilho à concretização desse objetivo. Por isso, “gostaria de incitar todo mundo a romper com a estrutura, a desobedecer na escola, a pôr a linha para

11fora, a continuar insultando a autoridade” .

Voltando à letra da música, Lennon entendia que, ao ascender socialmente, os trabalhadores agiam de acordo com os interesses dos estratos dominantes e perdiam a consciência de classe: “Mantém você drogado com religião, sexo e TV/ E você se acha tão astuto, sem classe social e livre/ Mas ainda não passa de um peão, para mim/ Vale a pena ser um herói da classe trabalhadora” (“Keep you doped with religion and sex and TV/ And you think you're so clever and classless and free/ But you're still fucking peasants as far as I can see/ A working class hero is something to be”).

Na entrevista concedida a Rolling Stone (que

8 ALI, Tariq. op. cit. p. 375. 9 Idem. 10 Idem, p. 350.11 Idem, p. 386.$

12 WENNER, Jann S. Lennon Remembers. London/ New York: Verso, 2000. p. 93. 13 ALI, Tariq. op. cit. p. 375. 14 FARIAS, Sergio. John Lennon: vida e obra. Rio de Janeiro: Litteris Ed., 2011. pp. 170-1. 15 ALI, Tariq. op. cit. p. 375. 16 Idem.17 RIDENTI, Marcelo. 1968: rebeliões e utopias. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge & ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX. V. 3. O tempo das dúvidas: do declínio das utopias às globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 136.

chamou a atenção de Ali), em 1970, Lennon afirmou: Eu acho que é uma canção revolucionária [...] Eu acho que é para as pessoas como eu, que são da classe trabalhadora, das quais se espera que sejam processadas para a classe média ou para a indústria. É a minha experiência, e eu espero que

12seja apenas um aviso para as pessoas .

“Working class hero” contém apenas três acordes e a sua instrumentação se resume a um violão tocado de forma contida. A interpretação vocal, melancólica, sugere o discurso de uma pessoa desiludida, sendo a mensagem política contida na letra o elemento principal desse material artístico influenciado pelo estilo folk. Nele, Lennon reviu o seu afastamento dos trabalhadores, o que é significativo, tendo em vista o seu comentário de que na época dos Beatles a questão de classe acabara “ficando de

13fora” – e que o próprio estivera um tempo afastado da realidade. A autocrítica quanto ao seu comportamento naquela banda foi constante na entrevista. “Os russos disseram que éramos robôs capitalistas, e acho que éramos mesmo”, concluiu o artista. Esse também criticou bastante as bandas americanas por não abordarem a questão de classe e repetiu aquilo que era uma obsessão da Nova Esquerda: a necessidade de se cultivar os vínculos com o operariado (conforme será visto ao longo deste trabalho). Talvez por esse motivo, tenha ajudado a uma greve do sindicato naval da Escócia, na primeira

14metade de 1971 .

II

Tariq Ali quis saber mais sobre o envolvimento (incipiente) de Lennon com a política nos tempos dos Beatles, tendo lhe perguntado: “De certa forma, você já pensava em política quando parecia combater a

15revolução?” . O cantor logo entendeu qual era o assunto que o entrevis tador quer ia abordar : “Claro,

16'Revolution'” . Explicando melhor o sentido de tal pergunta, a versão lançada em compacto da canção “Revolution” (“Revolução”), de 1968, foi considerada pelos partidários da Nova Esquerda um retrocesso político, quando o mundo estava em ebulição. Movimentos de protesto e mobilização política pontilharam naquele ano, que ficou marcado pelas manifestações nos Estados Unidos contra a Guerra do Vietnã; pela Primavera de Praga; pelo maio libertário dos estudantes e trabalhadores franceses; pelo massacre de estudantes no México; pela alternativa pacifista dos hippies; pela contracultura; e pelos grupos de luta armada

17espalhados mundo afora .

O ROCK COMO REVOLUÇÃO: A RADICALIZAÇÃO POLÍTICA DE JOHN LENNON EM SUA OBRA MUSICAL E NA “ENTREVISTA PERDIDA” AO JORNAL RED MOLE (1971)

Page 43: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 45

“Revolution” foi a primeira de uma série de canções em que Lennon trouxe o tema da política para o centro de sua produção. O artista inicia essa letra com o verso “Você diz que quer uma revolução” (“You say you want a revolution”), e completa com uma recusa a participar: “Você já sabe que não pode contar comigo” (“Don't you know you can count me out”). Tentando esclarecer o significado desse trecho, Luciana Sarmento procurou situar o cantor no campo político do período: “Essa música [...] fala da contracultura dividida: havia aqueles que partiam para a luta armada, matando e/ou machucando pessoas para abolir o establishment e aqueles que se colocavam ao lado dos movimentos

18pacifistas” (grifo meu) . A pesquisadora parece concordar com o posic ionamento do beat le , deslegitimando implicitamente a opção pela luta armada, que foi uma realidade histórica das esquerdas naquela época.

Devido a “Revolution”, Lennon foi admoestado por John Hoyland, crítico musical do The Black Dwarf. O intelectual escreveu uma “CARTA ABERTA A JOHN LENNON”, em 1969, procurando, entre outros assuntos, relativizar o ideário hippie, que girava em torno da paz e do amor:

Essa música [Revolution] é tão revolucionária quanto uma novela de rádio. Para mudar o mundo, precisamos entender o que está errado nele. E, aí, destruir isso. Sem piedade. Isso não é crueldade nem loucura. É uma das formas mais apaixonadas de amor. Por que o que estamos combatendo é o sofrimento, a opressão, a humilhação, o custo imenso da infelicidade cobrado pelo capitalismo. E todo “amor” que não se posiciona contra essas coisas é piegas e

19irrelevante .

Hoyland continuou a desconstruir o pacifismo hippie promulgado por Lennon, tentando lhe mostrar, didaticamente, a inviabilidade concreta de tal proposta, no que diz respeito às transformações mais amplas na sociedade:

Revolução bem-educada não existe. Isso não significa que a violência seja sempre o caminho certo, nem que você tenha necessariamente de comparecer à próxima manifestação. Há outras maneiras de desafiar o sistema. Mas elas exigem que se entenda que os privilegiados farão praticamente tudo – matarão, torturarão, destruirão, promoverão ignorância, apatia e egoísmo aqui e queimarão crianças lá fora – para

20não entregar o poder .

O artista não perdeu tempo e elaborou uma “CARTA MUITO ABERTA DE JOHN LENNON A JOHN HOYLAND”. Reafirmando os seus princípios

18 SARMENTO, Luciana Villela de Moraes. Ticket to ride. As tensões entre consumo e contracultura nas letras de música dos Beatles. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. p. 114.19 ALI, Tariq. op. cit. p. 371-2.20 Idem. p. 372.

pacifistas, retrucou: “Obviamente você está numa viagem 21de destruição” . O beatle se preocupava particularmente

com os rumos que a revolução poderia tomar, ou seja, o tipo de sociedade que dela poderia resultar: “Que tipo de sistema você propõe e quem ficaria no controle?”. Esse tipo de apreensão aparecia em outro trecho, de forma mais veemente: “Me fale de uma de uma só revolução bem-sucedida. Quem fodeu o comunismo, o cristianismo, o capitalismo, o budismo etc.? Cabeças doentes e só”. Ao completar o seu pensamento, que resvalava em um ceticismo de cariz conservador, Lennon mostrava quão longe podia estar da Nova Esquerda. Isso porque o conceito de luta de classes era praticamente menosprezado em seu discurso: “Acha que todo inimigo usa insígnias capitalistas para você atirar nele? Isso é meio ingênuo, John. Parece que você acha que tudo não passa de uma guerra de classes”. Apesar dessa frase, o abastado astro do rock não negava inteiramente a divisão do mundo em classes sociais. Tanto que lembrou a época em que engrossava a fileira dos “estudantes humilhados da classe operária [que compravam] um casaco ou qualquer coisa assim razoavelmente barato e durável”. Mas o seu interesse quanto à melhoria das condições de vida dos trabalhadores passava ao largo do conflito social, como reforça a última linha de sua carta: “PS.: Você estraçalha e eu construo em volta”.

Este tipo de pregação, transformada em canção no caso de “Revolution”, contribuía para colocar os Beatles atrás dos Rolling Stones, no julgamento dos partidários da Nova Esquerda britânica. Tariq Ali preferia a banda de Mick Jagger e Keith Richards por acreditar que ela transmitia melhor o espírito de 1968. Hoyland tocou nesse assunto em sua carta endereçada a Lennon: “ultimamente a sua música vem perdendo força, numa época em que a música dos Stones só vem ganhando

22força” . Mas o beatle percebeu que o comentário político do jornalista podia estar contaminado por uma abordagem midiática vulgar, que tendia a alimentar a suposta disputa entre as bandas: “em vez de procurar pelo em ovo nessa história de Beatles e Stones, pense um

23pouco mais alto (...)” .

Recuando um pouco, em outubro de 1968, o The Black Dwarf tinha considerado “Satisfaction” (“Satisfação”) e “Play with fire” (“Brincando com fogo”), ambas escritas por Jagger e Richards, “clássicos do nosso tempo” e ainda “sementes da nova revolução

24cultural” . Além disso, afirmara que, com “Revolution”, os “Beatles foram deliberadamente salvaguardar o

25investimento capitalista” . Na edição subsequente, publicada pouco antes de uma nova marcha contra a embaixada americana, o jornal dera aos Rolling Stones status de radicais. O editor criara a manchete “Marx, Engels, Mick Jagger”. Ao lado de um ensaio de Engels, sob o título “On Street Fighting” (“Lutando nas ruas”), aparecia a letra da canção “Street Fighting Man”

21 Idem, p. 373. idem para todas citações desse parágrafo. 22 Idem, p. 372. 23 Idem, p. 374. 24 WIENER, Jon. Come Together: John Lennon in his time. Illini books ed. Urbana: University of Illinois Press, 1991. p. 8125 Idem.

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (43 - 49)

Page 44: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

46 -

(“Lutador nas ruas”), escrita de próprio punho por Jagger, que a enviara à redação para mostrar o seu apoio à

26passeata .

Embora houvesse ironizado o potencial político de “Revolution” (“tão revolucionária quanto uma novela de rádio”) em sua carta aberta, Hoyland não localizava Lennon em um campo político oposto ao seu. Conforme foi escrito no começo deste texto, a Nova Esquerda Britânica também simpatizava com o cantor. Ao comentar a prisão desse último por porte de drogas, o crítico musical concluiu: “talvez agora você perceba o

27que está (estamos) enfrentando” .

Na entrevista publicada no Red Mole, Lennon procurou explicar a sua recusa à ideia de revolução, manifestada em 1968, dizendo: “Eu não queria ser

28morto” . E aproveitou para citar novamente a sua origem de classe, dando a entender que o tema da revolução não era estranho a ele, quando compôs aquela canção: “Por ter vindo da classe trabalhadora, sempre me interessei pela Rússia e pela China, e por tudo que tivesse a ver com a classe operária, ainda que eu fizesse o jogo

29capitalista” .

III

Embora não tenha ficado claro no tópico anterior, a visão de Lennon sobre o tema da revolução em 1971 era o inverso do que ele explanara em 1968. E isso está expresso em uma de suas canções, cujo título batizou a entrevista publicada pelo Red Mole: “Power to the people” (“Poder ao povo”), de 1971. No dia seguinte ao encontro com Ali e Blackburn, um animado Lennon telefonou para o primeiro intelectual: “Olhe, fiquei tão entusiasmado com o que conversamos que fiz uma música para o movimento, para vocês cantarem nas

30passeatas” . O interessante é que, na conversa com os dois editores, Lennon tinha mostrado satisfação com o aproveitamento de “Give peace a chance” (“Dê uma chance à paz”) – entre outras canções suas – pelos movimentos sociais: “É por isso que agora eu queria

31fazer uma música para a revolução...” .

Lançada em compacto, “Power to the people” reescreve “Revolution” em seus primeiros versos: “Diga que queremos uma revolução/ É melhor começar logo/ Se prepare/ E vá para as ruas” (“Say we want a revolution/ we better get on right away/ Well, you get on your feet/ And on the street”). A sua adesão aos movimentos revolucionários é ratificada em um trecho como: “Nós temos de derrubar vocês/ Quando chegarmos à cidade” (“We got to put you down/ When we come into down”). Na época, Lennon afirmava que o chamado flower power fracassara; por essa razão, era necessário começar novamente. “O sonho do ácido acabou, é isso que estou

32tentando dizer”, explicava o artista . Depois que foi morar nos Estados Unidos, em setembro de 1971, passou a dizer às emissoras de TV: “Somos o começo da revolução (...). Da América ela se espalhará pelo resto do

33mundo. Viva a revolução” . Um detalhe importante é que as últimas palavras dessa citação foram pronunciadas em espanhol (“Viva la revolución”), o que remetia à Revolução Cubana.

O arranjo da música merece um rápido comentário. No início da gravação, a frase “Power to the people” é cantada em coro e acompanhada por um som de palmas, em colcheias, o que simula um protesto de rua. A composição ainda promulga o discurso feminista, sendo essa uma influência de Yoko: “Vou te perguntar, camarada e irmão/ Como é que você trata a sua própria mulher em casa/ Ela tem de ser ela mesma/ Para poder se entregar” (“I'm gonna ask you, comrade and brother/ How do you treat your own woman back home/ She got to be herself/ So she can give herself”). A promoção do feminismo foi outra autocrítica realizada pelo cantor. Afinal, ele fora capaz de escrever “Run for your life”, incluída no disco Rubber Soul, dos Beatles, de 1965: “É melhor você correr pela sua vida se puder, garotinha/ Esconda sua cabeça na areia, garotinha/ Te pegar com outro homem/ É o fim, garotinha” (“You better run for your life if you can, little girl/ Hide your head in the sand little girl/ Catch you with another man/ That's the end, little girl”).

Por que Lennon criticou a dominação masculina em uma canção pró-revolução? Na entrevista publicada pelo Red Mole, o artista afirmou que, para destruir o Estado burguês, “as mulheres são importantíssimas também, não dá para fazer revolução sem se envolver e

34liberar as mulheres” . Mas o tema da igualdade de gênero entrara na vida do cantor por razões referentes ao seu relacionamento com Yoko: “aprendi bem depressa que ou tínhamos uma relação meio a meio, ou não tinha

35relação” . A adesão de Lennon ao ideal feminista renderia uma música como “Woman is the nigger of the

36wold” (“A mulher é o negro do mundo” ), incluída em seu álbum mais politizado, Some time in New York City, lançado nos Estados Unidos em junho de 1972. Nesse título, vemos inserida também temática racial. No mesmo disco, há a canção “Angela”, em homenagem a Angela Davis, militante pelos direitos das mulheres e dos negros.

Para além da revolução em si, o artista discutiu bastante qual seria a melhor forma de efetivá-la, tendo a p o n t a d o p a r a d o i s c a m i n h o s t i d o s c o m o complementares: a conscientização dos trabalhadores e a luta armada. Nesse último caso, Lennon desprezou o pensamento de Yoko segundo o qual seria possível uma

37“revolução sem violência” – que ainda seguia a cartilha hippie dos anos 1960 –, e foi ao encontro da Nova Esquerda britânica: “Não se pode tomar o poder sem

26 Idem, p. 82. 27ALI, Tariq. op. cit. p. 371. 28 Idem, p. 377-8. 29 Idem, p. 387. 30 Idem, p. 37831Idem, p. 381. Conforme disse no showmício John Sinclair Freedom Raily, em 1972, “Se o flower power não deu certo, tudo bem. Nós começamos de novo”. FARIAS, Sergio. op. cit. p. 178.

32 ALI, Tariq. op. cit. p. 381. 33 LEAF, David, SHEINFELD, John. op. cit. 34 ALI, Tariq. op. cit. p. 389. 35 Idem, p. 390. 36 “Nigger” é um termo pejorativo para se referir aos negros nos EUA. 37 Idem, p. 387. Idem para as duas próximas citações.

O ROCK COMO REVOLUÇÃO: A RADICALIZAÇÃO POLÍTICA DE JOHN LENNON EM SUA OBRA MUSICAL E NA “ENTREVISTA PERDIDA” AO JORNAL RED MOLE (1971)

Page 45: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 47

luta...”. Ao que Ali completou: “Isso é o mais importante”. Vale lembrar que Lennon manteve relações com organizações que, com diferentes causas políticas, eram adeptas da luta armada, como o Weather

38 39Underground , o Partido dos Panteras Negras e o Exército Republicano Irlandês (IRA, do inglês Irish

40Republican Army) . Aliás, o artista apoiou a causa desse grupo em “Sunday Blody Sunday” (“Domingo Sangrento”) e “The Luck of The Irish” (“A Sorte do Irlandês”) – cuja renda foi destinada a uma entidade de direitos civis da Irlanda –, ambas do disco Some time in New York City.

O cantor insistiu no tema do enfrentamento violento, tendo se referido ao poder bélico do Estado: “Temos que nos infiltrar no Exército, porque eles estão

41bem treinados para matar todos nós” . Aqui vemos não só o juízo de que o controle das armas pela esquerda era importante para a revolução, mas também a dimensão do convencimento. Na entrevista analisada, Lennon indicou a importância da conscientização dos trabalhadores para o processo de tomada do poder: “Acho que agora os estudantes estão meio acordados, o bastante para tentar acordar os irmãos operários. Se a gente não passa

42adiante a nossa consciência, ela se fecha de novo” . Percebe-se nesse trecho, em primeiro lugar, uma visão parecida com o antigo preceito leninista de que a classe trabalhadora, por si só, apenas chegaria ao estágio sindicalista (econômico-corporativo e reformista); por conta disso, a consciência seria levada “de fora” aos operários, por meio de estratos sociais e intelectuais que tiveram acesso (e aderiram) ao socialismo revolucionário

4 3(marxismo) . Em segundo, uma concepção – possivelmente mais próxima da consciência do artista naquele momento – que apontava para um protagonismo estudantil, cujas referências teóricas afirmavam justamente a possibilidade de novos grupos sociais, com destaque para os estudantes, substi tuírem os trabalhadores (ou, pelo menos, iniciarem a tarefa por eles) na derrubada do capitalismo. De acordo com intelectuais bastante lidos nesse contexto, como Marcuse, o operariado estaria adormecido, ou adestrado

44pelo capitalismo do welfare state .

O interessante é que o cantor continuava a se preocupar com o tipo de sociedade que resultaria da revolução, porém, sem o ceticismo conservador manifestado em 1969, no debate público com Hoyland: “teremos a tarefa de acabar com a burguesia e manter o

45povo num estado de espírito revolucionário” . Em resumo, a argumentação do artista sobre o tema da

revolução, publicada no Red Mole, traz à tona o que ele tinha mente ao compor “Power to the people”, um clássico do cancioneiro político internacional.

IV

À primeira audição, a radicalização política de Lennon parece não ter lugar no megassucesso “Imagine”, do disco homônimo, de 1971 (lançado após a entrevista ao Red Mole, em outubro de 1971). Essa canção é geralmente tratada como um hino à paz mundial e à harmonia, principalmente, em virtude de seu verso “Nada em nome do qual matar ou morrer” (“Nothing to kill or die for”) – que, isoladamente, pode contrastar com “Power to the people”. No entanto, a sua letra é antinacionalista – “Imagine que não existam países” (“Imagine there's no countries”) –, antirreligiosa – “E

46também nenhuma religião” (“And no religion too” ) –, anticonvencional – “Imagine todas as pessoas vivendo para o dia de hoje” (“Imagine all the people living for today”) –, e anticapitalista – “Imagine que não existam posses” (“Imagine no possessions”). Inclusive, é possível enxergar no refrão uma utopia socialista: “Você pode dizer que sou um sonhador/ mas não sou o único/ espero que um dia você se junte a nós/ e o mundo será como um só” (“You may say i'm a dreamer/ But i'm not the only one/ I hope someday you'll join us/ And the world will be as one”).

Lennon pediu para os trotskistas Ali e Blackburn participarem do vídeo de “Imagine”, um indício de que o artista não via nessa canção um retorno ao pacifismo hippie dos anos 1960. Os dois ativistas não só aceitaram o convite, como levaram o recém-libertado Régis Debray – o mais conhecido cronista europeu da Revolução Cubana, que fora preso e torturado na Bolívia – para acompanhá-los na gravação. Para o cantor, a mensagem de “Imagine” era a mesma proclamada em John Lennon/

47Plastic Ono Band, que “ninguém comprou” porque era “real demais” para o público. Com aquela música, ele experimentou um método, no seu entender vitorioso: transmitir mensagens políticas “com um pouco de doce”, para facilitar o seu consumo. Trata-se de uma balada conduzida pelo piano e adornada por um arranjo de cordas, com baixo e bateria executados de forma

48contida .

Esse procedimento foi aplicado novamente com sucesso no compacto “Happy Xmas (war is over)” – “Feliz Natal (a guerra acabou)”, de 1971. Em uma canção natalina melodiosa, com a participação do coro de crianças negras da Igreja Batista do Harlem, o compositor protesta contra a Guerra do Vietnã e afirma que “o mundo 38 LEARY, Timothy. Flashbacks “surfando no caos”: uma

autobiografia. São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999. pp. 372-3. 39 DAVIES, Hunter. op. cit. pp. 251, 255. 40 ROGAN, Johnny. Lennon: The Albums. London: Rogan House, 2010. 41ALI, Tariq, op. cit. p. 392. 42 Idem, p. 386. 43 Ver: LENIN, V.I. Quer Fazer? Problemas Candentes do Nosso Movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2010. 44 Ver: MARCUSE, Herbert. O Homem Unidimensional. Sobre a Ideologia da Sociedade Industrial Avançada. Mato Grosso do Sul: Letra Livre, 2012. 45ALI, Tariq. op. cit.p. 388.

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (43 - 49)

46 O pensamento antirreligioso de Lennon aparece de forma virulenta em “I Found Out” (“Eu descobri”), do álbum John Lennon/Plastic Ono Band. Com a ajuda do tratamento feito com Arthur Janov, criador da terapia primal, o cantor dizia estar livre das “bobagens religiosas”. Idem, p. 378. 47 GILMORE, Mikal. Lennon Lives Forever. Rolling Stone, 15 de Dezembro de 2005. p. 62. Idem para as duas próximas citações. 48 Lennon também expôs essa abordagem empregada em “Imagine” na carta de 1972 enviada a Huey Newton, que fundou o Partido dos Panteras Negras ao lado de Bobby Seale. DAVIES, Hunter. op. cit. p. 255.

Page 46: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

48 -

está tão errado” (“the world is so wrong”).

VI

O artifício de colocar um “pouco de doce” nas mensagens políticas revela mais claramente um jogo de interesses ideológicos e comerciais, a um só tempo, que define o lugar social da obra de Lennon no início dos anos 1970. A ambiguidade do seu projeto residia na disseminação de uma ideologia revolucionária que pudesse, por um lado, ser assimilada pelos trabalhadores e apropriada pelos movimentos sociais; por outro, realizar-se como produto de mercado, utilizando-se dos meios técnicos e organizacionais do mercado à sua

49disposição . No entanto, não é uma fatalidade que os valores de troca subjuguem, para os fins de manutenção do capitalismo, os valores de uso dos objetos culturais que veiculam propostas críticas à ordem vigente. Apesar do poder de se utilizar das ideias mais críticas para se reforçar, a indústria cultural é portadora de contradições que não lhe permitem mascarar totalmente a realidade

50social em que se insere . Assim, a atuação de Lennon foi ao encontro da recomendação de Walter Benjamin quanto à exigência fundamental de “não abastecer o aparelho de produção, sem o modificar, na medida do possível, num

51sentido socialista” . Ainda que sem subverter os pilares da indústria cultural – a propriedade privada dos meios e a relação produtor-consumidor –, o artista atuou criticamente nela, produzindo um conteúdo engajado.

No entender do artista, “rock não é igual a Coca-Cola. (...) Quero atingir as pessoas certas e quero dizer

52as coisas de um jeito bem simples e direto” (grifo meu) . Logo, Lennon sugeria nessa etapa do seu trabalho solo a

53submissão dos aspectos formais a um fim extramusical . Quanto a essa questão, Antonio Gramsci ressaltou:

Mesmo que se admita que conteúdo e forma são a mesma coisa, etc., etc., isto não significa ainda que não se possa fazer a distinção entre conteúdo e forma. Pode-se dizer que quem insiste no 'conteúdo' luta, na realidade, por uma determinada cultura, por uma determinada concepção de mundo, contra outras culturas e

54outras concepções do mundo (...) .

49 Adaptamos aqui as reflexões de Marcos Napolitano sobre o paradoxo vivido pela moderna MPB, nos anos 1960. NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção. Engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). Versão digital revista pelo autor. 2010. p. 71.50 RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: UNESP, 2010. p. 93; Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Record, 2000. p. 328. 51 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas, I. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 127. 52 ALI, Tariq. op. cit. p. 385. 53 Vale ressalvar que Lennon também gravou discos alinhados com a estética vanguardista, sem separá-la radicalmente de seu projeto ético-político. Na já citada carta a Huey Newton, escreveu: “Outras obras de (...) Yoko/John são mais 'vanguardistas' – mas as enviaremos do mesmo modo porque achamos que toda a nossa música tem mensagem”. HUNTER, Davies. op. cit. p. 255. 54 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, volume 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 251.

Outro aspecto importante é que Lennon não idealizava a indústria cultural e conhecia bem o terreno onde lutava:

Pois é, eles têm todos os jornais e controlam toda a distribuição e toda a divulgação. (...) Tentamos [os Beatles] mudar isso com a Apple, mas no final fomos derrotados. Elas [as gravadoras] ainda controlam tudo. A EMI matou nosso disco Two Virgins [de Lennon e Yoko] porque não gostou dele. No último disco [John Lennon/ Plastic Ono Band], censurou as letras das músicas impressas no envelope do disco. Uma merda de tão ridículo e hipócrita; ela tem de me deixar cantar, mas não ousa deixar você ler [a

55letra]. Uma loucura .

Este trabalho procurou mostrar como, em um determinado contexto histórico, as ideias de Lennon se tornaram mais políticas e radicais, tendo a sua militância excedido a dimensão do pacifismo hippie – o que a “entrevista perdida” publicada pelo Red Mole deixa evidente. O cantor rejeitou a ideia de religião, reviu o seu comportamento de beatle alienado, recuperou a sua origem de classe, pregou a revolução e, pensando em como concretizá-la, legitimou a luta armada e apontou para a necessidade de conscientização dos operários. O internacionalismo desses chegou a ser reivindicado e, mesmo, exaltado pelo cantor: “Operários de países diferentes têm de se unir (...). É fantástico pensar no poder que os operários teriam com italianos e alemães

56juntos e todos aqueles equipamentos” . Para que não fiquem dúvidas quanto as suas principais matrizes teóricas, Lennon chegou a citá-las: “Quando começarem a perceber isso tudo, aí então [os] operários poderão começar a tomar o poder. Como disse Marx: 'A cada um segundo a sua necessidade' – acho que isso funcionaria

57bem aqui [na Inglaterra]” .

Em seu livro de memórias, O poder das barricadas, o então trotskista Ali afirmou que a época politizou o artista. Esse foi morar nos Estados Unidos às vésperas da greve dos mineiros de 1972, que iniciou uma mudança de pensamento no operariado britânico e preocupou bastante as classes dominantes. Em território americano, as suas atividades radicais foram espionadas pelo Departamento Federal de Investigação (FBI), que viu no vencimento do seu visto naquele ano uma contramedida estratégica. Mas a ameaça de expulsão (afastada somente em 1976) não impediu que ele convivesse com “os ativistas de esquerda de Nova York, nem que deixasse de participar de protestos e campanhas

58pelo país” nos primeiros tempos de disputa com o governo Nixon – interessado em sua deportação.

Já em 1980, ano de sua morte, Lennon reviu de forma conservadora o seu passado de embates em entrevista à revista Newsweek. Considerou o seu radicalismo falso porque esse estaria ligado a um

55 ALI, Tariq. op. cit. p. 385. 56 Idem, p. 391. 57 Idem,. p. 392. 58 DAVIES, Hunter. op. cit. p. 250.

O ROCK COMO REVOLUÇÃO: A RADICALIZAÇÃO POLÍTICA DE JOHN LENNON EM SUA OBRA MUSICAL E NA “ENTREVISTA PERDIDA” AO JORNAL RED MOLE (1971)

Page 47: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 49História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (43 - 49)

59“sentimento de culpa [...] por ganhar dinheiro” . No entanto, os documentos aqui trabalhados são contundentes por mostrar um artista que assumiu a responsabilidade de ter uma tarefa política que ultrapassava a função de produzir música. Entre 1968 e 1972, observa-se um ciclo de canções políticas na obra de Lennon, iniciado com o single “Revolution” e encerrado com o disco Some Time in New York City. Dentro desse quadro, a sua palavra cantada começou a se radicalizar em 1970, quando colocou em prática o juízo de que a “preocupação principal deve ser revolucionar por meio

60da arte” .

Artigo recebido em 28.3.2014

Aprovada em 4.6.2014

59 FARIAS, Sergio. op. cit. p. 229-30. 60 Carta a Ali e Blackburn, entre 1970 e 1971. DAVIES, Hunter. op. cit. p. 255.

Page 48: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

50 -

Os debates que estiveram na cena pública por ocasião dos cinquenta anos do golpe de 1964 reforçam a importância do ofício de historiador, especialmente no que se refere à elaboração de leituras críticas das relações de poder e da preservação e construção da memória das lutas sociais. Cursando o último ano de faculdade em 2004, me lembro bem da tônica das polêmicas de então, marcadas pelas primeiras expressões do chamado revisionismo e as disputas em torno dos termos adequados para a definição do golpe e do regime. Uma década depois, o quadro é pouco inspirador. Para além dos revisionismos e relativismos que desde então se

2estabeleceram no quadro teórico , temos que lidar com os esquecimentos e omissões mais ou menos convenientes, que ao fim engendram uma inominável tendência a reabilitar versões e leituras abonadoras das imposturas e imposições do terror de Estado.

Defrontada com a tentativa midiática de reescrever as linhas do apoio envergonhado sob a forma da crítica tímida, com o silêncio constrangedor do

3 governo abençoando os “pactos” de 1979 e a com a reedição de velhas teses redentoras do golpismo, a polêmica historiográfica voltou sua atenção a essas demandas, concentrando-se especialmente nos debates sobre a natureza do golpe de 64 e do regime que se estruturou nas décadas seguintes.

No entanto, tal urgência não pode ser motivo para tratar com ligeireza outro tema fundamental para a compreensão do período. A luta revolucionária dos anos 1960 e 1970 não se trata de um dado marginal da luta política. Redirecionou o debate político das esquerdas, mobilizou a repressão, pôs a nu a face mais autoritária do

regime, pôs o Brasil em sintonia com o vocabulário da luta de classes a nível mundial... O recurso às armas ocorreu num contexto extremamente complexo e merece ser analisado com o senso de responsabilidade pelo que representou em seu tempo, bem como pelo que pode representar para os debates e embates atuais.

Infelizmente, o artigo de Claudinei Cássio de Resende publicado no número deste periódico dedicado ao dossiê temático sobre o golpe passa ao largo dessas questões, baseando-se numa série de preconceitos, gene ra l i z ações e s imp l i smos pa r a dec r e t a r inapelavelmente que a estratégia da esquerda brasileira

4(pré e pós-64) estava fadada ao fracasso . O autor ignora a historiografia e a documentação já publicadas há décadas para sustentar uma argumentação fatalista, baseada em clichês e mitos que em nada contribuem para a compreensão dos complexos e contraditórios processos de opressão e repressão, resistência e revolução no Brasil contemporâneo.

Em sua visão, a esquerda brasileira padece de um “raquitismo teórico” congênito, decorrente de seu atrelamento a uma burguesia débil que nunca chegou a encampar um processo de desenvolvimento autônomo. Desse pecado original decorre uma história de lacunas e ausências: a revolução burguesa não concretizada, a não-realização de uma modernização a partir de processos revolucionários, a incapacidade da dominação burguesa sob a forma democrática, a impossibilidade de um projeto nacional, que legaram como consequência uma esquerda “aquém” da europeia “por não se deparar com uma

5entificação histórico-social integralizada” .

O que poderia então nos restar? Derrotas, tragédias, falências, suicídio coletivo. É com essas premissas que o autor pretende abordar a delicada questão da luta armada no contexto da ditadura. Uma análise baseada em projeções mecânicas, que já seriam motivo de desconfiança. Mas sua proposta vai mais longe. Pontuado por afirmações incisivas e sem margem de relativização (mas também sem fundamentos empíricos ou documentais), o artigo desqualifica em algumas linhas todo o esforço e dedicação de milhares de militantes no combate à ditadura, sem dar-lhes espaço para defesa.

O autor em questão considera que as organizações revolucionárias tiveram inserção sindical 1 Graduado em História pela UFF, Mestre em Serviço Social pela

UFRJ.2 Ver artigo de Demian Melo no n. 17 desta revista.3 LIMA, José Antônio. Dilma Roussef é contra a revisão da Lei da A n i s t i a ? I n : C a r t a C a p i t a l , 0 1 a b r . 2 0 1 4 . <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/dilma-rousseff-e-contra-a-revisao-da-lei-da-anistia-5041.html> Acesso em 09 jul. 2014

SENTIDO TRÁGICO E RESPONSABILIDADE HISTÓRICA: UM DEBATE NECESSÁRIO SOBRE A LUTA ARMADA NO BRASIL

Sentido trágico e responsabilidade histórica:um debate necessário sobre a luta armada no Brasil

1Tiago Coelho Fernandes

POLÊMICA

"Aprendemos a atirar e acertamos no alvo. Se não me defendo, quem me defenderá? Se não for assim, como será? E se não agora, quando?"Primo Levi

4 REZENDE, Claudinei Cássio de. O significado histórico do destino trágico da esquerda brasileira dos anos 1960. História & Luta de Classes. v. 9, n. 17, mar. 2014. 5 Idem, p. 28.

Page 49: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 51

“praticamente nula”; seu apoio social, “minúsculo”; sua inserção no campo “no mínimo, desastrosa”. Fragmentadas, passaram a atuar “de maneira completamente desligadas umas das outras e num

6abandono teórico pulsante” . Inexperientes, foram presas fáceis da repressão. Com isso, a inapelável derrota não representaria apenas a falência física, mas também a falência teórica da esquerda brasileira.

A ânsia em demolir cada vestígio da memória de luta armada e de colocar seu enquadramento teórico acima dos processos históricos faz com que as hipóteses apresentadas se sustentem sobre omissões e erros. A reiterada insistência na falta de inserção social se estabelece como uma crítica moral a uma esquerda que teria optado pelas armas em detrimento do povo. Essa falsa disjuntiva condena determinados sujeitos sociais simplesmente relegando a último plano o contexto em que eles atuaram. Sob condições de clandestinidade e perseguição, infiltração e delação, com as organizações de trabalhadores sob intervenção policial e empresarial, confrontados pela organização de grupos paramilitares de direita, a opção pela ação política aberta foi progressivamente bloqueada. Ainda assim, não se pode ignorar a presença dos grupos revolucionários que posteriormente adeririam à guerrilha nos esforços de reconstituição das forças populares após a derrota em abril de 1964. Para além da massificação das lutas estudantis, percebe-se aí um período de efervescência crescente que envolve amplos setores das classes subalternas nos debates e balanços teóricos; ações diretas, reflexões e articulações sobre os caminhos de resistência ao regime. Reemerge então um processo de radicalização, instigado pela natureza autoritária da dominação burguesa-militar e pela frustração com o imobilismo que selou a derrota sob o governo Goulart, o que não significou um mergulho cego na luta armada. São bem conhecidas as relações da VPR com o movimento operário e grevista de Osasco em 1968, ou o trabalho de base do Agrupamento Comunista de São Paulo, para que se diga que o isolamento era a tônica comum a prenunciar

7a “tragédia” da luta armada .

Portanto, é leviano afirmar que Marighella foi seguido “por um grupo de estudantes”. Esse lugar-comum do bando de jovens inexperientes e fascinados pela ação é facilmente questionado se nos damos ao trabalho de uma rápida consulta sobre a composição das organizações que se prepararam para a luta armada. Na ALN, além de Marighella, membro do Comitê Central do PCB desde a década de 1940, estavam militantes como Joaquim Câmara Ferreira, veterano da ditadura de Vargas

8e Virgílio Gomes , retirante do Rio Grande do Norte 9

militante do PCB desde 1957. A VPR, além de Lamarca ,

capitão do exército que esteve na missão de paz da ONU no canal de Suez, também foi integrada por outros ex-militares como o sargento Onofre Pinto e outros oriundos dos movimentos de subalternos durante o governo Jango,

10além do já referido grupo de Osasco . No PCBR reuniram-se outros dirigentes da velha guarda rompidos

11com o PCB: Jacob Gorender , Mario Alves e Apolônio de 12

Carvalho , este um veterano das lutas contra Vargas, da guerra civil espanhola e da resistência francesa.

Que várias dessas organizações tenham encontrado a partir de algum momento no movimento estudantil o seu principal (ou único) repositório de quadros torna-se mais uma informação que mereça atenção especial para a compreensão da dinâmica da luta de classes no período do que necessariamente um demérito. Que a maioria desses dirigentes tenha sido sumariamente executada, sem chance de defesa, alguns sob tortura, outros em emboscada, me parece um dado fundamental a instigar a analisar natureza e a dinâmica do regime de terror implantado no Brasil, no contexto global de ofensivas e contraofensivas, bem como o sentido desse terror. Assassinados numa guerra suja e desigual, massacrados sem direito às mínimas convenções humanitárias, os revolucionários ainda devem carregar o peso de serem corresponsáveis por tal estado de coisas e de se lançarem desavisadamente para o suicídio?

Assim, sem pretender neste espaço estabelecer definições conclusivas, é plausível observar que a frente de massas se manteve como uma linha de ação fundamental na constituição das organizações revolucionárias, a despeito das condições de repressão e

13clandestinidade impostas pelo golpe . Esse trabalho inclusive se destaca por recuperar a capacidade operacional de uma esquerda dispersa e abalada em um intervalo relativamente curto, a ponto de surpreender os órgãos da repressão. Entretanto, com a implantação do regime de terror sistemático de Estado e a apuração das técnicas de repressão, notadamente a partir do AI-5, cria-se uma situação qualitativamente distinta, cujas consequências devem ser analisadas cuidadosamente. O ponto a ser reforçado aqui é a necessidade de uma perspectiva histórica que observe tanto a luta armada como a repressão processualmente e não como dados a serem encaixados numa arquitetura teórica pré-moldada. Nem os métodos da repressão, nem as opções e táticas das organizações revolucionárias armadas eram os mesmos

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (50 - 54)

6 Idem, p. 29, grifos meus.7 Ver RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Unesp, 1993. (p. 165-242) O sociólogo dedica toda uma seção à análise - não sem problematizações - da relação entre a esquerda revolucionárias e as bases (movimento operário, intelectuais, artistas, mulheres, estudantes, militares e camponeses.8 Sobre a trajetória de Virgílio Gomes, ver PIMENTA, Edileuza; TEIXEIRA, Edson. Virgilio Gomes da Silva; de retirante a guerrilheiro. São Paulo: Plena Editorial / Núcleo Memória, 2009.

9 JOSÉ, Emiliano; MIRANDA, Oldeck. Lamarca, o Capitão da Guerrilha. São Paulo: Global, 1980.10 Idem, p. 60-61.11 Jacob Gorender (1923-2013), além de militante desde a década de 1940, foi importante historiador. Sua obra sobre a luta armada traz um importante balanço do processo, conjugando memória e análise histórico-política. No entanto, carece ainda de uma revisão crítica consistente. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo, Ática, 1987.12 Sobre Mário Alves, ver a biografia editada a partir de tese de doutorado apresentada na UFBA: FALCÓN, Gustavo. Do reformismo à luta armada – A trajetória política de Mário Alves (1923-1970). Salvador: EDUFBA / VERSAL EDITORES, 2008. De Apolônio de Carvalho, ver a autobiografia: CARVALHO, Apolônio de. Vale a pena sonhar. São Paulo: Rocco, 1998.13 Ver nota 6.

Page 50: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

52 -

em 1964, 1967, 1969, 1973 ou 1974.

Por outro lado, a famigerada questão da falta de apoio à guerrilha ou do atualmente tão romantizado apoio civil à ditadura, está ainda por ser equalizada. Apoiar uma guerrilha não é como escolher uma chapa de DCE ou um partido eleitoral. Sabemos que a dinâmica do terrorismo de Estado não visa apenas neutralizar politicamente o oponente, mas aniquilá-lo e ainda difundir o pânico por setores sociais mais amplos, como meio de controle da

14ação política . Nesse contexto, o simples porte de um material impresso “subversivo”, a possibilidade de contato com algum “terrorista” já eram motivos para entrar nas malhas da repressão; mesmo os erros operacionais e arbitrariedades eram funcionais como difusores da política de controle social pelo medo. Toda ação política, “legal” ou transgressora, estava reconhecidamente sujeita à vigilância, envolvendo riscos para os quais nem todos estavam dispostos. Quais passam então a ser os parâmetros de apoio ao regime ou de indiferença à resistência armada? Cabe aos que trabalham nesses termos esclarecer no que sustentam suas afirmações.

No que se refere ao texto em questão, curiosamente não se pode inferir nenhuma tendência ao desprezo pela relação com as massas das citações destacadas pelo autor, sendo ao contrário um interessante comentário da necessidade de ter a ação revolucionária como princípio organizador e impulsionador da

15organização . Uma proposta teórica que, aliás, muito poderia contribuir frente à acomodação atual da esquerda organizada. Em outro documento, em que efetivamente trata do assunto, Marighella explicita sua visão da relação entre vanguarda e povo: “O emprego das ações de pequenos grupos armados não exclui a luta de massas nem as ações de massa. Prova, entretanto, que, sem potência de fogo e sem homens armados, nada podemos

16fazer contra a ditadura” . A seguir, no mesmo texto há um tópico específico sobre “Trabalho de massa e ligação com o povo”.

Quanto ao problema da fragmentação, não fica claro se o autor critica o rompimento com o PCB por significar um distanciamento do movimento de massas ou se ele valoriza a abdicação às diretrizes pacifistas de Moscou. Mas é incisivo em condenar o fim do “monolitismo” pré-64 como um recuo do campo

17popular . Já comentamos o esforço de recomposição das forças populares a despeito dos traumas impostos pelo golpe. O surgimento de novos grupos revolucionários e movimentos sociais desde fins da década de 50

impulsiona, em sintonia com a dinâmica das lutas de classes a nível mundial, novas tendências nos debates estratégicos da esquerda brasileira. O impacto da derrota fomenta as reflexões divergentes e o debate, dando

18origem às dissidências da grande matriz pecebista . Aqui também é preciso evitar as abordagens simplistas. As divisões não são um ato de vontade, não são em si positivas ou negativas e tampouco são um dado rígido da esquerda do período. Há muitas situações de debates duros e rupturas traumáticas, mas há também vários episódios de ações e projetos comuns, diálogos e tentativas de cooperação e coordenação. À guisa de registro, lembremos apenas de alguns episódios: a célebre ação do sequestro do embaixador norte-americano, concebida pelos jovens militantes do MR-8, teve em seu comando militar um dirigente da ALN; a adesão de pequenos núcleos militantes a organizações mais estruturadas; as ações armadas com diferentes organizações que, por sua própria natureza, exigiam um alto grau de centralização e coordenação.

Ressalto a importância das polêmicas já para contrapor a noção de “abandono teórico” que permeia o texto. A afirmação de que a esquerda armada “tenha ficado aquém do limite possível da consciência

19revolucionária de sua época” e de que essa debilidade facilitou o trabalho da repressão, configurando uma caminhada inexorável para o “suicídio revolucionário” não pode causar senão uma contestação radical. Tratando o tema com cinco décadas de distanciamento, com as garantias institucionais das cátedras acadêmicas, o mínimo que se deve cobrar do pesquisador é um certo senso de responsabilidade histórica.

Porém, no planetário de erros que o autor tece aparecem ainda as afirmações de que as esquerdas armadas não possuíam uma formulação própria sobre a revolução brasileira; que nenhuma organização se

20dedicou a analisar a conjuntura em que se movia ; que agiram sem estratégia, justificando suas ações a

21posteriori ; que “mantinham sua antiga filiação à cartilha do Komintern”; que suas divergências eram “miúdas”, a despeito de toda fragmentação; que

22rejeitavam a noção de partido .

Além de contraditório com afirmações do 23

próprio texto, que não vale o esforço enumerar , indica sua ignorância em relação à bibliografia e à documentação já difundida há décadas. Para não distanciar-se tanto da realidade histórica, bastaria recorrer a um único volume, publicado inicialmente em 1985 e com uma edição facilmente acessível de 2006, que

SENTIDO TRÁGICO E RESPONSABILIDADE HISTÓRICA: UM DEBATE NECESSÁRIO SOBRE A LUTA ARMADA NO BRASIL

14 Na parte final do artigo, Rezende chega a reconhecer que a ditadura encarava “dura resistência” até 1968, indicando fatores que, junto ao recrudescimento da repressão, possam ter servido para criar uma base social do regime. No entanto, em sua apresentação esses elementos não se conectam com o desenvolvimento da análise e logo é retomado o corolário fatalista e derrotista da luta armada.15 Cf. REZENDE, op. cit., p. 30, nota 13.16 ALN. O papel da ação revolucionária na organização. In: REIS FILHO, Daniel Aarão e SÁ, Jair Ferreira. Imagens da revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. São Paulo: Expressão Popular, 2006. 2 ed. p. 270, grifos meus.17 REZENDE, op. cit., p. 29

18 Nem só de divisões é feita essa história: a origem das Ligas Camponesas, reorganizadas em 1955 e da ORM-POLOP (1961) a partir de setores extra-PCB dão mostras de um período de efervescência política e ampliação do campo da esquerda e das organizações populares na cena pública.19 REZENDE, op. cit., p. 29.20 Idem, p. 30.21 Idem, p. 31.22 Idem, p. 32.23 Menciono apenas uma contradição que me parece central: boa parte da “crítica” é fundamentada no que Rezende entende que seria a estratégia de libertação nacional, para afirmar no último parágrafo que não havia uma estratégia pré-estabelecida.

Page 51: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 53

é a compilação de documentos organizada por Daniel 24Aarão e Jair Ferreira de Sá . Ali se encontra, antes de

qualquer elucubração, um conjunto de elaborações teóricas que não deveria ser desprezado nem da perspectiva histórica, nem da perspectiva política. As fontes apresentadas no volume refletem, mesmo

25parcialmente , a pluralidade de ideias, os esforços de compreensão das conjunturas nacional e internacional, o enfrentamento polêmico de questões em torno à tática e estratégia, além de comportarem propostas inovadoras no campo organizativo e orientações para o trabalho de base e a ação clandestina que talvez não tenham paralelo em outro momento da história da esquerda brasileira.

No entanto, o autor em debate elege como fio condutor da argumentação o que entende ser a subordinação da esquerda revolucionária a um projeto etapista que colocaria a revolução burguesa em primeiro plano. Nessa leitura, as organizações armadas teriam sido incapazes de reconhecer as peculiaridades do capitalismo brasileiro, mantendo-se aferradas ao programa de superação dos resquícios feudais e, consequentemente, de modernização burguesa como uma fase imperativa a anteceder a revolução socialista. Esta é, na visão de Rezende, uma chave para compreender a crônica da tragédia anunciada para a esquerda revolucionária.

Deixemos de lado que os debates em torno do conceito de modo de produção e da caracterização do capitalismo no Brasil e na América Latina, hoje geralmente considerados superados, eram ainda presentes e pertinentes nos anos 60. Assinalemos apenas que a dinâmica das formulações programático-revolucionárias é necessariamente distinta das hipóteses acadêmicas. E que, se pretendemos nos orientar por uma perspectiva materialista, é necessário matizar e correlacionar dialeticamente as ideias com os contextos históricos em que se desenvolvem, considerando que e s s a s i d e i a s n ã o s e p r o j e t a m a u t ô n o m a s e automaticamente na sociedade, mas sofrem as contingências e influxos desse mesmo tempo histórico. Tomemos como exemplo o mesmo processo que tanto influenciou as polêmicas de então: iniciada como um processo de libertação nacional, liderada por um advogado nacionalista radical, desenvolvida por um amplo arco de aliança interclassista com o seu núcleo na guerrilha camponesa, a revolução cubana apenas consolidou sua vitória com o desfecho possível para o

26jacobinismo no século XX, o socialismo .

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (50 - 54)

Estabelecidos tais parâmetros seria possível proceder a um diálogo crítico acerca da leitura de algumas organizações revolucionárias quanto a esses temas. Efetivamente, a ruptura com o PCB foi tardia se consideramos a dinâmica das lutas sociais no período e, em alguns casos, não trouxe giros teóricos significativos. O nome da ALN (Ação Libertadora Nacional)

27inegavelmente diz algo sobre isso . Mas daí a afirmar que a finalidade última da guerrilha seria detonar um processo

28de modernização capitalista , é este o verdadeiro absurdo, total e completo, que se apresenta, indicando a incompreensão grosseira do sentido da guerrilha e do

29próprio regime ditatorial .

Novamente, para uma abordagem razoável do tema, não precisaria se dar ao trabalho de um levantamento exaustivo. A primeira sessão do conhecido trabalho de Marcelo Ridenti tipifica as genealogias e distinções que constituíram as linhas principais do debate. Caráter da revolução, proposta organizacional, formas de luta são as diretrizes nas quais o sociólogo agrupa as definições comuns e divergentes dos grupos revolucionários. Se por um lado o PC do B / Ala Vermelha delineava sua diferença com o PCB reafirmando a ortodoxia do programa antifeudal e antiimperialista; por outro lado a VAR-Palmares desenvolvia o legado teórico da POLOP para afirmar o caráter imediato da revolução socialista. Enquanto a ALN propunha um estilo de organização regido pela autonomia dos grupos táticos, baseado no princípio de que “o dever de todo revolucionário é fazer a revolução”; os dirigentes do PCBR afastaram-se da proposta de Marighella, por preconizarem a importância da manutenção das

30estruturas partidárias na condução da luta armada . Prioridade do campo e importância das cidades, peso do setor militar, aposta no movimento de massas, propaganda armada, preparação clandestina do exército g u e r r i l h e i r o , v i a c u b a n a , v i a c h i n e s a , a superdimensionada querela do foquismo. São muitas as polêmicas, inúmeras as nuances, diversas as concepções em jogo para que sejam relegadas às desqualificações

24 Note-se que o historiador Daniel Aarão Reis Filho está no centro da polêmica atual em torno à caracterização do golpe de 1964 e do regime governado pelos militares (Ver nota 2). No entanto, como indicado acima, essa polêmica passa ao largo do tema da luta armada. Minha hipótese, aqui apenas indicada, é de que a interpretação do decano dos chamados “revisionistas” sobre o apoio da “sociedade” ao golpe e ao regime serve como premissa teórica para as teses sobre o isolamento e a falência dos projetos das esquerdas revolucionárias, desenvolvidas pelo próprio e por seus epígonos. Ver REIS Filho, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo: Brasiliense, 1990.25 Considerando-se a dificuldade de preservar documentos produzidos e publicados sob clandestinidade, além dos recortes e opções finais dos editores. 26 Cf. JAMES, C.L.R. "De Toussaint L'Ouverture a Fidel Castro" in: Os jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000.

27 No entanto, que não se tome o caminho fácil de reconhecer na parte o todo. Embora se defina em termos de libertação nacional, não há uma linha que sustente a ideia de que a ALN (ou qualquer outra organização da esquerda revolucionária) se submeta a algum tipo de projeto de pura modernização burguesa. Ao contrário, foi contra essa diretriz que se insurgiram e, apesar das permanências pecebistas no programa, a definição é clara: “A nossa luta é de libertação nacional e antioligárquica, por isso mesmo anticapitalista”. (RIDENTI, op. cit., p. 31) Enfim, a ruptura radical com a prática política do PCB e a definição inequívoca pela crítica das armas não deveriam ser entendidas como uma possível inovação no campo da práxis? Ou devemos apenas nos ater às interpretações filológicas como chave de interpretação da ação revolucionária?28 REZENDE, op. cit., p. 30.29 A ironia trágica que se apresenta aqui é que Rezende coincide com os sujeitos engajados nos debates revolucionários da década de 1960 em não perceber que tanto a ferocidade da ditadura quanto a sua capacidade relativa em criar uma base social estão ligados ao projeto de modernização capitalista do qual ela foi portadora. (Ver FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaiio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo, 2006; MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2006. p. 11-103)30 Cf. RIDENTI, op. cit., p. 38.

Page 52: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

generalizantes.

***

Situação constrangedora é quando tentamos dar aos sujeitos do passado lições que eles tiveram condição de refletir e assimilar com muito mais consistência do que acreditamos ter atingido. O artigo que é objeto da polêmica aqui apresentada, na ânsia por dar consistência a um determinado enquadramento teórico, desqualifica por completo a experiência da luta armada e delineia os sujeitos históricos daquele processo como incapazes de uma reflexão mínima sobre suas ações. A empreitada, além de desrespeitosa com homens e mulheres que entregaram suas vidas a um projeto revolucionário, fica esta sim “aquém do limite possível da consciência” da época de que trata, apesar do benefício do distanciamento temporal. Ao fim, nem dá conta de elucidar a história da esquerda brasileira, nem apresenta uma alternativa teórica razoável à que pretende criticar. O autor se propõe ser mais implacável do que o cânone do historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis Filho na avaliação da luta revolucionária brasileira: se o professor da UFF concede o benefício de alguma dúvida do encontro com a revolução, para Resende esta é uma impossibilidade ontológica, cravada no gene da classe operária

31brasileira .

Passados tantos ciclos de altas e baixas da esquerda brasileira, o tema da luta armada parece ainda ser tabu. Certas premissas parecem ser o ponto de partida obrigatório para toda abordagem: o “combate nas trevas”, o desencontro com a revolução, o destino trágico… Nos recentes debates, diversos pontos foram questionados, novas (e velhas) teses foram apresentadas, a disposição para a polêmica esteve presente, o mercado editorial explorou a efeméride. Mas o tema da resistência revolucionária à ditadura em geral apareceu apenas para

32registro, reduzido a algumas linhas de lugares-comuns . Nesse cenário, o artigo de Rezende se excede pela difusão de sentenças unilaterais, embora sem fundamento teórico ou verificação documental. Reconhecendo aí uma polêmica urgente e necessária, me pareceu importante contestar os termos apresentados e propor um aprofundamento do debate, considerando-se a necessidade de um balanço teoricamente consistente e socialmente comprometido do passado e do presente da luta de classes no Brasil.

Se, em nome de entender e analisar criticamente as lutas populares bloqueamos todas as suas possibilidades de devir histórico, o que restará? Se o século XX, conforme o autor, foi “o século da derrota do movimento comunista internacional como tragédia

33política” , que consequência podemos tirar disso? Tratar da história das esquerdas e das lutas emancipatórias dos

54 - SENTIDO TRÁGICO E RESPONSABILIDADE HISTÓRICA: UM DEBATE NECESSÁRIO SOBRE A LUTA ARMADA NO BRASIL

31 REZENDE, op. cit., p. 31. Sobre o professor Reis Filho, ver acima, nota 24.32 Destaque-se a notável exceção da biografia de Marighella. Os importantes prêmios que recebeu e o sucesso de vendas por uma grande editora indicam a relevância do tema e o interesse por uma abordagem que não esteja focada na narrativa da derrota. MAGALHÃES, Mário. Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

grupos subalternos é tratar dos horizontes e dos bloqueios que nos colocamos nas lutas atuais. Por isso é necessário responsabilidade histórica, ainda que tratemos de traumas, equívocos e derrotas, desconfiando de respostas fáceis, unanimidades estabelecidas e mitos silenciadores.

Consta que Marighella costumasse dizer que os “mortos não fazem autocritica”. Caberá portanto a nós tal pretensão? Se há um sentido trágico em nossa história pós-64, essa tragédia não se encerra nas fronteiras da história das esquerdas. Ela bate à nossa porta, entre a memória e o esquecimento, entre o agronegócio e a semi-escravidão, entre a especulação imobiliária e as diásporas de desabrigados urbanos, entre a urna eletrônica, a criminalização das lutas populares e o massacre nas favelas. Assim, entre esse destino trágico que nos cerca e a reflexão autocrítica sobre o papel do historiador, o alerta do velho comunista parece buscar diálogo com o do jovem filósofo: “O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for

34vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer” .

Artigo recebido em 31.3.2014

Aprovada em 2.5.2014

33 Idem, p. 28.34 BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin – Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993. 5 ed. p. 224-225.

Page 53: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 55

1 Este artículo desarrolla conceptos expuestos en la primera Conferencia de la Cátedra Maestro Ricardo Torres Gaitán.2 Docente de la Universidad de Buenos Aires (UBA), licenciado en Economia (1987) y Doctor en Geografía (1997), investigador del Consejo Nacional de Ciencia y Tecnologia. Es miembro del Instituto de Investigaciones Económicas da Argentina y actua como docente en seminários de doctorado y pós-grado.3 GUILLÉN, Artur. “Recuperación o deflación y nuevas crisis financieras”, disponible en: www.redcelsofurtado.edu.mx. 2014.4 HERNÁNDEZ VIGUERAS, Juan El mercado de los derivados f inancieros s igue operando s in control , d isponible en www.clarin.com,20/2/2014, 2014; CLAVERO, Vicente, El engaño de u n a m a l l l a m a d a t a s a T o b i n , d i s p o n i b l e e n : www.caffereggio.net,4/4/2014.

La quiebra de Lehman Brothers inauguró un período de turbulencias que transformó a la crisis en un dato cotidiano de las economías centrales. Los incontables paralelos con lo ocurrido en 1929 retratan la gravedad del torbellino, que convulsionó a los bancos estadounidenses y al euro.

Al comienzo del 2014 la anémica recuperación de la Eurozona coexiste con una inestable reanimación económica de Estados Unidos, el languidecimiento de Japón y la desaceleración de China. Es el mismo escenario que ha predominado en los últimos años. Los promisorios signos de reactivación se diluyen con la reaparición de nubarrones financieros y paralizaciones productivas. Pocos analistas anuncian el fin de la crisis y muchos consideran factible una

3reaparición del momento crítico vivido en el 2008-09 .

Dilemas del socorro bancario

La incierta coyuntura actual prevalece al cabo de una inédita expansión del gasto público. Todos los gobiernos de los países afectados por la crisis desplegaron un gran socorro para rescatar a los financistas que especularon con créditos sub-prime, burbujas y bonos empaquetados.

Las investigaciones sobre el rol de Goldman Sachs en el diseño de hipotecas titularizadas fueron cerradas. Los expertos en ocultar riesgos y apañar créditos insolventes conservan sus empleos. Sólo cayó algún chivo expiatorio por estafas muy explícitas y se negocian algunas multas sin consecuencias penales con las calificadoras de riesgos.

Los bancos estadounidenses neutralizaron la reglamentación de una tenue ley de supervisión, mantienen sus operaciones en las sombras, impiden la división de las grandes entidades y preservan los paraísos fiscales. En Europa todavía no se aprobó el famoso impuesto a las transacciones cambiarias -tasa Tobin- y el último proyecto incluye un gravamen ridículo que podría favorecer al propio auxilio de

4los bancos .

Los gobiernos optaron por el rescate en lugar de cerrar o nacionalizar los bancos colapsados. Evitaron el camino de la clausura por temor a un desplome general de los

depósitos y acreencias. Luego de la conmoción creada por la intervención de Lehman se disiparon las propuestas ortodoxas de precipitar una desvalorización masiva del capital.

Pero la asociación de los gobernantes con el poder financiero sepultó también las tentativas opuestas de avanzar hacia la estatización de las entidades. Esta complicidad contrasta con el trato dispensado a las víctimas de la crisis que padecen pobreza, desempleo y caída del salário.

Se ha mantenido intacta la estructura bancaria que detonó la crisis. El oxígeno oficial aportado a las entidades agrava todos los desequilibrios financieros. Lo más explosivo es la magnitud de la inyección monetaria consumada para auxiliar a los bancos. No existen precedentes de una emisión con efectos tan expansivos sobre la liquidez internacional. Nadie sabe cuándo y cómo esa descomunal suma de dinero será absorbida por la economía.

La Reserva Federal (FED) introdujo una política de “relajamiento cuantitativo” para transferir un caudal millonario de fondos a los bancos. Intenta inducirlos a incrementar los préstamos con destino productivo. Pero los resultados de esa medida sobre el nivel de actividad económica han sido exiguos. Las entidades eluden derivar esos recursos a créditos de inversión o al refinanciamiento de las familias endeudadas. Utilizan el dinero para incentivar un nuevo ciclo de especulación con materias primas, acciones o monedas extranjeras.

La FED ha quedado atrapada en un complejo dilema. Si mantiene la liquidez continuará alentando las transacciones de alto riesgo que condujeron al estallido del 2008. Pero si desactiva ese peligro incrementando la tasa de interés asfixiará la débil recuperación y reabrirá el grifo para una

5recesión de envergadura .

A diferencia de los años 60 no está obligada a optar entre el crecimiento inflacionario y la retracción de la economía. En las últimas décadas se ha instalando un cuadro deflacionario que reduce el impacto de la emisión sobre los precios. Pero debe lidiar con la disyuntiva de propiciar nuevas burbujas financieras o resignarse al continuado estancamiento.

Un anticipo de este dilema se verificó en Japón durante los años 90. El auxilio a los bancos no se tradujo allí en repunte del crecimiento y los rescates ni siquiera erradicaron la insolvencia financiera. Si se repite ese escenario los gobiernos bombearán fondos que nunca llegarán a la esfera productiva.

Liderazgo financiero estadounidense

5 MUNEVAR, Daniel. Inestabilidad en los mercados emergentes: El f i n d e u n c i c l o ? , d i s p o n i b l e e n : pensamientoscontracorrientes.blogspot.com19/3/2014.

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (55 - 62)

1Estados Unidos y Europa frente a la crisis

2Claudio Katz

ARTIGOS

Page 54: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

56 -

La crisis comenzó en Estados Unidos, se expandió al resto de las economías desarrolladas y terminó atenuándose en el país de origen. Esta curva se explica por la gravitación de la primera potencia en varios terrenos.

En primer lugar mantiene la primacía del dólar en el comercio y las finanzas. En esa divisa están nominadas el 62% de las reservas y el 85% de las transacciones globales. El billete norteamericano ha perdido su reinado de posguerra, pero ninguna otra moneda ocupa su lugar. Preserva una significativa hegemonía, mientras se negocia otro patrón internacional basado en la convivencia de varias monedas, el retorno a las paridades fijas o la formación de una canasta de

6divisas .

A pesar del elevado endeudamiento y déficit comercial que soporta la economía estadunidense, el dólar se mantuvo como refugio predilecto de los capitalistas en los momentos críticos del último sexenio. En esas coyunturas los acaudalados buscaron protección en ese signo monetario.

Estados Unidos define, en segundo término, el ritmo y las características de la reforma del sistema financiero internacional. Este ajuste normativo se ha tornado imperioso por la crisis reciente, la globalización de las finanzas y la interconexión de las Bolsas. El reconocido jefe del clan bancario Paul Volcker supervisa esta remodelación para perpetuar la hegemonía de los capitales que operan desde Nueva York. También busca garantizar los privilegios del puñado de expertos que maneja de ese complejísimo sistema.

La influencia de este sector se verificó en el veto que impuso a las propuestas de limitar las operaciones de alto riesgo. Los financistas bloquearon, además, las sanciones contra los causantes del crack del 2008 y consiguieron la continuidad de las escandalosas comisiones que cobran los gestores de las burbujas.

Estados Unidos logró, en tercer lugar, rehabilitar al FMI como auditor de las economías nacionales y supervisor de los ajustes. Una entidad desprestigiada y con recursos decrecientes, cuenta nuevamente con muchos fondos y gran capacidad de intervención global. En los últimos cónclaves del G 20 se acordó duplicar el capital de ese organismo. Aunque los norteamericanos aportan poco dinero mantienen una influencia predominante en el directorio. La agenda del FMI se define en Washington.

Este poder de Wall Street y la Reserva Federal explica cómo pudo la potencia del Norte exportar una crisis originada en su territorio. Al comienzo del temblor impuso la estrategia de expandir la liquidez bancaria y neutralizó la resistencia de Alemania. Ha recurrido nuevamente a la inundación internacional de dólares, que en el pasado facilitó la licuación de la deuda pública estadounidense. Ante la ausencia de alternativas los tenedores de esa moneda vuelven a aceptar ese riesgo.

Muchos bancos del país se han recompuesto con

6 RAMAA, Vasudenvan. La crisis de la hegemonía del dólar, disponible en www.pagina12.com.ar, 24/09/2012.7 NOYOLA RODRÍGUEZ, Ariel & NOYOLA RODRÍGUEZ, Ulises. La rivalidad euro-dólar, disponible en: contralinea.info, 6-4- 2014.8 KATZ, Claudio. Bajo el imperio del capital, Buenos Aires: Luxemburg, 2011; GOWAN, Peter. US hegemony today, Imperialism Now, Monthly Review, vol 55, n 3, New York, july-august 2003, P. 29-39; PANITCH, Leo & LEYS, Colin. Las finanzas y el imperio norteamericano, en El Imperio Recargado, Buenos Aires, CLACSO, 2005.9 NAVARRO, Vincent. La falsa alarma del abismo fiscal en Estados

fondos públicos y comienzan a devolver parte del dinero obtenido durante el rescate. Por eso la FED propicia un giro hacia la restricción monetaria y el aumento de las tasas de

7interes .

En las fases anteriores de liquidez, la política monetaria expansionista condujo a la emigración de capitales hacia las economías intermedias, que ofrecían mayor rendimiento a los fondos golondrinas. En el escenario opuesto que se avecina (de encarecimiento del costo del dinero), comenzaría un retorno de esos capitales hacia las economías centrales.

En ambos períodos Estados Unidos ha orientado el ciclo financiero global, confirmando el rol central que tienen Wall Street, la FED y los bancos de ese país en el

8desenvolvimiento del capitalismo contemporáneo .

Deterioro Industrial

La otra cara de este protagonismo internacional es el deterioro interno de la economía del Norte. Ese declive se corrobora en el débil crecimiento, que ha sucedido al endeudamiento privado y a la insolvencia desatada por la crisis de las hipotecas.

La recuperación de la economía está afectada también por el enorme costo fiscal que ocasionó el socorro de los bancos. La deuda pública alcanzó un peligroso techo luego de saltar del 62 % (2007) al 100% del PBI (2011). La gravedad de esta carga fue testeada el año pasado durante el cierre del gobierno federal. La administración dejó de funcionar, mientras republicanos y demócratas discutían los límites al financiamiento de ese pasivo.

El establishment utilizó el abismo fiscal como un argumento de ajuste, para forzar cortes más drásticos en el gasto municipal y social. Finalmente no se produjo el temido default, ni la dramática corrida contra los bonos del tesoro. Pero lo ocurrido ilustra la dimensión de la crisis fiscal que

9corroe a la economía norteamericana .

Esta flaqueza se acentúa, además, por la impotencia que demuestra Obama para introducir reformas mínimas. Bajo la presión del TEA Party y los republicanos aceptó el vaciamiento de su proyecto de salud. Los millones de estadounidense que carecen de protección sanitaria deberán afiliarse a un servicio privado pre-pago regulado por el estado. El proyecto de una cobertura significativa y menos onerosa quedó archivado.

Como la derecha ha bloqueado cualquier reintroducción de impuestos a los ricos, todo el ajuste sigue recayendo sobre los trabajadores. Obama choca con los republicanos en temas culturales (aborto, matrimonio homosexual) y prioridades políticas (inmigración, uso de armas). Pero su agenda económica es muy semejante. Un abismo lo separa del New Deal que instrumentó Roosvelt durante la gran depresión.

El presidente actual mantiene una política neoliberal adversa a los sindicatos y rechaza todas las sugerencias de los economistas keynesianos para regular los bancos, aliviar a los pequeños deudores y mejorar el ingreso de los empobrecidos.

Unidos, disponible en: www.vnavarro.org,11/1/2013.10 BRENNER, Robert. The economics of global turbulence, New Left Review, num 229, London, May-June 1998; CHESNAIS, Francois. La recesión mundial: el momento, las interpretaciones y lo que se juega en la crisis, Herramienta, num 37, Buenos Aires, marzo 2008.11 KATZ, op. cit., 40-61, 115-125; ANDERSON, Perry. American

ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS

Page 55: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 57

Como resultado de este continuismo un puñado de multimillonarios ha triplicado su apropiación del PBI en comparación a los años 70. El sistema impositivo que impuso el reaganomics no ha cambiado, mientras uno de cada seis norteamericanos vive con ingresos inferiores a la línea de pobreza.

El endeudamiento personal constituye otro índice del mismo deterioro. Es un recurso de supervivencia frente a la pérdida de ingresos, que utilizan todas las víctimas del modelo actual. Las familias de Estados Unidos han quedado

10particularmente atrapadas en la madeja de esta financiación .

Las brechas sociales se amplían además con la expansión del desempleo, que no decae en los momentos de reactivación. Gran parte de los empleos perdidos desde el 2008 desaparecieron para siempre. Las grandes empresas continúan incrementando la productividad con innovaciones que expulsan mano de obra, mientras amplían su deslocalización de plantas. Crean fuera del país los empleos que destruyen internamente, multiplicando los barrios fantasmales en las ciudades obreras, como Detroit.

Es cierto que este deterioro industrial coexiste con el liderazgo estadounidense en la creación de nuevas tecnologías de la información. Pero esa actividad genera poco empleo y no podrá encabezar un resurgimiento del nivel de ocupación. La emigración de empresa hacia países con menores costos laborales genera pérdidas de puestos de trabajo muy superiores, a la recuperación de empleos que acompaña al desarrollo de las actividades de punta. Las nuevas tecnologías no recrean el trabajo masivo de la industria clásica.

Reajustes em la primacía bélica

Estados Unidos conserva un rol internacional protagónico a pesar de su pérdida de liderazgo industrial. ¿Cómo se explica esta disociación? La influencia decisiva de sus bancos aporta una respuesta. Pero la principal explicación se encuentra en el rol imperial que despliega la primera potencia. Esa supremacía militar le permite preservar protagonismo económico.

El gendarme del planeta es garante del orden capitalista. Es un sheriff que maneja el 40% del gasto bélico global, a través de 800 bases militares distribuidas en 130 países. No tiene sustituto en este papel de custodio de las clases dominantes. Protege al capital frente a las amenazas

11sociales serias o las situaciones de extrema inestabilidad .

Actualmente Obama perfecciona estas formas de intervención. Promueve una menor presencia directa de tropas para facilitar acciones laterales con mayor sostén tecnológico. El curioso premio Nobel de la Paz incorporó a su equipo a un ex halcón republicano – como Check Hagel- y a un experto en provocaciones de la CIA, como John Brennan. Ha decidido evitar las invasiones con más operaciones encubiertas.

Washington es la capital de una guerra perpetua. Un ejército secreto de 60.000 hombres se encarga de implementar los mandatos de una diplomacia militarizada que desinforma

Foreign Policy and Its Thinkers, New Left Review, num 83, London, Sept-Oct. 2013; -PANITCH, Leo & GINDIN, Sam. The Making of Global Capitalism, London, Verso, 2013.12 GELMAN, Juan. Robotizando la guerra, disponible en: www.pagina12.com.ar, 9/2/2012.13 PETRAS, James. The changing contours of US Imperial, disponible

a la población. Este encubrimiento es facilitado por el ínfimo porcentaje actual de alistamiento de la ciudadanía.

Las operaciones quirúrgicas son realizadas por comandos entrenados para el asesinato. El caso de Bin Laden ilustra como estas ejecuciones son resueltas sin procesos judiciales. Obama maneja la lista de condenados y define el momento de cada crimen. Utiliza una ley secreta para detener a los sospechosos de terrorismo en cualquier parte del mundo y refuerza los grupos de tareas que pasaron de 35 en el 2002 a

12106 en el 2010 .

Esta política conduce a restricciones de las libertades democráticas, como se ha notado en la venganza que soporta el soldado Bradley Manning por destapar información sobre la violencia imperial. La persecución internacional que sufren Assange y Snowden obedece al mismo propósito de silenciar la brutalidad de las operaciones estadounidenses. Este belicismo repercute internamente en el continuado armamento de población, los asesinatos en los colegios y la expansión de las milicias derechistas.

Obama reajusta la estrategia imperial para reparar la fatiga política y el agujero financiero que dejó Bush. Después de la crisis del 2008-09 Estados Unidos no puede costear guerras infinitas. Los 800.000 millones de dólares gastados en Irak y los 450.000 millones desembolsados en Afganistán dejaron exhausto al Tesoro. Tal como ocurrió luego de Vietnam, la primera potencia necesita cicatrizar las heridas para retomar el intervencionismo. No es la primera vez que el

13imperio introduce un paréntesis entre dos cruzadas .

Imperialismo colectivo

La reorientación actual incluye una revisión de las prioridades bélicas, para reducir la presencia estadounidense en Medio Oriente y aumentar la presión sobre China. En la primera región se transfieren responsabilidades a los socios locales, mientras la CIA preserva el control de las operaciones secretas, el manejo de la información y la provisión selectiva de armamento.

En la segunda zona el Pentágono incrementa el número de tropas localizadas en la zona del Pacífico, afianza el cerco sobre Corea del Norte y supervisa los conflictos limítrofes entre Japón, Corea y China. Pero además, los marines entrenan tropas de 34 países africanos y encabezan todas la “intervenciones humanitarias” que requieran las empresas multinacionales. Sostienen especialmente la tensión sobre Rusia, a través de los nuevos satélites que incorporó la OTAN.

El gendarme global mantiene su vieja estrategia de hostilizar a los adversarios para obligarlos a negociar. El acuerdo con Irán es el ejemplo más reciente de esta política. La primera potencia impuso el desarme nuclear a cambio de concesiones mínimas. Logró este objetivo al cabo de muchos años de bloqueo comercial y ofertas de negocios a la burguesía persa.

La renuncia a bombardear Siria demostró que Estados Unidos tiene limitada su capacidad de intervención militar directa, pero no su rol de mandante geopolítico. Está ubicado en la primera fila de las negociaciones, luego de la

en: www.worldtruth.org, 22/12/2013.14 ARMANIAN, Nazanín. Arabia Saudí: el viaje más importante de Obama”, disponible en: www.other-news.info/ 31/3/2014.15 KATZ, op. cit., P. 39-49; AMIN, Samir. El imperialismo colectivo:

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (55 - 62)

Page 56: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

58 -

contraofensiva iniciada en Libia para sepultar la primavera árabe en guerras sectarias.

Se ha retirado superficialmente de los conflictos de la región, para facilitar un desangre que le permita negociar nuevas alianzas con los ganadores de las batallas en curso. Fue el modelo que utilizó con Irak contra Irán, para luego sepultar a Irak y terminar negociando con Irán. En Siria financia a los yihadistas contra el gobierno para luego exigir la depuración de los fundamentalistas. En el Líbano apaña el reinicio de las masacres.

Pero como cada aventura alumbra una nueva fuerza reaccionaria autónoma, la secuencia de guerras no tiene fin. Ya ocurrió con los talibanes y Al Qaeda. El próximo descarrilamiento podría ser encabezado por Arabia Saudita, si el reino continúa avanzando en la construcción de una bomba

14atómica para reforzar sus ambiciones regionales .

Es evidente que el sheriff del mundo quedó afectado por el resultado de Irak. Debió abandonar un fallido ensayo colonial que devastó a ese país. Pero sigue manejando los hilos de la región junto a sus socios y a diferencia de Vietnam no soportó una crisis interna por las masacres perpetradas.

Luego de la experiencia iraquí, Obama promueve acciones imperiales más coordinadas y trata de compartir costos con sus socios internacionales. Busca que Europa hostilice a Rusia frente a la crisis de Ucrania, qué Francia intervenga en África y que las elites locales se involucren más directamente en los conflictos de Yemen, Tailandia, Pakistán o Egipto.

Esta política apunta a incrementar la participación de sus aliados en la custodia imperial sin resignar el manejo de las prioridades. Estados Unidos determina quiénes son los integrantes y excluidos de la OTAN, cómo opera el eje forjado durante la guerra fría con Europa y Japón y qué papel deben cumplir las sub-potencias ya probadas (Israel, Canadá, Australia), seleccionadas (Turquía, Brasil, Sudáfrica) o eventuales (Pakistán, India).

Estas tendencias confirman que el rol militar de Washington no se ha modificado. Preserva el liderazgo de una gestión imperial colectiva, que en la segunda mitad del siglo XX sustituyó a las viejas confrontaciones bélicas inter-

15imperialistas .

Algunos autores cuestionan esta caracterización remarcando el declive militar de Estados Unidos. Interpretan los desenlaces geopolíticos recientes en Medio Oriente, Europa Oriental o Asia como expresiones de impotencia de un viejo gendarme. Estiman que el Pentágono ha quedado irreversiblemente agotado y retrocede frente a cada desafío. Consideran que luego de ejercer cierta hegemonía cultural durante de los años 90 (con la fantasiosa ilusión de un “siglo americano”), los yanquis han perdido la partida.

Pero resulta difícil corroborar este diagnóstico a la luz de lo ocurrido en los últimos años. Estados Unidos sigue fijando las pautas y asumiendo las decisiones más relevantes de la acción imperial. Es la voz cantante a la hora de definir quiénes son los integrantes y los excluidos del club nuclear.

En ese terreno negocia con sus viejos antagonistas (China y Rusia), comparte el armamento con sus socios (Francia, Gran Bretaña) y agentes privilegiados (Israel),

Desafíos para el Tercer Mundo, Buenos Aires, FISIP. 2013; AMIN, Samir. Más allá del capitalismo senil, Buenos Aires, Paidos, 2003.16 KUNDNANI, Hans. Deconstruyendo el llamado milagro alemán,

acuerda la magnitud del poderío atómico con regímenes históricamente próximos (Pakistán) o actualmente afines (India). Al mismo tiempo impone una duro acoso contra quienes buscan dotarse de esos recursos bélicos en forma autónoma (Corea del Norte).

Estados Unidos ha perdido capacidad de acción unilateral, pero no poder de intervención en la dirección del imperialismo colectivo. Este comando obedece a la inexistencia de otro timón para la custodia general del capitalismo.

Alemania remodela a Europa

Europa es el epicentro de la crisis actual. Allí continúa la recesión al cabo de fatigosos ajustes con niveles récord de desempleo. El momento más dramático del temblor se registró en el 2011-2012, cuando sobrevoló una convergencia de quebranto de los bancos con cesaciones de pagos de la deuda pública, en pleno temblor global. También parecía inminente el estallido del euro. Ese dramatismo ha cedido pero el respiro es frágil. La situación de las instituciones financieras es delicada y el estancamiento es mayor que en Estados Unidos.

La interpretación europea inicial de tsunami como un eco pasajero del temblor norteamericano ha quedado desmentida. El Viejo Continente está entrampado en un círculo vicioso de quiebras bancarias y déficit fiscal. El rescate de las entidades potenció la deuda pública y precipitó recesiones, que acentúan la vulnerabilidad del sector financiero. Aunque 800 bancos ya recibieron un billón de euros nadie avizora el final del túnel.

Alemania se ha convertido en la gran potencia del Viejo Mundo. Recuperó preeminencia con la anexión de la RDA, que financió entre 1998 y 2006 con ajustes internos y retracción salarial. Luego impuso el incremento de la productividad por encima de los sueldos, mediante un atropello contra las conquistas sociales. Con las leyes Hartz se obligó a los desocupados a realizar trabajos precarizados, que ya representan un cuarto del empleo total. Esta agresión fue desplegada por los capitalistas para reducir el costo salarial.

La afluencia de mano de obra barata y calificada del Este y la relocalización externa de numerosas empresas complementaron el ajuste. Los sindicatos no fueron demolidos como en Inglaterra, pero decreció su poder de negociación y el modelo renano de capitalismo social se diluyó, hasta perder sus viejas diferencias con el esquema anglosajón. El capital alemán se internacionalizó, recibió inversiones externas y adoptó el estilo brutal de los managers estadounidenses.

Estas transformaciones han socavado la legitimidad del sistema político. En Alemania Oriental las elites del viejo régimen no obtuvieron los beneficios que lograron sus pares de Polonia, Hungría o Eslovaquia con la restauración capitalista. La emigración de jóvenes provocó una importante despoblación de la ex RDA y el 16% de la población total, ya afronta un serio riesgo de pobreza. Además, los servicios de alimentación para los carenciados se han triplicado desde el

162002 .

disponible: www.pagina12.com.ar, 6/2/2014.17 SANTISO, Javier. La emergencia de las multilatinas, Revista CEPAL, num 95, Santiago de Chiule, agosto 2008.18 BECK, Gunnar. El experto prevé que el bloque europeo, disponible,

ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS

Page 57: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 59

Los capitalistas germanos salieron airosos de la anexión e impusieron sus prioridades en la conformación de la Unión Europea. Acumularon un gran acervo de acreencias y superávits comerciales que les permite definir el rumbo del continente. Esta primacía se ha consolidado luego de cooptar a varias economías del norte (Dinamarca, Holanda, Finlandia, Austria).

También ha sido esencial el acuerdo político con Francia. La clase dominante de ese país compensa su declive productivo con la alianza geopolítica que forjó con su viejo rival. Pero el precio del convenio es un ajuste continuado, que conservadores y socialdemócratas implementan sin ninguna distinción. A los pocos meses de asumir, Hollande sustituyó su leve sugerencia de subir impuestos a las familias pudientes por nuevos subsidios al capital y mayor flexibilidad laboral.

Inglaterra ensaya otra estrategia tomando distancia del poder alemán. Se mantiene fuera del euro y renegocia el status especial que acordó en el 2009 dentro de la UE. Esta autonomía es exigida por el lobby bancario, para preservar los negocios internacionalizados de la City londinense. Pero hay muchas tratativas en curso, porque el sector industrial -que coloca la mitad de sus exportaciones en el Continente- promueve una reaproximación con Europa.

Cirurgia deflacionaria

Las economías intermedias de Europa afrontan las consecuencias de convalidar los recortes que impone la cúpula de la Unión. Esta cirugía comenzó en Italia a principios de los 90 con la aceptación de las reglas de Maastrich. El viejo modelo de inflación, devaluación y déficit fiscal fue sustituido por una drástica comprensión del gasto público. La derecha de Berlusconi y los socialdemócratas de Prodi se han repartido la tarea de privatizar y desregular el mercado de trabajo, acentuando la brecha que separa al Norte del Sur. Con este molde macroeconómico se perpetúa el estancamiento y el desempleo.

España siguió otro recorrido. Su incorporación a la Unión dio lugar a un fuerte crecimiento inicial e incentivó la internacionalización de ciertas empresas que se transformaron en jugadores globales (Telefónica, Endesa, Fenosa, Repsol, BBVA, Santander). La contrapartida de esa inserción ha sido una especialización de la economía (construcción, servicios, turismo), que cercenó la estructura industrial y estabilizó

17elevadas tasas de desempleo .

Estas fragilidades explican el gran impacto de la crisis reciente. El estallido de la burbuja inmobiliaria precipitó en España un colapso bancario que arruinó las finanzas públicas al cabo de cuatro rescates. El último socorro incluyó el tutelaje alemán directo en la supervisión de los recortes. El producto se contrae, el déficit fiscal saltó al 6,4% y la deuda araña el 87% del PBI.

España e Italia no pueden compensar su fragilidad económica con acciones geopolíticas. En las últimas centurias tuvieron poca presencia en este ámbito y la incorporación a la Unión consolidó esa marginalidad. El impacto de la crisis se asemeja por estas razones al sufrimiento de toda la periferia

18europea .

El desempleo bate récord en la zona euro (10,8%) y se duplica entre los jóvenes (21,6%). Pero en España ya

www.pagina12, 29/6/2012.1 9 NTAVANELLOS, Antonis. ¿Podremos avanzar hacia la

supera el 23% y en Italia afecta a uno de cada tres jóvenes y a la mitad de las mujeres del sur. El 8,2% de trabajadores europeos quedó situado en el 2010 por debajo de la línea de pobreza. Pero el número de empobrecidos se duplicó en Italia (2007- 2012) y alcanza a tres millones de personas en España. Si esta degradación persiste al ritmo actual, un amplio sector de la población de ambos países quedará privado de coberturas básicas en los próximos años. El modelo socialdemócrata de “capitalismo con mejoras sociales” se desvanece en forma acelerada.

En el fracturado mapa del continente, Alemania determina el ritmo del ajuste. Impone a los deudores una indigerible dieta deflacionaria, para amoldar la región a su patrón de competitividad. Como al mismo tiempo necesita preservar los nuevos mercados evita la bancarrota de sus clientes, refinanciando a los quebrados con durísimos condicionamientos.

Cada país debe socorrer a sus bancos con fondos propios, puesto que la unificación monetaria no incluye compartir los pasivos. Alemania proyecta avanzar hacia una convergencia fiscal y bancaria de toda la U.E., cuando haya concluido la actual limpieza de insolventes. Por eso otorga préstamos sólo a las economías colapsadas que aceptan el futuro control germano.

Para preparar esa supervisión, Alemania bloquea cualquier auxilio indiscriminado basado en la mutualización de deudas o la emisión de Eurobonos. Impone un organismo afín (ABE) que timonea la reorganización de los bancos. También introduce la supervisión del Banco Central Europeo sobre las 6.200 entidades de la eurozona y maneja la recapitalización de esas instituciones a través de un fondo de estabilidad (MEDE). El paso siguiente sería reformar el Tratado Europeo para asegurarse el control fiscal, ampliando la delegación de atribuciones que ya detenta Bruselas.

Sólo al final de este proceso Alemania consideraría la introducción de los mecanismos federales que rigen en Estados Unidos, para supervisar las finanzas y la moneda. Pero este plan requiere que el euro, los bancos y las finanzas públicas perduren sin estallar por la gran ingesta de cicuta que contienen los ajustes. La crisis podría demoler este proyecto antes de su concreción, si se agrava la actual fractura entre el Norte y el Sur europeo.

Mecanismos de polarización

Los capitalistas de toda la Eurozona invocan la permanencia en el euro para justificar la destrucción del estado de bienestar. Pero los más afectados son los países de la periferia regional. Estas economías han sufrido duramente las consecuencias de una liberalización financiera, que generalizó las maniobras de titularización, el apalancamiento y las contabilidades fuera de balance. Los bancos quedaron desprovistos de sus protecciones tradicionales y al trastabillar impusieron un inmenso agujero a las finanzas públicas.

La periferia europea está agobiada por pasivos inmanejables y ha quedado sometida a las exigencias de los acreedores. Su situación se asemeja a los padecimientos sufridos por América Latina en los momentos de mayor endeudamiento.

Los mismos excedentes de liquidez y mercancías que

constitución de comités?”, disponible en: www.vientosur.info, 25/10/2013.20 HUSSON, Michel. Economíe politique du systeme euro, Inprecor,

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (55 - 62)

Page 58: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

60 -

Estados Unidos colocaba entre sus vecinos del Sur en años 80 y 90, fueron transferidos por Alemania a las economías más frágiles del Viejo Continente. Ambas potencias utilizaron formas semejantes de endeudamiento público para descargar sobrantes de mercancías y capitales. Esta traslación socavó la estabilidad fiscal de las regiones dependientes y derivó en ajustes muy similares. El FMI monitoreaba los recortes de América Latina y ahora repite esa supervisión en una Troika compartida con la Comisión Europea y el BCE. Sólo han cambiado las victimas y la localización de un mismo proceso.

El desastre es mayúsculo en varios casos. Grecia sufre un colapso superior al padecido por Argentina en el 2001, tanto en el desplome de su producto (el doble del derrumbe pos- convertibilidad), como en la magnitud del endeudamiento (169% frente a 150% del PBI). El desempleo promedia el 27% y alcanza el 58% en la juventud, en un

19escenario de depresión sin fin .

La Troika no expulsó al país del euro pero tampoco lo financia. Mantiene una soga corta para imponer el ajuste perpetuo con inverosímiles promesas de mejoría futura. Al cabo de una promocionada renegociación de la deuda, el pasivo fue reducido en un irrisorio 10%.

A Irlanda no le va mejor. Durante una década el país fue exhibido como el “modelo más exitoso de neoliberalismo” y desde hace cuatro años soporta un ajuste sin pausa. El consumo se ha desplomado (12% inferior al 2007) y los recortes no han reducido la deuda pública que continúa por encima del 120% del PBI.

En Portugal la derecha y los social-liberales se alternan en el gobierno para introducir nuevos recortes, al concluir cada ronda de negociación de la deuda. Con el tercer rescate de los bancos el país quedó vaciado de reservas, mientras se multiplica el desempleo. Europa Oriental sufre una gran emigración de la población desocupada y soporta tasas de pobreza semejantes al Tercer Mundo.

El destino de dos paraísos financieros ilustra quién carga con las consecuencias de la crisis. En Islandia se privatizaron las entidades para atraer capitales a dos bancos, que recaudaron fondos equivalentes a 10 veces el PBI de la isla. Cuando colapsaron el FMI intentó transferir el desfalco a una población que impidió el atropello.

También en Chipre se buscó penalizar a los pequeños depositantes por la quiebra de los bancos. La resistencia social y el temor a una corrida en otros mercados liberalizados obligaron a limitar esa confiscación. Pero el precedente de una expropiación directa de los ahorristas quedó flotando como un recurso para el futuro.

La moneda común opera en toda la Eurozona como una convertibilidad forzosa, que consolida las ventajas de las economías avanzadas al impedir el uso de las devaluaciones para recomponer la competitividad.

Los países más endeudados son forzados a reducir su déficit fiscal y su desbalance comercial. Como utilizan la misma moneda que el resto para gestionar productividades, salarios y tasas de inflación muy diferentes, soportan una gran hemorragia de recursos hacia el centro.

num 585-586, Paris, août-septembre 2012; Toussaint, Eric. Contradicciones Centro Periferia en la Unión Europea”, disponible en: www.isepci.org.ar12/11/2013.21 GODDIN, Roger. Quelques elements trop peu connus du neoliberalisme, disponible en www.avanti4.be 30-3-201422 ANDERSON, Perry. The New Old World, London, Verso, 2009, P.

El promedio salarial en Alemania, Francia, Países Bajos, Suecia y Austria duplica o triplica las medias de Grecia, Portugal o Eslovenia. Supera entre 7 y 10 veces los niveles vigentes en Letonia, Rumania o Bulgaria. La brecha de productividad con Alemania es abismal.

También los desniveles de inflación entre el Norte y Sur de Europa se han acentuado. En el período 2000-08 el incremento de precios fue 11,8% en la primera región y 27% en la segunda. Desde su incorporación al euro las economías de la periferia crecieron aumentando el consumo sin ningún soporte productivo. La inflación diferenciada reflejó este desequilibrio, que primero desembocó en déficit comercial, luego en endeudamiento y finalmente en quebranto bancario.

Estos procesos ilustran el carácter crónico de las desigualdades socio-económicas regionales y la recreación de relaciones centro-periferia en los momentos de gran reconversión capitalista. En el escenario europeo se verifica como ambos polos se alimentan mutuamente, a medida que la región es adaptada a los nuevos moldes de la acumulación

20global .

Del Federalismo al Centralismo

La crisis no ha detenido la conformación de la Unión Europea, que ya es un proto-estado continental con varias instituciones en gestación. Hasta ahora funciona mediante tratados sin gran sustento constitucional. Para cambiar cada regla se necesita el voto de los gobiernos, que a su vez recurren a consultas internas. Estos mecanismos regirán hasta que se defina como centralizar las decisiones. Esta modificación se está procesando mediante la eliminación de todos los resabios de la Europa social que obstruyen a la Europa del capital.

La transformación en curso ya no guarda ningún parentesco con el ideario federalista. Ese proyecto se ha disipado para insertar al Viejo Continente en la mundialización neoliberal. El viraje es comandado por Alemania que ensayó internamente, los nuevos principios de restricción salarial y prioridad explícita del beneficio, a través de estrictas políticas monetarias de independencia del Banco

21Central .

Los primeros pasos que siguió la paulatina conformación de la Unión -Tratado de Roma en los 50, política agraria común en los 60, sistema de paridades en los 70, acuerdos de moneda en los 80- registraron un brusco giro con el tratado de Maastrich en los 90. Allí comenzó el viraje neoliberal consumado con la unificación monetaria, el resurgimiento de Alemania y el ingreso de los países del Este a la U.E.

El modelo actual funciona bajo el comando de una casta supra-nacional, que amolda la construcción de Europa a las exigencias del mercado. Su poder creció abruptamente luego con la implosión de la URSS y la reunificación germana. Maastrich consagró la primacía del despotismo capitalista, para demoler el estado de bienestar en los 27 miembros de la Unión y en los 17 integrantes de la Eurozona.

Todos perdieron soberanía, resignaron atribuciones presupuestarias y delegaron decisiones en la tecnocracia de Berlín-Bruselas. Este sometimiento se verifica en la primacía económica del Tribunal Europeo, el dominio de las empresas continentales, el libre flujo de capitales financiero y la gravitación del euro.

El proyecto federalista inicial de Monnet-Delors ha

ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS

Page 59: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 61História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (55 - 62)

quedado totalmente sustituido por las propuestas de Hayek de forjar una estructura política divorciada de la soberanía popular. Este esquema modifica a tal punto las tradiciones progresistas de posguerra, que el término “reforma” ya no implica mejoras sociales sino aceleración de las privatizaciones.

La meta geopolítica inicial de la Unión apuntaba a realzar la gravitación de Francia para contener un eventual resurgimiento germano. Ese propósito tenía el Plan Schuman y la Comunidad del Acero y el Carbón. Se buscaba evitar la repetición de la inestabilidad de los años 30, imponiendo la subordinación de Alemania a una construcción continental.

Pero la crisis de Suez, las derrotas del colonialismo francés y la erosión del gaullismo alteraron el proyecto. Por un lado se incrementó la presencia perdurable de Estados Unidos en el Viejo Continente y por otra parte se debilitaron las posibilidades de un esquema europeo autónomo. El desplome de la URSS reforzó estas tendencias.

El viejo temor a una repetición de la inestabilidad de entre-guerra se diluyó e irrumpió el nuevo horizonte de forjar empresas regionalizadas (o internacionalizadas), para apuntalar la competitividad europea. El discurso apolítico que emana desde Bruselas expresa esta prioridad.

Todas los debates actuales confirman la sustitución definitiva del proyecto keynesiano por el planteo hayekiano. Algunas interpretaciones atribuyen este cambio a la necesidad de centralizar la actividad de las grandes empresas integradas. Otros explican el mismo proceso por la pérdida de influencia del estado-nacional. La interdependencia económica y la formación de alianzas continentales son vistas como datos insoslayables del nuevo escenario europeo.

Contradicciones de la Unión Europea

Muchos analistas se preguntan si la Unión aguantará la profunda erosión que genera la crisis actual. También discuten si el ajuste en marcha no terminará debilitando al Viejo Continente en la competencia global.

Cada iniciativa que adopta la Unión reduce su legitimidad política. Desecha las normas de una confederación, afianza la tiranía de sus organismos (Comisión, Consejo, Corte) y se divorcia del sustento electoral. Por estas razones aumenta el predicamento de las corrientes euro-escépticas.

El “déficit democrático de la Unión” es presentado por los neoliberales como un trago amargo y pasajero. Pero en realidad promueven un consenso pasivo de largo plazo, asentado en el sostén de las elites para contrapesar la indiferencia de las masas.

Dos de cada tres europeos ya hablan otro idioma y las calificaciones educativas se han unificado. Pero las clases populares no comparten el nuevo europeísmo, carecen de un sentido supra-nacional y conservan sus afiliaciones

nacionales. Este descontento emerge periódicamente a la superficie en los resultados de los comicios.

El distanciamiento popular distingue la unificación actual de las viejas construcciones nacionales, que incluían la intervención revolucionaria de las masas para democratizar los nuevos estados. Estos organismos surgieron históricamente a través de la expansión gradual de la autoridad en cierto territorio, la edificación desde arriba (absolutismo francés) o la revolución anticolonial (Estados Unidos).

La Unión Europea no repite ninguno de estos precedentes y se forja con gran orfandad simbólica. Los valores de la civilización asociados con el Viejo Continente desde el Iluminismo han sido vertiginosamente erosionados por los atropellos neoliberales.

La unificación actual destruye, además, el equilibrio de poderes políticos que generaba la existencia de múltiples estados competidores. Este deterioro podría compensarse con la integración económica continental. Pero las empresas están consumando su entrelazamiento en un contexto de crisis

22global y desgarramiento social .

Los analistas euro-escépticos también remarcan la inexistencia de una defensa militar y una política exterior común, la inoperancia del Parlamento de Estrasburgo, la continuada primacía de partidos políticos nacionales y la ausencia de una real identidad europea. Subrayan especialmente la incapacidad de la Unión para sustituir a los viejos estados nacionales en la gestión corriente de los asuntos

23públicos .

La manifestación más evidente de estas tensiones es la creciente gravitación de las demandas regionalistas. Las tendencias separatistas se expanden en un amplio espectro de regiones (Escocia, Flandes) y en procesos muy contradictorios. Las legítimas exigencias nacionales (catalanes) se mixturan con el regresivo rechazo a compartir los presupuestos locales con las zonas empobrecidas (Norte de Italia).

El contraste entre los derechos vulnerados de los vascos y la persecución racista en la ex Yugoslavia, ilustra el carácter diametralmente opuesto que pueden asumir esos nacionalismos. Al aceptar varios mini-estados en su seno, la Unión Europa abrió un peligroso sendero de pertenencia a la Comunidad fuera de los estados vigentes.

Dos facetas de la Unificación

La estructura estatal europea en gestación presenta un perfil neoliberal de pocos gastos y burocracias ínfimas. Con ese delgado aparato se busca avasallar las conquistas sociales que nunca alcanzaron los asalariados de otros continentes. Por esa razón el presupuesto de Bruselas se reduce al 1% del PBI regional.

La insignificante dimensión de ese organismo conduce a combinar los atropellos decididos en Bruselas con su implementación estatal-nacional. En este último ámbito se garantiza el recorte. Allí se concentran los dispositivos represivos y las instituciones políticas requeridas para consumar la agresión.

Pero un proto-estado mínimo para el ajuste también genera una estructura débil para la competencia internacional.

110-115; 476-480.23 MANN, Michael. Estados nacionais na Europa e noutros continentes: diversificar, desenvolver, não morrer. In: BALAKRISNAN, Gopal (org.). O Mapa Questao Nacional, Rio de Janeiro, Contraponto. 2000.24 DURAND, Cédric. The strategies of the ruling class and the "austeritarian" program in Europe. Third IIRE Seminar on the Economic Crisis, Amsterdam, 15-2-2014, Disponible en: www.iire.org25 WIESBROT, Mark. En el reino de los ciegos, disponible en Página

12, 23/1/2014.26 SERFATI, Claude. La mondialisation armée. Paris, Textuel, 2001.

Page 60: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

62 - ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS

Esta diferencia se ha verificado en las políticas divergentes que adoptaron la Reserva Federal y el Banco Central Europeo frente a la crisis. Mientras que la FED lanzó una emisión de 400% de la base monetaria de la economía estadounidense, el

24BCE sólo incrementó ese volumen en un 150% .

Esta diferencia de respuestas ha determinado una recuperación inferior del producto bruto y del empleo en comparación a Estados Unidos. La caída del nivel de actividad tuvo una duración inicial similar en ambas regiones (un año y medio). Pero la Eurozona recayó posteriormente en una nueva recesión de dos años. Además, su tasa de desempleo promedia el 12,1% frente al 6,7% de Estados

25Unidos .

Mientras que la potencia norteamericana recurrió a tres rounds de relajamiento monetario, en el Viejo Continente imperó la norma deflacionaria. Esta asimetría ha sido explicada por la adopción de una política monetaria expansiva frente a otra restrictiva. También se menciona la existencia de una Reserva Federal con experiencia, frente a un Banco Central Europeo en surgimiento. O se recuerda que los reglamentos de la Unión impiden prestar el dinero, que la FED distribuye sin ninguna restricción en todo el territorio estadounidense.

Otros analistas subrayan la mayor capacidad de acción de un estado imperial construido hace dos siglos, frente a un proto-estado continental en plena gestación. Observan la misma diferencia entre un capital yanqui (que opera en forma cohesionada) y capitales europeos (segmentados en proyectos heterogéneos).

Pero la principal diferencia radica en la continuada hegemonía imperial de Estados Unidos. El ejercicio de esa supremacía le otorga un manejo militar, político y económico que no tienen sus rivales europeos. Este dominio se expresa también en la forma dominante de ejercer la política monetaria con un horizonte global.

Por estas razones la Reserva Federal adoptó una actitud ofensiva frente a la crisis, emitiendo moneda y reduciendo las tasas de interés, mientras que el BCE recurría a la deflación y al encarecimiento del costo del dinero.

Merkel optó por una estrategia ultra-ortodoxa, no sólo por alcance acotado del euro como moneda mundial. Su conducta defensiva también obedece a la subordinación germana al poder geopolítico norteamericano. Alemania ha

26recuperado gravitación económica pero no presencia militar .

La sintonía del país con cualquier acción anti-terrorista que exige el Pentágono ilustra este sometimiento. Las elites alemanas son muy conservadoras y se han acostumbrado a seguir los mandatos del Departamento de Estado. En los últimos años aceptaron la participación de sus efectivos en los Balcanes, Afganistán y el Congo.

El comando económico que rige dentro de la Unión Europea no se extiende a la órbita geopolítica global. Como Alemania carece de ejército y proyección internacional, no puede actuar sola. Necesita el concurso de Francia, que a su vez ha optado por el abandono de la estrategia soberana del gaullismo.

El declive imperial francés no siguió el precedente

27 MARTIAL, Paul. Sobre la intervención francesa, disponible en: www.kaosenlared.net/. 04/02/2013; RAMONET, Ignacio. ¿Qué hace Francia en Mali?”, disponible en www.rebelion.org 02/02/2013.

británico de inmediata dependencia financiera y subordinación militar a Estados Unidos. De Gaulle pretendió reconstruir la autonomía del país mediante guerras coloniales y proyectos atómicos propios, aprovechando la gravitación internacional que mantenía la cultura francesa.

Pero ese intento fue socavado por la adaptación al neoliberalismo que inició Mitterand y posteriormente propiciaron los intelectuales derechistas enemistados con la generación del 68. Esta transformación fue reforzada por la apertura de la economía, la privatización de las empresas públicas y la consolidación de un estilo gerencial anglosajón.

El estancamiento económico, la reacción política y el declive cultural de Francia han desembocado en el giro pro-norteamericano en los últimos años. Este viraje incluyó el reingreso a la OTAN y la participación militar en Afganistán.

Es cierto que Francia mantiene un despliegue imperial propio en su viejo espacio colonial. Allí desenvuelve todas las “intervenciones humanitarias” que exijan sus empresas. Ha realizado estas incursiones neocoloniales en Costa de Marfin, Ruanda, Congo, Níger y República Centroafricana, considerando a esa región como una gran reserva de negocios.

Pero habitualmente actúa en sintonía con el Pentágono, a través de operaciones coordinadas que distribuyen el trabajo militar. En el caso reciente de Mali la invasión fue concretada por Francia para garantizar la provisión de uranio a su red energética. Pero el ejército norteamericano ya había adiestrado previamente a las tropas

27del mismo bando .

No sólo en África la acción imperial francesa remueve presidentes, promueve secesionismos y encubre genocidios en coordinación con la OTAN. También en Medio Oriente actúa con sus aliados occidentales, para sostener a las fuerzas reaccionarias de Libia o Siria.

Todas las rivalidades franco-americanas se procesan en el marco compartido del imperialismo colectivo. Cualquiera sea la expectativa francesa de esta acción (conservar su influencia neocolonial, su proteccionismo agrario o su excepcionalidad cultural), la asociación con Estados Unidos reduce el margen de acción de la principal potencia militar de la eurozona.

Estados Unidos incrementa su influencia sobre una Europa unificada. Piloteó la expansión de la OTAN hacia el Este promoviendo la incorporación de varios países lindantes con Rusia y logró un explícito compromiso del Viejo Continente en la “guerra contra el terrorismo”. Ha impuesto la definitiva extinción de las viejas diferencias que separaban a los conservadores de los social-demócratas en el manejo de la política exterior europea

La reciente crisis desatada por el espionaje informático norteamericano corrobora ese viraje. Snowden destapó cómo el Pentágono ausculta los secretos de sus socios europeos. Los espiados respondieron con cierta espuma mediática, pero aquietaron rápidamente el escándalo para no perturbar las operaciones conjuntas de ambas potencias. Pero más allá de los matices y diferencias, la crisis global afecta duramente a Estados Unidos y Europa.

Artigo recebido em 31.3.2014

Aprovada em 2.5.2014

Page 61: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 63

O corpo, a História e a pessoa com deficiência

1Silmara Aparecida Lopes

movimento pela inclusão social das pessoas com deficiência vem crescendo. Segundo o Censo (2010), aproximadamente 46 milhões de

2brasileiros, cerca de 24% da população , declararam possuir pelo menos uma das deficiências investigadas e boa parte, destes, ainda aguardam a oportunidade de participar da vida em sociedade e da fruição de direitos que lhes são fundamentais e indisponíveis.

A orientação teórico-metodológica utilizada para fundamentar este artigo é o materialismo histórico e dialético, estabelecendo uma conexão entre o conhecimento teórico e a realidade histórica.

A pesquisa poderá contribuir para que possamos visualizar o retrato que se construiu da pessoa com deficiência dos primórdios aos dias atuais.

Como fio condutor para essa breve incursão na trajetória das pessoas com deficiência, teremos em mente a questão sobre o tipo de corpo que foi valorizado, desvalorizado, considerado útil, inútil, nos diferentes períodos históricos, por aqueles que exerciam algum tipo de hegemonia, tendo como suporte o trabalho de

3Bianchetti e Freire que trataram sobre tema semelhante ao aqui abordado.

Passaremos a nos defrontar, de modo conciso, com as formas como a deficiência vem sendo encarada nas sociedades primitivas, escravistas, feudais e capitalistas e que concepções, métodos e recursos foram utilizados para a eliminação, segregação e/ou exclusão desses indivíduos. Relembrando que a categoria de modo de produção da vida material determina o caráter geral do processo da vida social, política e espiritual, sendo assim, é o seu ser social que determina a sua consciência e não o contrário, como disse Marx no “Prefácio” Para a Crítica

4da Economia Política .

O percurso histórico no qual, gradativamente, pessoas com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas foram sendo incorporadas ao tecido social, não é linear e é marcado por trajetórias individuais.

O

1 Mestranda em Educação pela Universidade de Sorocaba - UNISO2 INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010. Características Gerais da População, Religião e Pessoas com Deficiência. Rio de Janeiro, 2010.3 BIANCHETTI, Lucídio. e FREIRE, Ida. Aspectos históricos da apreensão e da educação dos considerados deficientes In: BIANCHETTI, Lucídio e CORREIA, José Alberto(org.). Exclusão no Trabalho e na Educação: aspectos mitológicos, históricos e conceituais. Campinas: Papirus, 2011. p.81 – 108.4 MARX, Karl “Prefácio (1859)”. In: Para a Crítica da Economia Política. Trad. Edgard Malagodi. São Paulo:Abril Cultural, 1982, p. 239 (Coleção Os Economistas).

É importante relembrar que o corpo é construído historicamente, assim, para Gonçalves, “Nós somos presença no mundo por intermédio do corpo - o corpo é presença que, ao mesmo tempo, esconde e revela nossa maneira de ser no mundo. A cultura imprime suas marcas no corpo e este expressa a história acumulada de uma

5sociedade” .

Com o intuito de localizar as bases objetivas da exclusão social das pessoas com deficiência, buscou-se perquerir as relações com o corpo ao longo dos tempos e como foram surgindo os mecanismos de exclusão, as atitudes de rejeição, as práticas de caridade e assistencialismo, os oportunismos, dentre outros, que foram sendo socialmente construídos. A investigação mostra-se relevante, já que tais condições podem ter produzido determinadas concepções a respeito dos limites e das possibilidades para a existência destas pessoas, que perpassaram os tempos e podem estar, de forma anacrônica ou ajustada, presentes na atual ordem econômica, política e social, moldando o imaginário dos homens contemporâneos.

A deficiência e os povos primitivos

Desde os primórdios foram percebidos os problemas físicos, mentais ou sensoriais, de natureza transitória ou permanente, e os esforços do homem durante sua existência na Terra quanto às superações de suas dificuldades. Apesar da percepção dos obstáculos trazidos pelas deficiências, estas, foram encaradas, durante séculos, como problema individual e não de Estado ou da sociedade.

Os homens primitivos, viviam e realizavam suas atividades produtivas em grupos, os quais eram formados por gens ou tribos. Na maior parte deste período da história, a humanidade foi formada de pequenos agrupamentos de nômades, os quais sobreviviam perambulando pela terra, enfrentando as dificuldades, em busca da caça, da pesca e de tudo aquilo que a natureza

6podia lhes oferecer. Mais tarde, segundo Engels , com o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, os homens passam a se fixar em determinadas regiões e, desta forma, iniciaram a sua fase de sedentarização.

Na fase de nomadismo, os rios, os lagos e os mares, bem como os campos de caça e de coletas de frutos, podiam ser usufruídos por todos os agrupamentos

5 GONÇALVES, Maria Augusta S. Sentir, pensar e agir na corporeidade e educação. Campinas; Papirus, 1997, p. 132.6 ENGELS, Friederich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 24-25.

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (63 - 68)

Page 62: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

64 -

que por eles transitassem. Na fase de sedentarização, de acordo com Marx e Engels, os animais domesticados e as terras cultivadas, bem como os alimentos extraídos das atividades agrícolas, eram propriedades coletivas da comunidade que as desenvolvessem, o que significa afirmar que ‘‘a primeira forma da propriedade é a

7propriedade tribal” .8De acordo com Silva , as condições de existência

das pessoas com deficiência nas sociedades primitivas, apesar das poucas informações a esse respeito, apontam no estabelecimento de duas tendências: uma, que perpassou todo este período histórico, marcada pelo abandono, segregação e extermínio das pessoas com deficiência e outra, que vigorou em algumas comunidades sedentarizadas por atitudes de aceitação, de apoio e de assimilação das mesmas. Durante a fase de nomadismo, onde cada membro do agrupamento humano necessitava estar apto para enfrentar os perigos oferecidos pelo mundo selvagem, não havia condições objetivas que permitissem a sobrevivência desses indivíduos. Então, por uma questão de sobrevivência, não tinham outra alternativa a não ser se livrarem daqueles que estavam sem condições de acompanhá-los em seu ritmo de vida.

No processo de sedentarização dos homens, além da descoberta da agricultura e da domesticação de alguns animais, também houve um maior desenvolvimento na produção de instrumentos artesanais, os quais puderam potencializar as ações humanas, melhorando as condições de vida desses povos, favorecendo para que as pessoas com deficiência sobrevivessem. Assim, em tal sociedade as atitudes de aceitação, de apoio e de assimilação das pessoas com deficiência eram possíveis, já que as mesmas poderiam desenvolver atividades que estavam em conformidade com a sua forma de ser, contribuindo na manutenção do grupo. Apesar dessa possibilidade, é provável que alguns povos ainda continuaram a adotar a prática do abandono, da segregação e do extermínio, procedimento que pode ser explicado enquanto resultado da herança de antigos costumes.

Nesses povos, de um modo geral, ainda não presumimos a questão da dominação de alguns homens sobre outros, como verificamos nitidamente em outros modos de produção; as relações de amizade e ajuda prevaleciam, visando atender a sobrevivência do grupo como um todo. Ponce nos auxilia para uma melhor compreensão a esse respeito:

Na sociedade primitiva, a colaboração entre os homens se fundamentava na propriedade coletiva e nos laços de sangue; na sociedade que começou a se dividir em classes, a propriedade passou a ser privada e os vínculos de sangue retrocederam diante do novo vínculo que a escravidão inaugurou: o que impunha poder do

9homem sobre o homem .

A deficiência e o modo de produção escravista

O Mundo Antigo pode ser caracterizado por sociedades estratificadas entre uma classe que possuía os meios de produção e outra que não os possuía. A principal forma de produção era o escravismo, onde a apropriação da produção era restrita a uma classe que não produzia.

Na Grécia Antiga, devido ao atendimento das necessidades básicas garantidas pelo trabalho dos escravos, os homens livres podiam se dedicar ao ócio. É a partir daí que os homens começam a pensar de forma sistematizada, a construir ideias, paradigmas que atravessarão os séculos. Um desses paradigmas aparece, especialmente em Esparta, onde as crianças que nasciam com deficiência eram lançadas em um precipício. A prática de eliminação sumária, "justificava-se" para o bem da criança e da república, onde a maioria dos cidadãos livres, deveriam se tornar guerreiros e a perfeição do corpo era muito valorizada. Bianchetti e Freire, apontam como outro paradigma o ateniense, com a predileção “pela vida agitada da polis, a filosofia, a retórica, a boa argumentação e a contemplação vão moldar uma concepção de corpo e sociedade”. Prosseguem afirmando que “quanto à concepção do corpo, principalmente, na obra de Platão, abra-se um interstício, uma fresta, uma fenda entre corpo e mente, por onde vai soprar um vento frio pelo resto da história

10do mundo ocidental cristão (...)” . A divisão da sociedade ateniense entre escravos e livres, acabará por idealizar uma divisão entre o corpo (os escravos) degradado, embaraço da mente, a quem cabe a execução das tarefas degradantes, e mente (os livres) a quem cabe a parte digna, superior, incumbida de comandar, governar, dominar.

Assim como ocorria em Esparta, o Direito Romano não reconhecia a vitalidade de bebês com características defeituosas, todavia o costume não se voltava, inevitavelmente, para a execução sumária (embora isso também ocorresse). As crianças com deficiência eram abandonadas e, muitas vezes, escravos e pessoas pobres que vivam de esmolas, ficavam à espreita para se apossarem dessas crianças e, posteriormente, utilizarem-nas para pedir esmolas, trabalhar em circos ou mesmo para prostituição.

Nesse modo de produção se estabelece a supremacia do trabalho intelectual sobre o manual, evidenciando-se a exploração de alguns homens sobre outros.

A deficiência e o modo de produção feudal

O contexto histórico-cultural da Idade Média foi responsável pela visão de corpo da época. Além do comportamento da população medieval ter sido extremamente controlado, também seu pensamento foi manipulado pelo poder dominante da época: o clero e a nobreza. Usando o nome de Deus, os poderosos obtinham

7 MARX, Karl: ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 44.8 SILVA, Otto Marques. A Epopéia Ignorada: a pessoa com deficiência na história do mundo de ontem e de hoje. São Paulo:CEDAS, 1986.

9 PONCE, Aníbal. Educação e Luta de Classes. 17ª edição, Cortez, 2000, p. 25-26.10 BIANCHETTI &FREIRE, op. cit., p.88 – 89.

O CORPO, A HISTÓRIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Page 63: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 65

muitos benefícios e a população acreditava que, se contrariasse as ordens da Igreja, não teria a salvação da alma, portanto, não reagia.

O paradigma ateniense repercute na Idade Média, porém, sob o âmbito da teologia que modifica sua terminologia. A dicotomia deixa de ser corpo/mente passando a corpo/alma, no período feudal, e os indivíduos considerados anormais ganham direito à vida, mas são estigmatizados, visto que o modelo moral do cristianismo/catolicismo tende a encontrar ligações entre as diferenças/deficiências e o pecado. Nesta divisão a alma era considerada a parte digna de atenções e cuidados, por sua vez, o corpo ora era considerado o “templo de Deus”, ora era visto como “oficina do diabo”, o que gerava contradições difíceis de serem

11superadas . À medida que a Idade Média avança, a relação das diferenças físicas com o pecado começa a intensificar-se, entretanto, é necessário que se perceba que esta visão “negativa” da deficiência/diferença surge antes, como no Antigo Testamento da Bíblia que encara os infortúnios, de um modo geral, como uma possível manifestação dos castigos divinos.

No Novo Testamento, encontramos referências aos cegos, surdos e paralíticos como pessoas que provavelmente tenham cometido algum pecado e que por esse motivo sofriam tais “penalidades” físicas. Um dos milagres de Cristo, pode nos ajudar a observar essa relação entre o pecado e a deficiência:

Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: Filho, os teus pecados estão perdoados [...] E Jesus, percebendo logo por seu espírito que eles assim o arrazoavam, disse-lhes: Por que arrazoais sobre estas coisas em vosso coração? Qual é mais fácil? Dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus pecados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu

12leito e anda?

Destarte, é inteligível que a Igreja Católica tenha conduzido a sociedade medieval nessa direção, tanto que os castigos impostos ao corpo, tais como as flagelações, a fogueira e as torturas da Santa Inquisição representavam a purificação dos pecadores.

Por outro lado, podemos conjeturar que a Igreja “colaborou” para uma mudança na maneira pela qual as pessoas com deficiência eram vistas e tratadas pela sociedade, ao imprimir a ideia de que essas pessoas eram alertas de Deus e que ofereciam aos homens a oportunidade de praticar o bem. Assim, o flagelo de uns servia para a salvação de outros.

A deficiência e o Modo de produção capitalista

A passagem do feudalismo ao capitalismo vai trazer mudanças profundas que repercutirão em várias direções. Vamos tentar compreender um pouco essa transição e de que maneira isto foi organizando a sociedade e atingindo a situação das pessoas com

deficiência. Marx e Engels, contribuem quando explicam sobre as transformações diante de novas condições de existência:

Será necessária uma profunda inteligência para compreender que, com a modificação das condições de vida dos homens, das suas ligações sociais, da sua existência social, também se modi f icam suas represen tações , suas concepções e seus conceitos, numa palavra, sua

13consciência?

O período conhecido como Renascimento, não resolveu de maneira satisfatória a situação na qual se encontravam as pessoas com deficiência, entretanto, vai transformando a vida social e o comportamento do homem comum. Um mundo com maior presença da razão começa a ganhar força e a moldar as raízes do homem. Com a paulatina libertação quanto aos dogmas e crendices típicas da Idade Média, entre os séculos XIV a XVI, no mundo cristão europeu, ocorreu uma gradual e evidente mudança sócio-cultural , com maior reconhecimento do valor humano.

Esse novo momento histórico, que acompanhou a burguesia estabelecendo as condições necessárias para, enquanto classe, exercer a hegemonia, diferencia-se radicalmente da situação anterior em que os homens viviam da produção para a subsistência. Nesse período, o antropocentrismo passa a ser evidenciado e fortalecido, com o homem não aceitando mais a posição de figurante.

Pelos desafios colocados à ciência, novas descobertas foram impulsionadas, assim, temos Newton (1642-1727) que ao apresentar uma visão mecanicista do universo, contribui para que o corpo passe a ser definido e encarado como uma máquina, o que desencadeará num resultado desastroso e persistente para as pessoas com d e f i c i ê n c i a : s e o c o r p o é u m a m á q u i n a , a diferença/deficiência é o mau funcionamento de uma parte dessa máquina. Enquanto na Idade Média a deficiência poderia estar associada ao pecado, ao castigo, passa, então, a ser relacionada ao mau funcionamento. Locke (1632-1704), ao definir o recém-nascido e o idiota como “tabula rasa” e o comportamento como produto do ambiente, possibilita o entendimento da deficiência como a carência de experiências que poderiam ser supridas pela educação, abrindo caminho para que estudos e experiências, nessa área, fossem realizados ulteriormente.

Nessa incursão pela história, observamos a burguesia que, após sair vitoriosa da Revolução Francesa e agindo enquanto classe dominante, passa a demonstrar seu caráter reacionário, sonegando aos outros os mesmos direitos pelos quais lutara para garantir. Em A ideologia Alemã, temos que: “Cada nova classe que passa a ocupar o posto daquela que dominou antes dela se vê obrigada, para poder encaminhar os fins que persegue, a apresentar seu próprio interesse como o interesse geral

11 Idem, ibidem.12 A Bíblia Sagrada. Tradução: João Ferreira de Almeida. 2ª Ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Mc, Cap. 2, vers. 5.8.9.

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (63 - 68)

13 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 2000.

Page 64: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

66 -

14de todos os membros da sociedade”.

A partir da Revolução Industrial, que teve início principalmente na Inglaterra do séc. XVIII, caracterizada pela passagem da manufatura à indústria mecânica, o ritmo de produção passa a ser ditado pela máquina e pelo controle do trabalhador, sendo essa uma das formas de produção para atingir os objetivos do capitalismo, que é o alcance da mais-valia, da acumulação. As anomalias genéticas, as guerras e as epidemias deixaram de ser as únicas causas das deficiências e o trabalho, muitas vezes, em condições precárias, começou a ocasionar acidentes mutiladores e doenças profissionais. Emergem-se, assim, algumas mudanças para esses indivíduos, com uma atenção mais especializada e não somente institucional como em hospitais e abrigos.

A participação médica na reabilitação dos deficientes foi marcante, trazendo maior inquietação em relação à educação das pessoas com deficiência. Através da experiência feita pelo médico Jean Itard, no início do séc. XIX, com um menino encontrado perdido em uma floresta e que apresentava hábitos de animal selvagem e características de deficiência mental, foi demonstrado que o atraso que essa criança apresentava tinha origem não em fatores biológicos, genéticos, mas no fato de não ter sido integrada na sociedade humana, evidenciando-se que pessoas com deficiência eram capazes de aprender.

Consideramos relevante entender a concepção de corpo no modo de produção capitalista, particularmente em seu estágio avançado. A sociedade contemporânea, condiciona o corpo a uma supervalorização e o coloca no centro das propostas consumistas e alienantes do mundo capitalista, transformando-o no mais novo produto de consumo. Desse modo, a busca pela inserção no mercado de trabalho e a aceitação no meio social depende da boa aparência física, e quem não se insere nos padrões fica à margem da sociedade.

Apesar dos avanços técnico-científicos e do discurso pela inclusão social, a sociedade individualista e consumista, em geral, continua rejeitando as pessoas com deficiência, tendo como evasiva, muitas vezes sutil, o fato de elas não se enquadrarem ao perfil social e estético proclamado.

Retornando à contextualização histórica, no século XX não podemos afirmar, de forma contundente, que a maneira de conceber e tratar as pessoas com deficiência tenha obtido uma melhora significativa. No modo de produção capitalista onde o Deus pode ser reconhecido pela alcunha de dinheiro, um dos pecados dessa rel igião é não ser produtivo, trazendo consequências para a vida dessas pessoas que a priori costumam ser consideradas incapazes, dificultando a utilização de suas potencialidades. Apesar da exigência legal de cotas para trabalhadores com deficiência, de acordo com dados do Censo 2010, mais de 50 % das pessoas com deficiência estavam fora do mercado de

15trabalho .

O CORPO, A HISTÓRIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Contudo, foi nesse século que se intensificou, de modo geral, o desenvolvimento de programas, centros de treinamentos e assistências aos veteranos de guerra. Principalmente após a II Guerra Mundial, a questão da deficiência, ganha relevância política no interior dos países e, também, internacionalmente, na área de atuação da Organização das Nações Unidas (ONU). Consequentemente, a situação das pessoas com deficiência passa a ser objeto de debate público e a constar na agenda das ações políticas, especialmente a partir de 1980, inclusive no Brasil.

Para entendermos melhor algumas mudanças no Brasil, mormente nos anos 90 do século XX, é de suma importância que tenhamos uma noção do papel do Estado que passa a ser ideologicamente trabalhado e construído, pelas políticas neoliberais, sendo necessária uma compreensão básica de conceitos como Sociedade Civil, ONGs, Estado mínimo, ajustes estruturais, organismos internacionais.

Iniciaremos pela definição de governo neoliberal 16que, segundo Torres , é aquele que “propõem noções de

mercados abertos e tratados de livre comércio, redução do setor público e diminuição do intervencionismo

estatal na economia e na regulação do mercado”.O autor prossegue apontando que o neoliberalismo histórica e filosoficamente está agregado com procedimentos de ajuste estrutural, o qual, pode ser definido “como um conjunto de programas e políticas recomendadas pelo Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e outras organizações financeiras”. Um aspecto fundamental do neoliberalismo é a diminuição drástica do setor estatal. Para os governos neoliberais “o melhor estado é o estado mínimo”.

Na sequência, tentaremos compreender o conceito de Sociedade Civil que hoje está atrelado à ONGs e, consequentemente, ao Terceiro Setor.

As ONGs surgiram no Brasil no período do regime militar, cresceram na década de 1980 e tornaram-se mais visíveis ao grande público na década de 1990. Essa expansão do trabalho das Instituições filantrópicas, ONGs, consolidam-se no bojo dos processos sociais e econômicos que nos últimos 30 anos, têm transformado a maioria das sociedades ocidentais sob a égide do capitalismo em sua versão neoliberal.

Nesse contexto, o cenário brasileiro passa a sofrer as intervenções, no que tange à reestruturação econômica e social, de organismos internacionais (FMI,

17Banco Mundial, etc). Arantes , ao tratar sobre o papel das ONGs e das empresas na Sociedade Civil brasileira, especialmente na década de 1990, afirma que, elas, têm seguido a receita de políticas compensatórias recomendadas pelos patrocinadores da reestruturação

14 MARX, &ENGELS. A ideologia Alemã, op. cit., p. 7215 INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010, op. cit.

16 TORRES, Carlos Alberto. Estado, privatização e Política Educacional. Elementos para uma crítica do neoliberalismo.In: GENTILI, Pablo.(org.). Pedagogia da exclusão: o neoliberalismo e a crise da escola pública. Petrópolis: Vozes. 1995, p. 114-115.17 ARANTES, Paulo. Esquerda e Direita no espelho das ONGs. In: ONGs identidade e desafios atuais. Cadernos ABONG.Publicação da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais.N° 27 – maio/2000.

Page 65: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 67História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (63 - 68)

econômica e social em curso, tendo o Banco Mundial à frente. O autor prossegue, dizendo que nesse arcabouço de mudanças trazidas pela influência do neoliberalismo, está incluída uma nova concepção do papel do Estado com o enxugamento de parcela específica de suas funções, principalmente aquela de executor das políticas sociais e que a concretização dessas políticas passa a ser delegada a parceiros da Sociedade Civil, entidades sem fins lucrativos, ONGs, contando, inclusive, com o repasse de verbas públicas.

Devido a essa situação, a Sociedade Civil e as empresas em especial, são chamadas para ampliar a responsabilidade sobre a sociedade em que vivem no que diz respeito ao “bem estar social”, através de ações de “benfeitorias” voltadas para a comunidade. Segundo Arantes, as empresas canalizam o trabalho voluntário ao induzir seus empregados a realizá-los junto às comunidades, t ransformando-o em vantagem competitiva, com a agregação de seus produtos à imagem de empresa cidadã.

O neoliberalismo traz como efeito colateral o desenvolvimento de um imaginário coletivo negativo quanto à competência da nação para enfrentar seus próprios problemas e, por essa razão, costuma deixar ao mercado e à Sociedade Civil a responsabilidade pelo seu desenvolvimento.

Diante do exposto, destacamos os programas destinados à suposta inclusão social das pessoas com deficiência que vêm se proliferando, especialmente a partir da década de 1990, como o “Criança Esperança” (Rede Globo), TELETON (SBT), campanhas midiáticas (tendo como mote a participação desses indivíduos na sociedade), bem como a manutenção e o crescimento da participação de diversas instituições e organizações, não governamentais, voltadas para o atendimento dos diferentes tipos de deficiências (físicas, intelectuais, sensoriais), impulsionadas pelas políticas do modelo de Estado neoliberal, de participação mínima nas políticas sociais, deixando amplo espaço para a “filantropização e a privatização” de políticas públicas que antes cabiam ao

18Estado. De acordo com Oliveira , essa “privatização” do que deveria ser público, muitas vezes, ocorre a expensas do imposto de renda, do qual são abatidos os gastos filantrópicos, donde podemos aventar que o Estado, quanto à tarefa referente ao desenvolvimento de políticas sociais, continuará estimulando o trabalho político e

19social das ONGs e das empresas. Gaudêncio Frigotto , referindo-se à liberdade do mercado, aponta que “a livre concorrência, numa sociedade de classes, é uma falácia.” Continua esclarecendo que a ideia-força que move e sustenta o neoliberalismo é a de que “o setor público (o Estado) é responsável pela crise, pela

ineficiência, pelo privilégio, e que o mercado e o privado são sinônimo de eficiência, qualidade e equidade”. Partindo desta idéia-chave, resulta:

[...] a tese do Estado mínimo e da necessidade de zerar todas as conquistas sociais, como o direito à estabilidade de emprego, o direito à saúde, educação, transportes públicos, etc. Tudo isso passa a ser comprado e regido pela férrea lógica das leis do mercado. Na verdade o Estado mínimo significa o Estado suficiente e necessário unicamente para os interesses da

20reprodução do capital .

Destarte, podemos conjeturar que as ações voltadas para as pessoas com deficiência e para as minorias sociais nas três últimas décadas, vêm servindo mais para a manutenção dos ideais das classes dominantes, que vão conduzindo a vida material, social, política e cultural em prol de seus interesses, camuflando a realidade com novos discursos e ideologias. Particularmente, no que tange ao incentivo do trabalho das ONGs, libera-se a responsabilidade das políticas públicas, voltadas às pessoas com deficiência para a Sociedade Civil que ao contar com o envolvimento ideológico do senso comum (que é induzido a acreditar nas “benesses” do discurso hegemônico do Estado mínimo e da eficiência do livre mercado), acabam por “acalmar” os conflitos e as contradições (que são inerentes à sociedade dividida em classes), bem como as possíveis manifestações organizacionais e populares. Mantendo-se, assim, o controle da sociedade, pelos

21 blocos históricos hegemônicos da contemporaneidade, e mascarando as mazelas sociais, as quais se encontram mais intensificadas neste séc. XXI.

Nesse breve percurso histórico, é possível observar que em diferentes épocas e culturas, o tratamento dispensado aos indivíduos com deficiência, especialmente àqueles das classes sociais dominadas, tem variado, entretanto, percebe-se que sempre existiu uma constante histórica: a “estigmatização” que legitima o preconceito e a continuidade do “prejuízo histórico” que carregam em relação ao usufruto dos bens sociais, culturais, econômicos e políticos. Da fase de eliminação sumária até o, ainda, almejado tratamento humanitário e mais equânime, passaram-se séculos de história.

Chegamos ao séc. XXI, que trouxe em sua bagagem fatores como avanços tecnológicos, em diversas áreas, e direitos conquistados que preenchem diversas lacunas importantes para o bem-estar do homem, mas ao mesmo tempo, as desigualdades sociais,

18 OLIVEIRA, Francisco de. Brasil, da pobreza da inflação para a inflação da pobreza. In: ONGs identidade e desafios atuais. Cadernos ABONG. Publicação da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais.N° 27 – maio/200019 FRIGOTTO, Gaudêncio Os Delírios da Razão: Crise do Capital e Metamorfose Conceitual no Campo Educacional. In: Gentili, Pablo. (Org.). Pedagogia da exclusão: o neoliberalismo e a crise da escola pública. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 77-108.

20 Idem, ibidem.21 A expressão blocos históricos, é utilizada no sentido gramsciniano, como sendo a estrutura global na qual se incluem, como momentos dialéticos, a estrutura econômica e as superestruturas ideológicas. Nesse caso específico, é utilizada para indicar a influência e o poder do Banco Mundial, FMI e outras organizações, tanto nacionais quanto internacionais, que exercem a hegemonia (seja política, econômica, intelectual) na era neoliberal. Sobre blocos históricos, ver mais em GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Ed. Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro, 1975.

Page 66: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

68 - O CORPO, A HISTÓRIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA

o progresso desmesurado, as cobranças cada vez mais inexoráveis em torno da produtividade, competitividade e consumo, ameaçam a todo tempo tudo o que foi conquistado.

A lógica capitalista cuja finalidade é o lucro e o investimento em retornos imediatos, é contraditória à solução de vários problemas sociais, dos quais podemos destacar a situação de pauperismo e marginalidade a que boa parte da população é submetida, incluindo-se um elevado número de pessoas com deficiência. Num país como o Brasil que, de acordo com o Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano (PNUD, 2010), tem o terceiro pior índice de desigualdades do mundo, a situação das pessoas com deficiência e de outras minorias sociais, continua trazendo bastante preocupação e indicação de que as classes dominantes ao “remediar os males sociais”, apenas, desejam continuar assegurando a sua existência hegemônica, fazendo-nos lembrar do que Marx e Engels,

22chamaram de socialismo conservador .

Após uma década deste século, ainda diante de preconceitos, discriminações e ostracismos, podemos presumir maiores pressões por parte das pessoas com deficiência e das organizações que lutam em seu benefício com o intuito de garantir seus direitos, bem como de encaminhamentos dos temas ligados à cidadania e aos direitos humanos, que vêm sendo compelidos pelas minorias sociais e classes dominadas para novos olhares e atitudes quanto ao seu papel na sociedade. No entanto, é possível observar movimentos não revolucionários, que ao se “contentar” com reformas sociais promovidas para “abafar” as contradições e os conflitos, deixam de lutar pelo real enfraquecimento e transformação de discursos socialmente forjados e impostos, procrastinando e, quiçá, impossibilitando mudanças profundas no seio desta sociedade capitalista.

Artigo recebido em 6.11.2013

Aprovada em 4.2.2014

22 MARX e ENGELS no Manifesto do Partido Comunista, ao tecer comentários sobre a literatura socialista e comunista, explicam que no socialismo conservador uma parte da burguesia almeja remediar os males sociais para continuar garantindo sua existência e que os socialistas burgueses querem usufruir das condições de vida moderna, porém, sem os conflitos que dela inevitavelmente vão emergir.

Page 67: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 69

Rumos para a produção de evidências empíricassobre a política e as classes sociais no Brasil

1Lucas Massimo

Resenha Do livro: Galvão, Andréia e Boito Jr., Armando. Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000. São Paulo: Alameda 2012. 430 p.

O livro Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000 é uma coletânea organizada pelos professores Andréia Galvão e Armando Boito Jr. que reúne resultados de pesquisas realizadas recentemente pelo Grupo de Pesquisa sobre o Neoliberalismo e Relações de Classe (GENEO/Cemarx), da Unicamp. O tema central do livro são as relações de classe no Brasil durante a primeira década do século XXI, e ele perpassa os nove capítulos abaixo sumariados. Para evitar repetir o que já foi escrito na apresentação da coletânea, enfatizaremos nesta resenha o objeto e o tipo de evidência empírica que sustenta a análise de cada capítulo. Ao final propomos uma reflexão sobre o fio condutor da obra, e uma ponderação sobre o que pode ser umdos seus principais gargalos.

O primeiro capítulo analisa a crise política do governo de Fernando Collor de Mello, com ênfase para as contradições presentes no conteúdo da política econômica, e na reação a elas pelos diversos grupos empresariais. Como em outros capítulos, o texto de Danilo Martucelli faz uma caracterização precisa sobre a conjuntura naquele período, resgatando as relações entre as inflexões na política econômica e a temeridade com que o presidente lidava com as forças político-partidárias. O resultado líquido seria o isolamento político do governo, mesmo quando os eixos de sua política econômica estivessem alinhados com os interesses das classes dominantes. Segundo o autor esse é um aspecto decisivo, pois não se pode compreender a natureza da crise sem levar em conta as diferenças entre os grupos empresariais sobre como as reformas neoliberais seriam implantadas. Os dados empíricos deste capítulo foram elaborados a partir de um extenso levantamento bibliográfico sobre a política econômica do governo Collor, sobre o posicionamento das associações patronais, dos movimentos sociais e dos partidos políticos. Assim, ainda que trabalhando com dados provenientes de fontes secundárias, o capítulo faz um importante apanhado sobre as movimentações que estiveram na base da instabilidade política no período – o último tópico, que analisa as classes sociais presentes no movimento “Fora Collor”, é ilustrativo a esse respeito.

1Lucas Massimo ([email protected]) é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná, e editor executivo da Revista de Sociologia e Política.

O segundo capítulo assinado por Armando Boito Jr. analisa a recomposição dos interesses empresariais entre os mandatos de FHC e o governo Lula. A sua análise trata especificamente de um tema que vem ocupando diversos textos do autor, as bases sociais do neodesenvolvimentismo. A ideia é que a hegemonia que o capital financeiro internacional exerce na política econômica se transforma quando o governo Lula investe na criação e no fortalecimento de grandes grupos econômicos nacionais. A sutileza do argumento aparece na natureza desta transformação: a nova frente de in teresses neodesenvolv iment is tas não a l i ja simplesmente os grupos bancários de seus vultosos ganhos com o modelo econômico neoliberal; ao invés disso o argumento denota uma reacomodação dos interesses industriais dentro deste modelo. O foco do capítulo recai, exatamente, nas tensões e contradições com que ocorre este reposicionamento do empresariado industrial brasileiro dentro do modelo econômico, pois o fortalecimento de importantes setores industriais não impede que outras frações da classe empresarial mantenham uma cerrada oposição à administração petista. Para demonstrar empiricamente como ocorre a recomposição da malha empresarial entre a década de 1990 e os anos 2000 o autor apresenta dados do DIEESE, e analisa informações provenientes do BNDES, como foco no fortalecimento dos grupos empresariais classificados como “burguesia interna”. As evidências da adesão deste segmento do empresariado ao governo Lula são obtidas, majoritariamente, na “Revista da Indústria”, que foi reeditada com a nova diretoria da FIESP, em 2004.

O terceiro capítulo analisa o setor de telecomunicações no Brasil, durante os anos 1990 e os anos 2000. De modo semelhante aos capítulos precedentes, Sávio Cavalcante correlaciona a política econômica neste setor com os rearranjos ocorridos entre grupos empresariais durante os governos de FHC e Lula. Por se tratar de uma análise setorial, o autor faz uma importante contextualização da internacionalização das telecomunicações nos anos 1970 e da crise do modelo de Estado que culminará, mais tarde, no neoliberalismo. Isso é necessário para compreender a intensidade das contradições que se abatem durante a década de 80 sobre o modelo nacionalista de crescimento econômico, e, posteriormente, da profundidade das privatizações que ocorreram nos anos 1990.Tendo elaborado este pano de

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (69 - 71)

RESENHA

Page 68: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

70 -

fundo, o autor discute as disputas entre interesses empresariais nacionais e estrangeiros pelo controle da telefonia fixa e móvel durante na década de 90, na conjuntura das privatizações. Tal como no capítulo anterior, Cavalcante analisa a recomposição dos grupos empresariais nacionais sob a tutela do BNDES, nos governos Lula – ainda que, segundo ele, no caso do setor de telecomunicações, a modificação do controle acionário não tenha alterado a lógica que prevaleceu durante o governo FHC. As evidências trazidas neste capítulo são, na maioria, provenientes de bibliografia especializada, mas aqui existem alguns dados provenientes de fontes primárias (DIEESE e BNDES), e, de forma mais circunstancial, matérias veiculadas em jornais de grande circulação.

Os três capítulos colocam em primeiro plano a unidade e a recomposição dos interesses de grandes grupos empresariais nos governos FHC e Lula. Chama a atenção do leitor o predomínio de um modelo analítico que procura explicar as diferenças entre a articulação de interesses nos anos 1990 e 2000 com o reposicionamento da “burguesia interna” frente “burguesia compradora”. A ideia é que as disputas entre grupos empresariais devem ser analisadas como disputas de frações de classe burguesa pela hegemonia no bloco no poder em uma administração e na outra. O modelo não é linear, pois procura a todo momento dar conta das contradições com que os interesses econômicos se fazem prevalecer em cada conjuntura ao longo das duas décadas.

A partir do quarto capítulo o livro abandona a análise das classes dominantes, e passa a se ocupar de grupos que se definem menos pelo seu aspecto econômico, e mais pela sua expressão política e social. O quarto capítulo discorre sobre as bases sociais do movimento altermundialista, denunciando a pertença dos membros do Fórum Social Mundial e da ATTAC à setores de classes médias. Trata-se de uma denúncia, sem mais, porque não existe uma discussão conceitual sobre a categoria de análise que organiza a reflexão (tanto é assim que ela aparece de forma confusa no último parágrafo do texto). Este capítulo destoa bastante da coletânea pela debilidade das evidências empíricas trazidas para caracterizar o objeto em questão.

O segundo tema abordado pela coletânea, as contradições no seio das classes trabalhadoras, aparece de fato no quinto capítulo, com análise que Andréia Galvão faz do movimento sindical nos governos Lula. O texto contém um exame ponderado da atuação política das principais organizações de trabalhadores no Brasil, observando o impacto que as reformas sindical e trabalhista realizadas neste governo produziram sobre as centrais sindicais. Ela analisa também por quais razões as duas principais centrais sindicais, CUT e Força Sindical, se deslocaram de uma posição crítica para o apoioao governo Lula, e como esse movimento alterou a dinâmica entre as cúpulas e as bases das organizações. O capítulo também examina as consequências desse realinhamento para o próprio movimento sindical, “desencadeando um processo de cisão e promovendo a criação de novas organizações: a Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas), em 2004, e a Intersindical, em 2006” (p. 187).

Do ponto de vista empírico é preciso destacar o amparo em sólidas evidências documentais, extraídas do censo sindical do IBGE, de dados do DIEESE, de dados oficiais do Ministério do Trabalho e Emprego, de informações coletadas junto às próprias centrais sindicais, e de uma pesquisa levada à termo durante o I Congresso Nacional da Conlutas, em 2008 – além é claro da bibliografia especializada.

O sexto capítulo, assinado por Paula Marcelino, traz os resultados de uma pesquisa realizada junto aos trabalhadores terceirizados da Replan, em Paulínia. O texto parte da contextualização da estrutura sindical e da reestruturação produtiva ocorridas na Petrobrás, durante os anos 1990, para analisar a divisão das funções em uma refinaria, e o papel desempenhado pela subcontratação na organização da força de trabalho. O capítulo produz um relato minucioso sobre a atuaçãodas lideranças do Sindicato da Construção Civil de Campinas e Região, apresenta dados obtidos em entrevistas semiestruturadas realizadas com trabalhadores da Replan, e uma cuidadosa análise documental sobre os recursos humanos da Petrobrás. Estas evidências resultam no (contra intuitivo) achado de que a representação sindical de trabalhadores terceirizados não é necessariamente fragmentada. A autora demonstra por diversas frentes de dados empíricos que em um contexto de crescimento econômico e expansão da Petrobrás, mas, também, de ataque aos direitos dos trabalhadores, os “terceirizados lograram conquistas importantes e cumulativas em termos salariais e de condições de trabalho” (p. 224), e que tais ganhos devem ser analisados tendo em vista a configuração das relações de trabalho e a ofensividade da ação do sindicato.

Os sétimo e o oitavo capítulos analisam a atuação de organizações de trabalhadores desempregados nos anos 2000. No capítulo de Carolina Figueiredo e Davisson Souza aparece uma discussão sobre como ocorre a representação e a organização dos desempregados no Brasil. A análise parte de algumas distinções presentes nos textos clássicos do marxismo para, a partir deles, elaborar critérios de classificação da força de trabalho “excedente” (os critérios são “parcela flutuante, “parcela latente”, “parcela estagnada” e “lumpemproletariado”). Segundo Figueiredo e Souza, “a camada pauperizada perpassa todas as instâncias da superpopulação relativa e está constituída pelo sedimento que 'vegeta no inferno da indigência' (como os mendigos e os chamados incapacitados para o trabalho, que compõem o 'asilo de inválidos' da classe trabalhadora)” (p. 284). Este capítulo discute algumas controvérsias metodológicas na produção de dados sobre esta população, demonstrando como o contingente de trabalhadores desempregados varia, em 1999, de 7,64% da PEA, na mensuração pelos critérios do IBGE, para 21,35%, na medida do DIEESE.

Este rigor analítico também está presente na comparação que Elaine Amorim realiza, no oitavo capítulo, entre os movimentos de desempregados na França e na Argentina. O trabalho consiste em singularizar a atuação política dos desempregados tendo em mente como “a posição diferenciada destes países no

RUMOS PARA A PRODUÇÃO DE EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS SOBRE A POLÍTICA E AS CLASSES SOCIAIS NO BRASIL

Page 69: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

- 71

centro e na periferia do capitalismo influenciou na forma pela qual as políticas neoliberais repercutiram sobre as classes trabalhadoras” (p. 322). Assim, o trabalho coloca em primeiro plano a dimensão organizacional de movimentos que, atuando em condições muito díspares, foram capazes de obter expressão nacional. A análise comparada nestes dois países permitiu à autora discutir algumas características da situação dos desempregados no Brasil. Complementando a análise do capítulo anterior, que se concentrava na organização interna do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), o exame feito pela autora sobre as consequências de duas trajetórias bem diferentes de reestruturação produtiva (a francesa e a argentina) permite compreender traços da configuração do mercado de trabalho brasileiro, e o significado que nele assume a situação do desemprego. Segundo Amorim “no Brasil, o desemprego não ocorre somente em certas fases da história pessoal, mas é uma situação que se repete ao longo de toda trajetória profissional; em certos casos perdura por longos períodos, a ponto de o desempregado não se identificar como tal, porque, de certo modo, continua realizando trabalhos informais e não tem mais esperanças de encontrar um emprego registrado” (p. 356).

A coletânea se encerra, no nono capítulo, com uma análise dos movimentos dos sem-teto em São Paulo. Neste último capítulo Francini Hirata e Nathalia Oliveira promovem uma avaliação do programa “Minha Casa Minha Vida”, tendo em vista o severo déficit habitacional brasileiro e o desenho institucional da política pública para este setor. O capítulo também traz resultados sobre uma pesquisa realizada com três movimentos sociais que atuam na cidade de São Paulo (o Movimento de Moradia do Centro, o Movimento Sem-Teto do Centro e o movimento dos Trabalhadores Sem Teto). Este capítulo discute as continuidades e as diferenças que persistem na base das famílias organizadas pelos três movimentos, e como sua atividade se insere em um contexto de enorme descompasso entre demanda e oferta de habitações em São Paulo, bem como, as consequências que as ações do poder público tiveram sobre a dinâmica do movimento. Na frente empírica, o capítulo apresenta algumas inovadoras soluções metodológicas encontradas na realização da pesquisa, que se deparou com a flagrante ausência de registros sobre as ações realizadas pelos movimentos – com exceção da cobertura jornalística da grande mídia. Diante disso o texto apresenta os resultados de um levantamento sobre as entradas encontradas em arquivo de jornais, e chega a resultados importantes acercada diacronia das ocupações, que são cotejados com a aproximação de lideranças dos movimentos com o aparelho de Estado, seja pela arena eleitoral (candidaturas à câmara dos vereadores), seja através de sua participação no Conselho Municipal de Habitação.

Como procuramos destacar, a principal característica deste livro é a submissão do arcabouço conceitual orientado pela categoria “classe social” ao teste da observação empírica. Deste ponto de vista, o livro deve ser lido como parte de uma disputa realizada no campo acadêmico brasileiro acerca de como se deve fazer a sociologia dos grupos sociais. A saudável disposição

História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (69 - 71)

para o debate já aparece na apresentação do livro, quando os organizadores afirmam que “a política, nas orientações dominantes, tem sido concebida como uma atividade destacada do restante da sociedade; sua análise dispensando, por isso mesmo, a consideração sistemática da e economia e da estrutura social que formam o entorno da atividade e das instituições políticas” (p. 08). Cabe ao leitor avaliar o êxito da empreitada, mas é notório como o esforço desta obra para operacionalizar o conceito de classe social foi realizado com uma desnecessária indiferença com relação às modernas técnicas de pesquisa disponíveis no campo da estratificação social. Essa ausência é contraproducente, pois é inequívoco que cada pesquisador está propondo a operacionalização empírica de um modelo de análise. Contudo, ao fazê-lo sem o treinamento técnico adequado, acaba por desperdiçar um enorme esforço em algumas tarefas que, atualmente, podem ser feitas com o auxílio de ferramentas relativamente simples, e muito eficazes. O aperfeiçoamento dos procedimentos de coleta e tratamento das informações pode confirmar o acerto do modelo teórico proposto. Esse investimento em técnicas de pesquisa certamente fortalecerá a agenda teórica defendida pelos autores, na medida em que abre novos canais de diálogo com pesquisadores filiados a correntes sociológicas não marxistas, haja vista os achados empíricos discutidos neste livro.

Resenha recebida em 30.3.2014Aprovada em 2.5.2014

Page 70: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Normas para os autores

1. A revista História & Luta de Classes [[email protected]] nasceu em tempos de domínio social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da História e das Ciências Sociais. Ela procura servir como ferramenta de intervenção de historiadores e produtores de conhecimento que se recusam a aderir e se opõem ativamente a essa dominação.

2. Os objetivos da revista História & Luta de Classes estão expressos na "Apresentação" do seu primeiro número. Eles definem os marcos referenciais para os interessados em colaborar com a revista ou propor sua integração ao coletivo da revista.

3. A revista está aberta a propostas de colaborações, reservando-se o direito de exame dos textos enviados espontaneamente à redação. Sem exceção, todos os artigos serão submetidos a parecer.

4. A revista História & Luta de Classes dirige-se aos estudantes e professores de história e ciências sociais, em especial, e ao grande público interessado, em geral. Sem concessões de conteúdo, na forma e na linguagem, os autores procurarão que seus artigos alcancem o mais vasto público leitor.

5. Os artigos devem ser enviados em arquivo anexado em formato Word para o endereço [email protected]. Os textos enviados deverão ser inéditos, no relativo à publicação impressa, e não excedendo os 35.000 caracteres, contando notas de rodapé e os espaços em branco. Os originais deverão conter título (em português e inglês), nome do autor filiação institucional (universidade, escola, sindicato, etc.), resumo e abstract de 5 a 10 linha, 3 palavras-chave/key-works e versão em língua inglesa do título.

6. Resenhas, com um máximo de 16.000 caracteres, seguirão as mesmas regras.

7. Referências bibliográficas completas deverão constar em nota de rodapé (e não ao final do texto), obedecendo à seguinte formatação:

7.1. Livros: SOBRENOME, Nome. Título em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex.: CAPITANI, Avelino. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. p. 123.

7.2. Capítulo de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome (org.). Título do livro em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex: BROUÉ, Pierre. O fim da Segunda Guerra e a contenção da revolução. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo: Xamã/FFLCH-USP, 1995. p. 22.

7.3. Artigo de periódico: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Nome da revista em itálico, v. (volume), n. (número), mês e ano de publicação, página citada. Ex.: BARRETO, Teresa Cristófani; GIANERA, Pablo; SAMOILOVICH, Daniel; Piñera, VIRGILIO. Cronologia. Revista USP, n. 45, out. 2000. p. 149.

8. As citações de outros textos deverão estar entre aspas duplas no corpo principal do texto e a referência bibliográfica correspondente deve ser colocada em nota de rodapé. Não devem ser utilizadas marcas de tabulação para formatar o artigo, seja no texto principal, seja nas notas de rodapé.

9. A revista aceita artigos em língua espanhola, os quais poderão ser traduzidos para a língua portuguesa ou publicados na forma original, a critério da revista. Artigos inéditos em outras línguas poderão ser aceitos excepcionalmente e serão sempre traduzidos.

Próximos Dossiês:

Número 19 – Crítica Historiográfica. Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.08.2014.

Número 20 – Exploração e Opressões. Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.03.2015.

Número 21 – Questão Urbana e Políticas Públicas. Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.08.2015.

Número 22 –Internacionalismo e Luta de Classes. Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.03.2016.

Número 23 - Escravidão - Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.08.2016.

Também serão aceitas proposições de artigos e resenhas sobre temas livres, além da temática estabelecida para cada dossiê. Neste caso, a sua publicação se dará de acordo com o fluxo de artigos recebidos pela revista.

72 - NORMAS PARA AUTORES

Page 71: CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO