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O Teatro de Cordel de Chico de Assis

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O Teatro de Cordel de Chico de Assis

O Testamento do CangaceiroAs Aventuras de Ripió Lacraia

Farsa com Cangaceiro, Truco e PadreGalileu da Galileia

Chico de Assis

São Paulo, 2009

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  Coleção Aplauso

Coordenador Geral Rubens Ewald Filho

Governador José Serra

  Imprensa Ofcial do Estado de São Paulo

Diretor-presidente Hubert Alquéres

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Apresentação

Segundo o catalão Gaudí, Não se deve erguer monumentos aos artistas porque eles já o fze-ram com suas obras. De fato, muitos artistas sãoimortalizados e reverenciados diariamente por

meio de suas obras eternas.Mas como reconhecer o trabalho de artistasgeniais de outrora, que para exercer seu ofíciomuniram-se simplesmente de suas próprias emo-ções, de seu próprio corpo? Como manter vivo onome daqueles que se dedicaram à mais volátil

das artes, escrevendo, dirigindo e interpretan-do obras-primas, que têm a efêmera duraçãode um ato?

Mesmo artistas da TV pós-videoteipe seguemesquecidos, quando os registros de seu trabalhoou se perderam ou são muitas vezes inacessíveis

ao grande público.

A Coleção Aplauso, de iniciativa da ImprensaOcial, pretende resgatar um pouco da memóriade guras do Teatro, TV e Cinema que tiveramparticipação na história recente do País, tantodentro quanto fora de cena.

Ao contar suas histórias pessoais, esses artistasdão-nos a conhecer o meio em que vivia toda

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uma classe que representa a consciência críticada sociedade. Suas histórias tratam do contexto

social no qual estavam inseridos e seu inevitá-vel reexo na arte. Falam do seu engajamentopolítico em épocas adversas à livre expressão eas consequências disso em suas próprias vidas eno destino da nação.

Paralelamente, as histórias de seus familiaresse entrelaçam, quase que invariavelmente, àsaga dos milhares de imigrantes do começodo século passado no Brasil, vindos das mais va-riadas origens. Enm, o mosaico formado pelosdepoimentos compõe um quadro que reete aidentidade e a imagem nacional, bem como o

processo político e cultural pelo qual passou opaís nas últimas décadas.

Ao perpetuar a voz daqueles que já foram a pró-pria voz da sociedade, a Coleção Aplauso cumpreum dever de gratidão a esses grandes símbo-

los da cultura nacional. Publicar suas históriase personagens, trazendo-os de volta à cena,também cumpre função social, pois garante apreservação de parte de uma memória artísticagenuinamente brasileira, e constitui mais que

  justa homenagem àqueles que merecem seraplaudidos de pé.

Jos SerraGovernador do Estado de São Paulo

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Coleção Aplauso

O que lembro, tenho.Guimarães Rosa

A Coleção Aplauso, concebida pela ImprensaOficial, visa resgatar a memória da culturanacional, biografando atores, atrizes e diretoresque compõem a cena brasileira nas áreas de

cinema, teatro e televisão. Foram selecionadosescritores com largo currículo em jornalismocultural para esse trabalho em que a históriacênica e audiovisual brasileiras vem sendoreconstituída de maneira singular. Em entrevistase encontros sucessivos estreita-se o contato entrebiógrafos e biografados. Arquivos de documentose imagens são pesquisados, e o universo que sereconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessaspersonalidades permite reconstruir sua trajetória.

A decisão sobre o depoimento de cada um na pri-meira pessoa mantém o aspecto de tradição oral

dos relatos, tornando o texto coloquial, comose o biografado falasse diretamente ao leitor.

Um aspecto importante da Coleção é que os resul-tados obtidos ultrapassam simples registros bio-grácos, revelando ao leitor facetas que tambémcaracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e bio-

grafado se colocaram em reexões que se esten-deram sobre a formação intelectual e ideológicado artista, contextualizada na história brasileira.

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São inúmeros os artistas a apontar o importantepapel que tiveram os livros e a leitura em sua

vida, deixando transparecer a rmeza do pen-samento crítico ou denunciando preconceitosseculares que atrasaram e continuam atrasandonosso país. Muitos mostraram a importância paraa sua formação terem atuado tanto no teatroquanto no cinema e na televisão, adquirindo,linguagens diferenciadas – analisando-as comsuas particularidades.

Muitos títulos exploram o universo íntimo epsicológico do artista, revelando as circunstânciasque o conduziram à arte, como se abrigasseem si mesmo desde sempre, a complexidade

dos personagens.São livros que, além de atrair o grande público,interessarão igualmente aos estudiosos das artescênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutidoo processo de criação que concerne ao teatro,ao cinema e à televisão. Foram abordadas a

construção dos personagens, a análise, a história,a importância e a atualidade de alguns deles.Também foram examinados o relacionamento dosartistas com seus pares e diretores, os processos eas possibilidades de correção de erros no exercíciodo teatro e do cinema, a diferença entre essesveículos e a expressão de suas linguagens.

Se algum fator especíco conduziu ao sucessoda Coleção Aplauso – e merece ser destacado –,

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é o interesse do leitor brasileiro em conhecer opercurso cultural de seu país.

À Imprensa Ocial e sua equipe coube reunir umbom time de jornalistas, organizar com ecáciaa pesquisa documental e iconográca e contarcom a disposição e o empenho dos artistas,diretores, dramaturgos e roteiristas. Com aColeção em curso, congurada e com identida-de consolidada, constatamos que os sortilégiosque envolvem palco, cenas, coxias, sets de lma-gem, textos, imagens e palavras conjugados, etodos esses seres especiais – que neste universotransitam, transmutam e vivem – também nostomaram e sensibilizaram.

É esse material cultural e de reexão que podeser agora compartilhado com os leitores detodo o Brasil.

Hubert AlquresDiretor-presidente

Imprensa Ocial do Estado de São Paulo

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O Mais Menino de Nossos Irmãos

Mais Velhos

Havia muitos notáveis no 1º Encontro Nacionalde Alfabetização e Cultura Popular, que o go-vernador Miguel Arraes recepcionou em Recife.Era setembro de 1963. O nome que se desta-

cava era o de um educador, Paulo Freire. A ex-periência de alfabetização na pequena cidadede Angicos, baseada no que logo se espalhoucomo método Paulo Freire, contagiava aquelemomento singular de participação da sociedadena denição dos destinos do País. Apostavam-se as chas em um futuro em que Educação eCultura, juntas, fariam brotar gerações de ci-dadãos conscientes, participativos e com sólidaformação escolar e humanística. Para muitos

 jovens, ainda adolescentes, se Paulo Freire erao nome na Educação, na Cultura uma das refe-rências chamava-se Chico de Assis. Simples as-

sim. Chico de Assis. Nome tão comum, tão bra-sileiro, tão despido de solenidade. Francisco deAssis Pereira, eu soube depois, era o seu nomecompleto. Ele estava associado ao CPC – CentroPopular de Cultura nascido na União Nacionaldos Estudantes e à Canção do subdesenvolvido,

que servia de hino da nossa rebeldia juvenil. Aletra e o refrão repetitivo e fácil do Chico ga-nharam a parceria de Carlinhos Lira, que não se

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contentava com o amor e a or da Bossa Novacantados nos apartamentos de Copacabana e

Ipanema. A Canção do subdesenvolvido erauma crítica bem humorada à ação do imperia-lismo – não se falava em globalização ainda –em países de economia primitiva, transforman-do-os em meros fornecedores de matéria-primae mão de obra barata. Bertolt Brecht, em seus

melhores momentos panetários, seria parcei-ro de Chico de Assis e Kurt Weill assinaria comCarlinhos Lira a partitura descomplicada a ser-viço do discurso ideológico.

Na véspera da Primavera de 1963, o Brasil a que

fomos apresentados era o país dos sonhos detodos que lutavam contra a miséria e a igno-rância. As utopias, todas, se encontravam emRecife. Católicos, evangélicos, comunistas, ca-bia de tudo naquele caldeirão cultural. A poesiadas ruas convivendo com os versos de FerreiraGullar, Thiago de Mello e Moacyr Félix, cordel emamulengo se encontrando com Lope de Vegae os atores do Teatro de Arena de São Pauloem O Melhor Juiz, o Rei no palco histórico doTeatro Princesa Isabel.

Foi nesse cenário que me aproximei de Chico

de Assis. Eu e tantos estudantes secundaristas,adolescentes, que logo se identicaram com oseu discurso inamado, irreverente, desabrido.

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Chico ainda era muito jovem, mas nós mal tí-nhamos saído dos cueiros, daí a admiração poraquele paulistano que eu imaginava um nor-destino, vejam só. Não só porque os persona-gens do seu teatro são uma síntese do homembrasileiro, mas porque ele mesmo é síntese dobrasileiro típico, no corpo e no espírito. Comuma qualidade adicional intocada quase 50

anos depois – manteve-se menino, sempre, nãoimporta o que o tempo lhe acrescentou, nãoem rugas, que ele não as tem, mas em vivên-cias, as boas e as não tão boas.

Eu ainda não tinha idade para vê-lo estrear em

Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo ViannaFilho, com o elenco do Teatro de Arena emMarília, minha cidade em 1959. Em seguida,ele trocou São Paulo pelo Rio de Janeiro, ondecou até um ano depois do golpe militar de1964. Por isso, por um tempo a sua importância

se resumia na Canção do subdesenvolvido quealimentava as nossas utopias subversivas. Nãodemorou muito para eu descobrir as múltiplasartes do Chico. Ator, autor, diretor, músico, po-eta, jornalista, produtor e, acima ou por cau-sa disso tudo, um eterno estudante exercendo

seus ofícios no teatro, na imprensa, no cinema,na televisão, no rádio. Quando o reencontreiem São Paulo, no m dos anos 1960, criou-se

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entre nós uma relação fraterna que me leva aconsiderá-lo, hoje mais que em qualquer outromomento, um irmão mais velho, inquieto, pro-vocador e mais moleque que todos nós. Que oleitor me desculpe se não faço um texto objeti-vo, jornalístico e crítico sobre Chico de Assis e assuas peças de teatro. Não consigo falar dele se-não por esse viés da amizade que se fortaleceu

no trabalho, na convivência e na cumplicidadede tantos amigos comuns. Ripió Lacraia e todosos seus personagens de alma tão brasileira falammelhor do Chico como dramaturgo, um drama-turgo que jamais fez do teatro um exercício deauto-referência, um olhar para o próprio umbi-

go. Eu me contento em repisar o óbvio. Apesardos seus muitos talentos ele é, denitivamente,um homem de teatro. Porque é no teatro quebate mais forte o seu coração generoso.

Como dramaturgo, e por conta da inquietação

que não o deixava concentrar-se em um únicotrabalho, a sua indisciplina eu vi ser domadapelo diretor Ademar Guerra, que lhe propôs odesao de escrever Missa Leiga em 1971. A di-tadura militar fazia estragos com prisões, tortu-ras e repressão desenfreada. A liturgia da missa

católica oferecia a estrutura dramática perfeitapara a denúncia da violência. Para completar, oespetáculo aconteceria dentro de uma igreja, a

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da Consolação, no centro de São Paulo. Chicode Assis comprou o projeto de Ademar Guerra,que teria música original de Cláudio Petragliae produção de Ruth Escobar. Mas o tempo eracurto. Desta vez, Chico se aplicou e em doisdias concluiu a peça, para surpresa de Ademar.Surpresa sim, porque não foram poucas as ve-zes em que o diretor, para obrigá-lo a concen-

trar-se na escrita de um texto, principalmentepara televisão, trancou Chico no escritório deseu apartamento na Rua Padre João Manuel. Ecava na porta, feito cão de guarda, atenden-do telefone, brincando com Silvia, a lha pe-quena de Chico e Camila, levando água, café e

lanche para o dramaturgo que, a cada páginaconcluída, entregava o texto às observações dodiretor. Missa Leiga estreitou a nossa amizade,pois ali estreei como ator prossional. Vinteanos depois, em depoimento para a biograade Ademar, Chico ao falar do amigo falava de

si mesmo:  Ainda sinto sua presença incômodanos meus pensamentos, dizendo: Escreva e nãofale. Ademar oi o maior fscal de autores vaga-bundos do Brasil. Sílvio de Abreu se emendou,eu ainda não.

Na ausência de Ademar, coube ao Chico ser nãoum scal de autores e sim um semeador. Aonão deixar se perder o pioneiro Seminário de

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Dramaturgia do Teatro de Arena, do qual par-ticipou em 1958, ele mantém a sua fé no teatro

como agente de mobilização de ideias. Mais doque ensinar dramaturgia ou as suas regras, eletem sido um pensador do Teatro, contaminan-do de paixão os que estão à sua volta. É possívelque, nas últimas décadas, tenha estimulado atéo surgimento de novos dramaturgos. Mas não

parece ser este o objetivo que o move e sim fazerdo teatro um instrumento eciente para investi-gar e discutir a condição humana. Por isso, ecoaainda o testemunho do ator Francarlos Reis que,dias antes de morrer subitamente em abril de2009, participou de uma homenagem ao Chico

no teatrinho da Rua Teodoro Baima. Depois deouvir vários depoimentos comovidos de alunosde todas as idades, Francarlos resumiu: Não ui 

 seu aluno, Chico, mas eu quero agradecer o seuamor pelo teatro. Todos nós agradecemos.

Oswaldo Mendes

Outono de 2009

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Introdução

Por volta de 1957, caíram em minhas mãos 800livros de literatura de cordel. Eu nunca tinhalido nenhum deles, mas foi uma revelação.Encontrei naquelas obras ingênuas muito maisdo que uma diversão literária. Investiguei asestruturas e achei que boa parte da estéticapopular brasileira estava ali naqueles livros depoucas páginas e grande conteúdo. Eu já haviaescrito umas três peças teatrais quando intenteiuma trilogia de cordel baseada naqueles livros.

Na verdade, eu buscava a estrutura poética

de um heroi brasileiro. Assim foi que nasceuCearim, protagonista de  O Testamento doCangaceiro. Escrevi a peça sempre pensandono Lima Duarte, porque ele, para mim, foi odescobridor da estética do heroi rural brasileiro.Quando o Boal resolveu montar, no Arena, fui

correndo buscá-lo para fazer o papel.

A segunda peça da trilogia foi a busca de umaestrutura de épico-popular. Meu heroi, destavez, era todos e não era ninguém. Como se ashonras para um heroi popular não encontrassem

senão todos os homens e mulheres do povobrasileiro. O heroi coletivo era o principalagente da peça  As Aventuras de Ripió Lacraia. 

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Zé Renato Pécora dirigiu no Teatro Nacional deComédia e Agildo Ribeiro foi o Ripió.

Fechando a trilogia, um heroi fabuloso e cheiode causos, isso porque eu o inseri à estruturados causos populares. Xandú Quaresmaemergiu numa época de intranquilidade navida nacional. Eram os anos de chumbo da

ditadura de 64. Fiz dele um preso, pois os presospolíticos eram as pessoas mais importantes dopaís. A peça ganhou uma estrutura de farsaacrescentada ao cordel e ao épico popular.O título explica mais um pouco:  Farsa comCangaceiro, Truco e Padre. Meu heroi, desta

vez, foi vivido por um garoto que se iniciavano teatro, mas que já mostrava o talento quetinha. Antonio Fagundes viveu Xandú, comseus causos e mentiras. Afonso Gentil dirigiu apeça no Teatro de Arena.

Além do trabalho experimental, uma peça

surgiu da trilogia. Agora meu heroi era GalileuGalilei. Usei a essência do cordel de empregargrandes personagens em suas histórias. Masmeu Galileu não poderia ser senão da Galileia,com toda a sua prosopopeia. Meu heroi, agora,era representado pelo ator Carlos Meceni,

Emílio Fontana dirigiu a peça no Teatro daPraça.  Galileu da Galileia,  além de todas asestruturas que eu havia já experimentado na

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trilogia, tinha a dimensão da rima popular. Erauma peça em verso. Verso caótico.

A edição dessas peças é um presente que ganhoda Imprensa Ocial. Mas devo agradecer muitoa duas pessoas amigas, ao Rubens Ewald Filhoe à Eliana Iglesias, pelo que está acontecendoagora.

Chico de Assis

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O Testamento do Cangaceiro

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Não é uma peça antirreligiosa.

É uma peça contra a ome e a exploração.

E será, portanto, contra todas as instituiçõesque pregam a passividade

do homem e das classesdiante do problema da exploração

do homem pelo próprio homem.

Chico de Assis

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O Testamento do Cangaceiro

(Os Perigos da Bondade e da Maldade)

Original de Chico de Assis

Personagens:Contador

CearimMadrinhaO CegoCangaceiroO CaboO Sargento

A ProstitutaErcíliaO SacristãoO VigárioO irmão do CangaceiroO Bodegueiro

O CachorroOs camponesese mais ninguém, apenas um Narrador

Obs.: O papel do irmão do Cangaceiro poderáser interpretado pelo mesmo ator que zer o

Cangaceiro. O papel do Bodegueiro poderáser interpretado pelo Narrador. Os camponesespoderão ser atores dobrando papéis.

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Montagem pelo Teatro de Arena de São Paulo,em 1961

Direção: Augusto BoalCenário e Figurinos: Flávio ImpérioMúsica: Carlos Lyra

Intrpretes:

Cearim – Lima DuarteMadrinha – Vera GertelO Cego – Arnaldo WeissCangaceiro – Milton GonçalvesO irmão do Cangaceiro – Milton Gonçalves?O Cabo – ?O Sargento – ?A Prostituta – Riva NimitzErcília – ?O Sacristão – Solano RibeiroO Vigário – ?O Bodegueiro – Nelson XavierNarrador – Nelson Xavier

O Cachorro – Henrique Cesar

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Primeira Parte: Os perigos da bondade

CENA 1 PRLOGONo escuro, entra a gravação ou “vivo” da cançãoEra Uma Vez.

CORO – (Canta) Era uma vez...Era uma vez...

Era uma vez uma históriaEra uma vez uma históriae dentro da históriatinha outra históriaEra uma vezDentro da história

da históriada história da históriaTinha uma porção de históriaEra uma vezEra uma vezEra uma vez

NARRADOR – Era uma vez uma históriae dentro da história tinha outra históriae dentro da história da históriatinha mais uma porção de história.

Quem contou? Quem contou foi certo velho,

certo dia em certa estrada,na qual fazia seu caminho,em tempo muito passado.

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Lembrança boa guardei, tique por tique,os acontecimentos da narração.História muito interminável,entremeada nos dramas das peripécias.

Povoada de um despotismo de personagens,tanto mais muito como na sagrada escritura.História que de tão grande,

pra contar de inteira havia de passar mais de anosem nem para pra comer ou dormir.

NARRADOR – Não guardo de meu uso. Conto.Faço mesmo gosto de contar e recontar.Só por diversão de ver as caras mudarem de jeitoquando a história muda de jeito.

Escolho as partes curtas,que dão bom lugar de começo, meioe um bom ponto certo de paragem...Fim? Não... que só com morte ou cataclismo.

Então eu conto:Era uma vez um lugar muito tristeperdido nos longes do sertão.Nos meses de verão a chuva deixava de cair.

Os rios secavam e a terra rachava.Mas apesar disso havia gente

que vivia ali trabalhando a terrae muitas vezes sucumbia ao correr da estiagemde fome, de sede, de espera.

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Durante uma dessas secas, um moço lavrador denome Cearim...

CENA 2 CEMITéRIOCearim entra e se ajoelha diante do túmulodos pais.

NARRADOR – ... perdeu seus velhos pais que

não aguentaram tantos meses de sofrimentoe privações.

O pobre moço se encontrou só no imenso deserto.Tinha resolvido deixar aquele lugar! para sempre,não queria mais estar ligado àquela terraque só havia lhe dado desgostos e sofrimento.

Porém a paisagem era por todos os ladostão desoladoraque não soube o qual caminho tomarquando então...

Cearim está sem saber o que fazer.

CEARIM – Ah meu Senhor, como é que a gentepode car assim tão só e triste. Mas tudo é certona vontade de Deus. Bem dizer meu pai e minhamãe estão na felicidade eterna... Mas assim mes-mo é tão triste. Por que é que tem que ser assim?

Trabalho e mais trabalho e no m tristeza e maistristeza. A gente pegou de ser trabalhador e bome cai nesse car triste. Nunca z mal, nunca. Nem

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pra gente, nem pra bicho, nem de pensamentoescondido, nem de raiva, nem de nada nenhum...De bem que tenho na vida danada a promessado céu. Ah meu bom senhor, por que assim tãotriste eu tenho que car.

Aparece a visão da Madrinha envolta em luzazul. Cearim, com medo, esconde o rosto entre

as mãos.

MADRINHA – Por que te escondes, meu lho? Nãotenhas medo nem susto, estou aqui pra te ajudar.

Cearim levanta a cabeça devagar até encarara visão.

CEARIM – Quem é a senhora?

MADRINHA – Sou tua madrinha. Quando nas-ceste, tua mãe me fez voto e promessa.

CEARIM – Bênção, madrinha...

MADRINHA – Deus te abençoe. O que queres?

CEARIM – Uma porção de coisas, posso pedir?

MADRINHA – Pode meu lho...

CEARIM – Que meus pais a quem acabei de darenterramento voltem à vida.

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MADRINHA – Meu lho, a vida é Deus quemdá mas os viventes é que se encarregam dela ecada qual gasta a sua como quer. Depois, todo ovivente é mortal... Isso eu não posso fazer.

CEARIM – Então queria que parasse a seca e caísseuma chuvarada bendita e que então tudo virasseverde de novo e assim casse para sempre.

MADRINHA – Também não está no meu poder,as nuvens não obedecem aos santos. Só mesmoesperando... Quem sabe se um dia chove.

CEARIM – É... Quem sabe... Pelo menos queriaentão que a madrinha mandasse um castigo parao Coronel dono dessas terras, que o danado tãologo parou de chover se escapou pra cidade dei-xando a gente meio com fome, meio com sede,meio morrendo. Bem que a madrinha podiamandar uma praga bem forte naquele lho deuma égua, que desse nele um quebrante dessesde cair braço e perna, olho...

MADRINHA – Ohhhh! Que é isso, meu lho? Issonão é pensamento de cristão, não é coisa de lhode Deus, essa raiva e essa revolta. Pense que seele fez mal, terá um dia seu castigo.

CEARIM – Bem que a madrinha podia dar umaapressadinha no castigo dele...

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MADRINHA – Limpa teu coração desses pensa-mentos de pecado. Sê bom e puro, e sempreas coisas do mundo te farão feliz... O mundo ésofrimento, mesmo assim é a lei. É preciso viverde acordo com os ensinamento da religião parapoder salvar pelo menos a alma.

CEARIM – Amém madrinha... Mas é que na preocu-

pação de salvar a alma o corpo acaba se danandode uma vez. Ainda aqui estão meu pai e minhamãe que morreram a bem dizer de eito, madrinha.E lá está o Coronel, gordo que nem um capão navida regalada e nem por isso deixa de ir na missapensando na salvação. Eh madrinha, entre salvar a

alma danando no eito e salvar a alma balançandonuma rede, a madrinha tem que convir que salvara alma balançando numa rede é muito mais arre-galado e isso sem deixar de ser um cristão.

MADRINHA – Meu alhado Cearim, os pedidosque me zeste não posso conceder... Só o que

posso fazer é te dar muita alegria e conança,isso se continuares com a bondade no coração.Segue tua vida com a alma pura e sem pecado esempre te ajudarei como posso e se alguma vezte encontrares em diculdades, clama por mimque virei ter contigo... Vais deixar tua terra?

CEARIM – Pois se nada mais resta a fazer poraqui, só se casse chorando tristeza até sucumbir.

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Quero tentar minha sorte e fortuna em algumoutro lugar por aí, na cidade talvez. A madrinhapodia me ensinar o caminho?

MADRINHA – Ih meu lho, eu não sei... Mas senão me engano, seguindo o leito seco do rio iráster em uma cidade próxima.

CEARIM – Pois então a madrinha me desculpe,eu peço a bênção e me retiro, pois tenho poucaágua e menos ainda comida e pelo jeito, assimsem saber ao certo, a caminhada pode ser longa.

MADRINHA – Te parecerá curta se estiveres

alegre. Vai, meu lho, com a minha bênção ea minha proteção. Sê bom e puro, cona noshomens de bem e nos humildes, ajuda sempre aquem puderes e serás ajudado. Faz o bem e re-ceberás em dobro... Até um dia, adeus... Cearim,precisando de alguma coisa e só chamar.

A visão desaparece. Cearim abana a mão, dizen-do adeus, e logo, carregando a cruz do túmulo,começa a caminhar cantando.

CEARIM – (Canta) Pé na estrada caminhando

Felicidade vou buscarVou seguindo meu caminhoUm dia vou encontrar.

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Lugar bonito, bonitode gente boa e feliz

lugar bonito, bonitodo jeito que eu sempre quis.

Pé na estrada caminhandoAlegria no coraçãoVou com Deus Virgem MariaTenho muita proteção.

CENA 3 CEARIM VIRA TESTAMENTEIRO DOCANGACEIRO

NARRADOR – E lá se foi nosso Cearim,batendo marcha no leito do rio seco, feliz da vida.

Cearim que já era bom, bom, bom, muito bom;ainda tinha no coração um pouco, muito pouco,de maldade,mas depois das sábias e felizes palavras da suasanta madrinha,seguiu cantando em busca da felicidadeque, em sendo bom, havia de alcançar.

CANGACEIRO – (Em off ) Aiiiiiiii! Me acuda,eu morro.

Entra o Cangaceiro, todo armado, cambaleando.

CANGACEIRO – Pelo amor de Deus que eu morro!

CEARIM – Já tem ajuda, o que é que lhe corre?Está mal?

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CANGACEIRO – Estou é mal ferido. (Enfa a mãono peito e mostra o sangue)

CEARIM – Nossa Senhora!... O que sucedeu?

CANGACEIRO – Fui tocaiado por um inimigo, hámuitas horas que venho errando nestes ermos,carregando o balaço até que não aguentei mais.

CEARIM – Ainda dói muito?

CANGACEIRO – Nem mais... Estou mesmo nahora, um pé na terra e outro no inferno, atésinto o calor. Ouve moço, é um último pedidode um moribundo, é preciso que me dê ajuda.

CEARIM – O que tiver nas minhas posses...

CANGACEIRO – Vivi uma vida danada de canga-ceiro matador, estou nando na morte, é horade arrependimento... Abra meu farnel, tire tudoo que tem dentro.

Cearim vai tirando do farnel uns sacos de di-nheiro, um crucixo e, nalmente, um retrato.

CANGACEIRO – Cortando o leito do rio secoexiste uma estrada, passando por ela se chega

à cidade... Por favor, procure a moça do retrato,é uma pobre que eu infelicitei e deixei penarno abandono. Dê a ela um desses sacos de

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dinheiro... Depois vá à igreja e com o dinheirodesse saco mande rezar uma missa pela minhaalma. Procure por aquelas bandas meu irmão...É um cangaceiro perigoso mas mostrando estacarta, será bem recebido... Entregue a carta ediga que quem me matou foi o Juca Felicidade...à traição... Pegue minhas armas e meu chapéu e

mande benzer... O outro saco de dinheiro é paravocê em paga do seu ajutório e em cumprimentoda minha vontade... Ai, me dê o crucixo.

O Cangaceiro, depois de beijar o crucixo, bateas botas.

CEARIM – Bateu as botas.

Cearim apanha as coisas do Cangaceiro e começaa caminhada.

CEARIM – (Cantando)Pé na estrada caminhandoFelicidade buscarPromessa de cangaceiroVou na cidade pagar.Pé na estrada caminhando

Alegria no coraçãoVou com Deus Virgem MariaTenho muita proteção.

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CENA 4 CEARIM é ROBADO PELO CEGO VIDENTE

NARRADOR – E Cearim carregou com os trastesdo cangaceiro pelo caminho da cidade.Os conselhos da Madrinha tinham sido de gran-de valia.Mal praticara o bem e já a paga no momentoseguido se fez ver...

Entra o Cego com o bordão, tateando no ar.

CEARIM – Quem é o de lá?

CEGO – Um pobre cego que se perdeu nos ca-minhos.

CEARIM – Pois como então um cego sem visãose põe de andarilho nestes caminhos perdidos?

CEGO – Vinha pela estrada, tenho o costumede longas caminhadas, mas há três dias não seipor obra do que me perdi e já não sei onde meencontro.

CEARIM – Pois foi uma sorte ter dado comigo.Por estes lados não se vê nem homem nem plan-ta, nem bicho. Para onde caminha?

CEGO – Pra cidade aí perto... Ah estou sentindoum cheiro bom de carne com farinha mais pãode macaxeira e mais dois pedaços de rapadura.

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CEARIM – Nossa, que me admiro que um cegoaté contar possa pelo cheiro...

CEGO – Quem conta não sou eu que sou umpobre cego, mas uma fome maldita.

CEARIM – Pois tome seu cego, coma e beba àvontade, o quanto quiser. Tem pouco, mas dá

para acomodar uma fome.

O Cego avança na comida.

CEARIM – Vamos lá seu cego, não que commodos de comer pouco para sobrar, ainda tenhomais um pedaço de carne e acho que amanhãsem tardança estou topando com a cidade...

CEGO – Se vai à cidade, também podia fazera caridade de me levar junto, assim não passo operigo de me perder novamente.

CEARIM – Pois se é até melhor ter companhiana viagem. O caminho parece menos penoso.Mas só vou sair com o sol, é perigoso o caminhona noite.

CEGO – Pra mim é o mesmo que não tenho outra

coisa senão a noite, mas trago canseira de dias,podemos passar a noite aqui mesmo e depoisamanhã a gente segue caminho.

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Então, os dois se aprontam para dormir.

CEGO – (Canta) E que Deus nas alturasvele por nósque estamos no chãoe somos cristãos.

CEARIM – E a Virgem Maria.

O Cego dorme. Cearim tira o retrato da moçado farnel e olha.

NARRADOR – E o bom Cearim mais o cegoseu protegidose aprumaram para puxar o sono

pela noite calma e de grande lua.E no dorme quase dormindoCearim olhou o retrato da moçae embarcou num sonho bonito emcompanhia dela.

Cearim dorme com um sorriso.

NARRADOR – Tudo estava certo e calmo... Quan-do o cego...

O Cego se levanta, olha para os lados e vai rou-bando tudo. Depois, foge de manso.

NARRADOR – E Cearim seguiu dormindoaté que os primeiros raios de solbateram em seu rosto mandando acordar.

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Cearim acorda, espreguiça e olha em torno. Dápela falta do Cego e das coisas.

CEARIM – Oi seu Cego... Ceguinho, onde está?Cego! Fugiu, danado!

CENA 5 A MADRINHA, DE NOVO

Cearim se atira ao solo, desesperado. Ajoelha-see chama:

CEARIM – Madrinha! Madrinha venha logo queé de muita precisão!

A Madrinha aparece.

CEARIM – Ah, Madrinha ainda bem que a se-nhora veio no mesmo instante que fui roubadopor miserável cego e o mais pior é que o tantoroubado nem meu era e mais ainda que era parapagar promessa de um que já morreu.

MADRINHA – Pois se ponha atrás do ladrão Cea-rim! Corra, corra, quem sabe se ainda alcança.

Cearim sai correndo e logo volta.

CEARIM – Mas se eu nem sei que rumo tomou

o tal! Será que a Madrinha não podia dar umavoadinha por aí e vê se acha o cego pra mim. Doalto é certo que se vê melhor.

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MADRINHA – Isso é assunto terreno no qualeu não posso interceder. Você é quem temque procurar.

CEARIM – Ah, Madrinha, mas se foi seguindo osseus conselhos de ser bom que eu me meti nessae acabei roubado pelo cego...

MADRINHA – Tenha fé, Cearim!

E dito isso, a visão desaparece. Cearim, fulo deraiva, cospe na mão, o cuspe pula na batida, eele segue na direção da sorte.

CENA 6 CEARIM ALCANA O CEGOLogo topa com o cego dormindo.

CEARIM – Cego de olho comprido e perna curta,nem esperava que viesse em seu encalço.

Cearim ameaça com o coice da arma o rosto docego, que recua.

CEARIM – E nem cego é, o danado... Devia...(Tira o chapéu para o céu) Deus me perdoe... erate meter chumbo no bucho... E nem cego é, o

danado... Cego de às vezes, isso sim, em outrasum vidente muito assanhado pra meter a mãonas propriedades alheias.

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CEGO – Pelo amor de Deus, pensa que eu podiater te matado enquanto dormia.

CEARIM – Era só o que faltava. Depois de comerminha comida, beber minha água e me roubartudo o que tinha, ainda me matar.

CEGO – Tenha piedade de mim... Olhe que Deus

ajuda a quem perdoa...CEARIM – É, isso é uma coisa que está certa...Mas vai carregar as armas e o farnel até chegarna cidade.

O Cego vai passando a mão na espingarda.

CEARIM – Menos essa espingarda, que eu levocomigo, pra criar respeito e obedecimento. Péno caminha e não se faz de diferente que eu tearrebento o osso do mucumbu. Vai tocando...

CEARIM – (Canta) Pé na estrada caminhando

Felicidade buscarPromessa de cangaceiroVou na cidade pagar.Dedo rme no gatilhoQue é para ninguém me roubarSe Deus não cuida de seu lho

Ele tem que se cuidarPé na estrada caminhandoAlegria no coração

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Vou com Deus Virgem MariaTenho muita proteção

Mas ainda vou de quebraCom a espingarda na mão.

E Cearim e o Cego vão caminhando.

CENA 7 CEARIM E CEGO NA DELEGACIA

NARRADOR – E caminharam toda a noite.Cearim sempre de olho vivo no cego.No dia seguinte avistaram a cidade.Anal Cearim havia chegado.

CEARIM – Vem lá em baixo um miliciano da po-

lícia, deve ser por causa das armas.

CEGO – E pois é, segura aí um pouco... (Larga asarmas na mão de Cearim) Me acuda, me roubaramtodo o meu dinheiro e querem me matar! Socor-ro... Ajutório! O que aconteceu com um cego um

pobre cego vinha pela estrada com um dinheirinhoque é toda a minha fortuna quando foi assaltadopor um que se disse cangaceiro...

CABO – Esteja calmo seu cego! A lei já tomouconta do litígio.

CEARIM – É mentira, dona lei... Ele não é cegonada e nem eu também num sou cangaceiro...Prenda o falso cego e me solte.

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CABO – Uma verdade com dois donos é um casomuito especial e delicado, acho mais segurolevar os dois na presença da autoridade legal ecompetente, que lá tudo se resolve... Nem umapalavra, nem o cego e nem o outro e vamos to-cando essa dúvida atropeçada pro julgamentodo sargento.

E vai levando os dois para o xadrez.

CEGO – Um pobre cego preso, eu vou me queixarao bispo.

CEARIM – Ah falso cego do inferno.

CABO – Vamos entrando e com muito respeito,que esse é o templo da lei e da justiça... Só falase perguntado e é proibido cuspir no chão.

SARGENTO – Vai prendendo. Quem são esses?

CEGO – Eu sou um pobre dum cego que foiroubado.

CEARIM – Ele é que é ladrão, seu sargento. Enão é cego coisa nenhuma, vê de mais e aindapassa da conta.

SARGENTO – Em primeiro lugar, silêncio. Cabo,dê conta do ocorrido.

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CABO – Aproximadamente cinco minutos depoisda hora do café, eu estava me encaminhando

para a Delegacia quando deparei com este indiví-duo que gritava grito de socorro. Me encaminheiaté o local e pude constatar que este indivíduoarmado o ameaçava. Porém perguntando, essedisse ser aquele o ladrão e não ele, como esteoutro havia declarado; sendo assim, detive os

dois e os conduzi até aqui para que o sargentoproceda à investigação na forma da lei comoreza o artigo 265 do código.

CEARIM – Mas ele é um ladrão danado, seusargento...

SARGENTO – Prenda esse, enquanto eu doudecidimento assim não atrapalha o processoda investigação.

CEARIM – Pois então me prendem e deixam soltoo ladrão...

CABO – Cala o bico que o sargento está anandoo pensador pra dar decisão decidida.

CEARIM – Por que então o cego não vem carna jaula também?

CEGO – Eu precisava seguir caminho. Sou cego enão posso car longe de casa que dou cuidadoa minha mulher.

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CABO – Fique mudo seu cego.

O Sargento, que caminha pela sala pensando,tem uma ideia. Aproxima a brasa do cigarro nosolhos do cego, que aguenta rme.

SARGENTO – Seu cabo! Solte o cego, o outroca detido!

CEARIM – Mas não pode ser, ele não é cego coi-sa nenhuma!

CABO – Está solto, seu Cego.

O Sargento tem mais uma ideia.

SARGENTO – Aqui está seu dinheiro... Dois sacos.

CEGO – Obrigado e Deus lhe pague, seu Sar-gento. E agora, com a sua licença, eu preciso irpra casa...

SARGENTO – Então, está tudo certo e conferido?

CEGO – Tudo certo sim seu Sargento.

SARGENTO – Cabo! Prenda o cego e solte o ou-tro... Então, não sabe o quanto dinheiro tem,

seu Cego?

CABO – Sai da jaula... Entra o Cego.

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CEARIM – Puxa, que Deus me ajudou, quase copreso sem ter a culpa.

CEGO – Ah, seu Sargento, mas que injustiça, bemsei que são três sacos de dinheiro, porém tinhapensado em esquecer um aqui para o senhor,por agradecimento, por ter prendido o canga-ceiro... E só não falei, seu Sargento, pra não dar

impressão de estar pagando o trabalho da lei...

SARGENTO – Cabo! Solte o cego e prenda o outro.

CEARIM – Lá vou eu de novo, o danado do cegoengana todo mundo.

CEGO – Por favor, o resto das minhas coisas.

O Cabo pega pra entregar e vê a fotograa damoça.

CABO – Esse retrato de moça, no seu farnel, é seu?

CEGO – É... É sim, é minha mulher...

CABO – Pois como é o nome dela?

CEGO – Pois o nome é Maria.

CABO – E quando casou com ela?

CEGO – Pois há mais de dez anos...

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CABO – E mora com ela?

CEGO – Moro, moro sim e tenho que ir logosenão ela sai à minha procura.

CABO – Tem lhos?

CEGO – Dois... dois só.

CABO – Pra cego é boa conta... A única coisa queme dá dúvida é que essa do retrato eu conheçomuito bem, me caia um raio se não é a Ercília,uma mulher dama ruivosa que faz a vida láno Castelo...

O Cego pega o farnel e tenta correr, mas o Caboo detém.

CEARIM – Segura, segura... num disse que eramentira dele?

SARGENTO – Cabo! Prenda o cego e solte o outro.CEARIM – Muito agradecido, seu Cabo, que suaesperteza me livrou de car preso até nem seiquando e ainda mais de deixar o danado escapar.

CABO – Por que traz este retrato?

CEARIM – É que preciso encontrar a moça prapagar uma promessa.

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CABO – Promessa hein?

CEARIM – É sim, por quê?

CABO – É que faz tempo que eu não subo oCastelo pra pagar promessa.

CEARIM – Onde é que posso encontrar a moça?

CABO – Chegue na porta que lhe mostro.

Cearim sai.

CENA 8 CEARIM CONHECE ERCLIA NO CASTELO

NARRADOR – Salvo pelo Cabo,Cearim subiu o morro em busca da moça do retrato.Ia feliz por começar a pagar a promessa docangaceiroe principalmente por ir ao encontro da moçado retrato...Aquela com quem tinha sonhado muitas noites.

CEARIM – (Canta) Pé na estrada caminhandoFelicidade buscarPromessa de cangaceiroVou começar a pagarCoração está batendo

Vou a moça encontrarLogo, logo já estou vendoEla vai me deslumbrar

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Pé na estrada caminhandoAlegria no coraçãoVou subindo morro acimaVou buscar minha paixão.

Cearim na Casa. Vem mulher.

MULHER – Olá simpático.

CEARIM – A senhora me desculpe, é aqui quevive uma moça chamada Ercília?

MULHER – Ercília bem que vive aqui, mas hámuito tempo que não é moça, que disso aqui

não tem não.

CEARIM – Pois é... Eu precisava falar com ela.

MULHER – Dependendo da conversa, pode falarcomigo mesmo... Garanto que é até melhor.

CEARIM – Tem que ser com a própria mesmo, équestão particular.

MULHER – Que será que ela tem que falta?...Pode entrar naquela porta.

Cearim entra. Vem Ercília, com copos e garrafa.

ERCÍLIA – Olá, entra...

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CEARIM – Olá...

ERCÍLIA – Nunca viu?

CEARIM – Nunca não senhora.

ERCÍLIA – O que é que quer?

CEARIM – Vim trazer um mandado de um que

morreu... Este retrato e mais este dinheiro.

Vai tirando do farnel.

ERCÍLIA – Pois então sente e muito obrigado...Quem me manda isso?

CEARIM – Ah... Isso foi alguém que lhe fez mal:da primeira vez.

ERCÍLIA – Ah, foi aquele peste que morreu... Emboa hora se lembrou do mal feito.

CEARIM – Mas ele se arrependeu e me encarre-gou da promessa.

ERCÍLIA – Não quer tomar alguma coisa? Bichinho...

CEARIM – Ah bichinha, se tivesse um pouco deágua eu aceitava.

ERCÍLIA – Água! Tenho coisa melhor. (Pega agarraa e enche o copo)

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CEARIM – Disso aí eu não tenho costume.

ERCÍLIA – Costume se faz... Me ajuda a festejaro dinheiro que ganhei...

CEARIM – Eu tenho medo que me faça mal.

ERCÍLIA – Você é muito simpático, como é o

seu nome?

CEARIM – Cearim... Eu não sou daqui, sou docampo, vim tentar a sorte na cidade... Andarilheimuito pra chegar aqui...

ERCÍLIA – Toma um pouco pra alegrar... Tirar poeira.

CEARIM – Eu não quero.

ERCÍLIA – Nem que eu peça?

CEARIM – Pois se pede eu vou até no inferno.

(Cearim bebe e az careta)

ERCÍLIA – É bom?

CEARIM – (Rouco da pinga) Muito bom... Sabe...eu no caminho com esse retrato olhava muito...

A senhora é uma moça muito bonita.

ERCÍLIA – Obrigada... Toma mais um...

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CEARIM – (BEBE) Pois... no caminho que quandoeu encontrasse a senhora, a senhora eu... (BEBE)

ERCÍLIA – (chega perto e encosta o corpo nele) O quê?

CEARIM – Eu...

ERCÍLIA – Pode falar, parece que está com medode mim.

CEARIM – Quer que eu diga?

ERCÍLIA – Pois fala...

CEARIM – A senhora quer mesmo que eu diga?

ERCÍLIA – Pois fala de uma vez homem...

CEARIM – Olha que eu digo!

ERCÍLIA – Então?CEARIM – Pois na verdade eu estou mesmo écom meio medo da senhora.

ERCÍLIA – E o que mais...

CEARIM – Mais nada não senhora...

ERCÍLIA – Nada mesmo?

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CEARIM – Ih mas eu sou muito envergonhado.

ERCÍLIA – Vergonha é roubar e não poder carregar.

CEARIM – Pois é que esse retrato que eu carre-guei na viagem me deu umas voltas diferentesno pensamento. Coisa que eu nunca tinha pen-sado antes.

ERCÍLIA – Pois pense, ninguém lhe proíbe.

CEARIM – Mas só de pensar me dá um vermelhãoquente na cara.

ERCÍLIA – Deixa eu ver se está quente mesmo.

(Abraça Cearim e encosta o rosto no dele)CEARIM – Danou-se de vez...

As luzes se apagam. No escuro, uns cochichos.

CEARIM – (No escuro) Tirá a roupa pra quê?...

Eu não vou nadar...

Passa o tempo e a luz se acende. Cearim, deitado,dorme. Um galo canta ao longe. É manhã.

CEARIM – Ercília... Ercilinha...

Cearim levanta-se, olha em volta, percebe quefoi roubado mais uma vez. Ajoelha-se em cimada cama:

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CEARIM – Madrinha... Só ouça, não apareceaqui não, que o lugar não é de respeito. Mas épossível bondade pureza e ajutório se ninguémé besta e está sempre todo mundo na esperaque o cristão feche o olho pra num zás se valercontra ele... É possível? Me desculpe Madrinha,mas eu vou mudar de jeito nessa vida, se bemque não tenho dinheiro nem nada, que rou-baram tudo... Não tem importância, até peçoque de agora em diante não me ajude, faça ofavor de fechar os olhos para certas safadezas,com perdão da palavra, que eu vou praticar. Euquis fazer tudo do jeito certo Madrinha, mas édemais o acontecido. Desculpe muito mas euvou agir por aí de um jeito bem diferente, quebondade e pureza só traz danação e prejuízo...A carta do cangaceiro! Lá tem coisa!

CENA 9 CEARIM RECPERA A CARTA NA DELEGACIA

Cearim vai à cadeia.

CEARIM – Além de cego, virou surdo, danado?...Cadê a carta que eu preciso pagar a promessa docangaceiro? Num fala... Eu espero sair da cadeirae te arreio de pancada.

CEGO – Pode ir embora que eu não estou bompra conversa.

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CEARIM – Num tá bom... Até parece que é umsanto... Me dá a carta, senão...

CEGO – Só dou se der um jeito de me soltar.

CEARIM – Pois eu dou... Mas primeiro me dê a carta.

CEGO – Primeiro me solte.

CEARIM – Olha aqui seu cego, se um de nós doisnão tem palavra, é o senhor. Me dê a carta queeu vou lá pedir pro sargento soltar...

CEGO – Palavra de honra?

CEARIM – Palavra de honra.

CEGO – Jura por Deus?

CEARIM – E pela Virgem Maria.

O cego remexe o bolso e tira a carta. Cearimpega.

CEGO – Agora vá falar com o sargento, conformeo trato e a jura.

CEARIM – Pode deixar seu cego... Vou lá, digo

pro sargento que o senhor é um cego muitodireito. Na verdade, o cego mais ceguinho que já vi. Pode deixar que eu falo com o sargento...

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CEGO – Não faz mais que a obrigação, já que tedei a carta...

CEARIM – Pois é certo... Não faço mais que aobrigação... Até logo seu cego, passe bem...Lembranças pra família... Pra dona cega e osceguinhos todos.

Cearim vai até o sargento.

CEARIM – Queria falar com os senhor, seu sar-gento...

SARGENTO – O que é? Já terminou a conversacom o preso?

CEARIM – Já terminei... ele ainda tinha umacoisa minha guardada. Queria pedir uma coisapro senhor, seu sargento.

SARGENTO – O que é, pode falar...

CEARIM – Queria pedir que casse de olho nobruto, que está caçando jeito de escapar. Achobom reforçar a guarda que o cego não é de brin-cadeira. Me disse que ia mandar chamar algunsamigos bravos que ele tem por aí... cinquenta...

tudo cego de prossão... E que a cegaiada vemaqui botá fogo na cadeia e pendura o cadáver...pelado... do seu sargento por riba de um poste,

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que é pra cegaiada cuspi. Disse que vai se vingarde mim e do senhor, seu sargento.

SARGENTO – Ah, é assim? Pode deixar que euvou dar um tratamento psicológico nele.

CEARIM – Trata mesmo sargento, bem espico-lógico.

O sargento sai com o cego pelo colarinho.

CEARIM – Madrinha! quem não puder com opote não segure na rodilha.

CENA 10 ORO NA SACRISTIA

NARRADOR – Cearim, que não sabia ler, resolveuprocurar uma pessoa de conança para ler atal carta, e depois de muito pensar, achou queconança mesmo só no vigário da paróquia... elá foi ele.

Cearim chega na porta da Sacristia. Vem o Sa-cristão.

SACRISTÃO – Que deseja?

CEARIM – Falar com Seu Vigário, é um causo de

muita precisão.

SACRISTÃO – De que se trata?

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CEARIM – Olha, é com o vigário mesmo que euquero falar e não com o sacristão.

SACRISTÃO – Pra falar com o vigário, primeiroprecisa falar com o sacristão.

CEARIM – E pra falar com o bispo, eu preciso pri-meiro falar com o vigário, e pra falar com o papa,

eu tenho que falar com essa padraiada toda.

SACRISTÃO – Olha a heresia aqui na sacristia.

CEARIM – Vai chamar Seu Vigário antes que eume enfeze e entre na raça aí dentro dessa meléca.

SACRISTÃO – Oh meléca! O templo do senhor.

CEARIM – (Imita) O templo não... o templo dosenhor, não. A sacristia que é a casa do sacristão.

SACRISTÃO – Agora que eu não chamo mesmo.

CEARIM – (Berra) Seu Vigário. Oh de casa... SeuVigário!!! Tem visita!!

SACRISTÃO – Está maluco o desgraçado.

Vem o Vigário

VIGÁRIO – O que foi? Que barulhada é essa naporta da Igreja? Seu Sacristão ordem... ordem...

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SACRISTÃO – É esse herege, Vigário, fazendoarruaça na porta da Igreja.

CEARIM – Na porta da igreja, não! Na porta dasacristia, que pela Igreja eu tenho muito res-peito, Seu Vigário, e esse sacristão de... Bênção,padre... Pois é, ele não queria deixar.

VIGÁRIO – O que é de tão importante assim que ofaz desrespeitar a igreja com essa barulhada toda?

CEARIM – Só posso falar depois que esse sacristãofor pra... Bênção, padre... tratar da sacristia edeixar a conversa entre eu e o Seu Vigário.

VIGÁRIO – Vá lá pra dentro.

SACRISTÃO – Por isso não respeitam mais a re-ligião.

Sacristão sai resmungando. Cearim puxa a carta.

CEARIM – É uma carta muito importante que memandaram e, como eu não sei ler, e já não conomais em ninguém... A não ser no Seu Vigário,que é ministro de Deus na Terra e não mente enão engana porque se zesse uma coisa dessasera um pecado desses de não ter mais tamanho

de ir parar no fogo do inferno sem nem expiarno purgatório. É esta aqui pro senhor ler pramim saber o que ela diz.

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Vigário começa a ler, rosnando em latim. Enrugaa testa, sorri, fecha a carta e a ena no bolso.

VIGÁRIO – Não é nada de muito importante...Seu irmão manda dizer que está tudo bem e quelogo manda notícias. Só isso. Até logo e que Deuso abençoe... Ah, toma aí um santinho.

O Vigário deixa Cearim na porta da Igreja, como santinho na mão.

CEARIM – Está tudo muito bem... Ele ia morren-do... Vai mandar notícia, só se mandar do fogo doinferno... Espere aí que eu vou tirar isso a limpo.

Cearim se esconde na Sacristia. Logo surgem oVigário e o Sacristão.

VIGÁRIO – Mas que coincidência. Aí está semdúvida a mão de Deus! E logo agora que nósestamos precisando de uma reforma na Igreja!

Ouça só... (Lê) Meu irmão... saudações cangacei-ras. Deixei este escrito para o caso de aconteceralguma coisa rápida comigo em casos destes tefarei jeito de te fazer saber que a botija com asmoedas de ouro estão enterradas na sacristia daIgreja do Santíssimo. Dê uma parte ao vigário e

manda rezar por mim. Seu irmão Diocleciano.P.S.: Ninguém sabe desta carta, pois quem a escre-veu foi um piedoso sacristão, que por segurança e

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pra manter segredo, me encarreguei de apressarseu caminho na Terra, mandando o tal para oCéu, que é bem mais certo lugar para uma almatão piedosa. Do seu irmão Diocleciano Taturana.

SACRISTÃO – É um milagre... Mas não será umtruque daquele indivíduo que trouxe a carta.

VIGÁRIO – Não está mais na terra o sacristão queescreveu esta carta.

SACRISTÃO – Está aí o primeiro mártir da classe.

VIGÁRIO – É... enm, está no terreno da Igreja,pertence à Igreja.

SACRISTÃO – À sacristia.

VIGÁRIO – À Igreja... Vamos tratar de desenter-rar... Vê aí as ferramentas.

O Sacristão pega a um canto uma enxada e umapicareta.

SACRISTÃO – A gente vai ter que cavar tudo, nãose sabe onde está?

VIGÁRIO – O importante é que esteja aqui... Na

casa de Deus.

Os dois começam a cavar.

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NARRADOR – E o padre e o sacristão, feito tatusfazendo casa, romperam a noite adentro no bateque bate, cava que cava e Cearim escondido noolha que olha, espera que espera. A certa altura,os dois tatus estavam morrendo de sono e caindode cansados... E da botija... nada.

SACRISTÃO – Quem diria que andei pisando em

ouro esse tempo todo.

VIGÁRIO – Quem diria...

SACRISTÃO – Louvado seja!

VIGÁRIO – Pra sempre seja louvado.

SACRISTÃO – Louvado seja!!!

VIGÁRIO – Pra sempre seja louvado!!

SACRISTÃO – Louvado seja!!!!!

VIGÁRIO – Pra semp... Oh rapaz, reza menos ecavoca mais.

SACRISTÃO – Só falta aquele pedaço, ali temque estar...

VIGÁRIO – Tem que estar...

SACRISTÃO – A gente podia deixar pra amanhã.

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VIGÁRIO – Não deixes para amanhã o que po-des cavocar hoje. Mas você tem razão, eu estouque não aguento a ferramenta. Vamos dormire depois a gente trabalha, não tem perigo deninguém descobrir.

Os dois se sentam e dormem. Cearim sai do es-conderijo e pega a botija.

SACRISTÃO – (Sonhando) O ouro.

VIGÁRIO – A botija...

SACRISTÃO – Louvado seja...

CEARIM – Pra sempre seja louvado.

Cearim vai até o Narrador, que lhe dá um baú eum paletó enquanto fala.

NARRADOR – Cearim nem dormiu aquela noite

só pensando no logro que havia passado nosacristão e no vigário. No dia seguinte, foi àcidade, comprou umas roupas novas, um baúpra guardar o dinheiro e foi à Igreja, só pra ver.

Cearim na porta.

CEARIM – Oh de casa!

SACRISTÃO – O que você quer?

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CEARIM – Vai chamar o vigário que eu querofalar com ele.

SACRISTÃO – Seu Vigário.

VIGÁRIO – (Acordando) Descobriu a botija?

SACRISTÃO – Está aí o moço da carta.

VIGÁRIO – Ah é você meu lho... O que quer?

CEARIM – Fazendo reforma, Seu Vigário?

VIGÁRIO – Pois é, uma coisinha à toa...

CEARIM – Uma reforma agrária, não é?

VIGÁRIO – Pois é. O que é que você quer?

CEARIM – Vim buscar a carta do meu irmão queeu esqueci ontem...

VIGÁRIO – A carta! A carta eu joguei fora.CEARIM – Foi fazer uma coisa dessas com a cartaSeu Vigário?

VIGÁRIO – Olha, pra falar a verdade, não fui eu,foi o sacristão.

CEARIM – É ele tem mesmo cara de xibungo...Bem, Seu Vigário então não tem importância...

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Eu não faço questão de car sem ela pois já sei oque ela manda dizer. (Bate no baú) Até à vista...

VIGÁRIO – Vai com Deus... Olha, toma um santi...Ah, já te dei um santinho.

Cearim sai rindo.

CENA 11 CEARIM VAI COMPRAR TERRAS

CEARIM – (Canta) Pé na estrada caminhandoVou minhas terras comprarO dinheiro está sobrandoSobra mesmo até pra darSeu vigário está cavandoSeu vigário e o sacristãoVão revirar a igrejaSem nunca achar tostão.Pé na estrada caminhandoMelhorei a situaçãoMeu dinheiro bem guardadoÉ que é a minha proteção.

Aparece a Madrinha.

MADRINHA – Cearim, meu lho.

CEARIM – Ah, é a senhora. Bênção madrinha.Como vai a coisa lá em cima? Como vai o AnjoRafael, o Gabriel e os anjinhos todos? Bem?

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Então muito bem, já vou me despedindo, estoucom uma pressa danada.

MADRINHA – Como vai a vida?

CEARIM – Boazinha, Madrinha.

MADRINHA – Então, meu lho, pagou a promes-sa do cangaceiro?

CEARIM – Isso eu paguei. Me escorcharam, me judiaram, andei preso, me enganaram, mas pa-gar promessa isso eu paguei.

MADRINHA – Você foi muito bom, meu lho.

CEARIM – Fui mesmo, isso é que se chama bon-dade da boa.

MADRINHA – Então estás com a vida terrena agosto.

CEARIM – Tá especial, Madrinha!MADRINHA – Quer dizer, então, que não precisasmais de mim?

CEARIM – Bem dizer, preciso mais não. Mas queroque a senhora apareça em casa pra tomar um

cafezinho e comer uns beijus, pois vou comprarumas terras com um dinheirinho que eu acheipor aí.

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MADRINHA – Está bom meu lho, então atéum dia.

Antes que a Madrinha desapareça, Cearim chama.

CEARIM – Madrinha! Oh Madrinha! Precisandode alguma coisa... (Bate na caixa do dinheiro) ésó chamar!

MADRINHA – Adeus, meu lho! Seja bom!

CEARIM – (Batendo na caixa) Sejo sim.

NARRADOR – E lá vai o nosso Cearimalegre e desimpedido, comprar suas terrinhas.

Sim senhor, o moço Cearim,com a cabeça em cima do pescoço, os pés naterra,sem mais nuvens de bondade nem maldades,vai se tornar um homem rico e poderoso.Mas numa curva do caminho...

Aparecem, pelas costas de Cearim, o Cego e oirmão do Cangaceiro do testamento. Cearimse vira e se aterroriza diante dos dois terríveisfacínoras, que estão armados até às gengivas.

CEGO – Olha que bem nos encontramos. Pois estáaí com muito interesse em ter uma conversinhacom sua senhoria. Esse aí é o irmão do Cangacei-

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ro que tu matou, roubou e ainda foi desenterrara botija de ouro que estava enterrada na Igreja

do Santíssimo. Se entenda com ele.

CEARIM – Agora é que eu estou mesmo entre acruz e a caldeirinha.

Vem a voz da Madrinha.

MADRINHA – (Em off ) Cearim, meu lho, querajuda?

CEARIM – Quero nada não, madrinha! Sozinhome arrumo melhor.

O cangaceiro e o cego se preparam para matá-lo.

NARRADOR – E assim, termina a primeira partedesta história.Nosso Cearim está encurralado pelo cínico cegoe o terrível irmão do cangaceiro do testamento.Dispensada a ajuda da madrinha, quem poderásalvá-lo?Isso é o que veremos dentro de alguns minutos,na segunda parte desta história,parte que se intitula “Os perigos da maldade”.

Fim da 1ª Parte

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Segunda Parte: Os perigos da maldade

CENA 12 ENCRRALADO

NARRADOR – No último capítulo, vimosque Cearim,após ter ludibriado o padre e o sacristão,foi encurralado em uma curva do caminho

pelo cegoe pelo temível irmão do cangaceiro do testamento.A história agora continua inesperadamente...

CEARIM – Olhe aqui seu cangaceiro... É mentirado cego, eu ainda até que ajudei seu irmão a

subir pro céu, cumprindo uma promessa que elefez na horinha da morte.

CEGO – Tá vendo como é a esperteza dele?

IRMÃO – Dá pra cá esse baú.

CEARIM – Ai meu Deus, meu dinheirinho.

CEGO – Deixa que eu seguro.

IRMÃO – Segura aí que depois a gente divide.

CEGO – O que a gente vai fazer com o infeliz aí?Acho melhor ir tacando logo uns tiros bem dadosque é pra ele desencarnar e não dar mais trabalho.

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CEARIM – Ah cego do inferno, quer ver minhacaveira seca...

IRMÃO – Acho que você tem sua razão, seu cego.Vamos trabalhar rápido. Olha aí, oh infeliz, podeir rezando pra se desincumbir dos pecados...

CEARIM – Ai, agora eu estou frito... Espera aí!

Que medalhinha é aquela no pescoço do canga-ceiro. (Olha de perto) Ah, já sei, vou fazer umareza mais alta...

IRMÃO – Vai fogo...

CEARIM – E co até contente de morrer neste

dia santo. Dia do meu santo padroeiro.

IRMÃO – Lá vai...

CEARIM – Meu São Jorge abençoado, lá vou eupro céu!

IRMÃO – (Baixando a arma) Pois quem é seusanto padroeiro?

CEARIM – São Jorge, sim senhor.

IRMÃO – E hoje é dia dele...

CEARIM – Pois é assim certo, eu até estou mor-rendo de alegria por ser neste dia. Dia do meusanto padroeiro.

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IRMÃO – Sorte tem ele de hoje ser dia de SãoJorge, que é também meu padroeiro. Dia no qual

por respeito e para salvar a alma não tiro a vidade nenhum vivente.

CEGO – E essa agora que é de virar com tudo.

CEARIM – Me mate logo seu cangaceiro, que eu

quero morrer no dia do meu Santo padrinho.IRMÃO – Mato não, que é meu padrinho também.

CEARIM – Mata, vá...

IRMÃO – Mato de jeito nenhum...

CEGO – Ora veja que despropósito de coincidên-cia. Assim não pode ser...

IRMÃO – Estou dando no pensamento que agente até que podia deixar ele ir embora.

CEARIM – Eu queria ser matado, mas já que é odia do nosso padroeiro...

CEGO – Mas não está certo não.

CEARIM – Olha aqui, seu cego descarado, nin-guém lhe chamou na conversa. Não se meta na

amizade de dois alhados de São Jorge. Cutucaele seu cangaceiro: até que vendo de lado essecego tem uma cara de dragão, num tem?

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CEGO – Por São Jorge eu também tenho muitorespeito, mas é que se a gente solta ele vai di-

retinho na delegacia dar parte do acontecido.Já conheço as manhas desse danado. O melhoré guardar ele até à meia-noite que então o diado seu santo padroeiro é passado, e não vai termais por que não dar cabo com a vidinha dele.

CEARIM – Ah cego da molésta.

IRMÃO – Tá aí, muito bem pensado. Amarra obicho e vamos esperar passar o tempo.

Vão amarrando.

CEGO – Enquanto a gente espera, não ia de

muito mal um joguinho de baralho, dinheiro éo que não falta...

IRMÃO – Aceito e faço fé que um joguinho ésempre bom. Amarra bem forte pra não darcuidado...

CEGO – E deixamos ele aqui bem no sol, procabra ir se acostumando com a quentura doinferno, que é pra onde vamos mandar o tal.

IRMÃO – Vamos ao joguinho numa boa sombraque tem ali na baixada.

CEGO – E tenho um baralhinho que está estra-

lando de tão novo...

O cego e o cangaceiro se afastam.

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CENA 13 CACHORRO VERSUS MADRINHA

CEARIM – Ai, que desta vez não escapo...

MADRINHA – (Aparecendo) Cearim, meu lho,quer alguma coisa?

CEARIM – Olha aqui madrinha, já disse que não

quero. A senhora pode me soltar?

MADRINHA – Soltar?!

CEARIM – Então é bom a senhora ir dar uma volti-nha por aí, que do jeito que vai indo a coisa eu vou

acabar é mesmo apelando pro capeta de uma vez.

Uma explosão: a madrinha dá um grito. Logosurge de um lado o capeta, o cachorro

CACHORRO – Auuuuuu Auuuuur... Me chamou?

CEARIM – O que foi... Eu chamei nada não...estava só brincando.

CACHORRO – Não gosto dessas brincadeiras.AurrAuAurrrrgrgrgr

CEARIM – Ai meu Deus do céu, é o próprio cãoem pessoa. Onde é que eu fui me meter.

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CACHORRO – Chamou ou não chamou? Aurrrr-gugugurrr.

CEARIM – Olha aqui, quer saber de uma coisa?Pra quem meteu um pé na graça de vaca, me-ter os dois é quase o mesmo... Olha aqui, seucachorro, chamei sim, estava precisando de umaajudinha pra escapar de uma enrascada em que

me vi entrado.

CACHORRO – Vá dizendo, meu lho.

CEARIM – Estou preso por dois malfeitores quequerem me matar.

CACHORRO – E o que quer que eu faça?

CEARIM – Que dê um jeito de me soltar.

CACHORRO – Olha aqui... Soltar, soltar, eu nãoposso não...

CEARIM – Então, mande alguém pra me soltar...

CACHORRO – Isso eu posso tentar mas duvido, quepra me escutar precisa ter umas orelhas certas.

CEARIM – Queria então que mandasse umas

labaredas queimar o bandulho dos danadosque estão ali jogando baralho. Manda, seu ca-chorro, manda.

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CACHORRO – Aqui pra nós, pra dizer bem a ver-dade, esse negócio de fogo, raio, labareda, garfo,faca, etc... Não é muito mais que história que ospadres inventaram pra botar medo nos crentes...

CEARIM – O que é que o senhor pode fazer então?

CACHORRO – Posso te dar proteção enquanto

você for mau. Se você praticar o mal, estarei sem-pre ao seu lado, para o que der e vier. Seja mau,Cearim, muito mau, e as coisas do mundo estarãosempre do jeito certo, pratique o mal e todos tedarão respeito. Vá, meu lho, faça o mal.

CEARIM – Ir pra onde, amarrado deste jeito?!Até logo, então, seu cachorro.

CACHORRO – Até, meu lho. Precisando de mimé só chamar...

CEARIM – Chamo sim... eu chamo...

CACHORRO – (Fazendo um corno com os dedos) Sempre alerta!

CEARIM – Sempre alerta...

Cão desaparece

CEARIM – Essa é boa. Chamar pra que, se nãodá jeito em nada?

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MADRINHA – (Aparecendo) Cearim, meu lho,quem estava ainda pouco conversando com você?

CEARIM – Ah era um... era um amiguinho meu,madrinha.

MADRINHA – Esse cheiro de enxofre queimadonão me engana. Foi o cachorro quem esteve

aqui não foi? Sempre fazendo concorrência, odanado. Você não fez negócio nenhum com ele,não é meu lho?

CEARIM – Fazer, eu não z não. Olha aqui, ma-drinha, a senhora pode me soltar, pode?

MADRINHA – Que jeito eu poderia dar?

CEARIM – Olha, então a senhora me desculpe,mas eu prero car só, para poder pensar melhore dar um jeito de escapar desta.

MADRINHA – Seja bom Cearim, e tudo estará bem.CACHORRO – (Emoff )Seja mau e tudo correrá bem.

A madrinha some num grito.

CEARIM – Sejo sim, sejo tudo que vocês querem...

Os danados jogando com meu dinheirinho, edepois vão me matar, o que que faço... Olha láuma velha de preto, vou gritar pra ela vir me

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soltar... Velha, oh velha, socorro, oh de lá, so-corro, oh de lá...

Vêm o cangaceiro e o cego.

CEGO – Depressa, bota ele dentro deste saco,que vem gente...

Cego e Cangaceiro amordaçam Cearim e o botamdentro do saco. Vem o vigário e os dois cantame dançam o xaxado.

OS DOIS – Socorro oh de láSocorro oh de láAssim gritava o pobre infeliz

Pedindo ajuda e salvaçãoO senhor veio em sua proteção

VIGÁRIO – Que é isso, meus lhos?

CEGO – Estamos cantando umas musiquinhas

pra alegrar Deus, Seu Vigário.IRMÃO – É que hoje é dia do meu santo padroei-ro, e então pedi ao meu bom amigo...

CEGO – Bom amigo cego...

IRMÃO – Pois é, ao meu bom amigo cego, praque cantasse umas rezas bonitas pra festejar adata do dia acontecido.

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CEGO – Quem é rico, conta os seusE quem é pobre canta pra Deus.

VIGÁRIO – Cantem, meus lhos, cantem.

Os dois cantam e dançam. O vigário dança umpouco e depois vai embora.

CEGO – Já foi?CEARIM – É bom deixar o bichinho ensacadomesmo.

Volta o vigário. Eles cantam de novo.

VIGÁRIO – Olha aqui, meus lhos, vocês nãoviram por acaso meu sacristão? Ele estava juntocomigo e, de repente, saiu correndo atrás deuma borboleta e não o encontrei mais...

CEGO – Eu não vi que sou um pobre cego, Seu

Vigário.IRMÃO – Não vimos não, Seu Vigário.

VIGÁRIO – Então continuem e que Deus vosabençoe.

Os dois seguem cantando e o vigário desapare-ce. Quando vão voltar ao saco, o vigário voltanovamente. Cantam.

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VIGÁRIO – Olha aqui, meus lhos, um santinhopara cada um...

CEGO – Deus esteja...

IRMÃO – Em santa glória.

Cantam de novo e esperam. O vigário não volta.

CEGO – Pronto, agora foi de uma vez... Olhaaqui, é bom deixar o bichinho ensacado mesmo,que é pra não dar trabalho. Depois, é só meterumas balas no saco mesmo e o bicho já empacotade acordo... Vamos continuar o joguinho...

IRMÃO – Pra já...Saem os dois. O saco pula que pula. Apareceo sacristão, correndo atrás de uma borboleta,tropeça no saco e cai.

SACRISTÃO – (Com a borboleta na mão) Seu

Vigário, olha que beleza de borboleta! (Cai elevanta-se) Ué o que será que tem dentro destesaco? Parece que não tem dono e tudo o quenão tem dono pertence à Igreja, e na ausênciado vigário, à sacristia.

Abre o saco, descobre Cearim, tira-lhe a mordaça.

SACRISTÃO – Nossa! O que é que você está fa-zendo aí?

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CEARIM – Pois se eu... Olha eu... Foi aqui um...

CÃO – (Em off ) Seja mau, meu lho. Auuuuurrrr-gggrurururuauaua.

CEARIM – (Mudando a chave) Pois é, seu sacris-tão, o senhor veio me atrapalhar tudo de umavez. Não tinha outra coisa que fazer que andar

por aí abrindo os sacos alheios, que não são desua conta? Agora então, que já estragou tudo,me desamarre.

Sacristão vai desamarrando.

CEARIM – Por que então tinha que se meter na

minha vida, logo agora que eu ia arrumar elade uma vez.

SACRISTÃO – Eu não estou entendendo nadade nada...

CEARIM – Pois eu conto... eu conto. Não é queeu estava andando por esta estrada aqui quan-do, de repente, topei com uma luz muito forte,muito bonita, muito brilhante. Parei meio commedo. Era sabe o quê? Um anjo...

SACRISTÃO – Um anjo, louvado seja!

CEARIM – Pra sempre seja louvado. Pra dizer bema verdade, eram dois anjos. Um preto e um branco.

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SACRISTÃO – Dois anjos. Louvado seja.

CEARIM – Pra sempre seja louvado. Então, osanjos vieram voando e pararam bem em cima daminha cabeça. Daí o anjo preto, um anjão assim,com umas asas aqui nas costas, veio descendomais baixo e falou: Meu flho, estamos passando

 pelo mundo para dar prêmio aos homens de bomcoração. Você oi o escolhido.

SACRISTÃO – Louvado seja!

CEARIM – Para sempre seja louvado. Então, oanjinho branco veio, era uma belezinha, seu sa-

cristão, com as asinhas de purpurina... Voava quenem uma curruíra, trui, trui, parou tremelicandoas asinhas e falou delicadinho. Era um querubim.Olha, meu flhinho, entre neste saco sagrado edepois viremos buscá-lo para passear no céu.E lá no jardim maravilhoso, onde os rutos são

todos de ouro, poderá colher quantos quiser eassim, quando voltares à terra terás vida artae regalada.

SACRISTÃO – De ouro?

CEARIM – De ouro.

SACRISTÃO – Louvado seja.

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CEARIM – Para sempre seja louvado. Daí, o anji-nho subiu e o anjão preto veio de novo, vapt, vapt,vapt e disse: Olha, meu flho, depois de entrar no

 saco sagrado do meu companheiro, não poderásalar com nenhum mortal e se, por um acaso, al-gum o encontrar; então, como prêmio à bondadede samaritano de quem o encontrou, você deveceder seu lugar a este (APONTA O SACRISTÃO)

 samaritano. Coloque-o dentro do saco, que umaoutra vez o premiaremos novamente.

SACRISTÃO – Louvado seja!

CEARIM – Para sempre seja louvado. Pois não

é, Seu Sacristão, que você deu de me encontrare me tirou a vez de visitar o jardim do paraíso.

SACRISTÃO – Não foi por mal, eu queria apenassalvá-lo desta situação.

CEARIM – E eu que queria colher os frutos de

ouro pra car rico.

SACRISTÃO – Por isso o Senhor fez com que euo encontrasse. Essa ambição desmedida.

CEARIM – Olha, Seu Sacristão... Vamos fazer um

trato... Você me fecha dentro do saco novamentee eu me vou. Na volta trago umas frutinhas deouro para você também... Umas abóboras.

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SACRISTÃO – De jeito nenhum. Seria um pecadoterrível. Os anjos não podem ser enganados. Em

se tratando da vontade de Deus, não discuto,vou logo cumprindo... Me ponha dentro do saco.

CEARIM – Ah seu sacristão, como eu gostaria deir... Logo, logo à meia-noite os anjos vêm buscare você vai ver aquela anjaiada toda.

SACRISTÃO – Vamos, amarre bem forte e meesconda pra ninguém me encontrar. Escuta, osanjos disseram que os frutos eram de ouro?

CEARIM – E com pedras preciosas.

SACRISTÃO – Louvado seja.CEARIM – Para sempre seja louvado. Toma, meulho, leva a tua borboletinha.

Bota a borboleta no saco e fecha.

CEARIM – A minha pele pela dele, que eu nãosou mais besta.

CACHORRO – (Em off ) Parabéns, meu lho.

CEARIM – Tá contente né, seu cachorro. Vai carmais depois que eu terminar uns planos que

eu tenho aqui no meu bestunto. Agora toca aesconder e esperar a meia-noite. Boa viagem,bom sacristão.

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IRMÃO – Tem certeza que já passou a meia-noite?

CEGO – Pois se olha a altura da lua.

IRMÃO – Pois se então, vamos lá.

CEGO – Vamos logo, que o joguinho estava bom.

IRMÃO – (Vai atirar) Espera aí. Não ca bem a

gente mandar o tal sem encomenda. Umas rezasiam de muito bem. Inda mais que sou um cabracristão e alhado de São Jorge.

CEGO – Pensando bem, está com a razão. Vamosdar uma rezadinha.

IRMÃO – Começa.

CEGO – Pode começar.

IRMÃO – Começa daí que eu repuxo daqui.

CEGO – Começa daí que eu trepuxo daqui.

IRMÃO – Pra dizer a verdade, não tenho nenhu-ma reza de memória que me alembra.

CEGO – Pois não é que eu também não? Não temimportância, o que vale é a intenção.

IRMÃO – Pois já ajuda levar o bruto pra pertodaquele mato... Tá mais leve o desgraçado.

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Sai uma aguinha no chão.

IRMÃO – Olha aí, compadre cego. Ele está selivrando dos pecados.

CEGO – Pronto, agora toca fogo de uma vez.

IRMÃO – Vai com Deus, infeliz. (Taca dois tiros nele)

Ouve-se um mugido e nada.

CEGO – Pronto! Morreu!(Canta) Que Deus se apiedeieDa alma deste coitadoQue de ir ao céu não arreceie

Pois que vai bem ensacadoHoje vai umAmanhã outro vaiE um dia nós vamos tambémBendito seja os dois – amém.

CEGO – Agora vamos terminar o joguinho.

Os dois vão jogar em um canto. Cearim entra evai até o saco.

CEARIM – Pobre sacristão de uma ga... Pagou aambição com a vida. Enm, se ele foi bom, deve

estar a caminho de um bom purgatório. Se nãofoi, que se lasque. Agora, vamos cuidar desses doissafados, que estão muito a fresco no seu joguinho.

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Cearim, escondido atrás de uma moita, chegaaté perto deles, que jogam.

CEGO – Tome lá que esta num se mata.

IRMÃO – Pois leve um trunfo.

CEGO – Reboque de igreja velha, sapiquá delazarento, tome de volta.

IRMÃO – Pois levo... Eta joguinho bão, a úni-ca coisa é que está me dando uma danadaguela seca.

CEGO – Pois não é que em mim também. A

gente podia caminhar até à bodega e tomaruns bons tragos.

IRMÃO – Falado e dito. Vamos tocar pé nocaminho.

Cearim, escondido, com voz de fantasma:

CEARIM – Já vãoooooooo?

Os dois estacam.

IRMÃO – Ouviu isso, compadre?

CEGO – Foi um cachorro do mato.

CEARIM – Eu vou atrás aaaiaiaiaiaiauauauraiiiii!!!

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IRMÃO – Ai, Minha Nossa Senhora do BomParto... Bem me pareceu que a voz vinha dalidaquele lado onde está o cadáver falecido mortopor nós matado.

CEGO – Seja o que for, o melhor é ir embora.

CEARIM – Até mais logooooooooo.

O cego e o cangaceiro dão no pé. Cearim sai doesconderijo.

CEARIM – Agora vou atrás deles, quero pegaros dois quando estiverem bem encachaçados.

CENA 14 NA BODEGA

Cego e Irmão jogam.

BODEGUEIRO – Eu vou lá dentro fazer umascontas. Precisando de alguma coisa é só chamar.

IRMÃO – A gente chama. Pode ir seu bodeguei-ro. Olha pra dizer a verdade, até que está medando um receio que a tal voz que nós ouvimosera a alma do infeliz vagando perto do corpo docadáver falecido do morto.

CEGO – Que nada, era um cachorro-do-mato.

IRMÃO – Rei.

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CEGO – Dama.

IRMÃO – Opa, até parece que despachar aqueleinfeliz está me dando sorte no jogo...

CEGO – Oh azar da peste...

IRMÃO – Ainda que não queira me lembrar, pa-

recia que a voz dizia assim: já vão, eu vou atrás.

CEGO – Não, parecia uma voz que dizia assim...Até logo jáaaaaa.

CEARIM – (Metido em baixo da mesa) Tô aquiiiiiii.

IRMÃO – Isso eu não ouvi.

CEGO – Nem eu.

IRMÃO – Então, por que é que falou?

CEGO – Eu não falei...

IRMÃO – Então, vai ver que fui eu mesmo e nemreparei.

CEARIM – Tô aquiiiiiiii.

CEGO E IRMÃO – Tá vendo. Você falou nova-mente.

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IRMÃO – Eu não falei nada. Você foi quem falou.

CEGO – Vai ver então que eu falei sem perceber.

IRMÃO – Já aconteceu a mesma coisa comigoainda há pouco. Que interessante.

CEGO – Acho que a gente bebeu um poucodemais. Vamos fazer o seguinte: vamos fechara boca com a mão, e assim, a gente pode jogarsossegado, sem se importunar.

IRMÃO – Bem pensado.

Tapam a boca e vão jogando.

CEARIM – Tô aquiiiiiii pra buscar o rouba-dooooooooouuuuuiiiiiii.

IRMÃO – Ai ai ai aiaiiiii... Eu não fui e nem você,compadre.

CEGO – Aqui tem coisa.

IRMÃO – Ai, meu Deus, é a alma do infeliz. Achoque ainda não era meia-noite quando despacha-mos o cabra e meu santo padroeiro não gostou.

CEGO – É a bebida que está fazendo a gente

ouvir o grito das almas penadas.

IRMÃO – Parou... Ué, parou...

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CEARIM – Que parou nada, seu.... Tô aqui paracobrar o roubadoooooo.

IRMÃO – Ai compadre, você ouviu. Ele veiocobrar.

CEGO – Diz que não estou em casa e mandapassar pra semana.

CEARIM – Se não pagar, eu levo um de vocêscomigoooouuuuiiiiauauaua.

CEGO – Dona alma, não faça mal a um pobrecego... Se tem que levar alguém, leve este moço,que pelo menos tem visão e pode ir vendo pra

onde vai.

IRMÃO – Cala a boca, cego do inferno... Donaalma... Dona alminha, se quer levar um de nósdois, leve este cego desgraçado que foi quemme meteu nesta embrulhada toda.

CEGO – Dona alminha, não faça mal a um cego queum cego, embora falso, é sempre um cego.

CEARIM – Vocês têm que devolver o dinheiroroubadooooouuuuiiiii.

IRMÃO – Olha, santa alminha, de minha partepode ir desde já aceitando o que tenho. O do baúe mais um tanto meu... está aqui em cima da mesa.

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CEARIM – O cego tambémmmmmmmuuuuuiiiio-ooouiuiuiuiu.

CEGO – Num tenho quase nada, perdi tudo no jogo.

CEARIM – Tuuuuuuuuudddooooo?

CEGO – Tá aí, pronto.

CEARIM – Não queira enganar as almas, seu cego.Devolva tudo e, por penitência, o seu também.

CEGO – De meu não tenho nada, que sou um

pobre cego. Nem vejo o bolso.CEARIM – Tudddoooooooo!!!! (Agarra o pé docangaceiro)

IRMÃO – Aaaaiiiii. Pegou meu pé. Que mão fria!

CEGO – Solta o pé.

CEARIM – Vou levar este comigo se o cego nãoder o dinheiro.

IRMÃO – (Agarra o cego, coloca-o em cima da

mesa e revira os bolsos; tira tudo) Pronto, donaalma, tá aí o dele e mais o meu e mais o seu,tudo bem contado...

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CEARIM – Muito bem... Vou soltar vocês masnão quero que quem por estas paragens... Vão

procurar outras paragens bem distantes...

IRMÃO – Vamos pra Tribobó...

CEARIM – Mais longe...

IRMÃO – Brocoió.

CEARIM – Vão mais longe, vão pra ponte quepartiu!

IRMÃO – Pois vamos sim, senhora dona alma.

CEARIM – Se os encontrar novamente, levo osdois pras profundas... Correeeeiiiiii. (Solta os dois)

IRMÃO – Soltou. Dá no pé, cego.

CEGO – Já fui...

Cearim rí às bandeiras despregadas.CEARIM – Seu bodegueiro... Seu bodegueiro...

BODEGUEIRO – Pronto... Ué, cadê os dois queestavam jogando baralho aqui?

CEARIM – Foram embora pra ponte que partiu.O baralho deles é inglês, tem mais de dez reis...Mas não se aborreça, que deixaram dinheiro pra

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pagar a conta... Olha seu bodegueiro, sabe quemtem umas terras pra vender por estas bandas?

BODEGUEIRO – Olha, pra dizer a verdade, a terraaqui tem só dois donos: as da fazenda do Coronele as da fazenda do Padre.

CEARIM – Do vigário da paróquia?

BODEGUEIRO – Do vigário da paróquia.

CEARIM – E sabe se algum deles está querendovender?

BODEGUEIRO – Que eu saiba, nenhum. Estasterras dão muito dinheiro...

CEARIM – Ora veja só. Seu bodegueiro, podiame vender aquele bauzinho, que eu estou preci-sando de um bauzinho maior pra guardar umascoisinhas minhas.

BODEGUEIRO – Se quiser, pode levar aquele alimesmo. Já está aí há muito tempo e acho que odono não vem mais buscar. Era de um artista deum circo que passou por aqui, cou me devendoumas contas e largou o baú de garantia.

CEARIM – Então muito obrigado, seu bodeguei-ro. Até mais ver. (Sai com o baú)

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CEARIM – (ABRE O BAÚ, REMEXE-O E TIRA UMAROUPA DE BISPO) Olha só... uma farda de bispo...Não é que me bateu aqui agora, então o SeuVigário tem umas terrinhas. Santas terrinhas.Espera aí que vou tirar uma consulta. Madrinha,oh Madrinha.....

MADRINHA – Cearim, meu lho, o que foi... Está

bem, meu lho?

CEARIM – Muito bem, Madrinha. Olha, euchamei a senhora por querer saber de umacoisa... Olha, Madrinha, quem é mais queridode Deus: os grandes reis ou os pobrezinhos que

não têm nada?

MADRINHA – Ah, Cearim: bem-aventurados oshumildes, pois deles é o reino dos céus.

CEARIM – E tem aquela outra ainda, dos camelosnos fundos das agulhas.

MADRINHA – Pois é certo, meu lho: é mais certoum camelo passar pelo undo de uma agulha queum rico entrar no reino do céu.

CEARIM – Então, quer dizer que os ministros de

Deus na terra têm que dar o bom exemplo?...

MADRINHA – Claro, meu lho, assim tem que ser.

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CEARIM – Então, agora eu já vou com maisconança.

MADRINHA – Vai aonde meu lho?

CEARIM – Nada não, Madrinha... É umas coisi-nhas minhas. Pode ir, viu Madrinha.

MADRINHA – Precisando de mim é só chamar.CEARIM – Chamo sim... Vaiiii, adeussss Madrinha.

Madrinha desaparece.

CEARIM – Agora, vamos chamar o outro lado...

Seu Cachorro, venha aqui pra gente bater umpapinho.

CACHORRO – (Aparecendo) Auuuurrrrggg. Pron-to, meu lho, o que você quer?

CEARIM – Queria fazer uma perguntinha pro

senhor.

CACHORRO – (Cheira o ar) Sniffsiniff. Cearim,meu alhado, quem estava aqui com você?

CEARIM – Ninguém não, uma conhecida...

CACHORRO – Esse cheiro de velas não me en-gana. Foi aquela sirigaita, sempre se metendoem tudo.

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CEARIM – Ah, Seu Cachorro, me adimira o senhorcom um rabo desse tamanho ligar pra certas

coisinhas. Eu queria fazer uma pergunta.

CACHORRO – Pode fazer, meu lho.

CEARIM – Se o vigário da paróquia tem umasterrinhas e eu tenho aqui no meu bestunto um

plano de levar as terrinhas dele, qual é o certo?CACHORRO – Mate o vigário, coma ele comfarinha, beba o sangue do desgraçado, queimea igreja, jogue bomba na quermesse. Auuuuauarrrggguer.

CEARIM – Oh sujeitinho mau...

CACHORRO – O que foi? Auuurrrggg.

CEARIM – Nada não, Seu Cachorro. Muito obri-gado, já sei o que perguntei. Até à vista.

CACHORRO – Até à vista, meu lho, e seja mau.

CEARIM – Sejo, sim senhor.

CACHORRO – E não se esqueça: sempre alerta!(Faz sinal de corno com a mão)

Cearim faz sinal de ga e Cachorro de corno, atéque os dois concordam.

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CENA 15 PORTA DA IGREJA

Cearim chega à porta da igreja. A batina coupresa no cinto de sua calça.

CEARIM – (Imponente) Seu Vigárioooooooo.Senhor Vigárioooooooo...

VIGÁRIO – Quem é a estas horas da noite.

CEARIM – É o bispo... Mandado do Papa.

VIGÁRIO – Ah, pois não. Mas como é que VossaReverendíssima chega assim, sem aviso e ainda

mais a pé.

CEARIM – Vim de leiteira mas deixei logo aliembaixo. Seu Vigário, vim aqui especialmentepra trazer um recado do Papa, o Santo Papa.

VIGÁRIO – Recado?!

CEARIM – Recado. O Santo Papa soube que osenhor vigário é dono de muitas terras... que temfazendão. O Santo Papa não gosta disso não. Elemandou dizer que tão logo possa, o senhor se

desfaça dessas terras.

VIGÁRIO – Que eu me desfaça...

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CEARIM – Mas o Santo Papa não quer que sedesfaça das terras assim de repente. Quer quedê de graça ou venda por um preço bem barato.No máximo um baú de dinheiro.

VIGÁRIO – Um baú?!

CEARIM – Um baú. Hummmmm!!! Mas o Santo

Papa não quer também que essas terras caiamnas mãos de um herege qualquer por aí... OSanto Papa quer que o senhor dê as terras a ummoço honesto, trabalhador, piedoso, cristão, hu-milde, devoto, caridoso, e que traga no pescoçouma corrente com santo e crucixo.

Cearim se volta e o Vigário olha atrás da batinadele.

VIGÁRIO – E o que mais o Santo Papa mandadizer?

CEARIM – Manda dizer que faça isso bem logo,porque senão... Hummm. Agora vou embora queo Santo Papa está me esperando. Até logo, seuVigário, cumpra as ordens. Tome lá um santinho.E, Seu Vigário, sempre alerta!

O Vigário entra na igreja. Cearim corre aondedeixou o baú. Canta enquanto troca de roupa ecoloca um grande crucixo no pescoço.

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CEARIM – (Canta)Viver é muito perigosoViver não é mole nãoJá tive a ajuda de DeusTenho a ajuda do Cão.Seu vigário está com medoVai me dar o fazendão

Já fui bispo, já vi anjoJá posei de assombração.Viver é muito perigosoViver não é mole não.

CEARIM – (Chegando, muito humilde, à porta da

igreja) Seu Vigárioooo, Seu Vigárioooo...

VIGÁRIO – Quem seria... Ah, é você, meu lhinho?

CEARIM – Sou eu, seu Vigário. (Beija sorega-mente a mão do vigário) Bênção, santo Vigário.

VIGÁRIO – Deus te abençoe. O que quer, meulho?

CEARIM – Nada, seu Vigário. Apenas vim carmais perto de Deus e nenhum lugar é mais perto

que a sua Santa Casa.

VIGÁRIO – Muito bem, meu lho.

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CEARIM – Vim também trazer um dinheiro prascaridades da paróquia. Eu também não tenho

nada, mas quem dá aos pobres empresta a Deus.

VIGÁRIO – Muito bem, meu lho. E o que mais?

CEARIM – Queria também que o seu Vigáriozesse o favor de benzer este santo crucixoque eu trago sempre pendurado no pescoço.(Ostenta o crucifxo)

VIGÁRIO – Espera aí, meu lho, que já vou teencher de bênçãos. Podem levar, está acusadode tentar roubar a Igreja de Deus.

Surgem o Cabo e o Sargento.CABO – Esteje preso.

SARGENTO – Então, o senhor queria passar oconto do vigário no próprio dito cujo?

CEARIM – Volta e meia acabo dando com oscostados na cadeia.

SARGENTO – Dê pra cá esse baú. O que é quetem dentro?

CEARIM – Uns dinheirinhos meus.

SARGENTO – Está conscado. Guardado e pro-tegido pela lei.

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CEARIM – E lá se vai o meu rico bauzinho.

SARGENTO – Seu Cabo, que tomando conta dacadeia, assuma o comando, enquanto eu vou atéem casa contar este dinheiro. Qualquer coisa,dê o alarma.

CABO – Pode ir descansado, seu Sargento...

Cearim ca sozinho.

CENA 16 CADEIA

CEARIM – Já estou eu de novo na enrascada... Eolha que com proteção de tudo quanto é lado...

Proteção. Espera aí, quem sabe se os dois juntos,o padrinho e a madrinha, não me tiram daqui dedentro. Espera aí que eu vou fazer um chamadogeral. Primeiro o lado de baixo: Padrinho... SeuCachorro, vem aqui bater um papinho.

CACHORRO – Aqui estou, meu lho. Aurururrggg...

CEARIM – Viu o que me aconteceu de seguir osbelos dos teus conselhos? Trancado nesta jaulaaté nem sei quando...

CACHORRO – Seja mau, meu lho...

CEARIM – Sejo sim... Olha aqui, seu Cachorro: euandei ouvindo por aí certas coisas que muito odesmoralizam...

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CACHORRO – O que foi, meu lho, fale logo que já estou botando fogo pelas narinas.

CEARIM – Pois andaram me dizendo... Mas atétenho medo de contar, só em pensar na raivaque vai lhe dar.

CACHORRO – Fale logo, aposto como foi de

alguém da parte de cima.

CEARIM – Pra dizer a verdade, foi mesmo a mi-nha madrinha da parte de cima.

CACHORRO – Aquela... O que foi que ela disse?...

CEARIM – Pois ela disse que o senhor tem ummedo dela que se pela. Que, só de ouvir o nomedela, já treme.

CACHORRO – Mas é uma mentira deslavada.

Não tenho medo nem Dele, quanto mais dela. Nãoacredite, meu lho, são intrigas da oposição.

CEARIM – Não acredito não... Bom, agora já podeir embora... Até logo, seu Cachorro. Precisando,eu chamo, viu...

CACHORRO – Seja mau, meu lho. E, semprealerta.

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CEARIM – Sempre alerta... Bem, agora vamos aolado de cima. Madrinha, venha aqui, Madrinha...

MADRINHA – Olá, meu lho... Como vai a vidinha?

CEARIM – Uma mer... porcariazinha, Madrinha.Estou presinho...

MADRINHA – Coitadinho. Seja bom.

CEARIM – Sejo, sim senhora...

MADRINHA – Por que me chamou?

CEARIM – Ah, Madrinha, é que eu andei ouvindoumas coisas por aí a respeito da senhora que atéestou perdendo a fé.

MADRINHA – Que coisas, meu lho... Ah, se foio tal caso do Espírito Santo, eu subo lá em cimae chamo meu marido pra tirar satisfações.

CEARIM – Desse caso aí não soube nada, nãosenhora.

MADRINHA – Quem foi que falou? Só pode tersido alguém da parte de baixo.

CEARIM – Pois foi justamente o meu padrinhoda parte de baixo.

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MADRINHA – Eu sabia! E o que foi que elementiu?

CEARIM – Tenho até medo de falar, só pensandona raiva que vai lhe dar.

MADRINHA – Pois fale, que já estou vendo nu-vens vermelhas na minha frente.

CEARIM – Pois o meu padrinho me disse que se-nhora morre de medo dele, que só de saber queele está por perto a senhora... upt... está sumindo.

MADRINHA – É uma mentira deslavada... Eu não

tenho medo daquele pateta.

CEARIM – Eu sabia que a senhora não tinhamedo dele...

MADRINHA – Nem dele, nem de mil iguais a ele.

CEARIM – Eu estou quase chamando ele aqui,pra ver com quem é que está lidando.

MADRINHA – Chamar o Cão? Mas não é preciso...

CEARIM – Olha o medo...

MADRINHA – Medo? Pode chamar, aposto queele nem aparece eu estando aqui.

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CEARIM – É pra já que eu vou chamar. SeuCachorro, venha depressa que tem gente es-perando.

Surge o Cachorro. Madrinha se esconde atrás dovéu e Cachorro atrás da capa.

CACHORRO – Ai.

MADRINHA – Ui.

CACHORRO – Ai.

MADRINHA – Ui...

CEARIM – Agora que está bom mesmo isto aqui.A parte de baixo mais a parte de cima.

Os dois estão com medo um do outro.

CACHORRO – Eu não estou com medo de ninguém.

MADRINHA – Alguém aqui está com medo?

CEARIM – Pra dizer a verdade, eu estou umbocadinho.

CACHORRO – Por que me chamou, meu lho?

CEARIM – Agora que nós estamos todos reuni-dos, eu queria dizer umas coisas. Seguindo o

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conselho de vossas senhorias eu sempre me deimal, agora queria ver se aqui nós três juntos, agente não dava um jeito de me tirar daqui.

MADRINHA – Se quer sair, meu lho, seja bom.

CACHORRO – Seja mau, meu lho.

MADRINHA – Seja bom.

CACHORRO – Seja mau.

MADRINHA – Boooommmm.

CACHORRO – Maaaauuuu.

CEARIM – (Engrossa) Que é isso aqui?! Que é issoaqui?! Que coisa impressionante! Seja mau, sejabom, seja mau, seja bom e eu aqui na jaula. Euquero uma coisa certa.

MADRINHA – Pois eu subo lá em cima e logomando dez anjinhos te buscar.

CACHORRO – Pois eu desço lá em baixo e mandodez capetas te salvar.

MADRINHA – Seus dez e mais vinte.

CACHORRO – Seus vinte e mais quarenta.

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CEARIM – Truco! Pago pra ver!

Cachorro e Madrinha somem. Cearim ca sozi-nho. Logo surgem Ercília e Cabo.

ERCÍLIA – Olha, seu Cabo, o Sargento está sedivertindo na minha casa, mandou trazer estebaú aqui que ca mais bem guardado.

CABO – Será guardado. Como vão os negócios?

ERCÍLIA – Assim, assim...

CABO – Deve ter muita freguesia... Umas meninastão jeitosas que a senhora arrumou, inda mais

a dona, uma belezura assim como a senhora...

ERCÍLIA – Quem é aquele preso ali?!

CABO – Aquele é um gaiato que quis passar oconto do vigário no vigário e se deu mal.

ERCÍLIA – (Indo até à jaula) Você?!

CEARIM – Eu mesmo, dona sem-vergonha. Faziatempo que não aparecia. Desde o dia que levoumeu dinheiro com aquela conversa de gostar demim. A senhora é que devia estar aqui, mais o

cego, o cangaceiro e o vigário.

ERCÍLIA – Mas foi bom, não foi?

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CEARIM – Nem tanto, por um preço daqueles...

ERCÍLIA – Sabe, eu quei arrependida... Penseimuito...

CEARIM – Sei.

ERCÍLIA – Se eu pudesse fazer alguma coisa por

você...

CEARIM – Pois pode me ajudar a escapar. Olha...(Cochicha)

ERCÍLIA – Está certo. À meia-noite então.

CEARIM – O sargento vai estar na sua casa,não vai?

À meia-noite.

NARRADOR – E Cearim esperou e quando era

meia-noite, o cabo dormia, chega o sargentobêbado e Ercília embriagada.

Durante o diálogo, Ercília vai tirando a chaveque está no pescoço do sargento.

SARGENTO – Meu benzinho, você está protegidapela lei. Ninguém fecha a sua casa porque a lei,que no caso sou eu, está no seu lado.

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ERCÍLIA – O senhor é tão valente, tão militar,tão inteligente!!!

SARGENTO – Minha lha, eu aqui neste mde mundo estou me perdendo. Com a cabeçaque tenho, em outro lugar já seria pelo menosgeneral.

Ercília vai até à cela. Abre a grade.

CEARIM – Que é isso?

ERCÍLIA – Um vestido de mulher, assim ele nãodescona de nada.

CEARIM – Ah, de mulher eu não vou.

ERCÍLIA – Vamos logo, não temos tempo a perder.

CEARIM – Vou car falado em todos esses arraiáspor aí. Ah se a madrinha me visse agora.

Ercília vai entreter o Sargento enquanto Cearimvai saindo de no com guarda-chuva na mão elenço na cabeça.

SARGENTO – Quem é essa mulher?

ERCÍLIA – É uma das meninas que veio me trazerum recado...

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SARGENTO – Ah, que belezinha... Venha cá,minha lha... Como ela é acanhada.

ERCÍLIA – É que ela é nova ainda.

SARGENTO – Venha cá, belezinha, dá um beiji-nho pra lei. Não adianta esconder a carinha, eusei que você é bonitinha...

ERCÍLIA – Ela é muito envergonhada.

SARGENTO – Só vai embora se me der um beijinho.

ERCÍLIA – Eu dou, não quer?

SARGENTO – Eu quero é dela. É por capricho.

CEARIM – (Dá com o guarda-chuva com toda aorça) Toma beijinho, seu lho de uma égua. Vábeijar a mãe!

CENA 17 MATO

NARRADOR – Com este expediente, Cearim,ajudado por Ercília, conseguiu escapar da ca-deia. Foi ao mato onde tinha deixado o baúcom as roupas.

Cearim vem vindo. Ouve um ruído e logo vemuma gura impressionante, com as roupas arre-bentadas e ramos de ores na cabeça.

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SACRISTÃO – Os anjos, todos os anjos... Anjo,você é anjo?

CEARIM – Que é isso... Ah! É a alma do sacristãovagando nas trevas.

SACRISTÃO – Os anjos, todos os anjos.

CEARIM – Pera aí, não é alma não... O sacristãoestá vivo, as balas pegaram na cabeça só de ras-pão e ele cou bobo... Veja só que sorte a sua,Seu Sacristão. Agora não posso deixar você sóno mato. Vem comigo, vamos procurar comida.Anal, levou os tiros no meu lugar.

Cearim abre o baú, tira dois hábitos de capuchi-nho, veste um e dá o outro ao Sacristão.

CEARIM – Pra quem anda fugido da polícia, nadamelhor que andar de frade. Vamos logo, quemeu estômago está grudando de fome.

NARRADOR – E Cearim mais o Sacristão desme-morizado seguiram a passo lento pela estrada,em busca de alguma boa alma que lhes desse oque comer. Chegaram a uma roça, onde algunscamponeses trabalhavam.

CEARIM – Bons dias, meus irmãos.

CAMPONÊS – Bom-dia, santo frade.

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CEARIM – Estamos passando para encontrar umaboa alma que nos dê o que comer.

CAMPONÊS – Ih, seu frade, comida aqui não temnão. O Coronel fechou o armazém e só vai darcomida se a gente der metade da colheita e oVigário faz a mesma coisa.

CEARIM – Pra nós não precisa ser muita coisa...uma carninha com farinha já dava pra quebraro galho.

CAMPONÊS – Não temos nem pra nós, seu frade.

CEARIM – Estava pensando...

SACRISTÃO – Os anjos...

CEARIM – Cala a boca... Vede, irmãos, ele estávariando de fome... Estava pensando que se nosdésseis um de comer, eu ia fazer uma reza dasboas pro Coronel e o Vigário abrirem o armazém.

CAMPONÊS – O que tem é só esta cuia de farinha...

CEARIM – Já serve, irmão, já serve...

Cearim come e dá um pouco ao Sacristão.

CAMPONÊS – Tá bom de gosto, seu frade?

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CEARIM – Está um pouco mofada. Mas pra quemama, fedor de bode é perfume.

CAMPONÊS – Passou a fome, seu frade?

CEARIM – Aliviou.

CAMPONÊS – E a reza que o santo frade vaifazer pra o Vigário mais o Coronel abrirem oarmazém?

CEARIM – É pra já... Atenção!

CEARIM E SACRISTÃO – (Cantam)Os anjos, todos os anjosOs anjos, tão bonitinhosOs anjos, tão gorduchinhosOs anjos, tão peladinhosOs anjos, tão bundudinhos

CEARIM – Que é isso, dizer uma coisa destas dossantos anjinhos. Olha aqui minha gente, reza só

não vai adiantar não.CAMPONÊS – O que é que adianta, então?

CEARIM – O causo é o seguinte... As terras aqui sótem dois donos. As terras do Coronel e as terrasdo fazendão do Padre. Pois se são só os dois que

tem terra é porque o resto não tem terra nenhu-ma. Então, o negócio é dar um jeito na espertezae levar as terras do Coronel e do Vigário.

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CAMPONÊS – Fazer uma coisa destas com o Vi-gário. Deus manda castigo.

CEARIM – Olha, ô berro de meia guela: Deusestá de férias. O que tem de fazer é despacharlogo o Coronel e o Vigário. Sei que vigário éministro de Deus na terra, mas também é donode terras. Então, passa a vara nos donos da terra

e o Vigário também vai no embrulho.

CAMPONÊS – Heresia... Mandado do diabo.

CEARIM – Olha aqui o insosso. O diabo renunciou...

CAMPONÊS – Acho que ele está falando certo...

CEARIM – Tem muitas coisas que vocês não sabem...Olha aqui gente, vem pra cá que eu quero contaruma história pra vocês, uma história que aconte-ceu comigo... Era uma vez um lugar muito triste,perdido nos longes do sertão. Nos meses de verão...

NARRADOR – (Continuando) A chuva deixavade cair, os rios secavam e a terra rachava... ECearim começou, ponto por ponto, a recontarsua história desde o dia em que tinha partidode sua terra, cantando em busca de felicidade...Contou tudo... O aparecimento da madrinha, o

testamento do cangaceiro, o cego, a noite comErcília, o irmão do cangaceiro, o vigário, o tru-que do saco, o disfarce do bispo... Enm, contou,

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ponto por ponto, tudo o que havia vivido desdeo dia em que começara a grande caminhada em

busca da felicidade. No seu recontar, os ouvintesforam entendendo que a bondade e a maldadenão resolvem, que não é porque o homem é bomou mau que as coisas acontecem, mas apenasporque o homem é como é. Foram entendendoque a terra devia ser de quem trabalhava nela. E

Cearim, no recontar da história, estava com eles.Quando Cearim acabou, um brilho novo e diferentedançava nos olhos dos lavradores e em seus cora-ções uma vontade de vida nova começava a tomarforma. E, ao compreender a história, a raiva maislinda do mundo brilhava nos olhos dos lavradores.

CEARIM – Estou certo?

TODOS – Certo.

TODOS – (Cantam: o coro da maldade)A gente não pode ser bom

A gente não pode ser mauQuando a gente quer ser bom acaba malQuando a gente é mau é bomQuando a gente é bom é malO melhor é mesmo serCada vez sempre mais mau.

CEARIM – (Canta)Mas a maldade não vai pra sempre existirPois um dia há de haver que a bondade há de vir

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Mas até esse dia chegar a gente tem que verTambém tem que pensar

pro dia chegartambém tem que lutarTodos vão ser bonsNinguém mais vai ser mauLindo dia de igualdadeQuando tudo vai mudar.

Enquanto os camponeses cantam a boca chiusa:

NARRADOR – Não guardo de meu uso. Conto.faço mesmo gosto de contar e recontar.Só por diversão de ver as caras mudarem de jeitoquando a história muda de jeito.Escolho as partes curtas,

que dão bom lugar de começo, meioe um bom ponto certo de paragem...Fim? Não... que só com morte ou cataclismo.

NARRADOR – (Canta)Era uma vezEra uma vez

Era uma vez uma históriae dentro da história tinha outra históriae na história da históriatinha uma porção de históriaEra uma vezEra uma vezEra uma vez

Finis

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As Aventuras de Ripió Lacraia

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As Aventuras de Ripió Lacraia

Leitura Dramática em 9 de agosto de 1994

Original de Chico de Assis

Direção: Silnei Siqueira

Elenco:

Umberto MagnaniCláudio Fontana (Ripió)Ugo NapoliBeto MagnaniAdriana WohlersAlexandre Aranha

Guga AranhaManuel SiqueiraMarcos FerrazMaria PrudenteMariana ToledoRodrigo Hornhardt

Sandro Nogueira Carotini

 As Aventuras de Ripió Lacraia, segunda peçada trilogia de cordel, foi encenada pelo TeatroNacional de Comédia no ano de 1963, no Rio deJaneiro, com Agildo Ribeiro no papel de Ripió.

A peça é um estudo dramatúrgico sobre o heróibrasileiro e a narrativa por episódios. Ripió é o

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herói popular que se transforma continuamen-te, de acordo com as aventuras (episódios) quevive. É um Deus Ex Machina, sempre presente esempre pronto a intervir em favor do povo.

A Trilogia do Cordel  se completa com O Tes-tamento do Cangaceiro (1960) e Farsa comCangaceiro, Truco e Padre (1967), ambas ence-

nadas pelo Teatro de Arena: o herói Cearim, doTestamento, foi interpretado por Lima Duarte,enquanto o herói Xandú Quaresma, da Farsa, foirepresentado por Antonio Fagundes.

Texto de Chico de Assis, constante do programa

da Leitura Dramática realizada em São Paulo, no Auditório Alceu de Amoroso Lima – R. da Conso-lação, 2341.

Encenação em 1963, pelo Teatro Nacional deComédia:

Ripió Lacraia: Agildo RibeiroMúsicas: Geny MarcondesCenários: Anísio MedeirosDireção: José Renato Pécora

Personagens:ContadorRosinha

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RipióCoronel MilitãoLiminãoRasga-BuchoZé-CastigoLisórioVelhoZileuGogãoCego#1Cego#2CiclópioVelha/Ripió

Cego/RipióGarimpeiro/RipióCangaceiro/RipióPadre/Ripió

Canções:

Canção do Prólogo (Contador, com Coro)Canção do Descanso dos Jagunços (Jagunços)Canção de Ripió Lacraia (Jagunço/Ripió, solo)Canção da Vida de Jagunço (Jagunços)Canção da Receita do Fechamento de Corpo(Ripió, solo)

Canção da Morte (Ripió, solo)Canção de Rosinha (Rosinha, solo)Canção do Caminho (Zileu, Gogão, Rosinha)

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Canção da Meia Estória (Contador)[Canção da Vida de Jagunço (Jagunços)]Canção do Cego/Ripió (Ripió)Canção dos Cegos Indo pro Eito (Coro de Cegos)Canção do Patrão (Ciclópio e Cegos)Canção do Retratão I (Ciclópio e Cegos)Canção do Mestre Inácio (Ripió)Canção do Retratão II (Rosinha e Cegos)

Canção de Silêncio (Ripió)[Canção do Que se Leva Deste Mundo(Jagunço/Ripió, solo)]Canção Final (Coro de Camponeses)Canção de Retirada (Todos)

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CENA 1 Canção do Prólogo

Que começa com uma canção, na qual um con-tador de estórias se propõe aos ouvintes.

CONTADOR – Viajante chegou nessa portaTanta gente ninguém viuMorreu infeliz passarinho

Dentro de sua gaiola oiMeu canto não vale nadaVou dar no pé vou-me embora

CORO – Ó de fora

CONTADOR – Ó de casaTem gente na portaNa beira da estradaPedindo guaridaPedindo pousada

CORO – Se é gente do povoÉ gente honradaÉ gente que é pobreE que num tem nada

Se é gente do povo

É gente honradaÉ gente que é pobreE que não tem nada

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CONTADOR – Só causos da vidaQue vi no caminhoQue guardo pra mimÉ estória pra ser contada.

CENA 2 APRESENTAO DE RIPI LACRAIA

CONTADOR – É de longe que eu venho. O pé

que leva.Andanças que só eu só, jeito de vida.Assim fui sempre, desde menino,Moleque pequeno, guri... Gosto.Há os que cam, então se ncam.Gente que diz: é bom dar parada e criar raiz.

CONTADOR – Sei lá, pobre nunca tem nada de seu.Então, eu ando, sei lá.Ando porque anda andarilho andejo.Por ser assim, eu sou que nem Ripió Lacraia.Quem é? Pois é o Lacraia!

CONTADOR – Não me admira que não se conheçapor esse nome.Tem muitos nomes e sobrenomes,Alcunhas, apelidos, pronomes,Assim como caras, roupas, disfarces e peles.Já vi chamar “Seu Ripió” de tantos...

Como: Zeferino, Taturana, Pedro Corneta,Godofredo Barrios, Barrica, Benevides,Tatu, Lau, Tito, Dois, Treis,

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Decamarte, Desidério, CarnegãoE por aí vai indo assim,

Até muitos que nem sei euDei no esquecimentoJá se viu quem o topasseComo Vaqueiro, mascate, doutor,Soldado, fantasma, farmacêutico.E até como Bispo, padre, mulher, menino...

Assim é seu Ripió.Muda muito: de jeito, de lugar, de nomes.

CONTADOR – Pois no respeito de não ter parada,Sou como Ripió que sempre dizia assim:Eu me z ser como semente de paineira peque-

na.Logo que a paineira ganha tamanho,Disposta a dar lenha, paina e sombra, ou or,Subo do chão, me estalo no altoE me mando de novo a voar.

CONTADOR – Sou como ele, isso eu sou... se sou.

Se dá que as paineiras crescem depressa demais.Deixando então uma vagabundagem muito erma.De vez em quando dá um só, um só anado,Meio assim como ferida, machucando.Então, paro onde encontro gente...Paro, conto.

São uns fatos que, de passagem,Se vê, se ouve, se guarda,Depois se junta tudo...

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Mais uma bossa, um jeitão de recontarE são os causos, estórias, lendagens.Por falar, me bateu um...Então eu conto...

CONTADOR – Um houve que era uma vez nostempos,Um fazendão muito extenso

Nas bandas do meio do sertão,Logo ali, pra quem passa a serra.O Coronel Poderoso dono das terrasEra um Militão Nãoseiquelá de BritoUm ainda herdeiro da gente portuguesa antiga.No fazendão dele a Lei era fome, reio e tiro.

Dava trato aos lavradores,Como é comum dos coronéis:Qué, qué. Num qué, istrada!

CONTADOR – Era um tal ruim que só gente ruim;Que é o que há de pior no mundo.Tanto, que tinha para sua defesa e ataqueUm bando de jagunços armadosQue fazer faziam mortes, surras, incêndiosSó ele mandasse. Quando não,Faziam só por se traquejar,Que era essa a prossão deles.

CONTADOR – Nesse fazendão, vivia um velhoDe nome Riano ou Ribano, nem me lembro.Pois o tal velho Ribano morava com uma menina

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Que tinha apanhado a criar, por ser órfã.Rosinha, a menina tinha por nome.

O velho mourejava no armazém do Coronel.Deu que um dia o CoronelAchou de achar faltaDe uns trens e mantimentos.Chegou, apertou o velho.Então, soube que alguém estava

Desviando mercadoria do armazém...Pois é aqui quando a narrativa ganha ação.Este aqui é o Coronel Militão.

CENA 3 PRIMEIRO EPISDIO

Entra o Coronel, de rebenque na mão.

CORONEL – (gritando) Lisório, ô cabra safado!

Entra Lisório.

CORONEL – Onde é que estão, seu cabra do cão?Cadê o velho e mais a menina que mandei trazer

aqui pra dar punição?

LISÓRIO – Ai, meu patrão, meu coronel, meuprotetor! Num me bate, num me bate, mas deudesgraça terrível!

CORONEL – Dê nas falas. O que foi o acontecido?

LISÓRIO – Buscar eu fui... Mas não dei de en-contro. Vim saber deram no pé, logo quando

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souberam que o patrão mandou buscar pradar castigo.

CORONEL – Ai, pelos cornos do capiroto, que issovai dar tragédia! Vai daqui, cabra mole, e mandevir meus jagunços, com seu chefe Liminão.

LISÓRIO – Num pé e volto noutro. (sai)

CORONEL – (para o público) Isso comigo não seé de fazer. Todos sabem que sou justo da velha

 justiça. A quem me fez prejuízo não dou trégua.Sigo, persigo e mando alcançar. É só o tempode campear. Que aqui nestas bandas não temperna comprida que carregue um longe do meucastigo. Aí vem meus jagunços!

Num tropel de cavalos entram três jagunços,carreirando e parando brusco.

CORONEL – Liminão!

LIMINÃO – Aqui pra tudo, patrão!

CORONEL – Rasga-Bucho!

RASGA-BUCHO – Onde é o fogo?

CORONEL – Zé-Castigo!

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ZÉ-CASTIGO – Pronto pra castigar!

CORONEL – É um serviço de urgência...

LIMINÃO – Qual é o rumo da missão?

CORONEL – Dar caça a dois danados que mederam roubo e prejuízo. Me busque, aonde for,

o velho Ribano mais a menina Rosinha.

RASGA-BUCHO – Qual é o crime da Rosinha?

CORONEL – Desmonte! Ouviu?

RASGA-BUCHO – Ouvi!

CORONEL – É fato.

RASGA-BUCHO – É fato? (levanta-se devagar )

CORONEL – De joelhos! Ouviu?

RASGA-BUCHO – Ouvi!

CORONEL – É fato.

RASGA-BUCHO – É fato?

Rasga-Bucho vai ajoelhar-se. Hesita. O Coronelfaz um sinal. Os outros jagunços dão com os

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cavalos, pinchando Rasga-Bucho no chão. OCoronel vai até ele e dá-lhe de rebenque.

CORONEL – Pois é: uma, duas, treis, as quatroe cinco!

RASGA-BUCHO – Pois me bateu!?

CORONEL – Bati. Assim o côro arde e não dánunca mais vontade de espicular perguntas dascoisas que mando. Aprendeu?

RASGA-BUCHO – Aprendi.

CENA 4 SEGNDO EPISDIO: CLAREIRA NA MATACONTADOR – Segundo episódio,No qual se vai ver de comoO velho e a menina se escondemNo mato para passar a noite.

Aonde irão de estar os perseguidos?Serão encontrados pelos jagunços?Se assim for, como será?Será o que tiver que ser.No mais, é bom que me mande,Não posso dar de encontro com os jagunços.

Ruído de vozes.

CONTADOR – São eles.

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Clareira na mata. Entram, com trouxas, o velho

e Rosinha.

ROSINHA – Está mal, avozinho?

VELHO – Cansado só. É uma corrida que não ter-mina nunca mais. Se, ao menos, a gente topasseuma cidade. (senta-se no chão, ao centro)

ROSINHA – Aqui, eles não encontram a gente!

VELHO – O danado Coronel, a estas horas, já deveter botado Liminão e os jagunços no nosso rastro.

ROSINHA – A gente escapa. Não desanima, vô...Tudo ca bom.

VELHO – E dizer que nem culpa temos! Ano maisano passei sem um grão de milho do Coronel.Ano mais ano, vi gente morrer de fome na porta

do armazém... Nunca, apesar da dor que sentia,nunca tomei um nada pra matar a fome dosdesgraçados...

E essa agora, quase no m da vida.

Rosinha chora.

VELHO – Não chora, lhinha.

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ROSINHA – Sabe, vô... Eu queria que tudo dessecerto, que a gente desse de escapar e que, saindodaqui, a gente chegasse num lugar diferente...Onde houvesse riso e dança sempre. Onde o vôpudesse descansar a velhice em paz. Onde hou-vesse moços e moças alegres... Comida farta...Trabalho justo.

VELHO – Só morrendo e sendo bom. Esse lugarque você qué não se encontra na terra...

É o céu, o reino de Deus. Lá, tudo é assim.

ROSINHA – Avô, como é que Deus parece?

VELHO – Deus é como uma coisa grande, semtamanho... Que não se vê, não se pega, só seouve falar... Dizem que mora nas nuvens emcima do céu, bem longe do grito e do cheirodos homens... De onde há de vir para julgar os

vivos e os mortos.ROSINHA – Os vivos e os mortos?

VELHO – Assim dizem...

ROSINHA – É triste a gente ter que morrer pra

vivê do jeito que a gente quer.

VELHO – Morrer parece triste m, mas é um prêmio.

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ROSINHA – Sei não... Às vezes, penso que, aqui

mesmo na vida, a gente pode ter uma paz...

VELHO – Assim como um tesouro!

ROSINHA – Assim como um tesouro?

VELHO – Falando assim, você me lembra seu pai,

ele também viveu buscando um tesouro!

ROSINHA – Encontrou?

VELHO – Sei lá... Sei não... Não sei.

ROSINHA – Por que meu avô nunca me fala do

meu pai? E nem da minha mãe?

VELHO – Porque sei lá... Nem sei... Um dia, eu

falo. Um dia, eu falo tudo de uma vez.

ROSINHA – Que seja logo...

Ruído de cavalos em disparada.

VELHO – Os jagunços...

Os dois se escondem no mato. Logo surgem os

 jagunços em disparada, gritando aos capangas.

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CENA 5 TERCEIRO EPISDIO: RIPI VIRA VELHA

CONTADOR – Terceiro Episódio,No qual se vai verDe como os jagunços param para descansarE agora, veremos um sensacionalAparecimento de um novo personagemQue virá modicar de todo nossa estória.

Beira de um córrego. Entram os três jagunços.

LIMINÃO – Parada! Descanso na procura.

RASGA-BUCHO – Arre! Paramos.

ZÉ-CASTIGO – Estou com a bunda chateada de sela.

LIMINÃO – Folgamos um pedaço de manhã.Longe não hão de estar.

ZÉ-CASTIGO – Ainda mais que estão nas pernas.O rastro logo se acha.

LIMINÃO – É bom dar tempo na procura, que dámais valor no trabalho.

RASGA-BUCHO – Verdade coisa vista que até jagunço descansa.

ZÉ-CASTIGO – Pois se há um sol...

LIMINÃO – Uma sombra.

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ZÉ-CASTIGO – Um banhado de água boa.

JAGUNÇOS – (cantam Canção do Descansodos Jagunços ) Até jagunço tem gosto em descansarPois se há um sol, uma sombra, um banhadode água boaAté a morte para um pouco pra esperar

Que é manhã bonita, bem bonita de verão

Até as nossas armas se aconchegam na bainhaAté o fogo dorme dentro do fuzilAté a briga se desmancha num sorriso

Que é manhã bonita, bem bonita de verãoQue é manhã bonita, bem bonita de verãoQue é manhã bonita, bem bonita de verão

Ouve-se uma gargalhada esganiçada.

LIMINÃO – Quem é que riu

Nova gargalhada.

ZÉ-CASTIGO – Sai do mato, sinão vai bala pratodo lado.

Nova gargalhada.

RASGA-BUCHO – Olhe o fogo na risada.

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Barulho no mato, de um lado. Os jagunços ati-ram juntos na direção daquele lado. Risada vemdo outro lado: os jagunços atiram. De um outrolado, cai de uma árvore uma velha, parecidacom uma bruxa.

VELHA/RIPIÓ – Aqui, meus jagunços!

Os jagunços se viram.

LIMINÃO – Quem és tu, velha bruxa? O que quercom os jagunços?

VELHA/RIPIÓ – Que pode querer uma velha comoeu? Um bate-papo e companhia, que há muitoninguém vem nestes ermos, e é de proveito ediversão saber coisas como vão indo... pelos ladosda serra ou da cidade...

LIMINÃO – Não está vendo, velha, que somos jagunços e não estamos pra conversa?!

VELHA/RIPIÓ – Quim – quim – caia – pinduricaia.Quim – quim – cão – penduracão. Sapo anda comsapo, cobra anda com cobra e cão anda com cão.Três jagunços malvados, nada melhor pra com-panhia de uma velha danada como eu.

ZÉ-CASTIGO – Sai pra lá, obra do demônio! Teesconjuro! (az o “em nome do pai”) 

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Estas falas, estas caras são para mim engenhosdo cachorro, fuzueira do diabo!

VELHA/RIPIÓ – Pois que sabendo que ele estácom vocês. Fique notando que não é outro oprotetor das guerras, matanças e tudo o mais.Padre se tem com a Trindade, jagunço com ocão amizade.

LIMINÃO – Credo em cruz, me benzo!

RASGA-BUCHO – Pra lá, velha maluca!

VELHA/RIPIÓ – Pra cá, meus jagunços! Tem aíuma pinga, um pedaço de fumo?

ZÉ-CASTIGO – Toma lá o fumo, mas não chegueperto, apanha no chão! (joga o umo)

VELHA/RIPIÓ – Que é isso, meu neto? Está commedo da vovó? Cachaça, não tem?

RASGA-BUCHO – Tem não.

LIMINÃO – Olá, ô velha indecente! Não viu pas-sar por estes lados um velho mais uma menina?

VELHA/RIPIÓ – Um velho enrugado e antigo,

velho quase acabado?

LIMINÃO – Pois certo!

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VELHA/RIPIÓ – Mais uma menina moça, muito jovem e muito linda?

LIMINÃO – Pois certo!

VELHA/RIPIÓ – O velho mais a menina, os dois juntos duma veis?

LIMINÃO – Pois certo certíssimo!

VELHA/RIPIÓ – Pois, assim assim, não! Vi umvelho e uma menina, mas o velho foi no mêspassado e a menina não faz uma semana ainda

LIMINÃO – Então, não viu nada que preste, velha

porcaria, pois estamos atrás de uns assim, queainda ontem por aqui devem ter alcançado.

VELHA/RIPIÓ – Não vi, mas posso ver. O porqueestão por eles?

LIMINÃO – São foragidos criminosos. Tem culpa

de roubo de certos pertences do Coronel Militão.

VELHA/RIPIÓ – Conheço muito bem o grandeCoronel. Não sabia que tinha exércitos, uma

 jagunçagem especial. O que roubaram os tais?

LIMINÃO – Chega de porquês, velha. Não há o

que comer em tua casa?

VELHA/RIPIÓ – Vê, minha casa é aqui mesmo.

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De comer, só um rato morto falecido e ama-nhecido, que posso preparar guisado na lama,se agrada!...

LIMINÃO – Nojenta! Velha bruxa!

VELHA/RIPIÓ – Si nunca comeu num sabe o gostoque deu...

RASGA-BUCHO – Ei, velha... Sabe se este rio é dedar pé a quem num sabe nadar?

VELHA/RIPIÓ – É rasinho por demais. Aqui nuncase afogou ninguém.

RASGA-BUCHO – Pois então vou me lavar.

Rasga-Bucho vai atrás de uma moita, tira a roupae a coloca em cima de um arbusto.

LIMINÃO – Sabe onde há gente morando em

casa, aqui perto?VELHA/RIPIÓ – Logo ali adiante, na curva.

LIMINÃO – Segue no banho, Rasga-Bucho, quevamos eu e Zé-Castigo dar uma espiada, logovoltamos... Fica aí, velha, toma conta do cavalo

e da roupa.

Os dois saem a cavalo.

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VELHA/RIPIÓ – (indo até o arbusto) Tá na água,meu lho?

RASGA-BUCHO – Inteiro, velha porca. Delícia deágua boa.

A velha se modica. Tira a saia, aparece a roupa dehomem por baixo. Pega as roupas de Rasga-Bucho,

monta a cavalo. Tira o lenço da cabeça e colocao chapéu de jagunço de Rasga-Bucho.

VELHA/RIPIÓ – Tá bom o banho, meu lho?

RASGA-BUCHO – Muito bom, velha nojenta. Umdia precisas tomar um!...

VELHA/RIPIÓ – Tenha bastante proveito! Adeus,meu lho... (sai)

CENA 6 QARTO EPISDIO: RIPI VIRA JAGNO

CONTADOR – O que é, o que é?Que, agora é jagunço,Há pouco atrás já foi mulher?O que é, o que é?

Uma clareira. Entram o velho e Rosinha.

VELHO – Água, por aqui, deve haver!

ROSINHA – Procurando...

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VELHO – É um ermo de oresta.

ROSINHA – Melhor é seguir sempre numa direçãosó. Assim, a gente dá de encontro em algumaparagem a salvo.

VELHO – Queria seguir rme, mas já não aguentoir lá das pernas...

ROSINHA – Descansa. Mais logo então a gentesegue.

VELHO – Será que, dali se olhando, não se avistaalgum fumo ou fogo? Uma casa de gente, já seriade grande auxílio.

ROSINHA – Eu vou dar uma olhada pra ver.

Rosinha sobe na clareira e logo ouve-se um ba-rulho no mato. O velho se assusta.

VELHO – Rosinha, minha lha! O que é que se deu?O velho corre até à beira do mato. Atrás delesurge Ripió, de jagunço, segurando Rosinha etapando a boca dela. O velho se volta.

JAGUNÇO/RIPIÓ – Boa tardes, vovô. E por que

o susto?

VELHO – Por Deus, não faça nada à menina!

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JAGUNÇO/RIPIÓ – Quem sou eu, por Santo Anto-nio do Curralinho, pra fazer de mal a um vivente

cristão? Faço nada, não!

VELHO – Então, por Deus, solte a moça.

JAGUNÇO/RIPIÓ – (ri) Quem sou eu, por São Bo-nifredes do Pito Virado, pra soltar alguém queo Coronel Militão mandou prender?...

VELHO – Nós não zemos nada. Não temos nada.

JAGUNÇO/RIPIÓ – Mas quem sou eu, por SantoAnastácio das Porretadas, pra dar juízo e saberfazer diferença da vossa palavra e da palavra doCoronel? Inda mais que ele é um grande coro-

nel, dono de muitas terras, e vós sois um velhoe uma menina sem nem bagagem. Ainda maisque fujões e corridos.

VELHO – (jogando-se aos pés dele) Por amor desua mãe, solta a menina. Quem ajuda os pobreca bem com Deus.

JAGUNÇO/RIPIÓ – Por amor de minha mãe éque não posso, pois minha mãe não conhecie quem não conhece não ama. O mesmo valepra Deus, que eu ainda não tive o prazer... Todocaso, vou soltar por meu descanso, mas não vãodar jeito de fuga, que mando fogo e logo faço

brotar nesse mato duas cruzes.

Ripió solta Rosinha, que corre e se abraça ao velho.

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ROSINHA – Voltar nós não voltamos, se quiserque leve a gente morto.

JAGUNÇO/RIPIÓ – Quem sou, por São Beneditodos Anzóis Carapuça, para matar dois que tenhode levar de volta?... Prero levar vivos... Quá...Vão pelos pés próprios, o que é muito melhor...

VELHO – Olhe, seu jagunço... Sei que é novono serviço do Coronel, inda não conhece bemaquele homem. Ele é mau como peste! Nós numtemo dinheiro, mas prometo e dou palavra quesi deixar a gente seguir, logo juntamos algumcom trabalho e pagamos a fuga.

JAGUNÇO/RIPIÓ – Por Santo Antão das Dicul-dades! Quem sou eu, pra fazer serviço ado?Trabalho de jagunço é de ser pagado na hora,ou antes. Deixar pra depois é risco demasiado,pois nunca se sabe se si ca vivo nos nais. No

mais, acho que o destino de vós dois está pordemais marcado e demarcado. Que diantavaquerê mudança?

ROSINHA – Não adianta, avô... Que leve a genteduma veis...

JAGUNÇO/RIPIÓ – Quem sou eu, por São Eleu-tério do Umbigo Seco, pra ter presos, neste

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mundo vagarento? Olhem lá... Vós sois meusprisioneiros. Atenção, atenção nos meus ditose nas minhas decisões. Calma e respeito, que alei do jagunço vira fácil do lado da morte e, aí,não tem mais o que se discuta... No máximo,umas missas, umas preces, umas velas. Então,pergunto, o que escolhei vós dois?

Caminhar comigo até o Coronel ou uma santahora de morte aqui, neste nosso instante?

ROSINHA – Eu pra lá num volto, já falei!

VELHO – Mate este velho, que não presta pra

mais nada e deixa a menina seguir. Diga queela deu de escapar, o Coronel quer mesmo éa menina.

JAGUNÇO/RIPIÓ – Tá... si... Pedido de moribun-do é ordem, não posso deixar de atender. Estáacertado. Mato o velho e levo a menina.

ROSINHA – Não, avô. Se tem que morrer um,que morram os dois. Mate a gente de uma veis.

JAGUNÇO/RIPIÓ – Olha, que por minhas andan-ças jagunceiras... Francamente. Não por si. É a

primeira vez que vós estais me pedindo!

VELHO – (correndo para um lado) Atire, vamos!

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Ripió faz pontaria. Rosinha se lança sobre o velho.

JAGUNÇO/RIPIÓ – Olha a bagunça na hora dotrabalho. Assim, de juntamente, não dá pra ser...

VELHO – Filhinha, pelo amor de Deus. Deixe queseja assim!

O velho empurra Rosinha com força, para um lado.

Ripió, frio, atira. O velho cai. Rosinha se jogacontra Ripió, batendo nele com os punhos cer-rados. Ripió a domina e a afasta de si.

JAGUNÇO/RIPIÓ – Pra lá, menina. Vê direito seo velho esticou mesmo.

VELHO – (mexe-se, levanta-se, a calça cai) Pegouraspando!

JAGUNÇO/RIPIÓ – Claro! Quem sou eu, por

Santo Ambrósio da Caveira de Burro Branco,pra dar tiro no suspensório e acertar donoda calça?!...

ROSINHA – Seu malvado, miserável. Se divertecom a desgraça da gente!

JAGUNÇO/RIPIÓ – A desgraça acabou... Podeisdar no pé... Já, os dois, vão!...

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VELHO – O que?

ROSINHA – Podemos ir?

JAGUNÇO/RIPIÓ – Podem, não! Tem que ir. Hojeé dia do meu aniversário e resolvi, em veis decomemoração, deixar vós dois viver em sossego.Vou dar um, dois e três. No três, quando olhar,

não quero nem ver nenhum dos dois, senãomudo de ideia... Lá vai um...

ROSINHA – Obrigada!

JAGUNÇO/RIPIÓ – Lá vão dois...

Os dois correm desesperados.

JAGUNÇO/RIPIÓ – Lá vão usssssssssssss...

JAGUNÇO/RIPIÓ – (canta Canção de Ripió Lacraia ) Deste mundo a gente levaSó o bem vivido e ridoDeste mundo a gente levaO que se fez divertido

Deixa pra láTudo o que for sem graçaBota pra trás

O que for triste passaO que não prestaNão serve para ser vivido

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A vida tem de ser festaViver é tão divertido!Olhar o céu é risoCheirar o mato é risoCorrer no campo é risoTomar cachaça é risoBeijar mulher é risoContar estória é riso

Brigar de faca é risoFazer trapaça é risoDormir na palha é risoViver assim é riso

CENA 7 QINTO EPISDIO

CONTADOR – Quinto episódio:No qual se veráDe como a estóriaVolta sobre si mesmaNum zás.

RIPIÓ – (continua a cantar) Deste mundo a gente levaSó o bem vivido e ridoDeste mundo a gente levaO que se fez divertido

Deixa pra láTudo o que for sem graçaBota pra trás

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O que for triste passaO que não prestaNão serve para ser vivido

No m da canção, Ripió ouve um tiro. Estanca.Deita-se e vai se arrastando pegar a arma juntoà pedra.

LIMINÃO – (ora ainda) Num pegue! (entrando) Não pega as armas! Cadê a velha?!

RIPIÓ – Cadê quem, pois não?

LIMINÃO – A velha, pois sim!

RIPIÓ – Que velha, pois não?

LIMINÃO – A que te deu o cavalo, estas roupase estas armas!

RIPIÓ – Foi velha não, seu jagunço. Eu conto...Vinha andando no meu caminho quando, atécom meio susto, deparei com estes trens. Chameimuito em volta, a vê si o dono estava por perto.Nada de resposta. Achei por justo de levar comi-go pra, um dia topasse o dono, fazer devolução.

LIMINÃO – E por que vestiu?

RASGA-BUCHO – Ah, seu jagunço, eu achei porbem ao menos aparentar... O senhor sabe, foi

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pelas estórias de tiro e luta, que sempre a genteouve contar nas bodegas ou nas rodas sabidas.

Liminão dá um sinal de assovio. Rasga-Buchosurge do mato, metido em uma barrica.

RASGA-BUCHO – Cadê aquela miserável velha docapeta? (avança para Ripió, a barrica cai)

LIMINÃO – Tá aí a sua roupa! (dá outro assovio)

RASGA-BUCHO – Tire a roupa já, seu moleque.Só pode ser o lho da velha.

Zé-Castigo vem do mato, trazendo o velho e a

menina, amarrados.

LIMINÃO – Cuidado com os bichinho, que senãodão na escapada.

ROSINHA – (vendo Ripió de costas, se atira aos

 pés dele) Ah, seu bom jagunço, mande soltara gente!

Ripió se volta e ela não o reconhece.

LIMINÃO – Pode pedir à vontade, que este nãoatende ninguém. Não é jagunço, não.

RASGA-BUCHO – É o lho de uma velha nojenta.Vá já tirando a roupa que sua mãe me roubou.

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Ripió tira a roupa, pede para Rosinha se virar,

ca de ceroula, entra na barrica no lugar de

Rasga-Bucho.

RIPIÓ – Posso ir andando, no mais, pois sim?...

Assim, sem roupa, é capais de me dar uma espi-

nhela caída ou mal maior.

LIMINÃO – Pelo sim, pelo não, acho melhor

prender sua senhoria. Pelo roubo das roupas,

cavalo e armas de meu comparsa.

RASGA-BUCHO – Assim é de ser feito. Morte ao

lho da velha.

RIPIÓ – Mas eu não sou lho de velha nenhuma.

LIMINÃO – Descanse que logo será julgado e

condenado. Vamos, minha gente, a cavalo. Assim

chegamos cedo.

Surge Zé-Castigo que estava montando guarda

no mato.

ZÉ-CASTIGO – Vem gente no mato. Dois, em

duas montarias.

LIMINÃO – Prenda e traga a ver quem são.

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CENA 8 OS BRREIROS

Logo vem pelo mundo dois burreiros, com seusburros carregados de mercadorias, cachaça, car-ne, farinha, panelas, etc.

LIMINÃO – Parada! Pois então, quem são taisburreiros, que andam perdidos neste perigo

de mataria?

GOGÃO – Estamos perdidos, não. É cortandocaminhos que a gente caminha na mata.

LIMINÃO – E que mercadoria é que os burreiroscarregam, pode-se saber?

GOGÃO – Umas poucas barricas de cachaça,carne-seca e farinha para vender no mercado.

LIMINÃO – Cachaça, carne e farinha? É de boaqualidade a sua mercadoria?

GOGÃO – Da melhor. A cachaça é da primeiraalambicada. A carne-seca é das melhores partesdo boi e a farinha, nem se fala.

LIMINÃO – E qual o apreçamento do lote porinteiro?

GOGÃO – Olhe que, por tudo, vai por... Deixever... Trinta e quatro mais setenta e quatro, mais

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noves fora e dez por cento, e um pelo outro...Fica por cinco contos. Bem barato, pra economi-

zar a viagem ao mercado. Se sirva.

LIMINÃO – Zé-Castigo, desmonta as mercadorias.Olha aqui, seu burreiro, que sabendo de que foiroubado em cinco contos, mas em compensação,sobra a alegria de saber que está dando almoço

de grandes farnéis a três jagunços do CoronelMilitão, mais dois prisioneiros.

GOGÃO – Ai, as minhas mercadorias... Por favor,seu jagunço, é a minha falência.

RIPIÓ – Paciência. Os jagunços tem fome e pre-

cisam de comer. Pagar comida é de muito poucadignidade. Aceite sua sorte e vá sentando aí pracomer conosco.

GOGÃO – Eu vou é mimbora!

LIMINÃO – (dá um tiro no chão, pra assustar) Vai

car é aí mesmo, e o outro burreiro.

Se solto vão chamar a polícia pra trazer tormentona calma. Vamos, meus jagunços, é um banque-tão em festejo à prisão dos fugitivos.

GOGÃO – Ai, ai minha mercadoria!...

LIMINÃO – (para Ripió) Você aí, ô lho da velha.Arrume os comes e bebes e sirva aos jagunço.

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RIPIÓ – É pra já.

RASGA-BUCHO – Vamos a essa cachaça de pri-meira e amaciada.

LIMINÃO – Alto lá, Rasga-Bucho. Cachaça amo-lece e dá sono, você dorme e eles te caem napele. Vamos tomar só um pouco, o suciente

pra dar alegria. O que der uma borracha, é boamedida. O resto levamos pra uma festa melhor,na nossa volta.

ZÉ-CASTIGO – É certo.

RASGA-BUCHO – Vamos nos pôr a gosto com taisespeciarias. Salve o bom burreiro.

ZÉ-CASTIGO – Salve, salve todos os burreirosprevidentes, que carregam farnéis pelas mataspra dar de comer aos jagunços com fome.

GOGÃO – Agradeço, mas se sobrasse algum eugostaria de levar.

ZÉ-CASTIGO – Há de sobrar, há de sobrar. (ri)

RIPIÓ – (arrumando as coisas para servir) Aqui

está, pra princípio, a borracha de cachaça. As-sim, prepara o dente pra receber a carne de solcom farinha.

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LIMINÃO – Que venha. Vamos, meus jagunços,não se esqueçam, uma borracha só.

Os jagunços avançam na cachaça. Zileu olhaRosinha amarrada e vai até ela. Olham-se.

RIPIÓ – Aqui está, carne com farinha. E bomapetite, nobres jagunços.

LIMINÃO – Esse lho da velha está saindo melhorque a encomenda, como servente!

RIPIÓ – É de honra servir tão augustos comensais...

RASGA-BUCHO – Morte ao lho da velha...

LIMINÃO – Não ca bem tanta comida e cachaçasem uma cantoria. Vamos lá, canção dos jagunços.

Os jagunços cantam a Canção da Vida de Jagunço.

RASGA-BUCHO – (canta) Nós somos três jagunçosNosso chefe é LiminãoQuem paga a jagunçagemÉ o Coronel Militão!

Viva! Três vezes viva!Viva! Três vezes viva!Viva nosso patrão!

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ZÉ-CASTIGO – (canta) O jagunço quando bebeCuida de não dar no chãoQue jagunço muito alegreÉ jagunço no caixão!

Durante a cantoria dos jagunços, Ripió coloca ascabaças de bebida dentro da barrica.

RASGA-BUCHO – (canta) O jagunço quando comeCome pelo mês inteiroPorque num dia ou outro láLá se vai todo dinheiro!

Viva! Três vezes viva!Viva todos companheiros!

LIMINÃO – (canta) O jagunço quando amaÉ com dez de cada vezCom todas cai na camaE nem assim ca freguês!Viva! Três vezes viva!A mulher que Deus nos fez!

LIMINÃO – Agora, meus jagunços, pra aproveitara hora divertida, vamos ao julgamento do lho

da velha.

RASGA-BUCHO – Morte ao lho da velha!

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ZÉ-CASTIGO – Espera, Rasga, não se deve matarantes de um bom julgamento, que é coisa quedeve se engraçado... Eu bem sei, já fui julgadoe condenado.

RIPIÓ – Seus nobres jagunços, não é melhor dei-xar isso para os nais da festa?

RASGA-BUCHO – Morte ao lho da velha!

LIMINÃO – Eu sou o juiz. Rasga-Bucho acusa eZé-Castigo defende.

RIPIÓ – Olha, nobre chefe da jagunçagem, não

seria melhor alvitre que eu mesmo me defendes-se? Não que não seja conante no empenho doamigo, mas é que sei melhor do acontecido, epodia dar maior claridade.

RASGA-BUCHO – Morte ao lho da velha!

LIMINÃO – Negado o pedido. Réu é réu. Come-çamos. Estamos aqui, nesta mata, reunidos paradar julgamento e m certo no réu que está nanossa frente. Isso em nome do Padre e do EspíritoSanto, da Virgem Santíssima e nosso próprio, que

somos jagunços de prossão.

RASGA-BUCHO – Morte ao lho da velha!

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RIPIÓ – Esse infeliz não dá outras palavras, pareceengasgado. Não seria melhor dar-lhe cachaça ever se desengasga?

LIMINÃO – Não troque, por confusão, engasguecom vontade de ver morto. Em todo caso é umbom acompanhante para este julgamento. Va-mos, Rasga-Bucho, pode começar a acusação.

RASGA-BUCHO – Pois foi que, enquanto estavan’água, a velha mãe desse lho de uma velha –uma bruxa muito indecente, muito repelente,muito encarquilhada, muito embolorada, muitoestercada – me deu na escapada com meu ca-

valo e meus trens de guerra, assim como roupae tudo o mais. Me indignei, no mato andandodentro de uma barrica. E quem visse, nem diriaque era Rasga-Bucho, o jagunço, mas que umgraçola qualquer. Portanto, é um alto crimecontra a jagunçagem nos gerais e no meu causoem especiais. Peço com toda piedade: morte aolho da velha!

LIMINÃO – Muito que bem ou muito que mal,acabou-se de ouvir o atacado...

Zé-Castigo, pode defender.

RIPIÓ – Capricha, seu Zé-Castigo, que eu estouposando de inocente.

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ZÉ-CASTIGO – Pois se eu defendo o jagunçoRasga-Bucho, meu amigo, de tais indignidades

e peço a condenação do réu, nos termos dospossíveis nesta mata virge.

RIPIÓ – Seu juiz, pode falar? Então, ele defendeo outro?

LIMINÃO – Cada qual defende quem acha certoe, sem mais aquele, condeno o réu fulano à mor-te por tiro de tudo quanto é lado, aqui mesmoe agora mesmo.

RIPIÓ – Mas eu não me sobro nem pra falarem defesa?

LIMINÃO – Pode falar suas últimas palavras erezar suas últimas rezas.

RIPIÓ – Ora veja!

LIMINÃO – Faladas suas últimas palavras que,ainda não fazendo sentido, vem do coração,passemos à execução.

Os jagunços se preparam.

RIPIÓ – Ainda falei não. Vou falar, diante dos

que vão me matar, apenas umas palavrinhas.Meu avô, que Deus o tenha, quando pra estemundo, em 1889...

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RASGA-BUCHO – Pera lá! Que pra chegá do avôno neto, a gente já criou raiz!

RIPIÓ – Meu pai, quando nasceu...

ZÉ-CASTIGO – Olha que do pai ao lho, a gentecansa por demais...

RIPIÓ – Quando eu nasci, o que não faz muitotempo, me deram o nome de Jurubeba.

Isso foi em homenagem ao maior jagunço que já existiu!

LIMINÃO – Verdade, eu conheci.

RIPIÓ – Pois meu pai me deu esse nome por terpertencido ao bando de Jurubeba, a serviço doCoronel Leopoldo Sá de Correia Cavalcanti...Como todos sabem, Jurubeba tinha o corpo fe-chado e, portanto, nunca foi ferido nem atingidoem toda a sua vida. E meu pai também, pois sefoi meu avô, que era dado à magia, quem fechouo corpo dos dois!...

ZÉ-CASTIGO – Está falando demasiado...

LIMINÃO – Deixa ele falar, tenho interesses por

esses tal fechamento de corpo. Uma veis me fe-charam e, dias depois, levei dois tiros na barriga.Quando sarei, fechei os olhos e fechei o fechador.

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RIPIÓ – Pois se eu garanto que esse fechamentofoi quem garantiu a vida de Jurubeba e meu pai.Se de gosto dos jagunços, antes de morrer, eugostava de oferecer a receita.

LIMINÃO – Pois diga...

Ripió canta a Canção da Receita do Fechamento

de Corpo.

RIPIÓ – (canta) O jagunço que quiserVer o corpo bem fechadoSerá se ele zerTudo aqui o que vai mandadoÉ um é dois é trêsTudo aqui o que vai mandadoÉ quatro é cinco é seisTudo aqui o que vai mandado

RIPIÓ – (canta) 

Meia-noite na sexta-feiraTem de ir na encruzilhadaLevando na algibeiraUma faca bem aadaAo chegar na encruzilhadaVeja se ninguém passa

Então dê uma golaçaNa garrafa de cachaçaÉ um é dois é três

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Na garrafa de cachaçaÉ quatro é cinco é seisNa garrafa de cachaça

RIPIÓ – (canta) Depois grite bem sonanteVenha cá seu LuciférE verá no mesmo instanteA faca virar colherPegue então nessa colherDê um bafo que ela embaçaDiga um nome de mulher(cada um diz um nome de mulher)

Beba um litro de cachaçaÉ um é dois é trêsBeba um litro de cachaçaÉ quatro é cinco é seisBeba um litro de cachaça

RIPIÓ – (canta) Reze então uma reza bravaEsta aqui que vou dizerQue o Demo pé de cabraVirá logo lhe atenderÉ um é dois é três

Virá logo lhe atenderÉ quatro é cinco é seisVirá logo lhe atender

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RIPIÓ – (canta) Mas para rezar com raçaÉ um é dois é trêsMais um litro de cachaçaÉ quatro é cinco é seisPois me verá no mesmo instanteNo embaçado da colherAparecer o semblante

Do cumpadre Lucifér(joga a barrica para fora)É um é dois é trêsDo cumpadre LuciférÉ quatro é cinco é seisDo cumpadre Lucifér

RIPIÓ – (canta) Se as pernas dé de tremêMais cachaça pra beberÉ um é dois é trêsMais cachaça pra beber

É quatro é cinco é seisMais cachaça pra beber

RIPIÓ – (canta) Quando o compadre vierReze alto e com fé

Dê pinga se ele quiserQue seco o diabo não éÉ um é dois é três

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Que seco o diabo não éÉ quatro é cinco é seis

Que seco o diabo não é

RIPIÓ – (canta) Não faça a temeridadeDe deixar beber sozinhoDê pra ele a metade

Tome metade sozinhoDestampe com cuidadoOutra garrafa de cachaça(troca as cabaças)Vá tomando um bocadoQue é pra a reza ter mais raça

E reze assim reerguendo a taçaDeus é três em umO diabo é só umO que pra Deus é duroO diabo faz e sóBrinde a demoníssima unidadeQue é mais forteQue a santíssima trindade

RIPIÓ – (canta) Deus só tem três nomesPadre o esprito santoO diabo tem demais

Não se sabe bem o quantoBrinde o cão, o demo, o diabo,O lúcifer, compadre

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O pé de cabra, o tinhoso,O cachorro, anjo das trevas.No nal da canção, os jagunços, muito bêbados,vão se encostando uns nos outros e caem, todosde uma vez.

RIPIÓ – (tirando a roupa de Rasga-Bucho) De-

pressa, gente, dar no pé enquanto dá!ROSINHA – Vamos vovô!

GOGÃO – Espera aí. Zileu, vamos carregar comos burros e as mercadorias.

ZILEU – Acho melhor seguir já já, sem os burros...

GOGÃO – Eu não estou pedindo, estou mandan-do. Vá lá e traga os burros.

ZILEU – Vou não.

GOGÃO – Filho duma vaca, quer ver minha falência?

ZILEU – Pois seja...

Zileu volta pra buscar o velho. Rasga-Bucho acor-

da um pouco e dá um tiro pra qualquer lugare acerta o velho. Ripió carrega com ele e todosdão na escapada.

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CENA 9 EPISDIO TRISTE

CONTADOR – Pedimos a todos que aqui estão,Dando olho e orelha nesta nossa narração,Um momento de silêncio.É um episódio triste,Talvez o mais triste da estória.Episódio no qual se verá de como o velho Ribano,

Na última hora da morte,Dá notícia de uma legado à menina.Tristura que vamos sentir.No qual veremos tambémQue, depois do passamento do velho,Uma proposta deslumbrante

Se apresentou para a Rosinha, Zileu e omascate Gogão.No mais, teremos o desaparecimento da velha,Ou do lho da velha, ou do jagunço,Ou do réu ou, sei que mais,Sabemos ser Ripió, o Lacraia.

Perto das ruínas de um casebre, entra um vulto.É noite. É Ripió que vem se esgueirando lento.Revista o casebre e depois chama:

RIPIÓ – Podem chegar que é tudo na paz.

Os outros vêm, Zileu carregando o velho. Ripió

acende uma vela num canto.

ROSINHA – Cuidado com ele...

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Depositam o velho em cima de uma esteira.

ROSINHA – O que a gente vai fazer?

RIPIÓ – (depois de olhar a ferida) Acho que es-perar uma paz que há de vir depois desta dor.

ROSINHA – Não é nada, é mais uma mentira sua.

(vai abraçar o velho)VELHO – Não chegue, minha lha, que apressaminha partida e tenho muito que falar.

RIPIÓ – É uma ferida funda e ingrata. Tem poucotempo, meu velho... Fale com jeito em pressa o

que tem e depois descansa na morte.

ROSINHA – Ah! Meu Deus! Que tristeza...

ZILEU – Assim há de ser com nós todos um dia,por isso, amém!

VELHO – Minha lha... É preciso que te conte ete informe de coisas importantes...

Ouve com atenção, que não terei, na certa, oca-sião de repetir. Sempre quei de contar um diaa estória do teu nascimento.

VELHO – Uma vez, era ainda meio moço, moravaem uma cabana nas terras de uma fazenda onde

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era lavrador. Me apareceu pelo meio de umanoite um cavaleiro meio despencado da selade um cavalo muito cansado. Apeiou na minhaporta com um embrulho de pano na mão. Vi-nha muito triste, ferido e muito mal de muitostiros e sangrava tanto. Mais, muito mais queeu, agora. Me jogou o embrulho nos braços ecaiu na minha porta. Peguei e senti um calor...Era uma criancinha. Disse que eu cuidasse dela,que ele morria na certa. Contou ainda que erapor causa dela que ele tinha sido tocaiado.Foi por seu casamento às escondidas com a lhade um fazendeiro inimigo de seu pai, também

poderoso. As famílias viviam em guerra porcausos de terras e os dois se gostaram por cimade tudo. Seu pai me contou tanto mais coisasque lhe deram as horas que restavam. Tinha emseu poder uns mapas, uns escritos que disse serde um grande tesouro que havia descoberto nas

suas andanças. Um mapa marcado por pontosmaravilhosos de procura. Fenômenos perdidosno sertão os quais encontrou na sua grandebusca. Me pediu que, quando você se zessemulher, eu lhe daria os mapas e os escritose pediria que fosse em busca de tal tesouro,

pois só o descobrindo poderiam, você e muitosoutros, encontrar felicidade. Disse também pravocê tomar cuidado, muito cuidado com...

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ROSINHA – O que, avô, fala!

ZILEU – Mais nada, menina. Ele partiu...

RIPIÓ – Deus se apiede da alma dele.

GOGÃO – Um tesouro!

ROSINHA – Meu avô querido. (chora)

ZILEU – (trazendo uma vela) Em nome do Pa-dre, Filho e Espírito Santo, amém. (vai azendouma cova)

RIPIÓ – (canta Canção da Morte ) 

Nem fome nem eitoNem dor nem mais amorSua alma virou passarinhoLindo voo levantouFoi pra longe seguir seu caminhoFoi pro céu pra lá voou!O que era da terra volta pra terraO que era do Céu Deus já levou.

Ripió e Zileu carregam o corpo atrás de uma pedra.

RIPIÓ – (repete o canto) Nem fome nem eito

Nem dor nem mais amorSua alma virou passarinhoLindo voo levantou

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Foi pra longe seguir seu caminhoFoi pro céu pra lá voou!O que era da terra volta pra terraO que era do Céu Deus já levou.

ZILEU – Está já na cova esperando a última terra.

GOGÃO – E o mapa do tesouro? Convém pro-

curar! Antes do enterramento. (vai ver o velhona cova)

RIPIÓ – Não precisa... Está aqui... Peguei caídono chão, ao lado do corpo.

ROSINHA – O que vem a ser? (pegando os papéis)

RIPIÓ – Uma papeladas muito antigas. Uns ma-pas, uns escritos.

ROSINHA – (pega, olha) Num sei lê... É de proveito?

GOGÃO – Eu sei, deixa, eu leio... (lê:) Para minhaflha, no dia em que puder ser livre e sair na procu-ra do tesouro. Nos mapas e nos escritos encontraráos caminhos por mim percorridos e, se tudo fzer de acordo, chegará ao grande tesouro. Primeiraviagem começa se olhando o céu em noite de

estrelas. É o prumo norte que é indicado pelacabeça do Cruzeiro do Sul. Toma caminhos osque levam ao contraorte da Serra do Espigão

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e de lá até o Fazendão Santa Luzia. Lá se vai encontrar a primeira maravilha...

ROSINHA – O que será essa maravilha?

GOGÃO – O que será esse tesouro?

RIPIÓ – Só indo até lá e dando com os olhos

próprios.

ROSINHA – Que bom seria poder cumprir avontade de meu pai e do velho avô que morreuinda pouco!...

GOGÃO – Isso pra uma moça é um despropósitode andarilhagem... Eu, por mim, tenho uma pro-posta a fazer. Me venda os mapas e os escritos,que eu vou atrais.

ROSINHA – Um dinheiro até que seria bom nestemomento... Estou sozinha.

ZILEU – E se é de sua vontade, vamos os dois emais o moço em busca destas maravilhas.

GOGÃO – Como é que vai indo assim, semmais aquela?

ZILEU – Pois não tenho casa, nem parentes, soulivre para escolher ir com a moça.

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GOGÃO – Não sabe que trabalha para mim?

ZILEU – Pois já deixei, não trabalho mais. Pegueos burros e leve.

GOGÃO – Num é de tantas facilidades deixar omeu emprego de uma hora pra outra.

Quem me paga o que deve de adiantados?ZILEU – O que trabalhei até hoje já dava ecom sobras.

RIPIÓ – O quanto é a quantia devida?

GOGÃO – Uns dois contos, por baixo, pra termi-nar a briga.

RIPIÓ – Pois lhe cobra quatro por ter salvado asua vida e suas mercadorias dos jagunços.

GOGÃO – O quê? Vê lá se é possível...

RIPIÓ – Tanto é possível que se não paga já já, eulhe tiro a vida, que está no meu direito. (apanhao revólver)

GOGÃO – O senhor está brincando. (ri) Está

brincando...

RIPIÓ – Paga ou não paga?

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GOGÃO – Pago coisa nenhuma!

RIPIÓ – Isto é como aviso. (atira no pé)

GOGÃO – Está maluco, quer me matar? Este épior que os jagunços! Você não faz nada, Zileu?

ZILEU – Ele está no seu direito. Foi quem salvou

a gente da morte.

GOGÃO – Qual morte, qual nada! O chefe dos jagunços era meu amigo.

RIPIÓ – Pois fale com ele, que vem vindo aí atrais.

Gogão vira-se para trás e cai de joelhos, mor-rendo de medo.

RIPIÓ – Então, ele é seu amigo, pois não? Descon-tando o que deve Zileu, ainda falta dois contos.

Fico satisfeito se me pagar em mercadorias no justo preço.

GOGÃO – Ai... minhas mercadorias!

RIPIÓ – E se faça de satisfeito, por não ter perdido

tudo, mais essa sua vida miserável juntamente.

GOGÃO – Está certo, mas um dia você me paga!

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RIPIÓ – Chegando o dia, a gente se vê, que quempuder mais chora menos. Zileu, está acertada

sua dívida.

ZILEU – Fico agradecido para sempre. Aondeestiver, o que for meu, seu será também.

Como é o nome de quem me fez o bem?

RIPIÓ – Ora pois se eu sou chamado de Gonçalãode Pedreirinha.

ZILEU – Pois será como disse, seu Gonçalão.Palavra por palavra de Zileu Rojão... o lho deMané Pedro Rojão.

ROSINHA – Vamos passar a noite aqui?

RIPIÓ – Vamos, amanhã sigo o meu caminho evoceis seguem os de voceis. Zileu, puxa a mer-cadoria no valor de um conto, para mim, e maisum tanto igual, para você e a menina. Vão pre-

cisar de comida na viagem, que há de ser longae cansativa.

ROSINHA – A qual viagem?

RIPIÓ – Pois não se vão em busca de tesouro,você mais Zileu?

ZILEU – Eu, por mim, sempre que ia, inda maisque posso dar proteção à menina.

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GOGÃO – Eu também vou. Vamos os treis.

RIPIÓ – Numa casa de caboclo, um é pouco, doisé bom, treis é demais e dá confusão.

Acho que, em viagem, há de ser o mesmo igual.

ROSINHA – Pois vamos os quatro junto com seuGonçalão das Pedreiras.

RIPIÓ – Seu Gonçalão tem mais o que fazer queandarilhar em busca do tesouro escondido, mi-nha menina. Tenho casa e negócios na cidade.

GOGÃO – Pra mim dois mais que ajude é bom

andar de treis... O tesouro há de ser bastantepara todos nós.

RIPIÓ – Se eles querem, o senhor acompanha...Se não, eles partem e o senhor toma seu rumo,bem noutra direção.

ROSINHA – Melhor que ele não vá. É muito mal-vado, o miserável.

ZILEU – O mesmo acho eu, também.

RIPIÓ – Está decidido... Eles vão e vossa mercêsegue comigo, pra não atrapalhar os dois.

GOGÃO – Pois que vão sozinhos. (ri muito) Sóquero saber se vão chegar em parte alguma.

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ROSINHA – Que é que ele deu de rir tanto?

GOGÃO – Só quero saber quem vai ler os escritose olhar no mapa. Nenhum de voceis sabe ler.

ROSINHA – A gente aprende, seu Gonçalo ensina!

RIPIÓ – Aí, ele levou vantagem. Está certo o

que ele diz... Ler não se aprende de uma horapra outra.

ZILEU – Está certo que é assim, mas... Eu que nuncapude ter um tempo de encontrar um que meensinasse a ler... A gente ca nas ordens dosoutros, sem ter culpa nem nada.

RIPIÓ – Assim é o mundo, o mundo é assim, poisse até Deus precisa do Diário pro mundo seguirsendo mundo. Essa parada ganhou mesmo oMestre Gogão, por suas artes de leitura. Mas olhalá... Lembrem-se sempre que são dois contra um,

e que ele deverá andar certo na honestidade.

GOGÃO – Pois se eu sempre fui honesto...

RIPIÓ – Em sendo comerciante e mascate, achoum pouco exagerado esses elogios a respeito

de si mesmo. Só digo uma coisa, Mestre Gogão,mestre em burros, preços e lábias. Só digo que,em determinadas curvas, às vezes a gente dá de

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cara com o que nunca esperou. Portanto, quan-do se tem a alma carregada, o melhor é tomarcuidado com a pele.

ROSINHA – Vamos nós três, então.

RIPIÓ – Passamos a noite aqui. Amanhã eu sigomeu caminho e voceis seguem o de voceis.

Enquanto todos se preparam para dormir, Rosi-nha canta a Canção de Rosinha.

ROSINHA – (canta) O que ontem era de um jeitoHoje já mudou demaisAmanhã pode ser outroCom o tempo outro maisMinha vida se guraNa mudança do porvirComo pode a criaturaSaber tudo que há de vir...

Todos dormem. Cartaz: E, lá pelo meio da noite,Ripió acorda, vai até a menina que dorme, tiraos mapas. Vai até um canto, acende uma vela,copia o mapa e escreve um bilhete que parecealgum recado e prega na porta. Pega suas coisas,

recoloca o material da menina perto dela e dáo pira. Cartaz: E no dia seguinte, Zileu acorda evai acordar Rosinha.

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ZILEU – Moça Rosinha?

ROSINHA – É hora?

ZILEU – O quanto mais cedo a gente for, maiscedo chegamos!

ROSINHA – Já está acordado o seu Gonçalão?

ZILEU – Não vi ele não.

GOGÃO – Vamos embora, minha gente, que otesouro espera por nós.

ROSINHA – (apanhando o bilhete no chão) Oque vem de ser?

GOGÃO – É um recado do tal Gonçalão... Fui embora no meio da noite. Não gosto de des-

 pedidas... Até um dia, que quem é bom sempre se encontra... Gonçalão Pedreirinha. Onde estáo mapa?

ROSINHA – Está aqui, que pena que ele já deuno caminho! Gostava de agradecer.

ZILEU – Ouviu o que ele deixou escrito? Um diaa gente dá de encontrá.

GOGÃO – Eu, por mim, não quero nem maisver aquele tal... Zileu, arrume os burros e va-mos embora.

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Enquanto Zileu arruma os burros, cantam aCanção do Caminho.

ZILEU – (canta) Toca pé no mundoPra buscá esse tesouro.

GOGÃO – (canta) Toca buscá logo,Deve ser um montão de ouro!

ROSINHA – (canta) Vamos nós andando,Vamos nós buscando.(coloca uma or no túmulo do avô)

OS TRÊS – (cantam) Caminho por caminhoPassagem por passagemNo vale da montanhaCaminho por caminhoPassagem por passagem

Na mata e na sondagemTalvez rioTalvez planuraTalvez serra na lonjuraVamos nós andandoVamos nós buscando

Que no m estáO tesouro esperandoVamos nós, vamos nós

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CONTADOR – E assim se deu por ndar,A primeira parte da narrativa desta lendagem.

Onde vimos de comoDepois de perseguida pelos jagunços doCoronel Militão,Que acabaram por dar morte a seu avô,A menina Rosinha segue em busca de um tesouroEm companhia de Zileu, o burreiro,

Mais o mascate Gogão.Não percam a segunda parte destaemocionante lendagem.Dentro de mais alguns minutos,O que sucederá aos aventureiros?Encontrarão o tesouro?

E os jagunços do Coronel?O que se dará com elesAo voltar ao fazendão de mãos vazias?Isso tudo será respondidoNa segunda parte desta lendagem.E no mais,Terão o reaparecimentoDo mais incrível e formidávelDanado de todos os tempos,O Ripió Lacraia.

CONTADOR – (canta Canção da Meia Estória: ) De tanto falar, falei

Meia estória já conteiTem mais tanto pra falarOutra meia vou contar!

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CENA 10 SéTIMO EPISDIO: A SMANTA NOSJAGNOS.

Na fazenda do Coronel Militão.

CONTADOR – Sétimo episódio,No qual haveremos de dar encontroCom os jagunços do Coronel Militão,

Mais o próprio Coronel.No qual se veráDe como o Coronel prende fogo de raivaPor terem o velho e a menina fugido.E também onde iremos apreciarDe como os jagunços são castigadosDe uma forma original,E, nos nais, partirão novamenteNo encalço dos fugitivos.Na fazenda do Coronel Militão.

CORONEL – Pois foi tal assim como se deu?

OS TRÊS – Bateu e disse!

CORONEL – Pois a culpa quem teve de deixarescapar? Liminão, foi sua?

LIMINÃO – Minha não foi, só se foi de outro.

CORONEL – Rasga-Bucho, foi sua?

RASGA-BUCHO – Minha não foi, só se foi de outro.

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CORONEL – Zé-Castigo, foi sua?

ZÉ-CASTIGO – Minha não foi, só se foi de outro.

CORONEL – Não fui convencido. Contem denovo, a ver se ca conferido.

LIMINÃO – Nós demos no encalço.

ZÉ-CASTIGO – Demos no encalço.

RASGA-BUCHO – Demos, de fato, no encalço.

CORONEL – E daí? Adiantem nas falas.

LIMINÃO – Encalçamos, mas houve que...

ZÉ-CASTIGO – Pois é, o lho da velha!

RASGA-BUCHO – Ah! O lho da velha!

ZÉ-CASTIGO – Antes veio a velha, depois o lho

da velha.LIMINÃO – Verdade seja dita. Primeiro a velha,e depois o lho da velha.

CORONEL – Que velha mais o lho da velha,quero saber dos foragidos.

ZÉ-CASTIGO – Pois falando de claramente, osfugidos foram pegados.

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RASGA-BUCHO – E muito bem pegados.

LIMINÃO – O velho mais a menina, mais o lhoda velha. Na verdade, deu no escapado.

CORONEL – Que diabo esta velha tem que estarmetida no assunto?

ZÉ-CASTIGO – Tem e muito, assim como o lhoda velha.

RASGA-BUCHO – E mais os burreiros.

CORONEL – Que burreiros?

RASGA-BUCHO – Que burreiros?

ZÉ-CASTIGO – Que burreiros?

LIMINÃO – Que burreiros? Os que traziam cachaça.

ZÉ-CASTIGO – Maldita cachaça, que uma carto-linha, assim, tinha mais de vinte e tantos litros.

RASGA-BUCHO – Uma danada cachaça, que serefazia tanto mais dela se tomasse.

LIMINÃO – Eu bem que tinha dado aviso e

prenúncio.

ZÉ-CASTIGO – Isso tinha mesmo.

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RASGA-BUCHO – Verdade. Não fosse o lhoda velha...

LIMINÃO – Mesmo apesar da cachaça esticar nacartolinha, nós derrubamos um.

CORONEL – O lho da velha?

LIMINÃO – Não, o velho.

CORONEL – O velho quem? Que já não sei maisquem mais se mistura na narrativa.

LIMINÃO – O velho Ribano.

CORONEL – E a menina?

LIMINÃO – (aos jagunços) E a menina?

RASGA-BUCHO – E a menina?

LIMINÃO – E a menina?CORONEL – A menina sumiu!

LIMINÃO – (aos jagunços) A menina sumiu.

ZÉ-CASTIGO – Não diga.

RASGA-BUCHO – Pois é... Foi embora com o lhoda velha.

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ZÉ-CASTIGO – E mais os dois burreiros.

CORONEL – E por que não seguiram no encalço?

ZÉ-CASTIGO – E por que não seguiram no encalço?

LIMINÃO – (aos jagunços) E por que não segui-ram no encalço?

ZÉ-CASTIGO – Pois foi assim mesmo, que o suce-dido é então, deveras.

RASGA-BUCHO – Isso que está mesmo explicado,foi assim como foi, não é?

ZÉ-CASTIGO – Demais que é... Porque se nãofosse, tinha dado tudo certo.

LIMINÃO – O que seria por demais certo, é, semdúvida, assim nos claros como está...

ZÉ-CASTIGO – Certíssimo, como estou aqui emriba das pernas.

RASGA-BUCHO – Das pernas.

LIMINÃO – É isso...

CORONEL – Isso nem mais aquilo, corja de pin-guços, beberam e caíram e os tais se sumiramno mato. Tirem as jaquetas e as camisas. Fiquem

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em la um detrás do outro. Peguem os reios!Podem começar.

LIMINÃO – O que, pois sim.

CORONEL – Vão batendo até eu mandar parar.E logo.

Começam a bater devagarinho. Militão, que é oúltimo, bate com fé.

ZÉ-CASTIGO – Parada! Desculpa, meu Coronel,mas eu só apanho e não dô.

CORONEL – Vira a la e bate mais forte.

RASGA-BUCHO – Parada, meu Coronel. Eu, can-do aqui no meio, já levei couro dobrado. Não há

 justiça neste castigamento?

CORONEL – É justo! Liminão e Zé-Castigo, quem

de banda! (para Rasga-Bucho)Agora, bata nos dois.

O bate-que-bate degringola. Eles acabam emluta franca, quase se matando. Param quandocaem de cansaço.

CORONEL – Agora, salmoura nas feridas. Depois,encham o bornal e sigam na pista da menina e

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mais o velho, mais o lho da velha. Mais os bur-reiros também. Vão até o inferno, mas não meapareçam aqui sem toda essa tralha.

LIMINÃO – Aqui pra tudo, patrão.

ZÉ-CASTIGO – Pronto pra castigar!

RASGA-BUCHO – Onde é o fogo?

Os jagunços se levantam, um arruma o outro,repetem as las para passar salmoura, enquantocantam a Canção da Vida de Jagunço:

JAGUNÇOS – (cantam) 

Nós somos três jagunçosNosso chefe é LiminãoMas quem paga a jagunçagemÉ o Coronel MilitãoViva! Três vezes vivaViva! Três vezes viva

Viva nosso patrão!

CENA 11 OITAVO EPISDIO: RIPI VIRA CEGO

CONTADOR – Oitavo episódioNo qual se verá

Em seguimento a esta emocionante lendagemDe como, e assim será visto,Rosinha, Zileu e Gogão se perdem

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Na rota da caverna da pedra furada.Veremos também que encontrarão um cegoE, deste encontro,Nascerá a descoberta do caminho.Um local na mata. Encruzilhada.

GOGÃO – Já rodamos horas e horas e acabamosdando de encontro nas paragens parecidas,

sempre as mesmas.

ZILEU – Eu, por mim, arriscava dizer que a gentedeu de se perder.

ROSINHA – Já olhou bem certo nos mapas, seu

Gogão?

GOGÃO – É certo e claro que olhei, peçonha dotinhoso! Esse mapa está errado.

ZILEU – Ou, então, o senhor não soube ler certoo caminho.

GOGÃO – Demos de andar onde estava marcado.Se quiser, leia você, se puder.

ZILEU – Vamos seguir em nova tentativa, às vezeserramos um pouco.

E seguem pela trilha em frente. Parado no meioda estrada está um ceguinho. Os três param.

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ZILEU – Olhe lá!

GOGÃO – Parece que é cego...

ZILEU – De nada pode servir.

ROSINHA – Mas de alguma coisa deve saber.

Os três descem dos cavalos e se aproximam dohomem que permanece sentado, descansando.

ZILEU – Boas, meu senhor!

GOGÃO – Somos de paz.

ROSINHA – Estamos perdidos neste mato...GOGÃO – Quem é o senhor?

CEGO/RIPIÓ – Como vai, gente boa?

GOGÃO – Quem é o senhor?

CEGO/RIPIÓ – Sou um cego andejo, que vive porestas bandas. E vocês, quem são?

ZILEU – Somos três viajantes. Buscamos um tesouro.

O cego ri.

GOGÃO – Quem sabe, senhor cego, vós podeisnos ajudar?

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ROSINHA – Procuramos um tal Fazendão. Nosajude, meu sinhô.

CEGO/RIPIÓ – Um tal de Fazendão?

GOGÃO – O senhor conhece por estas bandas,um tal de Fazendão?

CEGO/RIPIÓ – Conheço um que vive cheio decego, e tem um tal de Coronel...

GOGÃO – Vamos logo, seu ceguinho, pra querumo ca esse tal?

CEGO/RIPIÓ – Sigam em frente, só entrem na

estrada quando avistarem uma roça de algodão.Mas, cuidado que lá é terra de cego, e em terrade cego, quem tem um olho é rei.

ROSINHA – Que Deus nos ajude.

ZILEU – Vamos embora! A pista parece certa.

Os três montam em seus cavalos e saem à procurado tesouro que está no Fazendão.

O cego pega a viola e, com ares de satisfação,começa a cantar a Canção do Cego/Ripió.

CEGO/RIPIÓ – (canta) Cada qual no seu caminhoEu também já tenho o meu

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Vou andando devagarinhoPra chegá onde vou eu.Aproximam-se três cavaleiros.

LIMINÃO – Boas, meu sinhô. Mora nestas paragens?

CEGO/RIPIÓ – (cantando) 

Andando devagarinho,

Vou seguindo o meu caminho...

RASGA-BUCHO – Conhece este lugar, então?...

CEGO/RIPIÓ – Si cunheço? Até demais!

ZÉ-CASTIGO – Procuramos um tal Fazendão San-ta Luzia, que parece ser nestas paragens.

LIMINÃO – Será que vossa sinhoria pode ajudarestes jagunços?

CEGO/RIPIÓ – Posso sim, meu sinhô. Deixe vê...Fazendão Santa Luzia... Ah, é só segui em frente,por ali, sempre em frente. Quando avistá umaporteira, é lá o tal Fazendão.

LIMINÃO – Galope, minha gente!

Os três cavaleiros saem na disparada, gritando.

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CEGO/RIPIÓ – Olhe que foram e nem agradeceram.Também, não sei se seria certo agradecer a infor-

mação de um cego que bem podia ter-se enganadode direção.

CEGO/RIPIÓ – (canta) Cada qual no seu caminhoEu também já tenho o meuVou andando devagarinhoPra chegá onde vou eu.

CENA 12 CHEGADA AO FAzENDO

CONTADOR – Rosinha, Zileu e GogãoIniciam uma porção de acontecimentos terríveis,Jamais vistos e vividos.Primeiro, vamos ver a chegada em um fazendãoPerdido no meio do sertãoQue, nos mapas e nos escritos,Era o ponto marcado “xis”.

CONTADOR – E mais,

De como pedirão emprego ao capataz caolho.E mais,Que aparecerá um retratão maldito.E mais,Que haverá a mais extraordinária festa,A qual se possa imaginar.E mais,

Que verão jagunços cegos e um garimpeiro.E mais que mais,Que só vendo para acreditar.

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Uma roça de algodão, tendo ao fundo uma casanegra de fazenda. Entram os três num cantoda cena.

GOGÃO – Demos, sem dúvida, de chegar certo.Este deve ser o tal Fazendão de Santa Luzia doqual fala o escrito.

ROSINHA – O que mais dizia o indicado?

ZILEU – Se bem me lembro, estava escrito de queaqui encontraríamos indicação certa de ondeestava o tesouro. E tinha aquele verso...

GOGÃO – O que será tem de ver o verso com otesouro... (lê) Em terra de cegoQuem tem um olho é rei Um dia terei dois olhosE mais do que rei serei.Procurar o caminho

É de ácil soluçãoDesde que procureBem no olho do patrãoTodo tesouro escondidoNão se alcança ugindo do perigo.

ROSINHA – Por que será que meu pai assim dei-xou escrito? Bem que seria mais fácil um indicadoclaro, que este, assim, é confuso.

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GOGÃO – Foi pra atrapalhar a vida da gente!

ZILEU – Eu acho que foi na intenção de fazer agente dar mais no pensamento e achar de modomais perfeito.

ROSINHA – Pode ser que, assim, seja mais certo.

GOGÃO – Estamos no Fazendão. Vai ver quevamos ter que arrancar o olho do patrão pradar de encontro com o tesouro. Enm, todo osacrifício será recompensado.

ZILEU – Quem é essa gente?

GOGÃO – São lavradores.

Vêm os camponeses cantando. Vêm em la,um segurando no outro, pois são todos cegos.Vestem-se de andrajos. São magros e amarelose estão com vendas de pano preto cobrindo os

olhos. Cantam Canção dos Cegos Indo pro Eito.

CEGOS – (cantam) Toca para o eitoEi lá, ei lá...Nascer pra comer pouco

É a sina do sujeitoNo eito daná loucoCom bandulho insatisfeito

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Toca para o eitoEi lá, ei láO mundo já está feitoAfeito e refeitoEntão não tem mais jeitoToca pro eitoNessa vida tudo morreMorre bicho, morre orNós também vamos morrerMorre riso, morre amorNós também vamos morrerEntão toca companheiroToca pro eito

Toca pro eitoEi lá, ei lá.

Os cegos chegam no eito e começam a trabalharem silêncio. Num canto da cena, os três.

GOGÃO – Que acontecido mais diferente! São

todos cegos...

ZILEU – Mas têm tanto costume da enxada quenem precisam de visão.

ROSINHA – Que gente mais triste!

GOGÃO – Vamos perguntar onde é a casa dopatrão. Olá!

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CEGO#1 – Quem está?

GOGÃO – Uns viajantes de passagem.

CEGO#1 – É bom desviar seu caminho deste lugar,enquanto é tempo.

GOGÃO – Este não é o Fazendão Santa Luzia?

CEGO#1 – É aqui mesmo. Desde onde se pode an-dar em cada direção, é tudo terra do nosso patrão.

GOGÃO – Eu preciso falar com o vosso patrão.

CEGO#1 – O patrão não está. Não vive aqui. Émelhor que vão embora, esta é uma terra decegos. Os de visão não são bem recebidos, sótrazem desgraça para si mesmos.

ROSINHA – É melhor a gente ir embora.

GOGÃO – E deixar o já feito por nada? Esses

cegos não sabem de nada! Olha aqui, meu caro,será que a gente podia parar um dia ou doisnesta terra para descansar da nossa viagem?

CEGO#1 – Acho melhor que os viajantes sigamseu caminho. O patrão não gosta de gente comvisão... Os que passam aqui se dão mal toda vida.

GOGÃO – Não tem um que não seja cego porestas bandas?

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CEGO#1 – Só o capataz, é caolho. Ele é que vêtudo para o patrão.

GOGÃO – E o patrão, onde vive?

CEGO#1 – Dizem que num lugar muito longedaqui, na beira do mar, tão longe que nem seandando um ano se chega.

ZILEU – A gente podia dar uma conversa como capataz?

CEGO#1 – Poder pode, mas aconselho a daremno pé de volta, e sumirem neste mundo.

ROSINHA – Por que os daqui todos não têm visão?

CEGO#1 – O que se conta é que, no tempo dedantes, vieram trabalhar nesta fazenda umasfamílias de cegos... E todos os lhos nasceramcegos e os netos, mais os bisnetos e mais nósagora e por diante, nossos lhos...

GOGÃO – Que fenômeno mais extraordinário!

ZILEU – Acho melhor a gente mudar de rumo epensar outra coisa.

ROSINHA – A gente perde o rumo do caminhode meu pai.

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GOGÃO – O que tem acontecido às gentes comvisão que encontraram por aqui?

CEGO#1 – O certo, ninguém sabe, mas se fala mui-ta coisa. Uns dizem que morrem, outros que camcegos. Muitos causos se contam, mas a gente nãosabe ao certo. Vão de uma vez que é melhor.

GOGÃO – Estou concordando também que seriamelhor a gente sair daqui.

ZILEU – Me deu na cabeça que a gente podia darum jeito de car aqui uns dias.

ROSINHA – O qual é?

ZILEU – Se a gente fosse cego também?

GOGÃO – Mas não somos.

ZILEU – Mas a gente pode ngir. É só eles não falar.

CEGO#1 – Por nós, se é assim que querem, podemter conança que ninguém fala nada.

Vem um outro cego e cochicha no ouvido doCego#1.

CEGO#1 – A gente não fala nada e até ajuda.Mas, em troca, vão ter que fazer uma coisa quea gente pedir.

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GOGÃO – Dinheiro não tem.

CEGO#1 – O que é isso?

GOGÃO – Então, não sabe o que é dinheiro?

CEGO#1 – Não. E como não sabemos, não é issoque vamos pedir. O que queremos, depois saberão.

ZILEU – Então, toca a se fantasiar de cego prafalar ao capataz.

CEGO#1 – Tomem cuidado, que se alguma coisaacontecer, nós não poderemos ajudar em nada.

O cego que cochichou reúne os outros e combinaalguma coisa. Fazem um burburinho de aprova-ção e riem em pouco.

GOGÃO – A gente diz que somos pedintes... Etomem cuidado pra não deixar perceber que

não somos cegos.

ZILEU – A gente conta que ouviu dizer que aquise dava trabalho aos cegos.

CEGO#1 – Hoje é um dia de festa... É o dia do pa-

trão, logo mais à noite vai ter os festejos. Prestembem atenção em tudo o que vai acontecer, poisnosso pedido tem coisa com o que se vai passar.

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GOGÃO – Vamos vendar os olhos, mas com jeitopra espiar por baixo. Quem é que vai levar agente ao capataz?

CEGO#1 – Eu mesmo... Vamos!

CENA 13 DéCIMO EPISDIO

CONTADOR – Décimo episódio,No qual voltamos a encontrarLiminão e seus jagunçosQue não desistem da procura por nadadeste mundo.Onde veremos que,

Após encontrar a caverna da pedra furada,Seguirão também para o fazendão dos cegos.Na caverna da pedra furada.

RASGA-BUCHO – Não há dúvida que o rastrovinha até aqui.

ZÉ-CASTIGO – Que diacho teriam os danadosencontrado aqui?

RASGA-BUCHO – Abrigo, ao de certo. É um lugarbem escondido.

Na frente da casa do capataz.

CEGO#1 – É por aqui que mora o capataz.

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GOGÃO – Aqueles são presos? Por quê? (olha osgemidos por baixo da venda)

CEGO#1 – Não é boa hora de fazer perguntas.Vou chamar o capataz.

GOGÃO – Aí que eu me borro todo. Cuidado,vocês dois, que senão a gente acaba ali preso,

igual a eles.

CEGO#1 – Seu Ciclópio! Ó seu Ciclópio! Ó de casa!

Aparece o enorme homem com um olho venda-do e uma cara de mau.

CICLÓPIO – O que é que vem fazer na casa--grande, deixando o eito de lado? Quem sãoesses aí?

CEGO#1 – São três viventes que se achegarampara estas bandas, em busca de trabalho.

Disse que ouviram que aqui davam trabalhoaos cegos.

CICLÓPIO – Ah, muito bem! Não vivo eu dizendoa todos vocês que se não tivessem um patrãotão jovem e tão belo e generoso iam morrer de

fome? Ninguém quer saber dessa raça assombra-da que não pode enxergar o mundo... De ondevem essa gente?

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GOGÃO – De muito longe, atrás da serra. An-darilhamos quase trinta dias e trinta noites pra

chegar por aqui.

CICLÓPIO – E como souberam chegar por aqui?

GOGÃO – Demos de ouvir falar.

CICLÓPIO – Quem falou?GOGÃO – Um outro cego que encontramosna estrada.

CICLÓPIO – Mau, mau, mau... Estamos candoconhecidos... Pois emprego tem, que o patrão dá

trabalho a todo mundo. Desde que sejam cegos.São parentes?

GOGÃO – São meus lhos.

CICLÓPIO – Pois podem car. Mas quero quesaibam qual é a lei aqui. Ali tem um tronco...Para que saibam, é um lugar de prender o pé,mão e pescoço e car de pança ao sol até secarbem sequinho, sem água e sem comida. Isso é praquem amolece no eito. Quem rouba semente evai fazer roça no mato por conta própria.

Tenho um olho só, mas está olhando tudo esempre. Pra vocês, que não têm nenhum, não sefaçam de besta que o castigo é duro! Se cam

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aqui, podem catar madeira, barro e capim namata pra fazer casa.

CICLÓPIO – Comida é aqui que tem, no arma-zém, e só se come o que se dá. Uma vez se come,o resto trabalha pra merecer a vida e dar honraao patrão. E chegaram num dia muito especialde bom. Hoje é o dia da festa do patrão. Logo

mais, à noite, haverá canto e dança. A meninatambém pode vir, viu ceguinha? Leve os trêspara o eito pra conhecer a lidança. Ah, e antesque me esqueça, não quero uma palavra entreos cegos novos e a cegaiada velha que está aí.Se pegar, o tronco e o pau estão esperando.Podem ir.

Os quatro se afastam.

CICLÓPIO – (batendo com um reio, um pouco,nos presos) Toma seus danados, vão aprender a

criar galinha escondido do patrão.

PRESOS – Piedade Deus... Ai meu lombo...Nossa Senhora!

CICLÓPIO – Pode esgoelar de chamar quem qui-

ser na terra ou no céu! Aqui o Deus e a NossaSenhora são nosso santo patrão e como elesestão no céu, no lugar deles co eu.

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CENA 14 COMEA A FESTA DO PATRO

Desce um cartaz. Começa a festa do patrão.Todos os cegos reunidos. Zileu, Gogão e Rosinhatambém. Vem Ciclópio, todo vestido de gala. Oscegos cantam na chamada de Ciclópio: Cançãodo Patrão.

CICLÓPIO – (canta) Seus cegueiros imundos, danados e vagabundosMe respondam que dia é hoje?

CEGOS – (cantam) Dia de festa, de respeito e diversãoÉ o santo dia, do nosso patrão.

CICLÓPIO – (canta) Quem é o mais bom e mais justo e mais certo?

CEGOS – (cantam) É o nosso santo patrão!

CICLÓPIO – (canta) Quem manda, enxerga e vigia?

CEGOS – (cantam) É o nosso santo patrão!

CICLÓPIO – (canta) 

Desde muitos anos e muitos dias,Neste mesmo dia do ano se faz esta festa.Que sempre é do comando de quem?

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CEGOS – (cantam) Do seu Ciclópio, nosso santo capataz!

CICLÓPIO – (canta) E, antes de mim, foi outroE, antes de antes do outro,E, antes de antes de antes,Inda foi outro,Sempre de um olho só.

CEGOS – (cantam) De um olho sóMas tudo vê

Vê tudo que a gente fazEsse um sempre foi sempreNosso santo capataz.

CICLÓPIO – (canta) Seus cegueiros imundos,

Danados e vagabundos,Pra quem não enxerga,Onde é que termina o mundo?

CEGOS – (cantam) Termina logo além da cerca

Quem sair não volta maisFicará sempre perdidoNo poder do satanás!

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CICLÓPIO – (canta) Então, viva nosso patrão!

CEGOS – (cantam) E também o capataz!

CICLÓPIO – Vamos continuar a festança. Comoé sabido, neste santo dia o patrão não querninguém no tronco, nem no pau. Pode soltaros prendidos.

O pessoal solta.

CICLÓPIO – E agora, vamos entrar no ponto mais

importante do festejo. Tragam o retratão.

Vêm dois cegos trazendo um enorme retrato decorpo inteiro de um latifundiário: baixo, feio,balofo, subdesenvolvido, m de raça, etc. Colo-cam de um lado. Todos murmuram.

CICLÓPIO – Como em cada festa, em cada dia,de cada ano, eu vou ter a honra e a alegria decontar a todos os infelizes sem visão, como éa gura grandiosa do nosso grande e santo

patrão! Ah, se vocês e sua corja pudessem darpelo menos com meio olho neste maravilhosoretrato! Começa.

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Cegos e Ciclópio cantam a Canção do Retratão I.

CEGOS – (cantam) Não vemos essa nobre caraEssa nobre caraPois nossa vista está coberta de um véuNos alumeia, nos alumeiaNos alumeia com seu olho só...

Como é nosso patrão?...

CICLÓPIO – É alto como um gigante, quem é,quem é?

CEGOS – É o nosso santo patrão.

CICLÓPIO – É forte, esguio e altivo, quem é, quem é?

CEGOS – É o nosso santo patrão.

CICLÓPIO – Tem o rosto como o dos anjos, quemé, quem é?

CEGOS – É o nosso santo patrão.

CICLÓPIO – Um sorriso de amor e bondade, quemé, quem é?

CEGOS – É o nosso santo patrão.

CICLÓPIO – Um olhar de santidade, quem é,quem é?

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CEGOS – É o nosso santo patrão.

CICLÓPIO – Tem no mundo vivente mais perfeito?

CEGOS – Ter é que num tem não!

CICLÓPIO – Por isso, damos graças a Deus!

CEGOS – Dele ser nosso patrão!

CICLÓPIO – Viva o santo nome do Coronel Romilo

Sá de Albuquerque Rêgo de Alcântara!

CEGOS – Viva, reviva, treviva!

CICLÓPIO – Viva o nome do santo capataz Cicló-

pio Santo dos Bispos!

CEGOS – Viva e reviva!

CICLÓPIO – Viva o santo tronco que conserta omal e só faz o bem de todos.

CEGOS – Viva!

CICLÓPIO – E agora, bebida para a cegaiada

toda, mais dança e canto pra quem quiser, poismandei vir um cego musicista com sua viola, para

alegrar o dia do patrão.

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CEGO/RIPIÓ – (canta Canção do Mestre Inácio ) Aqui estou,

Meus iguais de infortúnioSou o cego Mestre InácioCantador e tocadorQuando chego numa festaO povo muda de corSou lho de Malaquias

Neto sou de João UbaldoPrimo irmão de AnaniasSobrinho de Aderaldo.

CEGO/RIPIÓ – Esse é quem foi mesmo na verda-de o rei dos cegos. Quando meu tio abraçava aviola e cantava e desaava na roda mais sabida,ninguém mais piava.

Zileu, Gogão e Rosinha conversam num canto.

ZILEU – É o cego que topamos na estrada.

GOGÃO – Se ele descobre a gente, vamos se darde mal a pior!

ROSINHA – Se a gente não fala, ele não conhece.

GOGÃO – Então, é car de bico fechado.

ROSINHA – Acho que não pagou a pena vir nabusca do tesouro. Parece que não vamos maisadiante na busca.

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ZILEU – Tenha fé que a gente ainda dá com elequando menos esperar.

GOGÃO – Fica quieto que o Ciclópio vem aí...

Vem Ciclópio se arrumando todo.

CICLÓPIO – É muito bonitinha. Quer ter a honra

de dançar comigo?GOGÃO – Ela tem muita honra sim!

ZILEU – Não...

CICLÓPIO – O quê?!

GOGÃO – Ela tem a honra, sim.

CICLÓPIO – Então vamos, ceguinha. (grita) Oh,cego do inferno, puxa uma dança pra todos, queo baile vai começar.

CEGO/RIPIÓ – É pra já, meu patrãozinho!

CENA 15 COMEA O BAILE: O CAPATAz DANA...

Começa a tocar e cantar uma dança. Os cegosbebem e dançam. Zileu morde os lábios de rai-

va, Gogão o acalma, enquanto Ciclópio dança ebebe. Logo aperta a boca de Rosinha e a levantanos braços e carrega com ela pra dentro da casa

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da fazenda. Zileu corre em cima, mas Gogão osegura. Logo o cego cantador entra atrás de Ci-clópio e da menina na casa. Zileu rola no chão,lutando com Gogão. Logo Zileu se solta e correpara a casa. Topa com Rosinha que vem saindomeio assombrada.

ZILEU – Filho da peste. O que ele te fez?

ROSINHA – Nada.

ZILEU – Mas ele levou você pra dentro.

ROSINHA – Pois quei apavorada. Logo que ele

me botou no chão, deu uma risada. Eu, então,saí correndo por um corredor, mas ele não veioatrás. Levantei a venda dos olhos e voltei: eleestava carrapachado na rede dormindo.

ZILEU – Dormindo?

ROSINHA – Dormindo.

GOGÃO – Foi melhor assim.

ZILEU – Não entendo como ele foi dormir deuma hora pra outra.

Enquanto falam, sai ao fundo o cego com o violãoarrebentado. Joga o violão de lado e se aproxima.

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CEGO/RIPIÓ – Estou conhecendo essas vozes.Raios me partam se não são os amigos que topei

na estrada, há uns vinte dias. Como vai a moci-nha? Como estão, gente boa?

GOGÃO – Não somos não.

CEGO/RIPIÓ – Somos sim, como não! Somos nós

mesmos. Como vai mocinha e você, meu rapaz?Como vieram parar aqui neste m de mundo? Eagora eu os encontro nesta festa de cegos. Quecoisa mais extraordinária!

Vem uma comissão de quatro cegos.

CEGO#1 – Olá vocês três, está na hora de pagarnossa ajuda. O capataz bebeu demais e foi dor-mir. Os cegos estão esperando.

GOGÃO – O que estão esperando?

CEGO#1 – Todos querem saber a verdade: comoé o retratão do patrão. Está aqui pra vocês dize-rem pra gente.

ZILEU – Por quê?

CEGO#1 – Porque nosso patrão é ele que manda

botar no tronco, bater, matar de fome e que sómanda plantar coisa que não se come, tendotantas terras em volta, mas deixa os cegos morrer

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de fome, não dá remédio, não pode ser assim,como desde sempre foi contado.

ROSINHA – Na verdade, não é não.

CEGO#1 – Espere que vou pedir silêncio e depoisdiga como é, então, o retrato do patrão. (aoscegos) Silêncio, minha gente, que o Ciclópioestá dormindo. Pode contar moça, todos estãona escuta.

Faz-se grande silêncio. Rosinha fala bem baixo.

ROSINHA – Pois vou contar...Rosinha e Cegos cantam a Canção do Retratão II.

CEGOS – (cantam) Não vemos essa nobre caraEssa nobre caraPois nossa vista está coberta de véuNos alumeia, nos alumeiaNos alumeia com sua visão

Como é nosso patrão?

ROSINHA – (canta) É baixo como que nem um anão.

CEGOS – (cantam) O carrasco do patrão?

ROSINHA – (canta) É gordo que nem um capão.

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CEGOS – (cantam) O porco do nosso patrão!

ROSINHA – (canta) Tem a cara muito feia.

CEGOS – (cantam) O diabo do nosso patrão?

ROSINHA – (canta) Um olhar de jagunço assassino.

CEGOS – (cantam) O triste do nosso patrão.

ROSINHA – (canta) Um sorriso de maldade.

CEGOS – (cantam) O doente do nosso patrão.

ROSINHA – (canta) Enm, nunca botei os olhosNum homem tão feio e terrível.

CEGOS – (cantam) É o nosso patrão?!

O cego músico vai até o retrato, tateia, encontrao olho, fura-o.

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CEGO/RIPIÓ – (canta) Tem o olho de galinha.

CEGOS – (cantam) O nosso santo patrão.

CEGO/RIPIÓ – (canta) Pescoço de abobrinha.

CEGOS – (cantam) O nosso santo patrão.

Os cegos avançam no retrato e vão rebentandotudo e cantando. Num canto, cam Zileu, Rosi-nha e Gogão.

ZILEU – (canta) Olha lá.

CEGOS – (cantam) O nosso santo patrão.

ROSINHA – (canta) Que foi?

CEGOS – (cantam) O nosso santo patrão.

ZILEU – (canta) No olho furado do retrato,Está aparecendo uma tira de papel.

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CEGOS – (cantam) O nosso santo patrão.

GOGÃO – (canta) E isso é o verso no olho do patrão.(vai até lá e pega)

CEGOS – (cantam) 

O nosso santo patrão.

ROSINHA – (canta) É a continuação do mapa. (abraça Zileu)

CEGOS – (cantam) O nosso santo patrão.

ZILEU – (meio sem graça) Agora, está tudo bem.

Rosinha percebe que estava abraçada e se solta.Vem Gogão e os cegos continuam a festa.

CEGO/RIPIÓ – Como é, seu mascate. O que é queo senhor tirou lá do retrato?

GOGÃO – Nada que lhe interesse.

CEGO/RIPIÓ – Se precisarem de mim, estou por aí.

GOGÃO – (lê) Quem encontrar esta, sabente deque a situação deste povo não mudará pelosanos. Fica aí escondido pra quem quiser de en-

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contrar este escrito, o segredo deste azendãoque é triste mas trará alegria a muita gente,assim como um tesouro escondido que aqui mes-mo se encontra. Antes, é preciso que se conte agrande verdade. Ninguém aqui é cego, apenas

 são vendados desde o nascimento e o capataz co-loca cera nos olhos. Faz isso a mando do patrão,

 para que nunca vejam a miséria em que vivem

e continuem acreditando que a única salvaçãoé o santo patrão. Assim é desde muito tempo,de pai para flho, o patrão é sempre o patrão.O capataz é sempre caolho e os lavradores sãoflhos dos cegos. Até que se diga a verdade, pois

 serão precisos todos para encontrar o tesouro.

Pois ele está enterrado...

GOGÃO – Está meio rasgado o papel.

ZILEU – Precisamos dar a boa-nova aos cegos!

ROSINHA – E o capataz?CEGO/RIPIÓ – (que estava escondido) Está amar-rado na rede.

GOGÃO – Você estava aí, seu danado de uma ga.

Entram os cegos com o retrato furado.

CEGO/RIPIÓ – Cheguei agora...

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ZILEU – Vamos contar aos cegos a descoberta.

GOGÃO – Deixa que eu falo. Peça silêncio.

ZILEU – Silêncio de novo, gente. Tem uma novapara ser ouvida.

CEGO/RIPIÓ – (canta Canção de Silêncio ) Faz silêncio minha genteFaz silêncio neste instanteVamos ouvir notícia urgenteQue é muito importante

(alando) Tem a palavra o mascate Gogão.

GOGÃO – Meus respeitáveis amigos cegos. Umacoisa muito importante foi descoberta por mim efará mudar muito o rumo de vocês. Peço apenasque, depois que lhes der a notícia, todos se pro-ponham a me ajudar a encontrar um enterradoque está na fazenda. E agora, tirem as vendas,

molhem os olhos com panos d’água e eu voufazer um milagre acontecer.

CEGO#1 – É preciso fazer tudo isso? Todos sabemque não devem tirar as vendas dos olhos, quedá uma ferida braba que come a cara inteira.

ROSINHA – Podem tirar, sim. Por conança nomeu pai, que deixou uns escritos, sabemos averdade sobre esta terra de cegos.

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CEGO/RIPIÓ – Acho melhor ouvir a mocinha efazer o que ela diz.

CEGO#1 – Deixe então só eu tirar. Se não acon-tecer nada, os outros vão atrás.

Rosinha vai até ele, tira a venda, molha um panoe vai removendo a cera e termina.

ROSINHA – Abra os olhos devagar, quem nuncaviu luz pode deslumbrar de tanto brilho.

CEGO#1 – Vou abrir... Então é assim, meu Deus...(grita chorando) Vamos minha gente, venham

comigo ver o mundo, que se deu um milagre.

Todos correm a fazer o mesmo.

CEGO/RIPIÓ – Toca buscar o Ciclópio, antes queele venha estragar a festança do milagre.

CEGO#1 – Vamos, gente, buscar o danado doCiclópio.

CEGO#2 – Vamos dar o gosto do tronco ao de-salmado.

CEGO#3 – Melhor é matar de uma vez.

Ciclópio é trazido com rede e tudo.

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É vencido pela maioria e o colocam no tronco.Apanha com galhos das mulheres. Jogam pedras.De repente, ouvem-se tiros. Todos se escondem.

CENA 16 OS JAGNOS ENTRAM NA DANA

Três jagunços entram atirando para o alto.

LIMINÃO – Parada! Que ninguém se mexa, senãovai bala em toda direção.

ZÉ-CASTIGO – Olha lá os burreiros e a menina.

GOGÃO – Pelo amor de sua mãe e da santíssima,não me mate!

RASGA-BUCHO – Pois se depois desse tempão agente volta a se encontrar.

LIMINÃO – Separa os nossos desse resto.

Zé-Castigo separa.

LIMINÃO – Amarra bem, que desta vez ninguémescapa. Dá uma olhada e vê se o lho da velhaestá por aí.

RASGA-BUCHO – Que conheça, tá não.

LIMINÃO – Que é que faz este homem amarra-do? Pelo semblante, parece ser pessoa de bem.

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RASGA-BUCHO – Verdade, parece muito distinto.

LIMINÃO – Que é que faz aí preso, bom homem?

CICLÓPIO – Sou o capataz desta fazenda. Essesdanados lavradores me prenderam aqui e que-rem acabar comigo e com a lei do patrão. Soltaieste homem de bem, meus salvadores!

LIMINÃO – Quem é o seu patrão?

CICLÓPIO – É o santo Coronel Romílio Sá de Al-buquerque Rêgo de Alcântara.

LIMINÃO – Pois nós somos jagunços do Coronel

Militão Buarque Correia de Melo Brito. Estamosaqui prendendo estes dois burreiros e a menina,por ordem do Coronel. Rasga, solte este nossocompanheiro. Gente de bem ajuda gente debem. E até pode ser que o Coronel patrão deleseja amigo e parente do nosso Coronel.

CICLÓPIO – Agora, seus danados, vocês me pa-gam. Vou com eles defendido até o santo patrãoe volto com mais gente pra me ajudar. Na volta agente acerta.

LIMINÃO – Melhor é matar de uma vez os bur-

reiros e só levar a menina.

ZÉ-CASTIGO – Taí uma medida boa.

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Os jagunços levantam as armas. Nisso, entraum garimpeiro, com as mãos cheias de pepitasde ouro.

GARIMPEIRO/RIPIÓ – É ouro, minha gente, naor da terra. Tem para todos, é só pegar e carrico. Tem ouro que não acaba mais.

GOGÃO – O tesouro!

LIMINÃO – Ouro na or da terra... Toca, minhagente danada, no galope!

Saem em disparada. Ciclópio corre atras. Gogãohesita entre os dois grupos, pois o outro correu

para o lado oposto e acaba seguindo os jagun-ços. O garimpeiro joga as pepitas fora e vai,calmamente, encontrar os jagunços.

CENA 17 RIPI VIRA CANGACEIRO

Os jagunços procuram o ouro.

LIMINÃO – Onde se meteu o ouro que estavaà or.

RASGA-BUCHO – Talvez cavando um pouco...

GOGÃO – Talvez se olhando ali mais embaixo.

LIMINÃO – Já olhei, não estava.

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GOGÃO – Tem que estar, é o tesouro.

LIMINÃO – Você já estava sabendo deste ouro?

GOGÃO – Pois foi atrás dele que cheguei aqui.

ZÉ-CASTIGO – Veja só, ouro nenhum. Será aquimais acima?

GOGÃO – Já escrafunchei...

LIMINÃO – Só se...

RASGA-BUCHO – Só se...

ZÉ-CASTIGO – Só se...

GOGÃO – Só se...

LIMINÃO – Só se o garimpeiro deu de...

RASGA-BUCHO – Deu de...

GOGÃO – Deu de o que, pois não?

CICLÓPIO – De mentir e enganar a gente.

LIMINÃO – Canalha miserável, lho da peste!

RASGA-BUCHO – Reboque de igreja, sapiquáde lazarento.

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ZÉ-CASTIGO – Muro de igreja, corrimão de es-cada de quartel.

CICLÓPIO – Nojento, desgraçado, vagabundo.

GOGÃO – Filho da mãe, lho da égua, sacri-panta, lho do satanás. Onde é que já se viudar engano numa coisa desta. Se eu pego esse

miserável, torço a cabeça, depois jogo no rio. Vêlá se isso é possível!

Todos olham para ele como que achando queele não é do bando.

GOGÃO – Filho da égua, eu bem que queriapegar o danado. Nós precisamos fazer algumacoisa. Vamos, nobres jagunços e também o se-nhor, seu capataz, correr atrás do tal e pegarpara dar o justo castigo. Que se não pego elehoje, não durmo.

LIMINÃO – É o m?

GOGÃO – Fim nada. Fim só depois de pegar otal garimpeiro.

LIMINÃO – Acabou de fazer o seu discurso?

GOGÃO – Tinha mais o que falar, mas já todosestão sabendo.

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RASGA-BUCHO – Pois é...

ZÉ-CASTIGO – Pois é...

LIMINÃO – Pois é...

CICLÓPIO – Pois é...

GOGÃO – Pois é... Pois é o que, pois não?LIMINÃO – Rasga, joga uma corda aí na arvore.

ZÉ-CASTIGO – Dê um laço primeiro.

GOGÃO – Se quiser, eu sei dar laço forte, tô

acostumado a fazer embrulho.

LIMINÃO – Pois pode dar o laço. E faça bem forte,pra que aguente um porco gordo.

GOGÃO – É pra já.

CICLÓPIO – Deixe que eu amarro na arvore.

LIMINÃO – Zé, traga aquele tronco.

GOGÃO – Está bem forte o laço?

LIMINÃO – Você é quem vai saber.

GOGÃO – Eu?

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LIMINÃO – Pois então se meteu no meio dos jagunços e do capataz e pensou que ia sair vivodaqui? Inda mais que os outros escaparam. Voudescontar toda raiva em você, seu burreiro.Levem ele.

GOGÃO – Ave Maria, cheia de graça... Não memate... Pelo amor de vossos lhos.

LIMINÃO – Aqui ninguém quer mordê Deus não.Pronto, então vai, empurra o tronco.

GOGÃO – Santa Rita dos Afogados!

Vêm da mata dois tiros, e logo atrás, o maistemível cangaceiro que se possa imaginar, ar-mado até às gengivas, com duas garruchas emcada mão.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Qual é o perigo?

LIMINÃO – Quem é você, cabra?

CANGACEIRO/RIPIÓ – O que é que estão fazen-do na minha mata? Não sabem que esta matapertence ao cangaceiro Pescocinho Taturana?

ZÉ-CASTIGO – Pescocinho Taturana?

RASGA-BUCHO – O Taturana em pessoa.

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CANGACEIRO/RIPIÓ – Ao primeiro movimentofalso, meu bando está escondido no mato comum trabuco em cima de cada um de vocês. Voudar um sinal. (assovia; um outro assovio respon-de) Tá vendo? O estripador já deu o recado queo cerco está feito. Que absurdos são esses deinvadir sem mais nem menos minha mata?

LIMINÃO – Que muito me perdoe, mas o senhoré mesmo o Pescocinho? O mesmo que tacou fogona igreja velha, lá na Vila das Dores?

CANGACEIRO/RIPIÓ – Taquei fogo na igreja só,não. Queimei o padre também e z o povo co-

mer o churrasco dele.

LIMINÃO – É o mesmo que cortou as duas ore-lhas e o nariz do delegado e da guarnição dePião Batido?

CANGACEIRO/RIPIÓ – Cortei só isso não, corteimais. Mas o principal o jornal não deu.

LIMINÃO – Eu me apresento. Sou Liminão eesses são meus comparsas. Somos jagunços doCoronel Militão.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Esse caolho aí, quem é?

CICLÓPIO – Sou capataz do Fazendão Santa Luzia.

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CANGACEIRO/RIPIÓ – Não gosto de caolho.

LIMINÃO – E este, que está na corda, é um mas-cate miserável, culpado de vários crimes contrao Coronel e a jagunçagem.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Cabra ruim está aí. Só quenão gosto de morte assim, sem mais diversão.

Matar na corda é coisa que me dá gerisa.

LIMINÃO – É que a gente estava apressado...

CANGACEIRO/RIPIÓ – Pois então, vão se emboraque eu mato esse danado.

CICLÓPIO – Melhor matar agora mesmo.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Não gosto de caolho...

LIMINÃO – Se a sua senhoria mostrasse um jeitomelhor...

CANGACEIRO/RIPIÓ – Eu, por mim, gosto de ti-rar primeiro a pele dos braços e das pernas pracomeçar e depois momelar de melaço e tacarformiga. E assim deixo três dias, que é boa conta.

CICLÓPIO – É que a gente tem que acabar logo

com ele, pra voltar.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Não gosto de caolho.

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LIMINÃO – Então, a gente dá um jeito de matarele agora, de uma vez.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Aqui na minha mata, quemtira a vida sou eu.

CICLÓPIO – Então, tira de uma vez.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Não gosto de caolho.

Cangaceiro/Ripió dá um tiro em Ciclópio, quecai morto.

LIMINÃO – Pra falar a verdade, eu também nãogostava muito não.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Vê lá se a gente podegostar de alguém que tem um olho só e, aindapor cima, a gente nunca sabe certo pra que ladoestá olhando. Me dá nervoso.

LIMINÃO – Então, peço licença e levo o prisio-neiro pra matar mais adiante, fora de sua mata,a qual respeito.

CANGACEIRO/RIPIÓ – O Senhor Liminão não seipor que anda em jagunçagem. Dava mesmo era

para um belo cangaceiro. Jagunço é criado deCoronel, cangaceiro é livre. Pra dar susto até nogoverno. Não lhe atrai?

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LIMINÃO – Na verdade, eu já tinha pensado nisso.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Pois pense... Se quiser, temuma vaga no meu exército.

LIMINÃO – Eu acho que não...

CANGACEIRO/RIPIÓ – Tem razão, sua dignidade

de chefe não pode ser perdida.Forme o seu bando, que já tem aí dois jagunçosque serão grandes cangaceiros, e pra começarpode atacar até seu próprio Coronel, pois conhe-ce a região muito bem.

LIMINÃO – Não podemos não. Somos jagunçosdo Coronel Militão. Ele não haveria de gostar desaber que deixamos o serviço dele.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Ah, já sei, já percebi. É umhomem muito macho o tal de Coronel Militão.

LIMINÃO – Oi lasca, está querendo dizer que eunão sou?

CANGACEIRO/RIPIÓ – Virgem Nossa Senhora,nem me passou pela ideia de ofender.Sei que o companheiro é muito por demais ma-

cho, também.

LIMINÃO – Sei lá o que há de ser.

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CANGACEIRO/RIPIÓ – Pois se não tem conançana machidão de seus dois cabras, eu até aconse-

lho a não encetar luta contra o Coronel.

RASGA-BUCHO – Olha aqui, ô Pescocinho... Estáchamando a gente de ximbungo não, não é?

ZÉ-CASTIGO – Não haveria de ser coisa boa que,

mesmo tendo bando, muito sangue corria.CANGACEIRO/RIPIÓ – Eu mais meus companheirosde decidido, não me dão desentendimento. Vê láse ia chamar dois cabras tão valentes e sacudidosde essas coisas. Chamei não. Estou só meio des-conado do medo que todos têm do tal Coronel.

LIMINÃO – Pois que sabendo que eu mais osdois aí não temos medo de Coronel nenhum.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Que gente macha. Nuncavi tanta machidão junta. Meus respeitos e minhas

penas de saber que três cabras tão assim machís-simos estão posando de jagunços do Coronel. Éuma coisa triste!

LIMINÃO – Falar verdade, essa estoriada de virarcangaceiro está me dando nas vontades.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Pois é certo que tem quedar. É uma prossão por demais dignicantetrabalhar por conta própria.

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LIMINÃO – Pois olhe que já estou mudando!

CANGACEIRO/RIPIÓ – Isso homem, esteja decidido.

ZÉ-CASTIGO – Por mim, também aceito e faço fé.

RASGA-BUCHO – Eu ia car de fora? Nunca,estamos juntos companheiros!

CANGACEIRO/RIPIÓ – Muito bem, meus lhos. E já que deram decidimento, vou dar uma ajudapara o início desse novo exército. (vai a um cantoe volta com um saco) Parece que tinha pensado em tudo. (abre evai tirando aparatos de cangaceiro: chapéus,

roupas, cartucheiras, acas, etc) Se sirvam. Éum chapéu que foi de presente do PescocinhoTaturana. (pega um chapéu) Este chapéu foi deHildebrando, o Forra Tripa, meu braço direito,cabra morto em um ataque em Cariri. Tome, Zé,e honre este chapéu, que foi de um cabra mais

macho e de melhor pontaria que conheci. Esteoutro aqui, com este furo de bala, foi do falecidoChico Cutucão, cognominado Surjão, por maniasde tirar a pele sem machucar a carne.Apanhe, seu Rasga, e use dignamente. Este aquié muito especial, foi o chapéu que Lampião usou

no dia em que morreu. É uma relíquia do canga-ço, que passo para suas mãos, chefe Liminão. Emais estas roupas e mais as cartucheiras estão aí

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para que levem. Foram todas de gente corajosa,que morreu na luta e na guerra do cangaço.Agora, segundo o costume que todos têm queobedecer, vou apadrinhar e sagrar o bando.Acocorem-se, jagunços do Coronel Militão. Eu,Pescocinho Taturana, que sagrado por Lampião,venho com todo poder sagrar estes cabras naOrdem do Cangaço. Para tanto, eu bato quebato e torno a bater (dá um lambada nos três) efaço que se levantem Capitão Liminão, TenenteZé-Castigo e Contramestre Rasga-Bucho.

LIMINÃO – Todos os agradecimento são poucacoisa pelo que fez por nós.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Tem nada, não. Quantomais gente no cangaço, melhor. Maior seránosso poder.

LIMINÃO – Agora temos que partir em busca

de ataques.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Pra começar, pode atacaro próprio Coronel Militão, pois conhecem tudopor lá tão bem.

ZÉ-CASTIGO – Inda mais que estou lembrando deuma certa sumanta de la, um atrás do outro,que até agora me dá vergão.

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RASGA-BUCHO – Pois não é que também a talde sumanta não me passou na goela.

LIMINÃO – Pois é, também pra mim a tal desumanta não passou na goela. Vamos devolvera surra que ele fez a gente se dar.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Pois, então, vá com seu

exército cangaceiro e faça o que deve.

ZÉ-CASTIGO – É verdade, estou lembrando dasurra que ele fez a gente dar na gente mesmo.

RASGA-BUCHO – Pois não é que me veio na

lembrança isso também!

CANGACEIRO/RIPIÓ – Pois, então, vá com seubando, Cangaceiro Liminão, e faça o que deve.E deixe este comigo, que dou um bom m nele.

LIMINÃO – A cavalo, minha gente, meus exér-citos. Em nome do cangaço, rumo ao CoronelMilitão, nosso antigo patrão, que tantas contasvelhas me deve. Por minha honra, Seu Pescoci-nho Taturana, ainda vai ouvir falar de mim.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Já estou ouvindo... Limi-não, o grande matador de coronel.Felicidades.

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LIMINÃO – Toca, minha gente danada. Galope,em nome do cangaço.

O cangaceiro olha Gogão, que se mijou de medo.

CANGACEIRO/RIPIÓ – E tu, meu caro, vais entrarna faca agora mesmo...

Gogão não consegue falar. O cangaceiro pega afaca e vai até ele. Gogão treme, uiva. O cangacei-ro dá um golpe soltando Gogão, que cai no chão.

CANGACEIRO/RIPIÓ – Só digo uma coisa, mestreGogão. Mestre em burros, preços e lábias. Sólhe digo que, no dobrar das esquinas, às vezes

a gente dá de cara com o que nunca esperou,portanto, quando se tem a alma carregada, omelhor é tomar cuidado com a pele. Vai, cagão,e se torne um homem de bem.

Gogão beija os pés dele e sai correndo.

CENA 18 EPLOGO E NARRATIVA: ONDE TDOSE ENCERRA DA MELHOR MANEIRA.

Um local no mato.

CONTADOR – (canta Canção do Que se Leva

Deste Mundo ) Deste mundo a gente levaSó o bem vivido e rido

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Deste mundo a gente levaO que se fez divertidoDeixa pra lá...

Entram cegos.

CONTADOR – (continua canto) Tudo que for sem graça

Bota pra trásO que for triste passaO que não prestaNão serve pra ser vividoA vida tem de ser festaViver é tão divertido

Olhar o céu é risoCheirar o mato é risoCorrer no campo é risoTomar cachaça é risoBeijar mulher é risoContar estória é riso

Brigar de faca é risoFazer trapaça é risoDormir na palha é risoViver assim é riso!

Assim que sai Cangaceiro, entram Rosinha e Zileu.

ZILEU – Pois é como eu digo, o tesouro está en-terrado em alguma parte da fazenda.

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ZILEU – A gente pode car aqui e trabalhar juntos.

CEGO#1 – Quanto mais, melhor. Agora que aterra é nossa... Inda mais que trouxeram essamudança em nossa vida!

ZILEU – Moça Rosinha, eu não tenho ninguémpor mim. Gostaria de ter.

ROSINHA – Moço Zileu Rojão, lho de ManéRojão, é como também acontece comigo.

ZILEU – Tinha pensado que neste tempo curto deandar junto, já tinha dado pra gente se conhecer.

ROSINHA – E já deu.

ZILEU – Quer ser minha mulher?

ROSINHA – É o que mais quero nesta vida.

Os dois se abraçam e os outros batem palmas.ZILEU – Então, é pra já. Gente, onde tem um padre?

CEGO#1 – Aqui não tem, meu lhos, só a dezdias de viagem.

ROSINHA – Que pena!

ZILEU – Então, como é que a gente faz?

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ROSINHA – Olha lá!

Súbito aparece, andando pela estrada e lendoum breviário, um padre.

ZILEU – Parece até um milagre, é um padre!

PADRE/RIPIÓ – Meus lhos, eu sou o Missionário

Josimar de Jesus, em viagem por estas bandas.Sabem onde posso descansar por esta noite?

CEGO#1 – Aqui mesmo, padre. Contanto quenos faça um favor... Case estes lhos de Deus.

PADRE/RIPIÓ – Casar? É simples, meus lhos.

Ajoelhem. Deusorum olharum por estesorumlhorum que querem casorum e abençorum,enquanto é temporum, senão eles vão se amar-zorum aí no matorum sem a vossa bençorum. Amenina aceita o moço como esposo e prometeser el a vida inteira?

ROSINHA – Aceito e prometo.

PADRE/RIPIÓ – O rapaz aceita a menina e pro-mete amá-la sempre, a vida inteira?

ZILEU – Aceito e prometo.

PADRE/RIPIÓ – Eu te casorum em nome do amor-zorum e deixorum eu ir emborum logorum, an-

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tes que descubrorum que eu não sou padrorum.Pronto, meus lhos.

ZILEU – Quanto é, seu padre?

PADRE/RIPIÓ – Qualquer coisa serve, é praDeus mesmo.

ZILEU – É tudo o que tenho.Padre pega, embolsa e sai.

CEGO#2 – Na zona norte é meu lugar de procu-rar tesouro.

CEGO#3 – Não sei porque eu também morodeste lado.

Começa uma gritaria generalizada. Cada qualquer uma parte da terra, que só cessa quandouma luz vermelha da aurora invade a cena.

CEGO#1 – O que é isso?

ROSINHA – É nada, é só o dia que está nascendo.O sol vem vindo.

MULHER – O sol é aquele calor que dana a gente.

CEGO#2 – Que faz o corpo deitar água no can-saço da lida.

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CEGO#3 – Que bate na testa, faz gotejar e cairde queimado.

CEGO#1 – Agora é diferente. É esta luz bem-vindaque alumia nossa visão.

Os camponeses cantam baixo a canção nal:Canção Final .

CAMPONESES – (cantam) Quem é seu Ripió?O seu Ripió quem é?

Já foi padre, foi ceguinhoFoi homem já foi muiéQuem é seu RipióO seu Ripió quem é?

Foi juiz já foi soldadoFoi jagunço e coronéQuem é seu Ripió

O seu Ripió quem é?

Foi de antes e de agoraE será de sempre atéQuem é seu RipióO seu Ripió quem é?

É o grito do meninoÉ o amor de uma muié

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É o canto do cabocloÉ um gole de caféQuem é?

É um beijo uma trapaçaUma vontade de viverÉ um gole de cachaçaÉ criança a nascer

CONTADOR – Seu Ripió é bem como se fosseAlguém que só vivesseUma vida vivida grandeÉ como se alguém juntasseDe cada homem de bem

Os pontos de sua vidaOs mais melhores e belosO melhor do mais melhorDe cada homem de bemSeu Ripió é todosE também não é ninguém.Assim é seu RipióRipió assim que é.

CENA 19 FINAL

CONTADOR – E assim chegam ao nalEstas aventuradas e lendagens.

Se perguntam se encontraram o tesouro,Posso dizer que procuraram muito,

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Cavaram a terra e a revolveram.Nada estava.

Então, plantaram e assim foi indoAté que ninguém mais se importava como tesouro...Existem tesouros e tesouros.A terra, os homens irmanados são tesouros...

Isto eu sei pois sou assim como Ripió,Que dizia assim:

Eu me z ser como semente de paineiraEstalo no alto, e me mando a voar.

Largo um voo no vento, até dar no chão.Aí viro plantinha, paineira pequena.Quando a paineira ganha tamanho,Disposta a dar lenhaOu paina ou sombra ou or,Subo do chão, me estalo no ar

E me mando de novo a voar.

De vez em quando dá um só. Então partoE são gente e estórias de gente.Paro, conto.

São uns fatos que, de passagem,Se vê, se ouve, se guarda,Depois se junta tudo.

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Mais uma bossa, um jeitão de recontarE são os causos, estórias, lendagens.

Todos cantam a Canção de Retirada.

TODOS – (cantam) Retirada Iaiá, retiradaAcabou a nossa função

Retirada Iaiá, retiradaAcabou a nossa função

Acabou a nossa função, oilerêE também nossa satisfaçãoAcabou a nossa função, oilerêE também nossa satisfação

Agora vamos emboraPor outro caminho qualquerAdeus, adeus, senhoresAdeus, adeus, senhorasAmanhã tornaremos a voltar.

Finis

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Farsa com Cangaceiro, Truco e Padre

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Farsa com Cangaceiro, Truco e Padre

(Xandú Quaresma)

Original de Chico de Assis

Personagens:Mestre Xandú QuaresmaCaboAparecidaDelegadoTiaPadreCabraDeodoro, o Marechal

Virgulino, o Cangaceiro LampiãoAntonio, o ConselheiroPadre CíceroO DiaboNossa SenhoraA Falsa Filha do Cangaceiro

São Sebastião da EncruzilhadaCenários:Encruzilhada da Capelinha de São Sebastião daSerra BaixaPracinha e CadeiaSacristia

A ação se passa ali por mil novecentos e poucos,em uma cidadezinha qualquer do Brasil.

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CENA 1 ENCRzILHADA DE SO SEBASTIO

A primeira cena se passa na encruzilhada ondeestá um nicho abrigando uma imagem de SãoSebastião em tamanho natural. É o padroeiroda cidadezinha. Ao abrir a cena vem chegandoMestre Xandú, com uma braçada de ores evassoura, escova, balde de água, panos, etc.

Vem cantarolando e para na frente da imagem,depositando os trens no chão.

XANDÚ – Bom dia, meu santo, vamos se apron-tando que é o dia de banho semanal.(Retira a imagem do nicho) Pois não é, meu santi-nho, meu compadre, que esta amizade já vai indopra dois anos? Na hora do pega pra capá, vê senão vai se esquecer do amigo. Esse trabalhinhoconta, num conta?... Anal, é uma exploração.Eu devia ser uma espécie de hóspede da Prefei-tura nestes dois anos. Já contei porque foi? Jácontei, não contei? Pois foi por causa do cavalo

que vendi ao vigário.A negócio bom. Nunca ninguém comprou umcavalo tão barato.

XANDÚ – O vigário comprou, montou e sai ocavalo; foi dando em frente, seguindo até bater

com a cara numa árvore. O padre botou a boca nomundo que nem deu tempo de eu seguir minhaviagem. Um escândalo. Injustiça. Disse que eu ti-

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nha vendido um cavalo cego e lesado à paróquia.Verdade verdade, aqui entre nós, que o santosabe tudo, não quero dar na mentira que épecado: a visão do cavalo perfeita, perfeita, nãoera não. Enxergar no escuro, não enxergava.

XANDÚ – Mas quem é que quer um cavalo comvidência perfeitíssima? Num vai ser relojoeiro,

nem escrivão. Um cavalo é pra montar e bemmontado, nem que num enxergue nada a genteleva ele certo. Pois eu então não vim cinquentaléguas no cavalo depois dito cego? Inda se eutivesse vendido um cavalo manco a um padrecego, era crime. Mas um cavalo cego a um pa-

dre manco é bem outra coisa, e meu santo háde convir que dois anos é pena puxada por talazar da sorte.

XANDÚ – Depois, eu disse ao padre que erasó botar óculos no bicho que virava perfeição.Pois o tal animal já tinha usado óculos muito

tempo, mas quebrou. Não fosse o cavalo termorrido de velhice um mês depois, eu botavaum óculos nele, pra ver como o bicho enxergavaaté no escuro.

XANDÚ – Aqui entre nós, o padre rouba no jogo,

não vá comentar aí em cima, que é desdouropro santo vigário. Mas que ele rouba, rouba. Éum tal de espadilha rolando na manga daquela

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mesmo em Santa Rita, preso só sai uma vez porsemana e, em Muzambinho, só sai pra varrer arua e volta. Vê se preso de Taquaral joga trucona cadeia com o vigário e o cabo e o delegado.

XANDÚ – Pois aqui, jogo truco em má compa-nhia e mais que obrigado. Por minha vontade,procurava pra jogar truco umas pessoas; que

não querendo acusar ninguém; não vou dizer onome, mas tira espadilhas da manga da batina.

CABO – O padre trapaceia?

XANDÚ – Não quis acusar ninguém, se vocêadivinhou, guarde pra si. Não quero me meterem complicações com o padre, que apesar demanco é meu amigo.

CABO – É mais uma história sua, Xandú.

XANDÚ – É mais uma história sua, Xandú...

O que é que há com minhas histórias... Eu vivia vida, meu lho, tenho o que contar. Se vocêe o padre pensam que não é verdade, a culpanão é minha. Mas é que, a gente nunca saiu deSão Sebastião da Serra Baixa, não pode mesmodar fé com os extraordinários da vida. E sei que

se eu disser que o São Sebastião aí fala comigo, já sei que ninguém vai acreditar, por isso mesmonum abro a boca sobre tal acontecimento.

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CABO – E o São Sebastião fala com você, Xandú?

XANDÚ – Fala não... Imagine se esta imagem vaise dignar a falar com alguém como este aqui,tão humilde. Preso, ainda por cima... Imagine seeste São Sebastião ia até me contar coisas queninguém sabe. Conta de jeito nenhum. É possívelque na semana passada ele tivesse me dito que

a cria do vigário, a Aparecida...CABO – O que é que tem ela?

XANDÚ – O que é que tem ela, o que? O santonão disse nada não. Imagine um santo de talporte dar conversa a um mentiroso como eu,

que vive inventando cousas. É mais uma históriaminha. Onde é mesmo aquela murada da descidadas pedra?...

CABO – O que é que tem a murada?

XANDÚ – Imagine se o santo me contou quenaquela murada. Contou não, Seu Cabo, nem iacontar que era quase que falar mal da meninaAparecida, que foi criada pelo santo vigário des-ta paróquia. Mesmo que São Sebastião tivessevisto tinha calado, isso eu posso garantir. E setivesse que falar, só falava pra outro santo ou

então pra uma pessoa quase santa. Mas eu nãosou nem santo, nem quase santo... Sou preso atéo m do mês. Contou nada, não.

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Ainda outro dia, no caminho daqui topei comuma onça.

PADRE – Onça por aqui, meu lhinho?

XANDÚ – Onça, Seu Padre. Mas eu sei lidar comonça. Não sei se eu já contei o causo..

CABO – De onça de sela? Contou sim, Seu Xandú,não precisa se cansar de contar de novo.

XANDÚ – Pois é, mas essa que eu topei era dasgrandes, Seu Padre. Pra lá de umas cinquentaarrobas...

PADRE – Cinquenta, meu lho?...

XANDÚ – Cinquenta é muito... Olha, tinha maisou menos vinte e seis arrobas, por aí...

CABO – Vinte e seis arrobas ainda é muito.

XANDÚ – Se é muito, ca por dez, e por menosnão posso fazer que onde é que já se viu umaonça de pra mais de quatro metros com menosde dez arrobas?...

PADRE – Quatro metros, meu lho?...

XANDÚ – Quatro metros de frente e de lado...De comprido, tinha uns dez.

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CABO – É muito... Eta Xandú contador de loro-ta... Mentir não é pecado, padre?

PADRE – Enorme, meu lho...

XANDÚ – E roubar, Seu Padre?

PADRE – Pior, meu lho. Um pecado horrível.

XANDÚ – Mesmo que seja numa porcariazinhade um joguinho de truco, a tostão a queda?

PADRE – Olha aqui, Seu Cabo. Chegando o novodelegado, diz que logo passo na cadeia para teruma conversa com ele. Vamos, Aparecida.

APARECIDA – Vou só arrumar umas ores naimagem de São Sebastião.

PADRE – Vou indo... Olhem lá que talvez hoje ànoite mesmo, a gente ferre.

CABO – É pois.

XANDÚ – Na manga... lazarento.

APARECIDA – (rezando alto) Meu São Sebastião,fazei com que o jasmineiro da ladeira das pedras

esteja orido ali pelas cinco da tarde. (desaparece)

XANDÚ – Tá vendo, São Tião? Olha aí só.

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CABO – Se você abrir a boca, eu te capo, sô.

XANDÚ – Abro não, eu fecho, sô... Miserável.

CABO – O quê?

XANDÚ – Falei como vai a senhora sua tia, saroudo antraz?

CABO – Está melhor.

XANDÚ – Fala pra ela fazer emplastro de fumode rolo com bosta de galinha, que é um tiro.

CABO – Falo...

XANDÚ – Coma um pouco que é bom.

CABO – Que foi?

XANDÚ – Caridosa, vaca...

CABO – O que foi?

XANDÚ – Deus a proteja, e mais São Sebastião.E faça com que ela morra depressa.

CABO – Morrer quem?

XANDÚ – Falei que quando ela morrer, ela vaidireitinha.

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CABO – Sim, pro céu!

XANDÚ – Justamente, pro fundo do céu, nosquintos dos céu, nas nuvens que a partam.

CABO – Outro dia, ela se queixou de que vocênão quis varrer a igreja de tarde.

XANDÚ – Santa criatura, não pode ver a igreja sujaque logo vem me procurar: varra aqui, limpe ali;qualquer dia eu sacudo a vassoura no rabo dela.

CABO – Ouvi mal?

XANDÚ – Não posso olhar a vassoura que lembro

dela e de sua santa limpeza.

CABO – Vamos indo... Toca você pra cadeia, queeu vou dar um giro.

XANDÚ – Tá certo, seu corno.

CABO – Hein?

XANDÚ – Se o senhor quer, eu torno...

CABO – Se o delegado chegar, você recebe...

XANDÚ – E faço a sua caveira, seu corno..

CABO – Toca logo pra lá, seu moleque

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CENA 2 PRAA E CADEIA

Entra o delegado, com malas, suado, cansado.Olha em volta. À direita está o prédio da cadeia.Ele entra na cadeia. Olha, vê a cela aberta, olhadentro da gaveta: armas largadas, baralho,cachaça, etc. Logo sai. Vem a tia do Cabo e go-vernanta do padre.

DELEGADO – Bom dia, minha senhora.

TIA – Mais ou menos umas dez horas, olha aaltura do sol.

DELEGADO – Não tem ninguém na cadeia.

TIA – Tem cidade até mais feia do que essa. Osenhor, quem é?

DELEGADO – O novo delegado.

TIA – Honório Delgado... Muito prazer. Semíra-mis da Silva Freitas.

DELEGADO – A senhora não escuta bem?

TIA – Não senhor, aqui é a cadeia, o prefeito

mora no bairro do Borba.

DELEGADO – Estou bem arrumado...

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TIA – Não senhor, não está abandonado. O Caboe Seu Xandú devem ter saído um pouco.

DELEGADO – Menos mal, que pergunto uma meresponde outra.

TIA – Seu Honório Delgado, o que veio fazer emnossa cidade?

DELEGADO – Sou o novo delegado.

TIA – Eu sei, já ouvi, pensa que eu sou surda?Honório Delgado. Mas eu perguntei o que veiofazer na cidade?

DELEGADO – (grita) Sou o novo delegado.TIA – Ah, estúpido. Não sabe fazer outra coisaque gritar seu nome. Pergunto o que vem fazerem nossa cidade.

DELEGADO – (berrando) Sou o novo delegado.

TIA – Está maluco, rapazinho... Pensa que eu nãoentendi, Honório Delgado.

DELEGADO – (desistindo) Está certo, minha se-nhora, sou Honório Delgado.

TIA – Ah, é o novo delegado. Muito prazer, meulho, nós estávamos esperando por estes dias.Então, é Honório Delgado, o novo delegado.

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DELEGADO – Sou... que alívio. Onde estão osresponsáveis pela cadeia?

TIA – Já disse que tem cidade mais feia.

DELEGADO – Nunca vi cidade mais feia...

TIA – Devem ter ido até à encruzilhada de São

Sebastião e logo voltam. Olha, lá vem vindo oSeu Xandú; cuidado com ele, é o maior vaga-bundo e loroteiro da cidade.Bem, eu vou indo. Até mais, Seu Honório.

DELEGADO – Até.

XANDÚ – (sorrindo) Como vai essa cabeça decoco, velha cretina.

TIA – Passar bem, Seu Xandú, e amanhã à tardelimpeza geral na igreja...

XANDÚ – Deus lhe dê a pior hora de morte.

TIA – Sorte tem o senhor... Fosse em Santa Isabelou Pedra Viva...

Xandú entra na Cadeia e o delegado o segue.

DELEGADO – (entrando) Então, é costume deixara cadeia abandonada?

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XANDÚ – Costume do cabo, sim senhor. É ummuito desleixado e surdo que nem a tia, queé mal de família. Pelo que vejo o senhor é onovo delegado.

DELEGADO – Eu mesmo, e o senhor?

XANDÚ – Xandú Quaresma, seu criado e servi-

dor... Então, o senhor vem de onde?

DELEGADO – Do Rio. Me formei há um ano.

XANDÚ – Muito bem, muito bem, cuidado comessa botija que é minha e muito preciosa.

DELEGADO – Que botija?

XANDÚ – Essa aí... Parece qualquer uma, mas édaquelas feitas pelo Tinoco Papaterra.Aposto que o senhor conhece já, não é, o Papa-terra. O Famoso.

DELEGADO – Não conheço, não senhor.

XANDÚ – Mas não é possível, pois ele esteve mui-to tempo na capital. Tinoco Papaterra, o senhorconheceu e não lembra... O senhor, olhando de

qualquer lado da botijinha, bem parece dessascomuns, feitas no torno e secadas ao sol. Poisparece, mas não é. Esta é de Tinoco Papaterra.

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DELEGADO – O que é que a botija tem de diferença?

XANDÚ – Mas então o senhor não sabe?

DELEGADO – Não sei, não insista.

XANDÚ – O Papaterra não faz botija com otorno, não.

DELEGADO – Faz como?

XANDÚ – Fazendo. (mexe as sobrancelhas)

DELEGADO – Fazendo como?

XANDÚ – É pois... Ele não se chama Papaterra defamília, não. Ele papa terra ali no duro. Pois é...

DELEGADO – Pois é o que?

XANDÚ – Papaterra toma um pouco d’água, des-cansa um pouquinho e passadas umas três horas,faz uma moringa ou botija, conforme o gosto.

DELEGADO – O senhor está querendo brincarcomigo.

XANDÚ – Queria ver o senhor morto, duro aí

no chão, se estou brincando. Essa mesma eu vifazer... Tem gente que diz que ele faz mais devinte por hora. Essa é uma mentira danada... faz

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só uma, de três em três horas... Por isso que éuma careza que só vendo... Se o senhor quisercar com esta... Eu tenho duas.

DELEGADO – Eu gostaria de saber quem é osenhor e por que tem suas coisas aqui na cadeia.

XANDÚ – Eu sou Xandú Quaresma.

DELEGADO – E que faz na cadeia?

XANDÚ – Vivo aqui, ora!

DELEGADO – Vive como?

XANDÚ – Mal como um corno, se é que o senhorpergunta. Queria ter uma cama, em vez de estei-ra. Há quase dois anos que eu durmo em esteira.

DELEGADO – Não estou entendendo... Por queo senhor mora aqui?

XANDÚ – Onde é que ia morar, então?

DELEGADO – Olha aqui: o negócio mudou, viu?!O senhor faça já a sua trouxa, arrume as suascoisas que a cadeia não é lugar de se morar.Dou quinze minutos para o senhor arrumar seus

trens e sumir.

XANDÚ – Mas Seu Delegado...

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DELEGADO – Nem mais, nem menos. Fora daqui!Vou limpar esta porcaria. Morar na cadeia, onde

 já se viu... Vamos lá, e tome lá sua botija. (pegacom a ponta dos dedos, com nojo)

XANDÚ – O senhor é quem manda, doutor.

DELEGADO – Vamos logo...

XANDÚ – (com a trouxa eita) Até logo então,doutor. Obrigado. (cai ora)

DELEGADO – Passa daqui, sô! Onde já se viu morarna cadeia. Já vi que, por aqui, está tudo errado.

Entra o Cabo empurrando Xandú.

CABO – Entra aí, seu desavergonhado!

XANDÚ – Eu juro pela minha mãe que o de-legado me mandou embora. Não é verdade,

Seu Delegado?DELEGADO – Então, o senhor é o cabo?

CABO – Sou eu mesmo... Vá para dentro!

DELEGADO – Para dentro coisa nenhuma, ele vai

para fora e não me pisa mais aqui.

CABO – Pois não pode, não senhor.

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DELEGADO – O senhor está teimando comigo...

CABO – Quem está teimando não sou eu, é oJuiz de Direito da Comarca.

DELEGADO – E que é que tem o Juiz de Direito?

CABO – Pois se ele condenou o Xandú a dois anos

de prisão, por falcatrua... e o senhor, já doismeses antes, quer soltar.

DELEGADO – Ah sei, está certo. Isso é uma coisaque está certa, pois então ele tem dois anos... Oqueeee?! Este é um preso?

XANDÚ – Preso número um e único, às suas ordens.Bem que quis avisar, mas o senhor não deixou.

DELEGADO – E desde quando preso anda solto?

CABO – Aqui? Desde sempre...

DELEGADO – Está me deixando maluco. Então,é costume deixar preso sair da cela sozinho eir passear?

XANDÚ – Passear uma pinoia. Trabalhar. Eu nãovejo a hora de cumprir a minha pena e dar o

fora daqui. Limpa santo, varre igreja, e a rua, e acadeia. Se pelo menos prendessem mais gente...Mas aqui é um parado.

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DELEGADO – É incrível... Quantas vezes ele saipor semana?

CABO – Sai todo dia... Mas, à noite, vem dormirna cadeia...

DELEGADO – Um verdadeiro hotel.

XANDÚ – Hotel, com essa cama?! Dá uma dei-tadinha aí, doutor. Olhando, é mole; deitado, éque é uma dureza.

DELEGADO – Isso é o cúmulo.

XANDÚ – É o que eu sempre digo.

DELEGADO – Chega!

XANDÚ – Muda a cama?

DELEGADO – Ponha este indivíduo imediata-

mente na cela.CABO – Toca, Seu Xandú.

DELEGADO – Tranque a cela.

CABO – Isso já é mais difícil. A fechadura da jaula

há mais de três anos que não funciona...

DELEGADO – Dê um jeito.

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XANDÚ – Pode deixar que eu não saio.

DELEGADO – É muita gentileza de sua parte.

XANDÚ – Amigo é amigo, né doutor. Eu já fuiamigo até de uma onça. Pois é, já tive até umaonça de sela.

CABO – Deixa a lorota pra lá, seu preso.

XANDÚ – Agora é preso, não é, seu... Na outrahora... Saia da cela, Seu Xandú, que a genteestá esperando...

CABO – Cale a boca.

XANDÚ – Tá calada.

DELEGADO – De hoje em diante, eu quero veresta cadeia funcionando na forma da lei.Tudo limpo, todo dia. Preso sempre preso.

CABO – Sempre?

DELEGADO – Sempre.

XANDÚ – Eh vidão.

DELEGADO – Que signica este baralho?

CABO – A gente costuma...

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DELEGADO – Costumava. (joga o baralho no lixo)

Entra Aparecida, trazendo tigela e panela.

APARECIDA – A comida...

DELEGADO – Que comida é essa?

APARECIDA – Do cabo e do Seu Xandú.

DELEGADO – Pode trazer todos os dias comidapra mim também, que eu vou fazer minhas re-feições aqui.

APARECIDA – Tá certo, sim senhor... (arruma a

mesa, puxa uns pratos, arruma dois lugares)DELEGADO – Hoje não ponha o meu lugar poisa comida está medida.

APARECIDA – Eu vou trazer para o senhor daquia pouco...

Cabo senta-se para comer. Xandú sai da cela.

DELEGADO – O que é isso?

XANDÚ – Nada, só que vou comer.

DELEGADO – Coma na cela. Cabo, leve a comidadele pra cela. Não quero que o senhor ponha opé fora dessa cela.

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DELEGADO – Às vezes, um pouco, nada deexageros...

PADRE – Um bailezinho...

DELEGADO – Às vezes.

PADRE – Uma bebidinha...

DELEGADO – Isso não, padre...

PADRE – Nem de vez em quando?

DELEGADO – Nem ao menos...

PADRE – Vamos lá, confesse ao padre.

DELEGADO – Se o padre quer saber se tenhovícios, posso dizer que que descansado, nãoos tenho. Minha vida sempre foi estudar e tra-balhar, não tenho família rica, sempre preciseilutar para vencer.

PADRE – Um rapaz exemplar... Mas sempre so-brava um tempinho para as conversas com osamigos... É bom ser sociável.

DELEGADO – Isso sim... Não há pecado nenhum.

PADRE – Pois está falando certo. Não há pecadonenhum... E o senhor, me diga, doutor, o se-

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nhor... como direi... apreciava um... como seria...um joguinho?

DELEGADO – Joguinho como?

PADRE – Assim, por exemplo: de cartas.

DELEGADO – Na minha opinião, padre, o jogo é

o pior dos vícios. Pois no jogo, o homem adquiretodos os outros.

PADRE – Sem dúvida. Isto é, nem tanto. Digo joguinho entre amigos, nada de apostas altíssi-mas... Coisinha assim de vintém a queda.

DELEGADO – Padre, sempre soube muito bemque o jogo começa a vintém a queda e terminaa conto de réis.

PADRE – É bem verdade. Quando não se tem, àmesa de jogo, uma cabeça serena, uma vigilânciaconstante, bem pode acontecer... Mas imagineque fosse um jogo simples divertimento, aí entãonão haveria perigo...

DELEGADO – Há sempre perigo, padre. A religiãomesmo diz que devemos evitar a tentação.

PADRE – Sem tentação não há virtude. É muitomais, aos olhos de Deus, um homem que joga avintém a queda todos os dias e nunca cede à ten-

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tação de subir a aposta, do que aquele que nunca joga. Este sim, um dia se afoga no que nunca fez,e sem mérito nenhum...

DELEGADO – Anal, o jogo não é necessidade daimperiosa para ninguém. Jogar ou não jogar,dá na mesma como na mesma dá.

PADRE – Falou bem, meu lho. Veja aqui, porexemplo, uma terra perdida nos confins domato... Nada muda, tudo igual... Um joguinhoé um divertimento.

DELEGADO – Padre, se o senhor está me experi-

mentando para saber de minha moral, pode terconança. Sou cristão, não fumo, não bebo, não jogo. E, raramente, penso em mulheres: aindanão estou no tempo de me casar.

PADRE – Aqui entre nós, meu lho: você não

fuma, não bebe e não joga e não tem namora-das... O que é que você faz, meu lho?

DELEGADO – Trabalho... Estudo...

PADRE – Só?

DELEGADO – Só.

PADRE – O que espera com isso?

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DELEGADO – Ser um homem de bem.

PADRE – Quer dizer que alguém que fuma umpouco, bebe um biquinho antes da comida e

 joga truco de vez em quando, não é uma pessoade bem?

DELEGADO – Pelo menos, está mais sujeito a

tentações do que alguém como eu.PADRE – As tentações nos dão grandes lições...Veja Santo Agostinho... São Francisco de Assis...Foram santos porque conheciam a vida, quemnão conhece não pode saber o que é o pecado.

DELEGADO – Pode car descansado, padre. Euterei um comportamento exemplar aqui nestacidade. Acho muito louvável seu temor a meurespeito mas, na nossa convivência, o senhor iráver que me comporto como digo. Sou e semprequero ser um homem de bem. Por isso, segui

esta carreira.PADRE – Aqui nesta região, não se joga muito,não. O único joguinho, é o tal de truco. O se-nhor conhece?

DELEGADO – O meu pai jogava.

PADRE – E nem por isso deixou de ser homemde bem. Não dizia que o pecado...

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DELEGADO – Foi nesse jogo que ele perdeu todaa fortuna da família. Tenho horror a esse jogoem particular.

PADRE – Toda a fortuna?

DELEGADO – Toda, padre.

PADRE – Azar da peste.DELEGADO – Jogo e azar são sinônimos.

PADRE – Tem certeza que foi no jogo de truco,mesmo. Às vezes, pode ter sido na sueca, que éum jogo parecido. Este sim, é de azar.

DELEGADO – Sei muito bem, pois joguei muitotruco com meu pai. E era criança ainda.

PADRE – Que coincidência extraordinária... Azardanado.

DELEGADO – Fique descansado, padre. Tenhobons motivos para ter ojeriza ao jogo.

PADRE – E essa, agora.

DELEGADO – O que, padre?...

PADRE – Pois é, meu lho. És um santo homem...Que é que eu vou fazer?

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DELEGADO – O senhor vai me desculpar, padre,eu vou até o hotel tomar um banho para almo-çar. Seu Cabo, quero esta cadeia arrumada atéque volte para comer. Até mais ver, Seu Padre.

PADRE – Apareça na igreja...

Delegado sai.

PADRE – Cáspite! Esse talzinho quer ser mais san-to que os santos. Logo mando tirar São Sebastiãodo altar e botamos ele, que dá na mesma... É umpecado tanta virtude.Orgulho, soberba... E o pai dele, que perdeu

tudo no truco! Não era pecador, era burro...

CABO – Acabou-se o joguinho...

PADRE – Que saudades do doutor Demerval...Belo parceiro.

XANDÚ – Já terminei de comer, aqui está o pratopara lavar.

CABO – Lave você, que aqui ninguém é seucriado.

XANDÚ – Eu, por mim, fazia gosto de lavar, masé que em não podendo botar nem o pé fora dacela, só se for pelo ar... Toma o prato, Seu Cabo.

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CABO – Esse delegado novo, com suas mudanças.

PADRE – Então, o Xandú não sai mais?

XANDÚ – De jeito nenhum.

PADRE – Quem faz a limpeza na igreja?

XANDÚ – Penso que a senhora dona Semíramis.

PADRE – Mas é um absurdo. É a tirania que seaproxima de nossa pacata cidade.

CABO – É o que penso. Se o Xandú nem sai dacela, não varre, não limpa...

PADRE – E não joga.

CABO – Isso nem adiantava, que não tem maisparceiro.

PADRE – Vou tentar ensinar truco ao Militão.Talvez aprenda.

CABO – Mas se ele já está com noventa e seisanos, padre. Não aprende mais nada.

PADRE – Tenho é que dar um jeito de convencer

este doutorzinho a jogar conosco, ele e sua sober-ba... Excomungo no sermão de domingo quemnão jogue truco ao menos três vezes por semana.

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CABO – Só três?

PADRE – É um bom começo... Quem diria quemeu problema nesta paróquia, ao invés do pe-cado, ia ser a virtude. Qual... Este está virado.Por falar em mundo virado...Você notou que a Aparecida anda diferente?

CABO – Quem, eu? Notei, não; eu nem noto nela...

XANDÚ – Verdade, Seu Padre. Sabe que ela passana frente aí do cabo, às vezes até esbarra nele,e ele me pergunta: que foi que passou por aqui,Xandú, e me esbarrou?... Eu digo: foi a menina

Aparecida. E ele diz: nem vi. Nunca vi uma coisadestas. Além de meio surdo, ele está candomeio cego. Não vê as pessoas.

CABO – Seu Xandú, preso não entra na conversa.

PADRE – Que é isso, meu lho, quer agir como

o novo delegado?

XANDÚ – Eu, por mim, estou com o mocinho.Preso é preso. Onde já se viu um preso quese preze estar varrendo rua, limpando igreja.Preso é preso, o próprio nome está dizendo. Pê,

rê, ê, pre. Sê, ô, sô. Preso! É o que é. Varredorde rua e limpador de igreja é outra coisa. Aí,estou de acordo.

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CABO – Imagine se preso tem que ter melhor vidaque um homem honesto, cabo ainda por cima.

PADRE – A mim me parece que mestre Xandúestá se aproveitando do tal acontecido para cairno pecado da preguiça.

XANDÚ – Eu, padre? Deus lhe mande um tombo

que desmunheque a perna boa se eu estou compreguiça. Então, estes tempos todos, eu não te-nho feito o que me obrigam? É bem por outra.Pois se eu sou preso, não posso ser duas coisasao mesmo tempo. Pois o padre já não ouvir falardo Anastácio Pororóca?

CABO – Lá vem lorota.

PADRE – Deixe ele. ( puxa uma cadeira) Conte,meu lho. Um bom causo nunca se dispensa deouvir. O Nosso Senhor mesmo falava em formade parábolas.

XANDÚ – Se o cabo se desagrada, então nãoacho bom contar, que pode fazer mal. Uma ou-tra hora, que a gente estiver sozinho, eu conto.Aquele é que foi um causo mesmo formidável...Um dia eu conto, se não esquecer, padre.

CABO – Por mim, pode contar agora mesmo. Paraquem ouviu tanto causo, um a mais não aperreia.

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XANDÚ – Conto não, pode car descansado. Voudormir um pouco.

PADRE – Mestre Xandú. Exijo que conte o causo!

CABO – O padre quer, conte então!

XANDÚ – É uma história muito sem graça, que

nem vale a pena.

CABO – Ou conte ou não conte!

XANDÚ – Melhor não...

PADRE – Então não conte!

XANDÚ – Espera aí, padre, vou deixar o senhoraguado, sem ouvir o causo. Uma vez, uma coma-dre minha estava esperando criança e me pediupara não contar um causo, eu não contei, a criançaveio de sete meses. O padre não é bem o mesmo

causo, mas sabe a gente o que pode acontecer.Eu conto pra não dar alguma desgraça. Quandoeu vivia à tripa forra – era rico, pois meu pai eragrande fazendeiro lá pelos lados de Sergipe –tive conhecimento com um tal chamado Anas-tácio Pororóca, que era amigo de meu pai. Este

Anastácio era um homem muito rico e poderoso,mas tinha uma grande infelicidade: quando elenasceu e foi batizado, quem batizou ele foi um

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padre gago, que só falava meias palavras. Poisse então o padre batizou ele com meias palavrase ele cou só meio batizado.

PADRE – Isso não pode, meu lho.

XANDÚ – Se pode ou não pode eu não querodiscutir. Só sei que foi assim a história de Anastá-

cio Pororóca. Já que o padre não acredita, paropor aqui e vou dormir.

PADRE – Então pode! Vá adiante, meu lho.Oh peste!

XANDÚ – Pois então, como eu disse, foi assim

que se deu. Pode perguntar em Sergipe se nãofoi verdade: o Anastácio cou só meio batiza-do. Logo já menino, enquanto foi crescendo,o meio batismo foi se acomodando no própriocorpo dele. Metade do corpo dele, a metadedireitinha, era muito boa. A mão direita pedia

a bênção ao padre, agradava cachorro, o joelhodireito se dobrava na missa, o olho direito viatudo como Deus quer. Era um santo lado. Já olado canhoto era de amargar. O olho esquerdoolhava só o que não devia, a mão esquerda eraum perigo e o joelho esquerdo, na missa, não ia

ao banco de jeito algum: pelo contrário, com operdão do padre, cava cutucando as moças dobanco da frente. Os pés era igual, a mesma coisa.

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No domingo, vinha Anastácio no largo da Matrize, quando passava justo entre a igreja e o bo-tequim, lá ia o pé direito pra igreja e o canhotopro bar. E nessa luta dos pés, cava o Anastáciorolando no chão que nem um possesso.

PADRE – Ele ia à igreja, anal...

XANDÚ – Carregado. Pegavam o tal nas costase puxavam à força pra dentro da igreja, ondelado direito se portava com respeito. Depois,largavam ele e os amigos gaiatos carregavamele pro bar, onde o lado esquerdo se regalava.

CABO – Essa está demais.XANDÚ – Pois era o que todo mundo achava.Demais que fosse de tal maneira. Assim passoua vida inteira o Pororóca. Quando cou velho, láestava ele: a mão direita a dar esmolas e agradarcrianças, e a esquerda a dar relho nos criados, e

o pé a chutar até a mãe dele.

CABO – Pois ele, velho assim, ainda tinha mãe viva?

XANDÚ – Oh cabra burro. É um jeito de falar.“Até na mãe dele” quer dizer que em todo

mundo. Vou falar bem explicadinho, viu padre,que alguns não entendem se a gente não botaali no certo... Pois um dia, como tinha que ser,

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Anastácio Pororóca bateu as botas... Expiroudiante do padre, a mão direita e a esquerda sesepararam e ele cou que nem um crucicado.Sabe o que era?... Pois de um lado, o direito,um anjo puxava pra levar pro céu, e do outro umcapeta puxava pra levar pras profundas.

CABO – E quem ganhou?

XANDÚ – Os dois...

PADRE – Os dois, como?

XANDÚ – Seu Cabo, quer fazer o favor, mande

me esticar um café desse bule.

PADRE – Eu pego... Como foi?

XANDÚ – Frio...

PADRE – Frio como? De que lado?

XANDÚ – O café está uma frieza... Podia mepassar um naquinho daquele pão...

CABO – Está aí... E depois?

XANDÚ – Mais nada não, era só café com pão.

PADRE – Conte logo o resto, Seu Xandú.

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XANDÚ – Estão querendo mesmo? É uma histó-ria, apesar de verdadeira, muito simples, e nãoagrada ninguém. História boa é do tempo queeu tinha onça de sela.

PADRE – O Anastácio, meu lho. O Pororóca.

XANDÚ – Ah, o Anastácio. Pois é... Naquele puxa

que puxa o homem já morto, de repente se ouvi-ram vozes. Uma, muito celestial, que dizia: solte;e outra, cavernosa, que retrucava: não solto.Solto e não solto, puxa e que puxa, de repente,num zás, naquele momento... em certo instante...

PADRE – Conta.XANDÚ – Espere, padre, que aquele momentofoi o principal... Num zás, ali, rrraaaac, rebentou-se pela metade o corpo do Anastácio. E metadevoou pela janela, ganhando o céu, e a outrametade mais que depressa se enterrou no chão,

a caminho das profundezas. E é por isso que eudigo: se sou preso, não quero ser outra coisa, queacabo que nem o Pororóca, metade gozando océu, metade queimando no inferno.

CABO – E é verdade, Xandú, essa história?

PADRE – Claro que não, meu lho, são exageros.Alguma coisa podia ser...

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XANDÚ – Por isso que não gosto de contar meuscausos. Também, foi a última vez.Nunca mais conto causo, já que preso é preso enão contador de causo.

PADRE – Deixa pra lá, que um causo agradasempre... Um pouco de verdade sempre tem. Nofundo está uma verdade.

CABO – Pois sim...

XANDÚ – A gente burra não agrada ouviresses tratos. Aposto que quando ele vai àmissa e, no sermão, o padre diz que é mais

fácil um camelo passar pelo fundo de umaagulha que um cabo de polícia ir entrar noreino do céu...

PADRE – Cabo de polícia, não... Um rico, entrarno reino do céu.

XANDÚ – Pois é a mesma coisa... Se ele ouve issonão acredita, e não é história de Seu Xandú não,é do Cristo ali no duro.

CABO – É, pois é, não é? Me desculpe, Seu Xandú,

não incomodando, uma perguntinha só.

XANDÚ – Manda.

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CABO – E o tal padre gago das meias palavras,que fazia só meios batismos, não continuou ba-tizando mais gente depois do Pororóca?

PADRE – Aí está uma boa pergunta.

XANDÚ – Que tem uma boa resposta. Pois des-cobriram a coisa e deram solução. Pois em uma

vila perto da cidade tinha outro padre gago e demeias palavras. Quando havia batismo, os dois se

 juntavam e batizavam ao mesmo tempo, e davatudo certo. E não adianta perguntar mais, queeu já disse que agora sou preso e não contadorde causos.

PADRE – Essa dos dois padres gagos, é forte,Xandú.

XANDÚ – E a do Cristo caminhando por ribadas águas, também não é? Então, ca uma pelaoutra, que duvidar que se mele. E não queroconversa, estou aqui matutando o que devefazer um preso que se preze.

PADRE – Bem, vou para a igreja. De qualquerforma, à noite apareço por aqui.

CABO – Precisamos arrumar um parceiro novo...

PADRE – Se Deus quiser...

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CENA 3 SACRISTIA DA IGREJA

APARECIDA – Onde está o aparelho?

TIA – Ahn? Fale mais alto.

APARECIDA – O aparelho.

TIA – Quer um conselho?

APARECIDA – (az mímica do aparelho de surdez) O aparelho.

TIA – Ah! O aparelho, eu não preciso daquela

coisa horrorosa. Estou bem melhor da surdez.APARECIDA – (vai buscar o aparelho) Está ouvindo?

TIA – Estou...

APARECIDA – Nós precisamos fazer a limpeza

na igreja. O novo delegado não deixa o MestreXandú sair da cela.

TIA – Verdade?

APARECIDA – Verdade. Diz que preso tem que

car preso.

TIA – É um absurdo.

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APARECIDA – Mestre Xandú está se regalandode dormir, fumar e tocar viola.

TIA – Que despropósito.

APARECIDA – Nem para comer ele sai da cela.O Arlindo botou uma bacia na cela pra ele lavar oprato em que come. É a única coisa que ele faz.

TIA – Que Arlindo?

APARECIDA – O cabo.

TIA – Que história é essa de Arlindo. Fica mal parauma moça solteira chamar o cabo de polícia pelo

nome próprio. Anal, meu sobrinho é uma autori-dade, na falta do delegado ele esteve nas funções.

APARECIDA – Pois é, o senhor cabo Arlindo.

TIA – Também não precisa exagerar.

APARECIDA – Sabe, tia. Eu quero muito bem aoprimo Arlindo.

TIA – Nada demais, é seu primo de criação.

APARECIDA – Quero muito bem mesmo.

TIA – Contanto que esse querer bem não chegueàs vias do pecado.

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APARECIDA – O que é pecado, tia?

TIA – Tudo o que é bom, feito sem licença. Sembênção da igreja, consentimento de Deus.

APARECIDA – O padrinho padre Jeremias tam-bém peca?

TIA – É padre não devia, mas tem seus pecadi-nhos. Nenhum homem é bom.

APARECIDA – Então, ele não vai pro céu.

TIA – Se continua com essa mania de jogo de

truco, acaba dando cartas no inferno.APARECIDA – Credo. (benze-se)

TIA – Um velho e ainda por cima padre, comvícios de rapaz.

APARECIDA – Ele gosta e não faz mal a ninguém.E sempre é tempo de se arrepender.Ele confessa, reza a contrição, Deus perdoa.

TIA – De um bom purgatório nenhum homemescapa.

APARECIDA – Sabe, tia, eu queria ir sábado atéMuzambinho, pra comungar domingo.

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TIA – Confessar em Muzambinho, por que? Nãotem o padre mesmo em casa?

APARECIDA – É que eu não gosto de confessarcom o padrinho. Anal, ele é como que nem meupai... A gente sempre tem vergonha.

TIA – A vergonha depende do tamanho dos

pecados.

APARECIDA – Não é isso. É que eu já estou moçae não tenho jeito de confessar com o padrinho.

TIA – Então, tem pecados feios que tem medo

de contar.

APARECIDA – Tenho não, tia... Mas quero con-fessar sábado em Muzambinho.

TIA – Mau, mau... Não estou gostando nada disto...

APARECIDA – Eu acho justo ter vergonha.

TIA – Por que até agora não havia batido avergonha?

APARECIDA – Das duas últimas vezes eu confessei

em Muzambinho. Foi na festa de Corpus e na doPentecostes. Acostumei melhor assim. A senhoravai comigo, tia?

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TIA – Vou ver se vou. Mas ainda acho melhor quevocê se confesse com seu padrinho mesmo. Istoestá me cheirando a coisa feia.

APARECIDA – Coisa feia?

TIA – Feiíssima... Não quer me contar nada?

APARECIDA – Não tenho nada para contar àsenhora, tia.

TIA – Nada mesmo?

APARECIDA – Mesmo.

TIA – Mesmo?

APARECIDA – Não sei...

TIA – Você foi criada sem mãe, menina. Quemmais te serve de mãe sou eu mesma, não achaque se tem algum problema deve contar a mim?

APARECIDA – Acho... Isto é... Não sei se eu tenhoproblema.

TIA – Se tiver, pode me contar, eu te dou umconselho e pronto, já ca tudo mais fácil.

APARECIDA – Sabe, tia... Eu acho que não voucar solteira sempre.

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TIA – Eu também acho. Uma menina bonita eviçosa como você deve se casar, ter muitos lhos.Crescei e multiplicai-vos, a lei do Senhor.

APARECIDA – A senhora acha que eu cresço maisdo que esta altura a que cheguei?

TIA – Sei lá, a gente cresce até os vinte anos. Às

vezes, até mais.

APARECIDA – Quer dizer que primeiro é precisocrescer e depois, então, multiplicar?

TIA – Pois é...

APARECIDA – Quer dizer, então, que se a gentemultiplicar antes de crescer é um pecado daqueles?

TIA – Sei lá... O que sei é que a multiplicaçãodepende de um casamento cristão.

APARECIDA – Um bom casamento cristão... Asenhora acha que eu já podia casar?

TIA – Você ainda é muito criança, minha lha...Só tem dezoito anos.

APARECIDA – Primeiro crescer, depois um bomcasamento cristão e, enm, multiplicar.

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TIA – Isso mesmo. Gente honrada e temente aDeus é assim...

APARECIDA – Tia, sábado a senhora me leva emMuzambinho, para confessar, por favor?

TIA – Vou falar com seu padrinho. Se ele deixar,eu levo.

APARECIDA – (abraçando a tia) Obrigada, titia.A senhora é um anjo.

TIA – Se ele deixar... Não se esqueça... E aí vemele, saia que eu pergunto agora mesmo.

APARECIDA – Vou levar a comida na cadeia.

TIA – Diga ao novo delegado que eu mandei di-zer que é um absurdo a gente ter que sustentarSeu Xandú sem fazer nada na cadeia.

Aparecida sai.

Entra o padre.

TIA – Boa-tarde, padre.

PADRE – Boa-tarde...

TIA – A bênção...

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PADRE – Deus te abençoe.

TIA – Como está tudo?

PADRE – Tudo virado. Este novo delegado é umproblema.

TIA – É um viciado?

PADRE – Não.

TIA – Mal-educado?

PADRE – Não.

TIA – Mau-caráter?

PADRE – Coisa nenhuma. É um modelo de virtude.

TIA – Então, não vejo onde está o problema. Ooutro, o Demerval, sim, era um problema.Bêbado, mulherengo e jogador...

PADRE – Ah, o Demerval...

TIA – Que é que o senhor queria? Um igual a ele?

PADRE – Eu já estava acostumado... Olhe que ele

melhorou muito com a convivência.Quando partiu, eu havia mostrado a ele o ca-minho do céu.

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TIA – E ele, em troca, mostrou ao senhor o ca-minho do inferno.

PADRE – Vade retro! Eu te perdoo a blasfêmia.Infeliz.

TIA – O padre está contrariado porque o novodelegado é um rapaz virtuoso. Aposto que não

bebe, não fuma nem joga.

PADRE – Nem nada. Um tipo muito pouco hu-mano. Isso é pecado de soberba. Pecar, o ho-mem peca... Está no mundo, não no céu. E poisé... Soberba... Atrevimento querer ser santo...

Já se foi longe o tempo dos santos... Era ummundo diferente.

Havia oportunidades... Martírios... Hoje em dia,todo mundo é cristão... Uma virtude a mais oua menos.

TIA – Herético.

PADRE – Te perdoo. Só eu sei que, quanto maisgente humana fui cando, mais fui entendendoDeus. E os homens. Você não entende disso.

TIA – Blasfemo.

PADRE – Surda.

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TIA – Apóstata.

PADRE – Beata burra, que pensa que o Senhorse comove com o inchaço dos seus joelhos: eletem o que fazer. Um mundo tão grande, tantacoisa acontecendo e os joelhos machucados dasenhora Semíramis.

TIA – Imoral!

PADRE – Te excomungo e a todas aquelas velhasque vêm viver a vida na casa de Deus, ao invésde viver a vida na casa de seus homens. Andamtodos maltratados por aí.

Hipócritas.

TIA – Está perdido.

PADRE – Tenho horror a dia de procissão... Asvelhas vêm ajudar. Deus me perdoe, isso não

tem nada a ver com a religião.TIA – Está caduco...

PADRE – Estamos... Eu te perdoo, tu me perdoas,e acabamos com a discussão.

TIA – Como sempre...

PADRE – Somos boa gente. Pacíca.

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TIA – Mansa.

PADRE – Cordeiros de Deus.

TIA – Tirai os pecados do mundo.

PADRE – Só uma dúvida permanece.

TIA – Qual?

PADRE – Quem vai fazer a limpeza na igreja, jáque o senhor doutor novo delegado não querdeixar o nosso bom Mestre Xandú sair da cela,nem para as mais preciosas necessidades.

TIA – Aí também concordo com ser virtude emdemasia.

PADRE – O pecado da soberba.

TIA – Ele não sabe que sempre foi assim?

PADRE – Sabe e não concorda. Quer cumprir alei no bico da pena. Ah, se eu zesse o mesmo.Fechava a igreja.

TIA – É jovem ainda... É isso.

PADRE – Contra o truco... O soberbo. Um jogui-nho inocente.

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TIA – Pois é.

PADRE – Pois é mesmo... Tenho que dar um jeitonesse moço.

TIA – Ele precisa soltar o pobre do Xandú devez em quando. É desumano prender assim, otempo todo.

PADRE – Aparecida vai levar a comida?

TIA – Foi...

PADRE – Você não acha que a Aparecida andameio mudada?... Eu andei reparando.

TIA – Pois é... Também acho... Sabe, ela me pediupara arrumar com você para irmos no sábado atéMuzambinho. Ela quer confessar.

PADRE – É natural... Está cando mocinha... Temvergonha... Eu, anal, sou como um pai... Crieiela desde nenezinha.... Dezoito anos... Semíra-mis, domingo agora não é dia de São Sebastião?

TIA – É certo... Festa...

PADRE – É aniversário da Aparecida... Dezoito

anos atrás... Encontrei ela berrando, enroladinhanum pano, junto à estátua de São Sebastiãoda Encruzilhada. Tinham jogado um bilhete na

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igreja, dizendo que estava lá. O pai pedia quecuidasse dela, que não tinha mãe, e ele era umpobre miserável.

TIA – E você acha que criou ela bem?

PADRE – E não?... Ela não é igual, é até melhorque as outras moças da idade dela...

Séria, trabalhadora, virtuosa... Tenho orgulhodela...

TIA – Logo ela casa...

PADRE – Pois é... O que é? Ela disse alguma

coisa disso?

TIA – Disse nada, não. Disse só que quer ir sábadoa Muzambinho, se confessar.

PADRE – Pois que vão. No domingo, é aniversáriodela, é bom que ela confesse.

TIA – E a limpeza da igreja?

PADRE – Vou tratar com o delegado. Com umtipo como aquele, a gente tem que ser no...

TIA – Espero que você o convença primeiro asoltar o Xandú para limpar a igreja e, depois,para o joguinho de truco.

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PADRE – Que truco? Ele é contra o truco. Sober-ba. Vamos lá...

CENA 4 CADEIA: JOGO DE TRCO.

Cabo varre a cadeia. Delegado escreve. Xandúdorme, roncando.

CABO – (espetando Xandú com a vassoura) Olhao barulho! O doutor está escrevendo.

XANDÚ – Mais respeito com os presos.

CABO – Te dou o respeito.

XANDÚ – Ponha-se no seu lugar, que me ponhono meu.

DELEGADO – Vamos parar com essa conversa.Cabo, eu já não disse para não conversar como preso?

CABO – Com todo o respeito, doutor, mas achouma injustiça eu limpar a cadeia e ele, ali na viola.

DELEGADO – Faça o que deve e deixe o presoem paz.

XANDÚ – É como eu digo, em paz.

DELEGADO – Cale a boca.

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XANDÚ – Está calada.

DELEGADO – Nem mais uma palavra.

XANDÚ – Nem mesmo uma. É o certo.

DELEGADO – Cale-se.

XANDÚ – Estou mudo.

DELEGADO – O senhor está brincando comigo.

XANDÚ – Eu?... O senhor está enganado comigo.Lhe tenho o maior respeito. Estava até pensando

em lhe dar uma botija do Papaterra.DELEGADO – Muito obrigado, que com ela.

XANDÚ – Pois co, se ela é minha mesmo. Pri-meira vez que vejo alguém renegar uma botijado Papaterra, e mais que de graça.

DELEGADO – Se o senhor continuar a falar, euagravo a sua pena em mais um ano.

XANDÚ – Siiiuuuuuu.

Entra o padre.

PADRE – Bom-dia, doutor.

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DELEGADO – Bom-dia, padre.

PADRE – Mais ou menos bom... Como é, já arru-mou tudo por aqui?

DELEGADO – Pouco a pouco a gente vai botandotudo nos eixos.

PADRE – Pois é... Como vai, Mestre Xandú?

DELEGADO – Padre, o senhor me desculpe, maseu achava melhor que o senhor não conversassecom o preso.

PADRE – Desculpe, meu lho. Mas não faço maisdo que a obrigação: assistir os desesperados.

DELEGADO – Então, o senhor me desculpe, masvou marcar dia e hora certos para a assistênciaaos desesperados.

PADRE – O desespero não tem hora, meu lho.

DELEGADO – Mas uma repartição do governo, sim.

PADRE – Posso falar com o preso?

DELEGADO – Por hoje, pode. Seja breve.

PADRE – Serei. (acerca-se de Xandú)

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XANDÚ – Bom-dia, padre.

PADRE – Bom-dia, meu lho... Vim para lhe tra-zer a assistência espiritual.

XANDÚ – Obrigado, padre.

PADRE – Sei que o meu lho está sofrendo muito,

aí trancado.XANDÚ – De jeito nenhum, padre. Está bom quesó a peste. Uma calma.

PADRE – Por um ou dois dias, o meu lhinho vaiachar bom. Mas daqui a uns dez dias, sem fazer

nada aí dentro...

XANDÚ – Está aí uma coisa que não tinha pen-sado, padre.

PADRE – Se arrependa, meu lho.

XANDÚ – Este delegado novo é uma dureza.

PADRE – É, precisa dar um jeito na situação.Atente bem a isto, meu lho.Quebrantárem durezórum doutorzórum. Vamospensar, vamos pensar.

XANDÚ – Talvez, se a gente molhasse o bicórumdele...

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PADRE – Como, meu lho?

XANDÚ – Sei lá. Domingo é dia de São Sebastião,podemos começar hoje a festejar.

PADRE – Não é que você me deu uma ideia, meulho. Tem cachaça aí?

XANDÚ – (puxa a botija) A última botija... Tomacuidado, que é...

PADRE – Já sei... Do Papaterra.

XANDÚ – Pois é... Estou vendendo.

PADRE – Obrigado, meu lho. Doutor delegado,não sei se o senhor sabe que domingo é a festado padroeiro da cidade.

DELEGADO – Não sabia.

PADRE – Pois é... A gente costuma aqui... É detradição... Na quinta-feira que precede, de brin-dar o santo padroeiro... Que Deus me perdoe...Não é, Seu Cabo?

CABO – O quê?

DELEGADO – Não é???

CABO – O que o senhor queria, padre?

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DELEGADO – Pois então?

PADRE – Eu trouxe aqui uma aguardente daregião. Muito leve. Para que o senhor, e eu, eo cabo, e o preso possamos cumprir a tradição.

DELEGADO – Já disse ao senhor que não bebo,padre.

PADRE – Nem eu... É apenas para cumprir atradição.

XANDÚ – Lembra, padre, o outro delegadonão quis cumprir a tradição e o povo ojerizou.Ninguém falou com ele nos três anos que es-

tava aqui.

PADRE – Isso mesmo... Foi assim, o senhor sabe,o povo quer respeito...

DELEGADO – Está certo... Um golinho só.

PADRE – Então, vamos lá. Em homenagem doglorioso São Sebastião da Encruzilhada.

DELEGADO – Seja. (bebe)

PADRE – Agora, a segunda parte. Saudamos a

pátria.

DELEGADO – À pátria

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PADRE – A terceira parte... A família.

DELEGADO – À família... E chega, que esta ca-chaça está forte demais para mim.

PADRE – Meu lho, sem a quarta parte é como senão fosse nada. Saudamos as autoridades policiais.

DELEGADO – Obrigado. (bebe)

PADRE – E agora...

DELEGADO – Agora, eu faço um brinde ao padree a sua paróquia.

PADRE – Menos mal...

XANDÚ – Aos presos da paróquia...

TODOS – À saúde.

PADRE – Ao antigo delegado, que era um ho-mem de bem.

XANDÚ – Ao novo delegado, que acha que presoé preso.

CABO – A Apar... papapraraprarrarrr...

PADRE – É pois, então...

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Seguem-se os brindes. Vê-se que o novo dele-gado mostra-se muito à vontade: tira o paletó,abraça o padre e o cabo.

DELEGADO – Vamos tirar esse infeliz aí da cadeia,pra festejar também. Sai daí...

XANDÚ – Muito obrigado, estou bem aqui mes-

mo. Que preso é preso, e não festeiro.

PADRE – Sai daí, Xandú... Olha a saidinha dequando em vez.

XANDÚ – Fico muito comovido, mas não estouquerendo sair não...

DELEGADO – Sai daí, rapaz, eu estou mandan-do... Oh preso mais insubordinado... Te tacopra fora, hein, rapaz... Já sei que o senhor estáapavorado, padre. Pois está aí.Não adianta ngir. Vou confessar. A gente se

confessa ao padre, não é?

PADRE – É claro, meu lho. Toma mais uma aí.

DELEGADO – Eu adoro uma cachacinha e, des-de que cheguei a este m de mundo, que não

consigo achar jeito de tomar uma... Sei que osenhor vai me dar um sermão, pois outro dia mepreveniu tanto a respeito da cachaça, do jogo...

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PADRE – E o jogo, meu lho... Também joga?

DELEGADO – Sou maluco por um truco bemgritado... Aquela história do meu pai, foi pa-pagaiada, só para impressionar... Sabe como é,anal, eu sou a autoridade...

PADRE – Glória a Deus nas alturas e paz na terra

aos homens de boa vontade.

CABO – Amém.

PADRE – Me dá um abraço, meu lho... Que alívio.

DELEGADO – Qual é a minha penitência pelasmentiras, padre?

PADRE – Primeiro, um joguinho de truco pornoite... Segundo: soltar o Xandú para trabalhar...

DELEGADO – Quanto ao truco, eu concordo...

Mas a soltar o preso, já é contra a lei...

XANDÚ – Aí, batuta... Cumpre a lei no duro,preso é preso.

PADRE – E se Mestre Xandú sair com escolta?

DELEGADO – Daí talvez pensaremos em umasolução.

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XANDÚ – Estava durando muito minha auta.Inda bem que está por um mês só.

DELEGADO – Padre, depois desta nossa conversa,eu me sinto bem melhor.

PADRE – Eu também, meu lho... E que tal umtruquinho, pra sentir a nova parceria.

DELEGADO – Pois não é que eu estava mesmopensando... Agora me lembro, joguei o baralhono lixo.

PADRE – (tirando baralho do bolso da batina) 

Não seja por isso.

Sentam-se os três.

PADRE – Ah, é verdade... Evidentemente, o outroparceiro é Mestre Xandú.

DELEGADO – É um problema.

CABO – Se ele sair para jogar truco e não sairpra trabalhar é injusto.

XANDÚ – Não quero nem jogar truco, nem

nada. Preso é preso, e está acabado. Eu rebus-quei, pensei e achei que preso tem que carfechado, parado, pensando no mal que fez...

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Que é pra quando sair da cadeia não voltarmais. Muito obrigado, mas não estou com von-tade nenhuma de jogar...

PADRE – Xandú, meu lho, que ingratidão...Então, você que tentou me vender um cavalocego... Por quinhentos mil réis...

XANDÚ – Cego uma pinoia, de vista fraca... Nãoenxergava à noite.

PADRE – Eu que consegui que o delegado dei-xasse você sair da cadeia quando quisesse.Agora você me faz uma coisa desta...

XANDÚ – Tá certo, padre, não quero bancar omal-agradecido. Aceito, com uma combinação:todo o trabalho que eu tiver que fazer, o cabofaz junto.

CABO – Epa...

XANDÚ – E se dê por feliz, Seu Cabo, por eu nãolarilará da ladeira das pedras.

CABO – Tá certo...

XANDÚ – Tem mais... A igreja, só limpo juntocom a tia Semíramis.

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PADRE – Está acertado.

DELEGADO – Pode sair, preso....

Formam a mesa de truco. Padre cochicha com de-

legado, combina tática e sinais. Todos se sentam.

PADRE – Tostão a queda... Pouquinho, só para

não ser de graça.

DELEGADO – É bom...

XANDÚ – Ah meu dinheirinho. Olha na manga,

cabo.

O padre dá as cartas. Primeira mão: jogam as car-

tas, padre faz sinais. Segunda mão: Xandú truca.

XANDÚ – É truco... Sapiquá de lazarento, rebo-

que de igreja velha...

PADRE – Tu bate comigo no chão, eu bato con-

tigo no bucho: retruco de três!

XANDÚ – Leva.

PADRE – Ah, lá em casa, lho de burro não cria asa.

CABO – E vai meu rei, o meu Pedro II.

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XANDÚ – (enquanto embaralham) Não venhacom rei, que aqui somos todos republicanos...

Não é, padre?

PADRE – Pois é...

DELEGADO – A república é o nosso patrão.

XANDÚ – Ainda mais comigo, esta história dereis... Ainda não contei de que maneira eu memeti na república. Contei já, padre?

CABO – Contou não, e é hora de jogo...

PADRE – Deixa ele contar, o nosso novo delegado

ainda não conhece os causos de Mestre Xandú.

XANDÚ – Até eu não sabia se contava este darepública ou outro, mais recente, de certo diana ladeira das pedras...

CABO – Conta o da república, mano Xandú.

XANDÚ – Se o cabo, que não gosta de causo,pede, então eu conto. Não sei se o padre jásabe, mas eu já fui militar. Era ainda menino eestava servindo ao império. Bom soldado quefui cheguei a ser ordenança do Marechal Deo-

doro. Bom homem estava lá. Apenas um poucoindeciso. Certa feita, estava eu no quartel como Deodoro quando...

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CENA 5 MARECHAL DEODORO

Xandú sai de lado. Entra Deodoro.

XANDÚ – Soldado trezentos e quarenta e seis,Xandú Quaresma, ordenança de vossuria.Às ordens.

DEODORO – À vontade, Xandú, à vontade...Xandú, meu caro, estou em papos de aranha...Esta noite num pude conciliar o sono.

XANDÚ – Que é isso, Deodoro, você precisadescansar...

DEODORO – Xandú, meu velho... Bem que euqueria, mas estes republicanos não me dão maistrégua... Olhe só os jornais... Veja o Benjamim,o Almeida Prado, estão com a França na cabeça.

XANDÚ – Deodoro, meu velho, se você quer umconselho... Eu vou dar...

DEODORO – Fale Xandú, estou precisando.

XANDÚ – Não tem por onde... Mande arreiar seucavalo e proclame a república.

CENA 6 VOLTA AO TRCO

XANDÚ – E foi assim que a república foi procla-mada. Na verdade, não foi mérito meu porque,

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mais cedo ou mais tarde, o Deodoro, que eraum homem inteligente, dava acerto na solução.

DELEGADO – Então, foi o senhor quem aconse-lhou o Deodoro a proclamar a república?

XANDÚ – É, não foi outro, não... Mas depois,passados alguns anos, eu me amolei com a re-

pública... Senti saudades do rei... Foi justamentequando andei junto com o Maciel.

PADRE – Que Maciel?

XANDÚ – O Antonio Mendes... O Conselheiro.

DELEGADO – Então, você conheceu o Conselheiro?

XANDÚ – Se conheci? Então quem é que davaconselhos ao Conselheiro?

CENA 7 ANTONIO CONSELHEIRO

Xandú se afasta. Entra o Conselheiro.

XANDÚ – Termina com isso, Maciel... Terminacom isso.

CONSELHEIRO – Já venci as duas primeiras expe-

dições do governo... Vou até o m.

XANDÚ – Venceu porque eu te disse como.

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CONSELHEIRO – Isso é verdade, e agora vem aterceira, a maior, preciso dos teus conselhos.

XANDÚ – Só posso lhe repetir o que disse antes:o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. E sevocê seguir meu conselho, entre em um acordocom a república, senão você vai se dar mal.

CONSELHEIRO – Está me aconselhando a voltaratrás?

XANDÚ – É isso mesmo, e eu já vou, que já seique você é teimoso. Depois, não diga que eunão avisei...

XANDÚ – Xandú, volte, Xandú... O mar vai virarsertão e o sertão vai virar mar.

CENA 8 VOLTA AO TRCO

XANDÚ – Pois foi assim que o Conselheiro foiderrotado. Coitado, morreu chamando meunome... Enfim, era um rebelde, teve o fimque merecia... A gente viveu bastante... Maso principal da minha vida não foi nada dis-so. O principal foi quando servi de julgador

para uma contenda entre o Padinho PadreCícero e Lampião...Pois foi ainda não faz quatro anos, estava eu...

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CENA 9 LAMPIO E PADRE CCERO

Lampião e Padre Cícero, os dois armados, decara feia.

PADRE CÍCERO – Tu não vai atacar Pedra Bonita,Virgulino... Ou vai me encontrar lá.

LAMPIÃO – Meu padinho Padre Cícero, com todoo respeito que tenho, não trate de me impedir,que vou em vingança da morte de um cabra meu.

PADRE CÍCERO – Faça o que quiser, só sabe que,chegando lá, me encontra pela frente...

LAMPIÃO – Meu padinho, não queria terminarnossa amizade... Um de nós vai pro céu...

PADRE CÍCERO – E o outro pro inferno, é assimmesmo que vai ser.

LAMPIÃO – Então, nem precisa ser lá, a gentetira a diferença agora.

PADRE CÍCERO – Como quiser, que estou comDeus...

LAMPIÃO – É pra já o desencarne...

PADRE CÍCERO – Já ou daqui a pouco...

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Os dois se preparam. Entra Xandú.

XANDÚ – Que é isso? Não é possível... Botem asarmas pra baixo. Já!

PADRE CÍCERO – Pois é o que você está vendo,Mestre Xandú.

LAMPIÃO – Saia da frente, Mestre Xandú. Tenhomuito respeito pelo senhor, mas a nossa questãoé a última.

PADRE CÍCERO – Isso mesmo, saia da frente,Xandú, que pode sair ferido sem ter nada como causo.

XANDÚ – Sem ter nada com o causo... Virgulino!Quem foi que te ensinou a atirar, meu mano?

LAMPIÃO – Nenhum outro que Xandú Quaresma...

XANDÚ – E tu, Cicinho, não lembra quando vi-nha me perguntar: Mestre Xandú, quantas sãoas pessoas da Santíssima Trindade?

PADRE CÍCERO – E eu dizia que eram três: opadre, o lho, o espírito santo.

XANDÚ – Bom menino... Sabia que terminavabrabo e fazendo milagre. E tu, Virgulino, meenvergonho de ver brigando com o Cicinho.

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LAMPIÃO – Se é tu quem pede...

PADRE CÍCERO – Pedido de Xandú é ordem.

XANDÚ – Vamos nós três tomar uma talagada eterminar com essa briga de criança.

CENA 10 VOLTA AO TRCO

XANDÚ – E foi assim que resolvi o causo entre oPadinho Cícero e meu padrinho Lampião.

PADRE – Está vendo, doutor, são os causos doMestre Xandú.

DELEGADO – Espera aí, Mestre Xandú... Se esta-mos agora em mil novecentos e trinta, o senhor,na proclamação da república, tinha quantos anos?

XANDÚ – Menti a idade na vontade de ser soldado...

CABO – Quer dizer que Mestre Xandú tem maisde quarenta anos... Não parece...

XANDÚ – Pois se eu não contei que bebi da fontedo Cura-Tudo, e remocei?

PADRE – Essa é nova...

XANDÚ – Mas essa ca pra outro dia... Comotambém quero contar a história da onça de sela

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para o doutor... É, já tive uma onça de sela... Aliás,tive um bode de sela também... Mas bode já émais comum. Outro dia, com calma, eu conto...

CENA 11 SACRISTIA: APARECIDA GRVIDA

Tia arruma. Entra Aparecida.

TIA – Que foi, menina? Está com uma cara tãopálida?

APARECIDA – Ah, minha tia. (abraça-a) Umacoisa terrível aconteceu...

TIA – O que foi?

APARECIDA – Estou desesperada...

TIA – Conte, menina. Você me mata de susto.

APARECIDA – Aconteceu...

TIA – Aconteceu o quê?

APARECIDA – O multiplicai-vos antes do crescei-vos e de um bom casamento cristão...

Tia desmaia. Entra o padre.

PADRE – O que foi, minha lha... Que aconteceucom ela...

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APARECIDA – Quando ela acordar ela conta...Adeus padrinho, até nunca mais.

PADRE – Adeus como? O quê?... Semíramis!!!Aparecida, minha lha!!!

TIA – Onde está ela?

PADRE – Saiu correndo, disse adeus!!!

TIA – Oh, aconteceu...

PADRE – O que aconteceu? Pelo amor de Deus!

TIA – O multiplicai-vos antes do crescei-vos e deum bom casamento cristão...

PADRE – Não entendi coisa alguma.

TIA – Aparecida está...

PADRE – Está?...

TIA – Esperando um lho...

PADRE – Miserável...

TIA – Quem?

PADRE – Seja quem for...

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CENA 12 CADEIA

PADRE – Uma semana sem notícias dela...

TIA – Tenho medo que ela faça uma loucura...

PADRE – Outra é demais... Ela que volte, a genteperdoa...

DELEGADO – Minhas investigações estão comoab initio...

PADRE – Muito latim e pouca procura.

DELEGADO – Onde ela poderia estar... Eu não

conheço a região.

XANDÚ – Convém dragar o rio... Sabe como é?Capaz...

PADRE – Em nome de Deus, deixa de ser agourento.

TIA – Se a gente encontrasse o miserável culpado,talvez fosse mais fácil.

PADRE – Quem seria?

Entra o cabo.

CABO – Quem teria sido o canalha? Será que o cabonão tem nenhuma suspeita de quem teria sido?

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CABO – Juro pela minha mãe que eu não sus-peito de ninguém.

XANDÚ – Vamos lá, cabo, nem uma suspeitazi-nha de nada.

CABO – Eu juro que não sei de ninguém. Penso quedeve ter sido um tropeiro ou viajante de passagem.

TIA – É bem capaz.

PADRE – Oh, a vileza do ser humano!

CABO – Sabe... Tem um tipo muito estranhovagando pela cidade. Parece um bandido, um

cangaceiro... Vi ele rondando a igreja...DELEGADO – É um suspeito... Prenda e tragaele aqui.

CABO – É pra já... Onde será que ele foi se esconder?

TIA – Pobre menina.

Quando o cabo vai sair, dá de cara com o cabra.

CABRA – Apois se é bom dia...

CABO – É este o tal que estava na igreja.

CABRA – Tal pode ser teu pai. Eu tenho nome:Adijalma Matias, cognominado “o chegador”.

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DELEGADO – O que o senhor está querendo emSão Sebastião?

CABRA – Vim à procura do cura... Trazer ummandado.

PADRE – Sou eu mesmo. O que é que traz?

CABRA – Uma carta de meu chefe. Está aqui. Estáentregue. Adeus...

CABO – Vamos deixar ele ir embora?

DELEGADO – Prende esse homem.

CABRA – (morre de rir, puxa a peixeira, dá cutu-cada em todo mundo, sai) Ele logo virá, tenhamrespeito. (some)

PADRE – Que será esta carta?... Será que diz doparadeiro de Aparecida?

TIA – Leia logo...

PADRE – De algum lugar do sertão... vinte e setede junho de mil e novecentos e trinta e oito...Reverendíssimo Vigário de São Sebastião daSerra Baixa. Há dezoito anos atrás, deixei um

recado na sua igreja para que fosse recolheruma criança que larguei aos pés da estátuade São Sebastião da Encruzilhada. Era minha

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lha. Minha mulher tinha morrido e quei sempoder criar a menina. Deixei em suas mãos porter sabido ser o vigário um homem humano ede grande bondade. Sabia que ela seria criadadentro da lei e dos sentimentos cristãos. Certode que ela está bem cuidada, volto ao depois detanto tempo pra rever minha lha e abraçá-la...Virgulino – Lampião... P.S.: Chegarei na ma-

drugada do dia quatro. Não temam, vou emmissão de paz.

CABO – Ah, minha nossa senhora do bom parto...O Lampião, o próprio.

DELEGADO – Estamos perdidos...

TIA – Primeiro mulheres e crianças.

PADRE – Esta é a minha provação.

CABO – O Lampião, o próprio Virgulino. Estamos

perdidos. Minha mãe santíssima.

TIA – Creio em Deus padre...

PADRE – Ave Maria, cheia de graça.

DELEGADO – Salve rainha, mãe de misericórdia.

CABO – Santicado seja o vosso nome... MestreXandú!... Mestre Xandú é amigo do Lampião!

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XANDÚ – Ah, tenha a santa paciência, conteicauso até mais não poder e o senhor nunca meacreditou, Seu Cabo. Agora, que virou bagunça,deu crédito em tudo de uma vez.

CABO – Mas você disse que era amigo dele,não disse?

XANDÚ – Disse que era... Era... Não sou mais...Há algum tempo tivemos uma briga...

PADRE – Um amigo é sempre um amigo...

DELEGADO – Fala com ele, Mestre Xandú... Falacom ele.

XANDÚ – Pois se ora veja o que o cagaço trans-torna nos viventes. Nunca me acreditam e agora:por favor Mestre Xandú, pelo amor de Deus.

PADRE – Xandú, meu lho, és a nossa última

esperança.TIA – A única esperança.

XANDÚ – A velha surda acha que sou a únicaesperança... Vá varrer a rua, surda, vá já...Você aí, cabo, varra minha cela.

CABO – É pra já... Mestre Xandú, a esperança deSão Sebastião da Serra Baixa.

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XANDÚ – Pra dizer a verdade, eu não sei o quevai dar isso, não. Mas, já que sou a única espe-rança porque sou amigo do Virgulino – coisa queaqui ninguém duvida...

DELEGADO – Amigo do Deodoro e do Conselheiro.

XANDÚ – Pois é, já que sou amigo de todo mun-

do, neste caso não me meto.

PADRE – Não faça isso, meu lho.

CABO – Eu me mato.

XANDÚ – Na ladeira das pedras, não é, seu re-

botalho. Deixa pra lá...

DELEGADO – A república convoca seus serviços.

XANDÚ – Já disse que rompi com a república,há muitos anos. Mas se é para o bem do povo

e felicidade geral da nação, diga ao povo quefalo com Virgulino.

CABO – Graças a Deus.

PADRE – Bravos, meu lho.

DELEGADO – A república, penhorada, agradece.

TIA – Em nome das mulheres de Serra Baixa...

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XANDÚ – Já mandei a senhora varrer a rua,não ouviu, sua surda... Pode deixar, falo comele, é meu amigo... Mas quero car desde jáem liberdade.

DELEGADO – Está em liberdade... E vou mandarprovidenciar uma cama em seu quarto.

XANDÚ – Pois não é que a jaula virou quarto...Me tratem bem, seus cretinos, menos o senhorpadre... Que não é cretino... Mas o mais impor-tante é continuar procurando Aparecida. Cabo.

CABO – Pronto, sua excelência.

XANDÚ – Cagão. Vá procurar a menina Aparecidae, se não aparecer com ela dentro do prazo mar-cado, entrego sua gura a meu amigo Virgulino.

CABO – Vou logo, acho de qualquer jeito.

XANDÚ – Vai, crápula... Você também, SeuDelegado de meia pataca... Toca a procurar amenina. Eu e o padre vamos discutir o assuntoenquanto almoçamos.

PADRE – Vamos, Mestre Xandú.

XANDÚ – Oh padre, não ca bem me chaleirar...Dominus vobiscum.

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PADRE – Et cum spiritu tuo.

XANDÚ – Está aado, hein, meninão.

TIA – O que será de nós... Todas as donzelasserão violadas.

XANDÚ – Violada eu vou te dar na cabeça, velha,

se tu não for correndo varrer a rua.

TIA – Vou convocar as mulheres da cidade e va-mos todas procurar Aparecida.

XANDÚ – E se não achar todas varrendo a rua,

entrego tudo pro Virgulino, que quem mandana cidade sou eu agora.

PADRE – Meu lho, cuidado com o exagero.

XANDÚ – Então não falo com o meu amigo Vir-gulino coisa nenhuma.

PADRE – Eu estava só falando. O que importa eufalar ou não falar, dá na mesma.

XANDÚ – Dominus vobiscum.

PADRE – Et cum spirito tuo.

XANDÚ – Da outra vez estava melhorzinho.

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PADRE – Treinando, eu vou cando bom.

XANDÚ – Que é que o delegado está fazendo ali?

DELEGADO – Fazendo minha mala.

XANDÚ – Se o senhor pensa que vai dar o foradaqui está muito enganado. É ou não é a autori-

dade? Medo, todos nós temos, que o caso não éde brincadeira. Até eu estou com medo, imaginese o Virgulino me desconhece. Principalmente sesouber o que aconteceu com a Aparecida. É ca-paz de perder as estribeiras e matar até a mim,que sou seu amigo. Mas se eu vou, vai todo omundo junto, ninguém sai da caçarola.

DELEGADO – Eu tenho mãe...

XANDÚ – E tu pensas que o restante aqui é lhode Chocadeira? Todo mundo tem mãe.

Só tenho minhas dúvidas desta velha surda, queparece que brotou de um faxeiro...

PADRE – Calma, o mais importante é conservara calma.

XANDÚ – Vamos lá a esperar o dia marcado. Mas,

antes disso, temos que encontrar a Aparecida.

PADRE – Se encontramos Aparecida tudo ca bem.

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XANDÚ – Bom qual nada... Que ela está prenhee este é outro problema.

PADRE – Quem teria sido?

XANDÚ – Isso, pode deixar também por minhaconta que na hora precisa eu encontro o culpado.

CENA 13 SACRISTIA. NOITE ANTERIOR à CHE-GADA DO CANGACEIRO

XANDÚ – Mandei chamar todo mundo aqui paravericar como está nossa procura, que já amanhãé o dia do juízo nal. Pois chega na madrugadao Lampião.

CABO – O seu amigo Virgulino.

XANDÚ – Encontrou algum sinal da Aparecidadesaparecida, seu canalha?

CABO – Encontrei não senhor. Mas ela aparece.XANDÚ – Aparece, não é?

PADRE – Se, pelo menos, ela voltasse.

TIA – É o m.

XANDÚ – Varreu a rua, com as corocas todas,velha surda?

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TIA – Estivemos procurando Aparecida.

DELEGADO – Neste momento de desesperogeral, queria, em nome da república, depositartoda a conança...

XANDÚ – Já sei, em mim... Tem direito de falar,porque, anal, me comprou a botija do Papa-

terra por cinquenta mil réis.

DELEGADO – O Papaterra, o famoso...

XANDÚ – Sabe como é, não é no torno.

DELEGADO – Pois é, ele faz fazendo.

XANDÚ – Oh felicidade. Nunca ninguém me deutanto crédito.

PADRE – Seja tudo o que Deus quiser. E o SeuXandú arrumar.

XANDÚ – Muito bem, agora quero dizer queamanhã chega o Virgulino. Vão tremer em casa,seus danados. E amanhã de manhã todo mundona sacristia, aí em frente à praça, pra recebero Virgulino. Se alguém fugir, eu boto a culpado sumiço da menina e o Virgulino vai até o

inferno procurar.

CABO – Ah, minha Nossa Senhora do Bom Parto.

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XANDÚ – Bom parto, você vai ver é que te parto acara se não te encontro amanhã esperando o Vir-gulino. A sorte está lançada. Dominus vobiscum.

PADRE – Et cum spirito tuo.

CENA 14 NA ENCRzILHADA, COM LAMPIO

Madrugada na encruzilhada da estátua de SãoSebastião. Ouvem-se passos. Logo aparece, im-ponente, o Virgulino, armado até às gengivas.Para em frente à imagem e se ajoelha. Poético.

VIRGULINO – Dezoito anos são passados, desde

o dia em que aqui, aos pés da imagem de SãoSebastião, deixei minha lha. Naquele tempo,pobre lavrador corrido depois da matança deminha família. Hoje, retorno para rever minhaúnica lha. O sentimento paterno animou o co-ração do cangaceiro... Por vezes já mandei espiar,

e tive notícia de que estava muito bem cuidadapelo vigário. Logo estarei abraçando aquela queé o sangue do meu sangue e a carne da minhacarne. Agradeço a vós, meu São Sebastião, pelaproteção que deste a minha lha.

SÃO SEBASTIÃO – Não tem o que agradecer amim, meu lho... Mas sim ao vigário, que tomouconta dela.

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VIRGULINO – Céus. Milagre. O santo falou comigo.

SÃO SEBASTIÃO – Falei sim, meu lho... Faleiporque foste um bom pai e voltaste para en-contrar tua lha.

VIRGULINO – Deus seja louvado.

SÃO SEBASTIÃO – Louvado seja.

VIRGULINO – Bendito.

SÃO SEBASTIÃO – Louvado seja.

VIRGULINO – Louvado seja.

SÃO SEBASTIÃO – Amém... Escute, meu lho. Aochegar a esta cidade encontrarás muitas pessoas.Quero que me faça uma vontade santa.

VIRGULINO – Todas, meu santo.

SÃO SEBASTIÃO – Encontrarás nesta cidade umbom homem, de nome Xandú Quaresma, queé meu protegido. Quero que trates este santohomem como se fosse teu próprio irmão. Pois,se alguma coisa acontecer, só ele poderá te

dar ajuda.

VIRGULINO – E Xandú Quaresma é meu irmão?

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SÃO SEBASTIÃO – Trata-o assim e ele compreen-derá. Ele se apresentará como velho amigo teu.

Trata-o como velho amigo, com muita amizadee intimidade.

VIRGULINO – Se o santo pede... Farei como sesempre tivesse conhecido Xandú Quaresma, meuamigo e meu irmão...

SÃO SEBASTIÃO – Agora vai, meu lho, com aminha bênção. Não digas a ninguém de nossoencontro.

VIRGULINO – Assim será... Mandarei rezar mi-nhas missas pelo santo.

SÃO SEBASTIÃO – Vai, meu lhinho, vai...

Virgulino beija o pé do santo e se vai.

CENA 15 NA ENCRzILHADA, COM O PADRE

Após a saída de Virgulino, a imagem do santosai do nicho. Ouve-se um barulho e a imagemretorna ao nicho. Padre chega desesperado.

PADRE – (ajoelha-se) Meu São Sebastião, santode minha devoção. Perdoa este ministro de Deus

na terra, que não teve competência de criar umamoça e que agora enfrenta a pior hora de mortenas mãos de um terrível cangaceiro.

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SÃO SEBASTIÃO – Estás perdoado, meu lho.

PADRE – Quem falou?

SÃO SEBASTIÃO – Eu, meu lho... São Sebastião.

PADRE – Hosana... Milagre...

SÃO SEBASTIÃO – Há muito tempo queria tefalar... És um bom padre, mas tens teus pecados.

PADRE – (bate no peito) Minha culpa, mea culpa,mea maxima culpa.

SÃO SEBASTIÃO – Talvez, o pior de todos seja o

roubo, meu lho.

PADRE – O roubo, São Sebastião?

SÃO SEBASTIÃO – Sim, o roubo. Pequeno, masdiário... Falo do jogo de truco, meu lho.

PADRE – Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.

SÃO SEBASTIÃO – Isso não se faz... Perdoo-te,contanto que não tornes mais a roubar.

PADRE – Mea culpa.

SÃO SEBASTIÃO – Vai, meu lho. E cona nosanto homem que resolverá tudo.

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PADRE – Que homem?

SÃO SEBASTIÃO – Quem podia ser? O meu eleitoe favorito: Xandú Quaresma. O que foi amigode Deodoro, de Conselheiro, do Padre Cíceroetc. etc. etc...

PADRE – Tudo, então, vai dar certo?

SÃO SEBASTIÃO – Tudo, meu lho. Conem nomeu amigo Xandú. Não diga a ninguém que eufalei a você, é um segredo entre nós.

PADRE – Amém... Adeus, e me proteja, meusanto.

SÃO SEBASTIÃO – Vai, meu lho...

O Padre sai.

CENA 16 NA ENCRzILHADA, COM O CABO

A imagem do santo sai novamente do nicho.Ouvem-se passos, ele volta para o nicho. Entrao cabo, desesperado.

CABO – Me dê a extrema-unção, meu São Sebastião.

SÃO SEBASTIÃO – Canalha.

CABO – Quem falou?

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SÃO SEBASTIÃO – Eu.

CABO – Eu, quem?

SÃO SEBASTIÃO – São Sebastião.

CABO – Então o santo já sabe?

SÃO SEBASTIÃO – Desde o início.

CABO – Eu caso-me com ela, se ela voltar.

SÃO SEBASTIÃO – Eu já sabia, tinha até comen-tado com meu amigo Xandú Quaresma.

CABO – Então, era verdade?

SÃO SEBASTIÃO – Do que presenciei na ladeiradas pedras? Verdadíssima.

CABO – Perdão e extrema-unção, que eu nãoescapo...

SÃO SEBASTIÃO – Se você casa com ela estámuito bom, mas terá que encontrá-la.

CABO – O santo não pode me indicar?

SÃO SEBASTIÃO – Poderia... Poderia facilmente...

Mas é que aí estraga o mérito de sua procura...Vá, meu lho, e, com a ajuda de meu protegidoXandú, encontre Aparecida.

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CABO – Eu tenho medo.

SÃO SEBASTIÃO – Não tenhas medo, que tudoterminará bem.

CABO – Estou mais confortado... Adeus, meu santo.

SÃO SEBASTIÃO – Não conte a ninguém que

esteve comigo... É um segredo entre nós.Pode contar só a Xandú Quaresma, que para elenão tenho segredos.

O cabo se vai. São Sebastião sai do nicho, vestea roupa de Xandú e coloca a imagem do santono nicho.

CENA 17 PRAA E CADEIA

Virgulino está só.

VIRGULINO – Oh diacho. Eu então não aviseique queria que me esperassem? (dá vários tiros

 para o ar)

Logo, um por um, todos vão saindo das tocas.

VIRGULINO – Oi lá, que estava todo mundo acor-dado. Cadê o Xandú, que é com ele que falo pri-

meiro. (todos batem palmas) Onde está XandúQuaresma, meu amigo e meu irmão, que querover mesmo antes que minha própria lha.

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Todos chamam Xandú. Logo, num canto da pra-ça, aparece Xandú.

XANDÚ – Meu amigo, meu irmão Virgulino,o Lampião! Chegue aqui pra um abraço e umaperto de mão.

VIRGULINO – Como está, depois de tanto tempo,

meu parente?XANDÚ – Assim, assim. Na bênção de São Sebastião.

VIRGULINO – Na bênção de São Sebastião, irmão.Onde está minha lha, que deixei com o padre.

XANDÚ – O padre está ali... Agora, quanto à sualha, meu amigo, como só hoje eu soube de suachegada através de um nosso amigo comum,mandei a menina comprar umas roupas e vesti-dos novos, para recebê-lo condignamente, comome foi contado por nosso grande amigo comum.

VIRGULINO – Se foi o Xandú que fez, está benfeito.

XANDÚ – Quero apresentar aqui os amigos. Esteé o padre Jeremias, que cuidou todo esse tempode sua lha.

VIRGULINO – Que os céus o bendigam, padre. Seprecisar sumir algum herege, é só dizer a direçãodele que o tal some. Some, padre.

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PADRE – Não tive culpa... Aliás, obrigado...

XANDÚ – Este é o delegado da cidade. Boa gen-te, embora do governo.

VIRGULINO – Como tem passado?...

XANDÚ – Este é o cabo Arlindo. Um dos melhores

amigos de sua lha. Não é, Seu Cabo?

CABO – Amicíssimo...

VIRGULINO – Em Cabriopó matei um cabo muitoparecido com você.

Cabo desmaia.

VIRGULINO – Eta frouxo... Macaco frouxo... Estavelha aí?

TIA – Eu sou a tia.

VIRGULINO – Que é que faz com essa cornetano ouvido?

XANDÚ – É surda como uma porta... Ela gostamuito de ver faca de cangaceiro, mostra a sua

a ela, eu te peço.

Virgulino tira a arma e mostra. A tia desmaia.

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VIRGULINO – Tá todo mundo caindo... Quandovem minha lha?...

XANDÚ – Logo mais... Logo mais, meu amigo, meuirmão. Você ca hospedado comigo na cadeia.

VIRGULINO – Na cadeia?

XANDÚ – Na cadeia. Não gostou?... Eu faço jáuma queixa a São Sebastião.

VIRGULINO – Não, pode deixar. Se ca comigo,é lugar honrado.

XANDÚ – O mais honrado... Pois se é a cadeia.

Lampião descansa na Cadeia. Entra Xandú.

XANDÚ – Oh Virgulino... Está dormindo... E amenina que não aparece. Só tem um jeito desalvar a situação. (rouba os óculos de Lampião)

CENA 18 PRAA

Dia seguinte. Na praça, Lampião e toda a gente,menos Xandú. Vem o cabo.

CABO – Seu Excelentíssimo Virgulino!... Vem aí

a sua lha querida.

Todos batem palmas. Gritos de alegria.

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VIRGULINO – Onde diacho foram parar meusóculos, que sem eles não enxergo nada, ouquase nada?

CABO – Aí está sua lha querida.

Entra uma mulher magra, com a cara igualzinhaà do cangaceiro, inclusive com chapéu igual.

VIRGULINO – Minha lha.

FILHA – Papai.

VIRGULINO – Minha lha.

FILHA – Papai.

VIRGULINO – Minha lha.

FILHA – Enm reunidos...

VIRGULINO – Dezoito anos de separação. Medê um beijo.

FILHA – Essa é que é forte.

VIRGULINO – Me dê um beijo...

FILHA – É que eu z uma promessa, que se che-gasse a encontrar meu pai, nunca o beijaria. Umapromessa que z a São Sebastião.

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VIRGULINO – Pois eu respeito. Dê cá um abraço.

FILHA – Um abraço vá lá...

VIRGULINO – É o dia mais feliz da minha vida.Onde está meu irmão Xandú Quaresma?

FILHA – Foi ali, já volta já.

VIRGULINO – Se alguém encontrou meus óculosé preciso que devolva, que assim não posso verminha lha.

CABO – Eu vou procurar.

FILHA – Arlindo, meu primo.

CABO – O que foi?

FILHA – Já conhece meu pai?

CABO – Já tive o prazer ontem.VIRGULINO – Em Cabriobó matei um cabo quetinha a voz igual à tua.

CABO – Pois é... (desmaia)

VIRGULINO – Onde ele foi? Cade ele, sumiu?

FILHA – Ele é muito rápido.

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VIRGULINO – Não quero ir embora antes de re-solver os problemas de minha lhinha.Vou dar a ela cem contos de dote, mas quero queela case ainda antes de eu ir embora.

FILHA – Eu ainda não estou na idade, meu pai.

VIRGULINO – Casei com sua mãe quando ela ti-

nha treze anos de idade. Você já tem dezoito...Com quem é que você quer casar?

FILHA – Não tenho preferência... Ainda sou mui-to menina, papaizinho.

VIRGULINO – Então, escolho eu... Ora, para casarcom minha lha precisa ser uma pessoa impor-tante, o mais importante.

FILHA – A mais importante é o padre.

VIRGULINO – Ah, sim, o padre. Não, o padre

não pode. Depois, há de vir aqui o nosso amigodelegado...

DELEGADO – Eu?...

VIRGULINO – O senhor mesmo... E olhe que são

cem contos de dote, mais a honra de casar comminha lha que, sendo meu genro, não morreassim com facilidade.

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DELEGADO – Eu?...

VIRGULINO – Nem eu nem mais nada. Padre!Onde está o padre? Quero que faça o casamentoagora mesmo, e na minha frente.

PADRE – (à flha) Eu não posso.

FILHA – Dá a batina pro cabo.

O padre troca de roupa com o cabo, enquantose organiza o local. Logo Virgulino dá início àcerimônia, vindo de braços com a lha. O cabo,vestido com a batina, faz o casamento da lha

com o delegado.Depois do casamento, chega a tia com Aparecidachorando. O cabo, ainda vestido de padre, correpara ela. Filha abraça Virgulino para que ele nãoveja o que se passa.

VIRGULINO – Vou ver se encontro meus óculos...

Virgulino sai e, quando volta, Aparecida estáde braço dado com o cabo, que tirou a batina eveste o paletó do delegado. Xandú volta.

XANDÚ – Cheguei no m, mas cheguei a tempode cumprimentar meu amigo Virgulino pelo casa-mento de sua lha. Pena que perdi o casamento...

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VIRGULINO – Por isso, não. A um amigo comoXandú Quaresma a gente faz tudo.Vamos repetir o casamento!

O padre casa, agora de verdade, o cabo comAparecida. Festa nal.

CENA 19 CADEIA

PADRE – E assim, com o coração pequeno, nosdespedimos deste amigo que se vai: querendoque ele casse...

DELEGADO – Em nome da república, agradeço a

Xandú Quaresma o que fez por nós todos.

Aparecida dá um beijo em Xandú. O cabo o abraça.

XANDÚ – Pois é assim que é, um dia chega ea gente tem que partir. Tenho que ir, pois tem

muita gente à minha espera por tantos lugares,que nem sei... Quero, antes de ir, doar à muni-cipalidade local esta botija feita... Pelo TinocoPapaterra... Ele não faz com torno... Ah velha,aponta a corneta para mim... Quem é que vailimpar a igreja?

Em todo o caso, embora surda, é muito boa, as-sim como todos. Cheguei aqui querendo venderum cavalo cego.

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para a prefeitura. Contando causo até mais nãopoder. Não há causo que aguente. Acho quechegou a hora da ida. E não queria embarcarna cama mas aqui, olhando o céu, sentindo ocheiro do mato... Sinto que minhas forças sevão... (vai morrendo)

De uma lado, surge Nossa Senhora.

XANDÚ – Quem é?

NOSSA SENHORA – Sou eu, meu lho, que vimatendendo a tudo que zeste de bom na vida,para te levar a contar causos no paraíso.

XANDÚ – Obrigado, madrinha. Graças a Deus.

Uma explosão. Entra o diabo.

XANDÚ – E quem é o outro?...

DIABO – Sou eu, meu lho, que, como prêmiopor todo o mal que zeste, vim te buscar paracontar causos no inferno...

NOSSA SENHORA – É meu, metade é minha...

DIABO – Metade é minha...

NOSSA SENHORA – A metade direita, do ladodo coração, é nossa.

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DIABO – E a esquerda é nossa.

XANDÚ – Não é que isso está igual ao causo doPororóca?

NOSSA SENHORA – É nosso...

DIABO – É nosso...

XANDÚ – Pois não é... Olha aqui os dois, esperemum pouquinho só. Cada qual quer me levar ametade, eu acabo rebentando que nem Poro-róca... Mas é que vou fazer uma coisa na qual oPororóca não pensou. Madrinha, este meu lado

direito é o bom, o seu.

NOSSA SENHORA – É o seu lado sagrado, Xandú.

XANDÚ – Seu Cachorro, este lado esquerdo é omeu lado mau.

DIABO – E seu lado amaldiçoado, meu lho.

XANDÚ – Então, vamos fazer o seguinte: voudar um, dois, três e no três os dois puxam comfé, quem arrastar levou.

NOSSA SENHORA – Certo.

DIABO – Aceito.

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XANDÚ – Um... Dois... Três...

Xandú dá os braços cruzados, invertidos: os dois,ao pegarem nos lados contrários, dão um berroe somem.

XANDÚ – Já que não sou de um lado nem dooutro, mais vale car um pouco mais por aqui

e esperar tempo mais oportuno. Já contei pravocês da minha onça de sela? Eu tive um bodede sela, também, mas bode já é mais comum...

Finis

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Galileu da Galileia

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Galileu da Galileia

Leitura Dramática em 23 de agosto de 1994

Original de Chico de Assis

Personagens:NarradorGalileuRosa MariaVicenteCardealEstudantes: Ari, Jó e BrunoTorturador

ReiZé GermanoCaguetaMongeInquiridorInquisidor

VigiaBruxoEditorGarçomEstudantesCoro de Monges

Direção:Emílio Fontana

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Elenco:Bruno GiordanoHenrique CezarLeda Villela (Narrador)Marcelo CoutinhoRoberto AscarWalter MendonçaWilma de Souza (Rosa)

Zecarlos de Andrade (Galileu)

Peça de Cordel, escrita em 1978-1980, resultadodos estudos que levaram à Trilogia do Cordel .Elaborada em verso popular, narra as aventurase desventuras de Galileu da Galileia, que não é

outro senão Galileu Galilei.

É uma peça sobre a verdade e o medo. Tudoacontece sob alta pressão política repressiva: decomo Galileu volta atrás de suas ideias, publica-mente, para salvar sua pele.

É um Galileu brasileiro, com todas as forças efraquezas de um herói latino.

Esta peça é inédita.

Texto de Chico de Assis, constante do programa

da Leitura Dramática realizada em São Paulo,no Auditório Alceu de Amoroso Lima – R. daConsolação, 2341.

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Primeira Encenação(de janeiro a maio de 1996)

Teatro da PraçaRua 13 de Maio, 830 – São Paulo

Direção e Iluminação: Emílio Fontana

Música: Zé RodrixElenco:Carlos Meceni (Galileu)Leda Villela (Narrador)Alexandra Correa (Rosa)Zecarlos de Andrade (Participação Especial)

Emílio GamaRicardo ReisMarcelo MartucciMárcia Del Mônaco

Assistente de Direção: Márcia Del Mônaco

Cenografa, Figurinos, Adereços: Daisy Nery

Assistentes: Vera Luz, Cristiane Gauche

Costureira: Zezé de Castro

Chapus: Conceição

Produção Executiva: Jane Patrício

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Programação Visual: Retrato Imaginário

Operação de Lu: Paulo Rocha

Agradecimentos: Alissandra Nascimento, ValérioSiqueira, Arlete Henrique, Maria Carolina, DárcioRomaneli, Giramundo

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CENA 1 PRLOGO

NARRADORNa esquina do terraçoCom a praça do destinoNo limite do fracassoCom a dor do intestinoMora o lho de um veio

Que é casado com uma veiaMora um velho menino

Galileu da GalileiaHomem que perdeu o tinoHomem que perdeu a ideia

Que engoliu um sapo-sinoGalileu da GalileiaUm terrível assassinoQue apresento à Plateia

Pra mostrar que o libertinoCom sua prosopopeia

Apesar de ser franzinoTinha força na traqueiaEra bruxo e tão ferinoUm só lobo em alcateiaEra mau bom e ladino

E por esgotada rimaPonha a história a começarAtenção no que ela ensina

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Se é que ela pode ensinarSe não pode não aprendaSiga assim sem se mudarMas pelo menos ai! compreenda!Galileu e seu pensar.

CENA 2 O QE é MELHOR: NADA SABER, OSABER POCO?

Entra Galileu na sua sala de alquimia (Bruxariase Químicas).

GALILEUOh dor de vida assim em mim incrustada

Pior é saber pouco do que não saber nadaNo penso que repenso eu gasto noite e diaNo pensamento denso da ciência da alquimia

O pó da terra as ervas e o murmúrio das catervasRemexo na vida, balanço no mundo e fervo

no tachoTentando fazer das dominantes sombrasminhas servasEu busco e rebusco, cato e procuro e não acho

Experimentando misturas ao sabor da sorte

Para fugir do medo e descobrir a morteEu, se não sou outro... E se outro não for euSou Galileu da Galileia ou somente Galileu

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Por determinação dos azares da vidaEu acabei por ser conhecido como mágicoEmbora a ciência tenho sido a minha lidaO povo me crê diabólico cínico e trágico

Contra mim se volta a turba ignara e tagarelaComo se eu fosse o maior cão inimigoVejam quando eu abro minha janela

Que provo a vocês tudo que digo

Abre a janela e entra o vozerio; jogam coisascomo crucixos, livros negros, pedras e papiros.Fecha a janela, mas conserva a mão no trinco.

GALILEUDizem que eu emprenho mulher só no olharDizem que tenho tratos com BelzebuDizem que por arte distante consigo matarDizem que voo à noite com asas de urubuMas este povo pracóvio fala por falar

Abre a janela e grita para fora:

GALILEUE eu quero que eles vão tomar no seu cu!

Dito isso com as devidas reservas naturais

De um homem de aprimorada educaçãoPasso em seguida aos quadros fataisDas cenas que formam esta representação

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GALILEUTeremos aqui nesta minha históriaAmor, sexo, violência, intriga e misériaTeremos também: ouro, fama, riso e glóriaE tudo o que dá prazer à humana matéria

Teremos também combates com inimigosVisíveis, invisíveis, concretos e imaginários

Passaremos por aventuras de mil perigosLutando contra: idiotas, santos, imbecise salafrários

E, antes que eu me torne em certezaAmbiguidade, esperança ou dúvida sutil

Gostaria de mandar todos à puta que os pariu!

Não quero ser simpáticoNem que alguém torça por mimQuero ser melodramáticoDo princípio até o m

CENA 3 PRIMEIRA VISITA DO DEMO

Muda-se o cenário para oresta. Entra o Narrador.

NARRADORCauso primeiro no qual iremos ver a sensação

De Galileu da Galileia usando sua alquimiaBotar fogo no rabo do diabo capeta do cãoSendo que o demo vem disfarçado de Rosa Maria

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Fazendo malemolência, debochando a decência,puxando tesãoPor favor, notem o destino de cadamomento agoraPois quem não pegar o começo, não temcontinuação

Entra Galileu na oresta com a mão na testa,

em atitude de pensador, muito ensimesmado.

GALILEUAqui estou eu, nos ermos desta orestaOnde vim em busca de meditação serenaPara varrer da mente tudo que não presta

O que faz sofrer, morrer e enm não vale a penaNa pose de pensador, meditabundo,mão na testaEu vou a fundo no enigma do problemaQue a minha alma invade, suja e infesta

Galileu senta-se numa pedra para pensar. Entra

no outro lado Rosa Maria tomada pelo cão,muito safada.

ROSA MARIAOh estou perdida nestes ermos abandonadaFugi de casa por medo de meu pecado

Estou sem pouso sem arrimo sem moradaExpulsa da casa paterna aqui me evadoE busco na solidão desesperada

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Encosto amigo para o corpo cansadoMas vejo que encontro aqui, “além-do-nada”Um homem só em seu pensar assim fechado

Galileu ngindo que pensa:

GALILEUQuem é que invade assim minha solidão

Sem nem convite nem pedido nem chamadoSiga seu caminho, tome sua direçãoNão sou monge nem capado nem veadoMas no momento me envolvo em meditaçãoEstou com o saco cheio de ser atrapalhadoVai-te embora de repente oh terrível tentação

Rosa Maria choraminga:

ROSA MARIANão, não me desprezes oh viajante!És minha única luz de esperança

Olha para mim que já de ti estou dianteSou só mulher, sou só tristeza, sou criança

Galileu sente o aroma da perpétua:

GALILEU

Foda-se o mundo e o saber do universoFoda-se a dúvida que maltrata o pensamentoCresce em mim neste momento o ser perverso

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Me sinto Adão vivendo o Velho TestamentoE da vontade de saber eu me dispersoE me concentro num tacanho sentimento

Galileu se volta para admirar Rosa Maria detodos os ângulos.

ROSA MARIA

Se olhas assim para meu corpo eu tenho medoSou quase virgem minhas pernas tão fechadasDo amor não sei senão sonho e segredoNão tenho em mim ideias sujas e safadas

GALILEU

Minha querida, minhas intenções são purasPois todo homem que nasceu tem esta sinaTodas as mulheres aceitam tais loucurasAceita tu que não és velha nem menina

Dito isso, Galileu ataca mas logo sente que as

luzes tremem e que Rosa Maria está candovermelha – percebe a manobra do demo. RosaMaria é tomada pelo Demo. Estertor.

ROSA MARIAVem que eu queimo tal qual uma tocha!

Vem para enfrentar do amor a luta!Vem senão eu espalho que você é brocha!Corno manso, veado e lho de uma puta!

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GALILEUPorra, que já estou desconadoQue esta mulher está tomada pelo cãoÉ ele que me quer bem agarradoNas malhas do pecado e tentaçãoPara então amargar a minha alma de pecadoE me fazer entrar na eterna danaçãoMas tenho pra o cão calmante pra tarado

Galileu faz um gesto e tira dois paus do bolso,arma uma cruz e Rosa Maria se embola no chãogritando. Daí, ele faz um círculo em torno delacom uma ta vermelha e preta e azul e branca –Dali não pode sair.

ROSA MARIAPare com isso, pare com isso GalileuVocê leva tudo a sério eu só brincavaConfesse que eu quase te enganavaQue minha fala até te comoveu

GALILEUA tua fala eu conheço e te esconjuro!Bicho das trevas, agora eu te peguei!Trata de abandonar este corpo puro!Antes que te faça cagar fogo pelo rabo!

Vai embora eu te expulso e te esconjuro!Antes que eu te ene no rabo até o caboUm cabo de enxada feito de pau duro!

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ROSA MARIARio de ti, oh pobre mortal

Não tens poder de lutar contra mimSó a ela, a este corpo podes fazer malLutarei com você até o m

GALILEUOh criatura que emporca e atenta

Tenho mais armas para lutar nossa guerraVamos ver quem é que mais aguentaPois quem cansar primeiro come terraE trago no bolso água-bentaBenzida pelo Bispo da Inglaterra

Galileu esparge água-benta e Rosa Maria so-

fre muito.

ROSA MARIANão faça isso, olhe como ela sofre e choraNão queime assim corpo tão lindoTira estas tas e me deixe ir emboraQue eu aqui nem devia ter vindo

GALILEUEntão oh capeta que estás neste corpo de mulherEscuta bem o que eu te digo e vamos fazerum tratoSe eu te solto vais fazer tudo o que eu quiser

Vais ser meu escravo, meu capacho meu sapato!Vais lavar roupa cozinhar me dar de comerde colher!

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Além de tudo vais ser meu ajudanteNas magias negras que eu zer

ROSA MARIADesculpe muito mas não posso nãoTenho um só chefe e só a ele obedeçoÉ bode macho o anjo negro o grande cãoPorque se de seu mando eu me esqueço

Ele bota a mim pra sofrer na danação

GALILEUEle não precisa saber do nosso tratoVirás me ver só quando eu mandar chamarTe solto agora se assinas um contrato

Aceitando tudo e se botando a me ajudarMas se recusas a fazer o combinadoUm banho de água-benta vou te darE vais car portanto bem lavado

ROSA MARIANão faças isso, eu aceito

Serei teu escravo GalileuDe medos de tais banhos tão fodidosClama por mim que virei e com respeitoE atenderei a três dos teus pedidos

GALILEU

Então some daqui volta às profundasQue este corpo volte a sua donaMe deves três pedidos não confundas!

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Quando eu te mandar chamar à tonaRetiro a magia que te cercaPodes ir lamber de fogo as tristes bundasDos pecadores da inférnea triste zona

Rosa Maria gira e cai. Galileu vai a ela.

ROSA MARIA

Onde estou? Que aconteceu?Quem é você que vejo a meu ladoA mim um sonho tudo pareceuE sinto agora, só o corpo tão cansado

GALILEU

Foi sonho sim, você aqui adormeceuMas não sou sonho sou até um bom rapazMe apresento, o meu nome é GalileuE pergunto o que é que aqui te traz?Se te traz aqui o mesmo que quero euSaiu de dentro Satanás e agora entra Galileu

Galileu ataca. Luz apaga.

CENA 4 DESCOBERTA DO REBOLADO DOS ASTROS

NARRADORGalileu e Rosa Maria

Tiveram que dar a mãoEle precisava delaPra receber o cão

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Se juntaram de repenteNa cozinha mesa e camaE na frente de toda a genteEram cavalheiro e dama

Só não foram ao casamentoPorque Rosa não podiaReceber num tal momento

O capeta em qualquer dia

Sem a santa bênçãoViveram juntosUm tempãoTreparam juntos

Um tempãoForam felizesUm tempãoAté que um diaGalileu precisou do cão

Casa de Galileu – Laboratório e cozinha tudomisturado – Rosa Maria faz comida e ele faz suasalquimias – Rosa Maria, contente, canta.

ROSA MARIARaio de lua, coração saudade

Tanta alegria amor felicidadeContar estrelas meu sonhoTanta esperança risonho

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GALILEUVamos parar com a cantoria porra!

Quem que pode ser cientista!Eu quero que você morra!Com essa mania de artista!

Preciso das matemáticas ir à forraMas tenho em casa a concertista

Cantando na cozinha o tempo inteiroVamos parar com a cantoria porra

ROSA MARIAEstúpido cavalo cretino burro!Metido a merda, metido a besta, metido a prosa!Só me calas quando me ameaça de murro!

Eu aqui... Eu aqui Rosa Maria!

GALILEUNão encha o saco, estou pensandoEm algo que abalará toda a humanidadeEu pensei desde muito; estou cismandoQue esbarrei no encontro de uma verdadeO Sol não rodeia a Terra circulandoÉ a Terra quem o rodeia com humildadeO Sol é o centro e a Terra em torno vai rodando

ROSA MARIANão digas isso Galileu por nosso bem

Se o Papa ouve te manda pra fogueiraEu faço de conta que não ouvi tambémTal blasfêmia tal mentira tal besteira

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GALILEUUm momento... Siga mexendo a panelaDaquele seu jeito despudoradoObservem amigos a bunda delaPois nos movimentos existe um recadoComo é linda a ciência... Oh, como é belaPor isso eu sou por ela tão apaixonadoMexe mais Rosa Maria, mexe mais nessa panela!

Notem só como ela mexe quente e macioA bunda roda de leste para oestePercebam a verdade que anuncioVejam que a colher vai de leste para oesteE roda e rebola esta bunda sol de luz sem m

E eu planeta louco em curva disparada àvolta da panelaTolo seria pensar que ela gira em torno de mimQuando sou eu que giro em torno dela

ROSA MARIAGalileu quanta poesia você diz agora

Que mulher tal cantada aguentariaLarga o almoço e vem me leva emboraPara a cama fria de lençóis cheirosos

GALILEUVamos Rosa Maria você é o Sol e eu sou planeta

Em roda de ti sempre buscando o calor de teu amorE antes que me perca em rimas loucas e outra tretaVamos meu sol em busca de calor

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Preciso aprofundar a descobertaQue z agora neste instanteFoi por amor que entrevi a porta abertaDo segredo do Universo num instante

Mas antes de me perder na ciência incertaDe saber dos astros e de seus caminhosVamos ao que é maior que a ciência certa

Aos transportes do gozo do amor e do carinho

Narrador entra de mansinho.

NARRADORDevo entreter vocês com um pouco de papoPorque lá dentro na alcova está a açãoEste jogo que jogam lá dentro não requer sapoE como dizia o grande rei da Bíblia SalomãoA sua mão esquerda debaixo da minha cabeçaE a sua mão direita abraçando a situaçãoE tudo mais que o peru louco e a pomba travessaTenham fervido no pensamento e na imaginaçãoOuçam um pouco que a parede não é tão espessa

Ruídos de Galileu e Rosa Maria, murmúrios deamor, etc.

NARRADOR

Esta é a mais estranha humana competiçãoQue vem do início do mundo até Galileu eMaria Rosa

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Nesta luta toda mulher sai sempre vitoriosaE todo homem é vencedor e campeão

É uma guerra, uma luta de quatro costadosE quando acaba a batalha e acalma o coraçãoSobra um para cada lado ganhadorese derrotados

Vem Galileu fumando depois... Depois de uma

pausa:

GALILEUAgora toca a pensarNo mistério do UniversoE chega de versoMaria Rosa... eu estou com fome

Rosa Maria entrando dengosa:

ROSA MARIAJá vou indo Galileu meu bemEstou feliz e você está feliz também

GALILEUVejam o que é a vida surpreendenteJá não sinto mais calor nem frioTudo tão morno, nem gelado, nem mais quenteE tudo é tão sutil no como um oO que separa o gente bicho do bicho gente

Conforme esteja o saco cheio ou já vazio

Batem à porta.

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ROSA MARIAOuça Galileu, batem à portaAtende tu que não estou vestida!

GALILEUOra, porra, que hora mais tortapara uma visita intrometidaVai já pra dentro Maria Rosa

Que eu atendo quem veio em busca de prosa

CENA 5 INTRODO à LNETA

Galileu abre a porta. Entra o estudante Vicente,traz esquadro e compassos e réguas.

GALILEUEntra, bisonha e inesperada guraCom seus compassos, réguas e esquadrosPena que já não trago armada e duraA coisa medir em centímetros bem contadosMas passemos a coisas mais práticas

Quem és tu oh inesperado inoportuno?!

VICENTEOh Galileu, vim para ser um seu alunoQuero saber os segredos das matemáticasE já que sois nisso o mestre, o mestre sumo

Quero tomar contigo as aulas práticasE das teorias mais certas tomar o rumoEntrar por dentro das estratégias e táticas

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GALILEUMas que bela cara redonda de paspalhoEu te asseguro que sou caro pra caralhoFuçando em busca de sublime conhecimentoQue nas ciências queres fazer carreiraVá logo sabendo que vou te esvaziar a carteira

Maria Rosa venha cá um momentoMe traz um cinzeiro o fósforo e o baralhoQue eu e o meu aluno só por divertimentoVamos jogar uma partida de brincadeiraE que sabendo que é uma bela aula práticaDe combinações arranjos e outras sacanagens

Que servem de base à ciência matemáticaQue vieste buscar comigo por estas paragens

Rosa Maria vem de dentro com o baralho, ofósforo, etc. Vê o estudante Vicente e tem umarrepio de emoção.

ROSA MARIAAh... Deus meu que belo tipo faceiroTem os olhos morteiros nos quais me amarroParece gentil, sacana e muito do maneiroE é lindo como um anúncio de cigarro

Galileu vendo os instrumentos matemáticos, entreeles uma luneta:

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GALILEUComo é seu nome, decente?

VICENTEMeu nome é Vicente

GALILEUDesculpe a pergunta mas o que é esse rolo?

VICENTEÉ uma novidade, na verdade um objeto meio tolo

GALILEUE pra que serve tal mercadoria?Vamos diz logo a serventia

VICENTEÉ um presente que eu comprei pra minha tiaNuma viagem que z a Alexandria

GALILEU

Deixa ver este cano, mas que uso tem esta bosta?VICENTEVenha à janela olhe por ele e tenha a resposta

Galileu vai à janela. Vicente olha Rosa Maria queolha para ele.

ROSA MARIAQuer mais café, seu Vicente?

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VICENTENão me chame de “seu” Dona... Como é seu nome?

ROSA MARIAMaria Rosa ou Rosa Maria é indiferente

GALILEUIncrível, fantástico, extraordinário

Esta merda aproxima qualquer distânciaVou pedir isto emprestado a esse otárioPois tenho pra isto trabalho de importância

ROSA MARIAQuanto anos você tem na verdade?

VICENTEVinte e dois, estou na or da mocidade

ROSA MARIANão quer saber qual é a minha idade?

VICENTEMulher não diz os anos por ter muita vaidade

ROSA MARIATenho mais de vinte menos de trinta, pela metade

GALILEU

Olha aqui meu querido aprendizVou tomar a tua geringonça emprestadaTenho uma vizinha que se chama Beatriz

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Que tem o costume de dançar peladaVou espiar esta noite sua janelaDepois te conto como é a bunda dela

VICENTECom todo o prazer mestre eu emprestoPode car com quanto quiser

GALILEUMeus parabéns foi um bonito gestoAgradou seu mestre e também sua mulherPor hoje a aula está acabadaPode ir pra casa meu bom alunoVolte com hora marcada

Vais ter aula com o Ari, o Jó e o BrunoDiga a tua tia que que descansadaVou te deixar sábio serás o suco e o sumo

VICENTEBoa-noite mestre, boa-noite senhora

ROSA MARIAVenha sempre será bem-vindo a qualquer hora

Vicente sai. Galileu leva o óculo até à janela.Olha o céu.

GALILEUVamos olhar o céu, olhos no innitoVamos trabalhar no silêncio noturno

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Olhar o espaço para espantar o mitoInterrogar a Lua e investigar Saturno

ROSA MARIAAnda Galileu, vem para a camaÉ tarde estou tão cansada

GALILEU

Vai dormir, cara madame

Vou olhar o céu e mais nada

CENA 6 O CARDEAL CONHECE A LNETA

Cardeal sentado na sala. Maria Rosa serve uma

bacia de pipoca e café.

ROSA MARIAPronto seu Cardeal, aí estão café e mais pipocaEspero que vossa reverendíssima gosteVou lá tirar Galileu da sua toca

Dizer que tem visita do senhor preboste

CARDEALVá chamar Galileu da GalileiaDiga que venha imediatamentePreciso dele e de sua ideia

Porque o rei precisa urgentementeDe um invento para pôr na exposiçãoQue inaugura logo no mês vindouro

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E Galileu recebe paga do EstadoDeve fazer algo em troca do ouro

Rosa Maria vai.

CARDEALCafé com pipoca, que delíciaMe faz lembrar a infância distante

Que passei no país da GalíciaVem Galileu, vestindo calção, ajoelha-se e beijaa mão do Cardeal.

GALILEUBom-dia Vossa Eminência

Desculpe o atrasoE a minha pouca decênciaMas esta noite criei um casoNão consegui dormir direitoDormi aos poucos dormi a prazoE acordei meio mal sem jeito

CARDEALPrecisa dormir cedinho GalileuE acordar cedo que é bom preceitoPara ser saudável e forte como euQue mesmo assim ando com dor no peito

GALILEUSabe Cardeal, eu descobri que a TerraNão é o centro do Universo

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CARDEALGalileu cala, sua boca quer a guerra

Nunca ouvi dito mais perversoComo sou teu amigo njo que não ouviPensamento assim tão adverso

GALILEUMas eu descobri, por amor e olhando céu

Que o Sol é o centro do sistema eu juroÉ preciso descobrir da verdade o negro véuE dar saber aos homens deste momento puroÉ Deus quem dá rumo a quem andava ao léuE faz diferente o caminho do grande futuro

CARDEALCala sua boca, ingênuo, ignorante e incréuNo que você fala existe um grande furoLeia um pouco dos livros sagradosE vais ver que existe desde sempre um grande muroEntre o que dizes e os profetas iluminadosE mudando de assunto

O Rei quer um inventoFuncione o bestunto

GALILEUEntão o Rei quer uma invençãoPois muito bem, eu inventei a luneta

Está aqui Cardeal a nova sensaçãoÉ um invento moderno e porretaQue vai tomar toda a nação

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CARDEALE para que serve esta treta?É para usar no pé ou usar na mão?

GALILEUÉ para trazer perto a lonjuraPara aproximar grandes distânciasOlhe lá na janela aquela criatura

O Cardeal se assusta.

CARDEALOh Deus mas que circunstâncias!Este aparelho merece até censura

O que vejo nele me dá nojo e ânsiasGALILEUOlhe para o céu e verá até os anjosOlhe para o mar e verá os navios inimigosVerá até a cara dos marmanjosE isso diminuirá da guerra os perigos!

CARDEALO Rei vai gostar disso, ora se vaiÉ uma grande invenção Galileu!O Rei vai gostar, ora se vai

GALILEUE o que ganho a mais eu?Estou quase passando fome Cardeal

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CARDEALNão seja materialista, parece um ateu

A nossa alma e não o corpo é o principal

GALILEUFala com o Rei, fala com o PapaEu quero um aumento de salário

NARRADORGalileu se passou por inventor das lunetasPorque precisava ganhar a vida para estudarSeguiu observando no céu estrelas e planetasVendo que tudo aquilo dava muito o que pensar

Então Galileu traçou as linhas do seu teorema

E fez contas de regra de três e de multiplicarE assim provou que o Sol é o centro do sistemaE que a Terra em volta dele está sempre a girar

Daí comprou uma esferográca no empórioMandou embrulhar uma resma de papel ofício

E se trancou no seu pobre escritórioEscrevendo dia e noite com muito sacrifício

Quem não gostava muito era Maria RosaQue acordava à noite com certas vontadesMas Galileu imerso na escrita não dava prosaE ela calava pra não dizer umas verdades

Galileu só parava de escrever quando tinha alunoAí dava suas aulas para ganhar um pouco mais

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Mas quase sempre perdia o prumoPor perceber que menos Vicente os outroseram boçais

CENA 7 ALA: ATRAO GRAVITACIONAL

Aula aos quatro alunos: Ari, Jó, Bruno e Vicente.Galileu entra e demonstra sua teoria.

GALILEUHoje vou falar da minha nova teoriaE para começar faço uma boa perguntaPara você Ari, você Jó, o Bruno e o Vicente

Pergunto a toda essa quadrilha juntaSe o Sol vem do nascente e morre no poenteComo é que ele se move em torno da Terra?

ARIEu penso que é porque assim mandou o Papa

A Terra ca parada e o Sol roda cercando

JÓÉ isso aí meu bom, meu caro chapaEu também estou concordando

BRUNOBateu e disse está na Bíblia ninguém escapaA Terra amarrada no meio e o Sol se rebolando

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GALILEUMas agora vejam, considerandoEste exemplo que eu vou darDeixe que eu pegue uma roupa qualquer

Galileu pega roupa em uma cesta.

GALILEU

Segure uma ponta Vicente e eu seguro também

A roupa é uma calcinha de Rosa Maria. Estu-dantes riem.

GALILEU

Digam aí suas formas de fazer burrosO que é que tem de engraçado na demonstraçãoQuietos. Senão para ensinar eu vou dar murrosAté amaciar as mentes que vivem em inanição

VICENTE

Mestre veja bem porque eles riem, na minha mãoOlhe a peça que me deu para exemplicar

GALILEUMas o que é isso, meu Deus que confusãoComo é que eu fui logo essa peça pegar

Entra Rosa Maria e puxa a peça da mão de Vi-cente, com raiva.

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ROSA MARIAVejam só até onde vai a ciência

Um verdadeiro esculachoUma grande falta de decênciaUsando minha íntima roupa de baixo

Estudantes riem. Galileu bronqueia.

GALILEUVamos seus caras de pau hoje acabou a liçãoVão para casa ou para o raio que os partaVão se mandando para não perder a conduçãoVamos ver... Hoje é segunda, voltem na quartaEstudem em casa para chegar a uma conclusãoDesenhem tudo, façam do céu a grande carta

Estudantes saem. Vicente olha Rosa Maria, que es-conde as calcinhas atrás das costas, envergonhada.

ROSA MARIABonito, seu sacana descarado

mostrando minhas calças para o povoGALILEUEu peguei desavisadoNunca faria isso de novo

ROSA MARIA

Vicente foi tão delicadoFicou até sem jeitocom o rosto ruborizado

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GALILEUEu acho ele meio suspeito

Será que ele não é veado?

ROSA MARIASó porque ele é um moço direitoVocê ca assim desconado

GALILEUPorque é que defende o sujeitoJá estou cando invocado

ROSA MARIAEle sempre me teve respeitoPorque é muito bem-educado

GALILEUEu sei que ele é um Deus perfeitoE eu sou o demônio encarnado

ROSA MARIA

Você fala é por despeitoPorque ele é alinhado

GALILEUVocê me deixa muito insatisfeitoSerá que ele já é seu namorado

ROSA MARIAGalileu, essa não. Eu não aceitoQue pensamento mais sujo e malvado

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GALILEUAh se eu te pego com aquele sujeitoEle sai daqui de saco recortado

ROSA MARIAVocê fala assim tão contrafeitoPorque não dá mais conta do recado

GALILEURosa isso não é direitoEu ando é muito cansado

ROSA MARIAPois descanse esse é o jeito

Agora vou ao mercadoGALILEUMe compra um remédio pro peitoEu ando meio adoentado

ROSA MARIA

Você caiu muito no meu conceitoVicente não é bicha nem veado

GALILEUSaia logo eu vou ao leitoVou descansar um bocado

Rosa Maria sai. Galileu pega as calcinhas dela.Olha, acaricia, beija, cheira e chora:

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GALILEURosa ai Rosa Maria

Será que ela gosta do VicenteRosa ai Rosa MariaEu estou cando doenteDeixa eu ver onde vai elaCadê a bosta do canudo

Galileu pega a luneta.

GALILEUVou olhar desta janelaVou seguir ela por tudoAh lá vai a minha Rosa belaCom sua saia de veludoEsta merda não funciona

Quero ver mais distanteQuero vigiar a cafonaAntes que ela me espantePreciso melhorar esta sanfonaPra seguir a minha amanteSenão ela acaba na zonaE eu um corno ambulante

Galileu começa a tratar de desmontar a luneta.

CENA 8 FESTA DE INAGRAO DA LNETA

Entra o Narrador.

NARRADORE Galileu foi levando a vidaInventando o já inventado

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Pra defender casa e comidaEnquanto escrevia seu tratado

Passava as noites manejando a penaFilosofando e cortando um recortadoProvando que o Sol domina o sistemaDando aos homens um novo recadoMas o Rei estava cagando pra tanta losoaInventos para a guerra e pra vender é o

que ele queriaPor isso mandou fazer uma grande festaem certo diaChamou o fogueteiro Raimundo e a bandado RomeuChamou todos na praça, o povo todo e até euE pra festejar a luneta fez uma homenagem

a Galileu

REICom esta nobre douta e bela invençãoSerá mais fácil combater os inimigosQue vierem atacar nossa nação

Meus parabéns Galileu oh cientistaPorque descobriste um invento caralhalDeus proteja sua alma de artistaE vamos brindar este invento imortal

GALILEUSua majestade eu agradeço

As belas palavras que me dedicouEsse dia eu juro que jamais esqueçoPorque pra mim muito representou

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CARDEALE agora que toque a banda do Romeu

Em homenagem à inauguração desta lunetaA Igreja te agradece GalileuVamos Romeu, toca a trombeta

A banda toca.

CENA 9 ROSA MARIA CONHECE A LNETANARRADORMas enquanto Galileu recebiaEm meio a toda aquela genteA mais excelsa honrariaNa sua casa o estudante Vicente

Em companhia de sua mulher Rosa MariaAli os dois sós e frente a frenteTramando com toda a ousadiaO de sempre nem igual nem diferenteQue fazem a qualquer tempo noite e diaO que ensinou a Adão e Eva a serpente

Vicente suava e Rosa respondiaVICENTESe Galileu descobre me corta o sacoEu sei que ele te ama demais

ROSA MARIA

Galileu anda cando fracoE eu te amo como a ninguém amei jamaisVamos fugir juntos e vivermos no sossego

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VICENTEE aí que eu paro, breco e empaco

Ainda vivo a custo de meus paisEu nem ao menos tenho um emprego

ROSA MARIAEntão vamos nos encontrar aqui em casaQuando não estiver por perto o cientista

VICENTEE logo que eu puder a gente se casaFugimos juntos damos o fora fazemos a pista

NARRADORE Vicente e Rosa por baixo do panoFizeram muita da sem-vergonhice

E Galileu entrou pelo canoE a vizinhança no disse me disse

Galileu estava muito satisfeito com a homenagemIsso garantia seu emprego por mais um anoPor isso, resolveu beber só por sacanagemFoi no botequim do Zé GermanoE mandou vir toda a beberagemLogo cou como o diabo gostaFalando mais que uma vitrola

CENA 10 BOTEQIM, ONDE SE FALA DEMAIS

Botequim

GALILEUEnche o copo Zé GermanoHoje eu vou beber de graça

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Estou feliz a todo o panoPor causa da festa na praça

ZÉ GERMANOAqui ninguém me dá o canoVais pagar tua cachaça

GALILEU

Mais respeito carcamanoVamos enche a minha taçaQue beber por um anoQuero lotar a carcaça

ZÉ GERMANOMas o que foi que vendeu ao ReiEu não entendi aquele assunto

GALILEUFoi um belo invento que boleiMe dá um sanduíche de presuntoMas importante é que eu achei

No Universo um novo assuntoQue envolve toda a HumanidadeZé Germano capricha no presuntoSabe eu descobri uma verdadeQue vai mudar o rumo do planetaIsso sim é que é felicidade

Não esta bosta de lunetaIsso sim é que é verdadeNão esta bosta de luneta

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Amigos da nossa cidadeO mundo novo vive o mundo velho morre

Sou eu Galileu da Galileia quem juraNão pensem que eu estou de porreEu mudei a vida de toda criaturaDescobri que o Sol é o verdadeiro centroDe tudo que existe lá no rmamentoA Terra em roda dele rebola a cintura

O Sol é o centro este é meu juramentoVou mudar até a Santa Escritura

CAGUETAMeu caro cientista um momentoEu estou muito interessado

Traz mais um copo Zé GermanoQuero beber junto com tal talentoE ouvir dele seu novo tratadoQue contraria a voz do VaticanoSua ideia vem como um pé de ventoMexer com tudo que estava paradoFala mais oh meu portento...

GALILEUÉ isso mesmo meu prezado amigoA Terra é uma bostinha à toaEscuta bem porque sou eu que te digoEstamos todos na mesma canoa

Canoa que em círculos navegaEm torno do Sol brilhantePode deixar eu estou numa boa

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Quero ver quem é que negaEsta ideia nova fulminante

CAGUETAComo é seu nome meu gênio galanteE o teu endereço eu quero anotarVou te mandar um bom vinho frisantePara sua ideia eu homenagear

GALILEUMeu nome é Galileu da GalileiaMoro na Rua Mondolfo de Arruda MarinhoSe te faz bem eu aprovo a ideiaManda pra lá uma caixa do seu vinho...

CAGUETAMe dá a conta seu Zé GermanoEu pago tudo o que ele bebeuE vou mandar vinho do VaticanoPara o grande sábio Galileu

NARRADORE Galileu bebeu bebeu caiu e dormiuSonhando com seu livro e a glóriaO homem do vinho de manso saiuE foi ao Papa caguetar a históriaDepois Galileu voltou pra Rosa Maria

Carregado e bêbado pra danarDormiu a noite e mais todo um diaAcordou e foi trabalhar

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CENA 11 PRISO DE GALILE

GALILEURosa Maria me dá caféEstou com um gosto ruim na bocaNunca mais bebo, não dá péNão sei porque a bebedeira loucaPreciso meu livro escrever

Um cientista não dorme de toucaMinha teoria o mundo há de conhecer

Batem à porta.

ROSA MARIA

Quem será a esta hora?Rosa Maria abre a porta e entram os monges.

MONGESou eu minha senhoraEstá em casa Galileu?

GALILEUPode entrar, aqui estou euNão deixa a visita fora

MONGE

Não toque em nadaFique aí paradoViemos dar uma espiada

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Neste seu trabalhoNão que espantado

Aqui está um mandadoUma carta assinadaPelo maior preladoDa religião sagradaVocê foi apontadoPor um camarada

Como herege revoltadoVamos dar uma olhadaNo que você tem anotado

GALILEUMas seu monge isso é invasão

Eu tenho que me queixar ao Rei que é meuamigoTenho direito a minha solidãoE nesta casa da lei estou ao abrigo

MONGEVocê está criando confusão

Venha Galileu, venha comigoEstou te dando voz de prisãoÉs da Igreja um grande inimigoPegue só umas roupas e um calçãoEsses seus escritos vão comigo

ROSA MARIAMeu Deus que triste situaçãoNão vou deixar levar o meu amigo

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GALILEURosa, não faça isso não

Eu vou e volto pra car contigo

CENA 12 INQISIO SANTA

NARRADORPor ter falado mais do que deviaGalileu acaba entrando pelo canoE na tarde infausta de um maldito diaDum século negro de um triste anoÉ convidado a deitar falaçãoPara os sábios lá do VaticanoDonos das leis e do poder humanoRepresentantes da Inquisição

Agora é a hora da onça beber águaE de Galileu cortar o recortadoSão gente dura que não arrefeceNão vale choro reza pena ou mágoaE Galileu tem que ter cuidadoPorque essa turma é do dá ou desce

INQUIRIDORGalileu da GalileiaNos responda por favorDe onde tirou essa ideiade ofender Nosso Senhor

COROGalileu da GalileiaNos responda por favor

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De onde tirou essa ideiade ofender Nosso Senhor

GALILEUSe ofendi Nosso SenhorEu não sei nem tou lembradoMe responda meu senhorDo que sou acusado

INQUIRIDORTe acusamos de heresiaDe porca literaturaDe falsa sabedoriaContra a Santa Escritura

COROTe acusamos de heresiaDe porca literaturaDe falsa sabedoriaContra a Santa Escritura

GALILEUO que eu disse está faladoJá provei em prosa e versoQue o Sol brilha plantadoLá no centro do UniversoE Terra é pequenininha

E nós somos pigmeusA façanha não é minhaÉ milagre do meu Deus

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INQUISIDOREscutaram meus irmãos

A palavra da anarquiaGalileu eu lavo as mãosE te acuso de heresiaA resposta já foi dadaE a nós já satisfazSua ideia está marcada

Pela mão do SatanásCOROEscutaram meus irmãosA palavra da anarquiaGalileu eu lavo as mãosE te acuso de heresia

A resposta já foi dadaE nos já satisfazSua ideia está marcadaPela mão do Satanás

GALILEUDeus na sua divindadeGrande limpa eterna e puraNos ensina que a verdadeÉ mais sagrada que a Escritura

INQUISIDORA Sagrada Escritura

É a verdade que Deus nos deuAbram a sala de torturaPra mostrar a Galileu

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CENA 13 TORTRA

A sala de tortura.

NARRADORGalileu foi muito machoNão foi fraco fresco e frouxoNão nasceu pra ser capacho

Um homem do saco roxoVamos ver o seguimentoDesta bela aventuraQue tem seu prosseguimentoNuma sala de torturaAi ai ui ui...

Torturador mostra os aparelhos a Galileu:

TORTURADORBem-vindo ao meu humilde laboratórioSei que é um homem de ciência e eu tambémJá o conheço de fama e do falatório

Estou bem certo que vamos nos dar bemComo vê por meus aparelhos livros e mapasPode entender que passo a vida estudandoNão é fácil saber os segredos da dorEstudo psicologia, física e anatomiaPois só assim posso exercer com eciência

Minha prossão que é de grande valiaPara que no mundo reine a decênciaPois Deus e sua Escritura são nosso guia

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Como vê aqui temos de tudoEstamos perfeitamente aparelhadosPara dobrar a espinha de um homem de estudoE para fazer ver a verdade um pobre coitadoÉ curioso mas às vezes uma ferramenta como estaObserve como é bruta, feia assustadoraÉ uma coroa que esmaga a testaA cada volta que damos neste parafuso

É curioso como uma pessoa modestaResiste a tudo em seu mais forte usoE um homem de espírito ao primeiro apertoMistura ideias ca tão confuso

TORTURADOR

Mas se resiste eu encontro o ponto fracoE mudo o jogo. Veja esta ferramentaÉ um punho de ferro para apertar o sacoEsta experiência quase ninguém aguentaMas o meu segredo consiste em ir aos poucosSem pressa alguma devagar em forma lenta

Se tiver pressa deixo os clientes loucosSe cam loucos não podem mudar a razãoO que acha da minha opinião

GALILEUNão sei o que quer dizer com isso

Mas adivinho toda sua intençãoÉ seu trabalho, seu triste serviçoEu tenho nojo da sua prossão

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TORTURADOREu também, eu também Galileu

Confesso eu queria plantar rosasNinguém tem mais nojo disto do que euA vida tem coisas mais gostosasMas é o destino que Deus me deuAlguém tem que exercer a missão santaDe fazer cumprir a lei da salvação eternaAlguém tem que criar o medo que opecado espantaPara que reine na Terra a paz e não badernaE você Galileu trocou o Sol pela TerraLançou nos livros esta ideia tão modernaTalvez sem saber o mal que ela encerra

GALILEUNão acredita que isso possa ser verdade?Não aceita duvidar de toda a históriaQue a nova ideia possa dar à HumanidadeNovos caminhos para Deus e sua glóriaDeus deu ao homem a graça da liberdadePara ter sobre a natureza sua vitória

TORTURADORVamos Galileu chega de brincadeiraSe eu duvidasse não estaria neste empregoIa plantar couves pra vender na feiraJá te mostrei o que era pra verMas falta uma coisa: a fogueira

Vem Galileu, vem conhecer

Torturador leva Galileu até a fogueira armada.

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GALILEUJá vi muita gente ser queimada

Vocês fazem isso a toda hora

TORTURADORGalileu você não sabe de nadaA fogueira é outra coisa de dentro para foraVamos, entra aí dentro só para sentirA sensação de ser sacricadoE imagina:Milhares de pessoas a assistirO seu corpo ser assadoE cada um deles sentindo contigoQueimar dentro de si cada pecadoA fogueira mais que castigo

Serve de exemplo ao povo assustadoSão lições assim que desde o tempo mais antigoAos homens todos do mundo mais comoveuSe for queimado diante de toda a populaçãoPodes ter certeza podes mesmo GalileuSerá queimada em cada um a ideia de revolução

GALILEUA fogueira não destruirá a minha razão

TORTURADORA razão Galileu para o povoÉ a palavra de Deus e o pãoE agora que à vontade de novo

Vou dar muito tempo para meditaçãoEspero que encontre logo a verdadeMe chame quando encontrar uma boa razão

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CENA 14 A SEGNDA VISITA DO DEMO

A visita de Rosa Maria e o segundo pedido aoDiabo.

NARRADORTrês dias e três noitesGalileu cou na masmorra

Ouvindo os gemidos e açoitesFoi aí que recebeu a visitaDe Maria Rosa sua mulher

ROSA MARIAGalileu que saudadeTe zeram mal, conta tudo

Falam de você em toda a cidadeDizem que foi muito peitudo

GALILEUVocê trouxe o jornal?Quero saber o que dizem

ROSA MARIANão deixaram trazer jornalSó cigarros e bolinho de batataQue eu sei que você gosta mais

GALILEU

Eu preferia carne com quiaboMas já que você está aquiEu vou cobrar o que me deve o diabo

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ROSA MARIAO seu segundo pedidoO diabo tem que atenderSenão você está fodido

GALILEUEu ordeno cão capeta das profundasQue venha e tome o corpo desta mulher

Venha cumprir o trato

Rosa Maria ca tomada pelo diabo. Ri:

ROSA MARIAEntão seu grande veado

Precisa de mim pela segunda vezLogo pedirá o terceiroE levarei sua alma de vez

GALILEUCala essa boca, demônio cornudo

E vê se me atende o segundo pedidoMe tira desta enrascadaSenão eu estou frito e comido

ROSA MARIAVocê quer se livrar da fogueira

Seu cu está fechando de medoMas eu sei bem qual a maneiraEu posso te dar o segredo

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GALILEUFala de uma vez e cumpre o tratoE depois some para o fogo do inferno

ROSA MARIAEstá bem eu cumpro o contratoEscuta bem o meu conselhoSó tem um jeito e uma só maneiraDe você se livrar da fogueiraVai lá nos homens e diz que era brincadeiraQue você só tinha falado e escrito besteira

GALILEU

Não posso mudar a minha heroica condutaArranja outro jeito seu lho da puta

ROSA MARIAVocê me faz rir cada vez que me xingaTenho pena de você pobre mortal

Mas se quer tirar o cu da seringaVai lá nos homens e abre o missalDesmente as potocas dementesPõe tudo no velho lugarAí eles cam contentesE podem até te libertar

GALILEUE se eu não aceitar isso?

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ROSA MARIAVais virar chouriçoSer moído de porradaNunca mais terás serviçoVais dar aulas nas calçadas

GALILEUEu tinha tanto compromissoTanto dever, hora marcada

ROSA MARIALembra bem só tens mais um pedidoSe quiser gastar agora é só mandar

GALILEUNão, seu dever por ora está cumpridoPode ir diabo espero não mais te encontrar

Rosa ri.

ROSA MARIAQue é isso GalileuVamos nos ver um diaQuem te diz sou euAchas que eu te mentiria

GALILEUNão suporto esse cheiro de breuSuma daqui gura sombria

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ROSA MARIAAté à vista Galileu

Até mais ver até um dia...

Rosa Maria volta a si.

ROSA MARIAO que foi que aconteceuminha pele se arrepia

GALILEUNão foi nada, aqui estou euOlha aí vem o vigia...

ROSA MARIA

Então, o que vai fazer da vidaGALILEUDefender minha ideia proibida

VIGIAA hora da visita está vencida

Sua mulher tem que ir embora

ROSA MARIAO que é que eu vou fazer agora

GALILEURosa Maria não chora

VIGIAVamos acabou a sua hora

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Vigia leva Rosa Maria e Galileu ca ali desanimado.Vem o torturador.

TORTURADOREu sinto tanta pena GalileuGostaria de te mandar pra foraMas parece que você não se convenceuDe que suas ideias são erradas

Que solidão deve sentir sua esposaQue falta ela sente de você GalileuEm casa pelas horas tão paradasNão sei o que te dizer agoraSenão que seu único amigo sou euTe peço, amigo, desiste da jogada

GALILEUVai daqui você não prestaEstá querendo me enfraquecerSaiba que tenho uma mulher honestaEla saberá bem sobreviver

TORTURADORMas para que deixar ela sofrerBem, vou diminuir a tua solidãoVou te dar um bom companheiroEle já vem e vai te conhecer

Não é um sábio, é um pobre brutoFica com ele neste meu viveiroVai ser bom, vai se entreter

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CENA 15 NO DOS OTROS NO DI

Entram os guardas e trazem um homem de cal-ção. Ele anda como se tivesse as pernas grudadas,passos muito lentos e curtos, e sofre muito.

GALILEUComo vai meu camarada

Eu sou Galileu o cientistaVamos dividir esta celaComo vê não é lugar de luxo

Bruxo geme:

BRUXOEu já o conheço de vistaEu sou acusado de ser bruxoPorque curei alguém de erisipela

GALILEUMas me diga por que está sofrendo

É fome não te deram um pouco de comida?

BRUXONão é nada, senhor, o que está doendoEu tenho no corpo uma atroz ferida

GALILEUEstás pálido com o corpo tremendoEm que parte está essa coisa dolorida

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BRUXOSenhor eu morreria envergonhado

Está em uma parte tão escondida

GALILEUVocê me deixa preocupadoVamos conta sou teu camarada

BRUXOEu fui muito maltratadoMas não quero dizer mais nada

GALILEUSe quer assim eu co caladoMas onde estará essa dor danada

BRUXODeixe que a dor seja só minhaEsta dor tão desesperada

GALILEUEstás branco feito farinhaEssa dor tem que ser curada

BRUXOConhece a tortura do pé de galinhaFoi essa que me foi aplicada

GALILEUTortura do pé de galinhaDisso eu nunca ouvi falar

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BRUXOPois então vê se adivinha

Um pé de galinha onde pode entrar

GALILEUBem eu acho que um pé de galinhaNão.. não consigo imaginar

BRUXOAh céus. Oh Deus oh vida minhaNão serei eu quem te vai contar

GALILEUMeu Deus eu li na entrelinhaAcho que sei qual é o seu sofrer

Cruel tortura da mente tão mesquinhaDestes tiranos loucos do poderSei onde está o pé de galinhaVocê não pode tanto assim sofrer

BRUXO

Mas nada podes fazerOnde entrou fechado só aberto será tirado

GALILEUMeu Deus como vai doerComo sofre este coitado

BRUXOSe co quieto dói adoidadoSe tento tirar dói dobrado

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GALILEUNão pode car sofrendoVamos eu te ajudo puxo com jeito

BRUXONão aguento mais estou morrendoTenta, mas faz o trabalho direito

GALILEUDeita aqui, vou fazer a operação

BRUXONa tua mão a minha salvação

GALILEUVamos baixa o teu calção

BRUXOMeu Deus que grande humilhação

GALILEUQuieto o orgulho agora não contaNão se mexa que eu vou te curarAgora já peguei à unha a pontaSe segura que eu vou puxar...

Galileu puxa. O bruxo dá um grito lancinante.Galileu levanta com pé de galinha ensanguen-tado na mão.

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GALILEUCabeças doentes malditas

Inventores de martíriosO que será nessas almas habitaQue demônios que delíriosEstá melhor meu camarada?

BRUXO

A dor está aliviada...GALILEUVou pedir uma pomada...

Entra Torturador. Vem com uma latinha depomada.

TORTURADOREu sabia que você era um bom rapazEstá aqui a pomada para seu amigo

Torturador dá a pomada ao bruxo.

GALILEUVocê é o próprio SatanásNão merece ser chamado de gente

TORTURADOREu sabia que serias capazDe tratar do amigo tão doente

Torturador pega o pé de galinha com muito nojoe mostra para Galileu.

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TORTURADORVocê foi amigo e solidárioEu quei muito admiradoAgora somente um comentárioSobre este homem coitadoUm pobre bruxo, um otárioQue se voltou contra o sagradoUm charlatão um salafrário

GALILEUUm ser humano humilhadoUm Cristo no seu Calvário

TORTURADOR

Galileu está emocionado?Pois eu tenho uma propostaDiga que está erradoQuero ouvir sua resposta

GALILEUNunca, seu celerado

O Sol é o centro do sistemaÉ o centro lá paradoA Terra é que se move no esquema

TORTURADORChega, Galileu

Estás vendo o pé de galinhaAgora responde uma pergunta minhaResponde Galileu

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Onde preferes isto?No cu dele, ou no teu?Num dos dois vai o ouriçoResponde GalileuOnde vai istoNo dele ou no teu?

GALILEU

Pobre homem... pobre ateuE você, triste serviçoEu, Galileu como meu compromisso

TORTURADORVamos sábio sai do enguiço

Fala logo, no dele ou no teu...Se não mudares tua ideia cretinaVou botar isso no teuSem dó nem vaselina...

GALILEU

E se falo euPerdoas ao pobre bruxo?

TORTURADORJá disse, é no dele ou no teuNão me venhas com luxo

Guardas segurem Galileu

Guardas seguram Galileu.

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TORTURADORVamos lá grande GalileuIsso vai no dele ou vai no teu?

GALILEUNo meu... No meu nãooooooooVai no cu do pobre bruxo ateu!

TORTURADORE agora me diga GalileuEnquanto o pé de galinha se enterraO que está no centro do UniversoO Sol ou a Terra?

GALILEUÉ...

BRUXONãooooooooooooNão enterraaaaaaaa!!!

GALILEUÉ a Terraaaaaaaaaaa!!!

CENA 16 O SOL VOLTA A RODEAR A TERRA

NARRADOR

Ah tempos negros e sombriosOnde só a semente do mal vingaGalileu jogou fora seus brios

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E tirou o seu cu da seringa

Daí foi levado de volta à Inquisição

E diante dos monges deitou falação.

INQUISIDOR

Galileu da Galileia

Me responda por favor

De onde surgiu essa ideiaDe ofender Nosso Senhor

GALILEU

Eu estava assombrado

Encantado e enganado

Foi um erro um pecadoPelo mal fui atentado

INQUISIDOR

Galileu em prosa ou verso

Me responda no momento

Se no meio do UniversoA Terra ca no centro

GALILEU

A Terra ca no meio

Como falam as EscriturasO Sol se move de permeio

Dando luz às criaturas

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INQUISIDOR

Galileu da GalileiaEscapou de ser queimadoSó porque mudou de ideiaVai ser quase perdoadoVai car preso em casaPra pensar no seu pecadoPra nunca mais criar asaPara merecer a graçaVai fazer uma conferênciaPara o povo lá na praçaDesmentindo a indecênciaNa frente de toda a massa

NARRADORE Galileu foi levado ao meio do povoPara desdizer tudo o que tinha ditoE os que tinham pensamento novoDeram vaia no malditoColombo ganhou no ovoGalileu perdeu no grito

GALILEUPor isso eu devo dizer que foi mentiraQue eu escrevi no meu livro safadoA Terra não se move é o Sol que giraConforme está escrito no livro tão sagrado

ESTUDANTESCala a boca covardeCala a boca veado

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GALILEUPimenta no cu dos outros não arde

Queria ver vocês cortar um recortado...

ESTUDANTESCala a boca vendidoCala a boca reacionário

GALILEUVendido, ora onde é que já se viuE tem outra, reacionário é a puta que os pariu

Apedrejam Galileu.

NARRADOR

Galileu chora, se comoveE ninguém o escuta dizer:

GALILEUMas apesar de tudoA Terra é que se move

CENA 17 ALA: COM A CIêNCIA NA CABEA

NARRADORDepois ele voltou à práticaNa sua prisão domiciliarDando aulas de matemática

Pra poder se sustentarVejam que situação dramáticaQue agora vai se passar

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Galileu e seus quatro alunos. Maria Rosa servecafé com bolinhos. Os alunos Vicente, Jó, Ari eBruno trazem as cabeças com tampas falsas.

GALILEUBom hoje é dia de sabatinaVamos saber das coisas e medir o prumo

Ver quem sabe o rumo das ciências purasVamos ver qual é o seu prumoE o que tem dentro destas cabeças duras...

Vai até Ari

GALILEUMeu bom aluno Ari, deixe ver seu coco

Abre a tampa e tira um bolo de barbante e cor-das cheios de nós. Joga dentro de volta e aindasobra muito para fora, como macarrão.

GALILEUEstás com as ideias um pouco confusasMistura a paga e confundes o trocoTeu remédio aqui está meu ocoUsa isto no teu coco

Galileu joga uma tesoura dentro da cabeça efecha a tampa. Vai para Jó.

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GALILEUVamos agora ver meu caro JóO que temos nesta sinagoga

Abre, observa, cheira, põe o dedo e prova.

GALILEUNão é possível, tenha dó

É pura merda esta droga

Galileu pega umas ores num vaso e planta nacabeça dele.

GALILEUUsa isto meu caro JóAproveita o que te afoga

Galileu vai para Bruno. Abre a cabeça dele, pro-cura com lente e não vê nada.

GALILEU

Meu caro BrunoQue maçadaAqui dentro não há nadaLimpo como alma de criançaMas se não há nadaAinda resta uma esperança

Fecha a cabeça de Bruno e vai ao seu favoritoVicente.

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GALILEUVocê meu bom VicenteNão é qualquer bagulhoÉ o discípulo mais inteligenteDe ti eu tenho muito orgulho

Abre a cabeça de Vicente... Assusta-se e tira algo,

devagar. É a calcinha de Rosa Maria.GALILEUEntão é nisso que você tem pensadoFora daqui seu sujo, porco, ingrato

VICENTEMestre, estou envergonhadoEu sei que isso é muito chatoMas eu estou apaixonadoAmar não é proibido

GALILEUE você Rosa Maria dê o recadoMe diga se ele é correspondido

ROSA MARIAQuando estavas na prisão

Ele cou ao meu ladoGanhou o meu coraçãoO nosso amor é sagrado

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GALILEUFora daqui sua prostituta

E você também seu gabiruFora sua puta fajutaTe dou um pé nesse cu

Vizinhos. Escândalo geral. Galileu quebra tudo.

CENA 18 GALILE GIRA SOzINHO

NARRADORGalileu cou sozinho mais sozinho do que eraRosa Maria e Vicente mandaram pé neste mundoGalileu não mais amou nem andou buscandoquimera

Escreveu e estudou levou sua teoria a fundoTerminou seu livro e hoje está à esperaDo maior editor de todo o grande mundoÉ um dia limpo e claro de uma primaveraGalileu espera aito segundo após segundo

Galileu já bem velho, com seus originais:

GALILEUOh Deus meu eu estou nervosoÀ espera desse homem importanteMas como vai ser gostosoVer meu livro em cada estanteEu vou car orgulhoso

E o mundo vai ir pra diante

Batem à porta. Galileu vai atender. Entra o Editor.

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GALILEUEntre meu amigo a casa é suaSou Galileu da Galileia em pessoa

EDITORVamos logo, dê pra cá a obra suaPosso ser preso e o tempo voa

GALILEUEstá aqui meu caro nesta embalagemPara disfarçar e dar mais segurançaEu sei que é preciso muita coragemPara levar essa obra de esperançaVai com cuidado ela está bem fechada

Dentro desta caixeta de goiabada

EDITORÓquei, óquei quanto a seus direitos autoraisEu já vou dizendo que são só dez por centoEu vou ter gastos grandes monumentais

Para dar à luz este seu rebento

GALILEUSerá que não pode ser um pouco maisEu não posso viver de comer vento

EDITOREsses pedidos são imoraisMas eu dou mais dois por cento

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GALILEUAgora está bom, está bom demaisLeva isto, terminou o meu tormento

O editor leva a caixeta de goiabada. Galileu tomaum trago e faz um brinde:

GALILEU

Doze por cento... Porra!Vai dar pra pagar a senhoriaVamos viver antes que eu morraAh se estivesses aqui Rosa Maria

CENA 19 NO FIM, GALILE BSCA ROSA MARIA

Fim da história de Galileu da Galileia

NARRADORA velhice foi chegando para o pobre GalileuEle foi sobrevivendo dando aula à juventude

Vivia na solidão de um quarto de pensãoNão mais viu Rosa Maria ela como que morreuAndava mal e capengando tendo falta de saúdeAté que cou sabendo que o amor deseu coraçãoTrabalhava como puta num puteiro em Viamão

Galileu seguiu depressa no primeiro lotaçãoAinda estava apaixonado por sua Rosa MariaE a cena aqui começa na tarde daquele dia

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Galileu chega ao puteiro, a mulherada numamesa. O garçom bicha vem atender.

GARÇOMBoa-tarde cavalheiroO senhor chegou bem cedoMas toda hora é boa horaPra quem quer tirar um sarro

Mas diga logo o que querCerveja, sanduíche ou cigarroSe é comigo a sua simpatiaJá sabe que mais do que tenhoInfelizmente não posso darMas no trabalho me abstenhoPor isso não queira me tentar

GARÇOMTemos louras, morenas e mulatasTemos ruivas, cafuzas, negrinhasTodas elas muito safadasE todas muito escoladinhasVê lá naquela mesa a mulheradaPode escolher que eu levo o recadoE logo ela será apresentadaE depois de uma cerveja e do preço tratadoPode levá-la ao quarto dezenoveE fazer com ela o que der na suja menteO doze, o onze, o vinte e dois e o sessenta e nove

Na frente como Deus permite convenientementeAtrás que a mim francamente mais comoveVamos doutor diga logo por qual delas se decidiu

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GALILEUVim até aqui em busca de Rosa MariaA quem não vejo desde que partiuSe ela não está eu volto noutro diaNão a estou vendo parece que saiu

GARÇOMMuito ao contrário, ela está por aqui mesmo

Está lá em cima atendendo a um bom freguêsJá já que ele acaba e gozaE ela vem atender ao marquês

GALILEUNão sou marquês bicha louca

Eu sou um professor arruinadoNão aparece porque sobrou muito poucaA dignidade que eu tenho como letrado

GARÇOMMas veja, é ela quem entra no salãoRosa Maria, meu bem está aí um fã seuDiz que é professor o paspalhão

ROSA MARIAMeu Deus, é ele... É GalileuHá quanto tempo eu não te via

GALILEUSim Rosa Maria sou euHá quanto tempo não te via

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ROSA MARIAVocê foi um ingrato

Me abandonou na vida

GALILEUDepois daquele feio atoO que eu podia, querida

ROSA MARIAComo você está velho GalileuMuito mais velho do que eu

GALILEUE seu grande amor, o VicenteParece que também te deixou

ROSA MARIAEle era um veado indecenteFoi ele que aqui me jogou

GALILEUPobre Rosa Maria eu tenho dóQuanto deves ter sofrido

ROSA MARIANão precisa ter tanta dóVocê está ainda mais fodido

GALILEULembra do pacto com o cãoAinda me resta um terceiro pedido

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ROSA MARIANão faço mais aquilo nãoNisso você não vai ser atendido

GALILEUSe não faz isso faça comigoO que faz sempre por dinheiroDeixe que vá pra cama contigo

E eu te pago em muito bom dinheiro

ROSA MARIACuidado que eu não sou de brincadeiraSe você está duro não vou te dar adoVamos lá, abre e mostra dentro da carteira

Que eu quero ver a cor do seu trocado

GALILEUPois veja, Rosa Maria, aí estáEsta grana será toda suaVamos que eu quero te amar novamente

Quero te ter em meus braços toda nua

Rosa Maria levando Galileu pela mão:

ROSA MARIAFique sabendo velho muxibento

Que pra tirar a roupa inteiraEu cobro taxa de mais cem por centoE mais duzentos para virar a traseira

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GALILEUEu pago tudo, amor da minha almaEu pago tudo e mais o que pedirMas vamos ter uma noite calmaHá tanto o que lembrar, tanto o que sentir

ROSA MARIASe você car a noite e a madrugada

Vou ter que te cobrar mais uma taxaMas vamos logo que eu estou cansadaDe bater papo grátis, só na faixa

CENA 20 FINALMENTE, O TERCEIRO PEDIDOAO DEMO

O último pedido ao diabo.

NARRADORGalileu ali diante de sua Rosa MariaFica sem saber o que fazer com elaSua pica aposentada encolhida mole e fria

Ali na frente, ainda boa de comer e quase belaA puta Rosa Maria relembrou sua tesãoE Galileu diante dela numa tal situaçãoVejam agora meus amigos como foi que tem mA história de Galileu

ROSA MARIAVamos Galileu, seu velho broxaVocê nem parece mais aquele que eu vi

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Você está mole, está um chato de galochaSe não dá no couro, porque é que veio aqui...

GALILEUNão me resta outra coisa senão pedir ajudaEu tenho um terceiro desejo a pedir ao SatanásFique quieta, cale a boca sua velha linguarudaEu invoco neste instante o cão negro,

o mau rapazQue te tome por inteira vindo aqui se apresentarTemos trato tão antigo que talvez não vá lembrar

Rosa tem estertor. Numa gargalhada:

ROSA MARIANão tenha medo Galileu, eu nunca me esqueçoEu lembro de tudo desde o começo da históriaEu tinha medo que não me desses o queeu mereçoPodia ser que tivesses perdido a memória

Ah Galileu, eu te segui pela vida na minhatelevisãoEu vi como te foderam depois que saiu da prisãoEu vi como teus seguidores te chamaramde traidorSó porque você teve medo de enfrentar

o torturadorE agora você me invoca para o último pedidoVamos lá, eu estou aqui a seu inteiro dispor

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GALILEUEu quero, demônio negro e fodido,Apenas um minuto de amor

Luzes. Galileu volta à juventude. O diabo aban-dona Rosa Maria e eles se enlaçam no maisfurioso amor.

CENA 21 ENFIM, O FIM

Cena Final.

NARRADORO Diabo deu até mais do que Galileu pediuO amor durou três dias e três noites não dormiuEra um fole resfolegando num forró desesperadoEra um ai, um ui, um nossa, um suspiro entrecortadoMas até que enm se deu o entrevero por acabadoGalileu e Rosa Maria desceram para o salãoEra noite saturnina de muita animaçãoAs putas e os estudantes em alta comemoração

ESTUDANTEOlha lá minha gente vocês veem como euQuem vem ali com madame depois de umaboa fodaÉ o professor Galileu

Inventor até da rodaComo todos sabem, o ProfessorFoi sempre um bom covarde

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Foi canalha e delatorE muito reacionário

ESTUDANTEEle mesmo quis fazer uma grande revoluçãoMas depois se cagou todo e se vendeu à reaçãoE agora que está velho vive de uma sinecuraPresente desta porca e suja situação

Diante dele qualquer puta é puraO professor é lama, cancro e podridãoEu peço a todos aqui presentesQue ignorem este ser perverso

GALILEUE quem é que provou matematicamente

Que o Sol era o centro do Universo?Fui eu, Galileu da Galileia, porraE quem é que inventou a lunetaPra olhar de perto os astros em seu passeioFui eu que z o lindo, o belo, o horrível e o feioMas fui do meu tempo o mais inteligente

E que se fodam vocês todos e mais toda genteEu acabei de acabar... Eu acabei de acabarÉ chegada a hora, é chegado o diaA alma sai do corpo, a carcaça se esvaziaOh Deus innitoOuça meu alto gritoQuero um lugar no Paraíso

Cessa todo meu juízoEu morro assim aito

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Sem mistério nem avisoEstou na merda estou frito

Mas eu sei que é precisoMe libertar de tal conito

Se vou para o céuDeixo minha alma voarMas se ela vai para o inferno

Então...Então, preciso acender uma velaTambém para SatanásMe dê mais um minuto seu putoDou em troca a luneta o compassoA descoberta do UniversoDou tudo isso por um minuto de amorOi vidaMelhor é saber nadaque saber pela metade

Galileu cai. Estudantes pegam copo, enquantoRosa Maria o abraça.

ESTUDANTESGalileu é bom companheiroGalileu é um sujeito batutaGalileu é um bom companheiroGalileu é um lho da puta

E vão seguindo, até que termine tudo.

Finis

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ndice

Apresentação – José Serra 5Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7

O Mais Menino de Nossos Irmãos MaisVelhos – Oswaldo Mendes 11

Introdução – Chico de Assis 17

O Testamento do Cangaceiro 21As Aventuras de Ripió Lacraia 119

Farsa com Cangaceiro, Truco e Padre 247

Galileu da Galileia 353

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Coleção Aplauso

Série Cinema Brasil

 Alain Fresnot – Um Cineasta sem AlmaAlain Fresnot

 Agostinho Martins Pereira – Um IdealistaMáximo Barro

O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias

Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaerte Cao Hamburger

 Anselmo Duarte – O Homem da Palma de OuroLuiz Carlos Merten

 Antonio Carlos da Fontoura – Espelho da AlmaRodrigo Murat

 Ary Fernandes – Sua Fascinante HistóriaAntônio Leão da Silva Neto

O Bandido da Luz VermelhaRoteiro de Rogério Sganzerla

Batismo de SangueRoteiro de Dani Patarra e Helvécio Ratton

Bens ConfiscadosRoteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaiae Carlos Reichenbach

Braz Chediak – Fragmentos de uma vidaSérgio Rodrigo Reis

Cabra-CegaRoteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi

e Ricardo KauffmanO Caçador de DiamantesRoteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro

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Carlos Coimbra – Um Homem RaroLuiz Carlos Merten

Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra

 A CartomanteRoteiro comentado por seu autor Wagner de Assis

Casa de MeninasRomance original e roteiro de Inácio Araújo

O Caso dos Irmãos NavesRoteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person

O Céu de Suely Roteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias

Chega de SaudadeRoteiro de Luiz Bolognesi

Cidade dos HomensRoteiro de Elena Soárez

Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e JoséRoberto Torero

O Contador de Histórias

Roteiro de Mauricio Arruda, José Roberto Torero, MarianaVeríssimo e Luiz Villaça

Críticas de B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e GenerosidadeOrg. Luiz Antônio Souza Lima de Macedo

Críticas de Edmar Pereira – Razão e SensibilidadeOrg. Luiz Carlos Merten

Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção:Os Anos do São Paulo ShimbunOrg. Alessandro Gamo

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Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Anali- sando Cinema: Críticas de LGOrg. Aurora Miranda Leão

Críticas de Rubem Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak

De PassagemRoteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias

Desmundo

Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina AnzuateguiDjalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale

Dogma Feijoada: O Cinema Negro BrasileiroJeferson De

Dois Córregos

Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da HistóriaRoteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho

Os 12 TrabalhosRoteiro de Cláudio Yosida e Ricardo Elias

EstômagoRoteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade

Fernando Meirelles – Biografia PrematuraMaria do Rosário Caetano

Fim da LinhaRoteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Story-boards de Fábio Moon e Gabriel Bá

Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil 

Luiz Zanin OricchioGeraldo Moraes – O Cineasta do Interior Klecius Henrique

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Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta CinéfiloLuiz Zanin Oricchio

Helvécio Ratton – O Cinema Além das MontanhasPablo Villaça

O Homem que Virou SucoRoteiro de João Batista de Andrade, organização de ArianeAbdallah e Newton Cannito

Ivan Cardoso – O Mestre do Terrir Remier

 João Batista de Andrade – Alguma Solidãoe Muitas HistóriasMaria do Rosário Caetano

 Jorge Bodanzky – O Homem com a CâmeraCarlos Alberto Mattos

 José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina

Marcel Nadale José Carlos Burle – Drama na ChanchadaMáximo Barro

Liberdade de Imprensa – O Cinema de IntervençãoRenata Fortes e João Batista de Andrade

Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema

Alfredo SternheimMaurice Capovilla – A Imagem CríticaCarlos Alberto Mattos

Mauro Alice – Um Operário do FilmeSheila Schvarzman

Miguel Borges – Um Lobisomem Sai da SombraAntônio Leão da Silva Neto

Não por AcasoRoteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski eEugênio Puppo

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Narradores de JavéRoteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu

Onde Andará Dulce VeigaRoteiro de Guilherme de Almeida Prado

Orlando Senna – O Homem da MontanhaHermes Leal

Pedro Jorge de Castro – O Calor da TelaRogério Menezes

Quanto Vale ou É por QuiloRoteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi

Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella

Rodolfo Nanni – Um Realizador PersistenteNeusa Barbosa

Salve Geral Roteiro de Sérgio Rezende e Patrícia AndradeO Signo da CidadeRoteiro de Bruna Lombardi

Ugo Giorgetti – O Sonho IntactoRosane Pavam

Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas

no PlanaltoCarlos Alberto Mattos

Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão

 Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende

Série CinemaBastidores – Um Outro Lado do CinemaElaine Guerini

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Série Ciência & Tecnologia

Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca

 A Hora do Cinema Digital – Democratizaçãoe Globalização do Audiovisual Luiz Gonzaga Assis de Luca

Série Crônicas

Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeçasMaria Lúcia Dahl

Série Dança

Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis

Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de CetimTuna Dwek

 Antenor Pimenta – Circo e PoesiaDanielle Pimenta

Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik

Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como OficioOrg. Carmelinda Guimarães

Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas eUma PaixãoOrg. José Simões de Almeida Júnior

Federico García Lorca – Pequeno Poema Infinito

Roteiro de José Mauro Brant e Antonio Gilberto João Bethencourt – O Locatário da ComédiaRodrigo Murat

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Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace

Luís Alberto de Abreu – Até a Última SílabaAdélia Nicolete

Maurice Vaneau – Artista MúltiploLeila Corrêa

Renata Palottini – Cumprimenta e Pede PassagemRita Ribeiro Guimarães

Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia

O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e PoesiaAlcides Nogueira

O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um tea-tro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantosde Maldoror – De Profundis – A Herança do TeatroIvam Cabral

O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e DonaCoisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma

Noemi MarinhoTeatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano

O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra PrometidaSamir Yazbek

Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadasem CenaAriane Porto

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Série Perfil

 Aracy Balabanian – Nunca Fui AnjoTania Carvalho

 Arllete Montenegro – Fé, Amor e EmoçãoAlfredo Sternheim

 Ary Fontoura – Entre Rios e JaneirosRogério Menezes

Bete Mendes – O Cão e a RosaRogério Menezes

Betty Faria – Rebelde por NaturezaTania Carvalho

Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos

Cecil Thiré – Mestre do seu Ofício

Tania Carvalho

Celso Nunes – Sem AmarrasEliana Rocha

Cleyde Yaconis – Dama DiscretaVilmar Ledesma

David Cardoso – Persistência e Paixão

Alfredo SternheimDenise Del Vecchio – Memórias da LuaTuna Dwek

Elisabeth Hartmann – A Sarah dos PampasReinaldo Braga

Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida

Maria LeticiaEtty Fraser – Virada Pra LuaVilmar Ledesma

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Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memóriae Poética

Reni CardosoFernanda Montenegro – A Defesa do MistérioNeusa Barbosa

Geórgia Gomide – Uma Atriz BrasileiraEliana Pace

Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri

Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do CinemaMaria Angela de Jesus

Ilka Soares – A Bela da TelaWagner de Assis

Irene Ravache – Caçadora de EmoçõesTania Carvalho

Irene Stefania – Arte e PsicoterapiaGermano Pereira

Isabel Ribeiro – IluminadaLuis Sergio Lima e Silva

 Joana Fomm – Momento de DecisãoVilmar Ledesma

 John Herbert – Um Gentleman no Palco e na VidaNeusa Barbosa

 Jonas Bloch – O Ofício de uma PaixãoNilu Lebert

 José Dumont – Do Cordel às TelasKlecius Henrique

Leonardo Villar – Garra e Paixão

Nydia LiciaLília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro

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Lolita Rodrigues – De Carne e OssoEliana Castro

Louise Cardoso – A Mulher do BarbosaVilmar Ledesma

Marcos Caruso – Um ObstinadoEliana Rocha

Maria Adelaide Amaral – A Emoção LibertáriaTuna Dwek

Marisa Prado – A Estrela, O MistérioLuiz Carlos Lisboa

Mauro Mendonça – Em Busca da PerfeiçãoRenato Sérgio

Miriam Mehler – Sensibilidade e PaixãoVilmar Ledesma

Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em FamíliaElaine Guerrini

Nívea Maria – Uma Atriz Real Mauro Alencar e Eliana Pace

Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das OutrasSara Lopes

Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro

Paulo José – Memórias SubstantivasTania Carvalho

Pedro Paulo Rangel – O Samba e o FadoTania Carvalho

Regina Braga – Talento é um Aprendizado

Marta GóesReginaldo Faria – O Solo de Um InquietoWagner de Assis

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Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis

Renato Borghi – Borghi em RevistaÉlcio Nogueira Seixas

Renato Consorte – Contestador por ÍndoleEliana Pace

Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu

Rosamaria Murtinho – Simples MagiaTania Carvalho

Rubens de Falco – Um Internacional Ator BrasileiroNydia Licia

Ruth de Souza – Estrela NegraMaria Ângela de Jesus

Sérgio Hingst – Um Ator de CinemaMáximo Barro

Sérgio Viotti – O Cavalheiro das ArtesNilu Lebert

Silvio de Abreu – Um Homem de SorteVilmar Ledesma

Sônia Guedes – Chá das CincoAdélia Nicolete

Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu BairroSonia Maria Dorce Armonia

Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas

Suely Franco – A Alegria de Representar 

Alfredo SternheimTatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte OutraSérgio Roveri

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Tony Ramos – No Tempo da DelicadezaTania Carvalho

Umberto Magnani – Um Rio de MemóriasAdélia Nicolete

Vera Holtz – O Gosto da VeraAnalu Ribeiro

Vera Nunes – Raro TalentoEliana Pace

Walderez de Barros – Voz e SilênciosRogério Menezes

 Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat

Especial

 Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso

Wagner de AssisBeatriz Segall – Além das AparênciasNilu Lebert

Carlos Zara – Paixão em Quatro AtosTania Carvalho

Cinema da Boca – Dicionário de DiretoresAlfredo Sternheim

Dina Sfat – Retratos de uma GuerreiraAntonio Gilberto

Eva Todor – O Teatro de Minha VidaMaria Angela de Jesus

Eva Wilma – Arte e VidaEdla van Steen

Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda doMaior Sucesso da Televisão BrasileiraÁlvaro Moya

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Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim

Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua VidaWarde Marx

Ney Latorraca – Uma CelebraçãoTania Carvalho

Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia

Rede Manchete – Aconteceu, Virou HistóriaElmo Francfort

Sérgio Cardoso – Imagens de Sua ArteNydia Licia

Tônia Carrero – Movida pela PaixãoTania Carvalho

TV Tupi – Uma Linda História de Amor 

Vida AlvesVictor Berbara – O Homem das Mil FacesTania Carvalho

Walmor Chagas – Ensaio Aberto para Um HomemIndignadoDjalma Limongi Batista

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Formato: 12 x 18 cm

Tipologia: Frutiger

Papel miolo: Offset LD 90 g/m2

Papel capa: Triplex 250 g/m2

Número de páginas: 460

Editoração, CTP, impressão e acabamento:Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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Coleção Aplauso Teatro Brasil

Coordenador Geral Rubens Ewald Filho

Coordenador Operacionale Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana

Projeto Gráfico Carlos CirneEditor Assistente Felipe Goulart

Editoração Selma Brisolla

Fátima Consales

Tratamento de Imagens José Carlos da Silva

Revisão Wilson Ryoji Imoto

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© 2009

Dados Internacionais de Catalogação na PublicaçãoBiblioteca da Imprensa Ofcial do Estado de São Paulo

Assis, ChicoChico de Assis : o teatro de cordel de Chico de Assis / 

Chico de Assis. - São Paulo : Imprensa Oficial do Estado deSão Paulo , 2009.

460p. - (Coleção aplauso. Série teatro Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho).

Conteúdo: O testamento do cangaceiro – Farsa comcangaceiro, truco e padre – Galileu da Galileia.

ISBN 978-85-7060-777-5

1. Crítica teatral 2. Peças de teatro 3. Teatro – História ecrítica I. Ewald Filho, Rubens II.Título. III. Série. 

CDD 809.2

Índice para catálogo sistemático:1. Teatro : Literatura : História e crítica 809.2

Proibida reprodução total ou parcial sem autorizaçãoprévia do autor ou dos editoresLei nº 9.610 de 19/02/1998

Foi feito o depósito legalLei nº 10.994, de 14/12/2004

Impresso no Brasil / 2009

Todos os direitos reservados.

Imprensa Oficial do Estado de São PauloRua da Mooca, 1921 Mooca03103-902 São Paulo SP

www.imprensaoficial.com.br/[email protected] 0800 01234 [email protected]

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Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no sitewww.imprensaoficial.com.br/livraria

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