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CRIME E CASTIGO A polêmica entre Gabriel Tarde e Émile Durkheim RESUMO Em 1895, Gabriel Tarde publicou na Revue Philosophique um artigo em que impõe severas restrições à distinção entre o normal e o patológico concebida por Émile Durkheim. No mesmo volume, Durkheim responde, rebatendo as críticas e esclarecendo sua posição. Os textos que compõem a discussão, fundamentais ao debate contemporâneo sobre pena e criminalidade, são publicados a seguir. SUMMARY In 1895, the Revue Philosophique published an article by Gabriel Tarde in which he criticizes the distinction between the normal and the pathological as proposed by Émile Durkheim. In the same volume, Durkheim writes his response, trying to clarify his position. Both texts, of great importance for contemporary debate concerning penalty and criminality, are published below. KEYWORDS: Gabriel Tarde ; Émile Durkheim; The rules of sociological method; criminality; social heahk PALAVRAS-CHAVE: Gabriel Tarde; Émile Durkheim; As regras do método socioló- gico; criminalidade; saúde social. [1] A seleção e a tradução dos dois artigos apresentados a seguir ocor- reram no âmbito das atividades de produção de material didático para a disciplina Crime e Sociedade da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Ambos foram traduzidos do francês por J. B. Ghoubar. Em 1895 Gabriel Tarde respondeu à "distinção entre o normal e o patológico " concebida por Émile Durkheim no terceiro capítulo de As regras do método sociológico, publicado em forma de artigos no ano anterior. O objeto central de seu texto não era o método formulado para distinguir saúde e doença, mas a sua aplicação à questão criminal ou, mais genericamente, a forma de Durkheim compreender a criminalidade. O mesmo volume da Revue Philosophique que contém o artigo de Tarde traz a réplica de Durkheim, na qual ele reforça ou esclarece sua posição sobre alguns pontos e recua e a matiza em outros 1 .

Crime e Castigo a Polemica Tarde Durkheim-libre

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Artigo sobre as discussões de Gabriel Tarde e Emile Durkheim, com tradução dos textos originais.

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  • CRIME E CASTIGO

    A polmica entre Gabriel Tarde e mile Durkheim

    RESUMOEm 1895, Gabriel Tarde publicou na Revue Philosophique um artigo em

    que impe severas restries distino entre o normal e o patolgico concebida por mile Durkheim. No mesmo volume, Durkheimresponde, rebatendo as crticas e esclarecendo sua posio. Os textos que compem a discusso, fundamentais ao debatecontemporneo sobre pena e criminalidade, so publicados a seguir.

    SUMMARYIn 1895, the Revue Philosophique published an article by Gabriel Tarde

    in which he criticizes the distinction between the normal and the pathological as proposed by mile Durkheim. In the same volume,Durkheim writes his response, trying to clarify his position. Both texts, of great importance for contemporary debate concerningpenalty and criminality, are published below.

    KEYWORDS: Gabriel Tarde ; mile Durkheim; The rules of sociological method;criminality; social heahk

    PALAVRAS-CHAVE: Gabriel Tarde; mile Durkheim; As regras do mtodo sociol-gico; criminalidade; sade social.

    [1] A seleo e a traduo dos doisartigos apresentados a seguir ocor-reram no mbito das atividades deproduo de material didtico paraa disciplina Crime e Sociedade daEscola de Direito de So Paulo daFundao Getlio Vargas. Ambosforam traduzidos do francs por J.B. Ghoubar.

    Em 1895 Gabriel Tarde respondeu "distino entre o normale o patolgico " concebida por mile Durkheim no terceiro captulo de As regrasdo mtodo sociolgico, publicado em forma de artigos no ano anterior. Oobjeto central de seu texto no era o mtodo formulado para distinguir sade edoena, mas a sua aplicao questo criminal ou, mais genericamente, a formade Durkheim compreender a criminalidade. O mesmo volume da RevuePhilosophique que contm o artigo de Tarde traz a rplica de Durkheim, naqual ele refora ou esclarece sua posio sobre alguns pontos e recua e a matiza emoutros1.

  • Os trs textos que compem o debate lanam luz sobre temas da agendacontempornea de socilogos, criminlogos e juristas: a funo da pena, a relaoentre punio e conscincia coletiva e a identidade entre crime e pena. E tambmsobre questes que contribuiriam para a redefinio dos termos do debate sobrepolticas pblicas penais. A percepo do crime como fenmeno normal, dada asua existncia em todos os grupos sociais em todas as pocas, e til, tendo em vistaseu potencial de anunciar as mudanas na moral dominante, constitui umexemplo.

    No pano de fundo da discusso entre Tarde e Durkheim sobre esse conjunto detemas possvel identificar um dissenso mais amplo e talvez mais profundo.Compartilhando interesse pelos aspectos puramente sociais dos fatos humanos, osautores discordam sobre a definio do social. Para Tarde, a generalizao dosfatos sociais resulta das atividades individuais de imitao. Para Durkheim, talfenmeno s pode ser explicado considerando-se o mundo social como entidade suigeneris que, transcendente em relao aos mveis individuais da ao, acaba pormold-la a partir de constries que podem favorecer certos comportamentos oureagir aos comportamentos no conformes ao esperado2.

    Nesse ponto, no deve passar despercebida a sutil mas eloqente diferenanos ttulos dos artigos. O emprego por Tarde do termo "criminalidade" remete oleitor a uma propriedade do sujeito, aproximando o estudo do crime ao estudo daespecificidade do psiquismo do criminoso recusa implcita da autonomia dadimenso social, cujo desdobramento pode ser observado no andamento da argu-mentao do autor. Durkheim faz questo de repetir o ttulo escolhido por seucontendor, trocando o termo "criminalidade" por "crime" e assim reconduzindo oobjeto do mbito da conscincia para o vis analtico do que antes existe fora dela:no limite, o crime define-se materialmente como conduta que implica punio,varivel portanto com as pocas e os lugares.

    A polmica assimilao entre o normal e o geral visa justamente afastarqualquer derivao moral ou finalista das consideraes que a cincia faz em nomeprprio. Mas essa operao desagrada a Tarde, pois traz o risco de que a indevidaconcesso neutralidade implique escolha dissimulada na legitimao utilitria

    do crime.A trajetria intelectual dos autores oferece outros elementos para explorar os

    termos do debate apresentado a seguir. No momento da publicao da polmica,Gabriel Tarde (1843-1904), que ganhara notoriedade com a publicao de Loisde l ' imitation e Philosophie pnale, um autor mais conhecido na Frana queEmile Durkheim (1858-1917). Sua viso da sociedade como conjunto deindivduos que se imitam segue o modelo da hipnose e do sonambulismo, ento emvoga na Europa: no ncleo da vida social h um processo recproco demagnetizaes em cadeia, sobrando pouco espao para a ao refletida (aspectoque no parece ser levado em conta por aqueles que, como Raymond Boudon,reivindicam sua obra como precursora do individualismo metodolgico ealternativa ao holismo durkheimiano). Assim, a explicao de fenmenos sociaiscomo a criminalidade no estaria na raa ou na hereditanedade pontoconvergente no debate , mas nessa interpsicologia, para empregar um termoseu, ou na psicologia coletiva em que se do os processos de repetio

    [2] Ver nesse sentido Steiner, Philippe.La sociologie de Durkheim. 3 ed.Paris: La Dcouverte, 2000, pp. 30-31;Digneffe, Franoise. "Durkheim et lesdbats sur le crime et la peine". In:Histoire des savoirs sur te crime et lapeine vol. II: Perspectives crimino-logiques. Ottawa: Les Presses deL'Universit d'Ottawa, 1998, p. 390.

    [3] Ver a esse respeito Mucchielli,Laurent. Mythes et histoire dessciences humaines. Paris: La D-couverte, 2004.

  • especificamente humanos. Ao lado de trabalhos desenvolvidos sobre essa baseterica, Tarde dedica parte relevante de sua atividade intelectual a discutir osresultados das pesquisas realizadas pelos criminlogos italianos, especialmenteCesare Lombroso e Enrico Ferri. Nesses estudos, em que o crime e o criminosoconstituem o objeto central, Tarde busca afastar as causas essencialmentebiolgicas na explicao do delito, apontando os limites da relevncia prtica deconceitos como o "tipo criminal" lombrosiano.

    Enfim, com a publicao das Regras do mtodo sociolgico, que doorigem ao debate, que Durkheim procura reverter a desvantagem estabilizandoa concepo do objeto e do mtodo da sociologia. Se de imediato o livro no tem arecepo esperada, nos anos seguintes a definio clara de um protocolo depesquisa e a constituio de um grupo de colaboradores zelosos em lev-lo adiantesero decisivas para a progressiva supremacia da proposta. No livro h uma brevereferncia ao pensamento de Tarde, em que o fenmeno da imitao tido comoconseqncia e no causa da generalidade do fato social. Tambm a rplica deDurkheim algo discreta, como se ele se recusasse a investir o debatedor decompetncia especfica na matria. Nesse sentido, vale sublinhar que o tema dacriminalidade (ou do crime) no central para Durkheim como para Tarde, masconquist-lo como pertencente ao domnio ontolgico de operao da sociologia fundamental para garantir o imprio exclusivo de seu ponto de vista, que deveriacoordenar toda disciplina que se voltasse explicao do que humano nohomem4.

    Com a publicao do debate o leitor tem acesso ao momento em que o jogo noest decidido, podendo acompanhar algumas estratgias de disputa no campointelectual. (Fernando Antnio Pinheiro Filho e Mara RochaMachado)

    [4] A centralidade da questo penalem Tarde decorre ainda do desempe-nho do cargo de diretor da estatsticajudiciria do Ministrio da Justia daFrana de 1894 a 1904. Nesse perodo,Tarde coloca disposio deDurkheim os dados necessrios pesquisa publicada em Le suicide(1897) (cf. Steiner, op. cit., p. 16).

  • CRIMINALIDADE E SADE SOCIAL

    GABRIEL TARDE

    Em suas Regras do mtodo sociolgico, publicadas sob aforma de artigos na Revue Philosophique, o senhor Durkheim tentaconstruir no ar, creio eu uma espcie de sociologia em si e por si, aqual, destituda de toda psicologia e de toda biologia igualmente, teriadificuldade de se manter em p sem o notvel talento do construtor. certamente uma sociologia autnoma, mas que talvez compre umpouco caro sua independncia: ao preo de sua realidade. No pre-tendo aqui criticar esse sistema, mas uma vez que o autor fez algumasaplicaes de seu ponto de vista, e deduzidas muito logicamente,vamos nos deter em uma delas, que particularmente nos impressionoue que nos permitir julgar o princpio do qual deriva. Trata-se de seumodo, indubitavelmente novo, de encarar a criminalidade, o qualconsiste em afirmar que na vida social o crime um fenmenototalmente normal, de modo algum mrbido, ou seja, "que no apenas[...] um fenmeno inevitvel, ainda que lastimvel, devido incorrigvel maldade dos homens, [mas] um fator da sade pblica,uma parte integrante de toda sociedade sadia", mesmo quando est emvia de crescimento, como atualmente, tendo quase triplicado nosltimos cinqenta anos na Frana [pp. 67-68]1.

    Temos de conceder ao distinto socilogo que essa concepomuito se distancia dos pensamentos "do vulgo", e ele mesmo no nosdissimula que no deixou de ficar um tanto "desconcertado" quandofoi conduzido a essa conseqncia lgica mas "surpreendente" de suaregra geral sobre a distino entre o normal e o patolgico. Contudo,longe de ver nisso algum motivo para pr em dvida a verdadeabsoluta da regra em questo, ele apelou para toda a sua intrepidez delgico e resolutamente abraou esse corolrio, o qual lhe pareceu atmesmo ilustrar e confirmar o alcance de seu teorema, mostrando "sobque luz nova os fenmenos mais essenciais aparecem quando sotratados metodicamente" [p. 66].

    Mas no to nova quanto se possa crer. H uns doze anosesforcei-me em refutar um paradoxo muito semelhante, ou ao menospouco diferente, do escritor Poletti. E certo que ele no concluaexpressamente, como Durkheim, que "o crime necessrio", que"est ligado s condies fundamentais de toda vida social, e, porisso mesmo, til" [p. 71], mas pretendia que, tendo a atividadecriminal duplicado ou triplicado enquanto a prosperidadeindustrial e financeira quadruplicou ou quintuplicou, o queimporta que esse crescimento absoluto da criminalidade eqivale sua diminuio relativa2, e no fundo de seu pensamento l-se

    [1] Nas citaes d'As regras domtodo sociolgico recorreu-se traduo de Paulo Neves revista porEduardo Brando (So Paulo: Mar-tins Fontes, 1999). Os respectivosnmeros de pginas so indicadosentre colchetes [N.E.].

    [2] Compare-se isso com o que es-creve o senhor Durkheim: "Se aomenos, medida que as sociedadespassam dos tipos inferiores aosmais elevados, o ndice de crimi-nalidade [...] tendesse a diminuir,poder-se-ia supor que, emborapermanea um fenmeno normal, ocrime tende, no entanto, a perderesse carter. Mas no temos razonenhuma que nos permita acreditarna realidade dessa regresso. Muitosfatos pareceriam antes demonstrar aexistncia de um movimento nosentido inverso. Desde o comeo dosculo, a estatstica nos fornece omeio de acompanhar a marcha dacriminalidade; ora, por toda parte elaaumentou. Na Frana, o aumento de cerca de 300%. No h portantofenmeno que apresente da maneiramais irrecusvel todos os sintomasda normalidade, j que ele se mostra

  • claramente que, ainda segundo ele, a coincidncia atual dessas duasprogresses, a malfazeja e a laboriosa, no acidental e deplorvel,mas inevitvel, e denota que o crime e o trabalho, o crime e o gnio,buscam sua vitalidade nas mesmas fontes. Ora, a idia de Poletti nologrou sucesso nem em sua ptria nem fora dela, o que no impedeque de fato uma boa parte do pblico desse pblicoescandalizado por ele e, creio eu, pelo senhor Durkheim do mesmomodo no esteja inconfessadamente imbudo de uma persuasosurda semelhante dele e ainda mais perigosa, porque vaga einconsciente. Esses dois pensadores tiveram o mrito de expressarcom muita originalidade uma impresso bastante banal, que setraduz todos os dias pela crescente indulgncia de juzes e jurados epela distenso das fibras da indignao e do desprezo pblicos emface de certas afrontas. Se esse enfraquecimento da represso penal esocial s tivesse como causa um crescente sentimento dacumplicidade de tantos para com o crime de um s, eu me sentiriaconstrangido em combat-lo; mas ele se funda tambm na idia, cadavez mais aceita, de que o crime contemporneo est ligado civilizao contempornea como o avesso ao direito, sendo-lhe"parte integrante". Receio ento que aqui o senhor Durkheim noesteja de acordo com o senso comum ou melhor, vulgar todesprezado por ele. Seja como for, ele nos prestou o grande servio denos obrigar a um franco posicionamento diante deste problemacapital: verdade que o crime seja algo de bom, como maldade, e que suaextirpao no seja mais desejvel que possvel? A dvida cabvelaqui, e faz-se necessrio um exame rigoroso, uma espcie de exame deconscincia coletivo.

    Bem sei que nosso autor se esfora em atenuar ou at mesmosuprimir o interesse prtico da questo. A necessidade e a legitimidadeda pena, segundo ele, se conciliam perfeio com a utilidade e anecessidade do crime. "Se normal diz ele que em toda sociedadehaja crimes, no menos normal que eles sejam punidos". Masconfesso que nesse ponto no mais reconheo a habilidade de suadialtica ordinria. Pois certamente as razes que ele alega parajustificar essa identidade de contrrios pareceriam fracas ao prprioHegel. Notadamente, ele nos diz que os sentimentos de averso e "dedio" inspirados pelo crime so fundados porque este somente salutar a despeito de si. Mas desde quando lcito odiar um benfeitormesmo que involuntrio? Admito que deveramos ainda mais reco-nhecimento aos assaltantes e assassinos se eles trabalhassemcientemente e de caso pensado cumprissem as belas funes que lhesso dadas: entreter-nos higienicamente em boa sade nacional,fornecer-nos caracteres inovadores e empreendedores. Mas enfim, seest provado que eles nos prestam tais servios, mesmo a contragosto,eu me pergunto com que direito poderemos no s lhes infligir umcastigo como lhes recusar um agradecimento... "Objeo pueril", v l.

    intimamente ligado s condies detoda vida coletiva" [p. 67]. V-se queno se trata somente da ocorrnciada criminalidade, mas tambm pelo menos em certa medida daprpria progresso da criminalidade,que algo essencialmente normal aosolhos do senhor Durkheim e con-forme a seus princpios.

  • Mas o que lhe responder? No basta comparar a penalidade com asfunes de excreo dos corpos viventes, e mesmo essa comparao particularmente perigosa. Do ponto de vista do sbio professor deBordeaux, antes com as funes de secreo que se deve comparar apena, pois o que excretado o intil ou o nocivo, nunca o til, salvono caso de doena grave... "Tambm a dor acrescenta ele nada temde desejvel; o indivduo a odeia assim como a sociedade odeia ocrime, e no obstante ela tem a ver com a fisiologia normal" [nota 13, p.160]. Ora, no, o indivduo no tem razo em odiar a dor nos casos alis muito raros e talvez imaginrios em que ela est efetivamenteassociada produo de um grande bem, e se estivesse provado que oxito de uma operao cirrgica ou um parto seria impossvel sem umsuficiente acompanhamento de dores atrozes constituiria um absurdoreprimir esses sofrimentos com o uso de anestsicos. A sociedade uneento a loucura ingratido ao reprimir o crime se em parte a ele quedeve suas invenes e descobertas e se graas a ele, ainda, escapa aoperigo de rigores, de ferocidades extravagantes, como veremos maisadiante. Ocorre-me no entanto que os egpcios odiavam e por vezesmaltratavam os embalsamadores de cadveres, acreditando que isso eraeminentemente til; mas ningum, que eu saiba, ter pensado que elesdessem mostra de lgica com isso...

    Poder-se-ia acaso alegar restringindo a tese para salv-la quea propriedade de ser socialmente higinico e normal talvez no caiba aocrime isoladamente, mas ao simetricamente imortal e universal casal docrime e da pena? Mas precisamente o crime no processado e nopunido que desempenha um papel historicamente prestigioso e im-portante na formao e evoluo dos povos; desse crime crimetriunfante, sepultado com honras reais e ditatoriais, erigido emesttuas nas praas pblicas, imortalizado que talvez fosse lcitoafirmar, com acabrunhantes aparncias de razo, que esse flagelo umaguilho, esse veneno um necessrio e indispensvel fermento do pro-gresso histrico. Sem ele, com efeito, no h mais anexao violenta dovizinho, no h mais opresso cruel do inferior e do vencido, e assim,por falta de conquista e de escravido, no h mais imprio romano,no h mais cosmopolitismo e democracia modernas, no h maisascenso sangrenta rumo Justia e Paz. Eis o que se poderia dizer de resto enganando-se, desconhecendo os verdadeiros agentes do aper-feioamento humano, que no so os conquistadores, mas osapstolos, no os desbravadores de provncias, mas os descobridoresde verdades, os inventores de utilidades, os entesouradores de belezasartsticas, os iluminadores de idias percebidas em algum lugar edepois irradiadas por toda parte pela fora do exemplo e no pela forada espada , eis o que se poderia dizer, apesar de tudo, do crimeglorioso, do crime que anda de cabea erguida, como a serpente bblica,audacioso sedutor e corruptor da humanidade e tambm de seushistoriadores. Mas o crime baixo e rasteiro, odiado ou desprezado, o

  • nico de que se ocupa o senhor Durkheim, como possvel julg-lo tils sociedades onde ele se esgueira como um intruso, operrio do vcio,parasita do trabalho, implacvel destruidor de colheitas, e onde noproduz nada que no a contaminao de seu mau exemplo? Para queele serve seno para ser perseguido pela polcia judiciria, que s servemesmo para esse esporte?

    Para que serve ele? O senhor Durkheim nos elucidar. E, de fato,no o adivinharamos facilmente. Suponham o caso impossvel deuma sociedade em que no mais se cometa um s homicdio, um sroubo, nem o menor atentado contra os bons costumes. Isso s poderhaver, diz-nos ele, por um excesso de unanimidade e intensidade daconscincia pblica na reprovao desses atos; e a conseqncia deplo-rvel ser que, tomando-se mais exigente em razo mesmo das satis-faes recebidas, essa conscincia coletiva se por a incriminar com umrigor exagerado os mais leves atos de violncia, de indelicadeza ou deimoralidade; ser como num claustro, onde, por falta de pecadosmortais, -se condenado ao cilcio e ao jejum pelos mais venais dospecadilhos.

    Por exemplo, os contratos indelicados ou indelicadamente executados, queimplicam apenas uma reprovao pblica ou reparaes civis, se tornarocrimes [...]. Portanto, se essa sociedade estiver armada do poder de julgar e depunir, qualificar esses atos como criminosos e os tratar como tais [p. 70]

    Na verdade, no parece que o perigo assinalado pelo nosso mora-lista tenha um acentuado carter de atualidade, e para quem conhece oavano desastroso da indulgncia a mais abusiva por parte dos juzesassim como dos jurados, levados a aplicar penas correcionais aos crimes,a civilizar os delitos e a absolver o mais possvel, o perigo do momentopresente certamente no o excesso de escrpulos da conscincia p-blica intimidada, nem a tendncia irresistvel a penas despro-porcionais para as futilidades. Ressalto que, enquanto em taistribunais locais certos roubos so hoje punidos, aps a aplicao daLei Brenger, com dezesseis francos de multa, h 150 anos os mesmosroubos teriam valido aos seus autores ser levados forca pelo carrascodessas mesmas localidades em virtude de uma sentena de um tribunalque julgava sem apelao e que no dia seguinte, bem verdade, teriamandado rezar uma missa para o descanso de suas almas. Se fosseabsolutamente necessrio escolher entre essas duas exacerbaes,admito que ainda preferiria a nossa. Mas assim to evidente que, nocaso de no termos mais crimes graves a combater, retornaramospouco a pouco ferocidade de outrora? Acredito antes, e me parecemais verossmil pensar que, tendo perdido o hbito de punir, ns nemmesmo j nos daramos ao trabalho de castigar conforme as leis umgrave delito cometido acidentalmente. Pura e simplesmentebaniramos o delinqente excepcional, assim como nos limitamos a

  • expulsar do crculo de jogadores honestos um escroque surpreendidoem flagrante delito. Com mais razo, permaneceramos judicialmenteindulgentes com as pequenas faltas no prejudiciais sociedade.

    Somente o tribunal da opinio que se tornaria rigoroso, exigente,difcil. E onde residiria o mal? O erro, em todo caso, estaria em suporque por no mais haver o crime de adultrio, por exemplo, os salesseriam tomados por um falso pudor ridculo, contrrio a todaliberdade de conduta e de expresso nas relaes entre os sexos. Longedisso, nos meios onde essas relaes so mais seguras que elas somais livres, na Amrica ou na Inglaterra, e se a pudiccia da linguagemfosse alguma vez exilada da Terra, no salo de uma mulher galante dereputao comprometida que ela se refugiaria. O mesmo se daria nomundo dos negcios se no mais se praticasse nenhum estelionato,nenhum abuso de confiana: ficaramos cada vez menos desconfiados,cada vez menos inclinados a ver fraude nas especulaes um poucoarriscadas. Inversamente, l onde um ramo de delito cresce com umarapidez e um vigor alarmantes sucede amide que a conscincia daspessoas honestas, em vez de continuar a se enfraquecer, acaba por seobstinar e reagir com um rigor excessivo contra essa invaso criminal tudo justamente o oposto das previses do senhor Durkheim.

    Um outro erro muito mais grave pensar que a produo das varie-dades criminais da natureza humana est indissociavelmente ligada produo das variedades do gnio e que, por conseqncia, seextinguirmos o crime abateremos com o mesmo golpe o gnio, doistipos de originalidades individuais igualmente distantes do "tipocoletivo", que dessa forma se tornaria uma regra sem exceo. E nesseponto tenho grande dificuldade em conciliar o pensamento do autorconsigo mesmo. Para ele, como veremos a seguir, no h outra pedra detoque da normalidade de um fenmeno seno sua generalidade; paraele, o tipo mdio, o tipo coletivo, o tipo normal; logo, tudo o que sedesvia disso uma anomalia. Em seguida, sua proposio volta aafirmar que a criminalidade algo normal porque favorece a ecloso deanomalias, e que sua supresso seria uma anomalia porque teria comoefeito o reino absoluto do estado normal... Mas deixemos de lado essacontradio. E verdade, sim ou no, que o crime e o gnio sejamsolidrios? Talvez no haja problema moral mais inquietante e quesuscite tantas questes candentes. Tambm j foi alegada uma solida-riedade da mesma ordem ainda que muito mais especiosa e de restojamais demonstrada entre a loucura e o gnio. Mas seja l em quesentido essa questo seja esteja definitivamente resolvida pelosalienistas, pouco importa, afinal de contas, conscincia moral. J coma primeira no assim. Essa questo inquieta a razo prtica no maisalto grau, mais alto ainda que uma outra antinomia, no obstantemuito temvel, que surge diante dela quando um apologista da guerra,como o marechal-de-campo [Helmuth] Von Moltke ou o doutor[Gustave] LeBon recentemente, pretende demonstrar que no somente

  • impossvel mas tambm indesejvel suprimir a guerra, que a guerra, elatambm, " parte integrante da sade social" e que sem sua cota peri-dica de massacres, pilhagens e abominaes belicosas a humanidadeentraria em decomposio. Mas passemos por alto tambm essaeficcia da guerra: ela o homicdio e o roubo por consentimentomtuo. Contudo, se o homicdio e o roubo unilaterais, e alm disso aviolao, so igualmente teis, teis ao vo livre do esprito inventor,e se a teoria do bloco tambm admissvel aqui, do mesmo modo comofoi invocada para absolver os massacres de setembro [de 1792],inseparveis, diz-se, das glrias revolucionrias, ento o que quesubsiste, eu vos pergunto, da velha distino entre o bem e o mal?

    Ora, se para resolver a questo contamos com a estatstica comofonte de informaes essencialmente "objetiva", iludimo-nos. Os or-culos dessa sibila so freqentemente ambguos e requerem inter-pretao. Seus mapas, por exemplo, bem nos mostram que as regiesmais ricas, mais civilizadas, mais letradas so geralmente (no sempre)as mais fecundas em crimes assim como em casos de loucura. Seusgrficos e suas tabelas parecem s vezes testemunhar no mesmo sen-tido. Mas h excees significativas: a de Genebra, onde acriminalidade, segundo a monografia do senhor Cunoud, diminui medida que a cidade se civiliza; a de Londres, mais notvel ainda, cujondice de criminalidade duas vezes menor que o das cidades dointerior ingls e at inferior, o que extraordinrio, ao ndice das reasrurais do pas. Colhi esse curioso detalhe num estudo recente do senhorJoly, no qual est demonstrado ainda que na Inglaterra o crime, sobtodas as suas formas, sobretudo entre as crianas, diminuiu de 10% a12% em dez anos. Pobre Inglaterra! Est a caminho de se tornar bas-tante enferma! A bem dizer, as estatsticas oficiais ainda funcionammuito imperfeitamente e h muito pouco tempo para oferecer ele-mentos decisivos ao debate que nos ocupa. Elas no permitem decidirse o avano da criminalidade quase em toda parte atualmente est associado s energias duradouras e essenciais de nossa civilizaoe no somente a seus vcios acidentais e passageiros, insuficincia deseu esforo moral em relao a seu esforo industrial e cientfico.

    Eu confiaria mais nas estatsticas especiais, circunscritas,produzidas por particulares para apreender de perto as causas do crimee as causas do gnio separadamente. As pesquisas do primeiro tipo sofamiliares aos criminalistas. Ora, toda vez que um deles se ps apesquisar os antecedentes hereditrios e o modo de educao de cemcriminosos tomados ao acaso encontrou a muito mais devassido epreguia, alcoolismo e loucura, bem como ignorncia, do que entre osascendentes e os educadores de cem pessoas honestas pertencentes smesmas raas e s mesmas classes. Mas mais gnio? Que eu saiba, no.Por outro lado, o senhor Candolle pesquisou longa, paciente eengenhosamente em quais condies de meio familiar e social favorecido o aparecimento do gnio, especialmente o gnio cientfico,

  • e constatou que entre as influncias favorveis deveria ser consideradaem primeiro lugar aquela de um ambiente domstico essencialmentemoral, puro de todo delito e de todo vcio, vinculado hereditariamente honestidade tradicional. Em suma, o minimum ou sobretudo ondice zero de criminalidade que lhe pareceu associado ao mximo degenialidade cientfica. Resulta da que no h a menor relao entre ascausas do crime e as causas do gnio, e por mais que tenham sidojustapostas durante sculos permaneceram no menos estranhas ehostis umas s outras. Ressalte-se que o liame que se pretendeuestabelecer entre elas parece mais insustentvel medida que, com osavanos da reincidncia, a criminalidade europia de nossos dias setorna mais profissional profisso que certamente no tem nada detil s outras e se concentra nos meios ptridos, anti-sociais,imprprios a toda obra s.

    E, de fato, raciocinemos um pouco. Em qu, eu vos pergunto, amaior segurana proporcionada s vidas e s propriedades pelasupresso completa dos assassinos e ladres seria de natureza aobstruir o trabalho genial dos inventores? Em qu a eliminao detodo esprito de chantagem e de especulao fraudulenta no jornalismoe nos negcios constituiria obstculo independncia, pujana, livre diversidade da imprensa, criao e ao sucesso de empre-endimentos industriais viveis e fecundos? Nessa hiptese, por certono teramos visto se constituir, com o sucesso que conhecemos, asociedade para a abertura do Canal do Panam. Em compensao,porm, sem o "panamismo" e sua catstrofe quantas sociedades teis eprsperas seriam constitudas mas que no ousam nascer aps odescrdito lanado sobre todos os negcios, bons ou maus?!

    Alm do mal direto, efetivo, gerado pelo crime, h que lhe imputarno somente o mal indireto e visvel das prises a construir e a manter,da justia criminal a fazer funcionar, mas tambm, e sobretudo, outrostantos males indiretos e que no so visveis. Em primeiro lugar, o malda insegurana pblica, o mal da desconfiana que nos tolhe de valer-nos das coisas ou das pessoas de que desconfiamos, o tempo e odinheiro perdidos a nos prevenir com revlveres, fechaduras, cofres-fortes etc. contra a eventualidade de assassinatos e roubos ou contra apossibilidade de atos imorais, por uma excessiva e incmoda reservanas relaes entre os sexos. Em seguida, o mal do exemplo, a perversodo esprito pblico pelas manifestaes anarquistas especialmente, oapequenamento do respeito pela vida humana e a diminuio daaustera probidade entre pessoas honestas que se tornam um poucomenos honestas aps a leitura da crnica policial, porque comparadosaos feitos monstruosos os seus prprios pecados adquirem a cor depecadilhos inocentes.

    Suponham, ainda, um Estado livre de todas as suas famlias demalfeitores, de todos os seus vagabundos, de todos os seus nefitos eseminaristas do delito. Que no me digam que isso impossvel, pois

  • o mesmo poderia ser dito quanto escravido na Antigidade emesmo agora quanto misria e mendicncia nas ruas. Tampoucome digam que para tanto seria necessrio um nivelamento completodos espritos e coraes, unidos em um "sentimento coletivo" muitomais intenso e muito mais unnime que o de agora, de modo que aoriginalidade individual seria mortalmente lesada. Bastaria, creio eu,uma reforma radical, enrgica, de nossos sistemas judicirio epenitencirio. Seja l como for, observamos que o crime a violaono de todas as regras, mas somente das regras mais elementares emenos discutveis da moral. Do fato de que todos estivessem de acordoem combater energicamente e punir severamente essas violaes no seseguiria absolutamente que a rica florescncia das diversidadesindividuais seria ceifada ou podada, nem mesmo que se reduziria aliberdade de pensar teoricamente no importa o qu. possvel, naverdade, que no tocante liberdade de conduta a conscincia pblicase tornasse mais exigente, que o sentimento de justia se desenvolvessea tal ponto que as reformas sociais mais ousadas se realizariam semderramamento de sangue, sob a presso da moralidade generalizada.Na falta de crimes passionais, nossa literatura sem dvida perderiauma de suas mais habituais fontes de inspirao; sem as bebedeiras,igualmente, jamais teriam existido as canes bquicas. Emcompensao, no fazemos idia dos tantos tipos de beleza artstica eliterria de que nos privam nossos crimes e nossos delitos, nossasimoralidades e nossos vcios; no imaginamos estas flores delicadas,estas novas formas de arte, mais puras e mais requintadas, que nossogosto no deixaria de criar para nos deleitar em lugar das nossasestticas putrefatas.

    Objetar-me-o que j argumentei em demasia, que me equivoco eminsistir. No creio. Convm refutar um paradoxo que no passa daexpresso viva de um preconceito surdo e inconfessado, negado at, dosenso comum. O senso comum dissimula enormes desatinos nascidosde confuses de idias, de que no tem conscincia alguma, que lhecausam horror quando lhe so mostrados mas que lhe fazem agir. Mas mais interessante nos perguntarmos agora como um socilogo comoo senhor Durkheim pde ser conduzido proposio que eu combato o mais logicamente possvel, dada a sua maneira de conceber adistino do normal e do patolgico no mundo social. Mesmo nomundo da vida a definio de doena e de sade de uma dificuldadeatroz, e nosso sbio consagrou as pginas mais interessantes de seulivro a remoer essa delicada questo. Ele mostra, ou cr mostrar, que ocarter distintivo do estado mrbido no consiste nem na dor que oacompanha, e que por vezes tambm acompanha o estado so, nem naabreviao da vida, pois h doenas compatveis com a longevidade eh funes bastante normais, tais como o parto, que freqentementeso mortais, nem enfim na oposio a um certo ideal especfico ousocial que suposto, uma vez que essa hiptese finalista totalmente

  • subjetiva e, portanto, nada cientfica. Uma vez eliminados todos essescaracteres, no resta seno um, que aquele inteiramente objetivo: onormal, que o geral.

    Chamaremos normais os fatos que apresentam as formas mais gerais edaremos aos outros o nome de mrbidos ou patolgicos. [...] o tipo normal seconfunde com o tipo mdio e todo desvio em relao a esse padro de sade umfenmeno mrbido [p. 58]

    Ora, jamais se viu em lugar algum uma sociedade sem um certocontingente regular de crimes; logo, como no h nada de mais geral,nada h de mais normal.

    Tal princpio j est bastante comprometido por essa conse-qncia, e h outras tambm estranhas. Todos os seres so defeituosos,imperfeitos sob algum aspecto; logo, nada mais normal que aimperfeio e a defectibilidade. Todos os animais ficam doentes algumdia, e no ser seno por doena que morrero; logo, nada mais normalque a doena... Cournot, em poucas linhas, fez justia ao erro deconfundir o tipo normal com o tipo mdio. Suponham uma horda,uma espcie animal, e as h, cujo tempo de vida mdio seja inferior idade adulta, de modo que se todos os indivduos cumprirem essamdia de durao de vida, no apresentando nenhuma anomalia,nenhum deles se reproduzir, e isso ser normal. Tomem numa multi-do a inteligncia mdia, a instruo mdia, a moralidade mdia. A quenvel a normalidade ser rebaixada! No comeo deste sculo, a instru-o mdia consistia em no saber ler nem escrever. A cultura superiorainda consiste numa anomalia, pois o que h de menos generalizadoe menos difundido. Certamente, a ignorncia (nesse sentido) e a imo-ralidade so coisas mais ss e mais normais que a cincia e a virtude.

    Ao estudar esse tema, o senhor Durkheim omitiu as distinesnecessrias. Diz ele que h sofrimentos saudveis. Sim, na medida emque so teis psicologicamente, teis ao cumprimento de funes vi-tais tais como a regenerao ou a reparao dos tecidos. Mas psico-logicamente so nocivos quando no servem para poupar maioressofrimentos ao indivduo3. Tambm o esforo psicolgico e socialtende a diminu-los incessantemente, a lhes suprimir com freqncia, atorn-los cada vez menos necessrios e salutares, graas a invenescomo o emprego do clorofrmio ou da morfina. O que especi-ficamente normal pode ser individualmente patolgico. O parto,quando causa a morte do indivduo ou lhe abrevia a vida, um mal euma doena para ele mas um bem para a espcie, que sem esse acidentemortal morreria ela prpria.

    Admira-me que o senhor Durkheim no tenha pensado aqui nafamosa luta pela vida. A patologia no poderia ser definida como aqui-lo que diminui as chances de triunfo do indivduo ou da espcie,distingamos bem nesse grande combate dos seres vivos? Ora, desse

    [3] Vitalmente como socialmente hmales salutares, que impedem malesmaiores: o caso da velhice, da mens-truao, dos impostos etc. Porquemais vale envelhecer que morrer epagar imposto que no ser protegidopela fora pblica. tambm o casoda vacina, pequena doena que evitauma bem maior: a varola.

  • ponto de vista o sofrimento apareceria como um mal ou uma anomaliaque, ao se prolongar, fatalmente acarretaria a derrota do indivduo oumesmo da espcie. H doenas com as quais se pode viver fora docombate, mas no h doenas que permitam venc-lo. Desse ponto devista tambm se demonstra a utilidade de uma noo rejeitada comextrema desenvoltura pelo nosso autor: a de adaptao. Pode-se, comefeito, definir o normal como aquilo que adaptado ao triunfo na luta.Acrescentemos que considerando a aliana pela vida, assim como aaliana pela luta, obtemos facilmente uma definio aceitvel: o anor-mal no aquilo que torna um ser imprprio ou menos prprio aintegrar uma associao e a fortalecer seus laos?

    A teoria de Pasteur sobre a origem das doenas mais graves, maistemveis, mais dignas desse nome, enseja uma concepo da doenaque se pode considerar derivada de um caso singular e original dastruggle for life e sobre a qual o senhor Durkheim tambm nada diz: adoena, se generalizarmos esta explicao microbiana, apresenta-se ans como o combate entre um exrcito de clulas e um exrcito demicrbios no qual nosso organismo ao mesmo tempo o campo debatalha e aquilo que est em jogo. Esses dois exrcitos so compostos,separadamente, de combatentes saudveis at o momento em que seexterminam, mas a relao entre eles mrbida. Nenhuma noo dedoena se aplica criminalidade melhor do que essa. A criminalidade o conflito entre a grande legio das pessoas honestas e o pequenobatalho dos criminosos, e tanto estes como aquelas agem normalmentesegundo o objetivo que cada qual persegue. Como esses objetivos socontrrios, a resistncia que se opem mutuamente sentida por uns epor outros como um estado patolgico que, por ser permanente euniversal, s pode ser doloroso.

    O parti pris do senhor Durkheim contra a idia de finalidade, mesmoem cincia social, impediu-o de discernir a verdade em meio sobscuridades um pouco artificiais da questo que ele suscita. Comoconceber uma idia minimamente clara sobre o normal e o anormalobstinando-se em proscrever aquilo que aqui deve vir em primeiroplano: as consideraes de ordem teleolgica e tambm de ordem lgica?Como, quer dizer, sem considerar anormal ou mrbido antes de tudoaquilo que perturba a harmonia sistemtica do ser, do ser orgnico, doser mental ou do ser social, aquilo que impede que a comunho deobjetivos e de julgamentos seja suficiente para a realizao do fimdominante? Isso tanto verdade que, malgrado seu desprezo pelo fina-lismo, que vai at mesmo faz-lo rejeitar a prpria idia de utilidade, odistinto professor o mobiliza ele mesmo sem querer. Ele entendeu queno basta definir a normalidade pela generalidade se no se remonta scausas desta ltima para poder-se distinguir as diversas generalidades,aceitar umas e rejeitar outras e no admitir certas conseqncias umtanto incmodas de seu prprio princpio. Ele tambm buscou ascausas e acreditou t-las encontrado naquilo que ele denomina "as

  • condies de existncia". Quando as condies de existncia de umasociedade vm a mudar, o que at ento era considerado normal asprticas religiosas ou o carter individual da propriedade, por exemplo torna-se anormal, a despeito de sua generalidade persistente. E eisque o nosso autor, algumas pginas aps ter escrito que o avano dacriminalidade em nossa poca algo normal, vem a escrever [nota 8, p.159] que a diminuio do sentimento religioso tambm o , de talforma que um despertar desse sentimento, a mais universal das mani-festaes sociais, seria uma anomalia, ao passo que o avano de nossoscrimes no! Nosso estado econmico atual, diz ele ainda, "com a au-sncia de organizao que lhe caracterstica", na verdade universal,mas no menos mrbido se se constatar que est ligado "velhaestrutura social segmentar" e no nova estrutura que tende a lhesubstituir [pp. 63-64]. O que so porm as "condies de existncia", osenhor Durkheim no define. Definamos pois. So as idias e ascrenas que so difundidas, os direitos e os deveres que os homens seatribuem, ou bem os novos objetivos que eles se pem a perseguir, ousobretudo os novos objetivos e as novas idias ao mesmo tempo.Portanto, a idia de finalidade est implcita na prpria idia que osenhor Durkheim cr substituir a ela.

    Sem dvida nenhuma "o que normal para um molusco no o para um vertebrado" e cada espcie tem sua normalidade prpria [p. 59] mas por que isso? Porque irresistivelmente atribumos espcieuma necessidade fundamental (nadar, voar etc.), um Desejo, umaVontade prpria, premissa maior e necessria do silogismo implcitodo qual ns deduzimos a concluso: "isto deve ser, isto normal; istono deve ser, isto anormal". Ou melhor: para cada indivduo as con-dies da normalidade mudam conforme o objetivo que se lhe conheceou se lhe supe. O autor nos diz que "o selvagem que tivesse o tubodigestivo reduzido e o sistema nervoso desenvolvido do civilizadosadio seria um doente em relao ao seu meio" [nota 2, p. 158]. Sim,seria um doente socialmente, uma vez que se constituiria em oposio snecessidades e vontades da tribo, mas no um doente individualmente seo seu ideal prprio, contrrio ao de seu meio, exigisse essedesenvolvimento cerebral e essa reduo da vida vegetativa.

    Ao escrever estas linhas, vem-me um pensamento de Stuart Mill que bem distante desse do senhor Durkheim. Para todo ser, diz ele algures, oestado normal o estado mais elevado que ele possa atingir. Quer dizer:o normal o ideal e o mrbido o mais freqente, o geral, o comum, o"vulgar", esse vulgar que nosso autor to fortemente despreza mas queno tem o direito de desprezar se quer se manter fiel a seu prprioprincpio. O normal para uma sociedade portanto a paz na justia e naluz, o completo extermnio do crime, do vcio, da ignorncia, damisria, dos abusos. E bem sei que o perigo dessa definio o de penderdemasiadamente para o esprito de quimera, mas ainda prefiro esta outra, que se gaba de ser to cientfica.

  • E por qu? Porque no posso admitir com o meu sutil contraditor e esta no minha menor divergncia com ele que a cincia, ou oque ele assim denomina, frio produto da razo abstrata, por definioestranha a toda inspirao da conscincia e do corao, tenha sobre aconduta a mesma autoridade suprema que legitimamente exerce sobreo pensamento. Como os esticos tero aprendido o carter anormal daescravido de seus tempos, malgrado sua generalidade, suauniversalidade? Escutando no os gemetras, no os astrnomos nemos fsicos de ento, mas seu corao. Tivessem calado o seu corao, aescravido estaria justificada para eles, assim como para Aristteles.Acrescento que o homem todo que deve pensar com seu corao, comsua alma, com sua imaginao at, e no somente com sua razo. Eledeve freqentemente acionar o pedal da surdina sobre as primeirascordas para deixar mais jogo livre s vibraes da ltima, s oscilaese s operaes de sua inteligncia. Assim que prendemos a respiraopor alguns instantes para no turvar a superfcie de uma gua puraonde procuramos ver o reflexo de suas bordas, e a razo essa guapura. Mas -o na qualidade desta abstrao subjetiva de alguma formaaplicada nossa prpria realidade interna, assim como da abstraoobjetiva qual submetemos artificialmente as realidades externas parachegar a compreend-las melhor, analisando-as sucessivamente sobseus diversos aspectos. No mais que esta, aquela no deve serprolongada indefinidamente, e no deve ser tomada por uma coisa queno um artifcio de mtodo, uma fico momentaneamente til. Detempos em tempos, o pensador mais abstrato, o mergulhador maisprofundo sobretudo o mais profundo , para no se afogar, deverecobrar sua integridade e subir plena luz para respirar livremente, e nesses momentos de repouso do corao, de embriaguez imaginativa,aps uma reflexo calma, que por vezes lhe dado ver com um poucomais de clareza a intimidade das coisas, restitudas elas tambm naplenitude de sua existncia, temporariamente fragmentada pelaanlise.

    O senhor Durkheim cr honrar a cincia ao lhe atribuir o poder dedirigir soberanamente a vontade, ou seja, no somente de lhe indicar osmeios mais prprios para atingir seu objetivo dominante, mastambm de comandar sua orientao em direo a essa estrela polar daconduta. Ora, certo que a cincia exerce uma ao sobre nossosdesejos, mas uma ao principalmente negativa: ela mostra o carterirrealizvel ou contraditrio de muitos deles e com isso tende aenfraquec-los, se no elimin-los; mas entre aqueles que ela permitejulgar realizveis, em graus iguais ou mesmo diferentes, com quedireito nos interditaria experimentar alguns e nos ordenaria provaroutros? A cincia s tem poder absoluto sobre o nosso intelecto; noentanto, impe-lhe seus ensinamentos apoiando-se to-somente emevidncias imediatas, em dados da sensao que ela no criou e quepostula. Com mais razo, quando ela se dirige vontade, da qual

  • apenas o conselho privado, por assim dizer, no pode lhe ordenar ourecomendar tais ou tais prticas a no ser fundando-se sobre certosdesejos, que so a premissa maior do silogismo moral do qual ela apenas a premissa menor e a concluso. Se ela lida com um ambicioso,por que lhe prescreveria o amor? Se lida com um apaixonado, por quelhe prescreveria a ambio? Por que ela ordenaria mesmo ao sbio suaapaixonada sede de verdade em vez da sede de ouro e de honras?Nascemos, indivduos ou povos, com uma fora de projeo particularassim como os astros, com uma impulso prpria que nos vem docorao, do fundo subcientfico, subintelectual de nossa alma: esse um fato como qualquer outro para que a cincia o constate; opostulado necessrio de todos os conselhos, sempre condicionais, quea cincia pode nos dar. E quando se tratar de modificar seja aintensidade, seja a direo dessa energia interior, no um teoremanem uma lei fsica ou psicolgica, tampouco sociolgica, que ter essepoder, mas sim o encontro individual ou nacional, em qualquer rua davida ou da histria, de um novo objeto de amor ou de dio, deadorao ou de execrao, que, do fundo agitado de nosso corao,suscitar novos els.

    demandando cincia alm do que ela pode dar, lhe atribuindodireitos que ultrapassam os seus domnios, j bastante vastos, quedamos ocasio de se crer em sua suposta falncia. A cincia jamaisdescumpriu suas verdadeiras promessas, mas circularam em seu nomemilhares de falsas promissrias revestidas com sua falsa assinatura eque ela est impossibilitada de quitar. intil aumentar-lhe o nmero.

  • CRIME E SADE SOCIAL

    MILE DURKHEIM

    Peo permisso para responder brevemente ao recenteartigo do senhor Tarde intitulado "Criminalidade e sade social", poismuitas das proposies que me atribui o meu eminente crtico no sominhas. Eu as julgo falsas tanto quanto ele.

    1) No afirmei que o avano da criminalidade constatado pelanossa estatstica fosse normal. No se encontrar uma s frase em meulivro em que essa idia esteja expressa. Aceito to pouco a teoria dosenhor Poletti que a refutei publicamente, numa aula do curso desociologia criminal que recentemente ministrei em Bordeaux. Em umlivro que estou preparando, sobre o suicdio, se encontrar uma refuta-o da mesma tese, uma vez que ela aplicvel s mortes voluntrias.Eis ento um primeiro ponto estabelecido. Com essa declarao, osenhor Tarde no poder pr em dvida que nessa questo me atribuiuum sentimento que no o meu.

    Ademais, o prprio senhor Tarde parece ter tido algum escrpulo,pois sentiu a necessidade de acrescentar a seu texto uma nota parademonstrar que essa proposio est "conforme a meus princpios".Esse mtodo de discusso, que consiste em fazer um autor dizer o queno disse, era muito honroso antigamente, sendo depois abandonado.Percebeu-se que era muito fcil extrair de um sistema todas asconseqncias que se desejasse. Creio que haveria vantagem em noretomarmos isso. Mas justo que ao menos em nome da lgica eu devaaceitar esse erro? Que se julgue.

    Aps ter constatado que a ocorrncia da criminalidade um fatouniversal, e por conseqncia apresenta o critrio de normalidade,julguei dever fazer-me uma objeo. Se, dizia eu, os fatos nos permi-tissem ao menos crer que quanto mais se avana na histria mais acriminalidade, sem desaparecer, se aproxima de zero, poderamossupor que essa universalidade e, portanto, essa normalidade seriamtemporrias. Mas justamente ocorre que as informaes de quedispomos nos mostram um crescimento ao invs de um decrescimento.Deve-se ento descartar a hiptese, j que no tem fundamento nosfatos. Mas se essa marcha ascendente dos crimes no nos permiteadmitir que eles diminuem, no se segue que ela seja normal. A questopermanece inteira e comporta muitas solues, de modo que no esta-mos encerrados no dilema imaginado pelo senhor Tarde. Pode efetiva-mente ocorrer que seja normal que certos delitos progridam junto coma civilizao, mas que o enorme crescimento produzido pelos nossostempos seja mrbido. Enfim, estou to longe de absolver o que se passaatualmente que, ponderando sobre o triste espetculo que nos oferecem

  • nossas estatsticas, escrevi na mesma pgina em que se encontra a pas-sagem incriminada: "Pode ocorrer que o prprio crime tenha formasanormais; o que acontece quando, por exemplo, ele atinge um ndiceexagerado. No duvidoso, com efeito, que esse excesso seja denatureza mrbida" [p. 67].

    2) No afirmei que a utilidade do crime consistisse em impedir aconscincia moral de incriminar com demasiado rigor os atos de ligeiraindelicadeza, como se isso fosse um mal deplorvel a ser coibido a todocusto. No vejo uma s palavra de meu livro que possa justificar seme-lhante interpretao. Afirmei simplesmente que, de fato, se a conscinciamoral se tornasse forte o bastante para que todos os crimes, inclusive osmoderados, desaparecessem completamente, classificaria mais severa-mente os atos que antes julgava com mais indulgncia, e que porconseqncia a criminalidade, desaparecida sob uma forma, reapa-receria sob outra. Da a contradio em se conceber uma sociedade semcrimes. Mas no afirmei que essa demasiada severidade na maneira deconsiderar os atos morais fosse um mal, assim como no disse quefosse um bem. E se no coloquei a questo, ela no pode ser colocadaassim em abstrato.

    Restaria ainda saber com relao a qual tipo social se trata de decidirse esse recrudescimento do rigor desejvel ou no. Na cidade romanaprimitiva, como a vida social s era possvel se a personalidadeindividual fosse absorvida em ampla medida pela personalidade coleti-va, teria sido nocivo que a conscincia moral se tornasse sensvel demaiss ofensas dirigidas contra os indivduos. Hoje em dia, porm, se osentimento de deferncia e respeito que nutrimos pelas grandes religiescontemporneas e que ainda conta com sanes jurdicas na maiorparte dos cdigos europeus excedesse um certo grau de intensidade,veramos o que seria feito do nosso livre-pensamento. Dou essesexemplos apenas para mostrar que a questo no to simples.

    3) No afirmei que se certos crimes se tornassem mais raros as penascorrespondentes necessariamente se elevariam. De que fossem incri-minados com mais rigor no se seguiria que seriam punidos com maisrigor. Falei da incriminao, no da represso. So dois problemasdiferentes que o senhor Tarde pareceu confundir. O que faz que essasduas ordens de fatos no variem uma como a outra que muito fre-qentemente o sentimento coletivo afrontado pelo crime igualmenteafrontado pela pena. Estabelece-se assim uma espcie de compensaoem que ao castigo no dado aumentar medida da intensidade darepreenso. o que acontece com todos os crimes que ferem os nossossentimentos de simpatia pelo homem em geral. Como essa simpatia setorna mais viva com o avano da civilizao, tornamo-nos maissensveis aos menores atentados que o ser humano possa sofrer. Dessaforma, as ofensas leves, que ainda h pouco eram tratadas comindulgncia, parecem-nos hoje escandalosas e so punidas. Por outrolado, toda represso gera igualmente violncia conforme essa mesma

  • tendncia, que, por conseqncia, se ope a que a punio se tornemais rigorosa. Temos mais piedade pela vtima, mas tambm temosmais piedade pelo culpado. Durante um tempo at mesmo se julgou por razes que no podemos expor aqui que essa transformaobeneficiaria mais o culpado do que a vtima. Eis como, no que concernea essa criminalidade especial, a penalidade diminui medida que aconscincia moral se torna, acerca do mesmo ponto, mais exigente.

    4) No afirmei em lugar algum que o crime e o gnio fossem to-somente dois aspectos diferentes de um mesmo estado mental. Todaessa parte da discusso do senhor Tarde me cansa. Afirmei que emqualquer sociedade seria til e mesmo necessrio que o tipo coletivono se repetisse identicamente em todas as conscincias individuais.Entre as divergncias que assim se produzem, umas fazem o criminosoe outras o homem de gnio, mas nunca identifiquei as segundas sprimeiras. O criminoso tanto pode ter gnio como pode estar abaixoda mdia. Em todo caso, as razes pelas quais eu disse que o crime normal, a um certo grau, so independentes das aptides intelectuaisque se atribuam ao delinqente.

    5) particularmente incorreto dizer que "o crime baixo e rasteiro,odiado ou desprezado, o nico do qual se ocupa o senhorDurkheim". Quando tentei mostrar como o crime poderia ter uma uti-lidade propriamente direta, os nicos exemplos que citei foram os deScrates e dos filsofos herticos de todos os tempos, precursores dolivre-pensamento [pp. 72-73], e sabe-se que eles so numerosos. apartir desses fatos e de outros anlogos e mesmo estes so inmeros que se deveria conduzir a discusso para que ela chegasse minhaargumentao.

    Em face das proposies que me foram incorretamente atribudas,permitam-me retomar brevemente aquelas que realmente quis formular.O leitor decidir se elas foram refutadas.

    1) Afirmei primeiramente que, til ou no, o crime normal na me-dida em que est ligado s condies fundamentais de toda vida so-cial. Assim porque no pode haver uma sociedade em que os indi-vduos no divirjam mais ou menos do tipo coletivo, e entre essasdivergncias h no menos necessariamente aquelas que apresentamum carter criminoso. Um nivelamento material completo material-mente impossvel. No vejo nada no artigo do senhor Tarde que res-ponda a esse argumento, salvo a seguinte frase: "Que no me digamque isso impossvel [o desaparecimento de toda criminalidade], poiso mesmo poderia ser dito quanto escravido na Antigidade emesmo agora quanto misria e mendicncia nas ruas". -me impos-svel perceber a relao entre o desaparecimento do crime e o daescravido, a escravido no sendo um crime. Quanto misria, noestamos em muita condio de saber se est destinada a desaparecer:uma esperana no um fato. E de resto, tambm nesse ponto, qual arelao com a criminalidade?

  • 2) Afirmei em seguida que a ocorrncia da criminalidade teria umautilidade geralmente indireta e s vezes direta: indireta, porque o crime spoderia deixar de existir se a conscincia coletiva se impusesse sconscincias individuais com uma autoridade de tal forma inelutvelque toda transformao moral se tornaria impossvel; direta, namedida em que s vezes, mas somente s vezes, o criminoso seria umprecursor da moral por vir.

    Para derrubar a primeira parte dessa proposio teria sido precisoou bem provar que um arranjo fixo no torna impossveis, ou aomenos dificlimos, os rearranjos ulteriores e que, por conseguinte, umamoral to fortemente organizada e enraizada poderia ainda evoluir, oubem negar que a haja e que deva continuamente haver uma evoluomoral. Em vez disso, o senhor Tarde se contenta em enumerar as conse-qncias deletrias do roubo, do estupro, do assassinato, da chan-tagem. necessrio dizer que eu as conhecia e que no pensava emcontest-las? No afirmei que o crime no produziria males: disse queele teria o efeito til que tornei a evocar aqui. Os resultados nefastosque o crime possa ter no demonstram que ele no tenha tal utilidade.Indagar-se- como ele pode ser normal se nocivo em todo lugar? Masestou justamente empenhado em estabelecer que seria um erro crer queum fato normal todo utilidade: no h nada que no seja nocivo sobalgum aspecto. Ademais, deve-se lembrar que o mal social causado pelocrime compensado pela pena e que o que normal para usar a felizexpresso do senhor Tarde, da qual gostaria de me apropriar porquetraduz muito bem o meu pensamento o inseparvel casal do crimee da pena.

    Para derrubar a segunda parte da minha proposio seria precisoprovar que se pode inovar em moral sem ser, quase inevitavelmente, umcriminoso. Pois como mudar a moral se no se desvia dela? Dir-se- quese pode agregar-lhe princpios novos sem suprimir os antigos? A soluoseria puramente verbal. As regras que se agregam necessariamente recha

    am as outras. Uma moral no uma grandeza matemtica que podecrescer ou decrescer sem mudar de natureza: um sistema orgnico noqual as partes so solidrias e a menor mudana que se introduz afetatoda a economia. Em todos os tempos, os grandes reformadores da moralcondenaram a moral reinante e foram condenados por ela.

    Enfim, nessa discusso seria preciso no fixar os olhos exclusi-vamente nas formas presentes da criminalidade, pois os sentimentosque elas inspiram a todos ns pouco nos permitem falar objetivamente.Ademais, no a partir de espcies de tal modo particulares que se podejulgar o papel e a natureza do crime em geral. Olhemos para o passado,e a normalidade do crime no mais ter nada de paradoxal; aoconsiderarmos a moral anterior da humanidade percebemos melhor oquanto lhe convinha no se fixar em demasia a fim de poder evoluir.Isto posto, para negar que essa necessidade se impe igualmente nossa moral atual seria preciso admitir que a era das transformaes

  • morais est encerrada. E quem ousaria dizer de qualquer uma dasformas do devir que no deve ir mais longe?

    3) Em terceiro lugar, a moral uma funo social, e como todafuno ela deve ter um grau de vitalidade limitado. O equilbrioorgnico tem esse preo. Se a moral lhe subtrair uma frao de energiavital que excede sua justa parte, as outras formas de atividade coletivasofrero. Se nosso respeito pela vida humana excedesse certa inten-sidade, no toleraramos a idia da guerra, e no entanto, nas condiesatuais das relaes internacionais, necessrio que possamos faz-la.Nada mais moral que o sentimento da dignidade individual, mas apartir de um certo ponto ele torna impossvel a disciplina militar, que indispensvel, e mesmo toda disciplina. O excesso de piedade pelossofrimentos dos animais, opondo-se s prticas da vivisseco, setorna um obstculo ao progresso da cincia etc. A mxima "ne quidnimis" [nada em demasia] vlida para a conscincia moral e para a suaautoridade. Mas se essa autoridade tem seus limites, inevitvel queem certos casos seja dominada pelas foras contrrias e desconhecidas,e, inversamente, necessrio que seja s vezes desconhecida para queno extrapole os seus limites naturais.

    Enfim, se eu disse do crime que era normal foi por aplicao de umaregra geral que eu buscava formular para distinguir o normal do anor-mal. A discusso dessa regra talvez devesse constituir o fundamento dodebate, visto que posta a regra resta segui-la. O senhor Tarde s toca aquesto muito brevemente, e me faz duas objees.

    Primeiramente ele diz que o tipo normal no pode ser confundidocom o tipo mdio, pois como todo mundo mais ou menos doente adoena seria normal. Respondo: se todo mundo doente, cada um tema sua doena diferente, e essas caractersticas individuais se apagammutuamente no seio do tipo genrico, que no carrega vestgios. Dir-se- que devemos reencontrar a, se no tais doenas, pelo menos apropenso doena em geral? Consinto; mas no nos contentemoscom palavras vs. Em que consiste essa propenso? Muito simples-mente no fato de que o ser mdio, como todo ser, tem uma fora deresistncia limitada, que portanto est permanentemente sujeita a servencida por foras antagnicas maiores. O que h de contraditrio nofato de que o estado de sade implica uma energia vital limitada? Novejo nisso nada mais do que um truismo.

    Em segundo lugar o senhor Tarde objeta que um povo constitudoto-somente por homens mdios do ponto de vista fsico, intelectual emoral estaria num nvel de tal forma inferior que no poderia se manter como admitir que esse povo seria so? Que estranha confuso co-meteu meu engenhoso contraditor! Na teoria que formulei, um povoque compreendesse somente indivduos mdios seria essencialmenteanormal; pois no h sociedade que no contenha inmeras anomaliasindividuais, e um fato assim universal no sem razo de ser. entosocialmente normal que em toda sociedade haja indivduos psicologicamente

  • anormais, e a normalidade do crime no seno um caso particulardessa proposio geral. Com efeito, como expressamente ressaltei emmeu livro, as condies da sade individual e as da sade social podemser muito diferentes e mesmo contrrias umas s outras. o que seadmitir sem dificuldade se se reconhecer comigo que h uma pro-funda linha de demarcao entre o social e o psquico. Para alm dequalquer sistema, os fatos provam diretamente essa oposio. Umasociedade s pode viver se se renova periodicamente, ou seja, se asgeraes antigas do lugar a outras, de modo que preciso que aquelasmorram. Assim, o estado normal das sociedades implica a doena dosindivduos: uma certa taxa de mortalidade, assim como um certondice de criminalidade, indispensvel sade coletiva.

    De resto, como diz por fim o senhor Tarde, a origem de nossadivergncia est alhures. Est acima de tudo no fato de que eu acreditona cincia e o senhor Tarde no acredita. E acreditar na cincia no reduzi-la a nada mais que um entretenimento intelectual, bom quandomuito para nos instruir sobre o que possvel e impossvel, masincapaz de servir regulao positiva da conduta. Se ela no tem outrautilidade prtica, no vale a pena que custa. E se acreditamos que assimdesarmamos seus recentes adversrios, estamos redondamenteenganados; na verdade, entregamos-lhes as armas. Assim entendida, acincia certamente no mais ir frustrar as expectativas dos homens,mas que os homens no mais lhe confiaro grande coisa. Ela nomais estar sujeita a ser acusada de bancarrota, mas que ser declaradamenor e incapaz de se perpetuar. No vejo o que ela ganha e o que nsganhamos com isso. Pois o que dessa forma colocamos acima da razo a sensao, o instinto, a paixo, todas as partes baixas e obscuras dens mesmos. Que nos servem quando no conseguimos fazer de outraforma nada de melhor. Mas quando as vemos como algo que se aceitapor falta de coisa melhor e que deve pouco a pouco ceder lugar cincia,quando lhes outorgamos uma preeminncia qualquer, ainda que nonos refiramos francamente a uma f revelada, somos teoricamente unsmsticos mais ou menos conseqentes. Ora, o misticismo o reino daanarquia na ordem prtica, pois o reino da fantasia na ordemintelectual.

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