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Crise orgânica e ação política da classe trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de 1962)

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  I

Universidade Federal Fluminense (UFF)Centro de Estudos Gerais (CEG)Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)Programa de Pós Graduação em História (PPGH)

Crise orgânica e ação política da classe trabalhadorabrasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de1962)

Autor: Demian Bezerra de Melo

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Badaró Mattos 

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal Fluminense, como requisito parcial para o grau de Doutor.Linha de pesquisa: Poder e Sociedade

 Niterói, março de 2013

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  II

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

M528 Melo, Demian Bezerra de.Crise orgânica e ação política da classe trabalhadora brasileira: a

 primeira greve geral nacional (5 de julho de 1962) / Demian Bezerra deMelo. – 2013.

325 f. ; il.

Orientador: Marcelo Badaró Mattos.Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de

Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2013.

Bibliografia: f. 308-316.

1. Crise política. 2. Greve geral, 1962. 3. Goulart, João, 1918-1976.4. Historiografia. I. Mattos, Marcelo Badaró. II. Universidade Federal

Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.

CDD 331.892981

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  III

DEMIAN BEZERRA DE MELO

Crise orgânica e ação política da classe trabalhadorabrasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de1962)

Banca examinadora

 _____________________________________

Prof. Dr. Marcelo Badaró Mattos (orientador)

Universidade Federal Fluminense (UFF)

 ______________________________________

Prof.a Dr.a Virgínia Fontes (arguidora)

Universidade Federal Fluminense (UFF)

 _____________________________________

Prof. Dr. Renato Lemos (arguidor)

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

 _____________________________________

Prof. Dr. Eurelino Teixeira Coelho Neto (arguidor)

Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

 ____________________________________Prof. Dr. Ruy Braga (arguidor)

Universidade de São Paulo (USP)

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  IV

Resumo:

Em 5 de julho de 1962, os trabalhadores brasileiros realizaram uma greve geral,

intervindo decisivamente na crise política nacional, quando o Congresso Nacional

estava prestes a aprofundar o esvaziamento dos poderes do presidente João Goulart, a

 partir da imposição de um gabinete parlamentarista hostil. Hegemonizado por umaaliança entre comunistas e trabalhistas de esquerda, o movimento sindical brasileiro

fazia uma aparição contundente na cena política, mesmo porque, embora decretada para

apoiar as posições políticas de Goulart, a greve também encaminhou uma pauta de

reivindicações econômicas, entre as quais a aprovação da Lei do 13º Salário. Partindo

de considerações críticas quanto a certas tendências da historiografia recente, um dos

objetivos deste trabalho é também intervir no debate historiográfico sobre a crise dos

anos sessenta. Nesse sentido, tomando emprestado o conceito de revisionismo, este

estudo pretende-se como uma contribuição crítica.

Palavras-chaves: crise, greve geral, João Goulart, anos 1960, historiografia,

revisionismo

Abstract:

On July 5, 1962, the Brazilian workers perceived a general strike, intervening decisively

in the national political crisis, when the National Congress was about to deepen theemptying of the powers of President João Goulart, from the imposition of a hostile

 parliamentary ministerial council. Hegemonized by an alliance between communists

and leftist labor, the Brazilian trade union movement made a forceful appearance on the

 political scene, even because, though enacted to support the political positions of

Goulart, the strike also submitted a list of economic demands, including the approval of

the Law of 13th salary. Starting from critical considerations regarding certain trends of

recent historiography, one of the goals of this work is also intervene in the

historiographical debate on the crisis of the 1960s. Accordingly, borrowing the conceptof revisionism, this study is intended as a critical contribution.

Keywords: crisis, strike, João Goulart, historiography, revisionism

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  V

Índice ....................................................................................................................V

Apresentação .......................................................................................................1

Capítulo 1 – Revisão e revisionismo histórico............................................8

1.1 

 – Nota teórica: o conceito de revisionismo ..............................................9

1.2 

 – Revisão e revisionismo: o golpe de 1964 e a ditadura.........................28  

1.2.1 – O golpe e a ditadura do grande capital .......... ............. ......... .......30

1.2.2 – O revisionismo sobre o golpe e a ditadura..................................36

Capítulo 2 – A evolução dos estudos sobre o trabalho no

Brasil e a controvérsia do populismo  .........................................................50 2.1   –   As interpretações “sociológicas” e “políticas” sobre a

trajetória da classe trabalhadora brasileira entre 1930-1964 ....................................51

2.2 – As críticas ao conceito de populismo: revisão e revisionismo............ ..72

2.3 

 – A “volta” do populismo .................. ........... ....... ............ .......... .......... ..86

2.4 

 – A greve geral e o debate sobre o populismo ............... ............ ...... .......93

Capítulo 3 – A natureza da crise dos anos sessenta  ..............................97

3.1 – Nota teórica: Da crise .........................................................................99

3.2 – Dimensões da crise dos anos 1960 no Brasil .....................................119

3.2.1 – Crise econômica....................................................................127

3.2.2 – Determinantes políticos da crise orgânica..............................138

3.3 – O rompimento dos de baixo ..............................................................146

Capítulo 4 – A greve geral de 5 de julho de 1962:

intervenção dos trabalhadores na crise política ...................................156

4.1 – A queda do Gabinete Tancredo Neves e a articulação da

greve política.............................................................................................157

4.2 – A montagem do dispositivo grevista .................................................164

4.3 – Auro Moura Andrade .......................................................................168

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  VI

4.4 – A direita se movimenta para o aprofundamento do “golpe

 branco” ..... ............ ........... ......... .............. ........... ....... ............ ........... ......... 172

4.5 – No meio do caminho havia uma greve... ...........................................175

4.6 – “Movimento inédito na História do País: Brasil em Greve” .......... ....179

4.7 – A greve geral no Brasil ............ .......... .......... ............. ........... ........ ....187

Capítulo 5 – O êxito da greve e seu impacto na conjuntura ..............213

5.1 – Desdobramentos imediatos ...............................................................214

5.2 – A greve geral no processo político brasileiro ....................................218

5.3 – Esquerda e direita no espelho da greve .............................................234

5.4 – CIA, Departamento de Estado e a greve geral de julho .......... ........... 257

5.5 – A greve no IPM 709 .........................................................................260

Capítulo 6 – A greve como “caso de polícia”  264

6.1 – Sobre a documentação policial .........................................................269

6.2 – Estratégias da repressão ................. .......... ........ ........... ............ ......... 271

6.3 – A greve de julho no Boletim reservado .............................................273

6.4 – A Polícia Política depois da greve ....................................................295

6.5 – A greve geral de setembro na documentação policial: uma

comparação importante .........................................................................................298

6.6 – Em 1964, as greves gerais de 1962 ...................................................302

Conclusão  .......................................................................................................304

Fontes ...................................................................................................................... 311

Bibliografia ............................................................................................................ 313

Anexos .................................................................................................................... 324

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  1

Apresentação

Em 2004, quando se completavam quarenta anos do golpe de 1964, fomos

ouvintes de diversos eventos acadêmicos relacionados à efeméride. Em razão de nossa

 participação desde os primeiros anos da graduação no Laboratório de Estudos sobre os

Militares na Política (LEMP), da UFRJ, já conhecíamos parte da literatura produzida

 pelas ciências sociais brasileiras sobre variadas temáticas ligadas ao golpe e à ditadura.

Em razão disto, por sugestão do coordenador do LEMP e orientador do trabalho, Prof.

Dr. Renato Lemos, resolvemos discutir as novas representações historiográficas sobre o

golpe em monografia de graduação.

Também por sugestão deste último, construímos um projeto para uma

dissertação de mestrado que lançasse uma luz sobre a primeira metade do governo

Goulart, o intervalo entre sua posse em 7 de setembro de 1961 e a recuperação dos seus

 poderes, com o plebiscito sobre o parlamentarismo, em 6 de janeiro de 1963. O

resultado foi a dissertação de mestrado, O plebiscito de 1963: inflexão de forças na

crise orgânica dos anos sessenta, defendida no PPGH-UFF, em março de 2009.  O

sentido de nossas pesquisas poderia ter evoluído para um estudo do período posterior,

mas o que nos chamou muita atenção foi a importância da participação do movimento

sindical de esquerda nas manobras feitas por Goulart em vistas ao desgaste do

 parlamentarismo. As greves políticas de julho e setembro de 1962, desencadeadas em

momentos chave do conflito do presidente da República com o Legislativo federal,

foram objeto de algumas páginas de capítulos de nossa dissertação. Pudemos conferir

também a existência de uma importante literatura sobre o movimento sindical no pré-

64, tendo estas greves figurado também em diversas obras fundamentais para o

entendimento do golpe de 1964.

Destas greves nos chamou muita atenção a primeira, ocorrida em 5 de julho,

 pois, numa dimensão mais abrangente da história do movimento operário, foi a primeira

greve geral nacional ocorrida no Brasil. É claro que tal movimento não poderá ser

comparado ao significado quase mítico que tiveram as greves gerais da década de 1910,especialmente a de julho de 1917 na capital paulista, nem mesmo às massivas greves

operárias do final dos anos 1970, que abalaram alguns dos pilares do regime ditatorial.

Mas também não havia sido simplesmente um movimento articulado nos “corredores do

Ministério do Trabalho”, como certa literatura acadêmica calcada na noção de

sindicalismo populista apresentou.

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  2

As greves gerais do início da República, como a carioca de 1903, ou mesmo a já

mencionada greve geral de 1917 em São Paulo, foram movimentos gerais da classe

trabalhadora, mas que possuíram uma abrangência em cidades ou regiões de uma

mesma unidade da federação. E embora o legendário anarquista Edgar Leuenroth tenha

apresentado, em seu singelo texto sobre a vida de outro velho militante socialista, agreve geral de outubro de 1919 em São Paulo como um movimento “com articulação

em todos os centros industrializados do País”,1 alguns décadas se passariam até que a

classe trabalhadora brasileira engendrasse um movimento grevista realmente nacional.

A primeira greve nacional teria ocorrido apenas em janeiro de 1946, com o movimento

dos bancários. Todavia, nesse caso foi um movimento de apenas uma categoria, e não

uma paralisação geral da classe trabalhadora brasileira. Além desta, a Greve da Paridade

em 1960, que parou marítimos, portuários e ferroviários de todo o país e dobrou a

intransigência do governo Juscelino Kubitschek (1956-1960), também foi ummovimento nacional. Entretanto, concentrado nessas categorias, não se configurou num

movimento geral da classe.

 Nas lutas políticas ocorridas pela posse de João Goulart na crise de

agosto/setembro de 1961, pipocaram greves políticas de trabalhadores em diversos

 pontos do país. A participação da classe trabalhadora na resistência ao golpe dos

ministros militares não se deu só através destas ações grevistas, pois, como ensinam as

novas pesquisas sobre as lutas operárias no Rio Grande do Sul, antes do governador

Brizola convocar a luta pela posse de Jango, sindicatos gaúchos já estavam fazendo esse

chamado.2  Entretanto, também nesse episódio, não se teve uma greve nacional pela

 posse de Jango, mas greves políticas em todo o país, sem a articulação de um

movimento nacional, com um comando nacional.

Ao contrário desses movimentos precedentes, em 5 de julho de 1962 ocorreu um

movimento nacional dos trabalhadores brasileiros, uma greve geral que paralisou quase

todo o país e envolveu diversas categorias de trabalhadores, em empresas privadas e

 públicas, setores de serviço e transporte público, inclusive o aéreo. Dos movimentos

deste gênero que pontuaram o governo João Goulart (1961-1964), o mais significativo e

1 LEUENROTH, Edgar. “Dados biográficos do autor”. DIAS, Everardo.  História das lutas sociais no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1977, p.12.2 Chamo atenção para duas dissertações de historiadores do movimento operário gaúcho que embasameste ponto de vista, e na qual as greves gerais aqui mencionadas têm o merecido destaque. SANTOS, JoãoMarcelo Pereira dos.  Herdeiros de Sísifo. Ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos1958 a 1963. Dissertação de Mestrado em História. Campinas, Unicamp, 2002. JAKOBY, Marcos André.

 A organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a 1964.Dissertação de mestrado em História. UFF, 2008.

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  3

exitoso foi este primeiro de julho de 1962. Primeiro porque, como buscamos apresentar

no terceiro capítulo desta tese, a greve parou todas as regiões do Brasil, as principais

cidades do país, com exceção da Grande São Paulo, incluindo o ABC. No entanto,

mesmo nesse estado a Baixada Santista ficou totalmente paralisada. Na Guanabara e no

Estado do Rio de Janeiro foi total, geral no Nordeste, especialmente nos estados doCeará e de Pernambuco, sendo também geral no Rio Grande do Sul, onde a greve

atrasou seu início e começou no dia seguinte.

Estudar essa greve também nos fez adentrar a controvérsia em torno da teoria do

 populismo, especialmente aquela formulada pelo cientista político Francisco Weffort, e

a forma como este apresenta essas greves políticas como uma síndrome das debilidades

do movimento operário brasileiro no período imediatamente anterior ao golpe de

Estado. Queremos provar aqui que se trata justamente do contrário, tendo o golpe de

1964 sido feito muito mais em razão das virtudes do movimento sindical no início dosanos sessenta que de suas (certamente não poucas) debilidades. A greve de julho de

1962 é aqui estudada como exemplo da capacidade do sindicalismo de esquerda, que se

expressou não apenas nestas greves políticas, mas também (e principalmente) na espiral

grevista que acompanhou o governo Goulart, em representar a base da classe

trabalhadora. Desse modo, foi necessário começar esta tese enfrentando a construção do

campo da história do trabalho no Brasil para acompanhar como a teoria do populismo,

que foi o paradigma hegemônico nos estudos até os anos oitenta, não ajudou a

esclarecer a natureza do tipo de movimento operário que havia no Brasil antes do golpe

de 1964. Tal paradigma do populismo entrou em decadência nos anos noventa, com um

aprofundamento das pesquisas e a incorporação de novos referenciais teóricos. Hoje já

existe certo consenso de que na teoria do populismo o lugar atribuído aos trabalhadores

não é mais sustentável, tendo a noção de sindicalismo populista a que sofreu maiores

críticas. Ainda assim, não poucos historiadores dedicados ao mundo do trabalho

continua a utilizar o conceito, descontadas essas ressalvas.

Por outro lado, seja lá qual for a compreensão da história do país em princípios

dos anos sessenta, pelo menos os mais sensatos reconhecem que eram tempos de crise.

Mas, o que se entende por crise? E qual a natureza da crise dos anos sessenta, em todas

as suas dimensões? Buscamos responder essas questões no terceiro capítulo, que versa

sobre a crise dos anos sessenta. Após uma breve (mas necessária) digressão teórica,

onde são apresentados nossos referenciais, buscamos apresentar a cena histórica do

início dos anos sessenta no Brasil a partir do conceito gramsciano de crise orgânica.

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  4

O quarto capítulo aborda a própria greve, e o capítulo seguinte discute o impacto

do protesto operário no processo político brasileiro. No sexto capítulo, adentramos a

documentação produzida pela polícia política, especialmente aquela depositada no

acervo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). A utilização de fontes

 produzidas pelo aparelho de repressão contra dissidentes políticos e as classessubalternas tem sido muito frequente no campo de estudos do trabalho, e nesse capítulo

 pretendemos tão somente discutir a importância de tais fontes como material capaz de

nos fazer pensar com mais cuidado sobre os limites da experiência democrática vigente

nos país no início dos anos sessenta. Ao falar dessa documentação, apresentamos

rapidamente as outras fontes utilizadas nesta tese.

 No rico acervo da divisão de Periódicos da Biblioteca Nacional (RJ) existem as

coleções tanto dos jornais de maior circulação do país, aqueles sediados no centro-sul,

quanto das folhas de regiões mais afastadas. Para apanhar a dimensão nacional domovimento e seus desdobramentos locais, essa foi uma documentação importante. Além

do mais, a própria imprensa da esquerda, dos comunistas e dos nacionalistas, as folhas

de alguns sindicatos, foram consultadas tanto na Biblioteca Nacional quanto no Arquivo

Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE), no Arquivo de

Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ), do IFCS-UFRJ, no fundo do Archivio

Storico del Movimento Operaio Brasiliano (ASMOB) depositado no Centro de

Documentação e Memória (CEDEM) da UNESP, e nos arquivos das bibliotecas de

alguns sindicatos, como a Biblioteca Aloísio Palhano do Sindicato dos Bancários do Rio

de Janeiro.

O levantamento no ASMOB em São Paulo nos chamou atenção para uma série

de documentos guardados no fundo Roberto Morena, que compreendiam desde

correspondência entre a Embaixada dos EUA no Rio de Janeiro e o Departamento de

Estado, e documentos do Central Intelligence Agency (CIA). Na página da CIA 3 

encontramos um relatório ultra-secreto de 13 de julho de 1962, onde é narrada a greve

geral e feita uma avaliação do seu impacto na conjuntura. No mesmo sentido, na página

da John F. Kennedy Presidential Library and Museum4  encontramos uma série mais

completa das mesmas correspondências entre o embaixador dos EUA no Rio de Janeiro,

Lincoln Gordon, e o secretário de Estado, Dean Rusk, onde se registra a percepção do

governo norte-americano sobre a crise brasileira, já em meados de 1962.

3 <http://www.foia.cia.gov/>4 <http://www.jfklibrary.org>

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  5

 Na literatura produzida pelos militantes da esquerda, que escreveram no calor

daqueles acontecimentos, a greve aparece em inúmeros relatos, como no último capítulo

do livro de Jover Telles, O movimento sindical no Brasil.5 Telles apresenta uma série de

documentos importantes para a apreensão daquele processo, como os manifestos

escritos pelo Comando Geral de Greve, além de informações resultantes da própriamilitância política do autor no noticiário sindical do semanário  Novos Rumos, do

Partido Comunista Brasileiro (PCB). Outro trabalho que se insere no mesmo perfil é de

autoria de outro militante comunista, Jorge Miglioli, Como são feitas as greves no

 Brasil?, que é parte de uma coleção de panfletos produzidos por intelectuais ligados ao

Instituto Superior de Estudos Sociais (ISEB).6  Embora não acrescente muitas

informações, essa espécie de pequeno tratado histórico-sociológico sobre as greves no

Brasil dá grande ênfase à greve de 5 de julho de 1962, mencionada em todos os

capítulos da obra, mostrando a importância daquele movimento no processo deconstrução da identidade da esquerda brasileira.

Entre os trabalhos acadêmicos destacamos os clássicos dos brasilianistas

Kenneth Paul Erickson7  e Timothy Fox Harding,8  e os livros de Lucília de Almeida

 Neves Delgado9 e Sérgio Amad Costa,10  todas pesquisas acadêmicas consistentes que

assinalaram o caráter nacional daquelas greves políticas de 1962. Entretanto, em

nenhum desses trabalhos seus autores foram movidos pela necessidade de buscar

informações sobre sua abrangência no território do país. Para construirmos um quadro

mais completo, além de um levantamento em fontes primárias, contamos também com

estudos regionais ou de categorias específicas, em trabalhos de recorte temporal

variado, que discutiram essas greves em algumas das mais importantes cidades do

 país.11 

5 TELLES, Jover. O movimento sindical no Brasil. Rio de Janeiro: Vitória, 1962.6 MIGLIOLI, Jorge. Como são feitas as greves no Brasil? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 19637 ERICKSON, Kenneth Paul. Sindicalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.8  HARDING, Timothy Fox. The political history of organized labor in Brazil. Ph.D. dissertation,

Stanford University Press, 1973.9  DELGADO, Lucília Almeida Neves. O Comando Geral dos Trabalhadores no Brasil (1961-1964) .Petrópolis: Vozes, 1986.10  COSTA, Sérgio Amad. O CGT e as lutas sindicais brasileiras (1960-1964) . São Paulo: GrêmioPolitécnico, 1981.11 Apenas a título de exemplo: SILVA, Fernando Teixeira da.  A carga e a culpa: os operários das docasde Santos, direitos e cultura da solidariedade (1937-1968). São Paulo: Hucitec; Santos: PrefeituraMunicipal de Santos, 1995. MATTOS, Marcelo Badaró.  Novos e velhos sindicalismos. Rio de Janeiro (1955-1988). Rio de Janeiro: Vício de Leitura,1998. SANTOS, Herdeiros de Sísifo, op. cit.; JACOBY, Aorganização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre, op. cit. Outras contribuições sãomencionadas ao longo da tese.

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  6

 Nos livros de memórias do ex-comandante Paulo Mello Bastos,  A Caixa-preta

do golpe de 64: a república sindicalista que não houve,12  tal como no de Hércules

Correa,13  e na obra de Denis de Moraes,  A esquerda e o golpe de 64,14 os episódios

foram narrados por personagens centrais daqueles acontecimentos, de muita valia para

esta pesquisa. Muito importante foi o livro de Melo Bastos, resultado de uma série deentrevistas que o mesmo realizou com algumas figuras centrais do sindicalismo, como

os ex-dirigentes do CGT Hércules Correa, Clodesmidt Riani, além de homens chave do

governo como Waldir Pires, Almino Afonso, Neiva Moreira, o que torna esse livro uma

fonte muito importante. Outra documentação consultada foram livros de entrevistas com

lideres sindicais daquele período, como aquele com Clodesmidt Riani,15  trabalhista

mineiro que presidia a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI)

em 1962. Consultamos ainda um conjunto de entrevistas feitas pela historiadora Lucilia

Almeida Neves Delgado com proeminentes líderes sindicais comunistas e trabalhistasda época, como Hércules Correia, Armando Ziller, Rafael Martinelli e o próprio Riani,

disponíveis na página do Programa de História Oral da Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG).16 

Além destas fontes orais já publicadas, tivemos oportunidade de colher o

depoimento do ex-comandante Paulo Melo Bastos, do histórico líder do sindicalismo

 bancário carioca, Luiz Viegas da Motta Lima e do ex-dirigente dos ferroviários,

Raphael Martinelli, remanescentes de uma geração de sindicalistas brasileiros que

lideraram diversas lutas trabalhistas e personagens diretamente envolvidos na greve

geral de 5 de julho de 1962. O próprio Riani, que hoje dá nome a um Centro de

Memória em sua cidade natal de Juiz de Fora (RJ), nos concedeu alguns minutos de sua

simpatia em uma conversa telefônica onde pôde esclarecer que, quando da greve, o

mesmo estava fora do país para participar de um congresso internacional de

sindicalistas.

Todavia, qualquer estudo sobre o processo político brasileiro ao longo do

governo João Goulart (1961-1964) deve se deparar com a prolífica literatura existente

sobre (principalmente) a sua derrocada, o Golpe de 1964, notadamente com suas mais

recentes controvérsias. Como qualquer campo maduro do conhecimento histórico, o

12 Rio de Janeiro: Família Melo Bastos Editora, 2006.13  Memórias de um stalinista. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994.14 Rio de Janeiro: Espaço & Tempo, 1989, recentemente relançado pela Expressão Popular, 2011.15 PAULA, Hilda Rezende & CAMPOS, Nilo de Araujo (orgs.). Clodesmidt Riani: trajetória. Juiz deFora: FUNALFA Edições; Ed. UFJF, 2005.16 <http://www.fafich.ufmg.br/historiaoral/entrevistas>

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tema do golpe de 1964 é atravessado por controvérsias que estão muito além de um

mero embate entre a produção acadêmica e o senso comum (ou as memórias)

construídos sobre aquele contexto. Mas como um marco fundamental de nossa história

recente, o debate acadêmico também não opera numa torre de marfim, afastado dos

embates políticos como se os historiadores profissionais pudessem estar confinados emuma “Torre de Marfim”, apartados da realidade a tal ponto de poderem oferecer um

“parecer técnico” sobre o passado. Nesse sentido, o primeiro capítulo desta tese é

dedicado ao conceito de revisionismo, começando por um esclarecimento do significado

desta operação na historiografia contemporânea.

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Capítulo 1. Revisão e revisionismo histórico

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1.1 Nota teórica: o conceito de revisionismo

Em sua  História dos homens, Josep Fontana17  dedica todo um capítulo para

discutir as “guerras da história”, que consistiriam (e consistem) nas rivalidades entre

interpretações sobre o passado. Via de regra, tais disputas foram (e são) focadas em

 processos chaves na definição de épocas históricas e na constituição de identidades

coletivas que se apresentam como uma espécie de espaços de “luta pelo passado”. Em

outro trabalho relevante, o mesmo Fontana enunciou a hipótese de que toda análise do

 passado está calcada em um projeto social de presente/futuro;18 toda teoria da história

tem sua própria “economia política”. Cito:

“A descrição do presente – produto resultante da evolução histórica –completa-se com o que chamo, genericamente, uma ‘economia política’,isto é: uma explicação do sistema de relações que existem entre oshomens, que serve para justificá-las e racionalizá-las – e, com elas, oselementos de desigualdade e exploração que incluem –, apresentando-ascomo uma forma de divisão social de trabalho e funções, que não sóaparece agora como resultado do progresso histórico, senão como aforma de organização que maximiza o bem comum. Como etapa daevolução social, cada sistematização da desigualdade e da exploração,teve sua própria ‘economia política’, sua racionalização da ordemestabelecida, e assentou-a em uma visão histórica adequada. Dessaevolução do passado ao presente, mediatizada pelo filtro da ‘economia

 política’, obtém-se um projeção até o futuro: um projeto social que seexpressa numa proposta política.”19 

Assim, isso que comumente é apresentado como “batalha pela memória” ou “disputaem torno do passado”, é algo bem menos ingênuo do que costuma figurar, envolvendo

embates das forças sociais sobre o presente/futuro. Essa questão não pode ser reduzida a

uma reelaboração individual à luz das preocupações do historiador – como no

 presentismo de Croce e Collingwood –, nem mesmo a um mero problema de identidade

de algumas tradições políticas e/ou culturais, mas é “algo que se realiza coletivamente e

que tem uma função social”.20 Parece ser em acordo com isso que Fernando Rosas nos

ensina que tais batalhas pela interpretação do passado são, antes de mais nada,

atravessadas pelas lutas pela hegemonia nas sociedades contemporâneas. Diz o autor:

17 FONTANA, Josep. História dos homens. Bauru: Edusc, 2004, p.343-379.18 FONTANA, Josep. História, análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998.19 Idem, p.9-10. É claro que nesse conceito o autor evoca a “economia política” como uma metáfora, jáque a própria economia política enquanto disciplina tem sua própria visão sobre o passado e o futuro,como nos mostra Marx. MARX, Karl. “Introdução à crítica da economia política [1857].” Grundrisse.Rio de Janeiro: EdUFRJ; São Paulo: Boitempo, 2011, p.39-64.20 FONTANA, História, análise do passado..., op. cit., p.9.

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“ao convocarmos, ao inscrevermos a Memória nos debates de hoje, nãoestamos só a olhar para trás, isto é, não nos refugiamos no passado, nãofugimos para a nostalgia, estamos necessariamente, seja qual for osentido mais ou menos assumido do exercício, a discutir os conteúdoscivilizacionais, as representações societais, os conteúdos políticos eideológicos que estruturam os discursos sobre o Mundo de hoje e de

amanhã. A luta pela inscrição da Memória, para retomar o conceito dofilósofo José Gil, é, neste sentido, um combate pelo presente e pelofuturo que travamos aqui e agora.”21 

 Nas últimas décadas alguns casos têm sido emblemáticos dessas “guerras”,

como a controvérsia historiográfica sobre a Revolução Francesa, quando de seu

 bicentenário. Desde que um anti-comunista da estirpe de François Furet (1927-1997)

“subiu ao poder” na vida universitária francesa nos anos de 1980 e propôs que a

“Revolução havia terminado”, o fulcro da abordagem canônica sobre aquela Revolução

seria atacado. Nesse sentido, o caráter burguês  da Revolução passaria a sersistematicamente refutado, no mesmo passo que as influentes interpretações de autores

como Georges Lefebvre (1874-1959) e Albert Soboul (1914-1982) reduzidas a uma

leitura “marxista-leninista”, que alegadamente olharia 1789 como prenuncio de 1917,

numa espécie de esquema teleológico simplista que Furet reduz a um “catecismo

revolucionário”. O termo “catecismo revolucionário” apareceu já no título de um artigo

seu publicado em 1971 na revista  Annales, e republicado em  Penser la Révolution

 française, de 1978 (Paris, Gallimard), que é uma espécie de “manifesto” desta ofensiva

revisionista.22 

Como não foi muito difícil de perceber, o propósito do revisionismo de Furet era

a desqualificação do próprio conceito de “revolução”. Carregando em sua lapela a

 posição de ex-esquerdista que havia “tomado juízo” depois de 1956,23  o historiador

francês combateu em sua trincheira para favorecer o consenso conservador que

caracterizou a cena política dos anos 1980, de triunfo do neoliberalismo nos países

centrais do capitalismo e de crise ideológica da esquerda. O balanço de sua atuação

21 ROSAS, Fernando. “Seis teses sobre memória e hegemonia, ou o retorno da política.” In. LEMUS,Encarnación; ROSAS, Fernando; VARELA, Raquel (orgs.). O fim das ditaduras ibéricas (1974-1978).Lisboa: Pluma, 2010, p.13-18.22 FURET, François. Pensando a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p.99-144.23 Refiro-me ao contexto da “revelação” dos crimes de Stálin, no XX Congresso do Partido Comunista daUnião Soviética, e a invasão da Hungria pelas tropas do Pacto de Varsóvia, eventos que acabaramlevando a que muitos militantes dos PCs do ocidente abandonassem suas fileiras. Entre a intelectualidade,a crise de 1956  seria mais sentida, mas diferentemente dos dissidentes ingleses – que permaneceram naesquerda política, como os historiadores E. P. Thompson e Christopher Hill –, no contexto francês amaioria migrou para o liberalismo anticomunista, como fez Furet.

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 parece ter sido reconhecido, especialmente depois que o mesmo escreveu a sua própria

explicação de sua pretérita vinculação ao Partido Comunista Francês, através de um

livro “sobre a ideia de comunismo” – o livro O passado de uma ilusão. Tal percurso

levou a que, após a sua morte, o (pouco crível)  Livro Negro do Comunismo  fosse

dedicado a sua memória.24

 Analisando o “assalto” a este grande objeto da história moderna, Eric

Hobsbawm (1917-2012) ironizou o fato de Furet e seus epígonos, sob o pretexto de

declarar a eternidade da sociedade liberal-burguesa no fim do século XX, atacavam o

que, na verdade, seriam as próprias interpretações burguesas para 1789, feitas por

homens como Joseph Barnave (1761-1793), Louis Adolphe Thiers (1797-1877),

François Mignet (1796-1884), Augustin Thierry (1795-1856), François Guizot (1787-

1874) etc., especialmente as do período da Restauração (1815-1830).25  Como é

conhecido, na verdade, foi essa literatura liberal-burguesa que trouxe à tona o próprioconceito de luta de classes que influenciou o pensamento de Karl Marx (1818-1883) e

Friedrich Engels (1820-1895),26  construindo uma chave importante nas leituras

clássicas sobre a Revolução. Ademais, toda a historiografia que podemos definir como

socialista – além de Lefebvre e Soboul, Jean Jaurès (1859-1914) e Albert Mathiez

(1874-1932) – compartilhou com a historiografia liberal oitocentista a caracterização

daquela como uma revolução burguesa.27 Para além do liberalismo da Restauração e do

socialismo, no século XX esse paradigma canônico estruturou pesquisas que se valeram

de distintos registros teóricos, como na sociologia histórica de Theda Skocpol28  e

24  FURET, François. O passado de uma ilusão: ensaios sobre a idéia de comunismo . São Paulo:Siciliano, 1995. COURTOIS, Stéphane (org.). O livro negro do comunismo: crimes, terror e repressão.São Paulo: Bertrand, 1999.25 HOBSBAWM, Eric. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa. São Paulo:Companhia das Letras, 1996.26  Idem, ibidem, p.25. Um apanhado da influência desses autores (particularmente de Barnave) na obra de

Marx, pode ser encontrado na Introdução de SCHAFF, Adam.  História e verdade. São Paulo: MartinsFontes, 1978, p.9-62.27 HOBSAWM, Ecos da Marselhesa..., op. cit., capítulo 1. E mais que isso, compartilharam também ageneralização desta compreensão para outros processos históricos, como a Revolução Inglesa do séculoXVII. “Pode-se dizer, de fato, que eles leram não apenas a Revolução Francesa como revolução burguesa,mas também a Revolução Inglesa do século XVII. (Esse é outro aspecto da herança da restauração liberalque ressoaria nos marxistas posteriores).” Idem, ibidem, p.33,28  SKOCPOL, Theda. Estado e Revoluções Sociais. Análise  comparativa da França, Rússia e China.Lisboa: Presença, 1985.

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Barrington Moore Jr,29 até a Begriffsgeschichte (“História dos Conceitos”) de Reinhart

Koselleck.30 

Entretanto não há dúvida de que a crítica de Furet, embora quisesse aparecer

como “desinteressada” e “não-ideológica”, se dirigiu ao que chamou de “catecismo

revolucionário”, “vulgata lenino-populista” ou “jacobino-marxista”, portanto,ideologicamente contra a esquerda. Isto posto, tal como os que queria fazer desacreditar,

François Furet também pensou 1789 a partir de 1917, só que do ponto de vista dos que

queriam exorcizar, não só o comunismo/socialismo, mas a reflexão histórica de uma das

revoluções mais paradigmáticas do mundo contemporâneo. Nesse sentido tem razão

Domenico Losurdo ao apontar que este revisionismo objetiva a liquidação da tradição

revolucionária, desde 1789 até 1917, produzindo o que o autor chama de

“desabamentos em série”, onde outras explicações da História Contemporânea são

desestruturadas.31  De sorte que se acaba na seguinte situação: sem 1789 como umarevolução burguesa torna-se incompreensível o  Risorgimento italiano ou mesmo a

interpretação da Guerra Civil americana como uma revolução de Norte contra o Sul

escravagista; ao passo que, sem 1917, passa a ser ininteligível a luta de libertação

anticolonial, a resistência antifascista, ou ainda a dos defensores da II República na

Espanha, onde é conhecido o papel protagonista cumprido pelos militantes identificados

com a revolução bolchevique.32 

Furet e seus seguidores conseguiriam penetrar também no ambiente acadêmico

anglo-saxão – ele próprio se tornaria pesquisador da Universidade de Chicago –,

notadamente nos ascendentes círculos culturalistas da historiografia, a ponto de um

crítico ter afirmado que tal revisionismo havia reduzido a Revolução a “um

acontecimento linguístico”.33  Na verdade isso foi facilitado pelo fato do próprio

caminho para o revisionismo já ter sido aberto anteriormente pelo historiador britânico

Alfred Cobban (1901-1968), que deve ser tomado como o pioneiro nessa

reinterpretação, pois já em 1964, em seu livro The social interpretation of the French

29 MOORE JR, Barrington. Origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses nasorigens do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983.30  KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio deJaneiro: Contraponto; Ed.UERJ, 1999.31 LOSURDO, Domenico. Il resivionismo storico: Problemi e miti. 5ª edição. Roma-Bari: Laterza, 2002,

 p.3-35.32 Idem, ibidem, p.6-7 e  passim. Cf. também HOBSBAWM, Ecos da Marselhesa, op. cit., p.110.

 Notadamente os comunistas ligados a Moscou, mas também os comunistas dissidentes, como trotsquistase militante do Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM) que se consideravam herdeiros de 1917.33 JONES, Colin. “The return of the banished bourgeoisie.” Times Literary Supplement , 29 de março de1991, p.7 apud  FONTANA, A história dos homens, op. cit., 362.

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revolution, criticou a ideia de “revolução burguesa” a partir da “constatação” de que o

evento teria “atrapalhado” o desenvolvimento econômico da França, num raciocínio

calcado na teoria da modernização. Sem dúvida alguma, esse revisionismo também tem

sua dívida com o livro On Revolution (1960), de Hannah Arendt (1906-1975), onde a

mesma se recente do debate sobre o conceito de Revolução sempre privilegiar osmodelos francês e russo, em detrimento do americano, cuja revolução (1776), segundo a

autora, teria sido “a única que não devorou seus filhos”.

Em 1989, no mundo de fala inglesa, o revisionismo figurou em narrativas como

no livro Cidadãos  de Simon Schama, um best seller , que segundo Alex Callinicos,

 pintava o evento francês como “uma explosão demoníaca de violência irracional”, e

cuja mensagem comercial não poderia ser outra senão a de que: “as revoluções são uma

Má Coisa, sangrenta, destrutiva, irracional”,34 constituindo um capítulo daquilo que o

historiador português Manuel Loff descreveu como “anatemização da Revolução”.35  Nada talvez tenha sido mais significativo da trajetória hegemônica do

revisionismo sobre 1789 do que o fato de sua apoteose ter se dado justamente em torno

às comemorações oficiais e à repercussão na mídia do “bicentenário indigno”,36 quando

a cena pública foi dominada por “aqueles que, em uma palavra, não gostam da

Revolução Francesa nem de sua herança”, como ironizou Hobsbawm.37  Escrevendo

algum tempo depois, Josep Fontana chamou atenção para sua coincidência com a queda

do Muro de Berlim e da publicação de artigo de Fukuyama sobre o “fim da História”,

texto que se notabilizou tanto pela mediocridade, como pelo caráter comemorativo do

que se acreditou ser o triunfo global (e definitivo) do capitalismo.38 

Tendo esses elementos em vista, torna-se evidente o vínculo entre a

historiografia revisionista de Furet e sua “economia política”, que é o pensamento

neoliberal do fim do século XX. No âmbito das ciências humanas, essa abordagem

relacionou-se de forma mais ampla por uma (normativa) concepção do fazer política na

modernidade que busca, entre outras coisas, substituir o tema da revolução pelo tema da

34 CALLINICOS, Alex. A vingança da História. O marxismo e as revoluções do Leste Europeu. Rio deJaneiro: Zahar, 1992, p.17.35  LOFF, Manuel. “ Depois da Revolução?...  Revisionismo histórico e anatemização da  Revolução.”

 História & Luta de Classes, n.12, p.11-16, setembro de 2011, p.13.36 BENSAÏD, Daniel. Moi, La Révolution. Remembrances d’une Bicentenaire Indigne. Paris: Gallimard,1989.37 HOBSBAWM, Ecos da Marselhesa, op. cit., p.9.38 FONTANA, A história dos homens, op. cit., p.413. Cf. também CARDOSO, Ciro Flamarion. “Históriae poder: uma nova história política?” In. CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.).

 Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p.37-54. 

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democracia, separando um do outro e transformando o primeiro numa maldição  e o

segundo – na chave da teleologia liberal – no  futuro desejável  e único possível.39  De

acordo com Lynch, ao abandonar o comunismo, o autor de Penser la Révolution

 française  teria se tornado caudatário de outro ex-esquerdista muito conhecido e

influente, o sociólogo Raymond Aron (1905-1983), que por sua vez desenvolveriatrabalho para reabilitar a concepção democrática de um liberal-conservador como

Alexis de Tocqueville (1805-1859), em oposição à tradição jacobina, Jean-Jacques

Rousseau (1712-1778)40 e (naturalmente) ao socialismo/marxismo.41 

Além de sua influência no mundo anglo-saxão, esta elaboração também acabaria

 por se condensar naquilo que se chama de Escola Francesa do Político, cujas teorizações

sobre a democracia  se fazem em contraponto ao que seriam regimes autoritários  e

totalitários.42 Aliás, a teoria do totalitarismo, que apresenta uma indistinção entre os

regimes nazista/fascistas e o da URSS, concepção típica da Guerra Fria, 43  é a basecomum que une pensadores como Hannah Arendt, o neoliberal Friedrich von Hayek

(1899-1992), e até Claude Lefort (1924-2010), que passou de esquerdista do grupo

Socialisme ou Barbarie a “teórico da democracia” da mencionada Escola Francesa.44 Na

sua “evolução”, Lefort passaria a professar a opinião de que Furet havia ajudado a

39  Para uma crítica da visão liberal sobre a democracia, WOOD, Ellen Meiksins.  Democracia contracapitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003, capítulo “O demo versus ‘nós, o povo’: das antigas às modernas

concepções de cidadania”, p.177-204. HOBSBAWM, Eric.  A Era dos Impérios  (1875-1914). Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1988, capítulo “A política da democracia”, p.125-161.40  A crítica deste último autor iluminista, cujo projeto utópico ancorava-se na limitação ao direito de

 propriedade, de acordo com Carlos Nelson Coutinho animou “praticamente todos os liberais, desde osiluministas de seu tempo (como Voltaire), passando pelos liberais antidemocratas do século XIX (comoBejamin Constant) e chegando até os neoliberais do século XX (como J.L. Talmon, que inaugurou amoda de considerá-lo o precursor da ‘democracia totalitária’).”COUTINHO, Carlos Nelson. “Crítica eutopia em Rousseau.”  Lua Nova, São Paulo, n. 38, 1996, p.18. MACPHERSON, C.B.  A democracialiberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p.2341 Já em 1955, Aron publicou o seu livro O ópio dos intelectuais, onde buscou responder o porque domarxismo ter se tornado uma “moda” entre os intelectuais franceses.42  LYNCH, Christian Edward Cyril. “A democracia como problema: Pierre Rosanvallon e a EscolaFrancesa do Político.” In. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político. São Paulo:Alameda, 2010, p.9-35.43  “Muito sucintamente, além das suas potencialidades políticas imediatas (legitimar teoricamente adivisão política efectiva do planeta, no quadro da Guerra Fria, entre Estados/movimentos não totalitários,configuradores do Mundo Livre, e Estados/movimentos totalitários, necessariamente liderados pela UniãoSoviética; hermanar um Comunismo a derrotar com um Nazismo já derrotado como subprodutos domesmo conceito totalitário de intervenção na sociedade), a teoria do totalitarismo  propunha umaexplicação da mudança social radical e da mobilização social das massas nas sociedades contemporâneascomo fenômenos necessariamente explicáveis pela manipulação deliberada, calculada, arquitetada porgrupos políticos que se autodescrevem como vanguardas.” LOFF, “ Depois da Revolução?...”, op. cit.,

 p.15.44  LOSURDO, Domenico. “Para uma crítica da categoria de totalitarismo.” Crítica Marxista, Rio deJaneiro: Revan, n.17, p.51-79, 2006.

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“redescobrir a análise do político”, e de que, como já dizia Aron, o estudo do

“totalitarismo soviético” era necessário para a compreensão da democracia.45 

Após o colapso da URSS, ganhou enorme espaço a ideologia da superioridade

incontestável da economia de mercado sobre qualquer forma de regulação social –

desde o Estado de Bem-Estar até o planejamento de tipo soviético –, que combinou-se àdecretação não menos ideológica da impossibilidade de uma mudança radical na

sociedade. “There is no alternative!”, o slogan de Margaret Thatcher nos anos 1980,

tornar-se-ia a voz corrente na década seguinte, e mudanças radicais na História seriam

desacreditadas ou tomadas como “perigosas”, ainda que a convulsão social provocada

 pelo colapso dos regimes soviéticos fosse apresentada pela grande mídia como

“revoluções”, só que – com um sinal invertido – “em direção ao capitalismo e a

democracia”.46 

Aliada à enorme influência das teorias pós-modernistas nos meios intelectuais, eseu niilismo conformista/catastrofista que caracterizou o ambiente intelectual daqueles

anos – quando, como pontuou Fredric Jameson, no início da década de 1990, para

amplos círculos parecia mais fácil “imaginar a completa deterioração da terra e da

natureza do que a quebra do capitalismo” – 47  a liquidação da tradição revolucionária

ganhou forte significação. O revisionismo histórico sobre uma revolução que foi tomada

 por longo tempo como paradigma da mudança social (1789) insere-se, deste modo,

nesse contexto de criação dessa “grande narrativa” do neoliberalismo sobre o “fim da

história”. A propósito, os próprios vínculos públicos entre Furet e o programa neoliberal

45 LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. São Paulo:Paz e Terra, 1991, p.115. LYNCH, “A democracia como problema...”, op. cit., p.20-25. De qualquermodo é importante considerar a existência de outra acepção para o termo totalitarismo, como na tradiçãofrankfurtiana que fala do “capitalismo totalitário”.46  O debate sobre o fim da URSS é tão antigo quanto o próprio acontecimento, e as descrições dasenormes convulsões sociais no Leste Europeu no fim dos anos 1980 como “Revolução” não foram apenas

 produzidas por autores inseridos à direita do espectro político, mas também por representantes daesquerda marxista, como Alex Callinicos e Valério Arcary. CALLINICOS,  A vingança da história, op.cit.; ARCARY, Valério. As esquinas perigosas da história. São Paulo: Xamã, 2004.47  JAMESON, Fredric. “As antinomias da pós-modernidade.” In.  A virada cultural: reflexões sobre o

 pós-moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.91. Na mesma época, Slavoj Žižek chamouatenção para o caráter ideológico dessa virada descrita por Jameson, explorando o fato de que algumasdécadas antes ainda se imaginavam “diferentes formas de organização social da produção e do comércio(o fascismo ou o comunismo como alternativas ao capitalismo liberal; hoje, como assinalou FredricJameson com muita perspicácia, ninguém mais considera seriamente as possíveis alternativas aocapitalismo, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões do futuro ‘colapso da natureza’,da eliminação de toda a vida sobre a Terra. Parece mais fácil imaginar o ‘fim do mundo’ que umamudança muito mais modesta no modo de produção, como se o capitalismo liberal fosse o ‘real’ que dealgum modo sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global...” ŽIŽEK, Slavoj.“Introdução. O espectro da ideologia.” In. ŽIŽEK, Slavoj (org,). O mapa da ideologia. Rio de Janeiro:Contraponto, 1996, p.7.

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não são difíceis de estabelecer. Em um de seus artigos publicados na revista  Débat , na

edição de novembro/dezembro de 1989, quando mirava na crise terminal vivida pela

URSS, o historiador ironizou as reformas introduzidas por Gorbachev como prova de

que, até no regime oriundo de 1917 (agora) se reconhecia o “caráter insubstituível de

uma economia de mercado”.48

  Nesse mesmo contexto da emergência do revisionismo da Revolução,

desenvolveu-se outro debate cujos quadros foram similares, embora fosse esposado em

função não de controvérsias sobre revoluções, mas sim sobre uma das contrarrevoluções

mais brutais no século XX: o nazismo alemão. Conhecido como  Historikerstreit   (“A

querela dos historiadores”), o debate foi provocado pela reação a um artigo do

historiador Ernest Nolte (1923 - ) no jornal conservador Frankfurter Allgemeine Zeitung 

(FAZ), em junho de 1986, onde apresentou sua tese de que o Nazismo e mesmo o

Holocausto foram “reações ao bolchevismo”.49  Publicizando teses que vinhadefendendo há algum tempo, Nolte afirmava que o “nexo causal” entre as duas

experiências seria uma suposta similitude entre o “extermínio de classe” dos

 bolcheviques, face ao “extermínio de raça” dos nazistas, numa formulação que

inegavelmente tem pontos de contato com a já mencionada teoria do totalitarismo, mas

é preciso lembrar que o autor possuía uma conceituação própria sobre o assunto.

Excêntrico de direita, discípulo do filósofo Martin Heidegger (1889-1976), Nolte

 já possuía uma influente obra sobre o fascismo quando publicou seu artigo na FAZ nos

anos oitenta, de que são exemplo o seu  Der Faschismus in seiner Epoche, de 1963, e

Theorien über den Faschismus, de 1972. No livro de 1963 contribuiu com um conceito

de fascismo como um fenômeno metapolítico (ou “transpolítico”, que compreendia uma

resistência contra modernidade, combinada à resistência ao que chama de

“transcendência prática”, o comunismo/marxismo). Após 1968, sua obra teve uma

inflexão importante, tendo assumido posição central o argumento da precedência do

“Terror Vermelho” a Auschwitz.50  Fazendo eco a esta formulação, em seu artigo de

1986 escreveu: “Não foi o arquipélago Gulag anterior a Auschwitz? Não foi a ‘morte à

classe’ dos bolcheviques o antecedente (Prius) lógico e fático da ‘morte à raça’ dos

48 FURET, François. A Revolução em debate. Bauru (SP): EDUSC, 2001, p.119.49 Publicado no Brasil em NOLTE, Ernest. “O passado que não quer passar.”  Novos Estudos CEBRAP,São Paulo, n.25, p.10-15, 1989.50 De acordo com o historiador Pier Paolo Poggio, o renascimento do marxismo nas universidades daAlemanha Federal nos anos 1960 havia surpreendido Nolte, que, por esta época, teve constantes choquescom a juventude estudantil de esquerda, que por volta de 1968 estava a perguntar aos seus pais e

 professores “como passavam o tempo nos anos 1930”. POGGIO, Píer Paolo.  Nazismo y revisionismohistórico. Madrid: Akal, 2006, p.213-214 e 227.

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nacional-socialistas?”.51  Além do mais, argumentou que massacres de massa foram

comuns no século XX, de que são exemplos os feitos pelos EUA no Vietnã, por Pol Pot

no Camboja e o próprio Gulag soviético.52 Deste modo, em vez de ficarem com a eterna

culpa face ao Holocausto, os alemães (ocidentais) deveriam ficar em “paz consigo

mesmos” e deixar o “passado passar”. No dia 8 de maio do ano anterior, quando das comemorações oficiais dos 40

anos do fim da Segunda Guerra Mundial, o presidente norte-americano Ronald Reagan,

visitou as ruínas de um antigo campo de concentração em Bergen-Belsen e um

cemitério de guerra de Bitburg onde estavam enterrados “heróis” nazistas alemães. O

episódio ficaria conhecido como “Bitburg fiasco”, resultante de uma aparentemente

desastrosa intenção dos dois governos ocidentais de esquecer  as antigas hostilidades que

levaram à guerra de 1939-1945, com o compromisso comum de combate ao

Comunismo.53 Isso se combinaria à iniciativa do governo alemão (presidido desde 1982 pelo neoliberal Helmut Kohl) no sentido de construção do Museu Histórico Alemão em

Berlim, e um Centro de Memória em Bonn, monumentos que, indistintamente,

rememorassem criminosos e vítimas do nazismo.54 

 No verão de 1986, quando Nolte publicou seu artigo, a Alemanha Federal estava

em clima pré-eleitoral,55  e para círculos oposicionistas o teor do texto parecia uma

grande provocação. Foi nesse contexto que o filósofo Jürgen Habermas publicaria uma

crítica no semanário  Die Zeit , denunciando as “tendências apologéticas” do artigo de

 Nolte, tanto quanto da historiografia produzida por autores como Michael Stürmer

(1938 - ) e Andreas Hillgruber (1925-1989), cujo propósito era o de normalizar   o

 Nazismo e o próprio Holocausto na identidade histórica alemã.56  Para o discípulo de

51 NOLTE, “O passado que não quer passar.”, op. cit., p.14. 52 Nos anos 1970 apareceu no Ocidente o livro  Arquipélago Gulag, de Aleksandr Solzhenitsyn (1918-2008), escritor russo que fez um penoso relato da vida nos campos de trabalhos forçados na URSS, queespalhados em todo o território russo conformariam uma espécie de “corrente de ilhas” (daí o termoarquipélago), já que tais campos só eram conhecidos pelos que, desgraçadamente, fossem alvo da

 perseguição do Estado stalinista. Ganhando o Nobel da Literatura em 1970, o livro foi instrumento

ideológico importante no combate tanto ao Comunismo como proposta de  futuro desejável, quanto, num plano mais geral, a qualquer projeto de transformação radical da realidade, supostamente condenada a produzir o autoritarismo.53  ELEY, Geoff. “Nazism, Politics and the Image of the Past: Thoughts on the West German

 Historikerstreit  1986-1987.” Past and Present , n.121, p.171-208, novembro de 1988, p.175-176.54  MADSEN, Jacob Westergaard. “The Vividness of the Past: A Retrospect on the West German

 Historikerstreit  in the mid-1980s.” University of Sussex  Journal of Contemporary History, (1), 2000.55  As eleições se realizaram janeiro de 1987, com a vitória dos conservadores e a continuidade dogabinete de Kohl.56 Publicado no Brasil em HABERMAS, Jürgen. “Tendências Apologéticas.” Novos Estudos CEBRAP,São Paulo, n.25, p.16-27, 1989.

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Adorno, ao tornar o Comunismo o “mal absoluto” do século XX, Nolte e demais

revisionistas acabavam por tornar o Nazismo um “mal menor”.

O debate também contaria com intervenções dos historiadores Hans-Ulrich

Wehler e Jürgen Kocka (esses da respeitada “Escola de Bielefeld”), Hans Mommsen,

Martin Broszat, Heinrich August Winkler, Wolfgang Mommsen, e o presidente daassociação de historiadores alemães, Christian Meyer, ao lado de Habermas. Aliaram-se

a Nolte, o jornalista, biógrafo de Hitler e editor do FAZ, Joachim Fest (1926-2006),

Stürmer, Hillgruber, além de Klaus Hildebrand e Hagen Schulze. O termo

“revisionismo”, utilizado por Habermas, seria logo assumido por Nolte em intervenções

 posteriores, ainda que para um e outro possuíssem acepções distintas. Sintetizando a

controvérsia, Wehler apontou o propósito dos revisionistas de aliviar a consciência

alemã de sua responsabilidade histórica, transferindo-a para as teorias de Marx, os

comunistas e mesmo os social-democratas.57  Nos anos 1990, o próprio François Furet não se furtaria a dar sua chancela

acadêmica ao seu colega alemão, protagonizando outra suposta “querela”, numa “troca

de correspondência” pública sobre a comparação entre “Comunismo” e “Fascismo”. Em

suma, enquanto Furet defendeu a tese de que ambos eram “gêmeos totalitários”, ao

mesmo tempo em que Nolte afastava-se do seu próprio conceito meta-político de

fascismo de 1963 para abraçar a teoria do totalitarismo.58 Por outro lado, enquanto Furet

apresentava reservas quanto a interpretação do historiador alemão para a Shoà, Nolte

resolveu conferir crédito aos negacionistas do Holocausto, que auto-denominaram-se

“revisionistas”, buscando cidadania no debate acadêmico. Nesse sentido, Domenico

Losurdo parece ter razão quando vincula esses dois debates historiográficos dos anos

1980 – sobre a Revolução Francesa e o Historikerstreit  – a um mesmo fenômeno de

revisionismo histórico, cuja raiz comum é a condenação geral dos ciclos revolucionários

de 1789 e 1917.59 Um das consequências é o esvaziamento da Resistência anti-fascista,

importante na construção da identidade política de parte significativa do sistema

 partidário das democracias da Europa ocidental no após II Guerra.

 Na Itália o revisionismo sobre o fascismo já tinha feito sua aparição algumas

décadas antes, através da obra de Renzo De Felice (1929-1996), que, antes de mais

57 ELEY, “Nazism, politics and the image of the past.”, op. cit., p.177 e passin.58 FURET, François & NOLTE, Ernest. Fascismo y comunismo. México/Buenos Aires : Fondo de CulturaEconómica, 1998. TRAVERSO, Enzo. El pasado, instrucciones de uso. Historia, memória, política.Madrid: Marcial Pons, 2007, p.86.59 LOSURDO, Il resivionismo storico, op. cit, p.6-7.

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nada, buscou circunscrever o fenômeno ao contexto italiano.60 Em sua monumental

 biografia sobre o  Il Duce, que começou a publicar no fim dos anos 1960, De Felice

interpretou a guerra civil italiana de 1943-1945 como resultado da ação de uma

“minoria de resistentes”, caracterizados como “antinacionais”. Nos anos setenta, uma

entrevista sua provocaria fortes reações em círculos políticos identificados com o anti-fascismo (comunistas principalmente), e a alcunha de revisionista  foi-lhe empregada

como forma de censura, e (ao contrário de Nolte) De Felice nunca aceitou o epíteto.61 

Mas o grande impacto produzido pelo revisionismo defeliceano ocorreu na

década de 1990, num contexto político marcado pelo declínio das organizações

 partidárias identificadas com a Resistência e que constituíram a República no pós-II

Guerra – principalmente o Partido Comunista, o Partido Socialista e a Democracia

Cristã. Em 1995, quando subiu ao poder Silvio Berlusconi, cuja composição levou ao

governo pela primeira vez desde 1945 um partido claramente fascista (a  Alleanza Nazionale), o historiador publicaria seu livro Rosso e Nero, culminância de uma obra de

reabilitação de Mussolini, que figura como um “patriota” que, fundando a República de

Salò,62 havia impedido que a Itália tivesse o mesmo destino que a Polônia.63 No final

das contas, é a própria Resistência que acaba por figurar no banco dos réus, com a

 participação do Partido Comunista transformada em elemento acusatório para levantar

dúvidas sobre o “caráter democrático” da mesma.64 

Também por esta época, o politólogo americano Daniel Goldhagen apresentou

um novo revisionismo sobre o Nazismo, com a publicação de seu livro Os carrascos

voluntários de Hitler  (1996), no qual apresentava a tese de que “todo o povo alemão”

havia sido conivente com os crimes nazistas e com o próprio Holocausto. A evidente

deficiência do ponto de vista da pesquisa empírica para hipótese tão generalizante, logo

60  Numa interpretação por seus críticos tida como “empirista-positivista”. POGGIO,  Nazismo yrevisionismo histórico, op. cit., p.205 e 217.61  Entretanto, na historiografia italiana, o legado defeliceano como um revisionismo  é consensual,

inclusive entre seus partidários. GROPPO, Bruno. “’Revisionismo’ histórico y cambio de paradigmas enItalia y Alemania.” Políticas de la Memoria, Buenos Aires, n.4, p.47-60, verão de 2003/2004, p.53.POGGIO, Nazismo y revisionismo histórico, op. cit. LOSURDO, Il revisionismo storico, op. cit.62 Fundada na parte norte da Itália, após o rei italiano demitir Mussolini do cargo de premier em 1943, soba ocupação do Exército Alemão, a guerra civil foi estabelecida entre os partidários da República SocialItaliana (também conhecida como República de Salò, pois foi fundada nessa cidade próxima à Milão),apoiados pelos nazistas (que ocuparam o território) contra a Resistência e as tropas aliadas, americanas efrancesas principalmente.63  FELICE, Renzo De.  Rosso e Nero. Milão: Baldini & Castoldi, 1995 apud   TRAVERSO, El pasado,instrucciones de uso, op. cit., p.98-99.64 GROPPO, “’Revisionismo’ histórico y cambio de paradigmas en Italia y Alemania”, op. cit., p.54.

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desacreditaria Goldhagen entre os historiadores profissionais,65  ainda que não seja

muito difícil encontrar abordagens mais aceitas que incorrem no mesmo tipo de

generalização.

Ainda na Alemanha, outro episódio no fim da década de 1990 denotou como a

onda revisionista não havia se esgotado. Realizado em 1998, um tradicional encontro deuma associação de historiadores daquele país ( Historikertag), a adesão aberta ao regime

nazista de figuras como Werner Conze e Theodor Schieder, que haviam formado grande

 parte da geração que dominava a disciplina naquele contexto, constituiu ponto de

discórdia, com críticas severas dos profissionais mais jovens.66  A esta altura é

necessário pontuar um dos resultados de todo esse revisionismo: do  Historikerstreit  ao

contexto de divulgação do  Livro Negro do Comunismo nos anos 1990 – que reclamou

um “Nuremberg do Comunismo” –, Enzo Traverso notou um verdadeiro eclipse do

conceito de  fascismo na historiografia alemã para tratar do Nazismo – substituído, namaioria dos casos, pelo de totalitarismo (como vimos, até Nolte acabaria abandonado

sua conhecida conceituação).67 

Esse breve olhar sobre a  Historikerstreit  e seus desdobramentos também serve

 para afirmar uma distinção importante entre o significado daquilo que estamos

conceituando como revisionismo do que se chama negacionismo, de autores de extrema-

direita como Robert Faurisson e Paul Rassiner. Pois o negacionismo destes retorce as

evidências históricas para negar a existência do Holocausto, posição que não é de

nenhum modo compartilhada por revisionistas como Ernest Nolte (ainda que esse aceite

dialogar com os primeiros). Deste modo, em acordo com uma série de autores, é

necessário assinalar essa distinção entre os dois conceitos.68  Até porque os

negacionistas do Holocausto buscaram (e buscam) legitimar sua própria “interpretação”

com base na ideia de que representariam um revisionismo academicamente válido que

65  Embora discordasse dos pontos centrais da tese, Hans-Ulrich Wehler reconheceu que a obra do politólogo lançava uma luz para a questão do apoio de massa ao governo de Hitler. GOLDHAGEN,Daniel Jonah. Os carrascos voluntários de Hitler : o povo alemão e o Holocausto. São Paulo: Companhia

das Letras, 1997. Sobre o ponto de vista de Wehler, cf. FONTANA, História dos homens, op. cit., p.366-377.66 TRAVERSO, El pasado, instrucciones de uso, op. cit., p.83-84.67  Idem, ibidem, p.81-91.68 VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memoria: uma Eichmann de papel e outros ensaios sobre orevisionismo. Campinas: Papirus, 1994. TRAVERSO, El pasado, instrucciones de uso, op. cit., p.57-60.PISANTY, Valentina.  L’irritante questione delle camere a gas. Logica del negazionismo. Milão: RCSLibri, 1998, p.6-7. LOSURDO,  Il resivionismo storico, op. cit. POGGIO,  Nazismo y revisionismohistórico, op. cit. SOUTELO, Luciana de Castro.  A memória do 25 de Abril nos anos do cavaquismo: odesenvolvimento do revisionismo histórico através da imprensa (1985-1995). Dissertação de mestrado emHistória Contemporânea. Universidade do Porto, Porto, setembro de 2009, p.97-130.

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apenas representaria uma interpretação alternativa a abordagem que classificam como

“exterminacionista”.69 

Tal distinção encontra-se no conceito de revisionismo tomado por Hobsbawm,

 para quem Furet e epígonos estavam fazendo era “ajustando de forma diferente os fatos

conhecidos”,70

 até porque, naquele caso, a contribuição do revisionismo na questão doconhecimento sobre a própria Revolução era pífia, senão nula.71  Ao mesmo tempo,

como pondera a historiadora Luciana Soutelo, o negacionismo  relaciona-se de modo

importante ao revisionismo em um sentido mais geral, como uma corrente minoritária

no seu interior deste.

“É importante explicitar que em inúmeros casos tampouco aargumentação revisionista  é baseada em ‘premissas teóricas ehistoriográficas legítimas’, já que, apesar de não haver negação dos fatoshistóricos em si, se desconsideram as especificidades e os contextos

históricos de modo a favorecer determinados posicionamentosideológicos do presente, muitas vezes em total negligência da lógicahistórica do período estudado – por exemplo, a relação estabelecida porErnest Nolte entre o nazismo e sua política de extermínio como reação ao

 bolchevismo ignora o fato, ressaltado por muitos autores, de que osfundamentos originários desta política são bem anteriores à eclosão daRevolução Russa. Nesse sentido, também muitas interpretaçõesrevisionistas violam princípios metodológicos da historiografia em nomede propósito ideológicos – talvez o façam, no entanto, de forma maissutil do que os negacionistas, através de subterfúgios e confusõesinterpretativas que acabam por conferir-lhes uma fachada de maiorrespeitabilidade teórica. Todavia, a distinção entre revisionismo e

negacionismo  é pertinente e deve ser salientada. É adequado, portanto,considerar o negacionismo  como uma variante minoritária dorevisionismo histórico.”72 

 Nos tempos que correm, algumas dezenas de historiadores protagonizam uma

outra batalha pela história contra o revisionismo expresso no  Diccionario Biográfico

Español, feito sob os auspícios da Real Academia de la Historia. Os problemas mais

graves de tal obra aparecem nos volumes referentes à República, Guerra Civil e Franco.

A biografia de Franco, a cargo do historiador medievalista Luis Suarez, nada menos que

o presidente da Fundación Francisco Franco, resulta no perfil do texto, em que esse personagem aparece como um político “moderado” e “prudente” que encabeçou um

69 TRAVERSO, El pasado..., op. cit., p.93-94.70 HOBSBAWM, Ecos da Marselhesa..., op. cit., p.106.71 FONTANA, A história dos homens, op. cit., p.360-361.72 SOUTELO, A memória do 25 de Abril nos anos do cavaquismo..., op. cit., p.100.

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“regime autoritário”, não uma “ditadura”, muito menos uma “ditadura fascista”.73 Ao

mesmo tempo, nas páginas do  Diccionario, dirigentes do Partido Socialista Obrero

Español (PSOE) que chefiaram a II República entre 1936-1939, Juan Negrín López

(1892-1956) e Francisco Largo Caballero (1869-1946), são apresentados como

“ditadores”. Além disso, a própria Guerra Civil iniciada em 1936 é retratada como setivesse sido provocada pelo “caos reinante a partir da instalação da República (1931)”,

de modo a apresentar o levante contra-revolucionário de Franco como uma espécie de

“expressão da revolta do povo contra a República”, uma “cruzada” ou mesmo uma

“guerra de libertação contra a invasão vermelha estrangeira”.

Em resposta, En el combate por la historia. La república, la guerra civil, el

 franquismo,74  editado por Ángel Viñas e que contam com 45 capítulos temáticos e 12

 biografias, escritos por especialistas do porte Paul Preston, Julia Casanova, Julio

Aróstegui, além de Josep Fontana e mais uma dezena de pesquisadores, apresenta-secomo uma espécie de “Contradiccionario”. Com um título que rememora o clássico

livro Combats pour l’Histoire (1952) de Lucien Febvre (1878-1956), o propósito de En

el combate por la historia  é o de também apresentar o resultado da investigação

histórica dos últimos 30 anos sobre a evolução da sociedade espanhola no período

compreendido entre 1931 até 1975, além, é claro, de combater o uso ideológico da

História feito pelo revisionismo neo-franquista. Na apresentação, Ángel Viñas nos dá

uma boa descrição da obra da Real Academia de la Historia:

“Franco apareció bajo una luz rosada, algo inimaginable en el caso deuna institución comparable en cualquier país europeo con los restantesdictadores autóctonos del siglo XX. La experiencia republicana fuedemonizada. La guerra civil resurgió en ocasiones como una lucha contralos ‘rojos’. En algunas de las entradas aireadas en la prensa fue imposibledesconocer el sesgo antidemocrático y a veces próximo a las querenciasde la extrema derecha española. Todo ello presentado, bajo la autoridadde la augusta Institución, como si fuese la última palabra en historia.”75 

Todavia, em perspectiva com os revisionismos já mencionados, o teor notoriamente

 pró-Franquismo do  Diccionario  o aproxima mais do negacionismo, ou seja, umavariante caricatural do revisionismo, mais próxima daquilo que virtuosamente os

73 É evidente que não há consenso na historiografia sobre o enquadramento do Franquismo como umaexperiência fascista, mas deve-se observar que o propósito desta absolvição de fascista não opera a partirde uma rigorosa elaboração conceitual.74 VIÑAS, Ángel (ed.); PRESTON, Paul; ARÓSTEGUI, Julio; FONTANA, Josep et al. En el combate

 por la historia. La república, la guerra, el franquismo. Barcelona: Pasado & Presente, 2012.75 VIÑAS, Ángel. “Presentación.” In. VIÑAS, En el combate por la Historia, op. cit., p.13.

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autores do Contradiccionario denominam de “historietografía”. Nesse mesmo sentido, o

 próprio Viñas diferencia esta de outras controvérsias recentes sobre o passado.

“Lo que ocurre en nuestro país, con la carta blanca que en él se da acualesquiera versiones, distorsiones o plenas estupideces, es algo muydiferente de lo que ocurrió en otros de pasados no menos sombríos: la

 Historikerstreit   – la querella de los historiadores – en Alemania, lasoleadas que suscitó la ‘recuperación’ de Mussolini en Italia de la manode Renzo De Felice o la visión relativamente balsámica que durante añosse propagó en Francia sobre el régimen de Vichy hasta que la reventó deun trallazo Robert O. Paxon.

Aquí se venden sucesivas ediciones de un libritoinfumable que presente a Franco como católico ejemplar y nadie seconmueve.”76 

Para outro dos autores do Contradiccionario, Julio Aróstegui (1939-2013),

revisionismo franquista teria se habilitado a partir da ascensão do Partido Popular (PP)

ao governo, em 1996,77 donde em espaços como a própria Academia Real de História,

historiadores conservadores teriam começado a divulgar versões como a de que a

Guerra Civil não foi mais que uma “cruzada” contra o “terror vermelho”, e onde os

maquis (resistentes republicanos) são retratados como “bandoleros-terroristas”.78 

Em Portugal o revisionismo histórico sobre o Salazarismo e a própria Revolução

Portuguesa de 1974-1975, também não deixou de figurar nos últimos anos. As

relativizações do passado salazarista – naturalmente descaracterizado como “fascista”, e

qualificado de simplesmente “autoritário” – 79 e a desqualificação da própria Revolução

dos Cravos, coincidem com a emergência dos governos da direita a partir de 1979,

especialmente ao longo do período conhecido como “cavaquismo” (1985-1995).80 

Sintonizado aos ventos revisionistas que vimos descrevendo, certa historiografia, ao

lado da mídia, tem buscado, ao mesmo tempo, “reabilitar” Salazar e apresentar o

76  Idem, ibidem, p.24.77 “El revisionismo coincide con la llegada del PP al Gobierno en 1996.” Público, Madrid, 26 de abril de2012. Disponível em http://www.publico.es/espana/430950/el-revisionismo-coincide-con-la-llegada-del-

 pp-al-gobierno-en-1996 (acessado em 9 de dezembro de 2012)78 “Manipulación en el ‘Diccionario Biográfico Español: La Guerra Civil fue una ‘cruzada’ y una ‘guerra

de liberación’.” Publico, Madrid, 2 de junho de 2011. Disponível emhttp://www.publico.es/culturas/379651/la-guerra-civil-fue-una-cruzada-y-una-guerra-de-liberacion(acessado em 9 de dezembro de 2012). “La obra convierte a los maquis en ‘terroristas’ y ‘bandoleiros’.”Público, Madrid, 1 de junho de 2011. Disponível em http://www.publico.es/culturas/379437/la-obra-convierte-a-los-maquis-en-terroristas-y-bandoleros (acessado em 9 de dezembro de 2012).79 Por outro lado, da mesma forma que no Franquismo, a caracterização daquele regime (1933-1974)como “fascista” não é consensual na literatura.80  SOUTELO,  A memória do 25 de Abril nos anos do cavaquismo..., op. cit.; ______. “Visões daRevolução dos Cravos: combates pela memória através da imprensa (1985-1995).” In. VARELA, Raquel(coord.). Revolução ou Transição? História e Memória da Revolução dos Cravos. Lisboa: Bertrand, 2012,

 p.229-249. LOFF, “ Depois da Revolução?...”, op. cit.

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 processo revolucionário desencadeado após o golpe de 25 de abril de 1974 como um

“delírio coletivo”, à maneira dos  furetianos. Todavia, o revisionismo português parece

não ter o mesmo sucesso que os seus congêneres em outras latitudes, pelo menos nos

que diz respeito aos seus aspectos mais escandalosos, como denota esse comentário da

historiadora Raquel Varela:“Com a ascensão do neoconservadorismo norte-americano da era GeorgeBush, alguns intelectuais portugueses conservadores, como o historiadorRui Ramos, reunidos em torno da revista  Atlântico e da Rádio Europa-Lisboa, tentaram de alguma forma reabilitar Oliveira Salazar, mas comescasso sucesso. O ponto culminante desta fase foi o amplamentenoticiado talk show  sobre ‘Grandes Portugueses’ vencido por Salazar,logo seguido de Álvaro Cunhal, líder do Partido Comunista. Apesar damediatização do programa, a sua base real era escassa. Na verdade, amaioria dos cientistas sociais nacionais, de vários quadrantes políticos,assinaram um manifesto denunciando a manipulação do programa. Foi,

como veio a compreender-se rapidamente, um epifenómeno. O 25 deAbril é o feriado nacional com mais ampla participação popular econtinua a ser celebrado oficialmente em todas as intuições do Estado,que reflectem o sentimento popular generalizado de defesa da revoluçãoe das suas conquistas democráticas e sociais: direitos democráticos,generalização do acesso aos cuidados de saúde, educação, segurançasocial, etc.”81 

Por outro lado, em amplos círculos acadêmicos, as teses revisionistas sobre a

Revolução tem tido um peso considerável, e podem ser resumidas nos seguintes pontos:

1) a Revolução foi nada mais que um golpe perpetrado por um pequeno grupo de

militares que é aproveitado pelos partidos anti-salazaristas; 2) insinua-se que o próprio

Marcelismo (1968-1974) já encaminhava um “processo de mudança”, a partir de

modernizações socioeconômicas e uma suposta resolução do problema da Guerra

Colonial; 3) que o próprio processo revolucionário em si foi pontuado por “erros” e

“excessos”, que, além do mais, teriam na verdade contrariado o que seria uma suposta

“tradição portuguesa”, representada em instituições como a Igreja Católica e setores

 políticos e militares moderados, entre outros aspectos.82 Outro ponto deste revisionismo,

4) é a busca de substituir o conceito de Revolução pelo de “Transição”, para descrever acena portuguesa de 1974-1976, desvinculando a própria Democracia portuguesa do 25

de Abril.83 Como é regra, tal revisionismo português não apresenta novas pesquisas que

81 VALERA, Raquel. “Conflito ou coesão social? Apontamentos sobre história e memória da Revoluçãodos Cravos (1974-1975).” In. VARELA (coord.), Revolução ou Transição?, op. cit., p.186-187.82 LOFF, “ Depois da Revolução?...”, op. cit., p.13-14.83 VARELA, “Conflito ou coesão social?...”, op. cit. ROSAS, Fernando. “Notas para um debate sobre aRevolução e a Democracia.” In. VARELA, Revolução ou Transição?, op. cit., p.251-283.

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 possam endossar tais teses, trata-se, mais uma vez, da sugestão de uma “nova

interpretação” de fatos já conhecidos, ao mesmo tempo em que a significativa produção

historiográfica sobre o tema, representada hoje por nomes como Fernando Rosas,

Raquel Varela, Valério Arcary, Manuel Loff, Luciana Soutelo, Jorge Fontes, entre

outros, tem se insurgido contra essa tendência conservadora.

Depois deste comentário geral, é necessário também assinalar os distintos usos

que a palavra revisionismo  apresentou no século XX para precisar-lhe o sentido

conceitual que adquire para a crítica historiográfica e nesta tese. Primeiramente, cabe

mencionar que o termo apareceu no debate aberto pela intervenção de Eduard Bernstein

(1850-1932) na socialdemocracia alemã e na Internacional Socialista já em fins do XIX

e início do XX, sendo novamente habilitada nas controvérsias posteriores do

movimento comunista internacional ao longo deste século, tornando-se praticamentesinônimo de “traição”.84 Nesses dois casos, carregava forte carga pejorativa, justificador

de dissensos, cisões e perseguições no interior do movimento socialista. Só após a II

Guerra Mundial é que os historiadores introduziriam o termo no seu vocabulário, em

alguns casos para afirmar o caráter renovador de abordagens, em outros, viradas ético-

 políticas informadas pela disputa ideológica do presente, na maior parte das vezes uma

mistura entre essas duas. Como define Enzo Traverso:

“Muchos intentos de renovar la interpretación de una época o de un

acontecimiento, de poner en causa el punto de vista dominante, ha sidocalificados de ‘revisiones’. Esta palabra intentaba subraya su carácterinnovador y no deslegitimar, ya que sus representantes eran reconocidosmiembros de la comunidad de los historiadores.”85 

 Na historiografia ocidental sobre a Revolução Russa de 1917, por exemplo, o

termo “revisionismo” refere-se a um conjunto de trabalhos que, a partir da segunda

metade dos anos 1960, se opuseram à interpretação ortodoxa/anticomunista dos cold

warriors, e se caracterizou pela introdução da história social. De acordo com o balanço

do especialista Ângelo Segrillo,

86

  enquanto os cold warriors  de modo geralsimplificaram a explicação da tomada do poder pelos bolcheviques como um “golpe”

84  COATES, David. “Revisionismo.” In. BOTTOMORE, Tom (Ed.).  Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p.323-324. SETTEMBRINI, Domenico. “Revisionismo.” In.BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.).  Dicionário de Política. 12ªEd. Vol.2. Brasília: Ed. UNB, 2004, p.1117-1121.85 TRAVERSO, El pasado, instrucciones de uso…, op. cit., p.95-97.86  SEGRILLO, Ângelo. “Historiografia da Revolução Russa: antigas e novas abordagens.” Projeto

 História, São Paulo, n.41, p.63-92, dezembro de 2010.

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 perpetrado por um grupo (bolcheviques) com pouco enraizamento social, um autor

considerado revisionista como Moshe Lewin desmontou tal ideia, e mais uma outra

muito comum, qual seja a de que o stalinismo era um desdobramento natural do

leninismo, discutindo o caráter antiburocratizante dos últimos escritos de Lênin.

Enquanto também o francês Marc Ferro pode ser mencionado como revisionista, já queconclui que “o papel dos bolcheviques na Revolução de Outubro não foi de um líder (ou

manipulador) das massas em uma situação desesperada”.87 

 Não seria por acaso que no establishment   universitário dominado pelos

historiadores ortodoxos, os revisionistas fossem visto como “esquerdistas”. O

interessante é que, após o fim da URSS, autores da historiografia cold warriors como

Richard Pipes e Robert Conquest voltaria à carga, reafirmando seus pontos de vista. Na

ocasião se sentiram confortáveis para compartilhar o revisionismo de François Furet, a

 ponto de reduzirem 1917 a uma “psicose revolucionária”,88  constituindo mais umcapítulo da “anatemização da Revolução”.89 

Diretamente ligado ao último tema, também nos Estados Unidos a historiografia

sobre a Guerra Fria o termo revisionismo refere-se a toda uma importante produção

sobre as origens das tensões EUA-URSS onde, ao contrário da tradicional justificativa

 para um conflito que seria provocado unilateralmente pelos soviéticos, encara a

complexidade e as responsabilidades do governo estadunidense. 90 Ligada ao clima de

contestação generalizada da Guerra do Vietnã e da chamada Nova Esquerda, mas

também baseado em pesquisas de fôlego, os livros de nomes como Gabriel Kolko, em 

The Politics of War   (1968) e The Roots of American Foreign Policy  (1969), Walter

LaFeber em  American, Russian, and the Cold War   (1967) e Lloyd Gardner em

 Architects of Illusion  (1970), são representativos desta corrente. Já na historiografia

israelense, autores como Benny Morris e Illan Pappé representam também uma corrente

chamada revisionista, já que seus trabalhos tornaram a compreensão da Guerra de 1948

mais complexa ao introduzir a espinhosa questão da limpeza étnica dos palestinos.

Deste modo, revisaram a narrativa oficial israelense – e no caso de Pappé com o recurso

87  Idem, ibidem, p.76, citação à p.78.88  Idem, ibidem, p.79-81.89 LOFF, “ Depois da Revolução?...”, op. cit., p.13.90  SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma reavaliação da História dos EstadosUnidos. Da Colônia à Potência Imperial. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p.382-383.

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constitui um movimento necessário na disciplina toda a vez que surgem novas questões

 para iluminar o passado. Como bem comentou Christopher Hill, historiador da

Revolução Inglesa do século XVII,

“A história precisa ser reescrita a cada geração, porque embora o passadonão mude, o presente se modifica; cada geração formula novas perguntasao passado e encontra novas áreas de simpatia à medida que revivedistintos aspectos das experiências de suas predecessoras.”96 

Todavia, nessa reescrita a possíbilidade de que no final se acabe por produzir um

conhecimento inferior ao que se pretendia superar está sempre colocada, especialmente

quando o que move a produção de uma nova leitura não é mais que produzir uma

memória sob a roupagem acadêmica. É nesse sentido que na muito mencionada crítica

de Hobsbawm à Furet o historiador britânico ensina:

“Todos nós, inevitavelmente, escrevemos a história de nosso própriotempo quando olhamos para o passado e, em alguma medida,empreendemos as batalhas de hoje no figurino do período. Mas aquelesque escrevem somente  a história de seu próprio tempo não podementender o passado e aquilo que veio dele. Podem até mesmo falsificar o

 passado e o presente, mesmo sem intenção de o fazer.”97 

Temos assim o que poderíamos dividir, grosso modo, de acordo com cada

contexto hermenêutico um revisionismo progressista e um revisionismo regressivo (ou

reacionário). Todavia, para evitar maiores confusões, o que aqui é chamado de

revisionismo  está ligado a esta última acepção, pois se refere a proposições teórico-conceituais materializadas em narrativas que não avançam em nada nosso conhecimento

sobre o passado, ao contrário, o mistificam. Vejamos isso com detalhe na próxima

seção.

1.2 Revisão e revisionismo: o golpe de 1964 e a ditadura

A primeira parte do documentário de Patricio Guzman,  A batalha no Chile, cujo

tema é o golpe contra Salvador Allende, é denominado de “A insurreição da

 burguesia”.98 Como o próprio subtítulo indica, seu autor atribuiu àquele 11 de setembro

de 1973 não simplesmente o sentido de uma intervenção militar contra um governo

constitucional de esquerda; nem simplesmente o de uma intervenção de “civis” e

96 HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça. Ideias radicais durante a revolução inglesa de 1640. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1987, p.32.97 HOBSBAWM, Ecos da marselhesa, op. cit., p. 14. Grifo do autor.98 GUZMAN, Patrício. A batalha no Chile (Cuba, Chile, França, 1975).

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militares interrompendo um regime democrático; mas o de uma ação das classes

dominantes chilenas articuladas ao imperialismo estadunidense. Para além do

terrorismo de Estado, o caráter de classe do golpe chileno seria logo evidenciado pela

rápida implantação de políticas econômicas neoliberais, estabelecendo uma experiência

 pioneira na aplicação das ideias de Hayek, Friedman, e seus epígonos.99

 Quase uma década antes, o golpe de 1964 no Brasil foi entendido por uma série

de críticos numa chave muito próxima à de Guzman quando interpretou os eventos

chilenos. Embora por aqui o projeto vencedor não tenha sido o neoliberal, não há

dúvida de que também consistiu em um movimento das classes dominantes lideradas

 por setores das Forças Armadas e apoiadas pelo imperialismo estadunidense. Não

obstante a natureza militar da operação golpista e da ditadura que se seguiu, a reflexão

crítica sempre procurou compreender esse processo como parte da dinâmica mais geral

do capitalismo brasileiro, buscando estabelecer a relação entre o “Big business”, osnúcleos do poder e a política daquele regime.

O golpe de 1964 como ação de classe foi, antes de tudo, um desdobramento

lógico da compreensão geral daquela ação e o regime que dali se originou como obra da

direita política. O crítico Roberto Schwarz iniciou célebre ensaio com o seguinte dizer:

“Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e o

continente contra o socialismo.”100 Porém, em tempos mais recentes, tem se construído

uma historiografia destinada a apresentar as esquerdas como co-responsáveis pelo

golpe, seja em função de seu (alega-se!) “pouco apego aos valores democráticos”, seja

 por rumores de um golpismo por parte também da esquerda. Esse revisionismo

histórico, ao contrário do que acontece com a “historietografia neo-franquista”, vem

sendo impulsionado por alguns dos mais influentes historiadores acadêmicos, que

obviamente apresentam tanto um certo grau de sofisticação, como certa distância de

teses escandalosamente negacionistas que fazem parte dessa onda – como a da

“ditabranda”, defendida pelo famoso editorial do jornal Folha de São Paulo. 101 

99 HARVEY, David. O Neoliberalismo: história e implicações. 2ª edição. São Paulo: Loyola, 2011, p.17-19.100 SCHWART, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969.” In. O pai de família e outros estudos. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1978, p.61.101 Em 17 de fevereiro de 2009, o jornal paulista resolveu “inovar” e, em editorial (“Limites a Chávez”)denominou o regime ditatorial instalado no Brasil em 1964 como “ditabranda”, o que provocou fortereação de setores da opinião pública que organizaram uma manifestação em frente aos escritórios daFolha. O apanhado do ocorrido pode ser lido em TOLEDO, Caio Navarro de. “Crônica política sobre umdocumento contra a ‘ditabranda’.” Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v.17, n.34, p.209-217, 2009.

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Esse reconhecimento de uma corrente revisionista na historiografia, não só por

 parte de seus críticos,102  mas também por uma interlocutora desta corrente,103  já faz

deste um dos debates mais importantes da historiografia do Brasil Contemporâneo.

Todavia, a parte alcunhada de revisionista, não tem (aparentemente) se interessado por

responder seus críticos, comportando-se de forma similar à atitude de “candidatosfavoritos” nos processos eleitorais.

O propósito das linhas a seguir é o de discutir essa mudança da explicação para o

golpe de 1964, começando por comentar alguns trabalhos que se tornariam referência

obrigatória ao estudo do golpe de 1964 e da ditadura, para em seguida discutir o

revisionismo, elegendo os trabalhos dos autores mais influentes nos estudos sobre a

história do Brasil contemporâneo.

1.2.1 – O golpe e a ditadura do grande capitalFlorestan Fernandes, ao caracterizar, em  A Revolução Burguesa no Brasil, a

natureza contra-revolucionária da modernização capitalista brasileira, considerou o

golpe e a ditadura iniciada em 1964 como uma exacerbação da natureza autocrática da

nossa classe dominante. Se na República de 1946 a dominação política foi feita com a

manutenção de procedimentos típicos de uma democracia-liberal, dando à autocracia

 burguesa um aspecto velado, com a ditadura militar a burguesia continuaria seu “baile

sem máscaras”, concluía o sociólogo paulistano.104 

Em seu influente ensaio Crítica à razão dualista, escrito no contexto do

chamado “Milagre brasileiro”, Francisco de Oliveira também discutiu as condições sob

as quais o regime ditatorial, ao contrário de estagnar a economia, 105  foi eficiente em

acelerar a acumulação capitalista no Brasil, aceleração essa que se tornou possível

graças às condições de uma super-exploração da classe trabalhadora estabelecida pelo

102 TOLEDO, Caio Navarro de. “1964: golpismo e democracia. As falácias do revisionismo.” Crítica Marxista, São Paulo, n.19, p.27-48, 2004. MATTOS, Marcelo Badaró. “Os trabalhadores e o golpe de

1964.”  História & Luta de Classes, n.1, p.7-18, 2005. MELO, Demian. “A miséria da historiografia.”Outubro, São Paulo, n.14, p.111-130, 2006. ARANTES, Paulo Eduardo. “1964, o ano que não terminou.”In. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. SãoPaulo: Boitempo, 2010, p.205-236.103 O reconhecimento da existência dessa controvérsia por parte de uma interlocutora da historiografiarevisionista – que, no entanto, afirma-se em distanciamento crítico à mesma – está em DELGADO,Lucilia de Almeida Neves. “O Governo João Goulart e o Golpe de 1964: memória, história ehistoriografia.” Tempo, Niterói, vol.14, n.28, p.123-143, jan.jun.2010.104 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p.340.105 Como acreditava Celso Furtado. Cf. FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América

 Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

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regime ditatorial.106  De acordo com o autor, a brutal concentração de riqueza e a

repressão salarial – facilitada pela desarticulação da vida sindical – teriam criado as

condições para a retomada do ciclo econômico, com a recuperação das taxas de lucro.

Oliveira concluiu seu raciocínio com as seguintes palavras:

“(...) o pós-1964 dificilmente se compatibiliza com a imagem de umarevolução econômica burguesa, mas é mais semelhante com o seuoposto, o de uma contra-revolução. Esta talvez seja sua semelhança mais

 pronunciada com o fascismo, que no fundo é uma combinação deexpansão econômica e repressão.”107 

 Não é por acaso que o auge da repressão tenha sido justamente no período do

“milagre”, como, a propósito, também apontaram Rui Mauro Marini e Theotônio dos

Santos.108 Autores que partiriam de registros teóricos distintos também enfatizariam a

forte imbricação da ditadura militar brasileira com a dinâmica do capitalismo, como, por

exemplo, Guilllermo O’Donnell em seu conceito de “Estado Burocrático

Autoritário”.109 Pensado como um tipo ideal weberiano para caracterizar as ditaduras do

Cone Sul dos anos 1960, tais regimes teriam como sentido a profundización da forma de

capitalismo dependente que emergiu no subcontinente na década de 1950. Deste modo,

tanto a experiência argentina de 1966-1973 quanto a brasileira iniciada em 1964

caracterizavam-se, segundo O’Donnell, pelo fato de serem regimes que buscaram criar

as garantias institucionais que permitiriam a acumulação capitalista dependente. A

despeito da experiência argentina ter sido um enorme fiasco, principalmente em

comparação com o Brasil (que viveu seu “milagre” entre 1968-1973), o pesquisador

encontrou a importante conexão histórica entre aquela nova forma de autoritarismo

emergente com as ditaduras militares e as necessidades do padrão capitalista dependente

recuperar as condições para o seu pleno desenvolvimento.

Os trabalhos de Moniz Bandeira são uma parada obrigatória neste debate,

especialmente o seu clássico O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil .110 

Um dos pontos altos da literatura sobre o golpe, fartamente documentado e teoricamente

106 Publicado originalmente em 1972, o ensaio recentemente foi republicado em: OLIVEIRA, Francisco.Crítica à razão dualista. O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.107  Idem, ibidem, p.106.108  A tese seria contestada por Fernando Henrique Cardoso e José Serra nos anos setenta, uma vez queestes estavam interessados em convencer o empresariado nacional de que não haveria afinidade eletivaentre repressão e crescimento econômico, e de que deveriam apoiar a redemocratização.109  O’DONNELL, Guilermo.  Reflexões sobre os estados burocrático-autoritários. São Paulo: Vértice;Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1987.110 A primeira edição é de 1977, pela Civilização Brasileira, e a 7ª pelas Ed.UNB e Revan. A mais recentee ampliada é BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil (1961-1964). 8ªedição. São Paulo: UNESP, 2010.

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informado, estando já em sua 8ª edição atualizada, o livro é explicitamente inspirado

nos textos históricos de Karl Marx sobre a França. Nesse sentido, sua simpatia pelas

lideranças da esquerda nacionalista, como Jango e Brizola, não o impede de ver

 profundas contradições na sociedade capitalista brasileira constrangendo as opções dos

atores políticos. Assim, as lutas políticas não operam em um vazio de determinações; aocontrário, há uma crise profunda no início dos anos sessenta que determinava os limites

das opções dos sujeitos históricos. Estas contradições acabaram resolvidas à direita,

com o golpe de Estado e a ditadura, tal como na França em 2 de dezembro de 1851.

Com o trabalho do cientista político uruguaio René Armand Dreifuss, 1964, a

conquista do Estado, o esclarecimento sobre a ação das classes dominantes naquele

 período-chave da história brasileira ganhou maiores contornos.111 A partir de extensa

documentação, Dreifuss estudou a fundo duas entidades centrais no processo político

que conduziu ao golpe de 1964 – o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e oInstituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) –, buscando entender aquela

“insurreição da burguesia” como resultado da ação organizada do setor mais

internacionalizado do empresariado brasileiro. Tendo emergido como um capital

multinacional e associado a partir do desenvolvimentismo do período Juscelino

Kubitschek (1956-1961), tal fração de classe organizada por seus intelectuais orgânicos

no IPES tornou esta entidade da sociedade civil um dos principais centros da

conspiração que depôs o presidente João Goulart, apoderando-se do aparelho de Estado

através da ocupação dos seus postos estratégicos. Áreas estratégicas como o

Planejamento e a Fazenda ficariam, desde o governo Castelo Branco (1964-1967) até o

fim do regime, em mãos de ipesianos como Delfim Neto, Roberto Campos, Otávio

Gouveia de Bulhões, entre outras eminências pardas civis.

Dreifuss demonstrou que, uma vez no poder, o IPES (como representante dessa

fração internacionalizada do capital) conseguiu implementar grande parte de seu

 programa anteriormente formulado, empreendendo transformações importantes no

arcabouço institucional de regulação do capitalismo brasileiro, através de uma vasta

Reforma Administrativa, da criação do Banco Central e do Conselho Monetário

 Nacional, introduzindo a primeira flexibilização da legislação trabalhista no Brasil –

através da lei do FGTS – entre outras medidas no interesse do capital monopolista, além

do Serviço Nacional de Informações (SNI), criado ainda em 1964 pelo general Golbery

111 DREIFUSS, René Armand. 1964, a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.

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 Não foi assim descabido que a intelectualidade crítica não tivesse dúvidas em

vincular o “terror de Estado” ao “Big business”. E não foi por acaso que alguns

opositores do regime recorreram à “expropriação de bancos” como forma de financiar

sua luta, enquanto o grande empresariado nacional juntou-se ao regime para organizar a

 brutal repressão à resistência armada.Buscando apreender criticamente esse processo, trabalhos como o de Dreifuss

começariam a propor uma formulação conceitual tanto para o golpe quanto para a

ditadura a partir do adjetivo “civil-militar”, tendo “civil” aí um sentido claramente

classista. Entendendo esses civis, como vimos, como parte de uma elite organicamente

ligada aos interesses do capital multinacional e associado, o cientista político uruguaio

nos ensina algo de fundamental sobre aqueles “civis” que fizeram parte do IPES:

“Um exame mais cuidadoso desses civis  indica que a maioria

esmagadora dos principais técnicos em cargos burocráticos deveria (emdecorrência de suas fortes ligações industriais e bancárias) ser chamadamais precisamente de empresários, ou, na melhor das hipóteses, de tecno-empresários.”116 

Todavia, nesses tempos que correm, o termo “civil-militar” tem servido mais

 para criar uma mistificação do processo histórico, qual seja, a de que a “sociedade” foi

cúmplice daquela ditadura. A verdade é que o próprio termo presta-se a equívocos, por

que pode levar a uma utilização na qual se passa a compartilhar a ideologia corporativa

 própria dos militares, que concebem a sociedade dividida entre eles e os “civis”.

Certamente não foi nesses termos simplórios que Dreifuss propôs a noção de “civil-

militar”.

Mas antes de adentrarmos na crítica de certa historiografia recente, caberia

apenas mencionar como esse aporte crítico, tornou-se praticamente uma leitura canônica

do golpe de 1964,117  já nas condições do processo de luta final contra o regime

ditatorial. Isso fica bastante evidenciado no documentário de Silvio Tendler,  Jango 

(1984), lançado bem no meio da campanha popular pelas eleições diretas para a

Presidência da República, e que levou milhões de pessoas às ruas do país. Com o textode Maurício Dias e música de Wagner Tiso e Milton Nascimento, o filme fez parte do

116 DREIFUSS, 1964, op. cit., p.417. Grifo nosso.117 Ao mesmo tempo em que, desde seu lançamento, o trabalho de Dreifuss recebeu objeção justamente

 por considerar o golpe como uma ação de classe, como apareceu na resenha de Maria Vitória Benevides, publicada à época do lançamento de 1964, a conquista do Estado, e republicada já no contextorevisionista em: BENEVIDES, M. V. “64, um golpe de classe? (sobre um livro de René Dreifuss).”  Lua

 Nova, v. 58, p. 255-261, 2003.

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A adesão de toda a região ao neoliberalismo – que a essa altura alcançava uma inédita

hegemonia global –,118  combinada à capitulação da esquerda à ordem institucional

liberal,119  condicionou o ambiente da produção intelectual nessa latitude do mundo.

Para completar o “exorcismo da Revolução”, tratava-se agora de anatemizar a estratégia

que parte da esquerda latino-americana alimentou ao longo do século XX,especialmente quando do combate às ditaduras militares, mas não só.120  Tal como

acontece em todo o mundo, também por aqui a esquerda está no “banco dos réus”, e seu

“crime” foi ter pretendido “mudar o mundo”.121 

Assim, não foi por acaso que nos anos 1990 que ganharam força no Brasil visões

relativizadoras do golpe e da ditadura. A primeira operação realizada por essa “nova”

literatura foi a de deslocar a explicação daquela ditadura da problemática do

capitalismo. Sob o argumento falacioso segundo o qual conectar o processo político à

dinâmica econômica seria o mesmo que “economicismo”, uma leitura “politicista” veio propor como explicação para o golpe e a ditadura um suposto “déficit democrático” na

sociedade brasileira, de acordo com o qual, nos idos dos anos sessenta, tanto a direita

quanto a esquerda seriam igualmente “golpistas”. Um raciocínio que, antes de mais

nada, beira a tautologia e se aproxima do de algo como: “existiu a ditadura por que não

éramos democratas!”

O trabalho que inaugura este revisionismo histórico sobre o golpe de 1964 é o

livro da cientista política Argelina Cheibub Figueiredo,  Democracia ou reformas?

 Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964.122  Fruto de sua tese de

doutorado em Ciência Política na Universidade de Chicago, defendida em 1988, a

autora foi a primeira a propor uma abordagem explicitamente alternativa ao livro de

Dreifuss. Em seu livro, nos dois momentos em que visa criticar diretamente Dreifuss

118 Sobre a hegemonia planetária do neoliberalismo nos anos 1990, cf. ANDERSON, Perry. “O balançodo neoliberalismo.” In. SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociaise o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p.9-23. _______. “Ideias e ação política na mudançahistórica.” Margem Esquerda, n.1, São Paulo, p.19-92, 2003.119 Um profundo estudo do caso do Partido dos Trabalhadores no Brasil está em COELHO, Eurelino.Uma esquerda para o capital: o transformismo dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). Feira de

Santana: Ed. UEFS; São Paulo: Xamã, 2012.120  Um livro que é quase um emblema desse clima intelectual é CASTAÑEDA, Jorge G. Utopiadesarmada: intrigas, dilemas e promessas da esquerda latino-americana. São Paulo: Companhia dasLetras, 1994.121 Com o flagrante propósito de apenas desqualificar personagens importantes da história da esquerda

 brasileira, temos dois monumentos erguidos nos anos 1990: o livro de Luis Mir ( A revolução impossível:a Esquerda e a Luta Armada no Brasil. São Paulo: ed. Best Seller, 1994), e o filme de Bruno Barreto Oque é isso companheiro?  (Brasil, 1997), baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira (escrito em1979).122  FIGUEIREDO, Argelina Cheibub.  Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise

 política: 1961-1964. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

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 possibilidade de uma saída conciliatória para a crise política: durante o parlamentarismo

e no início de 1963, quando o governo tentou implementar o Plano Trienal do ministro

Celso Furtado. No primeiro caso, a autora condena Goulart por ter deixado de

“aproveitar” o parlamentarismo, preferindo desmoralizá-lo; no segundo, condena as

esquerdas por terem sido “apressadas”, pois obviamente o Plano Trienal desagradou osmovimentos populares frustrados com a diretiva da ortodoxia monetarista que previa a

contenção salarial como forma de deter a inflação. Para a autora, após o fracasso dessas

“possibilidades”, estreitou-se o campo de ação do governo, fazendo crescer o poder

daqueles que acabaram por depô-lo, liquidando com a democracia e a possibilidades de

reformas.

Por fim, é necessário fazer uma observação sobre a natureza ideológica do

 problema que orienta o trabalho de Argelina Figueiredo. Afinal, tal oposição entre

“democracia” e “reformas” é sintomática da adesão a um conceito específico de“democracia” que se liga ao pensamento neoliberal, cuja agenda esteve ligada ao

desmonte dos direitos sociais (e parte dos políticos) e à redução do regime democrático

aos marcos da concepção schumpeteriana.124 De tal concepção, deriva uma outra, qual

seja, a de que seria possível “negociar”, com base nesse suposto “acordo” entre todos os

“atores políticos relevantes”, um programa de “reforma agrária moderado”, como

também o restante das “reformas de base”. Assim, de acordo com a pesquisadora, o que

teria faltado mesmo foi a disposição dos tais “atores políticos relevantes” para negociar

uma saída que “preservasse a democracia”.

Em uma historiografia que começaria a ser produzida no início os anos 2000 e

que ganharia grande repercussão no contexto dos quarenta anos do golpe de Estado

(2004), as teses revisionistas de Argelina Figueiredo encontrariam guarida, como pode

ser aferido nos trabalhos do professor Jorge Ferreira (do Departamento de História da

UFF), que explicitamente a toma como referência. Em inúmeros artigos em revistas

acadêmicas e de divulgação científica, em capítulos de livros e em sua recente biografia

124 Na visão do economista austríaco, a democracia deveria ser simplesmente um procedimento para aescolha de elites políticas, isto é, desprovida de várias das características que marcaram os regimes deWelfare State na Europa Ocidental, após a II Guerra, como o sistema de segurança social e serviços

 públicos universais. Nos anos 1970, cientistas políticos como Samuel Huntington iriam reabilitar a “teoriademocrática schumpeteriana”, o mesmo também acontecendo na lavras de intelectuais aparentementedistantes da direita política, como o cientista político polonês Adam Przeworski, não por acaso, orientadorda tese de Argelina Figueiredo. Sobre a importância das proposições schumpeterianas nainstitucionalização das democracias realmente existentes  na América Latina após as ditaduras, verMACHADO, Eliel. “Limites da ‘democracia procedimental’ na América Latina.” Mediações, v.13, n.1-2,

 p.260-282, jan/jun e jul/dez. 2008.

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esquecer também que, em nenhum momento de seu discurso na Central,137  Goulart

insinuou pretensões continuístas, embora esta acusação tenha sido feita justamente pelo

 jornal lacerdista no dia posterior ao comício,138  tendo sido utilizada como argumento

 por aqueles que o depuseram. Não seria também ingenuidade abstrair o fato de que as

 perguntas que orientaram tal “pesquisa” estivessem de acordo com as acusações feitas pela direita golpista, perguntas feitas justamente para azeitar a mobilização contra-

revolucionária?

O ponto mais característico deste revisionismo historiográfico – a acusação do

golpismo da esquerda –, é reafirmado em diversos pontos de seu livro, mesmo quando,

aparentemente, Ferreira isenta Jango de intenções continuístas:

“Não se pode afirmar que um golpe de Estado liderado por Jango e pelasesquerdas estaria em curso. Ninguém, com segurança, pode fazer taldeclaração.  Mas é inegável que a Frente de Mobilização Popular

manifestava desprezo pelas instituições liberais democráticas.  Nosdiscursos das lideranças de esquerda e do próprio governo,

 principalmente com a Mensagem presidencial, o regime político eradescrito com imagens bastante negativas: a Constituição de 1946 estavaultrapassada, o Congresso Nacional era um antro de latifundiários, enovas formas de governabilidade deveriam ser implementadas – aexemplo de plebiscitos, delegação de poderes e uma Constituinteformada de operários, camponeses, sargentos e oficiais militaresnacionalistas. As mudanças nas regras eleitorais, beneficiando acandidatura de Brizola à presidência da República e permitindo areeleição de Jango, somente contribuíam para criar mais suspeições. AFrente de Mobilização Popular e o PCB não escondiam que seu projetoera governar o país com exclusividade, impondo seu programa degoverno e não considerando outras tendências políticas do quadronacional – vista como conservadoras, decadentes, reacionárias,entreguistas etc.”139 

Ou seja, aquilo que provavelmente era a percepção mais realista da esquerda sobre a

sorte daquele regime – que era a sua crise e a necessidade de modificá-lo –, é tomado

como opinião “golpista” por Ferreira. Afinal, como é possível negar que, ao contrário

do que sugere o teor deste trecho, de fato, “a Constituição de 1946 estava ultrapassada,

o Congresso Nacional era um antro de latifundiários, e novas formas de governabilidade

137  O discurso está reproduzido na íntegra em vários lugares. Consultamos em CARONE, Edgar.  AQuarta República (1945-1964). São Paulo; Rio de Janeiro: DIFEL, 1980, p.232-243.138  Com a manchete “Jango começa reeleição”, o jornal Tribuna da Imprensa  assim sintetizou osignificado do Comício: “O discurso do sr. João Goulart, no comício da Central do Brasil, deixou claro

 para os que o ouviram os seus propósitos espúrios de continuísmo. Brizola voltou a ser cúmplice.”Tribuna da Imprensa, 14 de março de 1964, p.1.139 FERREIRA, João Goulart , op. cit., p.433-434.

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deveriam ser implementadas”? Afinal, não foi esse mesmo Congresso que, na

madrugada do dia 1º de abril consolidou o golpe de Estado, através da fala do presidente

do Senado, Auro Moura Andrade, declarando “vaga à Presidência da República”, e

empossando o presidente do Congresso, Ranieri Mazzili?140 

Esse revisionismo vem ganhando importante lugar na produção de uma literaturadestinada ao grande público. Em seu já famoso livro  Ditadura envergonhada, o

 jornalista Elio Gaspari afirma, como se fosse auto-evidente, que em março de 1964

existiam “dois golpes em curso”, o de Jango e o dos militares. Sua explicação é que “o

 país estava uma bagunça” e, temendo o golpe de Jango, os militares simplesmente

“chegaram antes”.

“Havia dois golpes em marcha. O de Jango viria amparado no“dispositivo militar” e nas bases sindicais, que cairiam sobre oCongresso, obrigando-o a aprovar um pacote de reformas e a mudança

das regras do jogo da sucessão presidencial.”141 

E quais as evidências que sustentam esta afirmação? A carta de um coronel golpista, o

livro pró-golpe de Glauco Carneiro e um memorando do embaixador estadunidense

Lincoln Gordon. Mais uma vez, nenhum tipo de evidência minimamente confiável.142 

Os intragáveis guias politicamente incorretos disso e daquilo, ladeados pela biografia

do ex-presidente deposto escrita por Marco Antonio Villa, que acusa Jango de

golpismo, vem somando-se a essa onda.143 É de fato curioso: tanto na biografia quase

hagiográfica de Ferreira, quanto na escrita por um direitista como Villa – que pauta toda

sua explicação na suposta “incompetência” de Goulart – convergem para uma

explicação similar do golpe de 1964.

Enquanto isso, no âmbito dos estudos dedicados à ditadura propriamente, o

argumento do “déficit democrático” tem ganhado ares de uma condenação generalizada

às oposições armadas, em leitura proposta por um historiador de passado ligado a tais

correntes. Sob o argumento de que ainda sob o regime de terror os “compromissos” da

esquerda com a democracia não existiam (já que estas queriam “implantar outra

ditadura”), Daniel Aarão Reis ganhou expressivos setores acadêmicos e da opinião

 pública para a reprodução do que, afinal, sempre foi um dos argumentos principais dos

golpistas e ditadores de plantão.

140 Como, aliás, Ferreira anota em seu livro. Idem, ibidem, p.500.141 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.51.142 Ver MAESTRI, Mário & JAKOBSKIND, Mário Augusto. “A historiografia envergonhada”  Revista

 História & Luta de Classes. Ano 1, nº 1, 2005, pp. 125-131.143 VILLA, Marco Antonio. Jango, um perfil (1945-1964). São Paulo: Editora Globo, 2004, p.7-9.

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Em outro momento da sua produção intelectual, por volta dos vinte anos do

golpe (1984), quando em entrevista publicada, Aarão Reis assim descreveu aquele

 processo:

“Março de 1964 representou um marco na história de nosso país. Asclasses dominantes e uma importante parcela das classes médias deramentão cobertura para um golpe militar que teve como principal objetivodeter o movimento social dos trabalhadores urbanos e rurais e destruirsuas formas de organização. Os partidos políticos tradicionais foramdescartados. O novo poder prepararia as condições para um novo salto

 para a frente do capitalismo brasileiro. Os trabalhadores, do campo e dacidade, foram os grandes perdedores.”144 

Em sua afamada tese de doutorado sobre a história da luta armada contra a ditadura,  A

revolução faltou ao encontro, nosso autor assinalou que o golpe “reforçou a hegemonia

do capital internacional no bloco do poder”.145 

Entretanto, em livro publicado em 2000, denominado  Ditadura militar,

esquerdas e sociedade, esposou a tese de que em 1964 os sinais se inverteram e foi a

direita que apareceu ao lado da “defesa da Constituição” (uma tese, a propósito, dos

 próprios golpistas) – pois, em suas palavras, a esquerda “radicalizou” e passou a

defender as “reformas na lei e na marra”. Na mesma obra, o historiador propôs um novo

marco para o fim da ditadura: o ano de 1979, em razão da revogação do AI-5 e da

 promulgação da Lei de Anistia, que permitiu a volta dos opositores exilados.146 

Recentemente, o autor tem insistido na natureza “civil-militar” da ditadura, mas parece

 bem distante do sentido dado a este termo no citado trabalho de Dreifuss.

Participando do deslocamento do capitalismo do centro da reflexão sobre o

sentido da ditadura, a historiografia revisionista coloca em seu lugar um programa de

 pesquisas dedicado a investigar o “apoio” da “sociedade” ao “autoritarismo”,

incorporando perspectiva muito próxima ao revisionismo de Goldhagen. Embora

rechaçada pela maior parte dos especialistas, justamente por culpar “todos os alemães”

 pela Shoà, um ponto de vista semelhante ao de Goldhagen parece estar presente nesses

trabalhos interessados em apresentar o que seria a “opinião dos brasileiros sobre aditadura” – algo evidentemente metafísico e mistificador.

144 O depoimento está publicado em SILVA, José Luiz Werneck da.  A deformação da História ou Paranão esquecer . Rio de Janeiro: Zahar, 1985. Agradeço ao historiador Eduardo Stotz pela indicação destareferência.145 REIS, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. 2ª edição. São Paulo:Brasiliense, 1990, p.22.146 REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

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Depois de explicar o golpe através da afirmação de que a esquerda também era

“golpista” e “autoritária”, o que se passa a dizer agora é que também a “sociedade

 brasileira” foi cúmplice daquela ditadura. Nessa visão, a “sociedade” é tratada quase

como se fosse uma pessoa, algo, aliás, presente no paradigma liberal – que a define

como uma “soma de indivíduos” – e que engendra argumentos como os de que “não é possível vitimizar a sociedade”, ou de que, sendo pessoa, deveria “se colocar na frente

do espelho”.147 Em recente intervenção nesse debate,148 Daniel Aarão Reis elencou três

argumentos com os quais queria provar o tal “apoio da sociedade brasileira” à ditadura:

1) 

as Marchas com Deus, pela Pátria e Família, organizadas antes (em São

Paulo) e depois do golpe de Estado (no Rio de Janeiro, capitais e muitas

cidades do país);

2) 

as votações expressivas no partido de apoio à ditadura – Aliança Renovadora

 Nacional (Arena);3)

 

e a suposta popularidade do presidente general Emílio Médici (1969-1974).

Vejamos a consistência desses elementos. Em primeiro lugar, sim as marchas em

apoio ao golpe e à ditadura já instalada foram massivas, afinal, ao contrário do que

afirma parte dessa historiografia revisionista, o povo “não assistiu bestializado” ao

golpe de Estado,149  pois uma parte dele certamente o apoiou com algum grau de

ativismo. Essa é, aliás, a natureza da crise dos anos 1960: a sociedade estava divida, à

esquerda e à direita. Os derrotados obviamente não poderiam se manifestar depois do

golpe.

Em segundo lugar, o argumento da “expressiva votação da Arena” não leva em

conta que parte não desprezível da oposição ao regime pregou o voto nulo como forma

de denunciar a farsa de ter de escolher entre o partido do “sim” (ARENA) e o do “sim

senhor”, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), oposição consentida. O próprio

147 Em obra coletiva animada por este programa revisionista, em sua “Apresentação” as organizadoras –

após reproduzirem as mesmas imagens fetichistas assinaladas – assim se referem ao propósito de“entender como os ditadores foram amados – quando se trata de ditaduras pessoais – não porque temidos,mas, provavelmente, porque expressam valores e interesses da sociedade que, em dado momento, eramoutros que não os democráticos”. ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz.  A construçãosocial dos regimes autoritários. Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010,

 p.17, grifo nosso.148 Ver esse argumento em REIS, Daniel Aarão. “Ditadura, anistia e reconciliação.” Estudos Históricos,Rio de Janeiro, vol.23, n.45, p.171-186, jan./jun.2010.149  Em já citado capítulo de livro, Ferreira assim concluiu seu argumento sobre o golpe: “Entre aradicalização da esquerda e da direita, uma parcela ampla da população apenas assistia aos conflitos,silenciosa.” FERREIRA, “O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964”, op. cit., p. 400.

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autor, em seu supracitado livro  Ditadura militar, esquerdas e sociedade  havia

enfatizado a enorme proporção de votos nulos e brancos nas eleições de 1966 e 1970,150 

mas hoje prefere abandonar esse elemento que afinal esclarece como parte significativa

da sociedade brasileira não colaborou nem apoiou aquela barbárie. Aliás, nas eleições

de 1974, quando o regime afrouxou o controle sobre a propaganda eleitoral, o votooposicionista foi vencedor, ainda sob o agora “popular” Médici.

Certamente nos anos Médici a ditadura viveu seu auge, o “Milagre brasileiro” e

o desbaratamento da oposição anti-sistêmica simbolizaram a vitória dos preceitos que

em 1964 conquistaram o Estado. A modernização capitalista e a contra-revolução

estavam plenamente vitoriosas.151 E, certamente, essa supremacia, somada ao amplo uso

de publicidade estatal (combinada a uma dose cavalar de coerção) produziu certo

consenso, mas é preciso não exagerar.

Pois o mínimo que se espera é que os historiadores sejam capazes de problematizar certas fontes, como o são as pesquisas de opinião feitas no contexto de

uma ditadura. Qualquer opositor do regime ditatorial – qualquer que fosse sua tendência

 política –, em face de uma entrevista sobre o comandante em chefe da ditadura,

certamente, por uma questão de sobrevivência, evitaria pronunciar-se de forma crítica

em relação àquele governo. Desse modo, é sob suspeita quanto à verossimilhança de

suas informações que uma fonte deste gênero deve ser mobilizada na prática

historiográfica. Muito menos a euforia com o tricampeonato mundial de futebol (1970),

a frequência a festividades cívicas, ou os aplausos ao general Emílio Garrastazu Médici

nos estádios de futebol, podem ser contabilizados como provas suficientes de que

apenas “uns loucos” não percebiam que aquele era “um país que vai pra frente”, ainda

que, certamente, a ditadura tenha sabido tirar um bom proveito disso tudo.

* * *

Jogando essa luz inicial, acreditamos ter começado a situar o lugar deste estudo

sobre a participação da classe trabalhadora no processo político brasileiro,

apresentando-o como uma contribuição crítica. Resta-nos ainda discutir como evoluíram

150 Naquele livro ele afirma que nas eleições de 1966 os votos brancos e nulos alcançaram proporçõesinéditas, e sobre as eleições de 1970 o número destes votos de protesto seria ainda maior, alcançando oíndice de 30%. REIS, Ditadura militar , op. cit., p.44 e 59.151  LEMOS, Renato. “Contrarrevolução e ditadura no Brasil: elementos para uma periodização do

 processo político brasileiro pós-1964.” (mimeo) Disponível emhttp://www.ifcs.ufrj.br/~lemp/imagens/textos/Contrarrevolucao_e_ditadura_no_Brasil.pdf

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Capítulo 2 - A evolução dos estudos sobre o

trabalho no Brasil e a controvérsia do populismo 

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Já se disse que uma marca das primeiras gerações de pesquisadores acadêmicos

sobre o mundo operário no Brasil é que, particularmente no que diz respeito ao período

de 1930 a 1964, a classe trabalhadora foi caracterizada sempre no negativo.153 Seja em

decorrência de sua recente experiência no mundo industrial capitalista, ou pelas

debilidades das suas direções políticas, os primeiros autores que na jovem vidauniversitária brasileira se debruçaram sobre a classe operária no país tinham em comum

a certeza de que naquele período esta esteve aquém de outras experiências históricas.

Como é sabido, tais leituras estiveram ligadas às diversas formulações do

conceito de  populismo, utilizado por um certo número de analistas para entender a

formação social latino-americana quando o subcontinente operava seu processo de

modernização urbano/industrial capitalista. Neste capítulo, discutiremos algumas

características desta literatura com o propósito de apresentar o lugar de nosso objeto

nesse debate mais geral. O sentido da exposição será o de apresentar as insuficiênciasdo conceito de sindicalismo populista, noção já muito criticada pela literatura recente.

2.1 As interpretações “sociológicas” e “políticas” sobre a trajetória da

classe trabalhadora brasileira entre 1930-1964 

Em um conhecido texto dos anos setenta, Eric Hobsbawm discutiu como o

campo de estudos sobre a história dos trabalhadores foi originariamente formado pela

literatura produzida pelos próprios intelectuais orgânicos do movimento operário, tendo

a maior parte deles nenhuma ligação com o mundo acadêmico/universitário, “mesmo

quando sua formação e erudição eram impecáveis”.154 Além do casal Sidney e Beatrice

Webb na Grã Bretanha, ligados ao Labour Party e autores de uma importante obra

dedicada ao movimento cartista, ou mesmo dos socialdemocratas alemães Franz

Mehring e Gustav Mayer, Hobsbawm lembra apropriadamente o fato de que, quando

 publicou em 1963 seu influente The Making of the English Working Class, E. P.

Thompson não pertencia ao mundo universitário, tendo se tornado professor

universitário somente depois da repercussão daquela obra. O vínculo com a militância política é, de certo modo, uma marca que caracteriza a maior parte dos estudiosos do

tema. Como conclui o autor,

153  MATTOS, Marcelo Badaró (coord.), Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca (1945-1964). Rio de Janeiro: Faperj/Aperj, 2003, p.19.154  O artigo foi publicado originalmente no  Journal of Social History, em 1974, e no Brasil emHOBSBAWM, Eric. “História operária e ideologia.” In.  Mundos do Trabalho. Novos estudos sobrehistória operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p.15-31, a citação é da p.16.

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“Para muitos de nós o objeto final de nosso trabalho é criar um mundo noqual os trabalhadores possam fazer sua própria vida e sua própriahistória, ao invés de recebê-las prontas de terceiros, ainda queacadêmicos.”155 

 No Brasil foi também da pena de militantes do movimento operário que esse

campo de estudos começou a se formar. Até porque, como lembrou Paulo Sérgio

Pinheiro também pelos anos setenta, acompanhando a tendência pelo alto da nossa

modernização burguesa, “a historiografia [brasileira] até então sempre havia

 privilegiado as classes dominantes em detrimento das relações sociais que marcaram o

 processo histórico”.156 E durante muito tempo, a única literatura disponível sobre esse

tema era também proveniente de antigos militantes comunistas, socialistas e

anarquistas.157 

Como também discute Hobsbawm no mesmo artigo supracitado, a produçãooriginária deste campo, não obstante seus méritos, possuía alguns problemas com os

quais a nova história social do trabalho teve que lidar, como a indistinção entre os

movimentos organizados da classe trabalhadora e a classe em sua totalidade, ou mesmo

a redução da vida da classe à história de um partido, sindicato ou movimento social.

Ainda que as organizações tivessem sido altamente representativas na experiência

histórica de diversas classes trabalhadoras, a história destas não poderia ser

simplesmente reduzida à vida daquelas entidades.158 Além disso, em muitos casos essa

historiografia militante tendeu a reproduzir certos cacoetes típicos das disputas nointerior do movimento operário em suas narrativas, produzindo também hagiografias.159 

 No Brasil, por exemplo, Astrogildo Pereira, legendário personagem da história

da esquerda, que trocou o anarquismo pelo comunismo no início dos anos vinte

(tornando-se fundador do PCB), chegou ao ponto de propor uma periodização que

considerava a etapa anterior à fundação do Partido (1922) como uma espécie de “pré-

história da classe operária no Brasil”.160  Certamente se apoiando nos ombros desta

155  Idem, ibidem, p.30.156 PINHEIRO, Paulo Sérgio. “Trabalho industrial no Brasil: uma revisão.” Estudos Cebrap, São Paulo,n.14, p.120-131, 1975, citação p.121.157  Idem, ibidem, p.122. O autor arrola os livros provenientes de históricos militantes como EverardoDias, Edgar Rodrigues, Edgar Leuenroth, José Oiticica, Gigi Damiani.158 Embora não seja possível entender a história da classe trabalhadora sem as instituições criadas por elae que resultam do choque de contradições sociais que, afinal, constitui as próprias classes.159 Cf. HAUPT, Georges. “Por que a história do movimento operário?”,  Revista Brasileira de História,São Paulo, v.5, n.10, p.208-231, março/agosto de 1985.160 Ideia expressa em conjunto de artigos dos anos cinquenta editados sobre a forma de livro com o títuloFormação do PCB: 1922-1928. Notas e documentos. Rio de Janeiro: Vitória, 1962.

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 produção originária, os primeiros pesquisadores do campo do trabalho no meio

universitário – como Azis Simão, Leôncio Martins Rodrigues, José Albertino

Rodrigues, entre outros, – tenderam a criticar a insuficiência destas abordagens

militantes, ainda que estes pesquisadores também fossem personagens ligados (ou de

 pregressa ligação) com a causa operária.161

 É ocioso dizer que os estudos universitários sobre o trabalho se iniciaram em

 primeiro lugar nas ciências sociais, pioneiramente no campo da sociologia, sendo logo

seguidos pela ciência política e pela antropologia nos anos sessenta do século XX,

muito antes de interessar aos historiadores. Somente já na segunda metade dos anos

setenta é que aparecerão os primeiros estudos feitos propriamente por historiadores de

formação, tendo sido os anos oitenta pontuados por uma significativa presença de

estudos sobre o movimento operário e outros aspectos do mundo do trabalho na

historiografia brasileira.De acordo com Cláudio Batalha, nos anos noventa tal campo entrou em crise,

sendo pouco visitado pelos historiadores,162 sendo sintomático o fato de uma importante

obra coletiva publicada nos anos noventa com o propósito de realizar o balanço sobre os

rumos da disciplina, Domínios da História, dedicar precisamente dois parágrafos de um

artigo para o campo da história social do trabalho.163 Não obstante esse eclipse da classe

trabalhadora que se verificou nos anos noventa, o tema continuou a ser objeto das

 preocupações pelas ciências sociais, particularmente pela sociologia e também, em

escala bem menor, pela antropologia.164  E foi precisamente das ciências sociais que

161  Enquanto Leôncio Rodrigues pertenceu aos quadros da pequena agremiação Partido OperárioRevolucionário Trotskista (POR-T) nos anos cinquenta, José Albertino foi do PCB por breve período,mas continuou a ter uma prática intelectual próxima ao movimento operário devido sua atuação noDepartamento Intersindical de Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE). Outro pioneiro dos estudosacadêmicos do movimento operário, Azis Simão, foi atuante no Partido Socialista nos anos trinta, etambém pertenceu ao partido homônimo durante os anos cinquenta.162 BATALHA, Cláudio H. M. “A história da classe operária no Brasil: Trajetórias e tendências.” In:FREITAS, Marcos César (org.)  Historiografia Brasileira em perspectiva. 3a Ed. São Paulo: Contexto,2000. p. 145-158.163 O que é observado por Batalha como um mérito da autora destes dois parágrafos. Cf. CASTRO, Hebe.

“História Social.” In. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.).  Domínios da História.Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.45-59, os dois parágrafos referidosestão nas p.57-58.164  No Rio de Janeiro temos o trabalho pioneiro do antropólogo José Sérgio Leite Lopes, do Museu

 Nacional da UFRJ, e dos sociólogos José Ricardo Ramalho, Elina Pessanha, Regina Morel e, de umageração mais jovem, Marco Aurélio Santana, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da mesmauniversidade. E também no âmbito da sociologia do trabalho, temos no estado de São Paulo odesenvolvimento das pesquisas de Ricardo Antunes (Unicamp), Ruy Braga (USP) e Giovanni Alves(Unesp), que na verdade só se ampliaram dos anos noventa até o presente. Nas ciências sociais aplicadas,em áreas como Serviço Social, Educação e Saúde Pública, existe um volume considerável de pesquisasligadas ao tema do trabalho e dos trabalhadores. De qualquer modo, como teremos oportunidade de

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recentemente se notou a persistência deste eclipse no mundo acadêmico, pois mesmo

depois que o corpo eleitoral brasileiro elegeu um ex-sindicalista para à Presidência da

República, foi também sintomática “a quase completa ausência dos trabalhadores e seus

sindicatos como tema dos debates” dedicados ao exame dos 40 anos do golpe de 1964,

em 2004. 165

Talvez essa persistência seja resultado da opção mais presente nos historiadores

dedicados a pensar a dimensão política, como os que organizaram o evento acadêmico

de maior repercussão sobre os 40 anos do golpe de 1964 no Rio de Janeiro, onde essa

ausência se verificou.166  Afinal, como é notório, os sindicatos e a classe trabalhadora

que estas entidades organizavam foram um dos principais pontos de apoio do governo

João Goulart, derrubado por um golpe de Estado que se afirmou como uma

“Revolução” para impedir que o herdeiro de Vargas implantasse uma “República

Sindicalista” no Brasil.Voltando aos primórdios da constituição do campo, anote-se que essa entrada

dos estudos sobre o trabalho na jovem vida universitária brasileira nos anos sessenta

dava-se num contexto onde a presença da classe trabalhadora na cena política brasileira

era um elemento que todas as forças políticas deveriam ter em consideração. Seja para

reprimir ou atacar as mobilizações, denunciando a existência ou ameaça de uma suposta

“República sindicalista” durante o segundo governo Vargas e no governo Goulart, seja

 para apoiá-las ou aparecer ao lado das greves, todo o espectro político do país tomou o

movimento sindical como ator do jogo político na República de 1946. No contexto de

ascenso sindical, a greve nacional de 5 de julho de 1962 – discutida em detalhes nesta

tese –, foi um dos pontos culminantes da crise política brasileira, posto que, como

 pretendemos demonstrar, a intervenção do movimento organizado da classe

trabalhadora foi decisiva. De forma semelhante ao ocorrido em outros episódios, como

nas greves pela posse de Jango em 1961, ou no dramático comício da Central do Brasil

em 1964, a presença operária pontuou o cenário político desse governo do chefe

discutir, também nessa década seriam produzidos alguns trabalhos importantes no âmbito dahistoriografia, denotando que o eclipse não foi total.165 SANTANA, Marco Aurélio. “Trabalhadores, sindicatos e ditadura militar: o 1968 operário no Brasil.”In. FICO, Carlos; ARAUJO, Maria Paula. 1968 40 anos depois: história e memória. Rio de Janeiro:7Letras, 2009, p.150.166  Promovido pelos prestigiados Departamentos de História da UFF e da UFRJ, além do Centro dePesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas(FGV) e o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), os anais deste encontro foram

 publicados em FICO, Carlos et al. 1964-2004, 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil.Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.

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nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado por Vargas nos estertores da

sua ditadura do Estado Novo, e baseado na máquina do Ministério do Trabalho.

Mas a importância da presença operária na crise daquela República não era só

uma exclusividade do PTB, e assim, pode-se entender porque um governador

reacionário como Carvalho Pinto, de São Paulo (1959-1963), que reprimiu de formaviolenta a greve geral pelo abono de Natal em dezembro de 1961 (ou mesmo a de julho

do ano seguinte, como veremos), tenha atendido ao apelo de um grupo de sociólogos da

USP – entre os quais Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni –

 para financiar o Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT). Ou seja, não

era só para os trabalhistas e os comunistas, para Jango e a outros líderes populistas que

o mundo do trabalho poderia ser visto como importante. Todavia, certamente a subida

ao poder de Goulart, homem que fez sua carreira política na máquina do Ministério do

Trabalho, e, mais que isso, sua derrubada em 1964, deu ensejo ao desenvolvimento das preocupações sobre o mundo do trabalho na vida universitária brasileira.

O primeiro estudo acadêmico sobre o tema do trabalho no Brasil é na verdade do

início dos anos cinquenta e proveio da área do Direito: a tese de doutoramento de

Evaristo de Morais Filho, O problema do sindicato único no Brasil, publicada em 1952.

 Nesse belíssimo livro, o autor discute com fina ironia a continuidade da legislação

sindical do Estado Novo sob o regime democrático instituído a partir da Constituição de

1946. E como um intelectual ligado ao mundo operário,167  Evaristo não deixou de

considerar que tal legislação possuía inspiração na Carta del Lavoro da Itália fascista,

fazendo uma engenhosa comparação entre a nossa e a legislação mussoliniana, num dos

 pontos altos do seu livro. Para ele, a legislação sindical erigida na ditadura de 1937-

1945 era “totalmente fascista”,168  tendo a subordinação dos sindicatos ao Estado, via

Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, funcionado sempre entre a combinação

deste Ministério e os órgãos policiais de Ordem Política e Social.169 

167 Ele era filho de um dos primeiros grandes advogados trabalhistas da história do Brasil, o socialistareformista Evaristo de Moraes.168 MORAES FILHO, Evaristo. O problema do sindicato único no Brasil: seus fundamentos sociológicos.São Paulo: Alfa-Omega, 1978, p.245.169  Idem, ibidem, p.259-260. Recentemente, a historiografia tem destacado ser maior a presença dafilosofia positivista comtiana, uma importante componente da cultura política gaúcha, na legislaçãotrabalhista do pós-1930. BOSI, Alfredo. “Arqueologia do Estado-Providência.” In.  Dialética dacolonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.273-307. HALL, Michael. “Corporativismo eFascismo na origem das leis trabalhistas brasileiras.” In. ARAÚJO, Ângela (org.). Do corporativismo aoneoliberalismo. Estado e trabalhadores no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2002, p.13-28.

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Poucos anos depois, foi a vez de Azis Simão apensar um novo estudo ao campo

em construção, em trabalho ao Primeiro Congresso Brasileiro de Sociologia em 1955,

sobre o voto operário na cidade de São Paulo.170 A partir dos dados de quatro zonas

eleitorais, onde localizou uma proporção acima de 40% de eleitores da classe

trabalhadora, o autor busca explicar as razões para a preferência do voto do operariado paulista no Partido Comunista do Brasil (PCB) e no Partido Trabalhista Brasileiro

(PTB).

Todavia, Simão assinalou uma diferença entre os eleitores operários: enquanto

entre os que optavam pelos comunistas predominavam os nascidos na Capital paulista e

ocupados em profissões mais qualificadas, o eleitorado petebista era formado

majoritariamente por uma jovem classe trabalhadora de migrantes nordestinos ou das

cidades do interior de Minas Gerais, mas também por uma tradicional parcela de

trabalhadores com baixa qualificação, acima dos 40 anos e que se reconhecia amparadona Legislação Social getulista. De acordo com tal raciocínio, que terá larga trajetória no

debate originário dos estudos sobre o trabalho no Brasil, essa população de origem rural

apresentava características sociológicas que a impeliam a aderir à política trabalhista,

facilitando a mistificação segundo a qual todas as políticas sociais seriam “dádivas de

Vargas”. Diferentemente daquele proletariado do início do século XX – que Azis

Simão, tomando o caso de São Paulo, tipifica como “imigrante, em geral de origem

italiana e anarquista” –, esse novo proletariado paulista dos anos cinquenta é nacional e

oriundo do mundo rural. Não possuía, segundo o autor, experiência no trabalho

industrial nem conhecia as teorias socialistas, estando mais acostumado com as relações

autoritárias e paternalistas predominantes no mundo rural brasileiro.

Essa problemática baseada na origem da classe operária irá embasar os trabalhos

de Juarez Rubens Brandão Lopes e Leôncio Martins Rodrigues, que compõem um

representativo grupo de sociólogos da USP e que foram os pioneiros em tal campo de

estudos no Brasil. Esses pioneiros seriam de certo modo influenciados pela démarche

weberiana do estrutural-funcionalismo/teoria da modernização (via Talcott Parsons, a

sociologia industrial francesa de Alain Tourraine e norte-americana de Elton Mayo),

170  SIMÃO, Azis. “O voto operário em São Paulo.”  Anais do Primeiro Congresso Brasileiro deSociologia, São Paulo, 1955, p.201-214. Também publicado na  Revista Brasileira de Estudos Políticos,Belo Horizonte, dezembro de 1956. O estudo aparecia num momento sensível, em meio ao contexto dosuicídio do presidente Getúlio Vargas, antecedido pela proscrição do PCB (1947) e a volta triunfal deVargas através do voto popular (1950), a ascensão de Jânio Quadros como prefeito paulista, apoiado peloPartido Socialista Brasileiro (PSB), agremiação a qual pertencia Simão. Deste autor é Sindicato e Estado,de 1966, sua tese de doutorado em sociologia na USP e seu principal livro.

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 presente nos trabalhos de Tocuato Di Tella e Gino Germani. Esses sociólogos

argentinos advogam a existência de uma a-sincronia  entre elementos de ação social

tradicional e moderna no processo de transição da ordem agrária-tradicional para a

modernidade urbana-industrial na América Latina ao longo do século XX, em especial

em países como a Argentina, o Brasil e o México, que teriam erigido uma estruturasocial dualista. Segundo Di Tella e Germani, a classe trabalhadora argentina seria presa

fácil da demagogia peronista, sendo sua recente origem rural considerada responsável

 por sua suposta ação “irracional” e “heterônoma”,171 conclusão muito semelhante à do

estudo de Simão.

Representativo dos estudos pioneiros sobre a classe trabalhadora no Brasil,

Juarez Brandão Lopes parece compartilhar esse programa de pesquisas quando realizou

investigações com o propósito de verificar o “ajustamento do trabalhador à indústria”,

nos setores mais dinâmicos da economia em São Paulo no contextodesenvolvimentista.172 Este autor concluiu que os trabalhadores da então indústria de

 ponta não se identificavam com a condição de operários industriais, sendo pouco aptos

 para as ações coletivas através do movimento sindical. Muitos pensavam em voltar para

a região rural, sendo o emprego industrial concebido muitas vezes como uma utópica

opção para juntar recursos até que fossem estabelecidas as condições para o retorno ao

local de origem.

Estes autores pioneiros, que Luiz Werneck Vianna caracterizaria como

 partidários de uma interpretação sociológica,173  se veriam com a necessidade de

explicar a mudança ocorrida no comportamento operário após 1930. Compartilhando

uma memória construída pela velha guarda da militância socialista, esse sociólogos

naturalizaram a imagem de que na Primeira República a ação operária assumiu feições

combativas e anarco-sindicalistas, mas transitou para um sindicalismo subordinado ao

Estado após a subida de Getúlio Vargas. A síntese desta proposição está na ideia de uma

ruptura  entre uma classe trabalhadora autônoma  na “República Velha”, em contraste

com uma classe heterônoma  após 1930. Como já vimos, tais autores atribuem esta

ruptura à mudança na composição sócio-nacional da classe: enquanto a classe operária

171  GERMANI, Gino. Política e Sociedade numa época de transição. São Paulo: Mestre Jou, 1973. DITELLA, Torcuato. Para uma política latino-americana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.172  LOPES, Juarez Rubens Brandão. “O ajustamento do trabalhador à indústria: mobilidade social emotivação.” In. Sociedade industrial no Brasil. 1ª edição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro;Universidade de São Paulo, 1964.173 VIANNA, Luiz Werneck. “Estudos sobre sindicalismo e movimento operário: resenha de algumastendências.” Travessia – da abertura à Constituinte de 86 . Rio de Janeiro: Taurus, 1986.

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dos primórdios da industrialização do Brasil era formada basicamente por imigrantes

europeus, que supostamente trariam na bagagem a “experiência do trabalho industrial” e

as ideologias socialistas (como o anarco-sindicalismo), após 1930 passa a predominar

um proletariado nacional, formado por migrantes rurais acostumados ao sistema

despótico patriarcal, desconhecendo práticas de organização coletiva. De acordo comeste raciocínio, quando o Estado depois de 1930 passou a adotar uma política com vistas

a controlar o movimento operário, tornando os sindicatos órgãos estatais, sua tarefa foi

facilitada pela natureza sociológica da nova classe trabalhadora que então se formava.

 Nas palavras de Leôncio Martins Rodrigues:

“A nova política governamental foi facilitada pela entrada maciça detrabalhadores de origem rural, orientados por outros valores e aspirações,favorecendo o isolamento das antigas lideranças e criando doissegmentos bem diferenciados no interior da classe operária. Os temas

habituais do movimento operário europeu (de tipo anarco-sindicalista,socialista ou comunista) não conseguiram motivar a massa detrabalhadores que abandonava o campo, trabalhadores analfabetos,socializados num padrão de submissão ante as camadas superiores e queencontravam, ademais, no meio fabril e urbano, condições de trabalho ede vida geralmente mais satisfatórias do que tinham no meio rural.”174 

Essa nova classe operária, de origem rural, que irá se ampliar muito no período

desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956-1960), não figura mais nos

tradicionais bairros operários da capital paulista – Brás, Mooca, Belém etc. –, mas nas

cidades da periferia que conformam a Grande São Paulo e no ABC. Vejamos o que diz

o mesmo autor sobre a “atitude” desta nova classe operária:

“Para estas novas camadas, o processo de incorporação à indústriaadquire outro significado, associado-se com frequência a um processo deascensão social ou de melhoria de vida, o que não poderia ocorrer com ostrabalhadores dos antigos bairros, originários de famílias já operárias.”175 

Seria, assim, esse novo proletariado incapaz de expressar-se “de forma típica”, como no

 padrão europeu explicitamente tomado como modelo pelo autor. É preciso anotar que

embora esteja discutindo o problema da consciência de classe, o cientista político não

aborda a questão com base na tradição marxista, como poderia parecer. Em seu livro

174  RODRIGUES, L. M. “Sindicalismo e classe operária (1930-1964).” In. FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, O Brasil Republicano, 3º Volume. São Paulo: DIFEL,1983, p.520.175  RODRIGUES, L. M.  Industrialização e atitudes operárias  (Estudo de um grupo de trabalhadores).São Paulo: Brasiliense, 1970, p.XVI-XVII.

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 Industrialização e atitudes operárias Rodrigues explicitamente opta pela démarche de

Alain Touraine que se baseia em um tipo de ideal de classe operária. Diz Rodrigues:

“Quiçá possa parecer estranho que, lidando com um conceito ligado àteoria marxista, deixemos de lado os trabalhos de Lukács, o autorclássico do assunto. Mas o tratamento que este dá à questão, a nosso ver,

além de implicar um a priori ideológico impede a utilização sociológicado conceito, observação, aliás, ociosa pois Lukács deixa claro que aconsciência de classe, para ele, não se apresenta como uma questão de“interesse sociológico”.176 

Em  Industrialização e atitudes operárias, com base em questionários sobre as

expectativas de operários recém-chegados do campo ao ABC paulista, definiu esta

classe operária como: passiva, pouco adaptada ao trabalho industrial e ao associativismo

 político, em suma, incapaz de produzir um movimento autônomo de classe. Subsumida

ao jogo do Estado populista, a consciência de classe destes é tomada como umdesdobramento mecânico e estático da estrutura da sociedade brasileira.177 

O desenvolvimento das pesquisas sobre o mundo dos trabalhadores demonstraria

que o paradigma desta interpretação sociológica não se sustenta empiricamente, muito

menos teoricamente. A noção de que o imigrante estrangeiro traria a experiência do

trabalho industrial e as ideologias socialistas não considerou que a maioria destes

 provinha do meio rural, no caso dos italianos, da região Sul da península, como

demonstrou Michael Hall em sua a tese de PhD, de 1969.178  Ademais, nesta

 problemática “sociológica” é negligenciado o fato, ressaltado por Paulo Sérgio Pinheiro,de que “características relativas à composição tendem a ser redefinidas pelas relações

sociais a que está submetido o operário no processo de industrialização”, deste modo é

temerário acreditar que ele não possa constituir outra cultura em sua nova experiência

de socialização.179 E nesse sentido é notável a contribuição do antropólogo José Sergio

Leite Lopes, que, em seu estudo sobre uma das maiores plantas têxteis do país,

176  RODRIGUES,  Industrialização e atitudes operárias, op. cit., p.161, nota 24. Veja-se como éenviesado certo debate sobre os estudos pioneiros sobre o trabalho no Brasil, quando se atribui suas

limitações à influência do pensamento marxista. Sobre a importância do conceito de consciência de classeno interior da teoria marxista e a problematização do mesmo em outros registros sociológicos, ver IASI,Mauro Luis. O dilema de Hamlet . O ser e o não ser da consciência. São Paulo: Viramundo, 2002.177  Como foi justamente do ABC paulista que ressurgiria o movimento operário brasileiro no fim daditadura, o autor poderia, em obras mais recentes, ter reconhecido o equívoco de tal hipótese. Mas estanão parece ser uma postura muito cultivada em nossos meios acadêmicos.178 HALL, Michael. The origins of mass immigration in Brazil, 1872-1914. PhD, Columbia University,1969. HALL, Michael; PINHEIRO, Paulo Sérgio. “Imigração e Movimento Operário no Brasil: umainterpretação.” In. DEL ROIO, José Luiz (org.). Trabalhadores do Brasil – Imigração e Industrialização.São Paulo: Ícone, 1990, p.43-58.179 PINHEIRO, “Trabalho industrial no Brasil: uma revisão.”, p.123.

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localizada na cidade de Paulínia (PE), discutiu a fundo como a origem rural do

operariado não constituiu um obstáculo à formação de uma consciência de classe.180 

Por outro lado, é certamente verdadeiro que os imigrantes, que compuseram

 parcela importante do operariado na virada para o século XX, tiveram um papel

 proeminente na difusão das ideias socialistas no Brasil (de resto, nas Américas). Masnaturalmente não é possível atribuir esse papel ao conjunto deles, muito menos idealizá-

los como todos versados em Malatesta, Bakunin ou mesmo Marx. Afinal, desde o

influente trabalho de Boris Fausto, Trabalho urbano e conflito social, a historiografia

tem se inclinado a mostrar que essa imagem de uma classe operária no início da

República como tipicamente “italiana” e “anarquista” não passa de uma idealização

reducionista.181 

Como já vimos, há outras influências teóricas importantes nestas formulações e

que devem ser brevemente mencionadas: as teorias sobre o populismo formuladas pelosGermani e Di Tella, em seus estudos sobre o  peronismo, onde se inspiraram alguns

 partidários da interpretação sociológica  para pensar o caráter heterônomo da classe

operária no Brasil. Afinal, para estes autores argentinos, o peronismo seria a forma mais

acabada de populismo e teria como cerne explicativo a rápida migração do campo para

as cidades a partir dos anos 1930. Para Otávio Ianni, um dos principais (re)formuladores

do conceito de populismo e também um crítico das proposições de Germani e Di Tella,

na abordagem dos sociólogos argentinos “o populismo acaba por ser encarado como um

desvio no que deveria ser a evolução, natural e desejável, para o regime

democrático”.182 Além do mais, segundo a crítica feita nos anos 1970 por Juan Carlos

Portantiero e Miguel Murmis a Germani e Di Tella, a mudança na composição social do

operariado argentino foi ainda menos importante na formação do populismo argentino

em comparação com outros casos nacionais.183 Ainda de acordo com esses críticos –

que também ficaram conhecidos na historiografia como revisionistas –,184 a história do

180 LEITE LOPES, José Sergio. A tecelagem dos conflitos de classe. São Paulo: Marco Zero, 1988.181  FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito industrial. São Paulo: Difel, 1976. Ver tambémBATALHA, Cláudio. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.182  IANNI, Otávio.  A formação do Estado populista na América Latina. 2ª edição. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1990, p.33, grifo nosso.183 PORTANTIERO, Juan Carlos; MURMIS, Miguel. Estudos sobre as origens do Peronismo. São Paulo:Brasiliense, 1973.184  Assinalando o lugar de Portantiero e Murmis no debate sobre o peronismo, outro estudioso assimcomenta: “En los estudios revisionistas, el apoyo de la clase trabajadora a Perón ha sido visto como ellógico compromiso de los obreros con un proyecto reformista dirigido por el Estado que les prometiaventajas materiales concretas. Más recientes, esos estudios no han presentado la imagen de una masa

 pasiva manipulada sino la de actores, dotados de conciencia de clase, que procuraban encontrar un

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movimento operário daquele país sido marcada muito mais por uma continuidade  do

que por uma ruptura. Por fim, é preciso assinalar também que tal hipótese da origem 

tem como substrato uma teoria social extremamente conservadora, uma variante latino-

americana da teoria da modernização de corte weberiano, que trata todos os padrões de

relacionamento social diferentes da racionalidade-burocrática como “obstáculos àmodernização”.185 

Mas até que surgissem vozes críticas, a teoria do populismo de Germani e Di

Tella foi extremamente influente nas ciências sociais latino-americanas, constituindo-se

numa das primeiras grandes explicações para o processo de mudança ocorrido no

subcontinente, figurando ao lado dos também dualistas modelos da CEPAL.

 No Brasil a noção de populismo foi introduzida no debate intelectual a partir do

chamado “Grupo de Itatiaia”, um fórum patrocinado pelo Ministério da Agricultura a

 partir de 1952. Deste grupo fizeram parte intelectuais de São Paulo e do Rio de Janeiro,entre os quais nomes como Guerreiro Ramos, Cândido Mendes de Almeida, Hermes

Lima, Ignácio Rangel, João Paulo de Almeida e Hélio Jaguaribe, que se encontrava

 periodicamente no Parque Nacional de Itatiaia, localizado entre as duas capitais.

Posteriormente, sob o patrocínio do Ministério da Educação, conformariam o Instituto

Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).186 

Apesar do perfil “nacionalista” desta última entidade, Ângela de Castro Gomes

vê nas primeiras formulações do conceito de populismo por estes intelectuais uma

sistematização sofisticada dos preconceitos da elite liberal-conservadora, cuja

contrariedade com a crescente participação das massas populares na política seria

evidente.187  Esse Grupo editava o periódico Cadernos de Nosso Tempo, que em seu

segundo número trouxe o artigo “O que é o ademarismo?”, que apresenta basicamente

os argumentos do paradigma estrutural-funcionalista para compreender o voto em

Adhemar de Barros entre as camadas populares de São Paulo. Em suma, tanto na

intelectualidade formada em torno da Universidade de São Paulo, quanto na que

camino realista para la satisfacción de sus necesidades materiales.” JAMES, Daniel.  Resistencia e Integración. El Peronismo y la Clase Trabajadora Argentina, 1946-1976 . 2ª ed. Buenos Aires: SigloXXI, 2010, p.26.185 Toda sorte de teorias de inspiração liberal que acreditam que a “herança ibérica” é a responsável poresse “atraso”, desde Os donos do poder  de Faoro até a teoria do “jeitinho brasileiro” de Roberto DaMatta,seguem nesse mesmo diapasão. Também a teoria do “pretorianismo” das sociedades latino-americanas,vulgarizada por cientistas políticos como Samuel Huntington.186 TOLEDO, Caio Navarro. ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1977.187 Cf. GOMES, A. C. “O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória do conceito.”In. FERREIRA, O populismo e sua história, op. cit., p.17-57.

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conformou o ISEB, a reflexão sobre a entrada das massas na política e o fenômeno do

 populismo bebia na fonte comum do estrutural-funcionalismo de Germani e Di Tella.

Ou pelo menos concordavam com as ideias centrais desses sociólogos argentinos.

Uma problemática certamente diferente foi introduzida pelo cientista político da

USP Francisco Weffort, o mais eminente teórico do (que teria sido o)  populismo  na política brasileira entre 1930-1964. Um artigo seu sobre o tema, publicado numa edição

especial da revista Les Temps Modernes, em 1967, é até hoje tomado como um marco

obrigatório no debate sobre esse conceito nas ciências sociais latino-americanas.188 No

volume organizado por Celso Furtado, a pedido do editor Jean-Paul Sartre –

 posteriormente publicado em forma de livro no Brasil –,189 o artigo de Weffort figura

certamente como o mais influente.190 Posteriormente, em conjunto com outros textos,

Weffort publicou o mesmo artigo no livro O populismo na política brasileira, título

homônimo do texto em tela.191  Logo em suas primeiras linhas, o fenômeno é assimdefinido:

“O populismo é produto da longa etapa de transformações por que passaa sociedade brasileira a partir de 1930. Como estilo de governo, sempresensível às pressões populares, ou como política de massas, que buscavaconduzir, manipulando suas aspirações, o populismo só pode sercompreendido no contexto do processo de crise política e dedesenvolvimento econômico que se abre com a revolução de 1930. Foi aexpressão do período de crise da oligarquia e do liberalismo, sempremuito afins na história brasileira, e do processo de democratização doEstado que, por sua vez, teve que apoiar-se sempre em algum tipo deautoritarismo, seja o autoritarismo institucional da ditadura Vargas(1937-1945), seja o autoritarismo paternalista ou carismático dos líderesde massa da democracia do após-guerra (1945-1964). Foi também umadas manifestações das debilidades políticas dos grupos dominantesurbanos quando tentaram substituir-se à oligarquia nas funções dedomínio político de um País tradicionalmente agrário e dependente,numa etapa em que pareciam existir as possibilidades de umdesenvolvimento capitalista nacional. E foi sobretudo a expressão maiscompleta da emergência das classes populares no bojo dodesenvolvimento urbano e industrial verificado nestes decênios e danecessidade, sentida por alguns dos novos grupos dominantes, de

incorporação das massas ao jogo político.”

192

 

188 WEFFORT, Francisco. “Le populisme.” Les Temps Moderns, Paris, ano 23, n.257, p.624-649, 1967.189 FURTADO, Celso (coord.). Brasil: Tempos Modernos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.190  WEFFORT, Francisco. “O populismo na política brasileira.” In. FURTADO,  Brasil: Tempos

 Modernos, op. cit., p.49-75.191 WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.192 WEFFORT, “O populismo na política brasileira.”, op. cit., p.49-50.

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Em síntese, no que diz respeito ao papel dos trabalhadores na experiência

 populista, sua posição nessa aliança de classe é certamente de subalternidade, já que os

únicos canais organizativos disponíveis foram aqueles erigidos pela própria estrutura

sindical corporativista do Estado. Nesse caso, o que então explicaria esse caminho? O

cerne da explicação de Weffort está na ação desorganizadora do próprio Estado a partirde 1930, no que diz respeito à vida sindical brasileira, mas, também, nas opções feitas

 pelas direções políticas deste mesmo movimento, ou seja, pela esquerda. Produzindo

sob o impacto da derrota da esquerda em 1964, Weffort irá dirigir sua crítica

 principalmente às políticas adotadas pelo Partido Comunista (PCB), que era a mais

importante organização da esquerda no meio sindical entre 1945-1964.193  É preciso

notar que nessa explicação a importância da questão da origem rural foi deslocada para

incorporar elementos como a longa crise, a debilidade das classes sociais  e a

manipulação. Não obstante, não é certamente outra senão negativa a posição da classetrabalhadora nesta teoria re-elaborada do populismo, reiterando aspecto presente no

 paradigma tradicional, ainda que esta negatividade não fosse tomada como um

fatalismo, e sim a resultante das opções de suas vanguardas políticas, notadamente o

PCB.

Ao mesmo tempo, é preciso notar que nos anos 1980 as elaborações de Weffort

ainda seriam tomadas como uma abertura crítica para os estudos sobre a classe operária

no Brasil, como pode ser visto no emblemático artigo “Pensando a classe operária:

sujeitos no imaginário acadêmico”,  194  de autoria de Maria Célia Paoli, Eder Sader e

Vera da Silva Telles. De acordo com esses autores, na problemática inaugurada por

Weffort “a classe operária não é vista como portadora passiva da estrutura da

sociedade”, como faziam os partidários do paradigma da origem rural, até porque, “ao

qualificar politicamente a ação da classe operária enquanto possibilidade de negar o

lugar subordinado que o Estado lhe impõe, movimenta-se num campo onde já se faz

 possível pensar a classe operária enquanto sujeito.”195  O ponto de inflexão mais

193 A posição proeminente do PCB na esquerda brasileira naquele período, embora hoje tenha sido postaem dúvida por certos resgates de outras importantes tradições da esquerda atuantes naquele período, erareconhecida por um dos mais eminentes sindicalistas do PTB, Dante Pelacani, que em entrevista a Denisde Moraes nos anos oitenta afirmou: “O PTB tinha muito mais recursos do que o Partido Comunista paraarrebanhar, entre os dirigentes sindicais, um número maior de adeptos. Mas os dirigentes arrebanhados

 pelo PTB eram líderes de categorias pouco expressivas e sem tradição de luta.” MORAES, Denis de.  Aesquerda e o golpe de 64. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, p.37.194  PAOLI, Maria Célia; SÁDER, Eder; TELLES, Vera da Silva. “Pensando a classe operária: ostrabalhadores sujeitos ao imaginário acadêmico.”  Revista Brasileira de História, São Paulo, v.3, n.6, p.129-149, 1983.195  Idem, ibidem, p.147 e p.149.

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significativo na obra do cientista político uspiano se daria nos anos 1970, quando no

esforço de sofisticar o próprio conceito de populismo, construiu a noção de sindicalismo

 populista, como forma de apresentar o que seria o desenho das lutas da classe

trabalhadora naquele período histórico. Principalmente depois do seu artigo sobre as

greves de Contagem e Osasco em 1968 – quando pela primeira vez no Brasil é afirmadoser nossa classe trabalhadora “sujeito de sua própria história”–,196  o cientista político

 paulistano promoveu o início de uma inflexão fundamental nas análises do movimento

operário e o período 1930-1964. Em sua tese de livre-docência Sindicato e política,197 

Weffort é enfático ao criticar as proposições originárias que buscaram explicar a

modificação na história do movimento operário após-1930 a partir da origem rural do

 proletariado brasileiro.198 

De qualquer modo, para Weffort, pensar os trabalhadores brasileiros como

sujeitos de sua própria história não implicava abandonar uma reflexão crítica sobre oslimites de sua experiência histórica. É no interior de sua teoria do populismo que

Weffort apresenta o que teria sido prejudicial ao desenvolvimento da organização

autônoma da classe trabalhadora no Brasil: a política de aliança de classes com os

líderes populistas praticada pela esquerda, em especial o PCB. Para este autor, em

 primeiro lugar, os comunistas não fizeram um combate consequente à estrutura sindical

oriunda do Estado Novo, o que contribuiu de forma decisiva para que esta perdurasse

durante a República liberal-democrática de 1946.199  Isto porque, durante o período de

1943-1964 teria sido predominante na estratégia do PCB a aliança com Getúlio Vargas

e seus herdeiros políticos, como João Goulart, o que teria sido feito ao arrepio dos

 princípios socialistas da independência de classe.200 

196  WEFFORT, Francisco. “Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco, 1968.” CadernosCebrap, n.5, 1972, p.10.197 WEFFORT, Francisco. Sindicato e política. Tese de Livre-Docência, Universidade de São Paulo, SãoPaulo, 1972.198 “Parece-me inteiramente evidente que a análise histórica não pode ser reduzida ao jogo de supostosautomatismos estruturais.” Idem, ibidem, capítulo I, p.7.199 Obviamente esta crítica é despropositada, posto que o PCB não possuía peso institucional para barrar

as forças interessadas na continuidade da legislação estadonovista. Uma posição mais razoável sobre oassunto está em VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1976.200 Seguidor das proposições de Weffort, o também cientista político uspiano José Álvaro Moisés, emestudo sobre a greve geral paulista de 1953, apresenta maiores nuances sobre a questão da consciência declasse sob o populismo, como pode ser visto no trecho a seguir: “(...) o populismo poderia ser visto demaneira inteiramente diferente. Ao invés de afirmar que ele foi uma alternativa reformista aceita pelaclasse trabalhadora, nas condições de repressão e na ausência de uma orientação política clara (...), alémde constituir um modo específico de dominação de classe, foi também uma maneira encontrada pelaclasse trabalhadora de se manifestar nas condições adversas em que se achava e de ter algumas de suasreivindicações atendidas, tais como uma melhor participação na renda. Isto não significa, entretanto, do

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Essa aliança comunista-trabalhista seria a base para a conformação de um

“sindicalismo populista”, cuja gênese remete à política moderada do PCB durante o fim

do Estado Novo, expressa na diretriz de “apertar os cintos” e “evitar as greves”.

Todavia, na conjuntura do após Segunda Guerra tal tentativa de formação do

sindicalismo populista acabaria frustrada em razão das medidas repressivas tomadas pelo governo Dutra. Depois disso, após breve período que se seguiu à cassação do

registro legal do PCB (1947), cuja consequência mais lembrada foi a sistemática

oposição dos comunistas ao segundo governo Vargas (1951-1954), a política de aliança

do PCB com o PTB conformou um mecanismo através do qual os líderes populistas

arregimentaram apoio entre os trabalhadores urbanos.

A partir de uma engenhosa comparação com a emergência do peronismo

argentino (onde o movimento sindical foi desde a origem uma das bases do regime do

coronel Juan Domingo Perón), o autor observa que no Brasil o regime populista só teria buscado apoio no sindicalismo como “última tábua de salvação”, podendo isso ser

observado tanto na crise do Estado Novo, quanto na crise do segundo governo Vargas

(depois que este teve frustrada suas intenções de atrair o capital estrangeiro e a UDN

 para seu governo e) deu uma guinada para o nacionalismo e para os trabalhadores,

através dos sindicatos e de João Goulart na pasta do Trabalho. Depois de uma “tentativa

frustrada” de formação no período de 1945-1946, Weffort vê emergir o sindicalismo

 populista finalmente a partir de meados do segundo governo Vargas em razão de dois

elementos: as inovações trazidas por Goulart no Ministério do Trabalho, no contexto

das grandes greves de São Paulo e do Rio, em 1953; e na reorientação dos comunistas

em voltar para os sindicatos oficiais. Especialmente após o suicídio de Vargas, quando a

reorientação política do PCB se efetiva (cujo emblema é o apoio dos comunistas à

candidatura de Juscelino Kubitscheck), é formado o chamado sindicalismo populista.

Assim, ao contrário do Primeiro Peronismo (1943-1955), o tal sindicalismo populista no

Brasil teria se formado no momento em que o próprio desenvolvimento capitalista

nacional era “quase um anacronismo histórico”, face às modificações do plano

econômico internacional do período posterior à Guerra de Coréia (1950).201  Como

define em diversas passagens de sua obra:

meu ponto de vista, ausência de consciência de classe. Significa, ao contrário, que a classe trabalhadoradefendia-se como podia, nas condições históricas objetivas da época.” MOISÉS, José Álvaro. Greve demassa e crise política. Um estudo sobre a Greve dos 300 mil em São Paulo – 1953-1954. São Paulo:Polis, 1978, p.60.201 WEFFORT, Sindicato e política, op. cit., p.6, 29-30.

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“O movimento sindical populista é um fenômeno recente na história brasileira. Só começa a tomar corpo em inícios dos anos 50 e só a partirda segunda metade da década chega a definir-se plenamente. É a partirdos anos 50, portanto, que se podem perceber mais claramente suascaracterísticas: no plano da orientação, subordina-se à ideologianacionalista e se volta para uma política de reformas e colaboração de

classes; no plano da organização, caracteriza-se por uma estrutural dual em que as chamadas “organizações paralelas” [intersindicais], formadas por iniciativa da esquerda, passam a servir de complemento à estruturasindical oficial, inspirada no corporativismo fascista como um apêndiceda estrutura de Estado; no plano político, subordina-se às vicissitudes daaliança formada pela esquerda com Goulart e outros populistas fiéis àtradição de Vargas. O sindicalismo populista atingirá o ponto máximo deseu desenvolvimento nos anos 60 na linha de aproximação esubordinação crescentes ao regime populista. Em 1964, este sindicalismoentra em crise para finalmente desaparecer com o regime político ao qualassociara o seu destino.”202 

Acreditamos não estar extrapolando ao atribuirmos a esta interpretação de

Weffort a seguinte dedução: através de suas práticas, a esquerda não só foi responsável

 pela permanência da estrutura sindical corporativista, como deu legitimidade e “vida” a

uma instituição cuja razão de ser é o controle sobre a classe operária. Portanto, a

esquerda reforçou uma estrutura do regime em crise, “dando vida” ao sindicalismo

 populista. É assim que, para Weffort, em vez de praticar uma política autônoma da

classe trabalhadora, o PCB colaborou para que o movimento ficasse subordinado ao

Estado e, consequentemente, à própria burguesia.

 Não foi por acaso nos anos oitenta essa formulação foi muito bem recebida por

setores críticos da esquerda que se enfrentaram no terreno prático da política com a

esquerda tradicional (PCB, PCdoB e o MR8). É que esta última defendia, naquele

contexto da luta contra a ditadura, a aliança com todos os pelegos sindicais oriundos da

 própria – alguns deles com trajetória que remetia ao período anterior a 1964, como Ary

Campista – como forma de participar da frente ampla com a própria burguesia liberal

 pela democratização do país. E um dos motes dessa aliança só poderia ser a ausência de

crítica à estrutura sindical oficial. Sendo Weffort por esta época um dos mais eminentesteóricos do Partido dos Trabalhadores (PT), partido que se caracterizou nos primeiros

anos por uma prática classista, com denúncia do pacto social e defesa da independência

 política da classe trabalhadora, parecia coerente hipotecar a toda trajetória do PCB o

202  WEFFORT, Sindicato e política, op. cit., capítulo I, p.2-3. Trecho idêntico encontra-se em _______“Origens do sindicalismo populista: a conjuntura do após-Guerra.” Estudos CEBRAP, n.4, SãoPaulo, jun. 1973, p.67; e ________. Participação e conflito industrial, op. cit., p.67.

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atraso na organização do movimento operário brasileiro. Afinal não era exatamente isso

que o PCB estava fazendo nos anos finais da ditadura militar, negando-se a criticar a

estrutura sindical oficial, se aliando aos pelegos203 e à burguesia “democrática”?204 

Todavia essa imagem do PCB dos anos oitenta não nos ajuda a compreender sua

 postura no movimento sindical brasileiro no período de 1945-1964. Ademais, tal procedimento, muitas vezes, acaba por revelar uma frágil visão teleológica, que em

casos mais radicais chega ao ponto de defender que desde o princípio estava certo que

os comunistas “trairiam” a classe trabalhadora. Mesmo tendo tido uma orientação

muitas vezes moderada, como no fim do Estado Novo, o PCB continuou a abrigar em

seus quadros os mais importantes líderes sindicais do período, líderes de greves

combativas, desafetos da classe patronal e perseguidos pelas autoridades da repressão

 política.

A dinâmica das pressões das bases e as contradições entre a linha oficial do partido e a prática real de sua militância são também pontos que tem sido investigados

 pela historiografia para mostrar que, ainda nos momentos em que adotava posições mais

moderadas, lideranças do PCB, contra a orientação do partido, estavam na cabeça de

greves, e em diversos casos sua rebeldia acabou contribuindo para a mudança na linha

 partidária. É nesse sentido que autores como Hélio da Costa e Marco Aurélio Santana

falam da existência de “dois PCs”.205 Isso não implica em deixar de verificar que, se nos

anos iniciais da implantação da estrutura sindical corporativista o PCB, como o restante

da esquerda (anarquistas, trotsquistas e socialistas), denunciaram-na como fascista, após

203 Nesta tese acreditamos ser importante reafirmar a pertinência do conceito de pelego, não só por fazer parte de um arsenal teórico utilizado pela esquerda no movimento operário, como por acreditarmos emsua adequação heurística. Como é bem conhecido, o  pelego é o líder sindical cuja prática orienta-se emamaciar os conflitos de classe, prática na qual se inscreve a oposição sistemática às greves comomecanismo de conquistas de direitos e ganhos materiais, sendo essa oposição ainda mais evidente quandoas greves são feitas com propósito eminentemente político. Entram no rol de pelegos figuras comoDeocleciano de Holanda Cavalcanti, que de 1947 a 1961 foi o presidente da Confederação Nacional dosTrabalhadores na Indústria (CNTI), época em que circulava em um automóvel Cadillac com chofer. Foialijado do comando da CNTI no final de 1961, quando a esquerda sindical, formada pela aliança do PCBcom a esquerda do PTB, ganhou as eleições para a entidade. Voltou à frente da mesma pelas mãos daditadura, logo após o golpe de 1964.204  O contexto de emergência da noção de “novo sindicalismo” diz muito sobre este debate sobre o

 passado, já que o termo foi usado para denominar o movimento grevista surgido a partir do ABC paulistaem fins dos anos setenta, e que se expressou partidariamente no próprio PT (1980) e na Central Única dosTrabalhadores (1983). Sobre a trajetória desta noção de “novo sindicalismo” na produção historiográficae das ciências sociais, ver MATTOS, Marcelo Badaró.  Novos e velhos sindicalismos. Rio de Janeiro(1955/1988). Rio de Janeiro: Vicio de Leitura, 1998. SANTANA, Marco Aurélio. “Entre ruptura econtinuidade: visões da história do movimento sindical brasileiro.”  Revista Brasileira de CiênciasSociais, vol.14, n.41, p.103-120, outubro de 1999.205 COSTA, Hélio da. Em busca da memória. Organização no local de trabalho, partido e sindicato emSão Paulo: Scritta, 1995.  SANTANA, Marco Aurélio.  Homens partidos. Comunistas e sindicatos noBrasil. Rio de Janeiro: Ed.Unirio; São Paulo: Boitempo, 2001.

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1945 na maior parte do tempo a opção dos comunistas (e do resto da esquerda) foi pela

convivência com a estrutura oficial, de forma a poder aproveitar-se de seus recursos.

Isto esteve na base das alianças formadas pelos comunistas com os elementos mais à

esquerda do PTB.

Mas é preciso ser justo na avaliação desta tática, pois ninguém pode desmentirque esta aliança esteve à frente das mais importantes lutas operárias do período entre o

governo Juscelino Kubitscheck e a queda de Jango. Na verdade, desde antes do suicídio

de Vargas, a linha política do PCB foi alterada para a aliança com os trabalhistas no

 plano sindical. Conforma-se assim uma corrente nacionalista  no movimento sindical

 brasileiro, que irá paulatinamente galgando postos à frente dos principais sindicatos,

federações e confederações da estrutura sindical oficial. Em muitos casos, a aliança dos

comunistas com os elementos de esquerda do PTB já era uma prática mesmo durante o

segundo governo Vargas, quando a linha do PCB era de oposição ao governo. Depoisde um breve período de “esquerdismo”,206 que se seguiu à cassação do registro do PCB

e dos mandatos parlamentares, em 1947, no qual o partido orientou seus militantes a

retirarem-se da estrutura sindical, os sindicalistas comunistas voltaram aos sindicatos,

 por perceberem ser a melhor forma de militar junto à classe operária. Atuar fora dos

sindicatos oficiais, em condições de clandestinidade, levaria ao isolamento completo.207 

Quando, já em 1º de maio de 1951, Vargas acaba com a exigência de “atestado de

ideologia” para a participação nas eleições sindicais,208  os comunistas puderam de

forma discreta voltar a disputar as diretorias dos sindicatos. A partir de então, o PCB irá

conquistar uma influência cada vez maior nos sindicatos, federações e confederações

oficiais, e também nas inúmeras intersindicais extra-legais que pontuaram o

sindicalismo do período. Na maior parte das vezes, em aliança com os trabalhistas.

Por outro lado, a conceituação de Weffort parece querer negar a importância que

a esquerda teve à frente das greves, principalmente quando fala do que teria sido a

estrutura dual do sindicalismo daquele período. Essa estrutura dual tinha como pedra

de toque a existência das “entidades paralelas”, assim definidas pelo autor:

“A expressão ‘organização paralela’, de inspiração jurídica, não é talveza melhor. É porém a que vem sendo usada pelos estudiosos dosindicalismo brasileiro para designar as organizações inter-sindicais de

206 Esquerdismo em relação aos métodos, pois em relação ao programa o PCB continuou a propugnar umarevolução nacional-democrática que impulsionasse o desenvolvimento do capitalismo brasileiro.207 Ver SANTANA, Homens partidos, op. cit., capítulo 2.208 Outra continuidade do Estado Novo, que o governo do Marechal Dutra fará ressurgir no início da vagarepressiva de 1947.

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caráter horizontal (Pacto de Unidade e Ação, Pacto de Unidade Inter-sindical, etc.), que complementavam e dinamizavam a estrutural oficial(por isso, talvez, fosse melhor dizer ‘organizações complementares’).Embora proibidas pela legislação, foram toleradas pelos governos

 populistas, os quais evidentemente tiravam vantagens políticas de suasatividades. Submetidas em geral ao controle dos comunistas, estas

organizações começaram nos anos 50 ao nível dos sindicatos, passaramdepois aos níveis superiores das federações e confederações eculminaram na formação do Comando Geral dos Trabalhadores em1962.”209 

O que nos parece mais frágil nesta formulação é a forma como o autor enquadra as

entidades intersindicais horizontais. Voltaremos mais à frente a tratar deste tema, que

constituirá um dos pontos centrais de nossa crítica nesta tese.

Por agora, cabe dizer que, ao contrário do que diz a ortodoxia sobre o

 populismo, o sindicalismo durante a República de 1946 teve forte atuação na base, nãosendo desconhecidas as organizações por local de trabalho. Na historiografia isso já foi

demonstrado algumas vezes, e um exemplo é o trabalho de Mattos sobre o sindicalismo

carioca, que no período de meados dos anos cinquenta até o golpe de 1964 encontrou

uma série de “greves participativas, organizadas a partir do local de trabalho e com

integração visível entre demandas políticas gerais e bem sucedidos encaminhamentos de

reivindicações econômicas”,210  portanto em contraste com as formulações sobre o

“sindicalismo populista”.211 

De acordo com a visão tradicional do sindicalismo populista, as greves quemarcaram a conjuntura de meados dos anos cinquenta até o golpe de 1964 era feitas “de

fora pra dentro da empresa”, como definiu Leôncio Martins Rodrigues.212 Isso decorria

da natureza “cupulista” dos aparelhos sindicais e a inexistência de trabalho político dos

mesmos nos locais de trabalho, sendo sempre necessário o recurso aos piquetes como

forma de garantir a paralisação do trabalho. Nessa literatura os próprios piquetes são

209 WEFFORT, Sindicato e política, op. cit., p.2, nota.210 MATTOS, Novos e velhos sindicalismos, op. cit., p.219.211 Alguns outros trabalhos que a partir do estudo de categorias específicas demonstraram a existência

destas organizações de base do sindicalismo naquele período (e consequentemente a ausência de basesempíricas para a formulação de Weffort) são: RAMALHO, José Ricardo. Estado patrão e luta operária.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; SILVA, Francisco Teixeira da Silva. A carga e a culpa – os operáriosdas docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade (1937/1968). São Paulo: Hucitec; Santos: Pref.Munc. de Santos, 1995; SANTANA,  Homens partidos, op. cit.; COSTA, Hélio da. Em busca damemória. São Paulo: Scritta, 1995; FONTES, Paulo. Trabalhadores e cidadãos – Nitroquímica: a fábricae as lutas operárias nos anos 50. São Paulo: Annablume/Sind. dos Químicos e Plásticos-SP, 1997.

 NEGRO, Antonio Luigi.  Linhas de montagem: o industrialismo nacional-desenvolvimentista e asindicalização dos trabalhadores (1945-1978). São Paulo: Boitempo, 2004.212 RODRIGUES, Leôncio Martins. Sindicalismo e conflito industrial no Brasil. São Paulo: Difel, 1966,

 p.59.

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entendidos como recursos que exprimem a debilidade dos sindicatos. Marcelo Badaró

Mattos ajudou também a desconstruir essa imagem tradicional.213  No mesmo estudo

supracitado, o autor buscou pensar o recurso aos piquetes de uma forma mais complexa

e, partindo do estudo de três categorias, bancários, metalúrgicos e ferroviários,

verificou-se que o recurso ao piquete muitas vezes era tomado como segurança para queos trabalhadores não sofressem maiores represálias das empresas ao pararem de

trabalhar.

Como vimos, Mattos demonstrou também ser falsa a ideia de que inexistiam

organizações por local de trabalho, e partindo de dados colhidos em documentação

variada, constatou que em metade da base do Sindicato dos Metalúrgicos existiam tais

organizações, sendo que no caso do Sindicato dos Bancários, onde índice de

sindicalização correspondia quase que ao total da base sindicalizada, 75%, tais

organizações eram das mais dinâmicas. Além do mais, nem sempre os piquetes sefaziam necessários.214  Outro ponto importante deste mesmo trabalho é que apensou

dados mais precisos sobre o volume de greves que marcaram a espiral sindical no pré-

1964. Até Novos e velhos sindicalismos, os dados sobre a mobilização sindical no Rio

de Janeiro haviam sido os elaborados por Régis de Castro Andrade nos anos 1970, e o

 por Salvador Sandoval215 dos anos oitenta, ambos baseados em levantamentos no jornal

 paulista Folha de São Paulo, e os importantes trabalhos dos brasilianistas Kenneth Paul

Erickson216  e Timothy Fox Harding,217 que basicamente realizaram levantamentos no

 Jornal do Brasil e no semanário comunista  Novos Rumos. Trabalhando com uma série

de periódicos cariocas, como Correio da Manhã , Jornal do Brasil, O Dia, O Jornal etc.,

Mattos demonstrou que o número de paralisações considerados nestes trabalhos havia

sido subestimado, havendo mais que o dobro das ocorrências.218 

Além de Mattos, os também supracitados trabalhos de Marco Aurélio Santana e

Hélio da Costa, e uma certa produção historiográfica desenvolvida na Unicamp desde os

anos noventa, também seguiram na mesma direção de crítica à noção de sindicalismo

 populista. Exemplar desta última produção está condensada na obra coletiva Na luta por

direitos de 1999, que contribuiu com estudos sobre as lutas operárias no período, muitos

213 MATTOS, Novos e velhos sindicalismos, op. cit.214  Idem, ibidem, 184 e passim.215 SANDOVAL, Salvador. Os trabalhadores param. Greves e mudança social no Brasil, 1945-1990. SãoPaulo: Ática, 1994.216 ERICKSON, Kenneth Paul. Sindicalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.217  HARDING, Timothy Fox. The political history of organized labor in Brazil. Ph.D dissertation,Stanford University Press, 1973.218 MATTOS, Novos e velhos sindicalismos, op. cit., p.182-183.

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delas focados na conquista e efetivação de direitos sociais.219 A contribuição vem, de

certo modo, a somar-se ao esforço empreendido desde o trabalho seminal de Luis

Werneck Vianna,  Liberalismo e sindicato no Brasil, de 1976, para desmontar o que

Vianna denominou de “ideologia da outorga”, calcada na ideia de uma suposta

“benevolência das elites” na “concessão” dos direitos sociais.220

  Referenciados naabordagem sobre direito, justiça e costumes de E. P. Thompson, e nas contribuições do

 brasilianista John French, o que os autores de Na luta por direitos vieram a acrescentar

foram justamente estudos que demonstraram como os trabalhadores não só foram atores

na construção da legislação social brasileira, como de que modo a classe foi capaz de

realizar sua própria leitura da lei e da Justiça Trabalhista, de modo a forçar os patrões a

cumprirem os acordos celebrados nos Tribunais, ou mesmo a cobrar dos tribunais por

decisões em seu favor.

 No mesmo sentido segue o trabalho mais recente do historiador Murilo LealPereira Neto sobre o movimento operário paulista entre os anos cinquenta e o golpe de

1964, que também mostrou como é falha a ortodoxia sobre a carência de organizações

 por local de trabalho, chamando atenção para informações contidas em documentação

variada, como dossiês do DOPS, jornais de sindicatos, Atas de Assembleias e

depoimentos. O autor descobriu que diversas destas organizações estiveram por trás de

greves e que algumas delas chegaram a produzir pequenos jornais. As próprias células

do PCB são também consideradas por Pereira Neto como uma forma dessas

organizações nos locais de trabalho, o que é certamente fato negligenciado durante

muito tempo.221 Em relação ao tema dos direitos, Pereira Neto nos trouxe a lembrança

da longa luta pelo direito ao 13º salário, conquistado no Brasil sob o governo João

Goulart, na qual a greve geral paulista de 13 de dezembro de 1961 constituiu-se num

dos capítulos mais dramáticos.222 Como sintetiza o historiador:

“O 13º salário é um desses casos de reivindicação surgida no chão defábrica, legitimada nas relações costumeiras entre patrões e empregadosem algumas firmas, transformada em lei às custas de greves, demissões,abaixo assinados, prisões e cuja memória é depois ofuscada pelo brilho

219  FORTES, Alexandre et al.  Na luta por direitos: leituras recentes em história social do trabalho.Campinas: Ed. Unicamp, 1999. 220 VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1976.221 PEREIRA NETO, Murilo Leal.  A reinvenção do trabalhismo no “vulcão do inferno”. Um estudosobre os metalúrgicos e os têxteis de São Paulo. A fábrica, o bairro, o sindicato e a política (1950-1964).Tese de doutorado em História. São Paulo: USP, 2006.222  Idem, ibidem, p.276-288.

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da lei que, supõe-se, como toda lei, deve ter sido iniciativa de algum presidente, deputado ou senador.”223 

2.2 As críticas ao conceito de populismo: revisão e revisionismo 

Em suma, de acordo com o painel até aqui exposto, a historiografia tem se

movimentado criticamente em relação à noção de sindicalismo populista, que

 praticamente entrou em desuso entre os historiadores do trabalho, embora seja

importante mencionar trabalhos como o do cientista político Armando Boito Jr.,

 publicado no início dos anos noventa, e que faz largo uso da noção tradicional de

 populismo, submetendo-o à abordagem marxista/althusseriana.224  Já em relação ao

conceito de populismo, seu abandono não parece ser consensual. No início dos anos

2000, mesmo do campo da historiografia política, de onde partiria a proposta aberta de

abandono do conceito de populismo, pôde-se ler na lavra de José Murilo de Carvalho a

noção de populismo conjurada.225 É preciso asseverar ainda que mesmo entre os críticos

do conceito de sindicalismo populista, não há consenso ante o abandono da noção de

 populismo, de que são exemplos os trabalhos de autores como Alexandre Fortes e John

French, já citados acima. Vejamos isso com maior detalhe.

Uma das principais censuras direcionadas à teoria do populismo liga-se, pois, à

categoria da “manipulação”. A historiadora Ângela de Castro Gomes, na sua

contribuição crítica à história deste conceito,226  atribui importância central ao que

chama de “categoria-chave” da teoria do populismo, que remeteria “à ideia básica decontrole e tutela do Estado”. De acordo com essa autora, a relação entre o líder

 populista/Estado e as massas é pensada por Weffort nos seguintes termos:

“Há o desenho de uma relação em que um dos termos é concebido comoforte e ativo, enquanto o outro é fraco e passivo, não possuindocapacidade de impulsão própria por não estar organizado como classe. Asmassas ou os setores populares, não sendo concebidos como

223  Idem, ibidem, p.287.224 BOITO JR., Armando. O Sindicalismo de Estado no Brasil. São Paulo: Hucitec/ Ed.Unicamp, 1991.225  “O populismo pode, sob certos aspectos, ser considerado manipulação política, uma vez que seus

líderes pertenciam às elites tradicionais e não tinham vinculação autêntica com causas populares. Pode-sealegar que o povo era massa de manobra em disputas de grupos dominantes. Mas o controle que tinhamesses líderes sobre os votantes era muito menor do que na situação tradicional. Baseava-se em apelos

 paternalistas ou carismáticos, não em coerção. Exigia certo convencimento, certa relação de reciprocidadeque não era puramente individual. Vargas e seus sucessores exibiam como crédito a legislação trabalhistae social, os aumentos de salário mínimo. Sobretudo, a relação populista era dinâmica. A cada eleição,fortaleciam-se os partidos populares e aumentava o grau de independência e discernimento dos eleitores.Era um aprendizado democrático que exigia algum tempo para se consolidar mas que caminhava comfirmeza.” CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2001, p.147-148.226 GOMES, “O populismo e as ciências sociais no Brasil...”, p.33.

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atores/sujeito nesta relação política, mas sim como destinatários/objeto aque se remetem as formulações e políticas populistas, só poderiam sermanipulados ou cooptados (caso das lideranças), o que significa

 precipuamente, senão literalmente, enganados ou ao menos desviados deuma opção consciente.”227 

Seriam essas massas, segundo tal crítica, concebidas na teoria do populismo de Weffort

como “por definição, desorganizadas e inconscientes –, alvo privilegiado, portanto, da

 política de manipulação do Estado: o populismo.”228 

É possível sustentar que, ao contrário do que parece sugerir essa crítica, é a

questão da crise de hegemonia que organiza toda a reflexão de Francisco Weffort sobre

a vigência do populismo entre 1930-1964. María Moira Mackinnon e Mario Alberto

Petrone, por exemplo, em texto de referência para o debate sobre o conceito na América

Latina publicado no fim dos anos 1990, enquadram o trabalho do cientista político

uspiano ao lado dos já mencionados Murmis e Portantiero, para quem o conceito de

crise de hegemonia é central.229  Isto nos parece muito mais preciso, posto que, como

definem esses autores, o populismo seria um fenômeno encontrado em algumas

formações sociais latino-americanas após o colapso da ordem oligárquica no período

histórico aberto pela crise de 1929, situação que teria se notabilizado pela debilidade 

das classes sociais relevantes, incapazes de assumir tanto a condução do Estado, quanto

uma oposição consequente contra ele. É propriamente do entendimento desta crise de

hegemonia que é possível compreender a questão espinhosa da “manipulação” nas

elaborações de Weffort, que, além do mais, parece ter sido pensada em cores muitos

mais sofisticadas do que a simplificação em que “lideranças populistas inescrupulosas”

“manipulam” massas “bestializadas”, “inconscientes” e “passivas”.

Ao contrário daqueles que pensavam que o proletariado brasileiro formado pelas

grandes levas de migrantes internos que se dirigiram do Nordeste e das Minas Gerais

 para os centros mais industrializados do Brasil, como incapaz de desenvolver uma

consciência de classe, já discutimos, Weffort foi um dos primeiros a afirmar a

necessidade de entendimento desta classe trabalhadora como “sujeitos da sua própriahistória”. E mesmo no tal “tempo do populismo”, para Weffort esse foi “um modo

determinado e concreto de manipulação das classes populares mas foi também um modo

227  Idem, ibidem, p.34-35.228  Idem, ibidem, p.35.229  MACKINNON, María Moira; PETRONE, Mario Alberto. “Los complejos de la Cenicienta.” In.MACKINNO, M. M.; PETRONE, M.A. (compiladores.). Populismo y neopopulismo en América Latina:el problema de la Cenicienta. Buenos Aires: Editora de la Universidad de Buenos Aires, 1998, p.13-38.

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de expressão de suas insatisfações”, como escreveu no seu emblemático artigo “O

 populismo na política brasileira”, citado na crítica feita por Gomes.230  Afinal, para

Weffort, no populismo “a manipulação nunca foi absoluta”. E com essas palavras

esclarece:

“Se fosse, estaríamos obrigados a aceitar a visão liberal elitista que, emúltima instância, vê no populismo uma espécie de aberração da históriaalimentada pela emocionalidade das massas e pela falta de princípio doslíderes.”231 

Em flagrante contraste com a crítica endereçada por Gomes, na verdade Weffort

 parece pensar uma relação bem mais dialética entre o Estado/líderes populistas e as

classes populares do que a visão dicotômica entre um polo ativo e outro passivo.

“A noção de manipulação, tanto quanto a de passividade popular, temque ser relativizada, concretizada historicamente, para que possamos

entender a significação real do populismo. A imagem, se não o conceito,mais adequado para entendermos as relações populistas entre as massasurbanas e alguns grupos representados no Estado é de uma aliança(tácita) entre setores de diferentes classes sociais. Aliança na qualevidentemente a hegemonia se encontra sempre com os interessesvinculados às classes dominantes, mas impossível de realizar-se sem oatendimento de algumas aspirações básicas das classes populares, entreas quais caberia mencionar a reivindicação do emprego, de maiores

 possibilidades de consumo e de direito de participação nos assuntos doEstado.”232 

É por isso que o líder populista deve ser alguém que exerça alguma autoridade noaparelho de Estado – prefeito, vereador, governador, presidente etc. –, que esteja em

condições de “doar”, “seja uma lei favorável às massas, seja um aumento de salário ou,

mesmo, uma esperança de dias melhores”.233 

Essa “dialética da doação”, empiricamente observável como prática política

vigente naquele contexto também conhecido como Era Vargas, Ângela de Castro

Gomes prefere pensar a partir das proposições de Marcel Mauss (1872-1950), presente

em seu influente Ensaio sobre a dádiva (1925), a partir da dinâmica social entre dom e

contra-dom, de modo a comprovar sua tese de que sob o Estado Novo teria seconformado um “pacto-trabalhista” (que veremos a seguir). O curioso é que o estudo de

Mauss refere-se aos métodos de troca em sociedades pré-monetárias.

230 WEFFORT, “O populismo na política brasileira.”, op. cit., p.51, grifo nosso.231  Idem, ibidem, p.51.232  Idem, ibidem, p.70.233  Idem, ibidem, p.67.

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Em outra controvérsia recente da historiografia brasileira, a historiadora Laura

de Mello e Souza censurou o recurso às reflexões de Mauss para o estudo do mundo

colonial na América portuguesa, procedimento feito por António Manuel Hespanha e

 pelos partidários da abordagem do “Antigo Regime nos Trópicos” na historiografia

 brasileira. De acordo com a historiadora paulistana, isso “desloca a análise feita porMauss com base sobretudo num mundo desmonetarizado e a lança no universo do

capitalismo nascente”.234  Ora, se há alguma justeza nessas palavras é necessário

estender o mesmo tipo de censura às proposições de Ângela de Castro Gomes para

entender a relação social que emerge no contexto do “populismo” ou do “trabalhismo”,

como queiram.235  Não obstante, em leituras a partir de registros teóricos distintos, é

 possível verificar a aceitação desta “cadeia do dom” de Mauss como uma “rocha eterna”

da sociabilidade humana, e, nesse sentido, o recurso não seria descabido para a

compreensão das relações que se estabeleceram entre os agentes do Estado e a classetrabalhadora na Era Vargas, caso não enquadrássemos essa como uma relação de troca

mercantil.236  O problema então seria se essa questão da reciprocidade já não estaria

 presente no próprio conceito de populismo.

Seja lá o que for, em suas proposições sobre a “invenção do trabalhismo”,

Gomes parece fazer coro com uma postura intelectual amplamente desenvolvida nos

anos 1980 que dizia ser em as análises “tradicionais” sobre a relação entre o Estado e a

sociedade baseadas em esquemas “maniqueístas”, segundo os quais esta última seria

234  SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.58-9.Elaborado pelo historiador carioca João Fragoso, o paradigma do Antigo Regime nos Trópicos tem dadoo tom da produção sobre a América portuguesa na última década. Suas origens podem ser pensadas comoum desdobramento da tese do “arcaísmo como projeto” enunciada pelo próprio Fragoso e por ManoloFlorentino. Em artigo publicado na revista portuguesa Penélope  em 2000, no contexto do boom  na

 produção historiográfica sobre o período colonial – face à efeméride dos 500 anos – Fragoso ao lado deMaria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouveia (“Uma leitura do Brasil colonial – bases damaterialidade e da governabilidade do Império”, Penélope, n.23, Oeiras, Celta Editora, p.67-88, 2000) eculminou na publicação da obra coletiva FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA,Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (século XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Os supracitados comentários de Laura de Mello eSouza referem-se principalmente a esta última obra.235 Os chamados “críticos do valor” oferecem outro argumento a essa crítica de Laura de Mello e Souza.

O filósofo e ensaísta alemão Anselm Jappe, por exemplo, em seu livro As aventuras da mercadoria lançamão dos estudos sobre a dádiva de Marcel Mauss – como também o trabalho de outros antropólogoscomo Marshall Sahlins, Louis Dumont, Karl Polanyi – para discutir como a troca de equivalentes, quecaracteriza a sociabilidade do valor, não é “a única forma possível de socialização e que a subordinaçãototal da sociedade às exigências do trabalho produtivo, tal como a condição prévia dessa subordinação,nomeadamente a desvinculação da ‘economia’ e do ‘trabalho’ do conjunto do domínio da vida,representam um fenômeno relativamente recente, limitado somente à sociedade capitalista” JAPPE,Anselm. As aventuras da mercadoria. Por uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006, p.223.236  LANNA, Marcos. “Notas sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva.” Revista de Sociologia ePolítica, Curitiba, n.14, p.173-194, jun.2000. SABOURIN, Eric. “Marcel Mauss: da dádiva à questão dareciprocidade.” Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.23, n.66, p.131-208, fevereiro 2008.

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sempre apresentada como “passiva”. Por volta da época em que publicou sua tese de

doutorado,  A invenção do trabalhismo, José Murilo de Carvalho, em seu Os

bestializados, buscou pensar a questão da constituição da cidadania e a relação com o

Estado brasileiro nos seguintes termos:

“Trata-se do problema do relacionamento entre o cidadão e o Estado, ocidadão e o sistema político, o cidadão e a própria atividade política. Temhavido recentemente tendência a ver tal relação de maneira maniqueísta,segundo a qual o Estado é apresentado como vilão e a sociedade comovítima indefesa. (...) Na prática, [essa visão maniqueísta] acaba porrevelar uma atitude paternalista em relação ao povo, ao considerá-lovítima impotente diante das maquinações do poder do Estado ou degrupos dominantes. Acaba por bestializar o povo.”237 

É difícil saber de que análises “maniqueístas” o autor e parte da historiografia se

lamentam quando assim se pronunciam, e certamente estes dizeres, embora marquem

uma posição historiográfica nada ingênua – que visa amaciar as relações contraditórias

entre os grupos e classes sociais na desigual sociedade brasileira –, não necessariamente

se dirige contra a noção de populismo. Afinal, como já vimos, o próprio historiador

mineiro não abre mão das noções de “manipulação” e mesmo “populismo”. Enquanto

em Gomes a rejeição ao populismo é total, e, respondendo críticos a quem acusa de

fazer uma crítica apenas parcial ao conceito, diz com essas palavras:

“o que se deseja rejeitar na categoria populismo são as idéias que elasanciona: a de lideranças orientadas basicamente pelo desejo de

manipular o povo/trabalhadores e de um povo que se deixa facilmenteenganar comportando-se freqüentemente de forma inconsciente einconseqüente”238 

Reduzido a um mito político – no sentido dado por Raul Girardet em seu livro

 Mitos e Mitologias Políticas  –,239  como uma formulação que resiste ao “tempo e às

chamadas provas empíricas”, o populismo seria ainda uma mitologia  carregada de

significado negativo sobre a natureza do povo e das elites nacionais.240 

“Ela evoca a desesperança e o ceticismo. Ela narra um destino manifesto

que se configura como um impasse permanente. É como se houvesseuma “caveira de burro” enterrada no solo político brasileiro, que sela um

237 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1987, p.10.238 GOMES, Ângela de Castro. “Reflexões em torno de populismo e trabalhismo.” Varia História, BeloHorizonte, n.28, p.55-68, dezembro de 2002, citação a p.63.239 São Paulo: Companhia das Letras, 1987.240 GOMES, “Reflexões em torno de populismo e trabalhismo”, op. cit., p.64.

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 pacto perverso entre elites e povo, ambos marcados pela ausência deatributos positivos de forma verdadeiramente ontológica.”241 

Por outro lado, o fulcro do problema que a teoria do populismo traz não é tanto o

que supostamente se manifestaria com a “manipulação”, mas as condições sob as quais

a “manipulação populista”, ou melhor, o regime populista, tornou-se a forma possível

da política no período de aceleração histórica da objetivação do modo de produção

efetivamente capitalista no Brasil.242 Nestes termos, parece-nos que a principal questão

da teoria do populismo liga-se realmente à questão da crise de hegemonia como

apontaram Mackinnon e Petrone. Em suma, a questão da manipulação é subordinada ao

entendimento das relação de forças sociais no período histórico aberto pela “Revolução

de 1930”, ou da capacidade de organização autônoma das classes sociais num período

de crise, dos seus partidos políticos e demais organizações na sociedade civil, o que

remete à problemática da consciência de classe. De acordo com o que é possível aferir

das proposições canônicas de Weffort, a própria manipulação se inscreve nessa

determinação prévia. Como diz em seu clássico artigo, foi antes de mais nada o

resultado “de um período de crise”243 

Em texto recente, os historiadores Sidney Chalhoub e Fernando Teixeira da

Silva identificaram uma enorme afinidade entre os trabalhos “tradicionais” sobre a

escravidão Brasil, calcados, segundo os autores, na noção do “escravo-coisa”, e os

estudos pioneiros sobre o trabalho livre no Brasil, estudos, que como vimos, embasaram

e constituíram a própria noção de populismo.244  Essa afinidade conformaria o que

Chalhoub e Teixeira da Silva denominam de “paradigma da ausência”, presente, por

exemplo, em todas as representações dos escravos que derivam da brutalidade do

cativeiro a incapacidade destes em produzir um sentido para sua própria vida. De acordo

com esses autores, essa mesma imagem também está presente nas formulações sobre a

“heteronomia” da classe operária do período 1930-1964, entre os quais a do

241  Idem, ibidem, p.67.242 Sobre modo de produção efetivamente capitalista e a questão da industrialização, ver. MARX, Karl.Capítulo inédito d’O capital. Resultados do processo imediato. Porto: Escorpião, 1975, p.89. ______. Ocapital. Livro I, vol. II. São Paulo: Nova Cultural, 1983, capítulo XV, p.105-112.243 WEFFORT, “O populismo na política brasileira”, op. cit., p.50, grifo nosso.244 CHALHOUB, Sidney & SILVA, Fernando Teixeira da. “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravose trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980.” Cadernos AEL, Campinas, v.14, n.26,

 p.13-47, 2009.

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 populismo.245 Ainda de acordo com estes autores, com a crítica dos últimos vinte anos

ao conceito de populismo, operou-se a emergência de um paradigma alternativo,

calcado na incorporação da noção de agência humana.

Todavia, é preciso notar que alguns críticos do conceito parecem mais

interessados em reabilitar como “autênticos líderes populares” homens como Vargas,Goulart ou até mesmo Jânio, do que investigar as diversas formas como as classes

subalternas lutaram sob seus governos. Pois neste debate, em que mesmo sujeitados,

todos são apresentados como “sujeitos que realizam escolhas”, apela-se sempre para a

obra de E. P. Thompson.246  Como já havíamos mencionado acima, a parte mais

interessante dos críticos do conceito de populismo têm mostrado que no período entre

1930 e 1964 a classe trabalhadora lutou de diversas formas e soube transcender, ainda

que parcialmente, os limites impostos pela estrutura sindical oficial. Foi sujeito de sua

 própria história, e mesmo quando integrando uma aliança poli-classista, foi capaz deencaminhar suas demandas no interior deste pacto de classe.

Deste modo, é inteiramente necessário assinalar no movimento de crítica do

conceito duas posturas antagônicas.247 A nosso ver é certamente fecundo recusar noções

simplificadas de uma “massa manipulada” e/ou “trabalhadores passivos”, mas

acreditamos ser possível fazer uma reelaboração do conceito, não abrindo mão de

caracterizar homens como Getúlio Vargas, Ademar de Barros, João Goulart e Jânio

Quadros como populistas, como tem feitos alguns estudiosos. No livro  Afogados em

leis, John French parece se encaminhar nesse sentido quando critica de forma dura uma

certa historiografia revisionista no tratamento à figura de Getúlio Vargas:

“Na verdade, apesar do revisionismo corrente, devemos ir além e perguntar até que ponto os trabalhadores poderiam ter confiança no próprio Getúlio Vargas – se é que tinham alguma. Infelizmente, algunsanalistas têm se inclinado a favor de uma visão acrítica de Vargas.Baseados muito mais em sua retórica do que em sua atuação concreta,

245 Essa afinidade também foi notada pela própria Ângela de Castro Gomes. GOMES, Ângela de Castro.“Questão social e historiografia no Brasil pós-1980: notas para um debate.” Estudos Históricos, Rio de

Janeiro, n.34, p.157-186, julho/dezembro de 2004.246 A importância da obra de E. P. Thompson para a historiografia brasileira e os usos feitos por diversoshistoriadores vêm sendo estudadas por Marcelo Badaró Mattos. Ver MATTOS, M. B. “E. P. Thompsonno Brasil.” Outubro, n.14, p.81-110, 2006. ______. Edward Palmer Thompson e a tradição de críticaativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2012. Para o lugar da obra de Thompson nosestudos sobre a classe trabalhadora, cf. LINDEN, Marcel van der. “História do Trabalho: o velho, o novoe o global.” Revista Mundos do Trabalho, vol.1, n.1, p. 11-26, janeiro-junho de 2009.247  DEMIER, Felipe Abranches. “Trabalhadores e populismo vistos sob outra perspectiva: a correntehistoriográfica da Unicamp e a tese da luta por direitos.”  Anais do I Seminário Internacional Mundos doTrabalho: História do Trabalho no Sul Global, Florianópolis (SC), 2010. Disponível<http://labhstc.ufsc.br/globalsouth/program.htm>

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atribuem a ele ‘boas’ intenções e um projeto reformista. A melhor provade que isto não corresponde aos fatos pode ser encontrada na políticatrabalhista da segunda presidência de Vargas, entre 1951 e seu suicídio,em agosto de 1954. Durante a campanha de 1950 e após sua eleição,Vargas havia criticado com vigor a perversão do ‘sistema CLT’ naadministração de Dutra. Seus discursos frequentemente expressavam

simpatia e compreensão para com os problemas enfrentados pelostrabalhadores e sindicalistas. Ao mesmo tempo, entretanto, Vargasnomeou consecutivamente dois reacionários para encabeçar o Ministériodo Trabalho, Indústria e Comércio. O primeiro, de janeiro a setembro de1951, foi Danton Coelho, líder do PTB, que era seu aliado próximo masnão possuía ligações com a classe trabalhadora. O segundo foi SegadasVianna (entre setembro de 1951 e junho de 1953), que tinha experiênciana área mas mantinha um posicionamento político repressivo econservador sobre as questões trabalhistas.”248 

Pois, como continua French, de fato, é somente depois da grande greve de massas de

São Paulo em 1953 (a greve dos 300 mil) que dobrou o empresariado paulista e teve oapoio de Jânio Quadros (recentemente eleito Prefeito, com importante base no

operariado), que Vargas busca mudar o estilo de tratar a questão trabalhista, nomeando

o jovem amigo João Goulart para a pasta do Trabalho. Conclui o autor:

“A disposição do governo Vargas em tolerar por tanto tempo ministrosque praticavam esta política trabalhista lastimável [refere-se àcontinuidade do tratamento das greves como caso de polícia] exige queaprimoremos nossos julgamentos sobre o próprio Vargas, sobre otrabalhismo e o populismo. Fatos como este demonstram, no mínimo,que era baixa a sensibilidade aos interesses dos trabalhadores e

sindicalistas no que diz respeito às prioridades políticas de GetúlioVargas, ao menos quando ele retornou ao poder. Também sugerefortemente que os historiadores devem ser cautelosos ao tratar Vargascomo se ele realmente fosse um reformador social coerente e consistente.Tal ingenuidade poderia somente levar à falsa conclusão de que os

 populistas como Vargas eram “a favor dos trabalhadores”, de forma ativae intencional, em vez de serem forçados a atuar em um estilo favorável aestes em certas conjunturas, devido a uma combinação de auto-interessee pressão vinda de baixo.”249 

É certamente em A invenção do trabalhismo, de Ângela de Castro Gomes, 250 um

marco em todo esse debate, que muitos autores têm buscado inspiração para a crítica às proposições de Weffort sobre o populismo no Brasil.251 Como já mencionamos, para

248 FRENCH, John.  Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. SãoPaulo: Perseu Abramo, 2001, p.47-48.249  Idem, ibidem, p.50.250 GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3ª Ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.251  Entretanto, a autora só apresentou uma rejeição explicita do conceito de populismo em artigo re-

 publicado em 2001. GOMES, “O populismo e as ciências sociais no Brasil....”, op. cit.

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essa autora, durante o Estado Novo teria havido um “pacto trabalhista” entre a classe

trabalhadora e o Estado, numa situação em que a classe trabalhadora é apresentada

como que fazendo uma “escolha num campo de possibilidades”. Em vez de Thompson,

a verdade é que a última proposição é inspirada em outra referência teórica: a proposta

de Adam Przeworski para o estudo da social-democracia europeia. Para este cientista político polonês, os trabalhadores europeus tiveram que decidir entre “participar ou não

do jogo eleitoral”, tendo optado pela alternativa reformista da social-democracia em

detrimento das posições revolucionárias dos comunistas.252  Seguindo raciocínio

semelhante, para autora de A invenção do trabalhismo a partir de 1942 teria se firmado

um pacto entre esses “atores desiguais”, o Estado (elites políticas) e a classe

trabalhadora, contexto em que foi inventada a tradição trabalhista no Brasil.

Como pertinentemente problematizou Virgínia Fontes, no afã de valorizar

aquela experiência histórica dos trabalhadores brasileiros, propostas como essa deÂngela de Castro Gomes isentam-se de discutir os limites da mesma.

“O louvável intuito redunda, entretanto, em outra dificuldade, aovalorizar positivamente o que antes era criticado como “passividade”,agora traduzia numa espécie de “consciência possível” e, portanto,desejável, dos trabalhadores brasileiros, expressa no trabalhismo.”253 

Além do mais, a própria ideia de pacto parece esta sujeita a outras restrições, como a

feita por Marcelo Badaró Mattos:

“A interpretação tradicional para esse processo de aproximação doEstado em relação aos trabalhadores defende a ideia de que ocorrera alium pacto, em que os últimos abriam mão da autonomia e combatividadede seus sindicatos, em troca dos benefícios materiais concedidos pelalegislação social. Com base na análise das várias fases do primeiroGoverno Vargas (...) acreditamos ser necessário negar essa interpretação.Em primeiro lugar porque a legislação social já estava, em sua maior

 parte, elaborada entre 1930 e 1935 e os trabalhadores organizados e suaslideranças combativas continuaram a resistir à ideia do sindicato tutelado

 pelo Estado. quando, na conjuntura da constituinte, muitas organizaçõesautônomas foram buscar o enquadramento no modelo do sindical oficial,

252

  Cf. PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e social-democracia. São Paulo: Companhia das Letras,1989. Anote-se que tal hipótese baseia-se numa mistificação histórica, afinal todas as alas da social-democracia histórica bateram-se pela democratização do sistema político através das lutas pelo sufrágiouniversal entre o fim do século XIX e início do XX. Não foi assim uma “escolha estratégica” dos partidosoperários frente a um sistema político já democratizado, como demonstrou Hobsbawm em seu famosocapítulo “A política da democracia.” da sua Era dos Impérios. Cf. HOBSBAWM,  A Era dos Impérios,op. cit., p.125-161. Além do mais, o cientista político polonês incorre em uma simplificação grosseira dascorrentes operárias, negligenciando o principal debate que levou à cisão da Internacional Socialista, aGuerra Mundial.253 FONTES, Virgínia. “Que hegemonia Peripécias de um conceito no Brasil.” Reflexões im-pertinentes.História e capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p.211.

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isso não significou paralisia; ao contrário, os primeiros meses de 1935caracterizam-se por uma vigorosa mobilização com grande número demovimentos grevistas. Foi preciso que, a partir de 1935, as liderançascombativas fossem aniquiladas pela violenta repressão, para que oconformismo dos pelegos se instalasse.”254 

 Não obstante seja necessário, como o fazem Fontes e Mattos, reconhecer os méritos de

Ângela de Castro Gomes na renovação da historiografia brasileira, é necessário também

reconhecer as limitações de suas proposições. Especialmente depois que, ao lado de

outros historiadores revisionistas  passou a advogar a substituição da categoria

 populismo pela de trabalhismo. Tal proposição recebeu censuras entre os estudiosos da

classe trabalhadora, por assumir o risco de “substituir um estigma pela apologia”. 255 

Por fim, é preciso assinalar que é só no artigo já citado, “O populismo e as ciências

sociais no Brasil”, originalmente publicado na revista Tempo, da UFF,256  e que

 posteriormente compõe a coletânea O populismo e sua história, de 2001, que a

historiadora de forma evidente propõe o abandono do conceito de populismo. Mais

 precisamente no pós-escrito que aparece no livro, pois no artigo original essa posição

está apenas implícita (como também só era implícita essa posição em  A invenção do

trabalhismo), já que mesmo em trabalhos da autora dos anos 1990 era possível

encontrar o criticado conceito, em chave weffortiana.257 

Integrando esse campo revisionista está a proposta de Jorge Ferreira, cujos

trabalhos se notabilizam em reabilitação histórica dos acusados de populismo, Vargas,

Jango, Brizola etc., tornados (agora) como “autênticos líderes populares”. De acordo

com Ferreira, a opção pelo “trabalhismo” (que o mesmo define como uma “tradição”

que congrega um conjunto de estruturas jurídicas, assistenciais, sindicais e partidárias,

além de líderes carismáticos com “competência” para expressar as demandas de suas

 bases), em face das outras correntes da esquerda (anarquistas, socialistas e comunistas),

foi uma escolha consciente e autêntica dos trabalhadores brasileiros.

254 MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão Popular,

2009, p.72-73.255 FORTES, Alexandre.  Nós do quarto distrito. A classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas.Tese de doutorado em História. Campinas: Unicamp, 2001, p.438.256 GOMES, Ângela de Castro. “O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória deum conceito.” Tempo, Rio de Janeiro, vol.1, n.2, p.31-58, 1996.257 “A ‘manipulação populista’ não é, de maneira simplista, uma estratégia ‘urdida por político espertos

 para enganar o povo ingênuo’. É bem mais complexa, pois dotada de um ambigüidade intrínseca: é tantouma forma de controle sobre as massas, como uma forma de atendimento de suas reais demandas.”GOMES, Ângela de Castro. “A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o públicoe o privado.” In. SHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil. vol.4. Contrastes daintimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.546.

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Em um de seus livros sobre a Era Vargas,258 por exemplo, Ferreira atribuiu a

uma série de cartas de populares endereçadas a Getúlio uma “consciência de classe”

trabalhista. O impressionismo com que trata estas fontes evidencia-se pela não

 problematização dos adjetivos elogiosos com os quais os missivistas se referiam a

Vargas, tomando-os como exemplo de uma afinidade estabelecida entre o ditador e os“trabalhadores do Brasil”; como se as pessoas que escreveram para o ditador pudessem

ter tido a “opção” de criticá-lo. Além do mais, o autor não responde a uma questão

óbvia: o que fazer com os outros milhares de trabalhadores que não  escreveram

nenhuma carta ao “Pai dos Pobres”? Por que os que escreveram ao Presidente são mais

representativos da classe e de sua consciência política que os sindicalistas da esquerda

aprisionados nas masmorras da ditadura do Estado Novo?

Outra questão intrigante diz respeito ao “sucesso” do trabalhismo face às outras

correntes da esquerda, como se tais opções político-ideológicas estivessemhistoricamente equidistantes; como se os trabalhadores tivesse escolhido num

“supermercado de ideologias políticas” aquela que apresentava os “melhores

 benefícios”, optando “racionalmente” pelo trabalhismo. Anote-se que esse é um vício

comum a diversos pesquisadores que, no afã de negar as determinações sociais do

 processo histórico, como se falar em “determinação” fosse sinônimo de

“determinismo”, e em razão de uma suposta valorização dos atores sociais como

“sujeitos”, acabam por interditar qualquer postura crítica do analista social. É como se a

legitimidade de certas opções fosse dada simplesmente por si mesma. Ora, não é cabível

afirmar que a opção pelo comunismo estivesse na mesma “distância” para os

trabalhadores do que aquelas pelo conservadorismo político católico, o fascismo ou

mesmo pela apatia.

 No livro já mencionado O populismo e sua história, organizado por Ferreira,

esse, Ângela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis lançaram forte ofensiva na

historiografia brasileira pelo abandono daquele conceito canônico. Sem exagero, pode-

se dizer que tal obra coletiva se tornou um marco incontornável neste debate. Todavia,

existem algumas nuances entre as proposições tanto destes autores, quanto de outros

que também participam do livro.259 Em sua própria contribuição, por exemplo, Ferreira

desloca-se das ponderações feitas por Ângela de Castro Gomes, pois agora em vez do

258 FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1997.259  Os outros são: Eliana G. da Fonte Pessanha, Fernando Teixeira da Silva, Hélio da Costa, LucíliaAlmeida Neves Delgado, Maria Helena Rolim Capelato e Regina Lúcia M. Morel.

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O fulcro de sua abordagem está calcado no (confuso) conceito de “tradição

nacional-estatista”, que vem desenvolvendo há alguns anos, e que visa oferecer como

alternativa heurística à noção de populismo. De acordo com o autor, no interior desta

tradição, inscrita numa proposta de modernidade não-liberal encontrada em diversas

realidades nacionais e períodos históricos, o trabalhismo  inventado no Estado Novoseria um dos momentos históricos de sua afirmação. Encarnada por Vargas e seus

herdeiros políticos ligadas ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), seria também uma

criação ativa da classe trabalhadora que optou por uma aliança com o Estado para criar

limites à ganância de seus patrões. No início dos anos 1960, tal tradição encontraria sua

formulação mais à esquerda, com o surgimento inclusive de uma ala nacional-

revolucionária (representada naquela época particularmente por Leonel Brizola).

Especialmente ao longo do governo Goulart, quando o movimento pelas “reformas de

 base” impulsionado pelos trabalhistas, e que atraiu comunistas e socialistas, atingiu seuauge. Todavia, após o golpe de 1964, com a derrota de todo esse movimento, quando

essa tradição teria ameaçado desaparecer, numa espécie de acerto de contas, a extrema-

esquerda acadêmica – localizada especialmente na USP – junto com a direita liberal

agora no poder teriam se encarregado de, numa aliança tácita, liquidar o trabalhismo,

desqualificado-o de forma pejorativa através do termo  populismo. Todavia, segundo o

autor, a tradição nacional-estatista acabaria renascendo em chave autoritária ao longo da

 própria ditadura especialmente durante o governo do general Ernesto Geisel (1974-

1979), com a grande expansão do setor estatal da economia.264  Conclui o raciocínio

ironizando o fato de um célebre formulador do conceito, Weffort, outrora um intelectual

socialista do Partido dos Trabalhadores (PT), ter assumido o Ministério da Cultura do

governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), materializando assim a

síntese da aliança entre a intelectualidade elitista da USP com o projeto liberal, cujo

 propósito sempre foi a destruição do legado da “Era Vargas”.

 Na verdade, tal argumentação é de natureza eminentemente teleológica, como se

estivessem dados desde os anos sessenta os elementos que explicariam a “evolução”

 política liberal de antigos quadros acadêmicos da esquerda brasileira, como Francisco

Weffort. Cabe ainda pontuar a parcialidade deste tipo de “crítica”, posto que tal

“evolução política” não pôde ser verificada no já falecido Otávio Ianni, por exemplo,

cuja retidão e convicções socialistas contrastam com o que certamente é uma grande

264 Ver nossas considerações no primeiro capítulo desta tese.

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tradição da intelectualidade brasileira que é o de se abrigar à sombra do poder. Nesse

 passo, em vez de explicar as origens do conceito, se acaba por criar uma verdadeira

mistificação, até porque o argumento carece de fundamento factual, pois o populismo

como conceito já circulava na intelectualidade brasileira antes de 1964, sendo na

verdade reformulado após essa data pelos cientistas sociais da USP. A propósito, nestareformulação, não há dúvida de que a problemática do capitalismo dependente – que

naquele mesmo contexto emergiu como grande área de investigação para uma

intelectualidade marxistizante latino-americana, muito além das fronteiras da USP –, foi

central, ponto, aliás, abandonado na reflexão de autores como Daniel Aarão Reis, como

 já vimos no capítulo anterior.

É aqui que se pode perceber de uma forma algo mais profunda o sentido de

certas críticas ao conceito de populismo, quando aparecem, em meio às declarações de

que “somos todos sujeitos”, a noção de “sindicalismo de cúpula”, de contrabando. Emalguns casos emblemáticos, reforça-se aquela imagem tradicional do sindicalismo no

 pré-golpe de 1964 “ativo apenas nos setores públicos”, sem “trabalho político nas

 bases” etc, tal como figura na ortodoxia da teoria do populismo. Um exemplo é

ilustrativo. Tratando das greves políticas durante o governo Goulart, Daniel Aarão Reis,

afirma: “Apesar de decretadas como gerais, quase sempre não passavam de parciais,

sendo que, no mais das vezes, seus principais contingentes encontravam-se nas

autarquias ou nos serviços públicos.”265 Concluindo tal raciocínio, o autor “esclarece”

em nota que “a pesquisa”, segundo ele, desde os anos sessenta até o presente, teria

enfatizado o “caráter limitado política e geograficamente” destas greves gerais. Tal

 posição denota um profundo desconhecimento da historiografia do trabalho nos últimos

vinte anos, e não por acaso que o crítico cite sintomaticamente um trabalho de   Leôncio

Martins Rodrigues, Conflito industrial e sindicalismo no Brasil, 266 como vimos, nada

menos que um dos elaboradores da própria noção (mais tradicional) de “sindicalismo

 populista”. Como forma de ilustrar essa afinidade entre a abordagem tradicional sobre o

sindicalismo populista e a “crítica” de Daniel Aarão Reis, vale transcrever como o

 próprio Weffort caracterizou de forma idêntica as tais greves políticas durante o

governo Goulart:

“As greves políticas do período Goulart são talvez o ponto máximo nodesenvolvimento do sindicalismo populista. Conforme um estudo

265 REIS, “O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita” op. cit., p.336-337.266  Idem, nota 10, p.337. RODRIGUES, Conflito industrial e sindicalismo no Brasil, op. cit.

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É que a direita neoliberal no poder na América Latina nos anos 1990 – em alguns casos

desde muito antes, como no Chile de Pinochet – classificou como inimigos a serem

combatidos: 1) as empresas estatais (que deveriam ser privatizadas), 2) as políticas

 públicas universais (de saúde, educação etc., que deveriam também serem entregues à

lógica do mercado) e 3) os direitos sociais (chamados de “custo” e por nossas praias de“custo Brasil”). Em suma, todas construções histórico-sociais identificadas com o

 período chamado populista. Agora que o inimigo histórico do capitalismo (o

socialismo) já havia (aparentemente) batido em retirada em 1989-1991, aos neoliberais

restava combater os restos deste “populismo”.

O curioso é que “populismo” foi termo utilizado por alguns para caracterizar

Fernando Collor no Brasil, e Fujimori no Peru, implementadores do ajuste neoliberal.

Mas com o desgaste deste modelo no final dos anos noventa e a emergência na década

seguinte de uma série de governos identificados com a esquerda política e com astradições nacionalistas, seriam estes próprios governos tachados agora também de

“populistas” pela mídia e todo o cortejo da direita empedernida.

 No âmbito propriamente acadêmico, um teórico do conceito de populismo, o

argentino radicado na Inglaterra, Ernesto Laclau, que desde os anos setenta já vinha

 produzindo uma conceituação própria,270  reacendeu o debate teórico. Publicado em

2005, seu livro  La razón populista271 estabelece que, em vez de transitório (ou mesmo

aberrante, como figura em parte considerável da produção das ciências sociais latino-

americanas), o populismo está sempre presente na estruturação da vida política. Em

suma, toda forma de política é populista.

“Una consecuencia de nuestra intervención es que el referente del‘populismo’ se vuelve borroso, pues muchos fenómenos quetradicionalmente no fueron considerados como populistas, en nuestroanálisis caen dentro de esta calificación. Aquí reside una crítica potenciala nuestro enfoque, a la cual sólo podemos responder que el referente del‘populismo’ siempre ha sido ambiguo y vago en el análisis social. Bastacon revisar brevemente la literatura sobre populismo – a la que hacemosreferencia en el capítulo 1 – para ver que está plagada de referencias a la

vacuidad del concepto y a la imprecisión de sus límites. Nuestro intentono ha sido encontrar el verdadero referente del populismo, sino hacer loopuesto: mostrar que el populismo no tiene ninguna unidad referencial

 porque no está atribuido a un fenómeno delimitable, sino a una lógica

270  O mais conhecido texto do autor publicado no Brasil é LACLAU, Ernesto. “Para uma teoria do populismo.” In. Política e ideologia na teoria marxista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.149-204.271 LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005.

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outro lado, inspirados nas mesmas categorias, outros autores tem buscado justamente

uma alternativa ao que veem ser um inevitável abandono, como Alberto Aggio que

 propõem o conceito gramsciano de revolução passiva em lugar do de populismo.277 

O advento do governo de Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, do Partido dos

Trabalhadores (PT), reacendeu o debate quando ele parecia que estava fadado aextinguir-se. Constituindo apreciação crítica pioneira, o ensaio de Francisco de Oliveira

“O Ornitorrinco”, embora rejeite a noção de passividade dos trabalhadores em relação a

Vargas (e também a associação que parte da sociologia latino-americana fez com o

fascismo), manteve a arquitetura da sua clássica argumentação presente em sua Crítica

à razão dualista que concebeu o populismo como a forma da revolução burguesa no

Brasil.278 Em debate provocado pelo ensaio, numa edição do programa Roda Viva da

TV Cultura de São Paulo, o filósofo Paulo Arantes interpelou Oliveira sobre a

 pertinência do conceito de populismo para analisar o que poderia ser o resultadodaquele tipo de experiência governamental do PT.

“Paulo Arantes: Chico, eu posso lhe fazer uma pergunta a respeito dasintuições do Ornitorrinco? Inclusive, é um prognóstico que você fala queestá fazendo, mas não está publicado ainda. Você descobriu que ofamoso populismo brasileiro foi caluniado pela sociologia de esquerda noBrasil e que o verdadeiro populismo vem por aí, está à nossa frente. Você

 poderia explicar?Francisco de Oliveira: É isso, eu acho que a sociologia uspiana... houveum fenômeno interessante. No fim da [Segunda] Guerra, todas as forçasanti-fascistas uniram-se no mundo, e o populismo foi assimilado aofascismo pela direita internacional e, surpreendentemente, pela esquerda,em razão da luta anti-fascista. Assimilou-se o populismo ao fascismo, eeles não têm nada em comum; na verdade, o fascismo foi uma contra-revolução em todos os países em que ocorreu. O populismo não, o

 populismo foi uma forma autoritária de incorporar a classe operária, anova classe. Então, eu acho que sociologicamente comeu-se gato porlebre e isso criou preconceitos, não para se louvar, e de novo dizer que[Getúlio] Vargas é o pai dos pobres. Portanto, desse ângulo, não temnada que ver. Agora, aquela forma foi, portanto, uma forma de incorporarà agenda política e à cena política uma nova classe social, incorporarautoritariamente, por cima, a clássica via passiva brasileira e latino-

americana em geral, que foi mais do que brasileira e latino-americana emgeral. Quer dizer, a via passiva, você teve pelo menos, de forma forte, na

277 AGGIO, Alberto. “A emergência das massas na política latino-americana e a teoria do populismo.” In.AGGIO, Alberto & LAHUERTA, Milton (org.). Pensar o século XX . Problemas políticos e histórianacional na América Latina. São Paulo: Ed. UNESP, 2003, p.137-164.278 Não por acaso, a edição em forma de livro de “O Ornitorrinco” fez-se em edição em conjunto com“Crítica à razão dualista”. Quanto ao tema da passividade, Oliveira incorpora a crítica que a novahistoriografia do trabalho fez a essa noção. OLIVEIRA, Crítica à razão dualista. O Ornitorrinco, op. cit.,

 p.145.

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Alemanha, na Itália e no Japão, exatamente os três países... Hoje, o quevocê tem? Como não dá para incorporar, o sistema não incorpora mais ooperariado; na verdade, a regra neoliberal desincorpora, desregula e, nostermos do [sociólogo francês Robert] Castel, ela desfilia, ou seja, vocêestá à frente a que situação? Exatamente às identidades de classe; arelação entre classes, interesses e representação quebrou-se. Aí você está

com 60% da força de trabalho na informalidade, você está com o campoaberto para o populismo. O populismo de novo tipo e, ao meu ver, destavez realmente predatório. Isso, a gente olha a América Latina e, por todoo canto, está aparecendo. Qual é o problema do [presidente venezuelanoHugo] Chávez, por exemplo, sem apelidá-lo disso ou daquilo outro?”279 

O conceito de populismo também foi conjurado por André Singer, cientista

 político da USP e ligado ao PT, em debate sobre a caracterização do governo de Lula e

o fenômeno do “lulismo”.280 Para Singer, o fenômeno emerge entre o primeiro (2003-

2006) e segundo (2007-2010) mandatos de Lula, e poderia ser apreendido a partir de

uma estrutura semelhante à aquilo que Marx definiu como “bonapartismo”. 281 A síntese

das ideias de Singer, apresentadas no trecho a seguir, busca explicitamente mostrar a

atualidade do conceito de populismo:

“Árbitro acima das classes, o lulismo não precisa afirmar que o povoalcançou o poder ou que “os dominados comandam a política”, como naformulação que [Francisco de] Oliveira foi buscar na África do Sul pós-apartheid . Ao incorporar tanto pontos de vista conservadores,

 principalmente o de que a conquista da igualdade não requer ummovimento de classe auto-organizado que rompa a ordem capitalista,como progressistas, a saber, o de que um Estado fortalecido tem o deverde proteger os mais pobres, independentemente do desejo do capital, eleachou em símbolos dos anos de 1950 a gramática necessária. A noçãoantiga de que o conflito entre um Estado popular e elites antipovo sesobrepunha a todos os outros poderá cair como uma luva para o próximo

 período. Agora enunciada por um nordestino saído das entranhas dosubproletariado, ganha uma legitimidade que talvez não tenha tido na

 boca de estancieiros gaúchos. Por isso, se a hipótese do realinhamento se

279  Transcrição do debate disponível emhttp://www.rodaviva.fapesp.br/materia/697/entrevistados/francisco_de_oliveira_2003.htm (acessado em 3de fevereiro de 2013)280  SINGER, André. “Raízes sociais e ideológicas do lulismo.”  Novos Estudos CEBRAP, p.83-102,

novembro de 2009, grifo nosso.281 Como tem demonstrado o historiador Felipe Demier – outro que vem recuperando as potencialidadesheurísticas do conceito de populismo –, as reflexões marxistas sobre o bonapartismo estiveram presentesna elaboração do conceito de populismo em autores uspianos como Weffort e Ianni.   DEMIER, Felipe.

 Do movimento operário para a Universidade. Leon Trotsky e os estudos sobre o populismo brasileiro.Dissertação de Mestrado em História. Niterói, PPGH-UFF, 2008. ______ “Bonapartismo e cesarismo nosestudos sobre o período 1930-1964 da república brasileira: alguns apontamentos introdutórios.” Outubro,São Paulo, n.19, p.105-154, 2011. _____. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomiarelativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operário. Tese de doutorado em História.Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), Niterói,2012.

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confirmar, o debate sobre o populismo ressurgirá das camadas pré-salanteriores a 1964, em que parecia destinado a dormir para todo osempre.”282 

Do campo da Sociologia do Trabalho, em outra seminal reflexão sobre o

fenômeno do “lulismo”, Ruy Braga também recuperou a história da classe trabalhadora brasileira, dialogando criticamente com o conceito.283  Buscando discutir a relação

estabelecida entre o proletariado precarizado e a hegemonia lulista, nos termos

 propostos por Francisco de Oliveira (isto é, de uma “hegemonia às avessas”),284 e em

diálogo crítico tanto com as proposições de Singer, quanto de Jessé Souza, Ruy Braga

lança a tese de que o lulismo é uma superação dialética ( Aufhebung: nega; conserva;

eleva a um patamar superior) do populismo.  285 Explicitamente reabilitando a categoria

na chave weffortiana,286  o sociólogo paulista entende o próprio fenômeno como um

“modo de regulação populista” que, no após-Segunda Guerra operou a superação do“taylorismo primitivo” para o estabelecimento do “fordismo periférico”.287 

Constituindo-se como uma hegemonia precária, o modo de regulação populista

encontraria seus limites históricos justamente a partir dos desdobramentos internos do

fordismo periférico, que após 1964 continuaria se expandindo através do “modo de

regulação autoritário”.288 

Como se pode ver, seja para defender governos, atacá-los (como faz a mídia) ou

discutir um fenômeno político de envergadura no atual contexto latino-americano, o

conceito de populismo parece estar bem vivo. E ainda que possa ser condenado

retoricamente à lata do lixo da história, parece disposto a renascer como Fênix. Essa

“persistência do populismo” talvez sirva para jogar uma luz num dos argumentos

282 SINGER, “Raízes sociais...”, op. cit., p.102.283 BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia. São Paulo: Boitempo, 2012.284 Trata-se da tese da “hegemonia às avessas”, que Oliveira apresentou no artigo OLIVEIRA, Franciscode. “O momento Lênin.” Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.75, p.23-47, julho de 2006. O debate emtorno a esse artigo deu lugar à publicação de OLIVEIRA, Francisco; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele(orgs.).  Hegemonia às avessas. Economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo:Boitempo, 2010.285 Para o sociólogo, a hegemonia forma-se a partir de dois elementos: de um consentimento passivo do

 precariado, seduzido por políticas redistributivas e os ganhos salariais advindos do crescimentoeconômico; o consentimento ativo  da maioria das lideranças sindicais, que ascenderam à burocraciaestatal e ao rentável controle dos fundos de pensão. BRAGA, A política do precariado, op. cit., p.30.286  Pensada agora nos termos da chamada “escola francesa da regulação”, e incorporando a crítica

 proveniente da nova historiografia do trabalho.287  Idem, ibidem, p.20-23. De acordo com o autor, o “taylorismo primitivo” se liga às iniciativas a-sistemáticas de empresários como Roberto Simonsen, já nos anos 1920, de racionalização do processo detrabalho, tendo o modo de regulação populista promovido a implantação de uma racionalização mais

 planejada/dependente, o “fordismo periférico”.288  Idem, ibidem, p.41-88.

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utilizados por Gomes, Ferreira e Aarão Reis para rejeitar o conceito, que parece ser

 justamente o fato deste ter surgido do debate público antes de ganhar contornos

científicos na produção universitária. Esta nos parece ser uma crítica de corte

 positivista, como se os conceitos com capacidade heurística fossem apenas aqueles

criados pelo cientista social em seu gabinete. Teríamos que supor, seguindo essa lógica,que a própria crítica ao populismo não é ela própria, permeada por concepções e

 projetos políticos.

Ao contrário desta suposta dinâmica de elaboração conceitual que pudesse ser

feita de forma apartada da vida social, é preciso lembrar que uma série quase infinita de

conceitos das ciências humanas não nasceu de dentro dos muros universitários, mas sim

dos conflitos históricos concretos e do debate público.289  Além do mais, como já

dissemos, seria preciso considerar que a rejeição ao conceito não fosse ela própria uma

 postura intelectual permeada por proposições políticas e ideológicas, e sim um meroacerto de contas entre o “senso comum” e a “ciência”. Isto não deve ser entendido como

se estivéssemos propondo que os cientistas sociais (e os historiadores entre eles) devam

abrir mão do dever de criticar as noções oriundas do meio social, de modo a produzir

ferramentas conceituais que nos ajudem a entender o passado e o que veio dele. Afinal,

como nos ensina Marx, “toda a ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a

essência das coisas coincidissem imediatamente”.290 

Além do mais, substituir “populismo” por “trabalhismo”, como propõem os

autores revisionistas, já se mostrou insuficiente, pois como também lembra John

French, no importante Estado industrial de São Paulo, no período entre 1945-1964,

inexistiu algo similar à tal ideologia trabalhista.291 Entre os paulistas o PTB nunca teve

o peso que possuiu na capital federal, ou no Rio Grande do Sul, o mesmo podendo ser

dito dos outros partidos trabalhistas menores. Por outro lado, proposições como as de

289 Podemos pensar na noção contemporânea de “revolução” como ruptura + mudança social profunda,que remete diretamente à Revolução de 1789. Göran Therborn, em seu comentário sobre Revolutions andWorld Politics  de Fred Halliday, anota a mudança: “Até a década de 1790, o termo “revolução”significava normalmente um movimento para trás, ou uma rotação numa direção circular ou cíclica. (...)

De maneira mais frouxa, por volta de meados do século XVIII a palavra podia, como em Voltaire,designar mudanças no sentido geral. O que o termo certamente não denotava era uma ruptura com osistema político tradicional, abrindo um portão para um novo futuro. As palavras de Tomas Paine noinício de 1791 assinalaram uma virada: ‘É um tempo de Revoluções, em que tudo pode ser buscado.’”THERBORN, Göran. “Revoluções reconsideradas.” In. SADER, Emir. Contra corrente: o melhor da

 New Left Review  em 2000. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.281-282. Ver também KOSELLECK,Reinhart. “Critérios históricos do conceito moderno de revolução.” In. Futuro Passado. Contribuição àsemântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed.PUC-RJ, 2006, p.61-77.290  MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro III. O processo global de produçãocapitalista. São Paulo: Abril Cultural, 1983, capítulo XLVIII, p.271.291 Entrevista do autor publicada em FORTES, Na luta por direitos, op. cit., p.189-190.

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Laclau e Singer, ainda que busquem a atualidade da noção, revelam os problemas de sua

 positivação conceitual, pois esvaziam os aspectos críticos que acompanharam a

emergência do conceito no debate acadêmico latino-americano. Nesse sentido, não

ajudam em nossa compreensão histórica, servindo, tal como o revisionismo, para

mistificá-lo.

2.4 A greve geral e o debate sobre o populismo

Temos então o desafio de estudar nesta tese a ação do movimento sindical

organizado, tendo à sua frente lideranças sindicais comunistas e trabalhistas de

esquerda, que possuíam fácil trânsito nas altas esferas governamentais no período do

governo Goulart. Por sua representatividade, conformaram uma aliança de classes,

como notam tanto os partidários quanto os críticos do conceito de populismo. Por sua

vez, ainda que a relação tenha sido tensa em muitos momentos (como em meados de

1963, quando o CGT praticamente rompe com o governo por causa do Plano Trienal),

 já assinalamos que Jango teve nos sindicatos uma de suas principais bases de apoio

social. Era o que críticos como Weffort denominaram de “intimidade palaciana” entre a

esquerda sindical e os políticos populistas. Assim, em face de nosso objeto constituir-se

uma greve geral para apoiar as manobras de Goulart, porque não atribuir a esse

sindicalismo o adjetivo de “populista”?

Mesmo nas condições adversas nas quais era vetada pela lei a possibilidade de

diversas categorias profissionais dos trabalhadores se unificarem numa representação

nacional, estes realizaram greves massivas em diversas cidades do Brasil sob a

República de 1946. A história do período 1945-1964 parece confirmar o critério

metodológico enunciado por Antonio Gramsci, sobre a dialética entre tendências e

contra-tendências que operaram no processo de auto-fazer-se dos grupos sociais

subalternos. Gramsci adverte que ao mesmo tempo em que se verifica uma tendência à

unificação, a história destes grupos é sempre “desagregada e episódica”.292  Neste

sentido, mesmo que tenha sido o desejo daqueles que elaboraram a legislação sindical

corporativista manter a classe trabalhadora dividida em suas categorias profissionais, de

292 “A história dos grupos sociais subalternos é necessariamente desagregada e episódica. É indubitávelque, na atividade histórica destes grupos, existe tendência à unificação, ainda que em termos provisórios,mas esta tendência é continuamente rompida pela iniciativa dos grupos dominantes e, portanto, só podeser demonstrada com o ciclo histórico encerrado, se este se encerra com sucesso. Os grupos subalternossofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e insurgem: só a vitória“permanente” rompe, e não imediatamente, a subordinação.” GRAMSCI, Antonio. Caderno 25, §  2,Cadernos do cárcere. Volume 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.135.

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Capítulo 3 – A natureza da crise dos anos

sessenta

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A cena histórica dos anos 1960 foi marcada pelo cruzamento de uma série de

crises de ordem e temporalidades distintas, desde o plano econômico até a própria

estrutura do regime político liberal instituído em 1945-46. Em meados da década de

1960 esse mesmo regime (e não só o governo Goulart) foi golpeado e em seu lugar

instituiu-se a ditadura militar, em si mesma, um regime de crise. O propósito destecapítulo é o de discutir essas dimensões da crise dos anos sessenta a partir da literatura

 já consagrada, onde será possível empreender algumas polêmicas com certas

interpretações que ganharam força nos últimos anos e que aqui são tratadas a partir do

conceito de revisionismo .

Inicialmente, em razão da hodierna vulgarização da noção de crise, pois, seu uso

se tornou corriqueiro e muitas vezes impreciso. Nesse sentido, sentimos a necessidade

de apresentar nossa compreensão da cena histórica do início dos anos sessenta não para

chegar a uma conclusão óbvia, que se vivia numa crise, mas para tomar essa mesmacrise em sua dimensão profunda, como constituinte das determinações para as ações dos

sujeitos sociais, entendendo essas determinações como limites e pressões a partir dos

quais estes realizam suas escolhas. Deste modo, será possível discutir nos capítulos

subseqüentes o processo político-social envolto na primeira greve geral nacional

realizada pela classe trabalhadora brasileira, em princípios de julho de 1962.

Em razão da peculiaridade desta crise estar no fato de que ela condensa diversas

ordens de determinações (e diferentes crise), nossa exposição irá se debruçar sobre o

entendimento de como tais dimensões se relacionaram naquele contexto histórico-

concreto. Deste modo, a primeira parte deste capítulo discute tal questão em um nível

teórico mais geral. Em seguida, adentraremos as determinações do processo brasileiro

que conformam a cena histórica dentro da qual se desenvolveu a greve que é o objeto

desta tese. Assim, esse capítulo está dividido em duas partes, sendo a primeira de

natureza teórica, e a seguinte sobre a crise no Brasil no início dos anos sessenta.

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Parte 1 - Da crise: digressão teórica

Corriqueiramente ligado à noção decadência, o conceito de crise  tem sido

 preferido pela historiografia contemporânea em razão do primeiro possuir uma carga

simplificadora.296 Tal como a palavra crítica, o termo crise origina-se do grego Krisis,

ligando-se ao ato de separar, de romper, julgar, discernir, decidir, eleger etc., oriundo da

medicina de Hipócrates (460 a.C. – 370 a.C.), denotando aí um momento de virada, de

desdobramento de uma enfermidade, tanto para a melhora, quanto para piora do

 paciente.297 Em sua História da Guerra do Peloponeso, Tucídides (460 a.C. – 400 a.C)

foi provavelmente o primeiro a utilizar o termo crise  para análise de um episódio

histórico, relacionado ao momento decisivo antes da batalha entre a confederação

espartana e Atenas.298  No entanto, o termo ficaria basicamente confinado à acepção

médica ao longo do medievo ocidental, até que, pelo menos desde o século XVII, crise

 passasse a ser utilizada em relação a momentos específicos do processo político, como

na Guerra Civil inglesa. Transpunha-se, assim, da linguagem médica para a política em

um momento em que a própria reflexão filosófica passou a tratar o Estado (e a

sociedade) como um corpo, como no  Leviatã  de Thomas Hobbes (1588-1679). Como

esclarece Koselleck:

“Dada a concepção, então predominante, de Estado como um corpo, nãoera algo remoto aplicar a linguagem médica da crise ao domínio da

 política. Mas Rousseau foi o primeiro a aplicar publicamente o termo aogrande corpo político, ao ‘corps politique’.”299 

Além de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e outros iluministas franceses

como Denis Diderot (1713-1784), que usaram o termo para caracterizar os limites do

 Ancien Regime  no continente europeu, Koselleck assinala também de The Crisis de

Thomas Paine (1737-1809), série de panfletos escritos entre 1776-1782 sobre o

desenrolar dos acontecimentos da chamada “Revolução Americana”, onde também

conjura a palavra no mesmo sentido.300  Nota-se que a emergência desta aplicabilidade

296  LE GOFF, Jacques. “Decadência” (Verbete). In. Enciclopédia Einaudi. Volume 1. Memória –História. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984, p.424.297  ABBAGNANO, Nicola. “Crise” (Verbete). In.  Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes,2003, p.222.298  Cf. TUCÍDIDES.  História da Guerra do Peloponeso. 4ª edição. Brasília: Ed. UNB, Instituto dePesquisas de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001,especialmente as partes terceira e sétima.299  KOSELLECK, Crítica e crise, op. cit., p.229 (nota 124) e p.145. BRUNKHORST, Hauke. “Crise.”(Verbete). In. BOTTOMORE, Tom & OUTHWAITE, William (Eds.). Dicionário do Pensamento Socialdo Século XX . Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p.156-160.300 KOSELLECK, Crítica e crise, op. cit., p.229-230.

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da noção de crise ocorreu no contexto político das revoluções burguesas e das

elaborações teóricas que as acompanhariam, expressas na atitude conhecida como

Esclarecimento ( Aufklärung), que, grosso modo, consistia na liberdade de crítica  aos

dogmas do Antigo Regime. Nesse sentido, a noção de crise  se generaliza nos séculos

XVIII e XIX não só como maneira de descrever uma sociedade em que determinadasestruturas sociais chegaram ao seu limite, mas também como “aviso” de que outra

forma social deveria se impor (no caso, a sociedade burguesa). Há assim, a esta altura,

além de uma associação com a noção de crítica, também uma íntima relação entre as

noções de crise  e de revolução, ou ao menos entre crise  e mudança das estruturas

sociais.

 No século XIX, críticos da sociedade capitalista então em ascensão notariam a

recorrência de uma outra forma específica de crise, que periodicamente passava a

 perturbar o desenvolvimento econômico. Ao contrário do que até então ocorria nassociedades pré-capitalistas, onde as crises econômicas eram fundamentalmente de

subprodução  (muitas vezes em função de problemas naturais – tempestades, secas,

rigorosos invernos etc. – ou propriamente políticos – como as guerras), com o

desenvolvimento industrial do capitalismo, as crises econômicas se configurariam como

de superprodução de mercadorias.

Para estes críticos da sociedade capitalista, tais crises eram resultantes dos

movimentos internos que presidem o desenvolvimento econômico neste modo de

 produção. Em oposição evidente ao enunciado de Jean-Baptiste Say (1767-1832) – que

advogava a possibilidade de, em uma situação de funcionamento adequado das leis de

mercado, existir um equilíbrio “metafísico” entre produção e consumo –,301  os mais

importantes destes críticos, Karl Marx e Friedrich Engels, buscaram demonstrar que

estas crises eram parte da dinâmica interna daquele modo de produção. Já no seu livro

de juventude,  A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, Engels estabeleceu o

301 Segundo Marx, a ideia de um “equilíbrio metafísico entre vendedores e compradores”, ou seja, da“estupidez em torno da impossibilidade da superprodução”, na verdade foi originalmente proposta pelo

 britânico James Mill (1773-1836). Todavia, tal hipótese acabou por ficar conhecida como “Lei de Say”,em razão da popularização da mesma pelo economista francês. A “Lei de Say” seria largamentemajoritária no pensamento econômico e influenciou mesmo o mais destacado economista político, DavidRicardo (1772-1823), autor que Marx considerava como o ponto mais alto desta disciplina. Ver. MARX,Karl. Teorias da mais-valia. Vol.II. São Paulo: DIFEL, 1980, p.929 e  passim. ____. Elementos

 fundamentales para la crítica de la economia política  (Grundrisse) 1857-1858 . Vol.I, 15ª edição.México: Siglo XXI, 1987, p.377.

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vínculo entre a concorrência e tais perturbações,302  algo que posteriormente ganharia

contornos mais precisos na lavra de Marx.

Embora tenha sido o autor que esclareceu de forma mais precisa esta dinâmica

cíclica da economia capitalista,  Marx não foi o primeiro a perceber que o próprio

sistema engendrava as crises de superprodução. Em seu clássico livro sobre a formaçãoda classe trabalhadora inglesa, E. P. Thompson localizou em uma resolução dos tecelões

de Leicester de 1817 algo que caracterizou como uma espécie de “teoria sobre as crises

capitalistas baseada no subconsumo”.303 Isso sem falar de economistas burgueses como

Thomas Robert Malthus (1766-1834) em Princípios de economia política  (1820), e,

 pouco antes dele, românticos como Jean Charles de Sismondi (1773-1842) com seu

livro Novos princípios de economia política (1819), que buscariam estabelecer as razões

da recorrência das crises, criticando a “Lei de Say”. Não obstante esses últimos casos no

interior do pensamento burguês, a maior parte do economistas políticos aderiu à proposição de Say, passando a apontar como causas das perturbações econômicas

questões exteriores à própria dinâmica interna da lógica produtiva (guerras, problemas

climáticos, “subversão da ralé” etc.), chegando no último quartel do século XIX, a

 produzir opiniões extravagantes, como a de atribuir à existência de “manchas solares”

as crises periódicas, já no contexto da emergência da chamada economia neoclássica.304 

Em sua crítica da economia política sintetizada em sua obra O capital, Karl

Marx demonstrou, antes de tudo, o caráter necessário de tais crises, entendidas como

desdobramento de suas contradições imanentes, estando sua possibilidade de ocorrência

 presente na própria oposição interna da forma mercadoria, entre valor e valor de uso,

desdobrada no dinheiro (forma acabada do valor), que, como meio de pagamento,

inscreve essa potencialidade.305  É que, além de realizar a mediação entre a troca

mercantil, o dinheiro permite a interrupção desta mesma mediação, produzindo uma

302 No capítulo “A concorrência”. ENGELS, F.  A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. SãoPaulo: Boitempo, 2008, p.117-130.303 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol.II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987,

 p.31.304 De autoria do economista britânico W. S. Jevons (1835-1882), tal noção absurda buscou explicar osciclos agrícolas com base na incidência destas manchas solares  (sunspots). Cabe notar que, quando o

 pensamento econômico elaborava tal “hipótese” – contexto em que surge o chamado pensamentoneoclássico de que Jevons é um dos fundadores –, o capitalismo vivia sua primeira grande depressão(1873-1896). É apenas com a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (1936) de John MaynardKeynes (1883-1946) e os estudos de Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) que o pensamento econômico

 burguês passou a tentar explicar os ciclos econômicos como parte da natureza da economia capitalista.305  MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Nova Cultural, 1983,capítulos 1, 2 3.

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ruptura na metamorfose mercantil, o que implica na destruição de capital: falências,

desemprego etc.

Quando de seu exílio em Londres, Marx pôde observar o desenvolvimento da

crise de 1857, a primeira de caráter mundial na história do capitalismo, 306 lançando-se

na escrita do primeiro esboço de sua crítica da economia política, manuscrito publicado postumamente e que seus editores deram o nome de Grundrisse.307  Um conjunto de

oito cadernos, totalizando um milhar de páginas, onde, entre outras coisas, Marx

apresentou um primeiro roteiro da sua exposição, onde concebia a existência de seis

livros dos quais o último seria dedicado ao exame das crises. Como assinalou Roman

Rosdolsky, é possível afirmar que neste roteiro o tema ocuparia o papel de uma síntese

dialética de todo seu raciocínio.308  Como se sabe, tal roteiro seria posteriormente

abandonado, e quando publicou finalmente o primeiro volume de O capital, em 1867, o

tema da crise aparece incorporado ao movimento dialético de desdobramento dascategorias, ganhando maior concretude no livro III, publicado postumamente por

Engels, em 1894. O que é certo é que não existe nem mesmo um capítulo em sua obra

onde se possa ler uma teoria de Marx sobre as crises, muito embora a seção terceira do

livro III, que trata da tendência à queda da taxa de lucro, seja comumente referida como

tal. Em certo sentido, como ensina Jorge Grespan, do mesmo modo que também não

existe um capítulo onde se possa ler uma definição acabada do que seja o próprio capital

 – sendo necessário percorrer toda obra (os três livros) para se conhecer o capital como

uma rica totalidade de múltiplas determinações –, o mesmo se pode dizer do conceito de

crise, que, pressuposto ao longo da exposição, constitui-se dialeticamente no negativo

do capital.309 Vejamos.

Ao longo dos três livros que compõem sua Magnum opus, Marx expõe desde as

condições imanentes que, num plano mais abstrato, tornam possível a existência de

crises, até a concretude de sua efetividade, quando já incorpora a questão da

306 KRÄTKE, Michael R. The first world economic crisis: Marx as an economic journalist. In. MUSTO,

Marcello (Ed.). Karl Marx´s Grundrisse: foundations of the critique of political economy 150 years later .London/New York: Routledge’s, 2008, p.162-168.307 Com exceção de um pequeno texto publicado por Karl Kautsky em 1903 – a  Introdução à crítica daeconomia política – o manuscrito ficaria inédito até que em 1939/1941 fossem publicados na URSS como nome de Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Rohentwurt (1857-1858), mais conhecidocomo simplesmente Grundrisse. O texto foi só recentemente publicado no Brasil: MARX, Karl.Grundrisse. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed.UFRJ, 2011.308 ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Contraponto,2001, p.27-60.309 GRESPAN, Jorge. O negativo do capital. O conceito de crise na crítica de Marx à economia política.São Paulo: Hucitec; FAPESP, 1999.

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concorrência entre os capitalistas no livro III. Portanto, embora Marx não tenha nos

deixado um livro ou mesmo um capítulo de sua obra onde exista uma exposição

completa do conceito de crise, há uma constante reflexão sobre esta que acompanha a

autonomização categorial das formas sociais ao longo de O capital. Da mercadoria

desdobrando-se no dinheiro no início do livro I até os desdobramentos no capital portador de juros e no capital fictício no livro III de O capital  – suas formas mais

reificadas e fetichistas –, a crise constitui um dos momentos deste modo de produção.

Em síntese, sendo as próprias crises capitalistas o resultado do desdobramento de todas

as contradições deste sistema, no texto marxiano não há como ela não estar pressuposta

em todas as fases da exposição categorial de sua crítica.310 

 No movimento tautológico de valorização desmedida da forma acabada do valor

(dinheiro que se torna mais dinheiro), de tempos em tempos são produzidas essas

 perturbações: o volume da produção social não encontra possibilidade de realização,sendo interrompida a metamorfose mercantil (basicamente as operações D-M e M-D).

Isso decorre do fato de que, sendo o processo de acumulação capitalista composto pela

unidade contraditória entre as esferas da produção e da circulação de mercadorias, a

aceleração do processo produtivo nas fases de expansão da atividade econômica acaba

 por produzir uma autonomização relativa entre estas duas esferas, exacerbando essa

oposição como se fossem dois processos independentes.311 Tal contradição acaba por se

explicitar historicamente nas crises, que contraditoriamente restabelecem, de forma

violenta, a unidade entre esses dois processos. Daí a natureza cíclica da economia

capitalista, com fases de expansão da atividade produtiva seguidas de depressões.312 

Para entender como essa  possibilidade  de crise se impõe efetivamente como

necessidade, em primeiro lugar é preciso entender o sentido daquilo que Marx define

como a lei geral da acumulação capitalista, conforme está exposta na última seção do

livro I de O capital. Sendo dialética, tal lei é tão somente uma tendência que o

movimento tautológico de valorização do valor impõe substantivamente. Ligada à

dinâmica da reprodução social deste modo de produção, a acumulação capitalista é o

consumo produtivo de parte do mais-valor transformado em capital adicional, isto é,

310 GRESPAN, Jorge. A crise na crítica da economia política. Crítica Marxista, São Paulo, v.10, p.94-110, 2000.311 MARX, Teorias da mais valia, op. cit., p.929 e passim.312  “(...) crise é apenas a imposição violenta da unidade das fases do processo de produção, as quais setornam independentes uma da outra.”  Idem, ibidem, p.945. Ver também CARCANHOLO, Marcelo.Formas, conteúdo e causa: uma proposta de interpretação marxista do fenômeno crise.  Leituras deeconomia política, Campinas, n.5, p.15-31, 1997.

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novamente convertido em meios de produção e força de trabalho, capital constante e

capital variável.313 O desenvolvimento do modo de produção especificamente capitalista

é, deste modo, a repetição cíclica desta relação social cujos sujeitos são: os donos dos

meios de produção e os produtores direitos de mais valor (os trabalhadores). Tal

 processo de expansão das forças produtivas acaba por apresentar também umadisfuncionalidade, posto que tendencialmente leva ao aumento da composição orgânica

do capital, o que acaba por impor um crescimento relativamente menor do capital

variável em relação ao capital constante, provocando tanto a concentração e

centralização do capital, quanto a criação de uma superpopulação relativa, o exército

industrial de reserva.314 Deste modo, do próprio movimento interno do capital, que se

caracteriza por uma expansão desmedida de suas forças produtivas, impõe uma barreira 

ao consumo da produção e, consequentemente, ao seu próprio desenvolvimento.

Além disso, sendo o capital variável o único que efetivamente produz mais-valor, a taxa de lucro – que é sua forma de manifestação na circulação – tende a cair,

retraindo os investimentos produtivos e aumentando ainda mais o montante de

desempregados. Deste modo, conforme Marx discute no livro III d’O capital, da lei

geral da acumulação capitalista desdobra-se dialeticamente a tendência histórica à queda

da taxa de lucro,315 que, também dialeticamente (e não de forma determinista), opera em

face de fatores contra-atuantes que impedem que o capitalismo entre em colapso; e que

em momentos de crise servem para o capital recolocar as condições de um próximo

ciclo de expansão das suas forças produtivas.316 Deste modo, como define Marx, tais

313 No livro I, ao localizar como categoria central de sua crítica da economia política o mais-valor – oumais-valia, como aparece na tradução mais corriqueira – Marx identificou os dois investimentos básicosfeitos pelos proprietários dos meios de produção: capital constante  – maquinário, matérias primas,impostos etc.; e capital variável – salários. Este último recebe o adendo variável pelo fato de ser o únicocujo valor de uso possui o atributo de valorizar as mercadorias. Sendo o salário a forma fetichista com aqual o contrato jurídico se efetiva entre capital e trabalho no capitalismo, este se apresenta como o

 pagamento por toda a jornada do trabalho social, quando na verdade corresponde apenas o pagamento pelo preço da força de trabalho. MARX, O capital: crítica da economia política. Livro I, Seção VI, op.cit ., p.125-148.314 Em polêmica com a teoria da população de Malthus, a abordagem marxiana entende a constituição de

uma massa de despossuídos como parte da lógica interna do capital, sendo esse mesmo exército dereserva funcional por pressionar os salários para baixo. Cf. o capítulo XXIII do livro I.  Idem, ibidem,

 p.187-259.315  Verificada desde David Ricardo, Marx lhe atribuiu o status de principal “lei de movimento daeconomia”, conforme aparece nos Grundrisse, enquanto em O capital  é apresentada como umdesdobramento da lei geral da acumulação capitalista, como vimos acima. MARX, Grundrisse, op. cit.,

 p.626. ______  O capital: crítica da economia política . Livro III, Tomo 1. São Paulo: Abril Cultural,1983, p.161-200.316 “Deve haver influências contrariantes em jogo, que cruzam e superam os efeitos da lei geral, dando-lheapenas o caráter de uma tendência, motivo pelo qual também designamos a queda da taxa geral de lucrocomo uma queda tendencial.” Idem, ibidem, p.177.

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“crises são sempre apenas soluções momentâneas violentas das contradições existentes,

irrupções violentas que restabelecem momentaneamente o equilíbrio perturbado.”317 

Sendo deste modo a crise um processo necessário a partir do qual esse sistema

regula seus “excessos”, é importante notar que a ocorrência de tais crises comparece na

cena histórica nesta forma de sociabilidade contemporânea sem que estejamos diante deseu esgotamento. Ao contrário, tais crises fazem parte do seu modo de ser. Mas se

obviamente não podem existir crises econômicas que não possuam desdobramentos na

vida social, para Marx estas são crises bastante específicas. É que, segundo sua leitura, a

modernidade capitalista instaura uma abstração da esfera econômica de tal modo que

acaba por produzir uma dinâmica temporal de ritmo próprio, algo que E. P. Thompson

explorou em conhecido artigo e Moishe Postone, um fecundo leitor da obra de Marx,

denominou de um “tempo abstrato”.318  Assim sendo, esse ritmo relativamente

autônomo do desenvolvimento econômico do capital passa a conviver com outrastemporalidades, outros tempos discordantes como definiu Daniel Bensaïd,319 como os

tempos da natureza, ou o das conjunturas políticas, que possuem seus próprios ciclos.

Por outro lado, como também apontou Marx, estas crises constituem situações nas quais

aos sujeitos sociais se apresenta a “limitação e o caráter tão-somente histórico e

transitório do modo de produção capitalista”,320 constituindo a “forma mais contundente

em que o capital é aconselhado a se retirar e ceder espaço a um estado superior de

 produção social”.321 

Destarte, é importante considerar que, se Marx buscou apreender essa dinâmica

relativamente autônoma do movimento de valorização do valor, isso não significa dizer

que em sua teoria possa se conceber uma “economia” como uma esfera absolutamente

apartada do Estado, como aparece na vulgata liberal. Ao contrário, essa autonomia é

 precisamente relativa, e não absoluta, pois, desde sua constituição até sua reprodução

317  Idem, ibidem, p.188.318 THOMPSON, Edward P. Tempo, disciplina do trabalho e capitalismo industrial. In. Costumes emcomum. Estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.267-304.

POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination: A Reinterpretation of Marx's Critical Theory. Nova York e Cambridge: Cambridge University Press, 1993, capítulo 5, p.186-225. Podemos pensartambém no que Ellen Wood denomina de “separação” entre o econômico e o político, própria docapitalismo. Cf. WOOD, Ellen M. A separação entre o “econômico” e o “político” no capitalismo.

 Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003, p.27-49.319 BENSAÏD, Daniel. La discordance des temps: essais sur les crises, les classes, l’historie. Paris: LesÉditions de la Passion, 1995. _____  Marx, o Intempestivo. Grandezas e misérias de uma aventura crítica(séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.320 MARX, O capital, Livro III, op. cit., p.184.321 MARX, Grundrisse, op. cit,, p.627.

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histórica, o Estado opera na acumulação capitalista. Tanto naquilo que é entendido

como “acumulação originária”,322  passando pela ativação por parte do Estado das

contra-tendências à queda da taxa de lucro, como também através do mecanismo na

dívida pública, não há um Estado exterior à lógica da acumulação capitalista. Nem

mesmo na época de vigência do capitalismo concorrencial, em que viveu Marx, este prescindiu do Estado.323 

Entretanto, qual a relação entre essa forma específica de crise surgida da

objetivação do capitalismo industrial e as crises políticas, já tematizadas desde o século

XVIII? Como isto se relaciona na teoria de Marx? Sendo um revolucionário interessado

em investigar o funcionamento do capitalismo, Marx também produziu uma série de

reflexões importantes sobre esse tema, antes mesmo de ter dado a forma mais acabada

de sua crítica ao capitalismo sintetizada em O capital. No seu balanço da derrota da

Revolução de 1848, num tom deveras melancólico, Marx afirmou:“Nessa prosperidade geral em que as forças produtivas da sociedade

 burguesa se desenvolvem tão exuberantemente quanto é possível no seiodas relações burguesas, não se pode falar de uma verdadeira revolução.Tal revolução só é possível nos períodos em que ambos os fatores, asmodernas forças produtivas e as formas burguesas de produção, entremem contradição entre si. (...) Uma nova revolução só é possível nasequência de uma nova crise. É, porém, tão certa como esta.”324 

É inegável que esta conclusão expressa uma posição absolutamente determinista

quanto ao problema da relação das crises econômicas com as situações políticas. Esobre isso alguns comentários são oportunos. Em primeiro lugar é preciso notar que o

equívoco de Marx esteve ligado também à sua polêmica com a ala mais esquerdista da

Liga dos Comunistas, liderada por Karl Schapper (1812-1870),325 que acreditava que,

322 Ao contrário do que comumente se afirma, uma leitura mais atenta do capítulo XXIV do livro I de Ocapital, nos mostra que, embora Marx esteja remetendo ao processo histórico de constituição do pioneirocapitalismo inglês, a lógica de seu argumento diz respeito a entender como o capital se põe a partir daexpropriação dos produtores diretos do processo de reprodução de sua vida, em condições históricas nasquais já existe a generalização da forma mercantil. Deste modo, aquilo que ironicamente Marx denominade “a assim chamada acumulação primitiva” (ou “acumulação originária”) não é um processo datado

entre os séculos XIV e XVIII, e sim uma dinâmica que constitui a expansão (até mesmo territorial) dasforças produtivas capitalistas até o presente. Uma boa discussão sobre esse ponto está em FONTES,Virgínia. “Capitalismo, exclusão e inclusão forçada” e “As condições históricas e sociais de generalizaçãodo trabalho abstrato: permanência e transformação das formas de expropriação.” In.  Reflexões im-

 pertinentes. História e capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p.19-50 e 73-90.323  Como, aliás, verificou um não-marxista como Karl Polanyi. POLANYI, Karl.  A grandetransformação. As origens da nossa época. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000. 324 MARX, Karl. “As lutas de classe na França 1848-1850.” In.  A revolução antes da revolução. SãoPaulo: Expressão Popular, 2008, p.183, grifo nosso.325  Ver ENGELS, Friedrich. “Contribuição à história da Liga dos Comunistas.” In. Karl Marx &Friedrich Engels (obras escolhidas). Vol.3. São Paulo: Alfa-Ômega, s.d., p.152-168.

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ainda em 1850, o processo revolucionário estava em curso. Em segundo, conforme ele e

Engels expressaram no  Manifesto Comunista, Marx acreditava já estar vivendo os

estertores da sociedade burguesa, quando na verdade esta só estava dando seus

 primeiros passos, conforme ambos reconheceriam posteriormente. Isto não deve jogar

uma cortina de fumaça sobre o equívoco da conclusão do trecho supracitado, todavia é preciso também notar que uma das fontes principais do pensamento de Marx para

 pensar o tema da revolução  foi a própria historiografia liberal sobre a Revolução

Francesa, que, toda ela, estava convencida que um dos estopins para as grandes

revoluções (não só a de 1789, mas também a de 1830) foram os problemas

econômicos.326  E de fato, a crise comercial da Inglaterra havia contribuído para a

ativação do próprio Cartismo e da Revolução no continente. Não era tão absurdo assim

estabelecer esse vínculo, ainda que não seja difícil considerá-lo simplista.

Sobre esse ponto no desenvolvimento do pensamento de Marx, Bensaïd 327 comenta que, tendo em vista as revoluções anteriores, como em 1789, 1830 e naquela

em que o mesmo atuou (1848), Marx acabou por fazer um prognóstico no qual buscava

sincronizar as futuras crises econômicas – o que era demonstrável (dada a natureza

cíclica do sistema) – à uma nova revolução – algo indemonstrável por si só. De acordo

com o filósofo francês, haveria nessa conclusão ambígua de Marx um “mal-estar

teórico” entre sua nascente crítica da economia política e a filosofia da história

hegeliana, com a qual Marx e Engels já haviam acertado suas contas entre 1845-

1846.328 

Todavia, Marx acabaria por abandonar tal raciocínio em função de um fato

concreto: a crise seguinte, aparecida em 1857 – que foi inclusive mais profunda que a de

1847, pois foi a primeira grande crise capitalista mundial –,329 não ter sido seguida por

nenhum “dilúvio”; por nenhuma revolução ou algo minimamente parecido.330  Isso

326 Na Introdução de seu livro  História e Verdade, o filósofo polonês Adam Shaff fez um interessanteapanhado sobre a historiografia a respeito da Revolução francesa e mostrou que até os anos cinquenta doséculo XIX todos os seus grandes interpretes creditaram como uma de suas causas a crise fiscal do Estado

e as dificuldades econômicas do Antigo Regime. Ver, SCHAFF, História e verdade, op. cit., p.9-62.327 BENSAÏD, La discordance des temps, op. cit., p.83-84.328 Refere-se naturalmente aos textos de A sagrada família (1845) e d’ A ideologia alemã  (1845-46), ondeos dois jovens autores haviam criticado a concepção teleológica e fetichista da filosofia da história deHegel.329  KRÄTKE, Michael R. “The first world economic crisis: Marx as an economic journalist.” In.MUSTO, Marcello (Ed.). Karl Marx´s Grundrisse: foundations of the critique of political economy 150

 years later . London/New York: Routledge’s, 2008, p.162-168.330 Como esclareceu Hobsbawm, “Marx e Engels, que mantiveram alguma esperança no renascimentorevolucionário por um ou dois anos depois de 1849, transferiram depois essas esperanças para a grandecrise econômica seguinte (a de 1857) e resignaram-se depois.” HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 12ª

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obviamente impactou suas elaborações, e no momento seguinte, ao produzir uma das

mais controversas sínteses de seu pensamento, no célebre Prefácio à sua Contribuição à

crítica da economia política de 1859, Marx apresentou uma abordagem mais nuançada

sobre essa relação entre crise e revolução:

“Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivasmateriais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas atéentão se tinham movido. De forma de desenvolvimento das forças

 produtivas essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevêmentão uma época de revolução social.”331 

 Naquele escrito, redigido à luz da crise – mas também da redação febril de sua primeira

síntese da crítica da economia política – 332 ao referir-se às condições que possibilitam

uma revolução, Marx fala agora de uma “época de revolução social”, o que certamenteremete a tempos longos. Ao mesmo tempo, o grau de abstração da proposição também

remete para contradições profundas na estrutura social, e não ao resultado de uma

interrupção periódica do metabolismo econômico. Não se trata, portanto, de uma

relação de causalidade mecânica entre os ziguezagues da conjuntura econômica

imediata e a luta de classes, como aparece no balanço da Revolução de 1848. Até

 porque, como é desenvolvido naquele mesmo antológico Prefácio de 1859, uma

formação social nunca desaparece sem que antes tenham sido desenvolvidas todas as

suas contradições e potencialidades; e que os homens não se põem tarefas históricas para as quais as condições de sua resolução não estejam dadas ou em vias de aparecer.

Isto certamente esteve ligado a percepção de que, ao contrário do que aparece no

Manifesto Comunista, o capitalismo estava apenas na sua infância, como Marx

 posteriormente reconheceria.

Como vimos, o uso do conceito de crise no século XVIII estava ligado à

reflexão do esgotamento geral de uma forma de sociedade, entretanto, com o

desenvolvimento do modo de produção capitalista, vemos emergir uma forma de crise

que, por assim dizer, acompanha o próprio desenvolvimento desta forma de

edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.160. Discuto esse tema mais à fundo em MELO, DemianBezerra de. “Marx, as crises e a revolução.” Outubro, São Paulo, n.20, p.123-147, 2012.331 MARX, Karl. Para à crítica da economia política. Os economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1982,

 p.25.332 Trata-se naturalmente dos Manuscritos de 1857-1858, conhecidos como Grundrisse. MARX, Karl.Grundrisse. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ; São Paulo: Boitempo, 2011.

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sociabilidade. Temos assim uma dinâmica histórica onde variáveis temporais

relativamente independentes operam nas esferas econômica e política.333 

As crises e a luta de classes na tradição marxista

 Na tradição marxista, a temática das crises e sua associação com o tema daRevolução encontrou diversas leituras. Desde as mais esquemáticas, que buscam

encontrar uma espécie de “sincronia” entre as flutuações econômicas e as lutas de

classe, até proposições que destacam a significativa autonomia entre essas esferas da

modernidade capitalista. No âmbito da Internacional Socialista, fundada em 1889, uma

das mais importantes controvérsias da social-democracia alemã, o já mencionado

 Bernstein-Debatte, girou de certo modo em torno a esse problema, ainda que tivesse

sido mal colocado por Eduard Bernstein (1850-1932), que defendeu o abandono da

“teoria do colapso” ( Zusammenbruchstheorie), que, segundo ele, teria embasado a

teoria de Marx sobre a transição ao socialismo. A conhecida resposta de Rosa

Luxemburgo (1871-1919), por exemplo, para combater tal revisionismo, acabou por

reafirmar a existência (e a correção) da alegada teoria do colapso de Karl Marx.334 

Todavia, de acordo com o historiador Franco Andreucci, no congresso do SPD

em Hannover (1899) (contexto de divulgação das posições revisionistas de Bernstein),

um delegado de nome Woltmann defendera que não havia indício da teoria do colapso

inevitável do capitalismo em Marx, sendo apenas encontrada em Engels e nos auto-

identificados “marxistas”. 335 

Quanto ao tema da revolução e sua implicação com as crises cíclicas, é notável

que as conhecidas passagens de Lênin (1870-1924) apresentem uma visão na qual as

depressões econômicas só implicitamente contribuam para a criação das condições para

uma crise revolucionária. Em um texto escrito em 1915, bastante conhecido e citado, A

 falência da II Internacional, o dirigente bolchevique discute a partir de duas ordens de

333  BENSAÏD, La discordance des temps, op. cit. _______.  Marx, o intempestivo. Grandezas e misériasde uma aventura crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.334  BERTELLI, Antonio Robert. “O pano de fundo histórico-teórico do  Bernestein-Debatte.”  Novos

 Rumos, São Paulo, n.32, p.3-47, 2003.335 ANDREUCCI, Franco. “A difusão e a vulgarização do marxismo.” In. HOBSBAWM, Eric. Históriado Marxismo  II . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.30. O debate sobre a existência de uma teoria docolapso em Marx transcende esse contexto, atravessando o século XX. Um apanhado da questão até osanos setenta, cf. COLLETI, Lucio (org.). El marxismo y el “derrumbe” del capitalismo. 2ª ed. Madrid;México: Siglo XXI, 1983. Uma discussão sobre a impertinência da teoria do colapso, cf.MAZZUCHELLI, Frederico.  A contradição em processo: o capitalismo e suas crises. São Paulo:Brasiliense, 1985.

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o antigo governo, que não ‘cairá’ jamais, mesmo em época de crise, sem‘ser derrubado’.”337 

Após o triunfo da Revolução de Outubro, o autor irá retomar a definição de crise

revolucionária em outro texto, Esquerdismo: doença infantil do comunismo (1920), no

contexto da formação da Internacional Comunista.338 Novamente, em sua definição de

uma situação revolucionária, não há qualquer proposição de uma relação sincrônica

entre as flutuações econômicas e a luta de classes.

 No caderno 13, Antonio Gramsci parte justamente do Prefácio de 1859 de Marx

 para enunciar critérios metodológicos de sua “crítica da política”. Caderno escrito entre

1932 e 1934, no seu conhecido parágrafo (§17) sobre a análise das relações de forças,

recomenda, em primeiro lugar, “distinguir os movimentos orgânicos (relativamente

 permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de conjuntura (e que seapresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais)”.339  Tomando dois

 princípios340  extraídos de sua leitura do Prefácio  marxiano,341  o autor estava

 preocupado em formular uma estratégia revolucionária consequente para as sociedades

337  Idem, ibidem, p.28, primeiro grifo nosso, segundo grifo do autor. Segundo Valério Arcary, com estetexto Lênin “introduziu pela primeira vez no debate marxista uma diferenciação entre a hierarquia dosfatores objetivos e subjetivos”. ARCARY, As esquinas perigosas da História, op. cit., p.64. 338 “A lei fundamental da revolução, confirmada por todas as revoluções e, em particular por todas as t rêsrevoluções russas do século XX, consiste no seguinte; para a revolução não basta que as massas

exploradas e oprimidas tenham consciência da impossibilidade de viver como dantes e exijam mudanças; para a revolução é necessário que os exploradores não possam viver e governar como dantes. Só quandoos ‘de baixo’ não querem o que é velho e os ‘de cima’ não podem como dantes, só então a revolução

 pode vencer. Esta verdade exprime-se de outro modo, com as palavras: a revolução é impossível sem umacrise nacional (tanto dos explorados como dos exploradores). Por conseguinte, para a revolução énecessário, em primeiro lugar, que a maioria dos operários (ou pelo menos a maioria dos operáriosconscientes, pensantes, politicamente activos) compreenda plenamente a necessidade da revolução eesteja disposta a dar a vida por ela; em segundo lugar, é preciso que as classes dirigentes atravessem umacrise governamental que arraste para a política mesmo as massas mais atrasadas (o sintoma de toda arevolução autêntica é a rápida decuplicação ou centuplicação da quantidade de representantes dostrabalhadores e da massa oprimida, antes apática, aptos para a luta política), que enfraqueça o governo etorne possível aos revolucionários o seu rápido derrubamento.” LENIN. V. I.  A doença infantil do‘esquerdismo’ no comunismo. Moscou: Edições Progresso, 1986, p.64.339 GRAMSCI, Antonio. § 17 do Caderno 13. Cadernos do cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a

 política. Vol.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.36.340  “1) o de que nenhuma sociedade se põe tarefas para cuja solução ainda não existam as condiçõesnecessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em vias de aparecer e se desenvolver; 2) e o deque nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes que se tenham desenvolvido todas asformas de vida implícitas em suas relações”. Idem, ibidem, p.36.341 O que certamente é algo significativo da envergadura do processo de reelaboração do materialismohistórico operado por este, posto que o Prefácio de 1859 é um texto que se prestou às mais esquemáticasleituras, particularmente no marxismo ossificado e mecanicista das II e III Internacionais. Ver BIANCHI,Alvaro. “Revolução passiva: o pretérito do futuro.” Crítica Marxista, Campinas, n.23, p.34-57, 2006.Sobre a reelaboração do materialismo histórico na obra de Gramsci, nos baseamos no mesmo autor em

 ______. O Laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008. 

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caracterizadas por ele como “Ocidentais”.342 Ou seja, como construir um caminho para

a tomada do poder político pela classe operária em países onde a burguesia operava o

 processo de dominação não só com a supremacia do Estado sobre a sociedade, mas

estando o Estado em uma relação mais equilibrada com as organizações privadas de

hegemonia, isto é, com a sociedade civil. Desse modo, as preocupações de Gramsciestiveram voltadas para pensar como são criadas as condições objetivas e subjetivas

 para as mudanças sociais profundas, para as revoluções.

Como é notório, na proposição do marxista sardo é de fundamental importância

o tema da hegemonia nas sociedades capitalistas industriais modernas. De acordo com

sua conhecida formulação, nas sociedades industriais, urbanizadas e capitalistas, o

 processo de dominação social é efetivado por uma combinação entre elementos de

força, centralizados no Estado stricto sensu  (Forças Armadas, Justiça, Sistema

Carcerário, Legislativo etc.), com elementos de consenso, produzidos por uma amplarede de aparelhos privados de hegemonia, que funcionam no âmbito da sociedade civil,

e também do próprio Estado (que também é um importante produtor de elementos de

consenso).343 Ao lado desta compreensão mais matizada do processo de dominação nas

sociedades capitalistas avançadas, chamadas pelo autor de “Ocidentais”, em

contraposição às “Orientais”,344  desenvolve-se, é claro, o problema da crise de

hegemonia. Sobre esse assunto Gramsci esclarece:

“A distinção entre “movimentos” e fatos orgânicos e movimentos e fatos

de “conjuntura” ou ocasionais deve ser aplicada a todos os tipos desituação, não só àquelas em que se verifica um processo regressivo ou decrise aguda, mas àqueles em que se verifica um processo progressista oude prosperidade e àquelas em que se verifica uma estagnação das forças

 produtivas.”345 

Seguindo o critério metodológico acima enunciado, Gramsci discute como, no

estudo de todo um período histórico, devem-se compreender os momentos em que é

forjada a crítica histórico-social, que envolve grandes agrupamentos humanos; quando

342 Sobre o “Ocidente” e o “Oriente” em Gramsci, ver. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Um estudosobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. ANDERSON, Perry.“Antinomias de Antonio Gramsci.” In. Crítica Marxista. São Paulo: Joruês, 1986, p.7-74.343 Perry Anderson chama atenção para esse fato quando menciona o quão importante é a eleição dosgovernantes, que ocorre regularmente nas democracias liberais ocidentais, como ato político do Estadocujo propósito é convencer os cidadãos comuns de que são eles que governam a sociedade através de seusrepresentantes. ANDERSON, “As antinomia de Gramsci”, op. cit.344 Conforme conhecida fórmula gramsciana, no “Oriente”, “o Estado é tudo e a sociedade civil é poucodesenvolvida e gelatinosa”.345 GRAMSCI, §17 do Caderno 13, op. cit., p.38.

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se impõem questões de tal profundidade que não encontram solução nos quadros

institucionais vigentes; em suma, nos períodos de crise de hegemonia, atravessados por

guerras, revoluções, golpes de Estado, contra-revoluções etc. Por vezes esses momentos

de crise podem demorar anos para terem suas contradições solucionadas, gerando um

longo período de instabilidade política no qual o grupo dirigente tenta resolver osimpasses no interior dos quadros institucionais vigentes, ou modificando-os de forma

gradativa. Em outros casos, como o francês, o longo período de instabilidade que se

verificou entre 1789 e 1871 é pontuado pela ocorrência de ondas revolucionárias que,

nesse longo tempo, foram impondo a objetivação do capitalismo através de grandes

comoções sociais.

 No período histórico em que escreve, Gramsci vive a crise profunda estabelecida

 pelas contradições da fase imperialista do capitalismo, que gerou a Primeira Guerra

Mundial (1914-1918) e o desafio ao capital que significou a Revolução Russa de 1917.Tal crise é entendida como ligada aos profundos movimentos orgânicos e contraditórios

da sociedade, não sendo uma simples derivação de uma crise econômica particular.

Afinal, o marxista sardo foge de todos os figurinos deterministas quando afirma sobre

esse assunto:

“Pode-se excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam eventos fundamentais; podem apenas criar um terreno maisfavorável à difusão de determinados modos de pensar, de pôr e deresolver as questões que envolvem todo o curso subsequente da vida

estatal.”346

 

 No § 5 do Caderno 15, escrito em 1933 e dedicado ao exame da crise de 1929,

Gramsci esclarece como entendia o caráter do desenvolvimento capitalista desde a

Guerra mundial como uma “crise contínua”. E assim, criticando as interpretações

superficiais sobre a própria crise, o crash  da Bolsa de Wall Street é entendido como

simplesmente uma forma de manifestação de uma crise que deitava raízes em todo o

 período anterior, e que deveria ser entendida através do exame das suas contradições

fundamentais:“os eventos do outono de 1929 na América são exatamente uma dasmanifestações clamorosas do desenvolvimento da crise, e nada mais.Todo o após-guerra é crise, com tentativas de remediá-la que às vezestêm sucesso neste ou naquele país, e nada mais. Para alguns (e talvez nãosem razão), a própria guerra é uma manifestação da crise, ou melhor, a

346  Idem, Ibidem, p.44.

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 primeira manifestação; a guerra foi precisamente a resposta política eorganizativa dos responsáveis.”347 

Entretanto, a própria Guerra como tentativa de resposta para crise se mostrou

insuficiente, e o pós-guerra viu aflorar novas contradições. Como está dito no trecho

acima, nosso autor entende todo o pós-guerra como crise. Nas condições desta crise

 profunda manifestada com a eclosão da Guerra, as estruturas das instituições que nas

sociedades ocidentais organizam as vontades dos grupos sociais, os partidos políticos,

se demonstraram incapazes de continuar a representar essas mesmas forças sociais. Das

contradições amadurecidas pela Guerra surgem as vagas revolucionárias de 1917 na

Rússia, 1918-1919 na Alemanha, 1919 na Hungria e 1919-1920 na Itália, mas também

se forjam os elementos que iriam desembocar no nazi-fascismo. Produz-se, deste modo,

o que o autor denomina conceitualmente de crise orgânica, conforme o §23 do seu

caderno 13:

“Em um certo ponto de sua vida histórica, os grupos sociais se separamde seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradicionais naquela dadaforma organizativa, com aqueles determinados homens que osconstituem, representam e dirigem, não são mais reconhecidos como suaexpressão por sua classe ou fração de classe.”348 

Estas situações costumam abrir o campo de luta para soluções de força, “à atividade de

 potências ocultas representadas pelos homens providenciais ou carismáticos”, além de

reforçar a posição relativa da burocracia (civil e militar), da alta finança, da Igreja etc.na relação social de forças. E o conteúdo desse processo é a crise de hegemonia da

classe dirigente, que perdeu a capacidade de governar, seja porque se desmoralizou

frente a algum grande empreendimento político, seja porque setores expressivos das

massas saíram da letargia e foram à ação política, ação esta que de certo modo abala as

estruturas de domínio e pode colocar a revolução na ordem do dia.

Inspirado nos textos históricos de Karl Marx sobre a França, em especial o 18

 Brumário de Luis Bonaparte, Gramsci explica esta relação dialética entre as bases e os

 partidos, advertindo que nem sempre estes aparelhos políticos sabem “adaptar-se àsnovas tarefas e às novas épocas”,   349  como foi o caso patente de todos os partidos

347  GRAMSCI, Antonio. § 5 do Caderno 15. Cadernos do cárcere. Vol. 4. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2002, p.317.348  GRAMSCI, §23 do Caderno 13, op. cit., p.60, grifos nossos. Uma exposição minuciosa do conceito

 pode ser lida em CASTELO, Rodrigo. “Gramsci e o conceito de crise orgânica.” Margem Esquerda, SãoPaulo, v.19, p.69-83, 2012.349  Idem, ibidem, p.61.

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franceses no contexto da Revolução de 1848. Este também era o caso dos aparelhos

 partidários da Europa central no contexto da Guerra Mundial de 1914-1918350  e

especialmente nas décadas seguintes, tendo como caso mais importante o da social-

democracia, cuja desmoralização frente à Guerra imperialista levou Lênin e outros

revolucionários a decretarem a sua “falência”.351

  Era principalmente uma crise derepresentatividade dos partidos burgueses tradicionais, incapazes de apresentarem-se

como alternativa de direção hegemônica em sociedades onde os grupos subalternos já

haviam construído uma ampla rede de instituições originalmente contra-hegemônicas,

como partidos operários, sindicatos com bases de massas, imprensa operária etc.,

exercendo forte pressão democratizadora sobre os sistemas políticos liberais.352 Além

do mais, a expansão das organizações operárias, dos Partidos Comunistas, por exemplo,

ocorria em muitos casos por fora dos parlamentos. Sendo os parlamentos o local por

excelência de mediação dos conflitos nos regimes liberais, esse desenvolvimento político  por fora  era uma evidência da incapacidade destas estruturas políticas em

absorver as contradições sociais que emergiam. Era a crise do Estado liberal, o qual,

incapaz de incorporar estas novas contradições sociais, vê ocorrer o deslocamento de

suas bases sociais.

É claro que, sendo os partidos formas organizativas que visam a tomada do

 poder, os regimes políticos não podem passar incólumes quando ocorrem esses

rompimentos entre os partidos tradicionais e suas bases sociais, e, por isso, tal crise se

constitui como orgânica, pois seu conteúdo é a crise de hegemonia das classes

dominantes, que não podem mais manter o processo de dominação sobre as mesmas

 bases. Uma crise no regime define-se exatamente por isto, e nesse sentido se difere

daquelas crises governamentais corriqueiras, as quais o regime é capaz de absorver no

interior de suas instituições.

As crises do regime apresentam-se em situações onde à classe dominante não

resta outra saída senão refazer os seus arranjos no poder, tarefa que nunca é possível de

ser feita tranquilamente, e que se torna mais árdua nos momentos de dificuldades

econômicas. Nestas situações, é necessário recompor o pacto de dominação, de modo a

redefinir as bases com a quais o Estado estará em condições de defender os interesses

350 GRAMSCI, § 37 do Caderno 13, op. cit., p.92-107.351  Sobre as controvérsias no interior do marxismo sobre esse tema, ver o capítulo 3 de ARCARY,Valério.  As esquinas perigosas da história. Situações revolucionárias em perspectiva marxista. SãoPaulo: Xamã, 2004.352 O caso mais emblemático é o da luta pelo sufrágio universal masculino e pelo sufrágio feminino, quena Europa foram bandeiras do movimento operário.

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estratégicos da classe dominante, ao mesmo tempo em que possa seguir incorporando as

demandas não antagônicas das classes subalternas. A fragilidade e as dificuldades da

classe dominante em recompor as condições de sua supremacia são sintomas

característicos de uma crise orgânica. E justamente por isto, tais crises orgânicas podem

ser, de acordo com uma relação de forças muito específica, propícias para que as classessubalternas rompam com sua condição de subalternidade. Será justamente o grau de

auto-organização destas, combinado ao grau de cisão entre as classes dominantes, que

determinará o realismo da sua rebelião. 353 Ao mesmo tempo, no caso em torno do qual

Gramsci produziu sua reflexão, tal crise orgânica se expressou também nas fragilidades

das organizações das classes subalternas. Como sintetiza Alvaro Bianchi, naquele

contexto do pós-Guerra:

“A crise não atingia apenas a burguesia e o parlamento. Ela era, também,

uma crise de direção das classes subalternas, que não conseguiam imporseu projeto hegemônico, muito embora conseguissem desarticular ahegemonia das classes dominantes.”354 

De qualquer modo, Gramsci também irá relacionar sua reflexão sobre as crises de

hegemonia com as situações em que estas se combinam com a crise cíclica na economia

capitalista, atentando principalmente para as tendências de longo prazo. Em suma,

“Colocando de tal maneira o problema, temos que a crise de hegemonianão é definida automaticamente pela crise econômica. A criseeconômica, tomada em seu sentido amplo como crise de acumulação

resultante da queda tendencial da taxa de lucro, pode ser pressuposta dacrise de Estado. Mas ela não põe, por si própria, a crise de hegemonia.Quando a crise econômica e a crise de hegemonia coincidem no tempotemos o que Gramsci chama de crise orgânica, uma crise que afeta oconjunto das relações sociais e é a condensação das contradiçõesinerentes à estrutura social. Para a eclosão da crise orgânica é preciso acoincidência dos tempos dessa crise de acumulação com o acirramentodo choque entre as classes, e no interior delas próprias entre suasfrações.”355 

O tema das relações entre as crises econômicas e as situações políticas ocupa

também a polêmica de Gramsci com a análise de Rosa Luxemburgo sobre a Revolução

353  A isso se deve acrescentar a importante discussão metodológica também desenvolvida nas notascarcerárias de Gramsci, no § 2 do caderno 25, já mencionada no primeiro capítulo e referente à históriados grupos subalternos. Cf. GRAMSCI, Cadernos do cárcere. Risorgimento, vol.5, op. cit., p.135. Esseassunto está desenvolvido em DEL ROIO, Marcos. “Gramsci e a emancipação do subalterno.” Revista deSociologia e Política, Curitiba, n.29, p.67-78, nov. 2007.354 BIANCHI, Alvaro. “Crise, política e economia no pensamento gramsciano.” Novos Rumos, São Paulo,no36, 2002, p.35.355  Idem, ibidem, p.36.

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Russa de 1905,356 onde a revolucionária polonesa explicitamente relaciona a situação

revolucionária com uma crise econômica, estando aí a base de seu mal afamado

“espontaneísmo”. Gramsci critica duramente essa posição teórica de Rosa como um

“determinismo economicista”, discutindo de que forma as crises econômicas são

 percebidas pela autora “como artilharia de campo que, na guerra, abria a brecha nadefesa inimiga, brecha suficiente para que as tropas próprias irrompessem e obtivessem

um sucesso definitivo (estratégico) ou, pelo menos, um sucesso importante na diretriz

da linha estratégica”.357  O marxista sardo via nesse raciocínio de Rosa um “férreo

determinismo economicista”, no qual “os efeitos eram concebidos como rapidíssimos

no tempo e no espaço; por isso, tratava-se de um verdadeiro misticismo histórico, da

expectativa de uma espécie de fulguração milagrosa”.358 

 No prosseguimento desta crítica, Gramsci discute como, nas sociedades

“Ocidentais”, os Estado avançados – onde a sociedade civil é desenvolvida –desenvolveram a capacidade de resistir às “irrupções catastróficas do elemento

econômico imediato (crises, depressões etc.)”, sendo a superestrutura estatal similar ao

que representa o sistema de trincheiras no teatro de operações da Guerra Mundial. Outro

aspecto diz respeito ao fato de que, em decorrência da crise econômica capitalista, as

classes sociais antagônicas (burguesia x proletariado) poderem optar por distintas

estratégias de luta, o que certamente implica no grau de autoconsciência social e

organização de cada classe. Assim, uma crise econômica não leva automaticamente a

um desenvolvimento organizativo “fulminante” no tempo e no espaço entre as classes

subalternas; por outro lado, os capitalistas “tampouco se desmoralizam, nem

abandonam suas defesas, mesmo entre ruínas, nem perdem a confiança na própria força

e no próprio futuro”.359 É claro que a própria crise movimenta as posições originais da

relação de forças, mas em sociedades Ocidentais o mais certo é que a luta política seja

operada como numa “guerra de trincheiras”.360 Parece claro que o objetivo de Gramsci

era o de polemizar tanto com as análises “catastrofistas” da Internacional Comunista em

seu VI Congresso (1928) – fortalecidas com a crise de 1929 –, como também com as

356 Gramsci se refere ao ensaio Greve geral, partido e sindicalismo, de 1906.357 GRAMSCI, §24 do caderno 13, op. cit., p.71.358  Idem, ibidem, p.71.359  Idem, ibidem, p.73.360  De tal raciocínio resulta o outro célebre par dialético de Gramsci: guerra de posição x guerra demovimento.

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formulações da social-democracia alemã, que propugnava a ideia de que, com a

emergência do capitalismo monopolista, as crises cíclicas não mais operariam.361 

Destarte, se a modernidade capitalista se caracteriza pela autonomização dos

ritmos do desenvolvimento econômico em relação às outras esferas da sociabilidade

humana, essa “discordância dos tempos”, como define Bensaïd, não exclui a possibilidade de que tais crises de ordens distintas se cruzem. As crises orgânicas são,

de certa forma, esses momentos excepcionais.

Deste quadro sucinto podemos apreender que a experiência histórica da

modernidade capitalista constata a existência de crises que operam em temporalidades

distintas; crises cíclicas de superprodução, as crises política de profundidade e ordem

variada (governamentais, orgânicas, do regime, de hegemonia ou “crise do Estado em

seu conjunto”362  etc.) compõem o modo de ser das sociedades burguesas. No âmbito

econômico, períodos de expansão e ou depressão podem durar décadas, como foram asduas grandes depressões, de 1873-1894 e a dos anos trinta do século XX, ou como nos

excepcionais “anos de ouro” do pós Segunda Guerra Mundial.

O desenvolvimento econômico, todavia, não opera num vazio, e sim de acordo

com uma relação de forças sociais que sempre implica em formas institucionais

necessárias à reprodução do sistema, uma forma de Estado, um regime político, algum

tipo de pacto social entre as classes, uma dada forma de relacionamento entre os

Estados no sistema internacional, etc.363 Entretanto, dado que os humores políticos e os

acirramentos das contradições sociais nem sempre acompanham as flutuações da

economia, crise governamentais ou mesmo situações revolucionárias podem ocorrer

quando a situação econômica do capitalismo é, na superfície das taxas de crescimento e

de lucro, relativamente confortável, como evidencia a vaga revolucionária de 1968.

 Na própria esfera política, além das diferenças fundamentais entre as

 perturbações corriqueiras do processo político, da “pequena política”, das intrigas da

imprensa, das crises governamentais, temos também as crises do regime, de hegemonia,

orgânica, do “Estado em seu conjunto”. Por outro lado, em formações sociais como a

 brasileira, onde se observou ao longo do século XX uma grande dificuldade das classes

361 Sobre isso, ver ALTVATER, Elmar. “A crise de 1929 e o debate marxista sobre a teoria da crise.” In.HOBSBAWM, Eric (org.).  História do Marxismo. Vol.8. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989,

 p.79-133. SWEEZY, Paul. “A controvérsia do colapso.”  A teoria do desenvolvimento capitalista. SãoPaulo: Abril Cultural, 1983, p.153-169.362 GRAMSCI, §23 do caderno 13, op. cit., p.60.363 Por exemplo: para manter em funcionamento uma forma social de produção baseada na flexibilizaçãodos mercados de trabalho é necessária uma formatação do Estado, uma forma de regime político quegaranta que, qualquer que seja a pressão social, nada poderá levar à conquista de direitos sociais.

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dominantes em exercer a direção da sociedade, as perturbações econômicas combinadas

a certos cenários políticos produziram situações explosivas, como no início dos anos

1960.

Parte 2 - Dimensões da crise dos anos 1960 no BrasilA etapa decisiva do processo de objetivação do capitalismo brasileiro operou-se

em face de uma longa crise de hegemonia, no qual uma sucessão de arranjos através do

Estado buscou estabilizar a dominação burguesa diante da incapacidade de qualquer das

frações das classes dominantes em exercer uma supremacia consentida. Ao longo dos

anos 1920 o regime da República oligárquica apresentou um quadro de crise, expresso

 pelas cisões intra-oligárquicas (principalmente a Reação Republicana) e revoltas

tenentistas (1922, 1924 e a Coluna Prestes), e dos anos 1930 em diante, a aceleração do

desenvolvimento capitalista fez-se no contexto desta crise profunda, tal como já é

 bastante conhecido na literatura.364 Nesse sentido, entre outras coisas, a “Revolução de

1930” marcou uma mudança na formatação do Estado brasileiro, que, frente à

impossibilidade de qualquer uma das frações da burguesia em exercer a hegemonia,

autonomizou-se de modo a impor uma alteração no modelo de desenvolvimento

econômico, favorecendo a industrialização capitalista.

Tal viés expressou-se numa forma bonapartista  de poder, no qual a figura

histórica de Getúlio Vargas apresentou-se como a de um César  que operou, “por cima

das classes sociais”, a guinada modernizadora. Esse cesarismo, já discutido na literatura

e retomado em pesquisas recentes,365 expressou sua face  progressiva366 na construção

364  FAUSTO, Boris.  A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1970.WEFFORT, O populismo na política brasileira, op. cit.. VIANNA, Liberalismo e sindicato no Brasil, op.cit. Um comentário pertinente sobre a presença do conceito de hegemonia (e crise de hegemonia) nessaliteratura está em FONTES, “Que hegemonia? Peripécias de um conceito no Brasil.” In.  Reflexões Im-

 pertinentes, op. cit., p.201-232.365 MORAES, João Quartim de. “O argumento da força.” In. OLIVEIRA, Eliezzer Rizzo de, et. al.  As

 forças armadas no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço & Tempo, s.d. DEMIER, “Bonapartismo e cesarismonos estudos sobre o período 1930-1964...” op. cit._____. O longo bonapartismo, op. cit.366  De acordo com Antonio Gramsci, no seu estudo sobre os eventos históricos que culminaram emgrandes personalidades “heroicas”, podem-se distinguir formas progressistas ou regressivas de cesarismo,além de uma combinação engenhosa entre os dois sentidos, que acreditamos ter sido o caso do cesarismo-varguista. “Pode haver um cesarismo progressista e um cesarismo regressivo; e, em última análise, osignificado exato de cada forma de cesarismo só pode ser reconstruído a partir da história concreta e nãode um esquema sociológico. O cesarismo é progressista quando sua intervenção ajuda a força progressistaa triunfar, ainda que com certos compromissos e acomodações que limitam a vitória; é regressivo quandosua intervenção ajuda a força regressiva a triunfar, também neste caso com certos compromissos elimitações, os quais, no entanto, têm um valor, um alcance e um significado diversos daqueles do casoanterior. César e Napoleão I são exemplos de cesarismo progressista. Napoleão III e Bismarck, decesarismo regressivo. Trata-se de ver se, na dialética revolução-restauração, é o elemento revolução ou o

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do Estado moderno brasileiro e dos mecanismos de acumulação capitalista. A ampliação

da base histórico-social do próprio Estado, outro aspecto deste cesarismo, foi feita

através da institucionalização (estatização) dos aparelhos sindicais dos trabalhadores

urbanos, como contra-partida para o acesso aos direitos sociais, direitos esses que

fizeram parte da pauta histórica de reivindicações do jovem proletariado brasileiro. Deuo tom regressivo do cesarismo varguista essa mesma tutela do Ministério do Trabalho

sobre os sindicatos, aliada à modernização do aparelho de repressão policial, o que

remete diretamente à continuidade do tratamento da questão social como “caso de

 polícia”,367 além da restrição dos direitos sociais aos trabalhadores urbanos.368 

Esse caráter regressivo, cujo emblema é a restrição à cidadania política para as

classes subalternas, só pode ser entendido se levarmos em conta o caráter hiper-tardio

da modernização capitalista brasileira, feita já num momento, como lembra Renato

Lemos,369 em que a alternativa histórica ao capitalismo já havia emergido (em 1917 naRússia) e era necessário prevenir a eclosão de novas revoluções.

“Com a revolução socialista na Rússia, em 1917, o cenário político-ideológico mundial é enriquecido com um novo elemento. Até então, osocialismo era, basicamente, um horizonte ideológico que servia dereferência a pensadores e militantes, interessados em manter ou emrevolucionar o sistema social capitalista. A derrubada do czarismo e aascensão dos bolcheviques ao poder na Rússia fizeram disparar o alarmeda burguesia. Daí para frente, o socialismo, como possibilidade real oucomo espectro, passaria a constar, explícita ou tacitamente, favorável oudesfavoravelmente, de todos os programas políticos. O Brasil como, deresto, outros países de capitalismo hipertardio, conheceu oanticomunismo antes mesmo de possuir uma classe operária. Depois datentativa frustrada de revolta da Aliança Nacional Libertadora, liderada

 pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), o anticomunismo ganharia novafaceta graças à mística militar que o faria um dos elementos maisimportantes da crise dos anos 60 e do regime ditatorial.”370 

elemento restauração que predomina, já que é certo que, no movimento histórico, jamais se volta atrás enão existem restaurações in toto.” GRAMSCI, Caderno 13, §  27, Cadernos do cárcere, vol.3, op. cit.,

 p.76-77.367  MATTOS,. Greves e repressão ao sindicalismo carioca (1945-1964), op. cit. ________ (coord.).

Trabalhadores em greve, polícia em guarda. Greves e repressão policial na formação da classetrabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bomtexto; Faperj, 2004.368 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1978.369  LEMOS, “Contrarrevolução e ditadura no Brasil: elementos para uma periodização do processo

 político brasileiro pós-1964.”, op. cit.370  Idem, ibidem, p.2-3. Sobre a existência do anticomunismo antes da formação da classe operária noBrasil, o autor refere-se à Revolução Praieira de 1848 em Pernambuco, mas também à acusação de“comunista” endereçada ao positivista Benjamin Constant, que no contexto do impacto da Comuna deParis (1871) no Brasil, foi acusado de ser partidário do “credo vermelho” simplesmente por ter defendidoo ensino escolar para cegos. Ver também, LEMOS, Renato.  Benjamin Constant, vida e história. Rio deJaneiro: Topbooks, 1999, p.231.

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Assim, ainda segundo Lemos, as tarefas desta modernização foram cumpridas pelas

classes dominantes brasileiras através do recurso daquilo que autores como Florestan

Fernandes caracterizaram como uma “contra-revolução preventiva”. E nesse sentido é

significativa a frase atribuída pelo presidente do estado de Minas Gerais, Antonio

Carlos, no contexto da “Revolução de 1930”, que convocando uma insurreição entre asclasses dominantes após o assassinato do líder político paraibano João Pessoa teria

afirmado: “Façamos a revolução antes que o povo à faça!”

Se o regime oligárquico da chamada República Velha esteve baseado no espírito

liberal e no poder dos grandes proprietários ligados à agro-exportação, após os anos

trinta será o corporativismo – comum a diversas fontes do pensamento político

“autoritário” (como o próprio fascismo) –, somado ao industrialismo, que iriam dar o

tom da política econômica do novo Estado. Por outro lado, justamente por não ter se

tratado realmente de uma revolução, estando próximo daquilo que Gramsci definiucomo uma revolução passiva,371  o movimento de 1930 não instituiu um sistema

hegemônico. E ao longo dos anos posteriores manifestaram-se crises sucessivas (em

1932, 1935, 1937, 1938, 1945, 1954, 1955, 1956, 1961, 1964 e a própria ditadura

militar, que foi um “regime de crise”372), que intercalaram-se com momentos de maior

consenso (mesmo sob as ditaduras), expressão da dificuldade de estabilizar a dominação

 burguesa no Brasil.

É que, como muito bem definiu Florestan Fernandes, o caráter autocrático da

 burguesia brasileira fez com que a sua “revolução”, diferentemente dos casos clássicos

de países pioneiros do capitalismo como França e os EUA, ocorresse sem a resolução

democrática do problema da terra e da ampliação da cidadania política para os

371  Pensado originalmente para o processo de entificação da sociedade burguesa na Itália do XIXconhecido como conhecido como Risorgimento, Gramsci tomou de Vincenzo Cuoco (1770-1823) e seuestudo sobre a revolução em Nápoles em 1799, associando-o ao conceito de revolução-restauração deEdgar Quinet (1803-1875) e os escritos de Marx e Engels sobre a Revolução de 1848. Explicitamente

 buscou aplicar o conceito para outras realidades nacionais e contextos históricos, como os do fascismo

italiano e da cultura americana ligada ao fordismo (o “Americanismo”), ambas  formas capitalistas deresolver a crise do capitalismo. “O conceito de revolução passiva me parece exato não só para a Itália,mas também para os outros países que modernizaram o Estado através de uma série de reformas ou deguerras nacionais, sem passar pela revolução política de tipo radical-jacobino.” GRAMSCI, Antonio.Caderno 4. Cadernos do cárcere. Vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.209-210. Sobreas fontes do conceito BIANCHI, “Revolução passiva...”, op. cit. Sobre a aplicação do conceito derevolução passiva para Brasil, COUTINHO, Carlos Nelson. “As categorias de Gramsci e a realidade

 brasileira”, In. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1999, p. 191-219.372 Sobre os “regimes de crise”, ver POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. Porto: Portucalense,1972.

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subalternos sociais.373 Operada no mesmo momento em que, além da primeira grande

crise capitalista (I e II Guerras Mundiais), aparece a alternativa histórica ao capitalismo

 – a URSS –, a modernização burguesa no Brasil foi feita quando a tarefa histórica da

 burguesia já era prevenir-se de todas as formas da eclosão da revolução social. Assim,

ao contrário da França, a revolução burguesa no Brasil se processou como uma “contra-revolução permanente”.374 

Após 1930, a partir da ampliação seletiva dos direitos de cidadania como forma

de incorporação das massas no processo político, institui-se uma relação social à contra-

 partida do apoio destas a líderes políticos que imprimiram novo estilo à forma de fazer

 política. A conquista do apoio das massas urbanas, ou seja, a constituição dessa aliança

de classes, permeada de contradições, constitui um dos fulcros da sempre frágil

estabilidade do processo político brasileiro. Mas a seletividade desta aliança constitui

dado estrutural daquela via. No problema agrário isso fica explícito, pois, tácita eefetivamente, acordou-se à maneira “prussiana”375  entre os grandes proprietários

agrários (que impuseram aos trabalhadores do campo a continuidade de formas

 pretéritas de extração do sobre-trabalho)376  e o Estado; uma transação pelo alto que

caracteriza as revoluções passivas. Esse pacto proprietário conformaria a base do

373 Nesse sentido, enquadra-se nas características do que, além do próprio Gramsci, Barrington Moore Jr.

chama de “revolução pelo alto”. MOORE JR, Origens sociais da ditadura e da democracia, op. cit.Inspirado neste autor, uma análise sobre o Brasil pode ser lida em VELHO, Otávio Guilherme.Capitalismo autoritário e campesinato. São Paulo; Rio de Janeiro: DIFEL, 1979.374 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. Riode Janeiro: Zahar, 1975.375 Segundo a definição clássica de Lênin, diferentemente do caminho de tipo norte-americano – em que“não existem domínios latifundiários ou são liquidados pela revolução [no caso dos EUA, guerra civil,expansão para o Oeste etc.], que confisca e fragmenta as propriedades feudais” – no caso prussiano, “aexploração feudal do latifundiário transforma-se lentamente numa exploração burguesa-junker,condenando os camponeses a decênios da mais dolorosa exploração e do mais doloroso jugo, ao mesmotempo em que se distingue uma pequena minoria de ‘Grossbauers’ (lavradores abastados)”. LENIN, O

 programa agrário da social-democracia russa na primeira revolução russa (1905-1907). São Paulo:Livraria Editora Ciências Humanas, 1980, p.30. O alargamento heurístico deste conceito foi proposto porLukacs, de modo a poder entender as raízes profundas do surgimento do nazi-fascismo. Cf. LUKÁCS,

Georg. El assalto a la razon. Barcelona; México: Grijalbo, 1968, particularmente no capítulo 1, p.29-74.Os primeiros autores a propor a categoria de “via prussina” para entender o processo de objetivação docapitalismo brasileiro foram Carlos Nelson Coutinho e José Chasin. Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. “Osignificado de Lima Barreto na literatura brasileira.” In. COUTINHO, et. al. Realismo e anti-realismo naliteratura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p.3 e  passim. CHASIN, José. O integralismo dePlínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio. São Paulo: Ciências Humanas,1978, p.618-652.376  Já que na transição do trabalho escravo para o trabalho livre este não se caracterizou peloassalariamento. Cf. MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 9ª edição revista e ampliada. SãoPaulo: Contexto: 2009. CARDOSO, Adalberto. “Escravidão e sociabilidade capitalista. Ensaio sobreinércia social.” Novos Estudos CEBRAP, n.80, São Paulo, p.71-88, 2008.

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compromisso entre as frações das classes dominantes, pacto este que uma parte

importante da literatura acadêmica caracterizou como “populista”.377 

Após assumir uma configuração claramente bonapartista entre 1937-1945, esse

 bloco histórico populista reorganizou-se em torno a um regime democrático-liberal, que,

também marcado por sucessivas crises, foi derrubado por um golpe de Estado articulado pelos setores mais internacionalizados do capitalismo brasileiro com a alta oficialidade

das Forças Armadas em 1964. O último capítulo deste regime foram os governos de

Jânio Quadros e João Goulart, envoltos em uma crise orgânica, quando esfacelaram-se

as condições para a manutenção daquela forma de dominação política, em razão das

contradições oriundas da nova etapa de objetivação do capitalismo brasileiro operada

 pelo nacional-desenvolvimentismo.

Das análises sobre a crise dos anos 1960, quase todas voltadas para investigação

das razões do golpe de 1964, acreditamos ser a de Dreifuss378 a mais consistente, tendosido um dos primeiros a caracterizar a situação a partir do conceito de crise orgânica.379 

Para o cientista político uruguaio, em meados dos anos cinquenta uma nova fração das

classes dominantes emerge no plano econômico brasileiro: o capital multinacional e

associado, que seria a base de um “novo bloco histórico”.380 Resultado da aceleração do

 processo de industrialização baseado da implantação do setor de produção de bens

duráveis, monopolizados e ligados ao capital estrangeiro, capitalistas nacionais e

estrangeiros formaram associações, ao mesmo tempo em que o Estado serviu-se do

endividamento externo para desenvolver a infra-estrutura necessária para a implantação

desse capital. Esse setor mais dinâmico do capitalismo brasileiro convive

tranquilamente com a forma institucional do regime de 1946, até que em fins dos anos

cinquenta começam a aparecer os sinais de uma crise mais profunda, com o descontrole

da espiral inflacionária. A eleição de Jânio Quadros, um outsider  no sistema partidário

 brasileiro, que renunciou poucos meses após sua posse, foi para Dreifuss a última

377 WEFFORT, O populismo na política brasileira, op. cit. IANNI, Otávio. O colapso do populismo no

 Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. ______. A formação do Estado populista na América Latina, op. cit.378 DREIFUSS, 1964, a conquista do Estado, op. cit.379  Idem, ibidem, p.144.380  Dreifuss utiliza a noção de “bloco histórico” tal como predominava no debate marxista do pós-IIGuerra, como sinônimo de aliança de classes. Todavia, essa não parece ser a leitura mais adequada parauma noção que no léxico dos Quaderni liga-se às relações estabelecidas nas formações sociais concretasentre base e superestrutura, entre economia e política (Estado ampliado), entre formas de produção,formas de regime político e modos de ser. Ver GRAMSCI, §10 e §23 do caderno 13, op. cit., p.26 e p.70.PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. BIANCHI,

 Laboratório de Gramsci, op. cit., p.136-138.

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oportunidade dessa fração de classe do capital multinacional e associado de dirigir a

 política de Estado dentro daquela forma democrática do regime. A partir deste ponto,

que coincide com o início do governo João Goulart, tal grupo passa a propugnar o golpe

de Estado como método para assenhorar-se do poder.

Para tanto, esses setores econômicos fundam o Instituto de Pesquisas e EstudosSociais (IPES) em fins de 1961, apresentado ao público em fevereiro de 1962 como um

inofensivo “centro de estudos”. Em conjunto com outras entidades conservadoras, como

o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), a Escola Superior de Guerra (ESG),

fortes articulações na imprensa e com grupos para-militares de extrema-direita – como o

Movimento Anti-Comunista (MAC) – o IPES promoveu uma campanha de

desestabilização do governo João Goulart, contribuindo decisivamente para sua

deposição. O mais importante, e que é um achado empírico do autor, é que o IPES

imporia o essencial de seu projeto de classe, anteriormente formulado, no aparelho deEstado a partir do golpe de 1964.381  Em suma, no IPES não se reuniram apenas

talentosos conspiradores, mas intelectuais orgânicos desse novo bloco histórico capazes

de elaborarem um projeto de classe que conquistou o aparelho de Estado com a

ditadura.

Todavia, essa ação de classe não operou no vazio, como se fosse um mero

reflexo do poder econômico emergente, mas sim numa situação histórica caracterizada

 por um “ataque bifrontal” ao regime populista: por um lado, pelas forças do capital

multinacional e associado; por outro, pelas classes subalternas em plena atividade no

campo e na cidade.382 É nesse sentido que, para Dreifuss, no início dos anos sessenta

tem-se uma crise orgânica:

“Tal crise se tornou orgânica quando os efeitos de mudanças econômico- produtoras que ocorriam com intensidade crescente a partir de meados dadécada de cinquenta foram traduzidos para a política por duas forçassócio-econômicas fundamentais, os interesses multinacional-associados eas classes trabalhadoras que passavam por um processo de intensa

 politização. Essas mudanças levaram a um confrontação ideológica e política das classes, tornando-se a crise da forma populista de domínio

em princípios da década de sessenta.”383 

381 Em seu último capítulo, Dreifuss discute a ocupação dos postos estratégicos do aparelho de Estado pelos intelectuais orgânicos do IPES, como Roberto Campos e o general Golbery. DREIFUSS, 1964, op.cit., p.417-479.382  Idem, ibidem, p.141. O termo “ataque bifrontal” é de João Quartim de Moraes. MORAES, J. Q.

 Dictatorship and armed struggle in Brazil. Londres: New Left Books, 1971, p.39-57 apud   DREIFUSS,1964, op. cit., p.157.383  Idem, ibidem, p.144.

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Se a análise dreifussiana considerou as mudanças operadas no mundo da produção, com

a entrada no país do capital multinacional e associado, a conquista do Estado pelo bloco

de poder ligado a este não constitui “um mero reflexo da supremacia econômica”, mas

“um resultado de uma luta política empreendida pela vanguarda destes novos

interesses”.384

 Outro analista de peso da crise dos anos sessenta é Jacob Gorender, para quem,

no início de 1964, esboçou-se no Brasil uma situação  pré-revolucionária, motivo pelo

qual caracteriza o golpe de Estado de 1964 como uma “contra-revolução preventiva”.385 

Para este autor, os primeiros anos da década de sessenta marcam o ponto alto das lutas

dos trabalhadores brasileiros no século XX, onde a luta de classes pôs em xeque a

estabilidade institucional burguesa, ameaçando a propriedade privada e a própria força

coercitiva do Estado, com as cisões na hierarquia militar. Nesse sentido, para Gorender,

o golpe preventivo fez-se necessário para a burguesia brasileira e para o imperialismo,que “tinham sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse”. 386  No mesmo

sentido se direcionam os entendimentos de Florestan Fernandes e Caio Navarro de

Toledo para o golpe, definido também como uma “contra-revolução preventiva” ao

movimento de ampliação da democracia.387  Outras abordagens acadêmicas, que

 partilham dos mais variados registros teóricos e dos mais variados campos do

conhecimento, também buscaram caracterizar a natureza da crise dos anos sessenta,

como são os trabalhos de Wanderley Guilherme dos Santos,388 Alfred Stepan,389 Otávio

Ianni,390  Hélio Jaguaribe,391  Fernando Henrique Cardoso,392  Moniz Bandeira,393 

Francisco de Oliveira394 etc.

384 Idem, ibidem, p. 482.385 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1999, p.60-76.386  Idem, ibidem, p.73.387  FERNANDES, Florestan. “Revolução ou Contra-Revolução?” In FERNADES, F.  Brasil: emcompasso de espera. São Paulo: HUCITEC. 1980, p. 113. TOLEDO, Caio Navarro. O governo Goulart eo golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 1983. ____. “1964: o golpe contra as reformas e a democracia.”

 Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.47, p.13-28, 2004.388 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira.

Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Editora UFMG; Iuperj, 2003.389 STEPAN, Alfred C. Os militares na política: mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro:Artenova, 1975.390 IANNI, O colapso do populismo no Brasil, op. cit.391 JAGUARIBE, Hélio. Brasil: crise e alternativas. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.392 CARDOSO, Fernando Henrique. “O modelo político brasileiro.” In. O modelo político brasileiro eoutros ensaios. 5ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993, p.50-82.393  BANDEIRA, O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil, op. cit. ______.  A renúncia de

 Jânio Quadros e a crise pré-64. São Paulo: Brasiliense, 1979.394  OLIVEIRA, Francisco de. “A economia brasileira: critica à razão dualista.” Estudos Cebrap, n.2,1972.

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Todavia, a já mencionada tendência revisionista que se esboçou na historiografia

nos anos 1990, começou a buscar entender o período do governo João Goulart e o golpe

ignorando que houvesse uma crise daquele regime. Um dos partidários desta posição, o

cientista político Antonio Lavareda, em seu livro  A democracia nas urnas apresenta a

ideia de que o sistema partidário brasileiro no início dos anos 1960 não estava em crise.Ao contrário, segundo o cientista político pernambucano

“o sistema em questão, na sua etapa final [os primeiros anos da década desessenta], ao contrário de encontrar-se experimentando o estertor dadesinstitucionalização, estaria em processo de implantação econsolidação, isto é cumprindo de modo cada vez mais efetivo o primeiro

 papel básico de qualquer sistema partidário democrático, que é o deimprimir organização e regularidade a parcelas significativas dasescolhas eleitorais. Em outras palavras, estruturar e canalizar a maior

 parte da participação político-eleitoral.”395 

 Na verdade, para este autor, o que caracterizaria todo o período da República de

1945-64 seria a “inexistência de conflitos de monta”, mesmo os “de classe”, hipótese

com a qual não podemos concordar de forma alguma. Segue abaixo o referido

raciocínio:

“Os partidos brasileiros da fase analisada [1945-1964] desenvolveram-seem um cenário caracterizado em larga medida pela grande simplicidadeda estrutura de clivagens efetivamente politizadas, se comparada, porexemplo, às que tiveram lugar na Europa.  Inexistiam na sociedadeconflitos de monta, quer religiosos, culturais, étnicos e sobretudo

territoriais, capazes, pelo seu impacto, de se transladarem para o sistema partidário.  Até mesmo as clivagens que têm lugar nas linhas divisóriasentre as classes sociais estiveram longe de constituírem em dimensão de

 peso sobre a qual se estruturasse o conflito político.”396 

É esse sistema político reificado, que tem lugar numa sociedade certamente muito

diferente da que concebemos, onde o conflito de classes não encontraria expressão

(mesmo que distorcida) no sistema político, que segundo Lavareda estaria em

“consolidação”. Do que só é possível concluir que o colapso daquela democracia foi

resultado puro e simples da falta de compromisso dos atores políticos relevantes emmanter aquele quadro institucional. Neste tipo de análise é abandonada qualquer

determinação do processo político em favor de uma interpretação em que o jogo político

se dá “no vazio”, na pura contingência.

395  LAVAREDA, Antonio.  A Democracia nas urnas. O processo partidário-eleitoral brasileiro. Rio deJaneiro: IUPERJ; Rio Fundo, 1991, p.97.396  Idem, ibidem, p.99, grifos nossos.

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Posição similar pode ser encontrada no trabalho já comentado de Argelina

Cheibub Figueiredo. Além das restrições enunciadas no primeiro capítulo desta tese, é

 preciso incorporar outros problemas ligados a dimensão aqui examinada. Pois em sua

narrativa, o processo político parece operar (ou opera) num vazio de determinações, e

não é por acaso que em trabalho apresentado em seminário sobre os 40 anos do golpe,Figueiredo incorporou explicitamente as proposições de Lavareda sobre a “marcha

acelerada para a consolidação” do sistema partidário, dando o “acabamento” de sua

“explicação” revisionista para o golpe.397 Deste modo, as lutas de classes, que para os

 partidários do materialismo histórico conformam o cerne das explicações da luta

 política, nestas proposições revisionistas, mal aparecem; e quando dão as caras, estão

“fora” do conflito político (que é praticamente reduzido à institucionalidade), numa

situação de forte atividade política de grandes segmentos da sociedade. Nesta démarche

revisionista, o estudo sobre a atuação do movimento sindical em uma greve geral nãoguarda grande interesse. A não ser como coadjuvante de um personagem outrora

chamado de populista (e recentemente como um animal político) como o presidente

Goulart, o movimento sindical mal pode ser considerado.

Passemos agora a apresentar nossa compreensão dos elementos constituintes do

cenário de crise no início dos anos sessenta.

3.1 Crise econômica

A aceleração da inflação e a perda de dinamismo na atividade econômica a partir

de 1962 tiveram uma forte influência sobre os humores políticos. As raízes do mal-estar

estavam nas contradições do próprio modelo de desenvolvimento econômico que

começou a ser constituído no país com a Instrução 113 da Superintendência de Moeda e

Crédito (SUMOC) em 1955, durante a curta gestão de Café Filho na Presidência da

República. 398 

A depressão econômica dos anos trinta teve como uma de suas características a

desorganização dos sistemas de poder internacional, que permitiram a implantação de

iniciativas de modernização industrial de países periféricos como o Brasil. O processo,

397 Cf. FIGUEIREDO, Argelina. “Estruturas e escolhas: era o golpe de 1964 inevitável?” In. 1964-2004,40 anos do golpe, op. cit., p.26-35. O curioso é que em seu trabalho anterior, a autora tenha cobrado

 justamente Dreifuss por não considerar “fatores extrínsecos, tais como a situação econômica do país e oconteúdo das políticas governamentais”, constituindo uma das maiores deturpações registradas naliteratura sobre o golpe de 1964. ________, Democracia ou reformas?, op. cit., p.173.398  Utilizo aqui a periodização proposta por Sônia Regina de Mendonça. MENDONÇA, Estado eeconomia no Brasil: opções de desenvolvimento, op. cit.

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descrito pela maior parte da literatura através do termo “substituição de importações”,

conferiu o desenho da etapa decisiva de objetivação do modo de produção capitalista. A

criação das indústrias do departamento I (bens de capital) a partir de uma intervenção

direta do Estado, permitiu uma certa modalidade de desenvolvimento capitalista

nacional baseada tanto na criação de empresas públicas, quanto no confisco cambial dosrecursos da agro-exportação canalizado para o setor industrial, beneficiado por taxas de

 juros especiais. No após II Guerra, em especial depois que os planos de reconstrução da

Europa frutificaram, foi iniciada uma importante fase de expansão da economia

capitalista mundial conhecida por nomes elogiosos como “os trinta anos gloriosos”, ou a

“Era de Ouro”, que duraria até o fim dos anos sessenta. E é na carona dessa forte

expansão do pós-guerra que se dará um dos momentos decisivos da objetivação do

capitalismo monopolista no Brasil.

Pelo menos até o fim da década de 1940, as atenções das grandes corporaçõescapitalistas estavam voltadas para o investimento nos seus próprios mercados nacionais

e, no caso dos EUA, no investimento na reconstrução européia através do Plano

Marshall. Entretanto, no início dos anos cinqüenta o panorama começou a mudar, e

iniciou-se um movimento de deslocamento de plantas industriais para territórios

 periféricos do capitalismo, como alguns países latino-americanos. O carro-chefe desse

movimento foi a indústria de bens duráveis, especialmente a automobilística e a que

 produzia a chamada linha-branca de eletrodomésticos, geladeira, fogão etc. O Brasil

apresentava-se como um território adequado a expansão desta forma de acumulação: já

contava com uma industrialização de bens correntes – especialmente têxtil e da

alimentação –, uma indústria de base em formação (Companhia Siderúrgica Nacional

(CSN) e a Companhia Vale do Rio Doce), além de um contingente cada vez maior de

sujeitos sociais “livres como pássaros” (na irônica expressão de Marx) para a

exploração capitalista, que migravam em massa das zonas rurais do Nordeste e das

cidades do interior de Minas para os centros urbanos do Sudeste.399  Todavia, eram

necessários ajustes institucionais para permitir sua emergência.

399 “O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os revolucionamentos que servem dealavanca à classe capitalista em formação; sobretudo, porém, todos os momentos em que grandes massashumanas são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado detrabalho como proletários livres como os pássaros. A expropriação da base fundiária do produtor rural, docamponês, forma a base de todo o processo. Sua história assume coloridos diferentes nos diferentes paísese percorre as várias fases em sequência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra,que, por isso, tomamos como exemplo, mostra-se em sua forma clássica.” MARX, O capital, Livro 1,volume II, op. cit., p.263, grifo nosso.

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E ele veio com a Instrução 113, que marcou o momento a partir do qual

começou a se implantar com vigor esse setor de ponta da acumulação capitalista no

Brasil. De acordo com a medida, era permitido às corporações multinacionais a

importação de equipamentos por um preço 45% abaixo das taxas oficiais e isenta da

cobertura cambial exigida como norma para a importação de maquinário. Um privilégioao capital estrangeiro, já que o benefício não foi estendido aos empresários brasileiros,

exceto àqueles que se associavam a estes capitais forâneos. É com base neste elemento

que se constitui uma das partes fundamentais do chamado tripé do modelo de

desenvolvimento industrial brasileiro: a do capital estrangeiro, que se forma no

investimento no setor de produção de bens duráveis, o Departamento III. Ao capital

nacional cabe a continuidade de seu predomínio nos chamados ramos tradicionais da

indústria, ligados à produção de bens de consumo popular (Departamento II), ficando ao

capital estatal o papel de investidor no ramo das indústrias de base (Departamento I),onde o tempo de rotação e o volume das inversões é maior, e por isso mesmo não

atraente para uma valorização a um prazo curto. A alta composição orgânica400  do

Departamento III impedia que pequenos capitalistas nacionais tivessem capacidade de

investimentos, e o estímulo oferecido pela legislação mencionada acima, atraindo o

capital estrangeiro e obrigando os capitais nacionais a se associarem, desembocou na

rápida monopolização do novo setor.401 

O aumento do peso do capital estrangeiro na economia brasileira teve como

corolário uma nova forma de dependência na economia brasileira, pois se “uma parcela

da mais valia extorquida internamente pelo capital estrangeiro [era] reinvestida, (...)

outra parcela [era] remetida para o exterior sob a forma de lucros, juros e

dividendos”.402 Tornado esse o eixo dinâmico da economia a partir de então, construiu-

se com base nele o modelo de desenvolvimento dependente-associado.403 

400  No processo de reprodução ampliada, o capital investido produtivamente é decomposto em duas partes: capital constante e capital variável. O primeiro refere-se ao capital investido em meios de produção e matérias primas; o segundo, no pagamento do valor da força de trabalho, nos salários. Quanto

maior for a parte alíquota do capital constante, maior é sua composição orgânica. Um empreendimentocom alta composição orgânica, significa um setor que só pode ser passível de investimentos a grandesmassas de capital.401  MORAES, Maria. “Considerações sobre a crise de 1964.” In. MANTEGA, G & MORAES, M.

 Acumulação monopolista e crises no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.27-28.402  Idem, ibidem, p.28.403  CARDOSO, Fernando Henrique & FALETTO, Enzo.  Desenvolvimento e dependência na América

 Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. Pensado este processo também em outros países da América Latina,estes dois autores assim definiram esta nova forma de dependência: “A vinculação das economias

 periféricas ao mercado internacional se dá, sob esse novo modelo, pelo estabelecimento de laços entre ocentro e a periferia que não se limitam apenas, como antes, ao sistema de importações-exportações; agora

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Isto não quer dizer que date daquela época a presença de investimentos

estrangeiros no país, que, ao contrário, desde cedo se fizeram presentes na economia

 brasileira, mas até então sua presença mais forte era nos setores comercial e bancário.

Em suma, antes da década de 1950 o capital estrangeiro já havia se estabelecido nos

ramos de serviço, extração e comércio agrícola; em menor medida, tinha realizadoinvestimentos industriais, como, por exemplo, na incipiente indústria de caminhões.

A partir deste período, porém, este capital passa a ser investido largamente no

setor produtivo, e o impulso decisivo deste processo se deu com o Plano de Metas do

governo Juscelino Kubitschek (1956-1961). Outro elemento importante diz respeito ao

fato de terem sido os capitais com sede na Europa (na conjuntura de emergência do

Mercado Comum Europeu), e do Japão os pioneiros nos investimentos naquela fase da

economia brasileira. A economia capitalista hegemônica, a norte-americana, só se faria

mais atuante após o golpe de Estado de 1964, mesmo que sua presença anterior não possa ser subestimada. Francisco de Oliveira esclarece que tal processo se deu porque o

 país capitalista hegemônico ainda estava preso à antiga divisão internacional do

trabalho, em que o Brasil aparecia apenas como exportador de commodities agrícolas.404 

O governo Kubitschek marca também uma modificação na forma de

financiamento do processo de industrialização brasileira, que no período anterior havia

sido feito com o mecanismo do confisco cambial (da agro-exportação, especialmente do

café), passando agora a recorrer, entre outras coisas, a recursos externos. A grande

liquidez do mercado internacional de capitais, advinda do próprio ciclo virtuoso de

crescimento, permitia que o Estado e os grandes capitalistas nacionais privados

obtivessem os recursos necessários. O outro instrumento fundamental era a inflação,

que na segunda metade dos anos cinqüenta oscilou acima dos 20%, com exceção de

1957 (que ficou em 7%), encostando nos 40% em 1959 e descendo à casa dos 30% em

1960, o que desaguava na formação de uma poupança forçada que penalizava os

assalariados. Na década seguinte, tal contradição acabaria constituindo um dos

elementos da crise do sistema de dominação.405 

Essa é uma das razões que explicam o fato de que a aceleração do processo de

acumulação capitalista se fez acompanhar também pelo aumento da taxa de exploração,

as ligações se dão também através de investimentos industriais diretos feitos pelas economias centrais nosnovos mercados nacionais.” Idem, p.125.404 OLIVEIRA, op. cit., p.76. Ver também o trabalho de BOITO JR., Armando. 1954: a burguesia contrao populismo. São Paulo: Brasiliense, 1980, em que o autor discute as tentativas frustradas de Vargas(1951-1954) em atrair investimentos estrangeiros à produção fabril do país até 1952.405 MEDONÇA, Estado e economia no Brasil, op. cit., p.55-57.

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contrabalançado pelo aumento global da taxa de emprego. Ao mesmo tempo ocorre o

 processo de expansão da mercantilização da renda das classes subalternas, que passam a

contar com cada vez mais bens industrializados em seu consumo, e a entrada mais forte

de mulheres no mercado de trabalho. Como é sabido, tais elementos contribuem para a

desvalorização do valor da força de trabalho, aumentando a taxa de exploração.406

 Nessemesmo sentido o historiador Murilo Leal Pereira Neto, com base em dados do DIEESE,

mostra que, enquanto em 1955 o salário mínimo foi reajustado 14,7% acima do custo de

vida, em 1959 essa relação caiu para 3,0%.407  Este mesmo historiador, estudioso do

caso de São Paulo, ainda aponta que durante o governo de Kubitschek a

superexploração da força de trabalho foi feita com base na diminuição dos

investimentos em itens de segurança para o trabalho, o que acabou dando ao Brasil o

“título macabro de campeão mundial de acidente do trabalho no pós-guerra”.408 

Sendo assim, não passa de uma imagem invertida a ideia muito cultuada nainterpretação liberal (que logo comentaremos) de que a política desenvolvimentista de

JK era “irresponsavelmente distributivista”. Entretanto a aceleração da acumulação

capitalista também aumentou a massa salarial, e num momento decisivo do processo de

migração de grandes levas populacionais das áreas rurais para os centros urbanos,

absorveu parte desse contingente. Foi deste padrão de desenvolvimento econômico que

se engendrou a dimensão econômica da crise na década seguinte.

Os dados do crescimento da economia brasileira no quinquênio JK, dos “50 anos

em 5”, são indicadores da aceleração do processo de acumulação capitalista neste

 período. Segundo Sonia Mendonça, o crescimento verificado superaria mesmo os

objetivos traçados no Plano de Metas:

“Enquanto se previra a construção de 10 mil km de novas rodovias, elasestenderam-se por mais de 20 mil km. Enquanto a potência hidrelétricaem 1955 era de 3 milhões de kw, em 1961 a capacidade instalada atingia4,75 milhões de kw. Muito mais expressiva foi a rapidez do crescimentoda produção petrolífera, que saltou dos 2 milhões de barris/ano em 1955,

 para 30 milhões em 1960. Também no setor de bens de produção houve

406 Segundo Francisco de Oliveira, no período de 1945-1964 “podem-se perceber claramente três fases nocomportamento do salário mínimo real: a primeira, entre os anos 1944 e 1951, reduz pela metade o poderaquisitivo do salário; a segunda, entre os anos de 1952 e 1957, mostra recuperações e declíniosalternando-se na medida do poder político dos trabalhadores: é a fase do segundo Governo Vargas, que se

 prolonga até o primeiro ano do Governo Kubitschek; a terceira, iniciando-se no ano de 1958, é marcada pela deterioração do salário mínimo real, numa tendência que se agrava pós-1964, com apenas um ano dereação, em 1961, que coincide com o início do Governo Goulart” OLIVEIRA, op. cit., p.78.407  PEREIRA NETO, M. L. “A fábrica, o sindicato, o bairro e a política: a “reinvenção” da classetrabalhadora de São Paulo (1951-1964).  Revista Mundos do Trabalho, vol.1, n.1, p.225-257, janeiro-

 junho de 2009, p.227.408  Idem, ibidem, p.231.

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ganhos notáveis, em particular na siderurgia, cuja produção passou de1,15 milhão de toneladas de aço (1955) para 2,5 milhões em 1960.”409 

Após notável euforia desenvolvimentista, no início dos anos sessenta começam a

aparecer os sinais da perda de dinamismo na economia brasileira, sendo o aumento

descontrolado da taxa de inflação uma das formas em que esse processo se manifestou.

Enquanto as taxas do crescimento do PIB no período anterior conheceram índices de 8 a

11%, em 1962 essa taxa já foi de 6,6%, nada comparada ao sintomático 0,6% de 1963 e

ao um pouco maior, mas mesmo assim pífio 3,4% em 1964, se comparado, é claro, às

taxas anteriores.410  Mas o fenômeno mais visível das dificuldades da economia

 brasileira era certamente a espiral inflacionária, que no início dos anos sessenta

conheceu claro descontrole. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, a taxa anual de

inflação nesse mesmo período seria de 51,3% em 1962, 81,3% em 1963, e 91,1% em

1964, manifestação contundente da crise por que passava a economia do país no

contexto do governo de João Goulart e do início da ditadura militar.411 

Ao contrário do que tentam fazer crer as interpretações liberais da crise, segundo

as quais as dificuldades da economia brasileira seriam explicadas pelo já comentado

“populismo redistributivista” supostamente praticado por JK (e continuado sob Jango),

 já vimos que tal modelo não tinha nada de redistributivo.412  Descartando-se tal

 perspectiva notadamente mistificadora, existem pelo menos duas visões sobre a crise

econômica que se estende de 1962 até 1967.

Em primeiro lugar, como uma crise de realização  (subconsumo), baseada na

incapacidade do mercado absorver a produção ligada ao Departamento III, como

aparecem nos trabalhos de Maria da Conceição Tavares, Celso Furtado e demais autores

constituintes daquilo que se denomina “pensamento estruturalista latino-americano”.413 

409 MENDONÇA, Estado e economia no Brasil, op. cit., p.63.410  BUCARESKY, André. Dependência e o balanço de pagamentos no Brasil: um estudo sobre a açãodo capital estrangeiro na extração do excedente econômico e na reprodução da dependência. Dissertaçãode mestrado em Economia, Niterói, UFF, 2005, p.123-124.411 Dados retirados da revista Conjuntura Econômica (Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas), apud  MARTINS, Luiza Mara Braga. “O populismo, a crise do modelo exportador da economia e a liberdadesindical (1960-1964). In LOBO, Eulália Maria Lahmeyer (coord.).  Rio de Janeiro operário: natureza doEstado, conjuntura econômica, condições de vida e consciência de classe. Rio de Janeiro: Access Editora,1992, p.308-392, p.371.412 Esse tipo de hipótese liberal está presente em ABREU, Marcelo de Paiva. “Inflação, estagnação eruptura, 1961-1964.” PAIVA, Marcelo Abreu (org.).  A ordem do progresso: cem anos de políticaeconômica republicana. 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus, 1990.413 Ver, por exemplo, TAVARES, Maria da Conceição.  Da substituição de importações ao capitalismo

 financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

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Esses autores trabalham com a ideia de que no início dos anos sessenta o Brasil vivia o

“esgotamento do processo de substituição de importações”. Um corolário dessa visão da

crise ligava-se às proposições políticas no sentido da “criação de novas classes médias”

capazes de absorver a produção dos bens de consumo duráveis, e é nesse sentido que

tais autores estiveram ligados politicamente às proposições em favor de reformasestruturais que visariam a ampliação do mercado interno – notadamente a reforma

agrária –, medidas capazes de destravar os gargalos que impediam a realização interna

do processo de “substituição de importações”. Como se vê, em tal abordagem não há

qualquer consideração das contradições do modelo de desenvolvimento econômico

vigente, sendo seu ponto de vista ligado àqueles que – como é o caso notório de Furtado

 –, estavam empenhados em salvar o “desenvolvimentismo”.

Diversamente, num registro teórico distinto, Francisco de Oliveira e Maria

Moraes procurariam entender a crise dos anos sessenta como desdobramento dascontradições do modelo econômico vigente. Numa crítica mais geral ao arcabouço

dualista da abordagem estruturalista, Francisco de Oliveira observou pertinentemente

que o tal modelo interpretativo calcado na noção de “substituição de importações”

desconsiderava que “a industrialização se dá visando, em primeiro lugar, atender às

necessidades da acumulação, e não as do consumo”; e nesse sentido o processo do que

se chamou de substituição de importações “é apenas a forma dada pela crise cambial”

ao processo de industrialização.414 Outro problema, apontado por Maria Moraes, ligava-

se ao fato de que “o processo de produzir internamente bens até então importados

est[ava] longe de ter se esgotado”,415  e portanto a ideia de fim da “etapa fácil” do

 processo de substituição de importações não era capaz de explicar a crise vivida pela

economia brasileira no início dos anos sessenta. São justamente estes dois autores que

em nossa opinião apresentam as melhores hipóteses para a compreensão daquela crise,

ainda que entre eles existam importantes diferenças, como veremos a seguir.

Francisco de Oliveira rejeita a ideia de que aquela foi uma crise clássica de

realização (de subconsumo). Observa que

“o consumo de bens produzidos principalmente pelos novos ramosindustriais, bens duráveis de consumo (automóveis, eletrodomésticos emgeral), era assegurado pelo mesmo caráter concentracionista, que se gestaa partir da redefinição das relações trabalho-capital e pela criação, comorequerimentos da matriz técnica-institucional da produção, das novas

414 OLIVEIRA, op. cit., p.50-51.415 MORAES, op. cit., p.22.

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ocupações, típicas da classe média, que vão ser necessárias para a novaestrutura produtiva.”416 

 No entanto, o mesmo autor verifica uma crise de realização nos ramos industriais

tradicionais (Departamento II), cujo mercado consumidor era formado

fundamentalmente pelas classes trabalhadoras, onde o salário assistia a uma intensa

desvalorização decorrente da escalada inflacionária. Partindo da constatação de que a

marca geral do período – e que se aprofunda no período ditatorial – é o aumento da taxa

de exploração, Francisco de Oliveira assim caracteriza a crise:

“A crise que se gesta, repita-se, vai se dar no nível das relações de produção da base urbano-industrial, tendo como causa a assimetria dadistribuição dos ganhos da produtividade e da expansão do sistema. Eladecorre da elevação à condição de contradição política principal  daassimetria assinalada: serão as massas trabalhadoras urbanas que

denunciarão  o pacto populista, já que, sob ele, não somente não participavam dos ganhos como viam deteriorar-se o próprio nível da participação na renda nacional que já haviam alcançado.”417 

É assim, de certo modo  política uma das razões para a crise que se gesta na economia

 brasileira nos idos dos anos de 1960, com o rompimento político dos trabalhadores com

o pacto populista.

“A luta reivindicatória unifica as classes trabalhadoras, ampliando-as: aosoperários e outros empregados, somam-se os funcionários públicos e ostrabalhadores rurais de áreas agrícolas críticas. Tal situação alinha em

 polos opostos, pela primeira vez desde muito tempo, os contendores atéentão mesclados num pacto de classe. A luta que se desencadeia e que passa ao primeiro plano político se dá no coração das relações de produção. Pensar que, nessas condições, poder-se-iam manter oshorizontes do cálculo econômico, as projeções de investimentos e acapacidade do Estado de atuar mediando o conflito e mantendo o climainstitucional estável, é voltar ao economicismo: a inversão cai não

 porque não pudesse realizar-se economicamente, mas sim porque não poderia realizar-se institucionalmente.”418 

Embora o autor apresente uma série de elementos reais da crise, nos parece demasiado

extravagante reduzir a crise econômica à impossibilidade institucional de realização denovos investimentos. E nesse sentido nos parece adequada na caracterização daquela

416 OLIVEIRA, op. cit., p.87. Em outro momento, retoma a mesma crítica: “(...) não havia a crise derealização porque o próprio modelo concentracionista havia criado seu mercado, adequado, em termos dedistribuição da renda, à realização da produção dos ramos industriais mais novos.”  Idem, ibidem, p.92,nota.417  Idem, ibidem, p.88. Grifos do autor.418  Idem, ibidem, p.91-92, grifos do autor.

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como uma crise de superacumulação, ligada ao ciclo do capitalismo monopolista

implantado no país. É assim que entende Maria Moraes,

“Uma situação como a que viemos de descrever corresponde a uma crisede superacumulação de capital, entendida como a impossibilidade, para oconjunto do capital social, de valorizar-se a taxas que não fossem

decrescentes ou, mesmo, de valorizar-se.”419

 

Ainda de acordo com Moraes, já em 1962 é possível observar uma sensível

diminuição da taxa de inversões privadas, levando a que, no ano seguinte, a taxa de

crescimento industrial fosse negativa (- 1,7%). A autora afirma que, já em 1962, uma

 parte importante do capital social total não se valorizou, escapando da reprodução

ampliada. Inúmeros elementos indicam a modalidade da crise. Em primeiro lugar, no

início dos anos de 1960 a economia brasileira vivia uma fase descendente do ciclo

industrial, com um declínio considerável da taxa de crescimento da produção, o que emsi já abria uma possibilidade de crise. Para compreender como esta possibilidade se

tornou efetiva, a autora centra a análise em dois elementos principais: o papel

econômico do Estado e a situação política do país. Além da importância do setor

 produtivo estatal, o Estado era também importante em outras esferas fundamentais da

atividade econômica, como o financiamento público da produção, através dos bancos

estatais (BNDE, etc.), no controle da entrada do capital estrangeiro no país e na fixação

do preço da força de trabalho. Isto dava ao Estado um papel fundamental na economia

do país, e, não por acaso, os investimentos realizados por este até 1962 haviam evitadouma queda geral no nível das atividades produtivas. Uma série de fatores, como o

déficit crescente na balança comercial e a pesada dívida externa, levou a que o Estado

tivesse perdido a capacidade de investir e manter estes níveis produtivos já em 1963,

quando a crise se agrava.

Moraes também encontra certa dose de exagero na formulação de Oliveira sobre

a luta política do movimento de massas ter se chocado com as relações de produção

vigentes, fazendo uma sugestiva comparação com a situação do Chile sob o governo da

Unidade Popular (1970-1973).420  No caso chileno, inegavelmente a luta de classes

419  Idem, ibidem, p.44.420 “Indiscutivelmente o acirramento da luta política constitui o principal obstáculo para a continuidade dareprodução capitalista. Basta lembrar como a instabilidade das ‘condições institucionais’ pesoudecisivamente no ritmo da acumulação, no caso do Chile, sob a Unidade Popular (quando, apesar dasaltas taxas de lucro em muitos setores, os capitalistas não investiam). Sem embargo, é preciso levar emconta a situação concreta da sociedade e da economia brasileira no período em estudo. Por um lado, nos

 parece equivocado considerar que o movimento popular, naquilo que tinha de mais significativo enumericamente mais expressivo, estivesse colocando em questão as relações de produção existentes. Da

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 precisamente nesse sentido que o golpe e a instalação de uma ditadura se imporiam

como necessidade.

Voltando às razões da crise econômica, outro dado importante apontado por

Maria Moraes diz respeito à crise do setor agrícola, lembrando que este ainda era o setor

mais importante na geração de divisas e na fixação do valor da força de trabalho, já que produzia os gêneros alimentícios da cesta básica dos trabalhadores. A autora apresenta

os seguintes dados:

“Do ponto de vista do desempenho global do setor agrícola temos que, no período 1950/1970, enquanto a taxa média anual de crescimento do produto industrial atingiu 8,9%, o produto agrícola crescia à taxasmedíocres de 4,4%. E, particularmente nos anos da crise (1963 e 1964), o

 produto agrícola cresce em 1,0% e 1,3%, isto é, a taxas inferiores aocrescimento demográfico.”421 

Assim, este desempenho do setor acarretou: 1) um aumento no custo de reprodução daforça de trabalho; 2) aumento nos preços de insumos industriais de origem agrícola; 3) o

 bloqueio à captação de divisas para contrabalançar a tendência ao déficit da balança

comercial. Conclui a autora que a crise é resultado de uma unidade de determinações

econômicas e políticas.

Todavia, um elemento da crise que escapou da avaliação dos dois autores, e que

é lembrado por Moniz Bandeira422  – que trabalha com a mesma avaliação da

monopolização da economia brasileira –, é a Instrução 204 da SUMOC decretada pelo

governo de Jânio Quadros, que teve um sentido recessivo e de atendimento aos

interesses do capital financeiro internacional. Tratou-se de uma política ortodoxa de

combate à inflação, com base na “compressão dos salários, contenção do crédito e

outras medidas, que sacrificariam os trabalhadores, as classes médias e os setores mais

débeis do empresariado”. Certamente, em que pese o curto período de Jânio no poder, a

 política se liga por afinidade a outros pacotes recessivos, como o Plano Trienal e o

Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) do primeiro governo ditatorial, 423 mas

também à gestão de Lucas Lopes na pasta da Fazenda de Kubitschek (1959), quando

tentou levar a fundo uma política monetarista, o que teria provocado um conflito

governamental que resultou no rompimento do país com o Fundo Monetário

421  Idem, ibidem, p.46.422 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil (1961-1964) .7ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: Ed.UNB, 2001, p.44.423 Francisco de Oliveira fala de uma semelhança formal entre o Plano Trienal e o PAEG. OLIVEIRA,Crítica à razão dualista, op. cit., p.93.

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Internacional (FMI), em junho de 1959. Pelo peso que o capital internacional possuía na

economia brasileira, tal agenda demonstrava a tendência do FMI a pressionar no sentido

de uma política que ampliasse tanto a recessão, quanto o poder interno do capital

multinacional e associado. Nesse sentido, tal política econômica esteve ligada também à

quebra de dinamismo da acumulação brasileira, no momento em que o país conheceria asua primeira longa recessão do desenvolvimentismo, entre os anos de 1962 e 1967.

3.2 Os determinantes políticos da crise orgânica

 Na conformação do regime liberal de 1946 já anotamos de passagem as

continuidades sintomáticas dos arranjos instituídos ainda sob a ditadura do Estado Novo

 para a regulação das relações trabalhistas. Além disso, também já foi comentada outra

continuidade importante, que diz respeito à manutenção do pacto proprietário

“prussiano” sancionado pelo Estado após 1930, o qual, face à modernização industrial-

 burguesa, manteve intacta a estrutura agrária do país. Todavia, ao contrário do que quis

crer a interpretação dualista, esse “arcaísmo” no campo não constituiu um “entrave” ao

desenvolvimento industrial, estando, ao contrário, fortemente integrado ao modo de

objetivação do capitalismo industrial brasileiro.424  Assim, a ampliação seletiva das

 bases sociais do Estado na Era Vargas, em que pese a incorporação truncada do

 proletariado urbano industrial ao mundo dos direitos sociais, excluiu os subalternos

rurais, assim como vedou os direitos políticos aos subalternos urbanos e rurais durante

longo período. Desse modo, após a ditadura do Estado Novo, embora tenha sido

incorporada a oposição liberal ao sistema político e ampliado o corpo eleitoral em

 proporções inéditas, importantes restrições à vida democrática conformaram o novo

regime que viveu à sombra de constantes crises no período de 1945-1964.

Parafraseando um dizer virtuoso de Caio Navarro de Toledo sobre o governo

Goulart, a partir de uma observação do processo político durante a República de 1946

acreditamos ser possível afirmar que aquele regime democrático nasceu, conviveu e

morreu sob o signo do golpe de Estado.425 O apelo ao golpe esteve como um espectro

assombrando o processo político, especialmente por parte do principal partido

oposicionista da direita, que combinou desde seu nascedouro liberalismo e golpismo.

Estamos naturalmente fazendo referência às práticas da União Democrática Nacional

424 OLIVEIRA, Crítica à razão dualista, op. cit.425 A afirmação sobre a sorte do governo João Goulart está em TOLEDO, O governo Goulart e o golpe de1964, op. cit., p.7.

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(UDN), partido político que, sempre frustrado em chegar ao poder Executivo nacional

através do processo eleitoral, regularmente lançou mão de conspirações golpistas ao

lado de parcela da oficialidade militar. Nunca é demais lembrar o batismo de fogo do

 partido, com sua posição assumida na conspiração com a cúpula das Forças Armadas

que levou à deposição de Vargas em 29 de outubro de 1945. E o que dizer daconspiração que acabou resultando no dramático suicídio de Vargas em 25 de agosto de

1954, quando seus próprios ministros militares retiraram-lhe o apoio e o aconselharam a

renunciar? Com o contra-golpe do general Lott para garantir a posse de Kubitschek se

evitou o triunfo de uma nova conspiração golpista dos liberais, quando novamente a

UDN lançou mão de sua plêiade de “constitucionalistas” para defender que a eleição do

candidato do PSD era “ilegal” porque o mesmo não havia conseguido uma “maioria

absoluta” de eleitores e, pior, havia sido apoiado pelo ilegal PCB.

A ilegalidade do PCB, proscrito desde maio de 1947, encerrando dois anos dereconhecimento pelo sistema político-eleitoral, é uma das características mais relevantes

das restrições daquele regime democrático. Alijados do processo eleitoral, tendo seus

quadros que recorrer a outras legendas para disputar cargos eletivos – primeiro no

 pequeno Partido Social Trabalhista (PST), e posteriormente no também pequeno Partido

Socialista Brasileiro (PSB), além do próprio PTB –, os comunistas continuaram a

exercer uma importante influência no processo político também através do movimento

sindical, exceto no breve período entre a cassação de seu registro e a perseguição de

seus líderes sindicais durante o governo Dutra, quando a própria mobilização operária

foi silenciada. Esse peso no operariado dava ao PCB elementos para que, mesmo frente

a sua situação jurídica, fosse considerado – seja como aliado potencial, seja como

inimigo que deveria ser definitivamente extirpado da vida nacional – relevante também

no sistema político. No início dos anos sessenta, a sua crescente influência nas entidades

sindicais oficiais e “paralelas”, entre trabalhadores rurais, estudantes e entre a

intelectualidade, além de suas representações parlamentares, especialmente durante o

 próprio governo Goulart, provocou alarde dentre a direita política, que passou a

denunciar com regularidade a “infiltração comunista”.

Certamente é preciso não superestimar o peso dos comunistas na crise daquela

República no início dos anos sessenta, estando o PCB muito longe de ter condições de

encampar o poder, como quis crer a propaganda anti-comunista “infiltrada” nos

aparelhos privados de hegemonia e no próprio aparelho de Estado. Mas é necessário não

desconsiderar seu papel naqueles acontecimentos como uma das forças decisivas do

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 jogo político, muito superior a toda a sorte de pequenas legendas que compunham, ao

lado do PTB, PSD, PSP e a UDN, o sistema partidário. O que é importante considerar é

que, após o suicídio de Vargas, foi sentida uma reorientação política no Partido

Comunista, que se expressou imediatamente no apoio à candidatura Kubitschek em

1955, desdobrando-se programaticamente na chamada Declaração de Março de 1958 eno seu V Congresso, em 1960. O sentido dessa reorientação esteve ligado também às

mudanças ocorridas no movimento comunista internacional após o Relatório Kruchev

(1956), com as famosas denúncias ao culto à personalidade de Stálin, serviu de pretexto

 para que os PCs seguissem uma orientação notoriamente reformista, expressa em

resoluções nas quais, como no caso brasileiro, mesmo frente a sua proscrição do jogo

 partidário-eleitoral, fosse propugnado um “caminho pacífico” para a “Revolução”.

Já a estratégia socialista proposta pelo PCB continuou a ser pensada dentro dos

cânones da ortodoxia erigida desde o stalinizado VI Congresso da InternacionalComunista (1928), onde se previa uma primeira etapa democrática de “libertação

nacional”. Nesta, o papel central seria atribuído a um bloco de forças que incluía uma

suposta burguesia nacional, a pequena-burguesia e o campesinato, liderados pelo

 proletariado através do PCB. De acordo com essa tese, só depois de terem se

desenvolvido as forças produtivas capitalistas, estariam dadas as condições para uma

segunda etapa da revolução, que seria de caráter socialista. No início dos anos

cinquenta, mesmo quando encampou posições esquerdistas (como fundar sindicatos

 paralelos e propor a derrubada do segundo governo Vargas pela via da insurreição

armada), o PCB não abriu mão de tal visão da revolução em duas etapas, e em 1958

esse dogma foi combinado ao reconhecimento de que o capitalismo brasileiro estava a

desenvolver-se, à proposta reformista de um “governo nacionalista e democrático”,

capaz de pôr em marcha profundas reformas sociais que abolissem os “restos de

feudalismo” no campo, e rompessem com o imperialismo norte-americano. É com esse

 programa que o PCB irá viver os turbulentos anos 1960.

Em relação ao Partido Social Democrático (PSD), fundado ainda sob o Estado

 Novo, em 1944, abrigou, como se sabe, os interventores estaduais, burocratas do

governo e grandes proprietários rurais que controlavam a política nos grotões.

Originalmente se pensou que pudesse também incorporar os pelegos sindicais e os

 burocratas da máquina do Ministério do Trabalho, mas esta “aliança” acabou bloqueada

 pelo espírito das elites que acabaram por dar a forma final ao PSD, e àqueles não restou

outra alternativa senão fundar o PTB. Em relação ao peso eleitoral, o PSD foi a maior

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agremiação do sistema partidário durante todo o regime, tendo feito os únicos dois

 presidentes que conseguiram concluir os seus mandatos: Dutra e JK. Em razão de sua

 base social majoritária, notadamente os proprietários rurais, o PSD exerceu ao longo do

 período um poder de bloqueio às iniciativas reformistas que eventualmente apareceram

na cena política. E ao contrário de constituir-se em um “esteio de estabilidade”, pelomenos em dois episódios esse anti-reformismo se expressou no rompimento do partido

com o governo – Vargas em meados de 1954, e em relação a Goulart, praticamente

desde o início de seu governo (salvo alguns quadros marginais, incapazes de atrai-lo

 para a aliança com o PTB) –, jogando uma cartada decisiva na crise daqueles governos.

O chamado “aliado tradicional” do PSD, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)

disputou com os comunistas a influência no movimento operário, e ao contrário do que

quer nos fazer crer a recente apologética revisionista, o objetivo da organização da

legenda criada por Vargas foi sim o de contrabalançar a influência dos comunistas entreos trabalhadores. Não foi por acaso que partiu de um dos seus deputados o pedido de

cassação do registro do PCB em 1947. Conforme alegou o deputado Barreto Pinto

(PTB-DF), um dos autores da denúncia no Tribunal Superior Eleitoral, o PCB era “um

 partido cujo comando estava numa nação estrangeira”, a URSS.426  Todavia, não

obstante a iniciativa ter saído de suas hostes, na ocasião a maior parte da bancada do

PTB votou contra a cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas, enquanto o

PSD votou maciçamente a favor da medida, e a UDN ficou dividida ao meio. Os

elementos mais progressistas do PTB conformariam alianças com os comunistas no

 plano político/sindical, colaboração que se intensificou após o suicídio de Vargas, como

vimos. Ao lado de ex-integralistas, como San Tiago Dantas, os quadros dirigentes do

PTB foram também homens do convívio pessoal de seu dirigente máximo, como foi o

caso do presidente nacional da legenda desde 1952, João Goulart, amigo pessoal de

Vargas nas estâncias da sua terra natal, São Borja (RS). Inegavelmente, a ascensão de

Goulart ao Ministério do Trabalho em 1953 significou uma guinada na história da

 própria agremiação que, no plano sindical, passou a colaborar e se identificar

ideologicamente com a esquerda. No período posterior, a formulação do programa das

reformas de base – muito similar a plataforma defendida pela comunistas – definiu um

caráter de centro-esquerda à legenda.

426  O segundo autor da denúncia no TSE foi o advogado Himalaia Virgulino, um ex-procurador doTribunal de Segurança Nacional. Sobre Barreto Pinto, que havia sido eleito para o posto com apenas 400votos, e cassado posteriormente por quebra de decoro.

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 Nesse plano ideológico, o PTB era um amálgama da doutrina social cristã, com

esparsas referências ao trabalhismo britânico, propostas de cunho estatistas e, é preciso

não esquecer, boa dose de pragmatismo eleitoral.427 A partir da Carta Testamento de

Getúlio, tomada a partir de então como documento programático, cujo teor nacionalista

é inegável, incluíram-se em sua trajetória as propostas para realização de reformasestruturais no país. Essa evolução política do “varguismo sem Vargas” acabou por

encontrar forte afinidade com o teor reformista da nova orientação do PCB, criando as

condições para a aliança que, já efetivada no plano sindical, passou às suas direções

 políticas.

Como sempre houve uma ala mais conservadora e fisiológica no PTB, os grupos

mais ideologicamente identificados com a esquerda conformaram no plano institucional

frentes parlamentares no Congresso, atuando ao lado do pequeno PSB (e de alas

minoritárias do PSD e da própria UDN), como o chamado “Grupo Compacto”, quedurante o governo Goulart era liderado pelo deputado federal pelo Amazonas, Almino

Afonso. Desta atuação comum nos anos JK, os setores de esquerda do PTB

conformariam a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN),428 liderada durante o governo

Jango por Sérgio Magalhães (1916-1991), deputado federal pela Guanabara e autor da

Lei sobre a limitação das remessas de lucros ao exterior.

Por outro lado, a centralização do comando da legenda nas mãos de Goulart

desde 1952, embora tivesse significado a consolidação do PTB como um partido

reformista com um sinal ideológico para a esquerda, foi responsável por diversas cisões,

entre as mais significativas aquela liderada pelo também gaúcho Fernando Ferrari, que

acabou por fundar o Movimento Renovador Trabalhista (MRT), em nenhum sentido

uma ruptura à esquerda com o PTB. Outro caso emblemático foi o do ex-ministro do

Trabalho de Vargas, Segadas Viana,429 um dos organizadores do PTB nos estertores do

Estado Novo e que, posteriormente, mesmo estando formalmente ainda no partido,

427  Um exemplo emblemático pode ser visto na participação do partido Integralista, o Partido da

Representação Popular (PRP), no governo estadual de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul (1959-1963),sendo este um personagem notoriamente considerado de esquerda. Sobre as relações entre PRP e o PTBgaúcho desde o início dos anos cinquenta e depois na eleição de Brizola ao Governo gaúcho, ver CALIL,Gilberto. Integralismo e Hegemonia Burguesa: a intervenção do PRP na política brasileira (1945-1965).Cascavel: Ed.Unioeste, 2010, p.115-121 e 215-219.428  Fundada em 1956, a FPN organizava a esquerda nacionalista no Congresso e editava o jornal OSemanário. Cf. BRASIL, Rafael do Nascimento Souza. Um jornal que vale por um partido – OSemanário  (1956-1964). Dissertação de mestrado em História. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, 2010.429  Não confundir com o homônimo general Segadas Viana, que foi Ministro da Guerra do primeirogabinete parlamentarista chefiado por Tancredo Neves (setembro de 1961 – junho de 1962).

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assumiu postos na administração do mais virulento inimigo do governo João Goulart, o

governador Carlos Lacerda na Guanabara. Assim, à medida que se aprofundava a crise

explicitada no início dos anos sessenta, enquanto se afirmava como agremiação de

esquerda e conhecia também um significativo crescimento eleitoral, aumentaram essas

deserções à direita no PTB. Apesar das defecções, no contexto do golpe que depôsGoulart em 1964 (e, de resto, o próprio regime democrático restrito), ainda existiam

importantes elementos fisiológicos no PTB.

Essas e outras contradições do PTB eram elementos que acabaram se

explicitando na crise dos anos sessenta e, frente à polarização que se estabeleceu, o setor

mais ideologicamente afinado com a plataforma nacionalista lançou mão da formação

da FPN para superar sua fragmentação partidária. Enquanto isso, a direita liberal afinada

com o golpismo da UDN conformou, também nos anos JK, a Ação Democrática

Parlamentar (ADP), que durante o governo Goulart foi a caixa de ressonância daquiloque René Dreifuss denominou de complexo IPES/IBAD. Ainda de acordo com este

autor, a formação destas frentes, que agrupavam de uma forma mais ou menos coerente

as incoerências internas dos grandes partidos (PSD, UDN e PTB), foi uma expressão da

 própria crise orgânica que veio à superfície nos idos dos anos sessenta. O cientista

 político uruguaio também incorpora como elemento mais relevante de manifestação

desta crise orgânica a própria eleição de Jânio Quadros, candidato apoiado pela UDN,

sendo ele próprio na verdade um outsider  no sistema partidário.

Todavia, em Jânio a UDN viu a sua chance de finalmente chegar ao poder

através do processo eleitoral, sem ter de recorrer ao golpe. Mas além dessa evidência do

esgotamento do sistema partidário que foi a candidatura e a eleição de Jânio, o próprio

 processo eleitoral que o consagrou também evidenciou a crise. Em primeiro lugar, no

final do seu mandato, Juscelino Kubitschek buscou articular uma candidatura de “união

nacional”, em tese apoiada pelos três grandes partidos, PSD, PTB e UDN, e que seria

encabeçada pelo governador baiano, o udenista Juracy Magalhães. Segundo essa curiosa

 proposta, a chapa teria como vice o próprio João Goulart, que chegou a aventar a

hipótese de apoiar tal frente.430  Além do que, foi nesse período que se explicitou a

dissidência de Fernando Ferrari, que também se lançou como postulante à Presidência

da República. Por fim, a candidatura afinal lançada pela aliança PSD-PTB, a do

Marechal Lott, tendo como vice o próprio Jango, foi alvo de “fogo amigo” que, em

430 Cf. FERREIRA, João Goulart , op. cit., p.205-206.

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razão do imbatível favoritismo de Jânio Quadros, constituiu a informal frente em apoio

a esse para presidente e Goulart como vice, iniciativa eleitoral que ficou conhecida

como “Jan-Jan”. Como é muito conhecido, tal situação era permitida pela legislação

eleitoral que estabelecia a desvinculação dos votos para o poder Executivo e esteve na

 base das contradições do regime em suas etapas finais. No plano ideológico, o nacionalismo que se expandiu nos anos cinquenta e

conformou o centro da linguagem política naquele contexto, explica muito dos

elementos que se explicitariam na crise política na década seguinte. Afinal, como

discutem diversos autores, esse nacionalismo, que no plano das disputas pelo poder se

expressou na aliança PSD-PTB e que deu sustentação ao governo JK, apresentava a

realidade de forma invertida. Afinal, em plena internacionalização-monopolista da

economia brasileira patrocinada, a retórica governamental e de seus aparelhos privados

de hegemonia (como o ISEB), buscou apresentar a aceleração do processo deindustrialização como uma “luta nacionalista”. Por sua vez, a “visão de mundo” do PCB

e sua proposição de um “governo nacionalista e democrático”, no que denunciavam a

“ala entreguista do governo” JK, operava no interior dessa mesma ideologia quando

afirmava existir um outro setor “patriótico”, o que certamente desorganizava, pelo

menos no plano ideológico, a sua base social operária e popular.

Porque, se é certo que no interior do governo Kubitschek existiram alas mais

 pró-imperialistas,431 com o desenvolvimento de um novo bloco histórico resultante do

também novo modelo de desenvolvimento econômico, as bases materiais do

“nacionalismo” já estavam sendo superadas; no dizer de Francisco Weffort, o modelo

de desenvolvimento capitalista nacional construído por Vargas já constituía um

“anacronismo histórico”432. Por sua vez, a oposição virulenta da UDN e da imprensa

conservadora (O Globo, Tribuna da Imprensa, O Estado de São Paulo etc.), além das

constantes tentativas de golpe planejadas pelo deputado Carlos Lacerda e setores da

oficialidade militar, acabava por reforçar tal ideologia, e todo o jogo político foi

traduzido em variações de nacionalismo x “entreguismo” (ou “desenvolvimentismo” x

“interesses do imperialismo”), o que encobria o processo estrutural em curso.433 

431 Como o seu Ministro da Fazendo, Lucas Lopes, e o diretor geral do BNDE, Roberto Campos.432 WEFFORT, Sindicato e política, op. cit, p.6.433 Sobre esse tema existe um importante volume de pesquisas com viés crítico, onde podemos destacar otrabalho clássico de Miriam Limoeiro Cardoso e recentemente o livro de Lúcio Flávio de Almeida.CARDOSO, Miriam Limoeiro. Ideologia e desenvolvimento – Brasil: JK-JQ. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1977. ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de.   A ilusão do desenvolvimentismo: nacionalismo edominação burguesa nos anos JK . Florianópolis: EdUFSC, 2006.

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A trajetória de alguns personagens do empresariado brasileiro é emblemática do

deslocamento das bases sociais do regime de 1946, que constituiu o cerne da crise

orgânica dos anos 1960. Esse é o caso de João Pedro Gouveia Vieira, empresário que,

 por indicação de Getúlio Vargas, fez parte do conselho de administração do BNDE

entre 1952-1955, tendo apoiado em seguida o governo Juscelino Kubitschek.434

  Em1959, através da compra de ações da estrangeira Gulf Oil Corporation, Gouveia Vieira

fundou a Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga e sua Distribuidora de Produtos de

Petróleo (da qual faziam parte os postos Ipiranga). Na época dessa operação é notável

que nas propagandas dos postos Ipiranga, encontradas na imprensa,   transpareça uma

forte retórica nacionalista, de defesa da exploração deste mercado por empresários

nacionais.435 Em uma dessas propagandas publicadas no  Diário de Notícias do Rio de

Janeiro, lê-se a mensagem:

“Dois marcos na história econômica do Brasil: 7 de setembro de 1937 –instalação e funcionamento da primeira refinaria nacional – IpirangaS.A., Companhia Brasileira de Petróleo – na cidade de Rio Grande (RS)

 – e que logo contribuiu com o esforço de guerra do país, abastecendo oSul com produtos de petróleo indispensáveis ao progresso de suasatividades vitais e que hoje colabora decididamente para seudesenvolvimento comercial e sua emancipação econômica; 21 de abril de1959 – instalação dos POSTOS IPIRANGA destinados a distribuição de

 produtos derivados de petróleo em todo o país e a prestação de serviçosaos veículos automotores, visando o desenvolvimento econômico e amaior circulação de nossas riquezas através das rodovias brasileira. –1937 – 1959: duas datas relevantes na luta do povo brasileiro pela auto-solução de seus problemas de petróleo.”436 

 Não obstante toda essa retórica nacionalista da propaganda de seu empreendimento, o

que é significativo deste deslocamento de classe característico de uma crise orgânica é o

fato deste empresário ter se associado ao IPES no início dos anos sessenta, e mesmo

tendo sido eleito suplente de senador pelo PTB do estado do Rio em 1962 – tendo

assumido a vaga em diversas oportunidades –,437apoiou o golpe de Estado em 1964 e o

regime ditatorial que lhe sucedeu. Deste modo, sua trajetória é exemplar da

434  Verbete “João Pedro Gouveia Vieira”.  Dicionário Histórico-Biográfico do Brasil. Rio de Janeiro:FGV, 2001.435 Na ocasião o jornalista Hélio Fernandes do Diário de Notícias, um importante opositor do governo JK,denunciou o que seria na verdade um negócio “entreguista” (segundo o jargão da época), em que GouveiaVieira teria funcionado como “testa de ferro” de uma iniciativa do capital estrangeiro para a exploraçãoda área petrolífera. A despeito da justeza ou não da denúncia, o jornalista nunca apresentou qualquer

 prova contra o empresário.436  Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 01 de maio de 1959, p.9.437 Entre julho/agosto de 1963, julho/outubro de 1964, março/setembro de 1966 e julho/outubro de 1967,nos dois últimos casos pela ARENA.

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metamorfose ocorrida no interior das classes dominantes e que esteve na base do

rompimento desta com o regime que, até então, havia servido muito bem aos seus

negócios.

Quando, no dia 10 de março de 1964, reunidos no auditório da Associação

Comercial do Rio de Janeiro, os mais eminentes representantes da burguesia brasileiraanunciaram a fundação do Comando Nacional das Classes Produtoras (uma iniciativa

do IPES), o rompimento das classes dominantes com a República de 1946 estava

 praticamente consumado.438 Anunciando a insurreição das classes dominantes, os mais

exaltados na “Casa de Mauá” – como também é conhecida a já centenária Associação –

não tiveram pudores em afirmar seu propósito não só de derrubar o governo, mas de

instaurar um regime de exceção que garantisse o desenvolvimento pacífico de seus

negócios. “Armai-vos uns aos outros!” foi uma das frases mais ouvidas na ocasião.

Todavia, a intenção de se livrar daquele arcabouço institucional, embora sótenha sido declarada explicitamente naquela oportunidade, já estava na consciência da

vanguarda dos setores mais modernos do capitalismo brasileiro – agrupados no IPES –

desde a renúncia de Jânio e a ascensão de Goulart. A classe dominante era plenamente

consciente da crise. O tema desta tese versa sobre um dos momentos em que a forma do

golpe de Estado esteve ligada a um desses arranjos que foi o parlamentarismo instituído

de forma oportunista em princípios de setembro de 1961. Como veremos, na crise

ministerial de meados de 1962, e que está na base da greve geral aqui estudada, setores

ligados ao IPES, em associação com expressiva bancada no Congresso Nacional,

 buscariam alterar o quadro por dentro as regras do jogo, dando uma face aparentemente

“legal” à sua escalada ao poder.

3.3 O rompimento dos de baixo

Por sua vez, a forte ativação dos movimentos sociais no campo e na cidade

também erodia as bases sociais do regime, apontando para sua superação. Como forma

de equacionar as limitações daquela democracia, a esquerda, com suas propostas de

reformas estruturais, tão somente apontava para a necessidade de ampliar a democracia

realmente existente, e, portanto, também desenhava a necessidade de superação dos

 bloqueios existentes naquele regime.

438 O Globo, 11 de março de 1964; Tribuna da Imprensa, 11 de março de 1964.

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Desse modo, constituem uma manobra diversionista as tentativas recentemente

encampadas pela historiografia no sentido de “valorizar aquela experiência

democrática”, como se aquele regime não estivesse em crise no início dos anos sessenta

e pudesse ter ficado de pé caso os atores políticos assim o desejassem. E aqui cabe, mais

uma vez, apontar a natureza ideológica dessa construção revisionista, pois, se não restamuita dúvida quanto ao fato de que o “autoritarismo” seguido ao colapso do regime de

1946 teve inegável sentido ideológico para a direita, o revisionismo histórico em curso

nada mais faz do que habilitar com ares acadêmicos a retórica dos golpistas quando

sugere que, em razão da suposta “falta de apego pela democracia” por parte da

esquerda, esta não teria outro projeto senão uma “variante esquerdizante do

autoritarismo”. Do mesmo modo, nesta abordagem aqui criticada, todos os comentários

críticos àquela experiência democrática limitada são desqualificados como baseados em

concepções “autoritárias” e, seguindo esse raciocínio, não resta mais nada ao historiadorsenão construir uma apologética daquela democracia realmente existente.

Voltando aos determinantes políticos, deve-se incluir a crise da estrutura sindical

no processo político. A República de 1946, como já tivemos oportunidade de comentar,

foi marcada por grande continuidade em relação ao arcabouço institucional

estadonovista, cujo propósito constitui-se no controle da mobilização operária. Além da

vigência dessas normas, essa continuidade também se fez presente através de uma séria

de medidas tomadas pelo governo Dutra, algumas das quais feitas à revelia dos

trabalhados da Assembleia Constituinte. Dentre as mais significativas estavam o

Decreto 9.070, de 15 de março de 1946, que estabeleceu enormes restrições ao exercício

do direito de greve, proscrevendo-o na prática. Embora o Brasil fosse signatário do

acordo internacional de Chapultepec (México, 1945), promovido pelas Nações Aliadas

que se comprometeram a reconhecer esse como um direito democrático, e a própria

Constituição de setembro de 1946 tivesse versado sobre o tema (através do seu art. 158

 – “É reconhecido o direito de greve, cujo exercício a lei regulará”, regulação esta que

nunca aconteceria em todo o período), o Decreto 9.070 praticamente impedia o

exercício deste direito democrático. O que se queria era caracterizar a paralisação do

trabalho como um “recurso anti-social”, tal como figura na fascistizante Carta

Constitucional de 1937, em seu art. 139. Todavia, como normas legais nunca impediram

o afloramento das contradições de classe na sociedade capitalista, após a conjuntura

repressiva do governo Dutra, especialmente a partir da metade do segundo governo

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Vargas, ocorre uma retomada das mobilizações grevistas, tendo o movimento sindical, a

 partir de então, “desconhecido”, na prática, esse famigerado Decreto.

Outro dado relevante, e já comentado no capítulo anterior, foi a proibição da

formação de centrais sindicais. Originalmente, em meados de 1946, o Ministério do

Trabalho buscou conformar uma Central oficial, convocando um congresso derepresentantes sindicais para setembro daquele ano. Mas como a esquerda comunista

conseguiu conquistar a maior parte dos 2.400 delegados, um grupo minoritário de

ministerialistas resolveu abandonar o encontro e chamar a polícia para impedir a sua

continuidade. Entretanto, apesar da repressão, a maioria (cerca de 2.000) dos

representantes sindicais resolveu manter o encontro e acabou por fundar a Central dos

Trabalhadores do Brasil (CTB), enquanto os ministerialistas fundariam a esvaziada

Confederação Nacional do Trabalho (CNT). Embora desconhecida pelo Ministério do

Trabalho, a CTB continuaria a desenvolver suas atividades até que, no rastro dorecrudescimento da repressão aos comunistas, fosse também desmantelada em 1947.

Ao passo que, como o Congresso Nacional e o Judiciário acabaram também por

se pronunciar sobre a inconveniência de uma central sindical na nova ordem liberal, até

a oficialista CNT foi obrigada a se extinguir, dividindo-se em duas: a Confederação

 Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI) e a Confederação Nacional dos

Trabalhadores no Comércio (CNTC). Assim, os poderes da República seguiam a noção

corporativista herdada do Estado Novo segunda a qual as organizações nacionais dos

trabalhadores deveriam ser divididas por ramo de atividade econômica.

A CNTI e CNTC, naturalmente, acabaram ficando em mãos dos pelegos

sindicais, e ligaram-se desde o fim dos anos quarenta às iniciativas divisionistas do

movimento sindical internacional capitaneadas pela American Federation of Labor-

Congress Industrial Organization (AFL-CIO), que atuava como braço da CIA e do

Departamento de Estado dos EUA.439 Através da ação da AFL-CIO, em colaboração

439 A conservadora American Federation of Labor (AFL) foi fundada nos EUA em fins do século XIX e

se caracterizou pela proposição de um “sindicalismo de resultados” e da colaboração de classes. No iníciodo século XX seria questionada pela criação da Industrial Workers of the World (IWW), uma iniciativadas esquerdas (anarquistas, socialistas e sindicalistas revolucionários), que seria duramente reprimida emfins da década de 1910. O conservadorismo dos anos 1920 penalizaria não só a IWW – que na práticadeixou de existir – mas também a própria AFL, que viu o número de seus filiados despencarem. Nos anos1930, no contexto do New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt, seria a vez da criação daCongress Industrial Organization (CIO), uma iniciativa dos comunistas no interior da AFL, que acabou seautonomizando e dando origem a uma central sindical orientada para a esquerda. Todavia, no contextoque se abriu após a II Guerra e o início da Guerra Fria (1947) a CIO sofreria um expurgo e acabaria sefundindo com a AFL, dando vez a criação de uma central sindical conservadora, a AFL-CIO, ligada aosinteresses do imperialismo estadunidense. Cf. MORRIS, George.  A Cia e o movimento operário

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com as mais degeneradas organizações sindicais social-democratas europeias, operou-se

um processo de cisão na Federação Sindical Mundial (FSM), fundada após a II Guerra e

que congregava originalmente organizações sindicais de variados matizes ideológicos e

que acabou por ficar identificada com as correntes sindicais comunistas. A partir dessa

operação de racha, liderado pela AFL-CIO, conformou-se a Confederação Internacionaldas Organizações Sindicais Livres (CIOSL) e seu braço latino-americano, a

Organização Regional Interamericana de Trabalhadores (ORIT), que também se

originou de um movimento do mesmo tipo em relação à Central dos Trabalhadores da

América Latina (CTAL). Desde o nascedouro dessa iniciativa divisionista e claramente

 pró-imperialista, a CNTI e a CNTC passaram a integrar o dispositivo internacional

CIOSL/ORIT.

Todavia, parcelas importantes do movimento sindical brasileiro acabaram

moldando confederações de forma independente a estas iniciativas, como foi o caso dosindicalismo bancário, que em 1958 conformou a sua Confederação Nacional dos

Trabalhadores em Empresas de Crédito (CONTEC), hegemonizada pelos comunistas e

não ligada ao esquema CIOSL/ORIT. Em 1961, depois de um longo reinado dos

 pelegos à frente da CNTI, a esquerda sindical formada pela aliança PCB/PTB

conquistou a entidade que, em meados do ano seguinte, acabou por se desligar da

CIOSL, enquanto que o secretário-geral da CNTI, o presidente do Sindicato dos

Metalúrgicos da Guanabara, o trabalhista de esquerda Benedito Cerqueira, passou a ser

o representante brasileiro na FSM.

Para além do plano da evolução da estrutura oficial e das organizações

horizontais paralelas, outra restrição, que não sobreviveu por muito tempo foi a

exigência de “atestado ideológico” aos postulantes às eleições para as diretorias

sindicais, baixado também pelo governo Dutra em 1947, quando o mesmo também

suspendeu a realização de novas eleições para renovação daquelas mesmas diretorias.

Com o natural propósito de evitar o avanço dos comunistas nos sindicatos oficiais,

medidas restritivas à vida sindical forjadas no Estado Novo seriam reeditadas.

Oficialmente, a exigência de “atestado ideológico” não durou muito tempo, pois em 1º

de maio de 1951, foi revogada por Getúlio Vargas, contribuindo para a derrubada de

diretorias pelegas e para a transformação de muitas entidades sindicais em verdadeiros

americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. WELCH, Clifford Andrew. “Internacionalismotrabalhista: o envolvimento dos Estados Unidos nos sindicatos brasileiros, 1945-1964.” Perseu, SãoPaulo, ano3, n.3, p.184-219, 2009.

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espaços de articulação das lutas dos trabalhadores, processo que se desenvolveu com

mais intensidade nos anos posteriores.440 

Intensificando-se as lutas do movimento operário a partir de meados do segundo

governo Vargas, e conhecendo forte desenvolvimento durante o governo Kubitschek,

chega-se ao princípio dos anos 1960 com essa estrutura sindical – montada desde osanos 1930 para apaziguar a luta de classes e deslocar o conflito capital-trabalho para o

interior do Estado –, tornando-se contraditoriamente suporte para diversas lutas

operárias. Greves, passeatas, mobilizações, posicionamentos políticos, alianças com

líderes populistas, comícios etc., uma infinidade de atividades que caracterizam o início

dos anos sessenta como um período com um alto nível de conflitualidade social no

Brasil, ao lançarem mão desta estrutura oficial em conjunto com as “organizações

 paralelas”, evidenciaram um dos sintomas mais evidentes da crise de uma das

instituições mais importantes daquele regime. Pois, como já tivemos oportunidade decomentar, ao burlar o princípio corporativista de uma organização sindical apenas por

ramos de atividade econômica, a reunião de diversas categorias de trabalhadores nestas

“entidades paralelas”, que conheceriam forte desenvolvimento a partir de 1958, criava a

 possibilidade de contradizer a ação desorganizadora do Estado em relação à classe

trabalhadora, ainda que a orientação nacionalista da esquerda diminuísse o potencial

dessa contradição. E embora tais lutas não tivessem colocado em xeque as bases da

acumulação capitalista, as mesmas tiravam o sono das classes dominantes e avivavam o

“fantasma do comunismo”. A partir daquele ponto, a realização de congressos sindicais

nacionais acabaria por desembocar na criação do Comando Geral dos Trabalhadores

(CGT), resultante do Comando Nacional da greve geral de 5 de julho de 1962, quando

se edificou o embrião do que poderia ter sido uma Central Sindical, processo sustado

 pelo golpe de 1964.441 

Por sua vez, compondo o cenário da crise dos anos sessenta, e não menos

importantes, as lutas sociais dos trabalhadores do campo, seja pela reforma agrária, seja

 pela extensão da legislação social e a formação dos sindicatos de trabalhadores rurais,

colocavam em xeque o pacto proprietário que constituiu uma das bases fundamentais

daquele regime. Não foi por acaso que a violência dos proprietários rurais assumiu

contornos dramáticos ao longo do governo Jango, do que é um caso exemplar o

440 MATTOS, Trabalhadores e sindicatos no Brasil, op. cit., p.77-100.441  O processo que culminou na formação do CGT foi objeto de um estudo importante. DELGADO,Lucília Almeida Neves. O Comando Geral dos Trabalhadores do Brasil (1960-1964). Petrópolis: Vozes,1986.

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assassinato do líder da Liga Camponesa da cidade paraibana de Sapé, João Pedro

Teixeira, em 2 de abril de 1962. A Liga de Sapé, a maior do Brasil, era parte de um

fenômeno importante de organização dos subalternos rurais, também impulsionado

 pelos comunistas e por outros elementos mais independentes da esquerda, como o

legendário advogado pernambucano Francisco Julião. Com o desenvolvimento dasLigas, o tema da reforma agrária saltou ao centro do debate político nacional, não pela

iniciativa de bondosas lideranças trabalhistas – como quer nos fazer crer a apologética

do PTB – mas pelas ações concretas de homens e mulheres que saíram das páginas da

literatura e adentraram a cena histórica. Nunca é demais lembrar o caráter agudo da

questão que estas lutas impunham, pois enfrentavam o pacto proprietário “prussiano”,

que constituía uma longa continuidade e uma das bases do regime vigente, que era

colocado em xeque.

Mas o que certamente constituiu um dos contornos mais explosivos dascontradições daquela República foi a ativação política entre os subalternos militares.

Um estudioso deste assunto, Paulo Eduardo Castello Parucker,442  aponta que após o

Estado Novo os clubes dos sargentos em várias unidades da Federação seriam

convertidos em espaços de articulação política. O mesmo autor afirma que, embora não

constituíssem novidade no cenário nacional, os sargentos só voltariam a figurar, “ainda

em um plano bastante secundário”, no movimento conhecido como “Novembrada”, o

contragolpe preventivo do general Lott.443 Entretanto, é justamente na crise de 1961 que

os subalternos militares aparecem com força na cena política, tendo uma ação

autônoma, alinhada aos setores da oficialidade militar legalista e/ou nacionalista, mas

não controlada totalmente por eles. Assim, com a entrada destes setores, as já maduras

contradições no seio da oficialidade militar, expressas publicamente nas disputas pelo

controle do Clube Militar – que como ensinam Alain Rouquié e Antônio Carlos

Peixoto, era a caixa de ressonância da opinião militar e onde se enfrentavam o que estes

autores denominaram de “partidos militares” – 444assumiam outro sentido. Pois se

tratava agora de uma “intromissão” dos elementos subalternos da hierarquia militar.

442 PARUCKER, Paulo Eduardo Castello. Praças em pé de guerra: o movimento político dos subalternosmilitares no Brasil, 1961-1964. (Dissertação de mestrado.) PPGH – UFF, Niterói, 1992, p.42.443  Idem, p.49.444 Ver os textos dos autores constantes no volume ROUQUIÉ, Alain (org.). Os partidos militares no

 Brasil. Rio de Janeiro: Record, s.d.

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“No quadro da intensa turbulência política, as cisões no seio das ForçasArmadas não tardaram. Mas, diferentemente de outros momentos, não serestringiram às esferas militares superiores.”445 

Alguns episódios são significativos dos sintomas desta crise militar. Na Crise da

Legalidade, por exemplo, subalternos militares reagiram às ordens do ministro daGuerra (general Denys) para que paraquedistas fechassem o Congresso Nacional. 446 

Mas muitas outras teriam sido as ações destes setores na própria Crise da Legalidade,

como aquela em conjunto com os suboficiais da Base Aérea de Gravataí (RS) que

impediu que, sob as ordens do major Cassiano, o Palácio Piratini – centro da resistência

legalista no Rio Grande do Sul, onde se encontravam Brizola e uma multidão de

gaúchos na crise de agosto/setembro de 1961 – fosse bombardeado. Sem falar no fato de

que os sargentos e suboficiais da Aeronáutica da Guarnição de Brasília teriam sido

decisivos no desmantelamento da “Operação Mosquito”, por meio da qual um grupo deoficiais da FAB pretendia derrubar o avião que trouxe Goulart do Uruguai ao território

nacional (Porto Alegre e depois Brasília).

Tais episódios foram um marco na politização daqueles setores até o golpe de

1964, quando se tornaram um dos principais alvos dos expurgos do regime ditatorial.

Assim, ainda de acordo com Parucker, é a partir de 1961 que se pode falar de um

“movimento dos sargentos”, que no plano ideológico e político se identificou com as

esquerdas e as reformas de base, e no plano de seus interesses corporativos com a

campanha pela elegibilidade, por melhores condições materiais e até pelo direito de

casar.

 No mês de março de 1964, marinheiros e fuzileiros navais amotinaram-se na

sede do Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, com a reivindicação de que sua

Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), fundada em 1962,

fosse reconhecida, o que foi considerado um dos estopins para a precipitação do golpe

de Estado. Só aos oficiais militares estava reservado este atributo, pois, como apontou

de forma arguta o historiador Nelson Werneck Sodré,447  a hierarquia estava sendo

rompida a partir do momento em que um setor da oficialidade militar conspirava para a

derrubada do Executivo de Goulart, que afinal era o chefe constitucional das Forças

445 PARUCKER, op. cit., p.52.446  Idem, p.54.447  Este aspecto é lembrado pelo historiador em seu livro  História militar do Brasil  (Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1965, pp. 393-394), o que deve servir para apreender algo que em geral énegligenciado nas análises.

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Armadas. Mais uma vez, valida-se a observação de José Honório Rodrigues quanto ao

tratamento diferenciado que os “mais iguais” desferem sobre “menos iguais”.448 Deste

modo, a quebra da hierarquia nas Forças Armadas aponta um dos elementos da crise

orgânica do regime: uma crise na principal instituição encarregada das funções de

coerção do Estado capitalista.Em diversos momentos da obra de Leon Trotsky (1879-1940), o revolucionário

russo dá grande importância aos humores políticos dos setores médios da sociedade

como determinantes para o desfecho de situações de crise que poderiam evoluir para

situações revolucionárias, contra-revolucionárias, anti-revolucionárias ou de

estabilidade política.449 E, se esse é um critério justo, podemos verificar uma das razões

da evolução política no início dos anos sessenta ter se encaminhado para uma contra-

revolução preventiva no fato de que boa parte da classe média colocou-se ao lado da

histeria anticomunista, sendo uma das bases sociais do movimento golpista. Umexemplo da polarização social e da mobilização reacionária das classes médias

encontra-se num caso contado por Rui Mauro Marini, em texto de 1969, onde narra um

dos inúmeros conflitos que envolveram a classe média mineira em face ao

desenvolvimento das atividades de organização do movimento sindical pela esquerda.

“Em janeiro de 1964, por ocasião do Congresso Unitário dosTrabalhadores da América Latina, que se deveria realizar ali, a pequena

 burguesia de Belo Horizonte saiu às ruas, provocada pelos latifundiáriose pelos padres, e conseguiu que fosse transferido para Brasília. Pela

 primeira vez, desde o “integralismo” fascista dos anos 30, a direitamobilizava as massas.” 450 

A partir da consulta a outras fontes é possível verificar que aquele episódio

acabaria por ser tomado como uma referência da “luta contra o comunismo” que

mobilizava os setores médios. Um exemplo se deu a poucos dias do famoso Comício da

Central, quando a quase totalidade dos jornais do Rio estava em franca campanha

448 RODRIGUES, J. H. Conciliação e reforma no Brasil. Um desafio histórico-cultural. Rio de Janeiro:

 Nova Fronteira, 1982.449 Apresentando o que seriam as condições para o triunfo de uma revolução socialista, Trotsky elenca osseguintes elementos: “1) O impasse da burguesia e a consequente confusão da classe dominante; 2) Aaguda insatisfação e a ânsia de mudanças decisivas nas fileiras da pequena burguesia, sem cujo o apoio agrande burguesia não pode se manter; 3) A consciência da situação intolerável e a disposição para asações revolucionárias nas fileiras do proletariado; 4) Um programa claro e uma direção firme davanguarda proletária.” TROTSKY, Leon. “Manifesto sobre la guerra imperialista de maio de 1940.” In:Escritos. Bogotá: Pluma, 1979, p.297, apud  ARCARY, As esquinas perigosas da História, op. cit., p.67.450 MARINI, Ruy Mauro. “Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil.” In. SADER, Emir (org.).

 Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Rui Mauro Marini. Petrópolis: Vozes/ Laboratóriode Políticas Públicas (LPP), 2000, p.42.

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oposicionista em relação ao governo Jango e à realização daquele encontro resultante da

colaboração entre autoridades do governo federal e o CGT. Apresentado como “comício

dos comunistas” por Carlos Lacerda e os jornais cariocas O Globo  e Tribuna da

 Imprensa, a violência política em Belo Horizonte era claramente reivindicada.

“Façamos como os mineiros”, foi uma das frases mais repetidas nestes órgãos daimprensa, e de todos os cantos surgiam rumores de que um ato de violência similar

 poderia cancelar o meeting popular na Guanabara. Na véspera do encontro, o palanque

montado na Praça Cristiano Otoni, ao lado do Ministério da Guerra, onde ocorreria o

comício da Central do Brasil, foi incendiado por extremistas de direita. E no entardecer

do dia 13, enquanto 200 mil populares lotaram as imediações da Central do Brasil,

seguindo orientações de Lacerda, parte da classe média carioca colocou velas nas

 janelas, simbolizando “luto” contra o comunismo. Uma verdadeira “macumba” contra

Jango.Assim, as massivas manifestações da classe média em apoio ao golpe de Estado

no dia 19 de março de 1964 na capital paulista e no dia 2 de abril no Rio de Janeiro (em

comemoração à derrubada do governo), seriam só os momentos mais espetaculares da

explicitação dos humores políticos desses setores em apoio à insurreição da burguesia 

liderada pela maior parte da oficialidade militar. Entretanto, evidências de tal postura da

classe média já podiam ser percebidas na mobilização de meados de 1962 para impedir

que o Chanceler demissionário San Tiago Dantas fosse alçado à condição de Premier  

(episódio que esteve ligado diretamente à eclosão da greve geral de julho de 1962). Na

 base daquela atitude, como ensina Décio Saes, estava o “medo da proletarização” que

tornava a classe média sensível ao discurso segundo o qual o mal-estar econômico era

resultante dos “constantes aumentos de salário”, das constantes greves e de um “plano

diabólico dos comunistas para tomarem o poder”.451 

Em síntese, a crise dos anos sessenta expressou um realinhamento entre as

classes sociais no Brasil, cindindo as alianças que formaram a base do regime

democrático surgido no fim do Estado Novo. Assim, além de uma crise daquele regime,

vivia-se, como já foi dito, uma crise cíclica do capitalismo brasileiro, conformando uma

crise orgânica. E como todas as crises capitalistas têm nos ensinado, para a retomada do

ciclo era necessário atacar direitos sociais, baixar os salários, e para tanto desmantelar

as organizações políticas de esquerda que mobilizavam grandes massas populares no

451 Cf. SAES, Décio. “Classe média e política no Brasil. 1930-1964.” In. FAUSTO, Boris (org.). HistóriaGeral da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano, Vol. 3. São Paulo: Difel, 1981.

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sentido de ampliação daquela democracia. A incapacidade da própria burguesia em

efetuar diretamente essa tarefa, e as debilidades das organizações de esquerda em

impedi-la, são assim os sintomas evidentes do que aqui entendemos a partir do conceito

de crise orgânica.

Resta-nos agora um comentário final, pois trabalhar com tal noção de queaqueles eram tempos de crise orgânica não nos leva a pensar que eram simplesmente

tempos sombrios. Pois, como muito bem frisou Roberto Schwarz em antológico ensaio,

durante o governo de João Goulart

“o debate público estivera centrado em reforma agrária, imperialismo,salário mínimo ou voto do analfabeto, e mal ou bem, resumira, não aexperiência média do cidadão, mas a experiência organizada dossindicatos, operários rurais, das associações patronais ou estudantis, da

 pequena burguesia mobilizada etc.”452 

Em suma, como diz o mesmo autor, no início dos anos sessenta o Brasil estava

“irreconhecivelmente inteligente”.453 Eram tempos em que a “grande política” – para

utilizar mais um conceito de Antonio Gramsci – pautava a cena histórica. E foi nesse

contexto que o movimento sindical brasileiro saltou ao centro da cena política e realizou

uma intervenção decisiva com a greve geral que mobilizou a classe trabalhadora

 brasileira e que constitui assunto de nosso próximo capítulo.

452 SCHWARZ, Roberto. “Cultura e Política, 1964-1969.” In. O pai de família e outros estudos. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1978, p.71.453  Idem, ibidem, p. 69.

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Capítulo 4 - A greve geral de julho de 1962:

intervenção dos trabalhadores na crise política

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Já passava do meio do dia 4 de julho de 1962, quando o Comando Geral de

Greve se reuniu na sede da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria

(CNTI), localizado nas imediações da Rua da Andradas com a Marechal Floriano, no

Centro do Rio de Janeiro. Estavam lá os dirigentes da própria CNTI, da CONTEC,

sindicatos nacionais importantes, como o dos aeroviários, aeronautas etc. eintersindicais como o Pacto de Unidade e Ação (PUA) – que congregava trabalhadores

marítimos, portuários e ferroviários –, a Comissão Permanente de Organizações

Sindicais (CPOS) da Guanabara, entre outras entidades e representantes sindicais de

outras regiões do país. Decidiram decretar uma greve geral política em todo o Brasil.

Formado nas articulações entre líderes sindicais de todo o país, que ao longo do

último período acumulavam uma experiência de anos de lutas grevistas e da conquista

de entidades sindicais pela esquerda, o Comando Geral de Greve (CGG) desde o início

de junho anunciava a realização de uma greve nacional política. O que era ameaça setornou realidade: após a decisão tomada naquela tarde de 4 de julho, senhas foram

distribuídas a todos os sindicatos do país, e a zero hora do dia 5 a greve pipocou em

várias regiões do Brasil.

O significado histórico desta greve está ligado às lutas decisivas travadas sob o

governo de João Goulart no primeiro ano após sua posse, quando este ainda se batia

 pela recuperação dos poderes que lhe haviam sido tolhidos pela emenda constitucional

 parlamentarista, aprovada de forma casuística pelo acordo que garantiu a sua posse em

setembro de 1961. Nas páginas seguintes veremos em que condições do processo

 político brasileiro eclodiu a primeira paralisação de caráter nacional da classe

trabalhadora brasileira.454 

4.1 A queda do Gabinete Tancredo Neves e a articulação da greve

política

Em junho de 1962 a crise política brasileira voltava à superfície, reabrindo as

fissuras do frágil acordo que engendrou o parlamentarismo na crise de agosto/setembro

454 Entendendo por classe trabalhadora o conjunto dos assalariados que se opõem ao capital no processode acumulação capitalista. Nossa ênfase na dimensão classista decorre do fato de que algumas categoriasespecíficas da classe trabalhadora brasileira já terem realizado paralisações nacionais anteriormente,como os bancários em 1946, e os ferroviários, marítimos e portuários em 1960. Em 1962 temos ummovimento nacional da classe trabalhadora, envolvendo trabalhadores da iniciativa privada, comometalúrgicos, têxteis, bancários, garçons, condutores de transportes urbanos, aeroviários e aeronautas,além de trabalhadores em empresas estatais como operários da Petrobrás, ferroviários, portuários emarítimos, além de funcionários públicos e bancários da rede pública.

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do ano anterior. A instituição de um sistema de gabinete em um regime político baseado

na Carta presidencialista de 1946, saída conciliatória para evitar que a crise provocada

 pela renúncia de Jânio Quadros desembocasse numa guerra civil, não poderia gerar

outros frutos senão uma nova crise. O próprio gabinete parlamentarista era um celeiro

de crises, já que formado no espírito de uma inexistente união nacional, com os maisrepresentativos partidos ocupando pastas, inclusive a própria UDN, com Virgílio

Távora (Viação e Obras Pública) e Gabriel Passos (Minas e Energia). O PSD ocupou as

 pastas da Educação (Antônio de Oliveira Brito), Armando Monteiro Filho (Agricultura),

Ulisses Guimarães (Indústria e Comércio), além da própria presidência do Conselho de

Ministros (Tancredo Neves); enquanto o PTB, partido de Goulart, ficaria com a mesma

quantidade de pastas que a UDN, com o Exterior (San Tiago Dantas) e Saúde (Estácio

Souto Maior). Além desses, o Partido Democrata Cristão (PDC) ocupou o Ministério do

Trabalho (Franco Montoro), ficando a Fazenda com o banqueiro (sem partido) ValterMoreira Sales. Por sua vez, as sensíveis pastas militares ficariam sob o comando do

general Segadas Viana (Guerra), o almirante Ângelo Nolasco (Marinha) e o brigadeiro

Clóvis Travassos (Aeronáutica).

À medida que o meio do ano de 1962 se aproximava, o primeiro gabinete

 parlamentarista preparava-se para se demitir. De acordo com a híbrida fórmula

institucional vigente, os postulantes às eleições de 7 de outubro daquele ano deveriam

se desincompatibilizar, e esse era o caso do próprio Tancredo, que havia perdido as

eleições para o governo de Minas Gerais em outubro de 1960 para o udenista Magalhães

Pinto, e pretendia candidatar-se à Câmara Federal. Tancredo havia assumido o cargo de

 primeiro-ministro sem estar no exercício de qualquer cargo eletivo, e, como condição

 para sua carreira política, precisava eleger-se à Câmara Federal.

Goulart precisava indicar um nome que ao mesmo tempo fosse de confiança e

compartilhar de seus confessados propósitos de liquidar o sistema parlamentar,   455  e,

mais que isso, pudesse ser aprovado pela maioria conservadora da Câmara Federal. O

nome escolhido foi o do titular da pasta do Exterior, o empresário e trabalhista mineiro

San Tiago Dantas, que despertava de grande respeito entre os setores da esquerda

nacionalista por sua postura em defesa da continuidade da chamada “política externa

independente” (iniciada por seu antecessor, o udenista Afonso Arinos de Melo Franco),

455 Isso obviamente não pode ser considerado por analistas políticos como Argelina Cheibub Figueiredo,que, como vimos no primeiro capítulo desta tese, lamenta o fato de Goulart não ter “aproveitado aoportunidade” de, sob o parlamentarismo, “negociar com o Congresso” uma “agenda reformista”.

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motivo pelo qual era mal visto entre os círculos de direita, em especial aqueles que já

vinham se movimentando por um golpe de Estado. Sua candidatura não era um mero

improviso. Por sua atuação como Chanceler, San Tiago havia passado por um teste no

Congresso no fim de maio daquele ano de 1962, quando a moção de censura à política

externa independente, apresentada pelo deputado Eurípedes Cardoso de Meneses(UDN-GB), foi rejeitada por 131 votos contra 44.456 

Entre os atos mais significativos da gestão de San Tiago Dantas esteve o

reatamento de relações diplomáticas com a URSS, em fins de 1961, e a postura

neutralista adotada na conferência da Organização dos Estados Americanos (OEA), em

Punta del Este (Uruguai), quando o Brasil impediu que fosse aprovada uma intervenção

militar na República Socialista de Cuba.457 Na relação de forças no parlamento, a Frente

Parlamentar Nacionalista (FPN) moveria suas baterias para a aprovação da indicação

feita por Jango, enquanto a caixa de ressonância do complexo IPES/IBAD, a AçãoDemocrática Parlamentar (ADP), acusava San Tiago Dantas de ser um “aliado do

comunismo internacional”.

Ao mesmo tempo, nos meios militares o debate político estava extremamente

intensificado. Não só em razão da clara divisão dentro da cúpula da oficialidade em

relação à postura do setor golpista que no ano anterior pretendera violar a Constituição.

Mas também em razão de que em meados deste ano estas divisões começariam a ficar

mais claras, com a realização das eleições para a renovação da diretoria do Clube

Militar, instituição que já vimos ser significativa da “opinião” da caserna sobre a luta

 política nacional. Encabeçando a chapa nacionalista, o general Peri Bevilaqua seria

derrotado pelos setores identificados com o golpismo da UDN, liderados pelo general

Augusto da Cunha Magessi. Na campanha da chapa vencedora, o espectro do

comunismo seria imputado pelos apoiadores de Magessi à chapa nacionalista, e não foi

 por acaso que após ser derrotado (e de ter denunciado a fraude no processo eleitoral do

Clube Militar),458 Peri tenha sido um dos generais que vieram a público para denunciar

456  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 de maio de 1962, capa.457 Ao lado do Brasil, também se posicionaria a Argentina do presidente Arturo Frondrizi (1958-1962),cujo governo acabaria vítima de um golpe “gorila” alguns meses depois (29 de março de 1962).458 Esta eleição é estudada com profundidade na dissertação de Mestrado em História de Rachel MottaCardoso. De acordo com esta pesquisadora, “O resultado foi considerado fraudulento e gerou uma sériede ações judiciais visando a anulação do pleito, todas, contudo, frustradas. A vitória da chapa associada àCruzada Democrática significou um êxito também dos setores militares e civis que conspiravam contra o

 presidente João Goulart.” CARDOSO, Rachel Motta.  Depois, o golpe: as eleições de 1962 no Clube Militar . Dissertação de mestrado em História. Rio de Janeiro, UFRJ, 2008, p.13.

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que o anti-comunismo estava sendo utilizado para criar as condições para a instalação

de um regime ditatorial no Brasil.

Entretanto, seriam os pronunciamentos contundentes do general Osvino Ferreira

Alves, comandante do I Exército (sediado no então estado da Guanabara), feitos nos

meses de maio e junho de 1962, que iriam repercutir positivamente entre os setores daesquerda nacionalista.459  O jornal O Bancário, do sindicato da Guanabara

(hegemonizado pelo PCB), estamparia a foto do general Osvino em sua edição de 30 de

maio, reproduzindo na íntegra um de seus pronunciamentos em que denunciava um

movimento

“que já encontrou similares de triste memória na Itália com o fascismo elogo após na Alemanha com o nazismo – tem por finalidade apossar-sedo poder para estabelecer em nossa terra uma ditadura de direita. Amesma ditadura que se tentou implantar no país em 25 de agosto do ano

 passado e nos dias subsequentes e que encontrou o repúdio dos bravossoldados do Brasil.”460 

Segundo a denúncia, estava-se utilizando o “pretexto de combater o comunismo” para

 perseguir oficiais.461 

Por sua vez, através da imprensa, os generais de direita denunciavam a

“infiltração comunista” nos mais altos postos do governo e na própria “cúpula das

Forças Armadas”, como fizeram os generais Arthur da Costa e Silva, Taurino de

Rezende e Souza Aguiar, no que eram apoiados pelas declarações de Carlos Lacerda e

nos editoriais da imprensa golpista.462  Na edição de 1º de junho, O Globo  exibiu a

manchete “ALERTA CONTRA A AMEAÇA COMUNISTA” “Exército, Marinha e

Aeronáutica relevarão o perigo que pesa sobre a Nação.” Pela chamada parecia ser um

 posicionamento da cúpula das Forças Armadas, entretanto, na verdade, a reportagem

falava de um relatório elaborado pelos comandos da 8ª Região Militar, do 4º Distrito

 Naval e da 1ª Zona Aérea, chefiadas, respectivamente, pelo General Estevam Taurino

459 “General Peri: Bicho-Papão do anticomunismo ameaça a Constituição” e “Gen. Osvino: trama golpista para implantar ditadura no País.” Novos Rumos, Rio de Janeiro, 1 a 7 de junho de 1962, p.3 e 8. Fundo

Roberto Morena, Arquivo da Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ).460  “Defesa das liberdades.” O Bancário, Rio de Janeiro (GB), 30 de maio de 1962, capa. BibliotecaAloísio Palhano do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro.461 Esta perseguição a que o general Osvino se refere foi uma das decorrências do processo de disputainterna à oficialidade (que já repercutia nos seus subordinados, que tendiam a, quando mobilizados,direcionar-se à esquerda), no qual desafetos eram deslocados para regiões afastadas dos centros políticos,com o propósito de isolá-los de tropas e influência política. Assim, enquanto o I e III Exércitos estavamem mãos de nacionalistas como Osvino e o general Jair Dantas Ribeiro, respectivamente, o IV Exército,sediado em Recife, era comandado pelo golpista general Arthur da Costa e Silva, enquanto o II Exércitoestava sob o comando do general Nelson de Melo, que posteriormente se juntaria ao esquema do IPES.462 Editorial “Nem Golpismo, Nem Conciliação.” Novos Rumos, 8 a 14 de junho de 1962, capa.

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de Rezende, Vice-Almirante José Luís da Silva Júnior e Major-Brigadeiro Francisco de

Oliveira Borges. Direcionava-se aos ministros das três armas, e afirmava terem

conhecimento de um “plano comunista para ocupar 5 milhões de quilômetros

quadrados, mais da metade do Brasil, com vistas a tomada do poder”.463 

Peri Bevilaqua referiu-se à campanha contra a sua chapa ao Clube Militar, quevisava associar o “nacionalismo” com o “comunismo”, como uma espécie de versão do

“marccarthismo sepultado nos Estados Unidos ressuscitada entre nós, na forma sul-

americana do golpismo”.464  Por sua vez, o jornal O Globo  o atacou: “O merecido

respeito que nos inspira as virtudes do General Peri Bevilaqua não nos inibe de

estranhar as últimas declarações por ele feitas à imprensa, a propósito do resultado das

eleições para a presidência do Clube Militar.”465 

Ao mesmo tempo, jogando na intriga dentro da oficialidade militar, O Globo 

 produziu um factóide sobre uma suposta censura ao general Osvino Ferreira Alves,Comandante do I Exército, feita pelo Ministro da Guerra, general Segadas Viana. Isso

 porque no dia 27 de junho Osvino fez um discurso perante a tropa do Primeiro Grupo de

Canhões Automáticos Antiaéreos, no qual mais uma vez afirmou que, sob o pretexto de

combater o comunismo, forças de direita estavam interessadas no enfraquecimento das

Forças Armadas e do Governo. Em face disto, O Globo buscou passar a impressão de

que Osvino fora repreendido pelo Ministro da Guerra (gen. Segadas Viana), mas esse

factóide só serviu para que o jornal carioca conseguisse arrancar uma entrevista

 provocativa com o Comandante do I Exército, cujas primeiras perguntas são

sintomáticas dos compromissos golpistas do periódico:

“O GLOBO – Têm fundamento as informações que correm sobre anecessidade de uma ditadura militar para o Brasil com vistas a conter asituação geral do País?Gen. OSVINO – Não creio, absolutamente, na necessidade daimplantação de ditaduras no Brasil. E creio mesmo que o povo brasileironunca consentirá que tal coisa venha a ocorrer.O GLOBO – A dominação de elementos esquerdistas nos sindicatos estáconduzindo estes órgãos de reivindicações naturais à posição de

entidades revolucionárias. Há mesmo um ambiente pré-revolucionárioque se estaria infiltrando nas classes armadas, especialmente no Exército.Têm fundamento as notícias sobre essas infiltrações?

463 O Globo, 1º de junho de 1962.464  Jornal do Brasil, 30 de maio de 1962, p.3465 Editorial: “Recordem o Banho de Sangue de 1935!” O Globo, 1º de junho de 1962.

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Gen. OSVINO – Posso afirmar que boatos ou notícias de infiltraçãocomunista nas classes armadas não têm fundamento. E é por isso que nãome alarmo com as constantes notícias em contrário.”466 

Outros factóides do jornal carioca neste período relacionavam-se às supostas

“técnicas de infiltração” que os comunistas estariam aplicando no Brasil. EntrevistandoHerman Goergen, presidente da Sociedade Teuto-Brasileira e ex-deputado federal da

República Federal Alemã, este enunciou o que seriam os “seis passos” do plano

comunista para a tomada do poder.467  Segundo o ex-parlamentar, o “roteiro” para a

“tomada do poder” seria universalmente aplicado pelos comunistas, tendo sido

apresentado no livro  Assalto Geral ao Parlamento, de Jan Kozak, membro do

Secretariado-Geral do Partido Comunista da Tcheco-Eslováquia, e seria a mesma

técnica aplicada na Rússia, Polônia, Romênia, Bulgária, Tcheco-Eslováquia, Hungria e

Cuba. O livro de Kozak, editado pelo IBAD no Brasil468 no primeiro semestre daqueleano, e publicado em fac-símile pelo próprio O Globo,469 é uma das peças da propaganda

anti-soviética mais divulgadas naquele contexto.

Os seis pontos seriam: 1) Pressão do partido por reformas sociais, “geralmente

 justas, que contam com o apoio popular”. Através de suas minorias militantes, os

comunistas provocam tumultos e agitações, gerando crises políticas; 2) Os governos

acabam cedendo às pressões levando à formação de governos de “união nacional”,

forçando a presença dos comunistas. O objetivo desta fase é o controle das instituições

encarregadas do interior do país e os aparelhos de comunicação; 3) Dividir a classe

média entre uma “burguesia progressista” e outra formada por “traidores da pátria”,

formando assim um “esquema de pressão”; 4) Expurgo e debilitação da burguesia; 5)

 Nacionalização das indústrias e bancos, eliminação da Igreja, da Justiça e das tradições

culturais; 6) Por fim, a instituição do partido único e de um processo eleitoral

fraudulento, que sempre garante a vitória do Governo.  Com esse tipo de “reportagem”,

O Globo visava convencer seus leitores de que estava em curso no Brasil tal tipo de

manobra.

466 O Globo, 29 de maio de 1962, p.2.467 O Globo, 4 de junho de 1964.468 KOZAK, Jan. O assalto ao parlamento. Rio de Janeiro: IBAD, 1962. Voltaremos a ele no próximocapítulo.469 Uma interessante discussão sobre a importância desse panfleto está em MOTTA, Rodrigo Patto Sá.Em guarda contra o “Perigo Vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva;FAPESP, 2002, p.248.

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Se é notório que, ao contrário destas fantasias, os comunistas brasileiros não

estavam nenhum pouco dedicados a organizar uma insurreição revolucionária, de fato,

no plano nacional se dava o fortalecimento das posições do PCB na relação de forças

 políticas nacionais, em especial no tocante ao reconhecido peso que os comunistas

 possuíam nos movimentos sociais e na intelectualidade. E não foi por acaso que o apoiodo PCB ao nome de San Tiago Dantas para o cargo de presidente do Conselho de

Ministros Parlamentarista esteve ligado aos compromissos públicos que este assumiu

com a legalização do Partido.470 Deste modo, claramente, o PCB ligou o nome de San

Tiago Dantas à formação de um “gabinete democrático e nacionalista”, formulação que,

 já vimos, vinha pelo menos desde a Declaração de Março de 1958, mesmo ano em que o

PCB fez sua guinada programática reformista e o PTB estabeleceu relações mais ou

menos públicas com os comunistas. A direita soube muito bem aproveitar o ensejo para

ligar mais uma vez Dantas aos comunistas, mas o fato é que não era certamente umesquerdista.471 Todavia, com o acirramento da campanha anticomunista – que em abril

de 1962 expressou-se no atentado terrorista do Movimento Anti-Comunista (MAC) de

Carlos Lacerda à exposição soviética –,472  a campanha para marcar o Chanceler

demissionário como “influenciado pelos comunistas” ganhou a maioria conservadora

dos parlamentares. Mesmo assim Goulart insistiu em indicá-lo, e no dia 28 de junho o

nome de San Tiago Dantas foi recusado por 172 votos contra 111.

De acordo com René Dreifuss, a campanha que levou a que a Câmara dos

Deputados recusasse o nome do trabalhista mineiro foi uma das mais marcantes ações

da ADP na oposição ao bloco nacional-reformista.473 Isto porque, segundo esse autor, o

nome de San Tiago Dantas teria representado a última chance de Goulart compor um

governo “consensual liderado pela burguesia”, de modo que o episódio significou um

470 Na ocasião, pedida por Luís Carlos Prestes ao TSE coincidentemente no mesmo dia da greve geral de julho, após colher mais de 50 mil assinaturas, conforme requeria a legislação eleitoral.471 É de sua lavra a distinção, posteriormente adotada por Thomas Skidmore no livro Brasil, de Getúlio àCastelo, entre a “esquerda positiva” – que englobaria ele próprio e outros setores moderados – e a“esquerda negativa” – que compreenderia figuras como Brizola, Julião e o movimento sindical.472 Em 18 de maio de 1962, durante a Exposição da URSS, no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro,

uma bomba foi deixada no cinema da exposição, mas a mesma não explodiu, tendo o mecanismo falhadoantes que um funcionário da chancelaria russa localizasse o artefato, que estava programado para explodiràs 22hs. Às 21hs o mecanismo emperrou, o que sustou o atentado terrorista que, do contrário, poderia tervitimado milhares de pessoas que lotavam a Exposição. O Globo apoiou e divulgou as explicações dadas

 pelas autoridades policiais da Guanabara, mas é sabido que tal atentado fora planejado na Secretaria deSegurança Pública do governo de Carlos Lacerda. Ver as edições de  O Globo dos dias 21, 22 e 23 demaio de 1962. Neste ano esse foi o terceiro atentado do MAC: o primeiro foi a sede da missão comercialsoviética, na rua Alice, Rio de Janeiro, e o segundo a sede da UNE, na Praia do Flamengo, na mesmacidade.473 Segundo Dreifuss, o IBAD aclamou a posição da Câmara como uma “grande vitória conduzida pelaADP”. Ação Democrática, julho de 1962, p.6-7, apud DREIFUSS, 1964, op. cit., p.323.

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sinal claro de que a classe dominante rejeitava um composição com o trabalhismo

reformista.474 

4.2 A montagem do dispositivo grevista

Ainda no início de junho, diversos líderes sindicais haviam declarado publicamente que estaria sendo preparada uma greve geral para apoiar a indicação de

San Tiago Dantas, que, acreditavam, seria capaz de constituir um “gabinete nacionalista

e democrático” que tivesse como programa a realização das reformas de base.

Percebendo as iniciativas tomadas pela direita no sentido de impor um gabinete

conservador a Jango, a esquerda sindical começou a aprofundar suas articulações com

vistas a construir um dispositivo grevista que funcionasse em apoio ao movimento

nacionalista e em oposição a uma nova tentativa de golpe. No início deste mês,

lançaram um manifesto na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) que colocava a

 possibilidade de deflagração de uma greve geral pela formação de um gabinete

nacionalista, com elementos da FPN que tivessem compromisso com as reformas de

 base, e medidas imediatas de caráter econômico, como a revisão do salário mínimo e a

aprovação da lei que instituía o abono de Natal.475 

Em 4 de junho San Tiago Dantas foi a uma solenidade no Sindicato dos

Metalúrgicos da Guanabara, organizada pelas entidades sindicais do estado e onde

 proferiu uma conferência sobre a política externa. Conforme noticiou a imprensa

sindical carioca,476  a massa operária que lotou as dependências da entidade aplaudiu

entusiasticamente o Chanceler, que também pôde ouvir do presidente em exercício da

CNTI, Dante Pelacani, um manifesto em que era exigida a formação de um Conselho de

Ministros “democrático e nacionalista”, capaz de realizar as tais “reformas de base”. E

no mesmo documento em que se denuncia a existência de rumores sobre um golpe

direitista, é anunciada a realização de uma greve geral para pressionar as instituições a

repelirem tal ameaça.

474 San Tiago Dantas continuaria a buscar angariar o apoio da burguesia ao governo Goulart, envolvendo-se posteriormente na elaboração – ao lado de Celso Furtado – do Plano Trienal, até a tentativa deformação de uma “Frente Ampla em apoio às Reformas de Base”, que envolveria desde quadros do PSDaté o PCB. Em todas essas tentativas, fracassou.475  Novos Rumos, Rio de Janeiro, 1 a 7 de junho de 1962, p.1. Consultado no Arquivo da MemóriaOperária do Rio de Janeiro (AMORJ). O Semanário, 21 de junho de 1962, p.2. Consultado na Biblioteca

 Nacional (RJ).476  O Bancário, Rio de Janeiro, 13 de junho de 1962, p.4. Biblioteca Aloísio Palhano do Sindicato dosBancários do Rio de Janeiro.

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E num ato público realizado no Palácio dos Metalúrgicos em São Paulo, no dia 5

de junho (em que o Chanceler também conferenciou), Pelacani leu o mesmo manifesto

em que afirmava que, tal como haviam feito na Crise da Legalidade no ano anterior, os

trabalhadores fariam uma “greve geral, com maior experiência, com mais unidade, com

mais firmeza e com mais organização, unidos a todo o povo, às forças patrióticas edemocráticas em nossa pátria”. Acabava conclamando todos os trabalhadores e suas

organizações a se reunirem em assembleias, mesmo nos “locais de trabalho”,

organizando atos públicos, com vistas à preparação de uma greve geral. Conclui assim o

manifesto:

“Assim como fizemos em 25 de agosto de 1961, faremos agora a grevegeral, com maior experiência, com mais unidade, com firmeza e commais organização, unidos a todo o povo, às forças patrióticas edemocráticas de nossa pátria. Estamos alertas e organizandos nos locais

de trabalho e nos sindicatos, as nossas forças. Não seremos colhidos desurpresa. Estamos denunciando os manejos antinacionais eantidemocráticos, para unir num só movimento os que lutam por umgoverno formado pelas forças nacionalistas e democráticas, apoiado nostrabalhadores e no povo, que realize as necessárias e imprescindíveisreformas de base.

Conclamamos a todos os trabalhadores e suas organizações arealizarem assembleias e reuniões nos locais de trabalho; organizarematos públicos, para examinar a situação que atravessa o país e envidarem,desde já, todos os esforços na preparação da greve geral, para serdesencadeada no momento em que ela se torne necessária, sob ocomando de suas organizações.”477 

Existem fortes indicações de que o líder sindical trabalhista circulou por outros

estados brasileiros com o mesmo propósito. Em Recife, por exemplo, principal centro

 político nordestino, o semanário comunista A Hora de meados daquele junho estampou

a manchete “Greve geral no país contra golpe”, onde são narradas reuniões e

assembleias sindicais, como a ocorrida no Sindicato dos Tecelões de Pernambuco, onde

também Dante Pelacani compareceu para defender a montagem do dispositivo sindical

grevista.478 

Segundo Jover Telles, encarregado da área sindical do semanário comunista Novos Rumos, no dia 22 de junho, durante uma manifestação nas escadarias do Palácio

Tiradentes no Centro do Rio, o manifesto lido por Pelacani no início do mês já contava

477 Transcrito em TELLES, Jover. O movimento sindical no Brasil. São Paulo: Livraria Editora CiênciasHumanas, 1981, p.151-152.478  A Hora, Recife, 9 a 15 de junho de 1962, p.1 e 7. Hemeroteca do Arquivo Público Estadual dePernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).

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com a subscrição de mais de 1.300 entidades de todo o país.479  Manifesto similar

apareceu no dia 14 de junho, só que já assinado também pelos representantes da

CONTEC, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Marítimos,

Fluviais e Aéreos (CNTTMFA), além das federações nacionais de estivadores,

 portuários, marítimos, arrumadores, ferroviários, os sindicatos nacionais dos aeroviáriose aeronautas, e a União dos Portuários do Brasil e a CPOS da Guanabara. No dia 25 de

 junho ocorreu um comício na Praça da Sé (SP) com cerca de 10 mil pessoas, e no dia

seguinte uma passeata na Guanabara. Também por esses dias centenas de sindicalistas

foram a Brasília reclamar no Senado a aprovação do abono de Natal e do salário família

(cujos projetos de lei já haviam passado pelo crivo da Câmara no ano anterior),

aproveitando a ocasião para expressarem sua posição ante a formação do novo

gabinete.480 

É certo que elementos ligados a Goulart também fomentaram a “ameaça degreve geral” como forma de pressionar os setores conservadores do Congresso a

aceitarem o nome de Dantas. Mas são muitas as evidências de que Jango não desejava a

greve. Pelegos como Gilberto Crockatt Sá, assessor sindical de Jango, acompanhavam a

movimentação dos líderes operários. Mas os comunistas e os elementos de esquerda do

PTB não tinham grande confiança em figuras como essa.481 Outros também apelariam

479 TELLES, op. cit., p.152.480  Novos Rumos, Rio de Janeiro, 29 de junho a 5 de julho de 1962. A campanha por estes direitos sociais

se estendia desde o ano anterior, quando o movimento operário paulista tentou organizar uma greve geralem dezembro de 1961. O movimento malogrou ante a violenta repressão do governo Carvalho Pinto,apoiado pelos ministros da Justiça (Alfredo Nasser) e do Trabalho (Franco Montoro), e naturalmente pelaFIESP, quando a força pública do estado de São Paulo realizou centenas de prisões de sindicalistas. Mas,como esclarece o historiador Murilo Leal Pereira Neto, o movimento não pareceu “intimidar-se com ofracasso da paralisação”, retomando uma agenda de mobilizações que culminaria com a assinatura da lei

 por Goulart em 13 de julho de 1962. O Senado só aprovou a lei no dia 27 de junho. Em nossa opinião, agreve de julho de 1962 foi decisiva para a conquista deste direito. Ver PEREIRA NETO, A reinvenção dotrabalhismo no “vulcão do inferno”, op. cit., p.276-287. CORRÊA, Larissa Rosa. “Abono de Natal:gorjeta, prêmio ou direito? Trabalhadores têxteis e a Justiça do Trabalho.” Esboços, Florianópolis, v.20,n.16, p.12-30, 2006. MELO, Demian Bezerra de. “Greve geral e direitos do trabalho no Brasil: o caso do13º salário.” In. MARCONSIN, Cleier & MARQUES, Maria Celeste Simões (orgs.). Trabalho e Direitos:Conquistas e retrocessos em debate. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2013, p.13-28.481 Isto também é relatado nas memórias de significativos elementos do sindicalismo de esquerda, como

no livro A caixa-preta do golpe de 64, do comandante Paulo de Mello Bastos, onde ele revela como, naverdade, Jango queria que seu assessor na área sindical fosse o Clodsmidt Riani, sindicalista de Juiz deFora e eleito presidente da CNTI no final de 1961. Foi a eleição de Riani que significou o alijamento do

 pelego histórico Deocleciano de Holanda Cavalcanti – que se dirigia ao sindicato de Cadillac – e aascensão do sindicalismo de esquerda na entidade, que se tornou um importante apoio institucional amuitas lutas e culminou na criação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) em agosto de 1962. Noano seguinte, Crocaktt de Sá se aliou a Holanda Cavalcanti para combater a influência do CGT no meiosindical. Ver MELLO BASTOS, Paulo de. A caixa-preta do golpe de 64. A república sindicalista que nãohouve. Rio de Janeiro: Família Bastos Editora, 2005. Ver também REZENDE PAULA, Hilda &ARAÚJO CAMPOS, Nilo (orgs.). Clodesmidt Riani: trajetória. Juiz de Fora: Funalfa Edições; EdUFJF,2005.

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 para que as lideranças do movimento operário descartassem o recurso à greve política,

como foi o caso do próprio San Tiago Dantas. Segundo uma reportagem do  Jornal do

 Brasil, ao desembarcar no Aeroporto Santos Dumont no Rio de Janeiro, logo após ter

seu nome recusado pelo Congresso, o ex-titular da Pasta do Exterior “fez um apelo aos

líderes sindicais para que não seja promovida greve alguma por motivo do veto daCâmara à sua indicação para Primeiro-Ministro”.482 

Como já dissemos, a ideia original era que a greve ocorresse para forçar o

Congresso a aceitar o nome do ex-Chanceler. Entretanto, exceto na capital baiana, não

houve sinal de greve no momento imediato ao veto ao nome de San Tiago Dantas. Em

Salvador, o que seria uma simples manifestação da esquerda nacionalista em desagravo

a Goulart (e contra a carestia de vida), acabou em mais um ato de truculência desmedida

do governador udenista Juracy Magalhães. Segundo um telegrama enviado da Bahia ao

Sindicato dos Bancários de Pernambuco, “a repressão se deu com o espancamento devários populares e do próprio presidente da Comissão Permanente das Organizações

Sindicais, [o] bancário Raimundo Reis”.483 Em reação, foi decretada greve geral de 24

horas em toda a cidade de Salvador, paralisando principalmente marítimos, portuários,

 bancários e operários do petróleo.484 

O episódio repercutiu em todo o meio sindical do país.485  Em um  Boletim

reservado da Polícia Política da Guanabara,486 encontramos a menção a este caso com a

reprodução de um manifesto assinado pela Comissão Permanente de Organizações

Sindicais (CPOS) da Bahia, o Pacto de Unidade Operário-Estudantil-Camponês, União

dos Estudantes da Bahia e uma série infindável de organizações sindicais baianas,

documento apreendido pelos “meganhas” cariocas.487 O manifesto associa a truculência

482  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de junho de 1962, p.1.483 Última Hora, Recife, 29 de junho de 1962, p.2.484  E de acordo com reportagem do  Jornal do Brasil, “O Sindicato dos Bancários do Norte e Nordestetelegrafou ao Governador Juraci Magalhães protestando contra as violências policiais que atingiram olíder bancário Raimundo Reis. Em resposta, o Governador afirmou que “o telegrama falseia a verdade, aoexplicar as causas dos incidentes”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 de junho de 1962, p.3.485 “Greve de bancários na Bahia em defesa das liberdades e por um gabinete nacionalista.” O Bancário,

Rio de Janeiro (GB), 29 de junho de 1962, capa. Biblioteca Aloísio Palhano do Sindicato dos Bancáriosdo Rio de Janeiro.486  Boletim Reservado, n.112, 2 de julho de 1962. Fundo Polícias Políticas. Arquivo Público do Estado doRio de Janeiro (APERJ), Rio de Janeiro (RJ). Voltaremos a um exame mais detalhado destadocumentação policial no próximo capítulo.487 São elas: Federação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas da Bahia; União dos Ferroviários daBahia; Federação dos Empregados do Comércio da Bahia e Sergipe; Sindicato dos Empregados emEstabelecimentos Bancários da Bahia; Sindicato Nacional dos Marinheiros; Associação dos Lavradores eTrabalhadores Agrícolas; Sindicato Nacional dos Foguistas da Marinha Mercante; Sindicatos dosEmpregados na Extração do Petróleo da Bahia; Sindicato dos Operários Portuários da Bahia; SindicatoAssociação Profissional dos Ferroviários da Bahia; Sindicato Nacional dos Taifeiros; Sindicato dos

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da polícia baiana no dia 27 de junho à oposição do governador Juracy Magalhães

(UDN) à “realização das reformas de base”, hipotecando total solidariedade às vitimas

da violência governamental, em particular à sofrida pelo líder bancário e presidente em

exercício da CPOS baiana, Raimundo Ramos Reis, que havia sido brutalmente

espancado. A greve geral de protesto em Salvador ocorreu a partir do meio dia de 28 de junho, seguida por um comício no fim da tarde na Praça Castro Alves, centro da capital

 baiana.

Voltando ao cenário carioca, no mesmo dia em que a Câmara rejeitava o nome

de San Tiago Dantas, e na Bahia o governador colocava a Polícia Militar para reprimir

uma manifestação popular, os dirigentes da CNTI, CONTEC, CPOS-Guanabara e o

PUA realizaram uma reunião extraordinária com a participação de todos os dirigentes

sindicais da Guanabara e também de representantes de entidades de São Paulo, Minas

Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Paraíba. Da reunião, o já agora formadoComando Nacional de Greve divulgou um manifesto em que era reafirmada a

disposição de realizar uma greve geral para que fosse formado um Gabinete

“democrático e nacionalista”. 488 Só que o sentido da prometida greve não seria mais o

mesmo.

4.3 Auro Moura Andrade

Alguns dias depois, quando o Comando Geral de Greve se reuniu naquela tarde

de 4 de julho, Goulart já havia feito sua segunda indicação ao Congresso Nacional, o do

senador pessedista por São Paulo, Auro Moura Andrade. O senador havia sido um dos

artífices da posse constitucional de Goulart sob o parlamentarismo, entretanto era

claramente pertencente às hostes mais à direita do PSD, não sendo por acaso que

assumiu posição golpista na crise de março/abril de 1964.489 Segundo Jover Telles, o

nome do senador paulista teria surgido de uma reunião realizada entre as cúpulas da

Metalúrgicos da Bahia; Sindicato dos Comerciários da Bahia; Sindicato dos Oficiais Eletricistas de

Salvador; Sindicatos dos Trabalhadores nas Indústrias de Carnes e Derivados; Sindicato dosTrabalhadores em Óleos Vegetais; Sindicato dos Empregados em Hotéis e Restaurantes; Sindicato dosTrabalhadores na Indústria da Panificação; Sindicato dos Marceneiros; Associação Profissional dosEmpregados da Universidade da Bahia; Associação dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias;Sindicato dos Empregados em Carris Urbanos da Cidade de Salvador; Sociedade Protetora dos Moradoresda Boca do Rio; Associação Profissional dos Empregados em Farmácias; Sindicato dos Motoristas daMarinha Mercante.488 “Trabalhadores reafirmam: Gabinete nacionalista para solução da crise.” O Bancário, Rio de Janeiro(GB), 29 de junho de 1962, p.3. Biblioteca Aloísio Palhano do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro.489 Foi ele que declarou “vaga a Presidência da República” em sessão tumultuada que sacralizou o golpede Estado no Congresso.

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UDN e do PSD com o próprio Goulart, ladeado pelo senador por Goiás e ex-presidente

Juscelino Kubitschek e o governador gaúcho, Leonel Brizola.490  Diante destes

acontecimentos, em todos os meios sindicais surgiram protestos pelo fato das forças

 populares não terem sido escutadas na articulação da nova indicação. Que seja

ressaltado que o protesto era dirigido a todos esses personagens, e não só à direita parlamentar. Entretanto, não resta dúvida de que o propósito de Goulart não era o de

empossar Moura Andrade na presidência do Conselho de Ministros, mas, numa

manobra certamente arriscada, desgastar o próprio parlamentarismo (e arrancar do

Congresso Nacional a antecipação da realização do plebiscito sobre o novo sistema de

governo). Vejamos isso mais de perto.

A direita apoiou ostensivamente o nome do presidente do Senado, pois

acreditava ser possível, através dele, impor um gabinete totalmente alheio ao presidente

Goulart. Seria um aprofundamento do “golpe branco” parlamentarista. E de fato, aodiscursar perante a Câmara dos Deputados no dia 2 de julho, apresentando o que seriam

as linhas gerais de seu governo, Moura Andrade deixou claro que não desejava

compartilhar o poder com Jango:

“O Senhor Presidente da República, no cumprimento do Ato Adicionalno4, indicou o Primeiro Ministro e a este cabe, na forma constitucional,escolher os que devem compor o Conselho Governativo da Nação.

 Não considerado eu desmerecedora (sic) uma recusa ao meunome por motivo de minhas convicções; mas não aceitaria, em nenhumahipótese, a minha aprovação por mais generosa que ela fosse, paraexercer nominalmente a chefia de um gabinete.

Se aprovado pela Câmara dos Deputados, imediatamenteiniciarei as consultas indispensáveis à formação do Ministério, com amais ampla liberdade, com a mais ampla autoridade, sem o menorconstrangimento, no uso pleno das prerrogativas que o posto meconfere.”491 

Além disso, o programa de governo apresentado anunciava que a prioridade número 1

seria o combate à inflação, no que anunciou medidas muito duras:

“Bem sei que as medidas a serem tomadas serão, por certo, impopulares,

mas há momentos na vida de um povo em que o seu governo precisaarrostar todos os riscos de mal querença e de incompreensão, para salvá-lo do naufrágio e merecer o respeito dos homens do futuro.”492 

490 Telles caracteriza essa escolha entre as cúpulas políticas como um verdadeiro “cambalacho”. TELLES,op. cit., p.159.491  Diário do Congresso Nacional, Brasília, 3 de julho de 1962, Seção I, (Suplemento), p.27, grifosnossos.492  Idem, ibidem.

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Moura Andrade também descartou qualquer compromisso com uma das pretensões de

João Goulart naquele momento, que era a mais breve possível realização de um

 plebiscito sobre a continuidade ou não do parlamentarismo, dispositivo previsto no Ato

Adicional. Surgiram rumores de que Goulart exigiria de Andrade o compromisso com a

antecipação do plebiscito, para que este coincidisse com as eleições de 7 de outubro.Para a imprensa, Andrade desconversou o assunto.493 

Em oposição a esta indicação, os parlamentares da Frente Parlamentar

 Nacionalista (FPN) denunciaram a manobra para esvaziar os poderes “que ainda

restavam” a Goulart. Antes mesmo da ordem do dia da sessão que elegeu Moura

Andrade, o deputado Lício Hauer (PTB-RS) apresentou uma questão de ordem para

anunciar que havia feito chegar ao conhecimento dos presentes um manifesto assinado

 pelas entidades de cúpula do sindicalismo brasileiro, cujo teor era a frontal oposição à

indicação do senador Auro Moura Andrade.494  Por sua vez, a bancada da UDNdenunciou que tal documento era “subversivo”, provocando um bate-boca entre os

 parlamentares udenistas e os da FPN. Não obstante a elevação da temperatura em

Brasília, naquele 2 de julho a Câmara dos Deputados aprovou o nome de Moura

Andrade por 223 votos contra apenas 47 (basicamente do PSB e dos setores não

fisiológicos do PTB). Auro Moura Andrade era ostensivamente apoiado por diversos

setores das classes dominantes, como o conjunto das associações comerciais, através da

declaração de seu presidente Rui Gomes de Almeida,495  – que também era elemento

 proeminente do IPES no Rio de Janeiro.

 Na verdade, em vez de se encaminhar para uma resolução, a nova crise política

só se aprofundava, pois estava claro que a subida de tal gabinete chefiado por Moura

Andrade só poderia significar uma vitória definitiva dos setores que se haviam oposto à

 posse de Jango. Para a pasta do Exterior, por exemplo, Moura Andrade havia indicado

Vasco Leitão da Cunha, considerado “entreguista” pelos nacionalistas e contrário à

 política externa independente.496  Na área militar, assumiriam os postos de comando

 personagens que na crise de agosto se identificaram com posições golpistas. Ao mostrar

a Goulart a composição ministerial de seu gabinete, Moura Andrade recebeu de Jango a

irônica proposta de “nomear para o Ministério do Trabalho o presidente da CNTI,

493 O Globo, Rio de Janeiro, 02 e 03 de julho de 1962.494  Idem, ibidem, p.24.495  O Globo, Rio de Janeiro, 04 de julho de 1962. O título da reportagem foi “As classes produtorasaplaudem a escolha do novo primeiro-ministro”.496 Durante a ditadura, Vasco Leitão da Cunha ocuparia alternadamente a chancelaria e a Embaixada doBrasil em Washington.

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Clodsmidt Riani”. A especulação sobre a possível nomeação de Riani para a pasta

apareceu em um relato do próprio sindicalista mineiro, em depoimento dado a Hilda

Rezende Paula e Nilo de Araújo Campos, quando fala de uma reunião entre este e

Goulart durante essa crise ministerial. Na ocasião, Riani teve de voltar às pressas de

uma conferência internacional da CIOSL, na Alemanha Federal,497

 onde era o líder dadelegação da CNTI.498 

Segundo outro relato, presente em um  Boletim reservado da Polícia Política da

Guanabara, o sindicalista bancário Luiz Viegas da Mota Lima teria presenciado o

 presidente da República afirmando que, após o senador paulista apresentar um nome

notoriamente golpista para presidir uma pasta militar (o do Almirante Bardi), Goulart

teria dito que “se me apresentam um nome destes para o Ministério da Marinha, eu

apresento para o Ministério do Trabalho o Sr. Clodsmidt Riani”.499 Moniz Bandeira, que

à época era jornalista do Diário de Notícias e trabalhava como assessor de imprensa dodeputado trabalhista Sérgio Magalhães (PTB-GB),500  não menciona qualquer

especulação sobre o nome de Riani, e narra este episódio em seu já clássico livro O

governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil(1961-1964) como uma bem-sucedida

manobra política de Jango:

“O senador Auro Moura Andrade, do PSD, pretendeu, por sua vez,constituir um gabinete, de acordo com os líderes de partido, e Goulart,

497  Como já vimos no capítulo anterior, a CNTI estabeleceu vínculos orgânicos com a ConfederaçãoInternacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL) já em 1949. Neste Congresso de 1962, adelegação da CNTI compreendia também Benedito Cerqueira e Dante Pelacani, que chegaria a Berlimocidental na semana posterior à greve, e Riani não voltaria mais. Por discordarem da resolução que

 pretendia justificar uma intervenção imperialista em Cuba, Cerqueira e Pelacani abandonaram oCongresso, desfiliando a CNTI da CIOSL. Ver MORRIS, A CIA e o movimento operário americano, op.cit. WELCH, “Internacionalismo trabalhista...”, op. cit.498 Conforme um depoimento publicado, só chegando a Brasília no dia em que a greve estava na rua,Riani teve alguma dificuldade junto ao general Amaury Kruel, para conseguir uma audiência com Jango,que após algum impasse acabou lhe recebendo: “Ele estava num divã, muito pálido, porque tinha ficadosem dormir, sem comer direito, nesta situação há vários dias. Quando cheguei, deu um sorriso e falou: ‘ –Pois é, o Ranieri Mazzili está achando que você é um elefante grande para passar na garganta do

Congresso, e o Levi, banqueiro de São Paulo da UDN, nem está falando comigo. Mas está disposto aconversar comigo a esse respeito...’  Para ele falar assim, só se ele estivesse me indicando para oMinistério do Trabalho. Só podia ser. Uma dedução nossa aqui. Mas eu também não dei chance do Dr.Jango falar, não discuti o assunto. Fiz de conta que não escutei.” PAULA, & CAMPOS, Clodesmidt

 Riani, op. cit., p.224.499  Boletim Reservado, n.115, 9 de julho de 1962, p.8. Fundo Polícias Políticas, APERJ.500 Além disso, Moniz Bandeira era dirigente da Organização Revolucionária Marxista Política Operária(conhecida como POLOP), tendo produzido brilhantes análises políticas no calor daquelesacontecimentos. Ver BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz.  A renúncia de Jânio Quadros e a crise pré-64.São Paulo: Brasiliense, 1979. Por sua vez, o deputado Sérgio Magalhães era o líder da Frente Parlamentar

 Nacionalista no Congresso.

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que obtivera previamente uma carta sua de renúncia, fê-la divulgar, antesmesmo que ele assumisse o cargo de primeiro-ministro.”501 

Ou seja, vendo que a constituição de tal Gabinete jogaria por terra todas as suas

 pretensões de conseguir a volta do presidencialismo, Goulart jogou a sua “carta na

manga”. Por sua vez, o próprio Moura Andrade, em seu livro de memórias, afirma que,

como a maior parte do PTB havia votado contra sua indicação, estaria obrigado a

“escolher ministros entre as forças políticas que me apoiavam, e isto excluía ou

diminuía excessivamente a participação do Partido governamental”. Assim, alegou que

estava forçado a organizar a oposição a Jango.502 

Ainda no dia 3, às 21hs, após Moura Andrade ter apresentado ao presidente da

República algumas de suas indicações, a Rádio Nacional divulgou nota de Goulart sobre

a crise. Jango teria pedido ao Procurador-Geral da República, Evandro Lins e Silva,

 para estudar o Ato Adicional, no trecho referente à nomeação do Gabinete, e sua

apresentação ao Congresso (art. 9º). Sua intenção era “não mais transigir”: “Já transigi

duas vezes e não pretendo transigir mais. Perdi a paciência.”503 Enquanto isso, a direita

espalhava a notícia de que Jango queria impor na composição do novo ministério a

 presença de Dante Pelacani e Clodsmidt Riani, dois sindicalistas da esquerda do PTB e

aliados dos comunistas no movimento operário, naturalmente apresentados como

“comunistas”.504  Posteriormente, de forma pouco convincente e sem admitir que na

 prática fora derrubado, Moura Andrade afirmou em suas memórias que achou “melhor

devolver a indicação ao Sr. Presidente para que enviasse outro nome à Câmara dos

Deputados.” Na realidade, renunciou imediatamente às pressões de Goulart no final da

manhã do dia 4 de julho.

4.4 A direita se movimenta para o aprofundamento do “golpe branco”

 Não foram poucos os setores que consideraram a emenda parlamentarista um

“golpe branco”. O eminente jurista baiano João Mangabeira, em uma entrevista

concedida no início de novembro de 1961 ao jornal  Diário de Notícias  do Rio deJaneiro, afirmou de forma enfática que a Emenda Constitucional No 4 foi um “golpe de

501  BANDEIRA, O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil(1961-1964). 7ª edição revista eampliada, op. cit., p.77.502 ANDRADE, A. M. Um congresso contra o arbítrio. Diários e memórias, 1961-1967. Rio de Janeiro:

 Nova Fronteira, 1985, p.119.503  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4 de julho de 1962, p.3.504 Andrade recolhe a informação do diário de seu amigo golpista, gen. Olympio Mourão Filho, o “VacaFardada”. ANDRADE, Um congresso contra o arbítrio, op. cit., p.120.

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Estado” “análogo ao de 10 de novembro de 1937”,505 reverberando opinião emitida na

ocasião pelo líder petebista Almino Afonso.506 Por sua vez, no panfleto Por que votar

contra o parlamentarismo no plebiscito?, produzido pelo Instituto Superior de Estudos

Brasileiros (ISEB), de outubro de 1962, a mesma posição é endossada acrescentando

que“Portanto, o que se deve ter em conta não é se o estado de sítio foidecretado, mas se o estado de sítio existiu. Foi, efetivamente, o queaconteceu em agosto de 1961: os detentores do poder não formalizavamo estado de sítio, existindo o estado de convulsão no país, justamente

 porque isso lhes retiraria, formalmente, as condições para alterar aconstituição. (...)

“Ora, quem ousará dizer que o Brasil não se encontrava emestado de sítio ao ser votada a emenda parlamentarista?”507 

Para além destas interpretações político-jurídicas, na verdade o parlamentarismo

também foi o resultado de um empate, pois também golpistas como o governadorLacerda e general Golbery tiveram que se contentar com a posse de Jango (esse último,

em seguida, foi fundar o IPES). Por outro lado, setores conservadores do Congresso

sentiram-se fortalecidos no parlamentarismo, pois sob essa capa institucional poderiam

tolher as pretensões de Goulart. Assim, diante da anunciada mudança do gabinete, estes

também se movimentariam no sentido de desempatar o jogo ao seu favor, impondo uma

composição ministerial que esvaziasse completamente qualquer possibilidade de

Goulart recuperar seus poderes. E claramente a direita viu na eleição de Auro Moura

Andrade, por uma maioria expressiva no Congresso, a possibilidade desse desempate,

realizando o aprofundamento do “golpe branco”. Como vimos, o próprio Moura

Andrade era uma peça chave nesse esquema golpista, pois o mesmo deixou claro que

em seu virtual gabinete não desejava dividir o poder com Goulart. Em alguns casos,

esse propósito também foi explicitado por frações expressivas das classes dominantes

que já se articulavam em torno do IPES.

Isso pode ser verificado através da  Revista das Classes Produtoras, órgão do

CONCLAP,508 onde se pode ler a ata da reunião realizada no mesmo dia 4 de julho de

505 Citado em VICTOR, Mário. 5 anos que abalaram o Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1965, p.430.506  Deputado trabalhista pelo Amazonas, Almino Afonso era também o líder do chamado “grupocompacto” do PTB, que era a ala mais à esquerda e ideológica do partido, em contraste com setorchamado de fisiológico. Opondo-se à emenda parlamentarista, ele a caracterizou na ocasião de “golpe

 branco”.507  Porque votar contra o parlamentarismo no plebiscito?  Rio de Janeiro: ISEB, 1962, p.24-25.Consultado no Arquivo João Goulart, CPDOC-FGV [JG pr 1961.08.25].  

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1962, na sede da Associação Comercial do Rio de Janeiro, também no centro da

cidade.509 Presidida pelo mesmo Rui Gomes de Almeida, outros membros do conselho

diretor do CONCLAP apresentaram a reivindicação de que a Associação Comercial se

 posicionasse conforme a seguinte nota emitida no mesmo dia 4 pelo Clube de Diretores

Lojistas do Rio de Janeiro:“O CLUBE DE DIRETORES LOJISTAS DO RIO DE JANEIRO, considerandoa importância do atual momento político, quando são colocadas em risco asinstituições democráticas e a autoridade do Congresso Nacional, vê-se naobrigação, sob pena de cometer grave omissão, de manifestar suas apreensões.

A crise política tem sua origem num erro de apreciação sobre qual overdadeiro poder político numa Nação que se rege pelo sistema democrático.Cabe, dentro do Ato Adicional da Constituição vigente, ao Presidente doConselho de Ministros indicar os demais Ministros de Estado e à Câmara dosDeputados – somente a ela – depois de nomeado o Conselho pelo Presidente daRepública, aprovar, soberanamente, sem pressões inadmissíveis, partam de onde

 partirem, a formação deste Conselho. Outra interpretação só poderá ser feita poraqueles que desejam a subversão da ordem e, com ela, a subversão do regime.Bem ou mal, os Deputados representam o povo e desrespeitá-los nesta hora,

 pretensamente em nome do povo, seria mistificar a opinião pública. Cabe, portanto, ao Congresso exercer o poder político da Nação e às Forças Armadaso dever indeclinável de manter a vontade do Congresso. À imprensa outro deverincumbe, qual seja o de informar, serena e desapaixonadamente, fazendo sentir àopinião pública de que a sobrevivência do regime democrático só se garante comobservância absoluta das deliberações do Congresso Nacional.

Rio de Janeiro, 4 de julho de 1962”510 

Em suma, explicitamente é apresentada uma interpretação da lei para favorecer uma

manobra de esvaziamento dos poderes de Goulart; o poder político, segundo esta nota,

deveria então ser exercido pelo Congresso, sob a guarda das Forças Armadas. Era a

senha para o aprofundamento do “golpe branco”. Mas enquanto acontecia essa reunião

entre os empresários na Casa de Mauá,511  ali perto, em outra reunião política,

508  O Conselho Superior das Classes Produtoras foi criado em 1959 congregando empresáriosempenhados em um projeto modernizante-conservador no Brasil. Segundo Dreifuss, “O CONCLAP doRio englobava a Associação Comercial do Rio de Janeiro e o Centro de Indústrias do Rio de Janeiro (doisórgãos que lhe davam expressivo apoio), o Centro de Seguros e Estudos de Capitalização, a Associação

dos Bancos do Estado da Guanabara, a Associação Brasileira de Relações Públicas, a AssociaçãoBrasileira de Propaganda, o Clube dos Diretores Lojistas do Rio de Janeiro, a Associação dosEmpregados de Comércio e a Associação de Proprietários de Imóveis, entre outros. Os membros doCONCLAP-Rio viam-se intimamente ligados à Escola Superior de Guerra, muitos deles ex-alunos ou

 professores dessa instituição militar.” DREIFUSS, op. cit., p.97.509  Revista das Classes Produtoras. Revista da Federação das Associações Comerciais do Brasil e daAssociação Comercial do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ano XXV, Agosto de 1962, n.938, p.68.Biblioteca Nacional (RJ).510  Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, p.2, grifo nosso.511  Localizada na Rua Candelária, 9 – Centro do Rio de Janeiro, a Casa de Mauá, como também éconhecido prédio da Associação Comercial do Rio de Janeiro, está bem próxima da antiga sede da CNTI.

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mencionada no início do capítulo, preparava-se uma ação que mais decisivamente

interviria na crise.

4.5 No meio do caminho havia uma greve...

A reunião na sede da CNTI da tarde de 4 de julho quase foi adiada porinsistência do próprio Pelacani, que desejava ver primeiro o desenrolar dos

acontecimentos. Contudo, por pressão dos outros líderes presentes, por volta das

13:45hs foi instalada a plenária. As novas notas políticas dos generais Osvino Alves

Ferreira e Jair Dantas Ribeiro, comandantes do I e III Exércitos, respectivamente, e do

governador gaúcho Leonel Brizola, divulgadas pela imprensa matutina, acirraram os

ânimos. Além do petebista, dirigiram a reunião o presidente da União Nacional dos

Estudantes (UNE), Aldo Arantes, pertencente aos quadros da recém-fundada Ação

Popular, e Hércules Correia, dirigente sindical do PCB e o primeiro a se pronunciar

sobre a conveniência de iniciar a greve. Sendo aceita a tese da greve pelos presentes,

instalou-se logo uma controvérsia sobre sua duração. Deveria durar 24 horas ou por

tempo indeterminado? A favor da tese da greve de um dia ficou a maioria dos líderes,

entre os quais Osvaldo Pacheco da Silva, líder do PUA e também militante comunista

de Santos.512 Após a polêmica, às 15h30m foi decidida a greve geral de 24 horas, sendo

então foi designada uma comissão para redigir um manifesto à Nação, composta por

Dalton Boechat (Sindicato dos Trabalhadores da Petrobrás), Aldo Arantes (UNE),

Roberto Morena (CPOS da Guanabara),513 Antônio Pereira (Sindicato dos Bancários), e

o próprio Osvaldo Pacheco. Eis o Manifesto:

“Manifesto à NaçãoAos Trabalhadores! Ao Povo em Geral!

512 Sergipano, Pacheco era um quadro histórico do PCB, tendo feito parte da legendária bancada eleita para a Assembleia Constituinte de 1946, cassada no ano seguinte. Estivador de profissão e comunista porconvicção, Pacheco desempenharia um dramático papel na crise final do governo Jango, quando secolocou como “escudo” para impedir que Goulart fosse eventualmente alvejado por um franco atirador,quando o presidente discursou em 13 de março de 1964, no Comício da Central.513  Importante dirigente operário comunista, Roberto Morena é personagem ímpar na história domovimento operário brasileiro. Iniciou sua militância política em 1917, como operário marceneiro, e em1924 ingressou no PCB. Lutou na Guerra Civil Espanhola e emigrou para o URSS, voltando ao Brasil em1943 com a tarefa de ajudar na reorganização do PCB – destroçado pelo aparelho repressivo do Estado

 Novo. Em 1946 tornou-se secretário-geral da efêmera Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB),fechada em 1947 pelo governo Dutra, levando a um novo exílio de Morena no México. Em 1950 é eleito

 pelo Distrito Federal para a Câmara dos Deputados, pela legenda do Partido Republicano Trabalhista, jáque o PCB estava ilegal desde 1947. Atuou na vanguarda do sindicalismo brasileiro até o golpe de 1964,exilando-se seguidamente no Uruguai, Chile e posteriormente na Tchecoslováquia, onde passou a ser orepresentante do Brasil na Federação Sindical Mundial, principal organização internacional dosindicalismo simpático a Moscou. Faleceu em 1978.

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Como previmos, em nossos pronunciamentos, se trama contra alegalidade constitucional, se pretende implantar uma ditadura reacionária,acobertada com um Conselho de Ministros composto de inimigos jurados donosso progresso, de nossa independência e tranquilidade.

Uma maioria eventual na Câmara dos Deputados rejeitou a primeiraindicação do Presidente da República. Animados com essa votação, querem as

forças golpistas constituir um Conselho de Ministros de entreguistas e obrigar o presidente da República a sancioná-lo. Neste momento, apoiamos as enérgicas declarações do senhor presidente

da República e estamos coesos em torno de que não transija nem compactue comesses inimigos de nossa Pátria e de nosso povo. Estejam certos de que ostrabalhadores e as demais forças patrióticas, civis e militares, não permitirão sejarasgada a Constituição e se entronizem no Poder os que nos querem esmagar eamordaçar.

Em defesa da legalidade constitucional, em favor de um Conselho deMinistros nacionalista e democrático, em defesa das liberdades democráticas esindicais, de acordo com as decisões de nossos congressos e conferências, emdefesa de nossos lares ameaçados pela fome e a miséria, decretamos a GREVE

GERAL, em princípio, por 24 horas, a partir da meia noite de hoje, dia 4, e queunidos e mobilizados em nossos sindicatos e concentrações, aguardaremos a

 palavra de ordem do Comando Geral de Greve.A nossa greve, a nossa mobilização e a nossa unidade tornarão vitoriosos

os nossos objetivos que são os de todo o povo brasileiro.Por um governo democrático e nacionalista!Rio de Janeiro, 4 de julho de 1962.”514 

Além deste manifesto, o Comando apresentou uma lista com 18 reivindicações

que envolviam desde a luta contra a carestia de vida, direitos sociais até as reformas de

 base.“1) Luta concreta e eficaz contra a inflação e a carestia, mobilizandotodos os meios de transporte para condução de gêneros essenciais doscentros produtores para os consumidores, chegando-se, se necessário, atéo confisco dos estoques existentes;2) Reforma agrária radical e, de imediato, reconhecimento dos Sindicatosde Trabalhadores Rurais;3) Reforma urbana como única solução para o problema da casa própria;4) Reforma bancária, com a nacionalização dos depósitos;5) Reforma eleitoral, com direito de voto aos analfabetos, aos cabos esoldados das Forças Armadas e a instituição da cédula única para as

eleições de 7 de outubro;6) Reforma universitária e a participação de 1/3 de estudantes nasCongregações, Conselhos Departamentais e Conselhos Universitários;7) Ampliação da atual política externa do Brasil, pela conquista de novosmercados, em defesa da paz, do desarmamento total e daautodeterminação dos povos;

514 Citado em TELLES, op. cit., p.163-164.

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8) Repúdio e desmascaramento da política financeira do FundoMonetário Internacional;9) Aprovação da lei que assegura o direito de greve, nos termos do

 projeto aprovado pela Câmara Federal, com as emendas propostas e jáaprovadas pelos trabalhadores em suas conferências e congressos;10) Encampação, com tombamento, de todas as empresas estrangeiras

que exploram os serviços públicos;11) Controle da inversão de capitais estrangeiros no País e limitação daremessa de lucros para o exterior;12) Participação de trabalhadores nos lucros das empresas;13) Revogação de todo e qualquer acordo lesivo aos interesses nacionais;14) Fortalecimento da Petrobrás com o monopólio estatal da importaçãode óleo bruto, da distribuição de derivados a granel, da indústria

 petroquímica e a encampação das refinarias particulares;15) Medidas concretas e eficazes para o funcionamento da Eletrobrás;16) Criação da Aerobrás, instituindo o monopólio estatal na aviaçãocomercial;17) Manutenção das atuais autarquias que exploram o transporte

marítimo, assegurando-lhes o percentual de 50% das cargastransportadas, na importação e exportação, às embarcações mercantisnacionais;18) Aprovação da Lei que institui o pagamento do 13º mês de salário.”515 

Tomada a decisão de iniciar o movimento nacional, foi providenciada a

distribuição da “senha da greve” para os outros estados da federação, o que tornou a

decretação da greve nacional irreversível.516 Todavia, tão logo tomou-se a decisão, o

CGG instalado no CNTI começou a ser assediado por emissários de Jango. Pediam que

o movimento fosse sustado, já que, àquela altura, Moura Andrade havia renunciado. Aquestão é que os líderes sindicais só ficaram sabendo da renúncia do virtual Premier  às

16:00 hs, e meia hora depois o governador Brizola ainda telefonava para Pelacani

saudando o movimento. Ou seja, até aqui, tinha-se tudo para ter se iniciado um

movimento nacional grevista em apoio  e com o apoio do governo. Isso não fosse a

oposição do próprio Goulart à paralisação política, o que fez Brizola mudar de posição,

como veremos. Gilberto Crocraktt de Sá, presente naquela tarde na CNTI, teria

declarado a Brizola também pelo telefone: “O esquema inicial não era esse. A turma

não pode controlar mais e a greve foi mesmo decretada”. Daí em diante o assédio só seintensificou. O próprio San Tiago Dantas telefonou para a CNTI buscando falar com

Osvaldo Pacheco, mas o mesmo não se encontrava no local. Falou então com o

515 Transcrito em MIGLIOLI, Jorge. Como são feitas as greves no Brasil. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1963, p.117-118.516  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, p.3. Última Hora, Rio de Janeiro, 5 de julho de1962, p.2. TELLES, op. cit., p.163.

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secretário do PUA, Felipe Andrade, afirmando que tal movimento era “perigoso

demais”. Todavia o próprio Felipe Andrade teria afirmado que, mesmo que quisessem,

não era mais possível sustar a greve, pois as “senhas” já teriam sido distribuídas.517 

 Numa reportagem do Correio da Manhã  é possível aferir quão foram pressionados os

líderes grevistas:“Não sendo bem sucedido nos entendimentos que manteve,

 pessoalmente, com os grevistas, o sr. Gilberto Crockatt de Sá teve suamissão reforçada pelo presidente do Banco Nacional deDesenvolvimento Econômico [BNDE], o sr. Leocádio Antunes. Estechegou a CNTI, por volta das 17hs, mantendo conferências, a portasfechadas, até as 18hs e 45mim. O sr. Leocádio Antunes tentou em vão

 persuadir os articuladores da greve. Travou-se, então, o seguinte diálogoentre a autoridade e o sr. Pelacani, coadjuvado pelo sr. Roberto Morena.

L.A.: “Não se justifica o movimento, desde que a situaçãoevoluiu, com a renúncia de Auro.”

P.: “A sustação da greve desmoralizara (sic) os trabalhadores.”M.: “A ordem da greve já está nas ruas e os trabalhadores não poderão compactuar com nova conciliação.”

L.: “Não haverá conciliação pois o Auro já renunciou. Seu gestofoi consequência da nota do general Osvino e, logo, após, pela ratificaçãoda mesma, pelo general Machado Lopes. O Auro tem um gênio violento,mas se curvou à realidade militar.”

P.: “Nós queremos a volta do presidencialismo e esta greve tem,como o governo reconhece, outras finalidades.”518 

“Nem Cristo poderá detê-la!” disse Dante Pelacani aos jornalistas presentes na

sede da CNTI no final daquela tarde, quando indagado se atenderia o pedido doPresidente da República. Também o general nacionalista Osvino Alves Ferreira e o

deputado trabalhista da Assembleia Legislativa da Guanabara, Roland Corbisier, 519 

compareceram para tentar persuadir os grevistas. Os dois eram vistos com simpatia

 pelas lideranças sindicais. O próprio general Osvino, já vimos, que havia alertado para

uma conspiração visando a instalação de uma ditadura de extrema-direita no Brasil,520 

enquanto o deputado Corbisier participara ativamente das mobilizações ao lado dos

517  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, p.3. Segundo depoimento prestado por Hércules

Correa aos historiadores Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes (Rio de Janeiro, 2004, 4 horas degravação), Hércules era o dirigente sindical que possuía as tais “senhas”. FERREIRA, João Goulart: umabiografia, op. cit., p.353.518 Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, p.10.519 Roland Corbisier foi um proeminente intelectual nacionalista ligado ao Instituto Superior de EstudosBrasileiros (ISEB), tendo sido seu diretor-executivo desde sua criação (em julho de 1955) até 1960,quando se elegeu para a Assembleia Legislativa do recém-fundado Estado da Guanabara.520 Nos dias 26 e 27 Osvino discursou perante os cinco mil homens do Grupamento de Unidades-Escola(no sábado), e perante a tropa do I Grupo de Canhões Automáticos e Antiaéreos (no domingo). Nasegunda-feira (28) reunira-se com o Ministro da Guerra, Segadas Viana, pronunciando-se no mesmosentido. TELLES, op. cit., p.147. Novos Rumos, 1 a 7 de julho de 1962, p.3 e p.8.

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movimentos sociais na Guanabara, a exemplo do dia 22 de junho, quando discursou ao

lado de outras lideranças sindicais como Clodsmidt Riani, Luis Viegas da Mota Lima

(presidente da Federação dos Bancários do Rio de Janeiro, Guanabara e Espírito Santo),

o próprio Osvaldo Pacheco, Roberto Morena e o líder estudantil Aldo Arantes, nas

escadarias do Palácio Tiradentes. Na ocasião, diversos oradores proclamaram a preparação de uma greve geral contra os “gorilas”, sendo inclusive citados os eventos

ocorridos na Argentina em 29 de março daquele ano, quando um golpe derrubou o

governo de Arturo Frondizi.521  Todavia, nem mesmo essa intimidade e identidade

 política em torno do nacionalismo seriam suficientes para que o general e Corbisier

convencessem o Comando de Greve a reverter a decisão. E à medida que o tempo

 passava, em diversos pontos do país, assembleias de trabalhadores endossavam a

realização da greve política, tornando o desencadeamento do movimento inevitável.

4.6 “Movimento Inédito na História do País: Brasil em Greve”

Foi assim que o jornal carioca  Diário de Notícias  apresentou em manchete a

greve geral de 5 de julho: “Movimento inédito na História do País: Brasil em

Greve!”.522 E de fato, seria a primeira vez na história do Brasil que os trabalhadores

realizavam uma greve geral nacional. Digo os trabalhadores enquanto classe social, pois

 pelo menos algumas categorias já haviam realizado greves nacionais, como os

 bancários, na greve nacional bancária de 1946, e portuários, marítimos e ferroviários na

chamada “Greve da Paridade” em 1960. Nesta última, seria fundado o Pacto de Unidade

e Ação (PUA), a primeira intersindical que ultrapassava as barreiras regionais. E,

acreditamos, justamente por serem estas as categorias com maior experiência histórica

de organização nacional, foram as principais categorias a paralisar o trabalho em todas

as regiões do Brasil em julho de 1962. Todavia, também operários metalúrgicos, do

 petróleo, têxteis e construção civil, além de motoristas de ônibus e, no Nordeste, até

garçons e músicos, pararam de trabalhar naquela quinta-feira.

 Na Guanabara e no Estado do Rio de Janeiro a greve foi total, tendo sido

acompanhada de ondas de saques na Baixada Fluminense, especialmente em Duque de

521 Última Hora, Rio de Janeiro, 23 de junho de 1962, p.2. Arturo Frondizi governou a Argentina entre1958-1962. Pertencente a uma das alas da União Cívica Radical (UCR), autorizou que os até então

 proscritos peronistas disputassem as eleições provinciais daquele ano, que venceram em quase todo país,incluindo Buenos Aires. Para impedir a posse dos eleitos é que foi dado o golpe de Estado de 29 de marçode 1962.522  Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962. Ver Anexo 1, no fim desta tese.

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Caxias, Nova Iguaçu e São João de Meriti, onde o saldo foi de quarenta mortos e

setecentos feridos. A revolta popular repercutiu em todo o Brasil. É que durante esse

 período graves problemas de desabastecimento atingiam a região, provocando revoltas

que compreenderam desde saques de armazéns, empórios, mercadinhos, até o

“justiçamento” de comerciantes, acusados pelos populares de estarem sonegandoalimentos.523 Em alguns casos, lideranças sindicais envolveram-se nestes motins. Mas

logo uma comissão do Conselho Sindical do Estado do Rio reuniu-se com o comando

do I Exército para informar que “a greve não tinha nada a ver com essa onda de

saques”.524 

 Na capital Niterói, ainda no dia 2, populares saquearam estabelecimentos

comerciais em busca de víveres, no que foram repelidos pela Polícia Militar, que

realizou prisões.525 No dia 5 a onda de saques e conflitos entre populares e a polícia se

repetiram, desta vez com vítimas fatais entre os primeiros, que também “justiçaram”alguns comerciantes descobertos sonegando mercadorias, alguns dos quais foram

enforcados. Por sua vez, outros destes reagiram a bala, também fazendo suas mortes,

enquanto outros, em pânico, eletrificaram as portas dos estabelecimentos.526 Na própria

Guanabara, nos bairros de Rocha Miranda, Pavuna, Penha e Brás de Pina ocorreram

distúrbios.

Em relação à Baixada Fluminense, de acordo com o estudo do sociólogo José

Cláudio Souza Alves, quatro dias antes, moradores de Saracuruna, bairro de Caxias,

haviam descoberto um depósito clandestino de feijão em uma casa comercial chamada

“Maracanã”, e obrigaram o gerente a vender o produto à população.527 Ainda segundo

esse autor, a greve geral teve uma ligação direta com os acontecimentos na Baixada

Fluminense no dia 5 de julho, pois milhares de populares que, vindos de bairros

523  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06 de julho de 1962. Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 06 de julhode 1962.524  Idem.525  “Quebra-quebra.” Luta Democrática, Rio de Janeiro, 3 de julho de 1962, capa. Cabe aqui uma notasobre essa fonte, ou melhor dizendo, sobre sua linha editorial. O jornal  Luta Democrática era de

 propriedade de Tenório Cavalcanti, alagoano que se tornou um influente político da cidade de Caxias(RJ), de perfil violento e populista. Nas eleições de 1960 foi o candidato pelo Partido Social Trabalhista(PST) ao governo da Guanabara, onde perdeu para Lacerda, e em 1962, tendo sido inclusive apoiado

 pelos comunistas em sua candidatura ao governo do estado do Rio, perdeu mais uma vez agora paraBadger da Silveira, do PTB. A ditadura militar não o perdoaria por esta aliança (em todos os sentidos)espúria com os comunistas, e teve suas armas apreendidas e cassados seus direitos políticos. Sua históriatornou-se O homem da capa preta, filme de Sérgio Rezende (Brasil, 1986).526  “Povo saqueou o comércio: incendiada a fronteira fluminense” e “Polícia massacrou, negociantesreagiram a bala, multidão enfurecida linchou e enforcou.” Luta Democrática, 6 de julho de 1962, capa.527  ALVES, José Cláudio Souza.  Dos Barões ao extermínio: uma história da violência na BaixadaFluminense. Duque de Caxias: APPH-CLIO, 2003, p.93.

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afastados de Caxias, se aglomeraram na área próxima à praça Pacificador, no centro do

município, desejavam chegar aos seus locais de trabalho, mas não havia transportes

 públicos em decorrência da greve. Trens, bondes, ônibus, nada funcionava.

Aglutinando-se cerca de 20 mil pessoas, bastou que um dos populares começasse a

gritar que havia feijão em uma das casas comerciais da localidade. O que se seguiu foiuma multidão, numa explosão de fúria, saqueando, primeiro o armazém denunciado, e

depois outros estabelecimentos, tornando-se uma onda de saque e destruição de outros

armazéns, açougues e padarias. Ao meio dia todo o comércio do centro de Caxias havia

sido atingido, e por essa hora a revolta já havia se alastrado para as cidades vizinhas de

São João de Meriti e Nova Iguaçu. Alguns comerciantes que, desesperados, tentaram

defender suas propriedades, foram mortos pela fúria da população, chegando, alguns a

sacar armas e atirar contra os revoltosos, que também tiveram suas baixas.528 

Os problemas de abastecimento, parte de uma vasta crise social que se alastrava pelo país no embalo do início da recessão econômica, também produziu ondas de

saques no primeiro semestre daquele ano nas cidades nordestinas, especialmente as do

interior. Uma velha tradição de rebelião popular, quase um costume construido a partir

da experiência concreta das atribulações da vida numa região submetida ao domínio

arcaico do mandonismo e da seca. O saque nordestino, como uma forma de luta de

classes (ainda que sem classes, como ensina E. P. Thompson),529 recriou-se na Baixada

Fluminense. Numa busca desesperada pela sobrevivência, a classe que vive de seu

 próprio trabalho enfrentou de forma radical os poderes constituídos da ordem do capital:

a polícia e a propriedade privada. Mas teria essa experiência de classe alguma relação

com a crise política do país? José Cláudio Souza Alves tem uma boa resposta, pois

encontra um vinculo importante: o fato de que estabelecimentos comerciais que haviam

hasteado em suas fachadas a bandeira brasileira e dizeres em apoio à legalidade

528 “O dono de uma casa de material de construção, que, armado, tentou defender os bens de uma padaria

do seu vizinho, foi morto com um paralelepípedo. Na estrada Rio-Petrópolis, na altura do bairro deGramacho, um menor de 14 anos foi ferido e João Balbino, dono da boate Pampanini, que trocava tiroscom os populares, foi apontado como culpado. A boate foi então incendiada, e ele apedrejado pelamultidão, sendo removido em estado grave para o Hospital Getúlio Vargas. Já o comerciante portuguêsJosé Adriano dos Santos, após ter atingido um menor de idade, saiu correndo com a multidão atrás, eatirava a esmo quando a multidão o alcançou na avenida Nilo Peçanha e o trucidou. Na Vila São Luís, odono de uma padaria matou Ivonete Ottoni dos Santos.” Idem, p.94.529 THOMPSON, Edward Palmer. “La sociedad inglesa del siglo XVIII: ¿Lucha de clases sin clases?.”Tradición, revuelta y conciencia de clase. Estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona:Editorial Crítica, 1989, p.13-61. WOOD, Ellen Meiksins. “Classe como processo e como relação.”

 Democracia contra capitalismo, op. cit., p.73-98.

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democrática foram poupados.530 Houve, assim, ainda que em meio a uma ação caótica

como uma onda de saques, algum critério político. De qualquer modo, essa revolta

 popular acabou compondo um cenário mais radical e agressivo para a greve em meio à

crise política.

Voltemos ao desenrolar da greve propriamente dita, ainda na Guanabara.Os ferroviários da Estrada de Ferro Leopoldina foram a primeira categoria a

entrar em greve, por volta das 19h35m do dia 4 de julho.531 O ramal paralisado envolvia

os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Guanabara e Espírito Santo. Às 23h30m, o

comando de greve dos ferroviários divulgaria um boletim onde eram afirmados os

motivos da greve e a advertência de que esta deveria durar até às 24 horas do dia 5,

“podendo, no entanto, ser prorrogada indefinidamente, caso houvesse qualquer

violência contra qualquer companheiro”.532  As barcas que ligam a cidade do Rio a

 Niterói e ilhas próximas tiveram seu serviço suspenso à zero hora do dia 5, e às primeiras horas da manhã do dia deixaram de circular os bondes e os ônibus, estes

últimos também por iniciativa das empresas, temerosas da ação dos piquetes. Segundo o

 Jornal do Brasil,

“A greve na Guanabara paralisou os trens da Central e da Leopoldina, o porto, as lanchas Rio-Niterói e todo o transporte marítimo; os aviões,aeroportos e quase toda a frota de transporte rodoviário estadual. Pelafalta de transporte, o comércio, a indústria e quase todos os bancosestiveram fechados. Não houve expediente nas fábricas.”533 

Segundo reportagem do jornal do Sindicato dos Bancários da Guanabara, já na

noite do dia 4, centenas de ativistas sindicais compareceram à sede da entidade para

constituir comissões de organização e divulgação, que confeccionaram centenas de

cartazes da greve, os quais depois seriam colados ao longo da madrugada nas portas das

agências.534 Na manhã seguinte, esse muito bem organizado sindicalismo combateu nas

ruas do Centro do Rio pela vitória política da greve. Entretanto, a agressividade destes

combates, como era de se esperar, não partiu deles, e sim da repressão desencadeada

 pela Polícia Política e Social do governo da Guanabara, tendo inclusive o próprio Carlos530 Idem, p.95. Ver também TORRES, Rogério; MENEZES, Newton. Sonegação Fome Saque. Duque deCaxias: Consórcio de Administração de Edições, 1987. CATALEJO, Manoel Henrique de Souza. Omunicípio de Duque de Caxias e a ditadura militar: 1964-1985. Dissertação de mestrado em História.Rio de Janeiro, PPGHIS-UFRJ, 2008, p.57-65.531 O Globo, Rio de Janeiro, 05 de julho de 1962.532 O Dia, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, p.2.533  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06 de julho de 1962.534 “Flagrantes da Greve.” O Bancário, Rio de Janeiro (GB), 11 de julho de 1962, p.3. Biblioteca AloísioPalhano do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro.

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Lacerda realizado incursão ao centro do Rio, ladeado por policiais, com o propósito de

dispensar os piquetes de greve, prender ativistas e reabrir agências bancárias. Segundo

reportagem do jornal O Dia, às 8h da manhã o DOPS já começou a realizar detenções

nos piquetes, e Lacerda, armado com uma metralhadora, ia rasgando os cartazes da

greve, ao mesmo tempo em que ameaçava enquadrar os grevistas na Lei de Segurança Nacional. As poucas agências que a tropa de Lacerda conseguiu abrir, logo fecharam

após a sua saída. O governador chegou mesmo a bater-boca com sindicalistas, tendo sua

 polícia realizado dezenas de detenções.535 Conforme relato do periódico sindical:

“De repente surgiu o sr. governador no centro da cidade. Saltava de seuluxuoso automóvel acompanhado de um pequeno batalhão fortementearmado com bombas e metralhadoras portáteis. Para arrancar os cartazesmais altos dava os característicos pulinhos, que comprometiamseriamente a postura governamental. Esbravejava impropérios, eraapupado, efetuou prisões. Foi tratado por alguns companheiros como

merece um governador que desce de suas funções para substituir os tirasda Ordem Política e Social.”536 

Um dos casos que ganhou certo notoriedade entre os dirigentes sindicais

cariocas que foi o de um personagem de nome Cainã Costa Pereira, funcionário da

Federação dos Bancários do Rio de Janeiro e Espírito Santo, que se enfrentou com o

 próprio Lacerda “no braço”, apesar de ser magrinho e o governador carregando uma

metralhadora.537 De acordo com o depoimento de Luiz Viegas da Motta Lima, então

 presidente da Federação dos Bancários, alguém, provavelmente próprio o Cainã, teria

“chutado a bunda do [Carlos] Lacerda”, que “ficou furioso”, dirigindo sua fúria para

 prender o ativista sindical.538  Além de Cainã, outros bancários presos seriam: João

Mendes Cavalheiro, Américo Veríssimo Castro Gomes, José Olavo de Mesquita Rocha,

Luís Felipe de Melo e Souza, João Lopes da Rocha, Sérgio Luís de Souza, Paulo Heber

Biutânio, Vicente de Paula Ferreira, Giovani Gonçalves Vieira, Jaime Ferreira Pinto,

Antônio da Silva Gomes, Antônio Maia Leite, Gustavo José de Oliveira, Ari Mancebo

de Azevedo, João Jacinto da Silva, Edésio de Souza, Hélio Gomes, Jorge Alberto, Paulo

Herbert, Issac Petrônio, Antonio Maria, Sarmani Gonçalves Vieira e Sérgio Luís deSousa. Embora a repressão mais espetacular tenha sido contra os bancários, ativistas de

outras categorias também seriam aprisionados, como os empregados da Light Geraldo

535 De acordo com os lideres da greve, foram 30 o número de presos.  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06de julho de 1962, p.4.536 “Flagrantes da Greve”, op. cit.537 Voltaremos a falar nos bancários no capítulo 6.538 Entrevista nossa com Luiz Viegas da Motta Lima. 27 de janeiro de 2012.

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Soares, Opizaro Picanço (que também era tesoureiro do Sindicato dos Trabalhadores em

Carris Urbanos), Severino Marinho da Silva, e um sujeito identificado apenas como

Alexandrino “de tal”, delegado sindical da entidade. Também seriam presos o

 presidente da Federação da Indústria da Alimentação, Hugo Costa, e outro personagem

identificado apenas como secretário do Sindicato Nacional dos Aeroviários, que teriasido detido por soldados e cabos da Aeronáutica quando distribuía o manifesto de sua

entidade no Aeroporto Santos Dumont. Os dois últimos seriam logo soltos ao longo do

dia, mas, ao final da greve, ainda havia quase trinta ativistas detidos nos cárceres da

Guanabara.

 No setor têxtil da zona industrial do Rio, diversas empresas amanheceram

 paralisadas, o mesmo acontecendo com grandes empresas do setor gráfico, metalúrgico,

de material elétrico, de calçados e os estaleiros da construção naval. As refinarias de

Manguinhos e Duque de Caxias também foram atingidas pelo movimento paredista, e agreve geral no sistema de transportes atingiu até o sistema hospitalar carioca, ainda que

o Comando de Greve não tivesse orientado qualquer paralisação no setor. Ao contrário,

haviam procurado orientar a manutenção do funcionamento, mas o problema era o

colapso do sistema de transportes públicos. A chegada dos feridos nos motins,

certamente piorava a situação nesse setor.

O centro comercial carioca foi também totalmente paralisado, tendo a

reportagem do jornal O Dia  constatado às 9h20m da manhã que 90% dos

estabelecimentos estavam fechados.539 As entidades associativas de professores e dos

servidores públicos também divulgariam manifestos de adesão à greve geral, tendo o

sindicato do magistério feito questão de destacar que a autoridade política para entidade

decretar a greve da categoria havia sido estabelecida em assembleia geral realizada no

sindicato, em 26 de junho. Por fim, o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Gás e

Energia Elétrica decidiu que caso a greve fosse estendida para além das 24 horas, o

setor iria aderir.

Enquanto a greve se desenrolava no Rio de Janeiro, e em outras unidades da

Federação, uma comissão de líderes do comando nacional de greve se encaminhou para

Brasília, com o objetivo de manter conversações com João Goulart sobre a crise política

nacional e pressionar pelas reivindicações da greve, ocasião em que o presidente

também se comprometeu a assinar a lei do 13º salário, que fora aprovada no Senado

539 O Dia, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, p.2.

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alguns dias antes (em 27 de junho). A lei só aguardava a sanção presidencial,

compromisso que Goulart cumpriria apenas alguns dias depois (em 13 de julho).540 

Desta reunião também teriam tomado parte o general Amaury Kruel, Hermes Lima

(PSB-BA) e o Consultor Geral da República, Antônio Balbino (PSD-BA).541  A

comissão do CGG também reivindicava a indicação de um primeiro-ministro quecompusesse um conselho “democrático e nacionalista”, “capaz de realizar as reformas

de base”, unificando as formulações de comunistas e trabalhistas.542 Fizeram parte da

comissão o ex-comunista e então trabalhista Dante Pelacani (vice-presidente em

exercício da CNTI), o líder bancário Luis Viegas Motta e Lima (representando a

CONTEC) e o portuário Osvaldo Pacheco (pelo PUA), esses dois do PCB.

Como os aeronautas e aeroviários também se encontravam em greve, o CGG

teve de enviar um ofício ao Sindicato dos Aeronautas, à Panair do Brasil e ao Ministério

da Aeronáutica pedindo a liberação de um avião, que transportou as lideranças aoDistrito Federal. Como esses líderes demoraram a retornar ao Rio, foi cancelada uma

manifestação pública que iria se realizar na tarde do dia 5, às 15 horas, nas escadarias do

Palácio Tiradentes. Assim, e isso certamente foi uma grande debilidade da greve, não

ocorreu uma grande concentração pública para referendar suas posições e

reivindicações. Por outro lado, talvez fosse muito improvável que com o colapso do

sistema de transportes pudesse ter sido diferente, e o tipo de concentração pública que

acabou ocorrendo assumiu a forma de motim. No capítulo 6 abordaremos como a

documentação da polícia política da Guanabara apresentou as movimentações dos

líderes grevistas cariocas, e entraremos em detalhe de como se processou esse encontro

de Jango com o CGG. Agora nos deteremos no processo público.

Por todo o dia 5, enquanto realizava-se essa reunião em Brasília, o restante do

comando de greve esteve reunido na sede da CNTI, onde teve a oportunidade de

desmentir aos jornalistas algumas notícias que começaram a circular na parte da tarde,

que davam conta de que o apelo do Presidente da República havia sido atendido e os

trabalhadores não havia aderido à paralisação. Certamente Goulart não possuía tal dom,

540 “Goulart sancionou o 13º mês de salário.” Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 de julho de 1962, p.3.541 “Líderes sindicais em reunião com Goulart.” Diário da Borborema, Campina Grande (PB), 6 de julhode 1962, p.4.542 Desde o Manifesto de Março de 1958 o PCB havia definido como estratégia a luta por um governodemocrático e nacionalista, formulação encontrada na documentação produzida pelo movimento sindical,o que indica a conhecida influência política dos comunistas no setor organizado da classe trabalhadora.Por outro lado, também neste período, o PTB apresenta a luta de pelas reformas de base como suaestratégia política, e partindo de formulações diversas, PCB e a ala ideológica do PTB conseguiram forjaruma aliança política importante.

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ainda que a direita o tenha sempre acusado de “mentor da agitação” ou “maior de todos

os pelegos”.

Às 13 horas o CGG distribuiu um comunicado em que afirmava que a greve

seguia com pleno êxito em todo o país e que seus objetivos políticos estavam sendo

atingidos, com a renúncia de Auro de Moura Andrade e a ida dos dirigentes sindicais aBrasília para discutir a composição do novo gabinete. Denunciava ainda a ação

repressora do governador Lacerda e de sua polícia, destacando que “independentemente

dos entendimentos que estão sendo mantidos em Brasília, os trabalhadores

 permanecerão em greve até que estejam em liberdade todos os dirigentes sindicais”.543 

Ao longo da tarde chegariam notícias sobre a efetividade da greve em todas as

regiões do Brasil, além dos lugares onde a parede não tinha conseguido grande adesão,

como na capital paulista e em Minas Gerais. Já no Sul do país, as senhas para a greve

demoraram a chegar, atrasando os entendimentos entre o comando nacional e osdispositivos grevistas regionais, o que acabou atrasando a eclosão da greve geral em um

dia.544 Por volta das 17 horas deste dia 5 chegou à sede da CNTI o presidente da UNE,

Aldo Arantes, e às 17:45h os líderes grevistas que se avistaram com Goulart em

Brasília. Entrando prontamente em reunião com os demais presentes, fechada à

imprensa e até aos funcionários da própria entidade, o Comando Geral de Greve por

horas avaliou o sucesso da greve nacional. Às 20 horas, Roberto Morena abriu a porta

da sala exclamando: “A greve está plenamente vitoriosa!”545 

Logo em seguida, foi iniciada uma assembleia com mais de uma centena de

líderes sindicais que acabaram por decidir a suspensão da greve à zero hora do dia 6,

seguindo o pedido do presidente Goulart. No entanto, ainda havia uma importante

 pendência que fazia com que a greve pudesse continuar ou ser retomada no dia seguinte:

os 17 bancários, um estudante, três ferroviários e quatro operários do setor de carris

urbanos presos por participar dos piquetes.

Por volta das 13 horas, quando o CGG emitiu uma nota afirmando que a greve

só cessaria quando todos os grevistas fossem soltos dos cárceres da Guanabara, Lacerda,

após afirmar que “assim a greve não cessaria nunca”, determinou que todos fossem

enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Desde que os primeiros militantes foram

detidos, comissões de grevistas e parlamentares buscaram interceder junto às

543 Reproduzido em O Dia, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, p.2.544 Um pouco mais à frente voltaremos ao Sul.545  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, p.4.

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autoridades do próprio Governo estadual e do Ministério da Guerra, na pessoa do

subsecretário da pasta, general Machado Lopes.546  Para libertar os grevistas, o

governador determinou uma fiança no valor de 25 mil cruzeiros “por cabeça”, além de 4

mil cruzeiros pelos custos operacionais, para que os trabalhadores fossem soltos.

Deste modo, quando se iniciou a assembleia na sede da CNTI, por volta das20:30h, o impasse permanecia. Os detidos da Delegacia de Vigilância haviam sido

autuados na Lei 9.070 de 1946 (a famigerada Lei Anti-Greve baixada por Dutra), e nos

artigos 197 e 201 do Código Penal, continuidades lógicas da visão de mundo

estadonovista.547 Após entendimentos com o general Machado Lopes, Lacerda aceitou

libertar os grevistas pouco antes do fim da noite do dia 5, e por isso a decisão entre os

 presentes na assembleia que determinou o fim da greve era de que se os trabalhadores

não fossem libertados, uma nova assembleia marcada para as 14 horas do dia seguinte

 poderia reiniciar o movimento.548  Assim, havia de fato a expectativa de que fossemtodos soltos ainda na noite do dia 5, e no dia seguinte a reunião na CNTI foi para

debelar os boatos e as injúrias disparadas pela imprensa de direita, porta-voz do

governador da Guanabara, em sua desqualificação da ação organizada da classe

trabalhadora.

Ao longo do dia 5, líderes sindicais de outras regiões do Brasil, haviam voltado

às suas bases locais para organizar o movimento grevista. Os próprios dispositivos

locais já estavam na expectativa de uma orientação para parar. Vejamos agora como se

 processou a greve no restante do país discutindo um pouco a importância destes

dispositivos, destacando a importância decisiva das intersindicais na operacionalização

da greve.

4.7 Como se fez a greve geral no resto do país

Ao longo do mês de junho, tal como em outras regiões do Brasil, foram

inúmeras as reuniões entre entidades sindicais nordestinas, articuladas junto com

associações camponesas e estudantis de modo a que fosse preparado um dispositivo de

resistência a qualquer tentativa de golpe direitista. Vimos que os próprio dirigentes das

546 “Terminou à zero hora a greve geral.” O Dia, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, p.7.547  Idem, ibidem, p.7. O Código Penal em vigor era o criado no Estado Novo pelo decreto-lei n 2.848, de7 de dezembro de 1940. Funcionou perfeitamente ao longo do regime de 1946, denotando os limitesdaquela “democracia realmente existente”. Em seu artigo 197, o Código Penal pronuncia-se sobre o“Atentado contra a Liberdade de Trabalho”, e o 201 da “Paralisação de Trabalho de Interesse Coletivo”.548 Esse senão acabou se transformando em um boato que no dia seguinte fez o comércio do centro dacidade fechar as portas por algumas horas.

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entidades nacionais (como Dante Pelacani) haviam circulado pela região com o

 propósito de organizar o dispositivo grevista e mobilizar os trabalhadores.

É preciso lembrar o contexto no qual viviam os movimentos sociais nordestinos,

evidente principalmente com a ascensão das Ligas Camponesas. No contexto político,

em Pernambuco a situação estava mais amadurecida, com a prefeitura de MiguelArraes, pela Frente de Esquerda, líder que seria eleito em outubro daquele ano

governador do estado que era o principal centro político da região Nordeste. Em Recife

circulavam, além dos jornais ligados às oligarquias locais, como o  Jornal do Comércio, 

um pertencente aos Diários Associados ( Diário de Pernambuco) de Assis

Chateaubriand, também, desde 1961, a folha comunista  A Hora, enquanto os nacional-

trabalhistas implantaram a edição nordestina do Última Hora  desde 16 de junho de

1962.549 No plano organizativo do movimento operário, neste estado havia o Conselho

Sindical dos Trabalhadores (CONSINTRA), que ao lado das Ligas Camponesas e daUnião dos Estudantes Pernambucanos, formava o tripé do movimento social

 pernambucano.550 Apesar do executivo estadual chefiado por Cid Sampaio (UDN) não

estar em sintonia com essa ativação social, a greve geral não foi reprimida, assim como

também não se movimentaram as tropas do IV Exército, sediado no Recife e

comandado pelo general Arthur da Costa e Silva, cujo raio de ação seria toda a região

nordestina.

A ativação dos trabalhadores rurais era também forte em outros estados

nordestinos, como na vizinha Paraíba, onde a Liga Camponesa da cidade de Sapé era a

maior do país, e onde, em 2 de abril daquele ano havia sido assassinado o seu líder João

Pedro Teixeira, como já mencionamos no capítulo anterior. Além disso, muitas eram as

categorias de trabalhadores com experiência na ação sindical e influenciadas pela

militância dos comunistas e também por outros grupos das esquerdas socialista, católica

e trabalhista.

549  O jornal de Samuel Weiner também possuía edições locais em São Paulo, Porto Alegre, BeloHorizonte e Curitiba. O lançamento de Última Hora em Recife foi saudado pelo semanário comunista

local A Hora e pelo órgão do Sindicato dos Bancários do Estado de Pernambuco, Jornal do Bancário, queassim se referiu à cobertura à greve geral de 5 de julho: “Muito importante para os bancários foi acobertura honesta que a imprensa pernambucana deu ao desenrolar do movimento paredista. Os fatosforam divulgados em toda a sua realidade, sem falsificação, como normalmente ocorria em taiscircunstâncias. Isso se deve, em Pernambuco, ao aparecimento do jornal ÚLTIMA HORA, que veio ao

 Nordeste interessado em defender o interesse das classes mais humildes e está encontrando ótimareceptividade entre as classes laboriosas.”  Jornal do Bancário, Recife, n.12, primeira quinzena de julhode 1962. Biblioteca Nacional (RJ). Cf.  A Hora, Recife, 9 a 15 de junho de 1962, p.7. Hemeroteca doArquivo Público de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).550  JACCOUB, Luciana de Barros.  Movimentos sociais e crise política em Pernambuco (1955-1968).Recife: Massangana, 1990.

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Em outros estados nordestinos também estavam Executivos que haviam se

solidarizado com a posse constitucional de João Goulart na crise de agosto, como seu

correligionário Parsifal Barroso, do Ceará, e o pessedista Pedro Godim, da Paraíba.

Este, por sinal, não era bem visto pelas esquerdas e principalmente pelas Ligas

Camponesas, que no município de Sapé possuíam sua mais numerosa associação delavradores. Na semana seguinte à greve, em visita ao Rio de Janeiro, a Sr.a Elisabete

Teixeira, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, esteve na sede da CNTI e

denunciou à imprensa e ao Comando que o governador da Paraíba não havia lhe dado

garantias de vida.551 Todavia, na ocasião da greve, Pedro Godim enviou mensagem de

solidariedade a Goulart, respeitando o acordo político em torno do fim do

 parlamentarismo que havia sido estabelecido algumas semanas antes na reunião dos

governadores em Araxá (MG).552  Isso não impediu que os dirigentes sindicais lhe

fizessem discursos de censura.Por sua vez, a Bahia era governada pelo udenista Juracy Magalhães, que, como

vimos, efetuava uma repressão recorrente aos movimentos sociais e se opôs à posse de

Jango. O governador baiano a essa altura estava em acordo com o seu colega da

Guanabara, por onde, em outubro, apresentou sua candidatura ao Senado.553 Na Bahia

os sindicalistas de esquerda também se organizaram através de uma intersindical

denominada Comissão Permanente de Organizações Sindicais (CPOS), e existiam ainda

o Pacto de Unidade Operário-Estudantil-Camponês e a União dos Estudantes da Bahia,

enquanto no Ceará havia o Pacto Sindical, desde os fins dos anos cinquenta.

A greve na região Nordeste mostra como funcionou o dispositivo organizado

 pelo CGG ao longo do mês de junho. Um dos mais bem organizados, o CONSINTRA

de Pernambuco vinha fazendo agitação em suas bases desde o mês de junho, fazendo

ecoar nos meios sindicais as notas de advertência do general Osvino Alves. Já vimos

que o próprio Dante Pelacani foi à capital pernambucana e proferiu discurso em reunião

 pública no Sindicato dos Tecelões, onde convocou os trabalhadores a resistir à ameaça

551 Conforme a reportagem “Comando de greve reitera a sua posição nacionalista.”  Jornal do Brasil, 13de julho de 1962, p.4.552 Em nossa dissertação de mestrado, destacamos a importância da reunião dos governadores na cidademineira, realizada no dia 8 de junho, no qual só Lacerda não se comprometeu com a iniciativa deMagalhães Pinto em apoiar Goulart na liquidação do Parlamentarismo. MELO, O plebiscito, op. cit.,

 p.109-112.553 Foi derrotado por Aurélio Vianna, que concorreu pela Aliança Socialista e Trabalhista (PSB-PTB),apoiado pelo PCB.

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de golpe com uma greve geral em todo o país.554  Além das notas distribuídas pelos

 principais sindicatos, assembleias sindicais foram realizadas na capital e na cidade de

Caruaru, e o próprio CONSINTRA emitiu um comunicado onde apresentava a proposta

de greve geral anti-golpe.555 Após a Câmara rejeitar o nome de San Tiago Dantas, a

folha comunista  A Hora  interpretou os acontecimentos como uma manobrairresponsável das cúpulas do PSD e da UDN que acabaria levando a que a crise de

governo se tornasse uma crise do regime, e convocou o movimento sindical a assumir o

 papel de força decisiva para que fosse instituído um governo “nacionalista e

democrática”.556 

Entre as 16h e 17h da tarde do dia 4, da sede da CNTI no Rio de Janeiro, o sr.

Wilson de Barros Leal telefonou aos estados para acionar o dispositivo grevista através

da “senha”.557 O CONSINTRA realizou sua reunião já as 17h do mesmo dia, logo após

ter sido recebida a tal “senha”, na qual foi decidida a decretação da greve geral e aorientação para que os sindicatos aprovassem a medida em suas assembleias já nas

 primeiras horas da noite daquele dia. Às 22 horas inúmeras entidades classistas

 pernambucanas já haviam distribuído manifestos conclamando a greve geral, desde

 bancários até trabalhadores da orla marítima.558 

 Na manhã do dia 5, o líder ferroviário Cláudio Braga, presidente do

CONSINTRA (e presente no dia anterior na reunião da CNTI no Rio de Janeiro),

chegava ao Aeroporto dos Guararapes, sendo recepcionado por uma comitiva de

sindicalistas que o encaminharam ao comando de greve. Como parte da comitiva,

estavam os presidentes dos sindicatos da orla marítima, como o portuário Cícero

Targino Dantas e o estivador José Osvaldo Gomes, o que denotava o grau de articulação

entre as categorias agrupadas no PUA, e politicamente entre trabalhistas (Braga) e

comunistas (Dantas e Gomes). Ao fazer declarações aos repórteres presentes, o

dirigente do CONSINTRA afirmou estar trazendo um manifesto do governador gaúcho,

Leonel Brizola, em que o mesmo afirmava que o senador Auro Moura Andrade havia

554  “Greve geral no país contra o golpe.” A Hora, Recife, 9 a 15 de junho de 1962, p.7. Hemeroteca doArquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).555 “Trabalhadores realizam assembleias contra o golpe.” A Hora, Recife, 16 a 22 de junho de 1962, p.1.Hemeroteca do Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).556 Editorial: “Resolver a crise do governo com um governo nacionalista e democrático.” A Hora, Recife,30 de junho de 1962, p.1. Hemeroteca do Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano,Recife (PE).557 “Vitória dos trabalhadores na greve de advertência.” A Hora, Recife, 30 de junho a 7 de julho de 1962,

 p.2. Hemeroteca do Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).558  Diário de Pernambuco, Recife, 5 de julho de 1962, p.3.

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“traído a confiança do Presidente Goulart, porque, na oportunidade emque foi indicado, comprometeu-se a adotar determinada conduta. De

 posse da indicação, entretanto, apresentou-se ao Congresso de mododiferente, caracterizando sua orientação reacionária e antinacional, logoapós seu nome ter sido aceito pela Câmara dos Deputados”559 

Em seguida, Braga justificou o porquê dos líderes sindicais terem mantido a greve,

mesmo tendo renunciado o senador paulista à presidência do Conselho de Ministros.

“Contudo, mesmo que ontem à noite já estivessem superadas todas as possibilidades de um golpe na Legalidade democrática, mesmo assim ostrabalhadores não poderiam deixar de paralisar, hoje, por 24h,demonstrando a sua coesão em torno dos princípios democráticos e a suacapacidade de reagir, a qualquer momento, contra qualquer tentativa degolpe”560 

A imprensa pernambucana561 assinalou a paralisação total da rede bancária que

compreendia a base sindical da Federação Norte e Nordeste dos Bancários, desde

Alagoas até Manaus. A própria Federação determinou a greve em toda sua jurisdição,

tendo seu presidente, Gilberto Azevedo, ao lado do presidente do Sindicato dos

Bancários de Pernambuco, Fausto Nascimento, tomado a iniciativa de informar aos

gerentes das agências bancárias pernambucanas a decisão dos trabalhadores de realizar

a greve política. Na explicação dada por Gilberto Azevedo:

“A deliberação dos trabalhadores já está tomada: a de ser contra qualquergolpe, considerando que a composição de um gabinete integrado por

elementos reacionários responsáveis pela crise de agosto e mesmo pelacrise diária que domina o país é um golpe branco contra ostrabalhadores.”562 

E, pedindo a colaboração dos gerentes bancários, foi enfático em apelar para que eles

 próprios determinassem a não abertura das agências, afinal, “de qualquer modo a greve

será mantida”.

Em Pernambuco foi total a paralisação dos trabalhadores da orla marítima e da

Rede Ferroviária do Nordeste, cujo ramal também ultrapassava as fronteiras do estado,

 pois compreendia Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Em Recife 8mil trabalhadores da zona portuária cruzaram os braços, deixando 23 navios parados

559 Última Hora, Recife, 5 de julho de 1962, p.2.560 Idem, p.2.561  Diário de Pernambuco, Recife, 6 de julho de 1962, Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962, p.2.562 Última Hora, Recife, 5 de julho de 1962, p.2.

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(treze atracados e dez ao largo).563  Pararam também os moageiros, ao meio dia no

Moinho Recife e na Fábrica de Massas Alimentícias Pilar. Movimento dirigido pelos

respectivos sindicatos, segundo o jornal local do PCB, tal greve acabou prejudicando o

 próprio funcionamento das padarias.564 Os rodoviários recifenses começaram a paralisar

seu trabalho às 15 horas, tendo às 20h cessado totalmente o sistema de transportes públicos na capital. Os voos do Rio para o Recife e Fortaleza também foram cancelados,

e os telegrafistas fizeram uma “operação tartaruga”. Estudantes também se juntaram a

trabalhadores e promoveram piquetes em portas de fábricas e estabelecimentos

comerciais, realizando pequenos comícios com o propósito de persuadir os

trabalhadores a aderirem à greve geral. Segundo o jornal Última Hora, em sua edição

nordestina, a greve foi total naquela cidade.565 

Às 21 horas do dia 5, uma nova assembleia das lideranças do movimento foi

realizada na sede do Sindicato dos Bancários, a partir dos informes de todo o país. Eante a repercussão da prisão de líderes sindicais na Guanabara, um líder portuário

chegou a sugerir que a greve geral fosse mantida até que eles fossem libertados.

Entretanto, em razão da determinação do Comando Geral de Greve no Rio de Janeiro, a

assembleia resolveu pelo fim do movimento à zero hora do dia 6, anotando o seu

sucesso em um manifesto divulgado pela imprensa.566 No texto, afirma-se que apesar de

se estar convocando o fim da greve, assinalava-se o sucesso do movimento e a

necessidade que as bases se mantivessem mobilizadas ante qualquer nova “ameaça de

golpe”. Em tom firme, concluía:

“Nosso movimento, que se estendeu por todo o Brasil, veio tornar claroque o povo não mais se conformará com uma política que traduza fome eque, fiquem certos os maus brasileiros, os entreguistas, os anti-povo e osanti-Brasil, de que continuaremos a luta até a vitória definitiva.”567 

 No  Jornal do Bancário  do Sindicato pernambucano, publicado alguns dias

depois da greve, é possível ver como o movimento se apresentava aos trabalhadores da

região com uma dimensão nacional:

“Visando a formação de um Gabinete de Ministros Nacionalista, que façaas reformas de Base que o país reclama, os bancários de todo o Brasilentraram em greve de 24 horas no dia 5 passado, acompanhando osdemais trabalhadores. Em Pernambuco a greve dos bancários foi total,

563 Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962.564 “Vitória dos trabalhadores na greve de advertência.”, op. cit.565 Idem.566  Diário de Pernambuco, Recife, 06 de julho de 1962, p.3. Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962, p.2.567 Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962, p.2.

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não se registrando, pela primeira vez, nenhum incidente com os banqueiros nem com a polícia.”568 

Por sua vez, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Recife distribuiu uma

nota oficial onde congratulava-se com o movimento sindical pernambucano pela greve

de advertência. O documento destaca, particularmente, a atuação das categorias dos

 bancários, ferroviários, portuários e marítimos. Conclui deste modo:

“Os jornalistas do Recife, fiéis à vocação democrática que semprenorteou os grandes vultos de sua profissão, no presente, saúdamcalorosamente os companheiros trabalhadores que souberam, no dia deontem, traduzir os sentimentos legalistas do povo brasileiro.”569 

 No Ceará a greve também foi geral. Bancos, comércio, o Porto de Mucuripe, a

Rede de Viação Cearense, repartições públicas e transportes urbanos pararam. Segundo

o jornal Correio do Ceará, o “comando da greve foi instalado na praça ValdemarFalcão, defronte ao Banco do Brasil”, centro de Fortaleza, e às “11 horas, 95 por cento

dos estabelecimentos do centro da cidade desceram suas portas e despacharam seus

funcionários”, e os escritórios e consultórios também fizeram o mesmo. Ainda de

acordo com esta folha, “garçons e os músicos também paralisaram suas atividades,

tendo as orquestras de clubes e boates encerrado seu trabalho à meia noite de ontem.” 570 

Segundo notícia publicada no  Diário de Notícias do Rio de Janeiro, na parte da manhã

do dia 5 comerciantes de Fortaleza tentaram abrir seus estabelecimentos, mas ficaram

surpresos pois “as fechaduras das portas estavam obstruídas e, em muitos casos, havia

cadeados novos, tudo feito pelos grevistas”. Com isso, “tornou-se impraticável o

funcionamento do comércio, que, assim, permaneceu de portas cerradas durante todo o

dia.”571 

De acordo com outra folha cearense, o jornal O Povo, às 11 horas do dia 5 se

encontravam paralisadas as fábricas têxteis Santa Cecília e Santa Maria, além das

 plantas da São Judas Tadeu, Cidão e Usina Everest. Além disso, a Siqueira Gurgel S.A.

encontrava-se parcialmente paralisada. Contudo, outras cinco importantes empresas

estavam com o funcionamento normal.572  Não se tem notícia sobre o desenrolar da

568  “Greve de 24 horas.”  Jornal do Bancário, Recife, Ano III, n.12, 1ª quinzena de julho de 1962.Biblioteca Nacional (RJ).569 “Sindicato dos jornalistas contra ameaças golpistas.” A Hora, 7 a 13 de julho de 1962, p.2. Hemerotecado Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).570 Correio do Ceará, Fortaleza, 6 de julho de 1962.571  Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 06 de julho de 1962, p.4.572 O Povo, Fortaleza, 5 de julho de 1962, p.2.

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greve no setor industrial no restante do dia, mas é provável que o quadro tenha

 permanecido inalterado. Os ferroviários cearenses iniciaram a greve à zero hora do dia

5, tendo paralisado todos os setores da Rede Viação Cearense, exceto o serviço

telegráfico, que ficou funcionando parcialmente e sob o controle do comando grevista.

A greve dos ferroviários contou também com o apoio dos engenheiros da empresa.Já a greve dos bancários contou com a colaboração de alguns gerentes bancários

e também com o apoio explícito do presidente da Caixa Econômica Federal no Ceará,

Luís Campos, que declarou à imprensa estar totalmente solidário com o “movimento

dos trabalhadores pela legalidade”.573 A greve dos trabalhadores do porto também teve

seus momentos de radicalização quando, também na parte da manhã, os grevistas

chegaram a forçar a atracação de um barco que tentou abandonar o ancoradouro. Era o

sinal de que o movimento de greve não aceitaria nenhuma indisciplina. Por sua vez,

temendo a proliferação de quebra-quebras, os donos das frotas de transportes públicosretiraram os ônibus de circulação entre às 9 e 10 horas da manhã, já que por essa hora

manifestantes estavam parando os veículos e obrigando os poucos passageiros a

descer.574 

Às 10h30m da manhã, um grupo de centenas de trabalhadores da orla marítima

se deslocou para a praça Valdemar Falcão, onde confraternizou com representantes de

outras categorias de grevistas que faziam agitação através de um sistema de som.

Decidiram sair em passeata através da rua Senador Alencar, tomando a rua 24 de Maio

em direção à praça José de Alencar.575 Neste local se realizou um “comício relâmpago”,

onde oradores furiosos chamavam “com nomes feios” os deputados do PSD e UDN,

como o deputado udenista Martins Rodrigues, qualificado por um orador de “traidor da

 pátria”, “fascista” e “golpista”.576  Além deste comício, diversos outros pequenos se

realizaram nas ruas centrais da capital cearense, inclusive um em frente à Assembleia

Legislativa, onde os manifestantes aproveitaram para exigir que fosse sustado um

 projeto de lei que visava à implantação do parlamentarismo no estado.577  Em todas

573  Idem, ibidem.574 O Povo, Fortaleza, 6 de julho de 1962, p.8.575  Idem, ibidem.576 Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962, p.2.577  Esse foi um dos imbróglios jurídicos daquela experiência parlamentarista, pois estava prevista ainstalação do sistema de gabinete nas unidades da federação. Isso contribuiu para que fosse praticamenteunânime entre os governadores estaduais a rejeição ao parlamentarismo, levando a que, como jámencionamos, muitos opositores de Jango se aliassem momentaneamente ao presidente na luta pela voltaao presidencialismo. O caso mais emblemático foi o do governador mineiro Magalhães Pinto, que fez doseu sobrinho e banqueiro José Magalhães Pinto, do Banco Nacional de Minas Gerais, o administrador

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essas proclamações públicas, os líderes da greve defenderam a formação de um gabinete

“nacionalista e democrático”, “capaz de realizar as reformas de base”.

Ao mesmo tempo em que ocorria a mobilização popular nas ruas, uma comissão

de representantes das classes dominantes locais realizava audiência com o governador

Parfisal Barroso, do PTB, com o propósito de “pedir providências”. 578

 Para desagradoda comissão, o governador não se prontificou a pôr a polícia militar na repressão ao

movimento (embora agentes do DOPS tenham acompanhado a mobilização, como

anotou a reportagem de O Povo),579  e o desenrolar do movimento foi tão pacífico

quanto em Pernambuco.580  Posteriormente, o semanário comunista  Novos Rumos 

narraria este episódio com fina ironia:

“Na mesma hora do comício, uma comissão das chamadas ‘classes produtoras’ (...) visitava o Governador Parsifal Barroso, solicitando providências ‘contra possíveis saques e depredações’ para que fosse

reaberto o comércio (...) O Governador respondeu que nada poderiaresolver, antes de ouvir o comando central de greve. E imediatamentemandou emissário aos presidentes dos sindicatos operários, pedindo quecomparecessem ao Palácio. Atendido pela direção do movimento, oGovernador expôs as ‘razões’ das classes dominantes, apavoradas com ademonstração de unidade e organização da classe operária. Estavamtemendo a subversão da ordem (...) Então [José de Moura] Beleza, o

 presidente do Pacto Sindical, respondeu ao Governador que o susto das‘classes produtoras’ era infundado e que ninguém melhor do que asmassas trabalhadoras para manter a ordem. O sr. Parfisal Barrosoconcordou com os dirigentes sindicais cearenses, acrescentando queapoiava sinceramente a greve política pela constituição de um gabinetenacionalista. Em seguida, s. excia. voltou à presença das ‘classes

 produtoras’ informando que o comércio continuaria fechado, por decisão

financeiro da campanha pelo NÃO no plebiscito de 6 de janeiro de 1963. Remetemos mais uma vez anossa dissertação de mestrado. MELO, O plebiscito de 1963, op. cit., capítulos 2 e 3.578 De pregressa carreira política parlamentar no PSD, Parsifal Barroso filiou-se ao PTB, ligando-se aJoão Goulart desde que ocupara a pasta do Trabalho durante o governo Juscelino Kubitschek. Em 1959foi eleito para o governo do Ceará. Na crise de agosto/setembro de 1961 apoiou a posse de João Goulart,mas em 1963 romperia com o governo e com o PTB, passando para o Partido Trabalhista Nacional e,após o golpe de 1964, retirou-se por alguns anos da vida pública para retornar em 1970, como deputado

federal cearense pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de sustentação política do regimeditatorial. Verbete “Parsifal Barroso.”  Dicionário Histórico-Biográfico do Brasil. Pós-1930. Rio deJaneiro: Ed.FGV, 2001. CD-Rom.579 O Povo, Fortaleza, 5 de julho de 1962, p.2.580 De acordo com a historiadora Bárbara Cacau dos Santos, em sua dissertação de mestrado, o líder doPacto Sindical, José de Moura Beleza, mencionou em depoimento ao Núcleo de Documentação e Cultura(NUDOC) da Universidade Federal do Ceará que chegou a ser preso pela polícia militar em uma greve

 política realizada em 1962, mas como aponta a pesquisadora, Beleza lembrou da greve de setembro, poisem julho o movimento ocorreu com tranquilidade. SANTOS, Bárbara Cacau dos. “Trabalhadorescearenses, uni-vos!” O Pacto de Unidade Sindical em Fortaleza (1957-1964). Dissertação de Mestradoem História Social. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009, p.105.

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 por exemplo: a dos ferroviários se estabelecia nas proximidades daEstação (local de concentração da passeata), a dos bancários, localizada àrua Barão do Rio Branco, 686, a dos sapateiros, à rua Meton de Alencar,833, próximo à praça da Bandeira.”583 

Acreditamos que essa experiência imediata de uma “passeata monstro” em maio de

1962 contribuiu decisivamente para que, diferentemente de outros pontos do Brasil, a

greve geral de julho tenha se expressado em Fortaleza também numa massiva

manifestação pública. A temperada ação de solidariedade entre as diversas categorias de

trabalhadores cearenses (quando alguma categoria entrava em greve) assumia agora

também a forma de manifestações públicas massivas, em que as delegações das

categorias sociais se encontravam em um ponto no centro da capital, para sair em

seguida em passeata pelas ruas da cidade.584 

De passagem pela capital cearense durante a parte da manhã, o presidente doSindicato Nacional dos Aeroviários, Elício Sergio de Melo, declarou aos repórteres que

a greve era total em toda a região Nordeste.585 

 Na Paraíba, os sindicatos decretaram estado de alerta e a Federação dos

Trabalhadores na Indústria convocou uma assembleia geral permanente. Houve ainda

uma concentração nas ruas centrais da capital paraibana, nas imediações da Praça João

Pessoa, onde os populares aguardavam o desenrolar dos acontecimentos. Por sua vez,

como já assinalamos, o governador Pedro Godim emitiu nota se solidarizando com

Goulart.586

 No Maranhão, foi paralisada a linha férrea que ligava São Luís à capital doPiauí, Teresina.587 Já na Bahia a Petrobrás e o porto paralisaram suas atividades no dia 5

de julho, mas não se viu nenhuma outra adesão. É preciso lembrar a dura repressão que

do governo baiano sobre os soteropolitanos no dia 29 de junho, e talvez indagar se não

foi esta a sua própria “greve geral”.

Um ponto que chama atenção tem relação com a ausência de intervenção militar

na greve geral na região Nordeste. Sob a jurisdição do IV Exército, sediado no Recife e

comandado pelo general Arthur da Costa e Silva, este resolveu relaxar o “estado de

 prontidão”, logo que ficou claro que a situação era de “calma total”, o mesmo tendo

583 SANTOS, “Trabalhadores cearenses, uni-vos!” op. cit., p.102.584 “A experiência positiva do encontro de passeatas em pontos estratégicos, para então percorrer ruas quese constituíram em redutos tradicionais de luta operária, foi incorporada aos costumes do fazer greves emanifestações públicas dos trabalhadores cearenses.” Idem, p.104.585 O Povo, Fortaleza, 5 de julho de 1962, p.2.586 Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962, p.4.587  Idem, ibidem, p.2.

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sido feito pela Marinha.588  De fato, na região nordestina não houve qualquer ato

violento que tenha ganhado notoriedade. Praticamente não houve repressão por parte

das forças públicas estaduais, exceto na Bahia, não havendo também incidentes como

aqueles na Guanabara e no Estado do Rio. E nada comparável a tropas do Exército ao

lado dos grevistas contra a polícia política e o governador. Dificilmente isso poderiaocorrer sem que o comando do IV Exército fosse ocupado por um nacionalista como

Osvino Alves, e não um golpista como Costa e Silva.589 

 Na região Norte, no Pará, os primeiros a entrar em greve foram os funcionários

da Petrobrás. O seu Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração do Petróleo,

cuja base abrangia os estados do Pará, Amazonas e Maranhão, publicou no jornal  A

Província do Pará  uma nota conclamando à adesão à parede. Nesta nota, a greve é

apresentada como um movimento contra o imperialismo norte-americano, em defesa da

Petrobrás, por Jango e por um gabinete nacionalista capaz de realizar as reformas de base.590 Nesta categoria, a adesão foi total. O segundo setor a paralisar totalmente foram

os marítimos e os portuários. Já a Federação dos Trabalhadores na Indústria do Pará não

decretou greve, mas ficou de sobreaviso esperando o desenrolar dos acontecimentos.

Diferentemente de outras regiões, os bancários também não paralisaram, embora o seu

Sindicato tenha se colocado em solidariedade a Jango. Também as escolas, os

escritórios e o Instituto de Previdência Social funcionaram com enorme irregularidade.

Por sua vez, as Polícias Civil e Militar paraenses ficaram de prontidão e,

segundo a mesma folha, “a cidade [de Belém], contudo, não apresentou nenhuma

anormalidade em suas atividades de rotina. Os transportes coletivos não sofreram

solução de continuidade, os bancos funcionaram normalmente, bem como o

comércio.”591 Foi certamente uma greve fraca neste ponto do território nacional.

 Nos estados de Minas e São Paulo a paralisação também foi muito parcial. Em

Minas houve greve na companhia siderúrgica Mannesmann (em Belo Horizonte) e na

Cidade Industrial (Contagem), com depredações em Além Paraíba. Segundo O Estado

588  Idem, ibidem, p.4.589 É preciso lembrar que já na crise de agosto de 1961 o general Arthur da Costa e Silva se posicionou aolado dos ministros militares golpistas, tendo protagonizado um conhecido diálogo com o entãogovernador Brizola no qual deixou clara sua oposição ao movimento legalista. Daí os problemasdecorrentes da idéia de “dispositivo sindical-militar” dos brasilianistas Kenneth Paul Erickson e TimothyFox Harding, que atribuem à “cobertura militar” o sucesso das greves gerais políticas de 1962. Ou seja,esses autores generalizam uma situação específica da Guanabara. ERICKSON, Kenneth Paul.Sindicalismo no processo político no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979. HARDING, Timoth Fox. The

 political history os organized labor in Brazil. Stanford: Stanford University, Ph.D., 1973.590 Província do Pará, Belém, 5 de julho de 1962, p.5.591 Província do Pará, Belém, 6 de julho de 1962, p.2 e p.10.

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de Minas, na Mannesmann “pelotões de paredistas se postaram nos dois portões de

acesso às oficinas da empresa”, impedindo a entrada dos funcionários que

compareceram para trabalhar. O mesmo dispositivo teria sido utilizado pelos grevistas

na Magnesita S.A., localizada também na Cidade Industrial, mas os resultados não

teriam sido muito alvissareiros.592

  No resto do estado mineiro parece não ter tidomaiores repercussões o movimento grevista. 593 

Já em São Paulo a paralisação foi total em Santos (portos, fábricas, oficinas,

funcionalismo, operários da refinaria de Cubatão), São Vicente e demais cidades da

Baixada santista. Segundo o historiador Fernando Teixeira da Silva,594 a greve de 5 de

 julho foi "coroada de êxito” em Santos, diferentemente do que havia ocorrido em agosto

de 1961, quando os sindicalistas ligados a Jânio Quadros conseguiram desorientar o

movimento na cidade. A grande exceção mesmo foi a cidade de São Paulo, onde,

segundo o historiador Murilo Leal Pereira Neto, as diretorias dos sindicatos dosmetalúrgicos e têxteis se reuniram no dia 6 para apenas declarar seu apoio ao

movimento. Conforme o mesmo autor, a greve não foi sequer mencionada no jornal dos

metalúrgicos de São Paulo da semana seguinte.595 

A questão em São Paulo certamente se ligava à correlação de forças na capital

em contraste com a Baixada Santista, pois, já na tarde do dia 4, logo que ficaram

sabendo da orientação emanada da CNTI para uma greve geral em todo o país, os mais

importantes industriais paulistas pediram uma audiência com o governador Carvalho

Pinto para que fossem tomadas providências. Liderados pelo empresário José Ermínio

de Moraes Filho, os industriais da FIESP tão somente pediram ao governador que

acionasse o dispositivo da DOPS.596  Como também demonstrou Murilo Leal Pereira

 Neto, o governador paulista tinha toda a experiência na repressão ao movimento

sindical, pois em dezembro do ano anterior, ao lado dos ministros da Justiça, Alfredo

 Nasser, e do Trabalho, Franco Montoro, coordenou a brutal repressão ao movimento

operário paulista que organizou uma greve geral em 13 de dezembro para pressionar o

592 “Sem extensão a greve na Capital.” O Estado de Minas, Belo Horizonte, 6 de julho de 1962, capa.593 “Suspensão da Greve à zero hora de hoje.” Idem, ibidem, p.5.594 SILVA, Fernando Teixeira da. A carga e a culpa: os operários das Docas de Santos: direitos e culturada solidariedade (1937-1968). São Paulo: Hucitec; Santos: Prefeitura Municipal de Santos, 1995, p.177.595 PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no “vulcão do inferno”..., op. cit., p.301-303.596 “Calma em São Paulo.” Correio Paulistano, 5 de julho de 1962, p.6.

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Senado para que este aprovasse o projeto de lei, já sancionado pela Câmara, que

instituía o 13º salário.597 

O encarregado do Serviço de Imprensa, Rui Marcucci, divulgou, logo após o

meio dia, uma nota do Governo paulista onde se afirmava: “A situação é de ordem e

tranquilidade pública no Estado. Os bancos funcionam normalmente. A população toda,desejosa de segurança e respeito aos seus direitos, manteve suas atividades habituais de

trabalho.”598 Mas como o comunicado oficial não mencionava a posição de Carvalho

Pinto frente à crise política entre Goulart e o Congresso, os repórteres no Palácio dos

Campos Elisios questionaram Marcucci, que retrucou com irritação, chamando tais

 jornalistas de “arruaceiros”, para em seguida declarar que “o Governo não era obrigado

a dar cobertura a greves políticas”. A questão é que o silêncio de Carvalho Pinto

escondia o fato de que, desde a renúncia de Auro Moura Andrade, a Secretaria de

Segurança Pública entrara em regime de prontidão. De acordo com a reportagem doCorreio Paulistano,

“Desde que irrompeu a crise política originada com a renúnciado senador Moura Andrade, a Secretaria de Segurança Pública entrou emregime de prontidão, mobilizando na madrugada de ontem todos osrecursos disponíveis.

Através do Departamento de Ordem Política e Social, e com acolaboração de todos os órgãos da Segurança Pública, foi montado umdispositivo especial de policiamento, de molde a proteger os setores deatividades fundamentais em São Paulo.

Às primeiras horas de ontem, cerca de 1.000 homens da ForçaPública e da Guarda Civil foram destacados para guarnecer as ferrovias,empresas de transportes coletivos, mantendo-se um policiamento especialnos principais pontos das sedes fornecedoras de água, força, luz etelefone.

Paralelamente, as viaturas da Rádio Patrulha foram localizadasem setores estratégicos, distribuídas por toda a cidade e periferia.

O policiamento se manteve intensivo, ficando de prontidão, emseu gabinete, o secretário Virgílio Lopes, onde recebeu a comunicação deque, apesar da greve ali deflagrada, a cidade de Santos não registravadistúrbios.

597  PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no “vulcão do inferno”..., op. cit., p.282-287. Emuma nota oficial expedida no dia 12 de dezembro de 1961, um dia antes da programada greve geral pelo13º, o ministro da Justiça declarou que “O Congresso Nacional não decide sob coação”. Isso foi escrito

 pouco mais de dois meses após, sob coação do golpismo militar, o Congresso ter emendado aConstituição para instituir o parlamentarismo. “Ministro da Justiça declara ilegal a anunciada greve”,Folha de São Paulo, 13 de dezembro de 1961, p.1.598 “Reinou calma total ontem no Palácio dos C. Elísios.” Correio Paulistano, 6 de julho de 1962, p.3.

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fundada em 1956 e que congregava a totalidade dos 56 sindicatos de Santos e de outras

cidades da Baixada Santista, possuía um exemplar trabalho político com suas bases,

tendo já uma experiência de muitas lutas importantes. Todavia, desde a crise de agosto-

setembro de 1961, o FSD vinha passando por problemas entre um grupo identificado

 politicamente com Jânio Quadros e a esquerda nacionalista, que era hegemônica nasdireções sindicais. A conjuntura da crise de junho/julho e a greve geral só agudizou essa

cisão.603 Vejamos como se efetivou a greve em Santos.

Em conjunto com outra intersindical que fazia parte de sua base, a União dos

Sindicatos da Orla Marítima de Santos (USOMS) – além de representações da CNTI e

do PUA –, o Fórum Sindical de Debates reuniu-se na sede do Sindicato dos Operários

Portuários já no início da noite do dia 4 de julho, onde foi proclamada a greve geral. 604 

Em manifesto essas entidades proclamaram-se em defesa dos mesmos princípios que

orientaram as outras entidades sindicais do país a liderarem a paralisação do trabalho: a) por um gabinete nacionalista e democrático; b) pelas reformas de base; c) em apoio à

 posição do presidente João Goulart de decidir “não mais transigir” com as forças

golpistas; d) em apoio às manifestações públicas do general Osvino Ferreira Alves, que

denunciou a existência de uma “conspiração golpista com vistas à implantação de uma

ditadura fascista no Brasil”.605 

Em Santos o movimento iniciou-se logo na noite do dia 4 na Refinaria

Presidente Bernardes, seguindo com a paralisação da principal atividade econômica da

cidade, o porto e de toda a orla marítima, já à zero hora do dia 5, tendo a própria

Companhia Docas de Santos deliberado a suspensão oficial dos trabalhos, nas primeiras

horas da manhã. A sede do Sindicato dos Portuários, foi transformada em “quartel-

general” da greve, de onde partiu uma série de piquetes antes da zero hora do dia 5.606 

Atendendo ao pedido de uma comissão de representantes sindicais, a Secretaria

Municipal de Transportes Coletivos decidiu tirar os seus bondes e ônibus de circulação,

tendo o mesmo sido feito pelas empresas particulares, e até o serviço de táxis foi

suspenso, já que os piquetes grevistas também molestaram os motoristas que insistiam

em trabalhar. Até as empresas que operavam a linha intermunicipal para a capital do

603 SARTI, Ingrid. Porto Vermelho: os estivadores santistas no sindicato e na política. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1981, p.132-134.604 “Decretada greve geral em toda a Baixada Santista a partir da zero hora de hoje.” A Tribuna de Santos,Santos, 5 de julho de 1962, p.8.605 Comunicado das entidades de cúpula CNTI, PUA, USOMS e FSD, 4-VII/1962, apud  SARTI, PortoVermelho, op. cit., p.133.606 “Decretada greve geral em toda a Baixada Santista...”, op. cit., p.8.

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estado suspenderam totalmente suas atividades às 14 horas, tendo funcionado de forma

 bastante precária nas horas anteriores.

A única linha da Rede Ferroviária Nacional no estado de São Paulo a entrar em

greve foi a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, onde, às 16 horas, como forma de socorrer

os populares perdidos nas estações ferroviárias, caminhões do Departamento deEstradas de Rodagem e da Estrada de Ferro Sorocabana foram requisitados pela

Secretaria Estadual de Segurança para transportar os populares de volta para seus lares.

 Nenhum dos bares e restaurantes do centro comercial de Santos abriu as portas. Além

das fábricas, o comércio cerrou as portas, e nem as escolas funcionaram, pois o ativo

movimento estudantil secundarista puxou a greve junto a uma parte de seus mestres.

Com medo dos piquetes, até as salas de cinema do centro da cidade suspenderam as

tradicionais sessões vespertinas.

Às 20 horas o FSD promoveu uma assembleia que também decidiu suspender agreve à zero hora do dia 6.607  Todavia, embora a decisão estivesse respaldada

 politicamente pela opinião da sua base social, as forças do janismo, em aliança com as

correntes políticas ligadas ao sindicalismo pró-EUA da ORIT, aproveitaram o episódio

da greve para promover uma ruptura na direção do FSD. Assim, o presidente do

Sindicato dos Estivadores de Santos, Raimundo Vasconcellos, em atitude unilateral e

em desacordo com a posição de sua base, resolveu desligar seu sindicato do Fórum.

Mas a esquerda não deixou barato, e numa assembleia extraordinária de quase mil

estivadores decidiu posteriormente destitui-lo do cargo.608  De qualquer modo, o que

dava autoridade maior ao FSD era o próprio fato de a greve ter sido um sucesso, a ponto

do Correio Paulistano  ter descrito o centro da cidade portuária como “deserto” e

“entregue às moscas” naquele 5 de julho.609 O que não impediu que no dia seguinte, em

sessão noturna a Câmara de Vereadores aprovasse um requerimento de repúdio à greve

 política e exortando os

“verdadeiros líderes sindicais, democráticos e independentes aassumirem seus postos no Fórum Sindical de Debates, não permitindo

607 “Santos totalmente parada pela greve geral de ontem.” Correio Paulistano, 6 de julho de 1962, p.3.608 “Os associados do SES [Sindicato dos Estivadores de Santos], em sua maioria partidários da atitudeexpressa pela direção do FSD, rebelam-se contra seu presidente e numa movimentada assembleia geralextraordinária de aproximadamente mil homens, deliberam afastá-lo do cargo. Assustado, Raimundoescondeu-se num hospital, dando ao fato um aspecto caricatural, enquanto assumira o vice-presidente,Florival Alves da Silva, voltando, com ele, a esquerda nacionalista ao poder.” SARTI, Porto Vermelho,op. cit., p.134.609 Correio Paulistano, 6 de julho de 1962, p.3.

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que a minoria a serviço do Partido Comunista Brasileiro tumultue acidade, com uma greve geral injustificável, como a de anteontem”610 

Ainda no estado de São Paulo, também houve a paralisação de uma usina de

açúcar em Ribeirão Preto, enquanto outras cinco na mesma cidade estiveram sob

ameaça de paralisação geral ao longo do dia. O movimento foi resultante da ação da

Federação dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação, que foi uma das poucas

entidades paulistas que determinou às suas bases seguirem a orientação do CGG. Em

atitude diversa, a Federação dos Trabalhadores em Transportes de São Paulo não aderiu

ao movimento, alegando que “sozinho” Jango saberia encontrar uma solução para a

crise, denotando uma concepção que no jargão comunista poderia ser definida como

“reboquista” em relação ao papel do movimento sindical na política nacional. 611

 No vizinho Paraná, também havia um Fórum Sindical de Debates do Litoral

Paranaense, fundado naquele mesmo ano de 1962, por iniciativa dos trabalhadores que

trabalhavam no Porto de Paranaguá, e que foram o único setor daquele estado que

 paralisou suas atividades naquela greve geral. Na conjuntura da crise do gabinete,

organizava-se também o III Congresso Sindical dos Trabalhadores do Paraná, e a sua

Comissão Organizadora entrou em reunião permanente desde que tomou conhecimento

da renúncia de Moura Andrade, de modo a organizar manifestações de solidariedade.

Todavia, não se decidiu pela adesão à greve e tal movimento só foi conhecido na cidade

 portuária de Paranaguá. De acordo com a edição paranaense do jornal Última Hora:

“Em Paranaguá, portuários, marítimos, ensacadores e demais categorias profissionais que trabalham na faixa dos cais do porto, após rápidaassembleia geral extraordinária, decretaram uma greve que eclodiu às 13horas de ontem, paralisando totalmente os serviços no porto. Dezoitoentidades sindicais daquela cidade comunicaram a decisão ao órgãocentral da coordenação, em Curitiba, autorizando a inclusão do nome desuas entidades no manifesto lançado às organizações operárias

 paranaenses.”612 

Certamente com um nível de articulação com o movimento nacional precário,

diversas entidades do movimento sindical paranaense não puderam mais do que aprovar

610 “Profligada na Câmara Municipal a recente greve geral ocorrida em Santos.”  A Tribuna de Santos,Santos, 7 de julho de 1962, p.3. De acordo com essa fonte, Foram 14 a favor do requerimento e 7 contra.Em seguida a mesma Câmara votou um outro requerimento de apoio ao presidente João Goulart, por este“ter feito um apelo para que a greve fosse sustada”. 611 Correio Paulistano, 6 de julho de 1962, p.3.612  “Greve em Paranaguá: sindicatos organizam movimento antigolpista e de apoio a Jango!” Última

 Hora, Curitiba, 6 de julho de 1962, p.2.

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manifestos de apoio ao CGG, também mencionado como “declaração da CNTI”. Outras

entidade aproveitaram a crise e a própria eclosão da greve para promover assembleias

com suas bases sociais, de modo a poderem discutir os rumos da política nacional,

como foi o caso do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas de Curitiba,

que no dia da greve lançou a seguinte circular para seus associados:“Coerente com o apelo da Confederação Nacional dos Trabalhadores nasIndústrias, que lança a palavra de ordem para os sindicatos de suacorporação, no sentido de os mesmos tomarem posição diante da situação

 política nacional, quando os grupos golpistas querem tomar o poder eliquidar com os direitos dos trabalhadores, já adquiridos, convocamos ostrabalhadores em geral, pertencentes à nossa categoria, para tomarem

 parte na assembleia geral extraordinária que faremos realizar em nossasede, na Rua José Loureiro, 133 – 17º andar – salas 1.709 e 1.710, às 20horas do dia 6 de julho, para apreciarem a seguinte ordem do dia: 1)discutir e votar, para tomar posição, o documento da CNTI; 2) discussão

de assuntos gerais de interesse da classe.”

613

 

 No Rio Grande do Sul, tal como em outros pontos do país, o movimento sindical

estava bem organizado, sendo importante pontuar que no dia 8 de julho seria iniciado o

VI Congresso Estadual dos Trabalhadores Gaúchos, que reuniu as mais expressivas

representações sindicais na cidade de Pelotas, encontro que acabou por se realizar em

meio à comoção nacional decorrente da crise ministerial. Não obstante esse grau de

articulação do movimento gaúcho, a demora da chegada das senhas na noite do dia 4

acabou por prejudicar a eclosão do movimento grevista de forma simultânea ao que

ocorreu em todo o país no dia 5 de julho. Em face desse atraso, o Comando Sindical

gaúcho (hegemonizado pela militância comunista, diga-se de passagem),614  reunido na

ocasião na sede do Sindicato dos Gráficos, decidiu organizar a paralisação para o dia

6.615  Presentes nesta reunião estavam os representantes sindicais da orla marítima,

 portuários, energia elétrica, telefones, metalúrgicos, ferroviários, fiação e tecelagem,

transviários, bancários, além dos gráficos e outras categorias. Em assembleia

 permanente, deliberaram também uma reunião para a tarde do dia 5, na sede do IAPI, de

modo a acompanharem os acontecimentos e organizarem sua própria paralisação, mas o

613 Coluna Sindical de Pery de Oliveira, Última Hora, Curitiba, 6 de julho de 1962, p.7.614 Na composição da direção do Conselho estavam três comunistas e um trabalhista: Luis Vieira da Silva

 – presidente e militante do PCB; Jorge Alberto Campezatto – vice-presidente e dirigente do PCB; AssisBrasil Albuquerque – secretário Geral e simpatizante do PCB; João Fabrício – tesoureiro, presidente doSindicato dos Bancários e militante do PTB. SANTOS, João Marcelo Pereira dos.  Herdeiros de Sísifo.

 Ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos 1958 a 1963. Dissertação de Mestrado emHistória. Campinas, Unicamp, 2002.615 “Sindicatos do RGS: só amanhã a greve.” Diário de Notícias, Porto Alegre, 5 de julho de 1962, p.1.

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obteve resposta negativa por parte do Comando, apesar de ter sido acertado que não

seriam paralisados os serviços essenciais.618 Após esse encontro, no início da noite, foi

realizado um comício no Teatro São Pedro, centro da capital gaúcha. Vários líderes

tomaram a palavra no meeting, como os sindicalistas Álvaro Avala (delegado da CNTI),

Luiz Vieira da Silva (presidente do Comando de Greve gaúcho), Gregório Nascimento(Orla Marítima), José de Moraes Netto (delegado da CONTEC), Fabrício Moraes

(Presidente do Sindicato dos Bancários), Leopoldo Machado, além do estudante Bruno

Costa (presidente da FEURGS), Milton Serres Rodrigues (presidente do Movimento dos

Sem Terra – MASTER), o jornalista Sólon Pereira Neto, o vereador Alberto Schroeter,

o deputado Hélio Carlomagno e o Prof. Antônio Pádua, do Movimento Nacionalista.

O governador Brizola continuaria a tentar sustar o movimento na tarde do dia 6,

quando telefonou para o “QG” da greve no Sindicato dos Gráficos e, através de contato

com o presidente do Comando, Luiz Vieira da Silva, tentou persuadir os sindicalistas asuspender a paralisação. Todavia, na rápida reunião que se seguiu ao telefonema,

embora os presentes reconhecessem no governador gaúcho, as qualidades de “amigo

dos operários” (como também no presidente Jango), a greve foi mantida, pois, alegou-

se, se tratava de seguir a orientação emanada da CNTI. Na ocasião, embora ponderadas,

também não faltaram críticas ao governador Brizola e ao próprio Goulart, como a feita

 pelo sindicalista gráfico Assis Brasil Albuquerque, que pontuou que os dois líderes

 políticos trabalhistas tomavam “muitas atitudes esquecendo-se, ambos, de consultarem

as classes trabalhadoras”, referindo-se claramente ao que havia sido até então as

negociações para a escolha da composição do novo Conselho de Ministros. Disse

também, ironicamente, que o governador gaúcho também só lembrava de conversar

com os trabalhadores, “quando lhe interessa”.619 

 No dia 6 a cidade de Porto Alegre ficou deserta. O comércio e as agências

 bancárias do centro da cidade não funcionaram, nem bares, restaurantes, armazéns e

supermercados, que mantiveram suas portas cerradas por todo o dia. Conforme o Diário

de Notícias, nesse dia não “se encontrava local [aberto] nem para um cafezinho.”620 

Além disso, também aderiram à greve os trabalhadores em energia, ferroviários,

618 “Greve no Estado começou quando findou a Nacional.” Diário de Notícias, Porto Alegre, 6 de julho de1962, p.9 e p.13. A tentativa de Brizola de sustar a greve é discutida também em JAKOBY, MarcosAndré.  A organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a1964. Dissertação de mestrado em História. UFF, 2008, p.146-147.619  “Greve interrompida ontem à meia-noite: sindicatos vão decidir (Pelotas) se continua.”  Diário de

 Notícias, Porto Alegre, 7 de julho de 1962, p.9.620 “Greve (ordeira) interrompida à zero hora de hoje: cidade quase ficou deserta”,  Diário de Notícias,Porto Alegre, 7 de julho de 1962, p.9.

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Já em Santa Catarina a greve foi, tal como no Rio Grande do Sul, no dia 6,

também em razão do atraso na chegada das “senhas”. Por determinação dos sindicatos e

federações sindicais estaduais, pararam os estivadores e conferentes dos portos de Itajaí

e São Francisco do Sul, além dos rodoviários da capital e trabalhadores da área

industrial, nada muito expressivo.627

 * * *

 Neste capítulo pudemos apresentar a história da greve geral nacional de 5 de

 julho de 1962, sua articulação no plano nacional e o funcionamento dos dispositivos

grevistas em diversas regiões do Brasil. Pôde-se observar a importante capacidade de

mobilização das entidades sindicais dirigidas pela esquerda, que arregimentou não só as

categorias que trabalham nas empresas e serviços públicos em geral, como

consideravam os velhos quadros explicativos baseados na noção de sindicalismo populista.

Se efetivamente os trabalhadores da área pública pararam de forma significativa

naquela greve, é importante lembrar do peso do setor público/estatal na economia do

 país; de como, por exemplo, a maior parte do setor de transportes estava sob

administração direta do Estado. Só a paralisação total deste setor já era capaz de impedir

que muitos comparecessem ao trabalho no setor privado, seja no mais tradicional ou

mais moderno setor da economia.

E, embora em muitos casos pudéssemos constatar uma colaboração de algumas

autoridades públicas, destacamos que a posição do governo João Goulart foi no sentido

de que a greve não fosse realizada. Assim, a posição política da direção da greve esteve

relativamente autônoma em relação ao governo. Relativamente, pois a autonomia em

relação ao governo teve seus limites, e nunca é demais lembrar que tal movimento foi

desencadeado para apoiar a posição de Goulart em sua luta contra o parlamento, ou pelo

menos apoiá-lo contra a maioria parlamentar e o próprio parlamentarismo.

Mesmo assim, a greve manteve essencialmente as características destes

movimentos gerais que reforçam a identidade dos trabalhadores como classe em

oposição a outras.628 Ainda que não fosse um movimento contra a burguesia enquanto

627 “5 de julho: o País parou em grandiosa greve política da classe operária.” Novos Rumos, 12 de julho de1962, p.2.628 De acordo com Marino Regini, em seu verbete para o  Dicionário de Política de Bobbio, Matteucci ePasquino: “A Greve, de fato, não é somente uma prova de força no confronto com o adversário. Antes detudo, pode ser um fator de identidade, um elemento que permite ao grupo de trabalhadores que participa

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classe (mas contra frações desta classe consideradas mais entreguistas e ligadas ao

capital estrangeiro), tratou-se de uma intervenção dos trabalhadores na cena política.

Foram os dirigentes da esquerda sindical que organizaram e acionaram o dispositivo

grevista, e ainda que para isto tenham contado com os recursos financeiros e políticos

da estrutura sindical oficial, tratou-se de uma decisão política direcionar esses recursos para a montagem e execução da greve.

O estopim da greve, aliás, foi a exclusão das representações dos trabalhadores

nas negociações para a composição do novo Conselho de Ministros. Foi assim uma

intervenção em que, trazendo uma agenda de reivindicações que incluía questões de

ordem econômica e política, os trabalhadores saltaram ao centro do palco das disputas

 políticas durante o governo Goulart.

Sobre as motivações da greve, os dirigentes sindicais mobilizaram as bases para

enfrentar o que teria sido uma tentativa de golpe com vistas à implantação de umaditadura reacionária no Brasil. A maior parte das evidências sugere que esta não era

uma percepção descabida, pois como mostramos ser a linha defendida pelo

empresariado carioca na Associação Comercial, seus representantes naquela entidade

 pugnavam para que os poderes de João Goulart fossem ainda mais reduzidos,

aprofundando o “golpe parlamentarista”.

De qualquer modo, embora tenha sido uma greve contra o aprofundamento do

“golpe parlamentarista”, o “aprofundamento do golpe branco”, ou a execução de um

golpe de qualquer natureza, parecia não haver ainda consenso entre as forças de

oposição à direita ao governo Goulart para o apelo aos quartéis.

Mas nunca é demais lembrar que, mesmo em 1964, com certo cinismo, o

Congresso Nacional endossou o golpe de Estado operado pelas Forças Armadas, em

episódio dramático onde o ainda presidente do Senado, o mesmo Auro Moura Andrade,

declarou vago o cargo de Presidente da República, alegando que Goulart havia fugido

do país. Em seguida, a Corte Suprema (STF), em sessão secreta, deu posse ao

 presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazzili, que alguns dias depois presidiu a

eleição indireta do general Castelo Branco iniciando a ditadura. Recentemente, golpes

de Estado utilizaram-se do casuísmo interpretativo das leis vigentes, como aconteceu

como Manuel Zelaya em Honduras (2009) e contra Fernando Lugo no Paraguai (2012).

da Greve, se reconhecerem como classe em oposição a uma outra.” REGINI, Marino. Verbete “Greve”.In. BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.).  Dicionário de Política.Vol.1. 12ª edição. Brasília: EdUNB, 2004, p.561.

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É possível assim indagar se, já aquela altura, formaram-se escaramuças nesse

sentido. Talvez seja prudente observar como, no momento seguinte o processo político

seria redimensionado a partir da greve, pois àquela altura ficou demonstrado que João

Goulart dispunha de apoio militante de parte expressiva dos trabalhadores do país, além

de relativo apoio na área militar. Naquelas condições de crise, Goulart certamentefortalecia suas posições, pavimentando o caminho para a conquista dos poderes que o

 parlamentarismo híbrido lhe tolhia. Vejamos agora os desdobramentos da greve.

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Capítulo 5 – O êxito da greve e seu impacto no

processo político 

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 Neste capítulo iremos discutir a importância da greve geral, tanto no contexto

específico da crise do Gabinete, quanto no desenrolar do processo político brasileiro até

o golpe de 1964, quando se encerrou aquele ciclo de lutas políticas. A ideia é buscar

 precisar o peso que determinadas ações concretas organizadas pelas classes subalternas

 podem possuir num contexto político no qual suas direções políticas e intelectuais aconduzem à colaboração com frações das classes dominantes.

5.1 Desdobramentos imediatos

Pode-se dizer que a maior parte dos objetivos da greve política foram atingidos,

 pois não só consolidou-se a derrubada de um gabinete hostil às demandas da classe

trabalhadora e às reformas de base, como o Legislativo acabou por aceitar a terceira

indicação feita por João Goulart. Em 13 de julho a Câmara aprovou – sem grandes

 polêmicas – o nome de Francisco Brochado da Rocha para presidir o novo Conselho de

Ministros. Havia o temor de que, com mais uma recusa da Câmara, a prerrogativa da

indicação fosse dada ao Parlamento, situação em que o golpe branco do

 parlamentarismo estaria consolidado. Isto estava presente na emenda parlamentarista, o

que permitiria manter a aparência legal da manobra golpista. Todavia, a convulsão

social decorrente da greve geral e dos episódios na Baixada Fluminense, e sem dúvida

alguma a habilidade de Goulart de “surfar” na crise, não permitiram que isso ocorresse,

tendo o poder Legislativo nesse episódio se dobrado aos interesses do presidente da

República. Contaria também a necessidade dos congressistas não aparecerem como

responsáveis pelo prolongamento da crise e, mais ainda, a urgência destes voltarem logo

 para suas bases estaduais, fortalecendo suas posições para as eleições de 7 de outubro.

Brochado da Rocha pertencia aos quadros do PSD e era Secretário do Interior e

Justiça do governo do Rio Grande do Sul. Possuía uma atuação discreta na política

gaúcha, até que se destacou no episódio da expropriação da International Telephone and

Telegraph Corporation (ITT) pelo governo do Rio Grande do Sul (ocorrida em 16 de

fevereiro daquele ano), atuando como consultor jurídico da operação. Nesta questão ele

conformou com o Embaixador brasileiro nos EUA, Roberto Campos, e o chanceler San

Thiago Dantas uma comissão brasileira que negociou os termos da indenização aos

antigos donos da ITT.629 No fim de tudo, ficaria ressaltado o teor nacionalista da medida

629 DULLES, John W. F. Unrest in Brazil. Political-Military crises 1955-1964. Austin: University TexasPress, 1970, p.174. PARKER, Phyllis R. 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de Estado de 31 demarço. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p.34.

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do governo gaúcho, já que, em contrapartida, Brizola havia depositado um valor

simbólico pela encampação da empresa.630  Por sua participação naquele processo,

Brochado da Rocha foi recebido positivamente pelas esquerdas e com enorme

desconfiança pelas direitas.

Quanto a Goulart, embora tenha ficado contra o movimento paredista, não é possível esquecer que este foi feito em seu apoio. Deste modo, o resultado do processo

acabou por atender aos intentos de Goulart, pois o gabinete de Brochado da Rocha

esteve plenamente integrado ao conjunto de forças políticas interessadas em liquidar o

Parlamentarismo e permitir que o presidente da República fizesse seu governo. Era

episodicamente o grande vencedor naquela contenda.

Os líderes do CGG também se sentiram privilegiados com a escolha do nome de

Brochado da Rocha ter sido feita em acordo com a opinião deles, que também

aprovaram na pasta do Trabalho o nome do socialista Hermes Lima (PSB-BA), cargoantes ocupado por Franco Montoro (PDC-SP), que, como vimos, tinha posição hostil à

mobilização operária e sindical.631  Todavia, o CGG e as demais forças da esquerda

nacional-reformista decepcionaram-se com as indicações de Renato Costa Lima,

 presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), para o Ministério da Agricultura e do

 banqueiro Valter Moreira Salles, que continuaria na Fazenda. Já no final do mês de

 julho, o PCB se declarou na oposição ao novo gabinete, pois haveria muitos

“entreguistas”.632 

O saldo da greve também esteve ligado ao encaminhamento da conquista de

direitos sociais, pois no mesmo dia em que a Câmara aprovava Brochado da Rocha, o

 presidente João Goulart sancionava a lei que instituiria o 13º salário, na presença de

uma significativa delegação de sindicalistas. Aprovado pelo Senado no fim do mês de

 junho, também em face da importante pressão do movimento sindical que havia feito

caravana à capital da República entre os dias 27 e 28 de junho (quando a Câmara

rejeitava o nome de San Thiago Dantas), a conquista desse direito esteve diretamente

ligada à greve de julho. Após a aprovação do projeto do deputado Aarão Steinbruch

630 Repetindo procedimento que havia adotado quando em 1959 também expropriou a American Foreignand Power  (AMFORP), do ramo de energia elétrica.631  Como já foi dito, Montoro, ao lado do ministro da Justiça do primeiro gabinete parlamentarista,Alfredo Nasser, e o governador de São Paulo, Carvalho Pinto, orquestrou a repressão à tentativa de grevegeral em 13 de dezembro de 1961, cujo propósito era pressionar o Senado a aprovar a Lei do 13º Salário.632 Face a estes nomes, no fim do mês de julho o PCB declarou sua oposição ao novo gabinete.  Novos

 Rumos, Rio de Janeiro, 20 a 26 de julho, p.3.

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(PTB-RJ) no Senado,633 a lei precisava apenas da assinatura de Goulart, mas não havia

nenhuma garantia de que ele fosse tomar tal atitude imediatamente, como denota

comparativamente a sua vacilação em assinar a Lei que disciplinava a remessa de lucros

 para o exterior, que aprovada em setembro daquele ano de 1962, só seria sancionada por

ele em janeiro de 1964.É claro que a Lei da Remessa de Lucros, que contrariava diretamente os

interesses do capital estrangeiro, naquele contexto de crise, era muito mais delicada

 politicamente do que a do 13º, não obstante o fato de que para esse direito se efetivar o

movimento sindical continuaria a mobilização para que fosse estendido aos servidores

 públicos, enquanto na economia privada os patrões fariam de tudo para descumprir a lei.

Velha luta da classe trabalhadora brasileira, cujos primeiros movimentos remetem à

conjuntura da redemocratização do país em 1945-46, o “abono de Natal” esteve

 presente na pauta levada a Jango pela comissão do Comando Geral de Greve que viajoua Brasília naquele 5 de julho de 1962. Pelo menos até o golpe de 1964, continuaria a ser

objeto da luta pelo seu cumprimento.

Desse modo, além do sucesso da paralisação, com a greve de julho a esquerda

sindical ampliava também o seu prestígio junto à classe trabalhadora, o que desmente de

forma retumbante as formulações tradicionais sobre o sindicalismo populista, discutidas

acima. Além de ter se mostrado um elemento importante de pressão política, a greve de

 julho encaminhou demandas econômicas.

Outro aspecto importante. Parece não haver dúvida de que, ao atenderem ao

chamado de uma greve nacional política, absolutamente em desacordo com as normas

vigentes da legislação sindical, denotava-se também a disposição de expressivos

contingentes da classe trabalhadora organizados nos sindicatos em não levar tais normas

em conta; descartaram-na, demonstrando compreender perfeitamente seu propósito

essencial de controlar seu protesto. Nunca é demais lembrar também que o próprio

direito de greve, embora previsto na Constituição de 1946, por não estar regulamentado,

sofria as restrições do Decreto 9.070 de Dutra e dos artigos 197 e 201 do Código Penal,

como vimos, sempre utilizados pelo aparelho de repressão do Estado para coibir o

exercício deste direito democrático. Assim, foi quase natural que os presos em piquetes

na greve de 5 de julho na Guanabara fossem todos enquadrados nesta legislação

autoritária, o que, aliás, aconteceu com regularidade ao longo do regime da República

633 De autoria do parlamentar fluminense, o projeto de lei do 13º salário tramitava na Câmara desde 1955.

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de 1946 até o seu fim – pois em 1963, mesmo frente à forte campanha que se

desenvolvia nos meios sindicais e políticos pela regulamentação do direito de greve, o

STF, mostrando bem o seu caráter de classe, decidiu pela constitucionalidade do

Decreto 9 070.

 Neste ponto, poderemos apenas brevemente pensar na natureza das questões queo estudo desta greve nos trouxe, no sentido da nossa contribuição à crítica a noção de

sindicalismo populista, aliada à crítica ao revisionismo liberal-apologético. Afinal, além

de ter sido um movimento feito em contrariedade à posição do presidente João Goulart,

foi antes de tudo uma greve política. E mesmo nos mais democráticos Estados

capitalistas, as greves políticas são em geral condenadas com o rigor da lei.

Obviamente, isso nunca impediu a existência de protestos desta natureza em qualquer

destas sociedades.

 Não obstante inúmeros casos de greves políticas, na letra da lei dos Estadoscapitalistas admitem-se as greves chamadas de econômicas, por aumento de salário, até

 por direitos sociais, mas a legislação sempre estabeleceu restrições aos movimentos

organizados por sindicatos com um claro propósito político. Sem querer alongar mais

este comentário, caberia apenas consultar como os órgãos internacionais têm se

 pronunciado sobre o tema. Segundo uma resolução da Organização Internacional do

Trabalho (OIT) de 1987, que apresentou os princípios do Comitê de Liberdade Sindical

(criado em 1951) referentes a greves, “as greves de caráter puramente político não se

enquadram nos princípios da liberdade sindical.” E prossegue:

“O Comitê observou expressamente que ‘só na medida em que asorganizações sindicais evitam que suas reivindicações trabalhistasassumam um aspecto puramente político, podem pretender, comlegitimidade, que não se interfira em suas atividades”, mas também temafirmado que “é difícil fazer uma clara distinção entre o político e orealmente sindical”, pois “ambas as noções têm pontos comuns’.” 634 

Todavia, na mesma declaração, afirma-se que o debate avançou para o entendimento de

que o direito de greve deveria ser também contemplado em casos nos quais, para a

defesa dos seus interesses profissionais e econômicos, os trabalhadores teriam também

o direito de apresentar reivindicações para questões de política econômica e social.

Mesmo nisso o documento visa estabelecer restrições em relação a tais protestos, que

634  HODGES-AEBERHARD, Jane & ODERO DE DIOS, Alberto. Princípios do Comitê de LiberdadeSindical referentes a greves. Brasília: Ministério do Trabalho & Organização Internacional do Trabalho,1993, p.9.

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não devem levar à “perturbação da ordem pública”. Tais princípios se estenderiam aos

casos das greves gerais, que por sua própria natureza assumem sempre conotação

 política. Além disso, prossegue o documento:

“Nos casos de as reclamações, cuja solução se procura obtercom a greve, incluírem, ao mesmo tempo, reivindicações de carátertrabalhista ou sindical e reivindicações de caráter político, a atitude doComitê consiste em reconhecer a legitimidade da greve quando asreivindicações trabalhistas ou sindicais não parecem ser simples pretexto

 para encobrir objetivos puramente políticos que careçam de qualquervínculo com a promoção e a defesa dos interesses dos trabalhadores.”635 

É bastante curioso que de acordo com essas diretrizes desse órgão ligado às Nações

Unidas, aos trabalhadores estaria reservado o direito de greve desde que estes, por

ventura, não estejam pretendendo algo mais que trabalhar.

5.2 A greve geral no processo político brasileiro

 No mês de junho a campanha contra a indicação de San Thiago Dantas foi

objeto da ação da Ação Democrática Parlamentar (ADP), que posteriormente registrou

em seu órgão Ação Democrática o seu papel no episódio.636 Não são poucos os indícios

de que a ADP queria não somente bloquear as iniciativas de Goulart, mas de certo modo

controlar um possível governo parlamentarista organizado por Moura Andrade.

Enquanto isso, na Frente Parlamentar Nacionalista e nas forças que lhe davam suporte –

 principalmente o PSB e o “grupo compacto” do PTB –, além de encampar a defesa daindicação de San Thiago, amadurecia a proposta de que o plebiscito previsto na emenda

 parlamentarista deveria ser imediatamente marcado pelo Congresso. A rejeição da

 primeira indicação feita por Goulart, e a eleição de Auro Moura Andrade pareciam ter

reaberto as possibilidades para o triunfo da ADP, quando ocorreu a intervenção do

movimento organizado dos trabalhadores na cena política.

 No  Diário do Congresso Nacional é possível recuperar a repercussão da greve

geral nesta esfera do poder do Estado, ainda que deva ser lembrado que em tal tipo de

documentação não existe a totalidade dos registros das intervenções parlamentares

naqueles conturbados dias. Já em 4 de julho, quando os rumores sobre a demissão de

635  Idem, ibidem, p.9. Na mais recente resolução de 1998 da OIT foram reafirmados os mesmos pontos.GERNIGON, Bernard; ODERO, Alberto; GUIDO, Horacio.  ILO Principles concerning the right tostrike. Genova: OIT, 1998. Consultada emhttp://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@ed_norm/@normes/documents/publication/wcms_087987.pdf636  Ação Democrática, julho/1962, p.6-7, apud  DREIFUSS, 1964, a conquista do Estado, op. cit., p.323.

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Moura Andrade ainda não eram conhecidos, o então deputado Aurélio Vianna (PSB-

AL)637 assim interveio no plenário da Câmara:

“Sr. Presidente [da Câmara], está aí o resultado do monumento queconstruíram na calada da noite: pirâmides erigidas sobre bases falsas,sobre areia movediça. Criaram um sistema de governo impar no mundo

inteiro, diferente dos outros. Tiraram atribuições ao Presidente daRepública de Chefe de Governo. Luta-se ainda para retirar-lhe o que lhesobra de poder como Chefe de Governo que também é. Chegamos entãoa um impasse. Ninguém se equivoque, ninguém se engane, pois nestaCasa ouviam-se comentários de certos grupos naquelas noites e tardes deagosto, ‘Se Milton Campos tivesse sido eleito Vice-Presidente daRepública, não se teria alterado o sistema.’” 638 

O deputado socialista manteve o tom crítico ao denunciar que, na manobra que resultou

na adoção do parlamentarismo, o povo não havia sido ouvido. Exortando os

 parlamentares a tomarem coragem para realizar um consulta ao povo sobre o sistema degabinete, Vianna fez um longo comentário sobre o hibridismo do sistema vigente, ao

mesmo tempo em que criticava a própria posição pública assumida pelo senador Moura

Andrade, que, como vimos no capítulo anterior, em seu discurso de apresentação à

Câmara, deixou claro seu propósito de tolher os únicos poderes que haviam restado ao

 presidente da República. Conforme está registrado nessa fonte, a certa altura de seu

discurso, disse o parlamentar:

“Ora, Sr. Presidente e Srs. Deputados, estão aqui as atribuições de umChefe de Governo dadas ao Chefe de Estado. São cerca de dezesseisatribuições, inclusive a de prover a administração pública, [mais]numerosas do que as de Chefe de Governo, do Presidente do Conselho deMinistros, isto é, do outro Chefe do Governo, Presidente do Conselho deMinistros. E quando o Presidente da República reivindica o direito deexercer pelo menos aquelas atribuições que lhe deixaram, que lhe deram

 por esquecimento, por pressa, por medo – medo físico, não[?] – medo político de perder posição, então vem um candidato à Presidência doConselho de Ministros e reivindica para ele e somente para ele o direitode governar o País. Para que fez declaração da tribuna? Para seraplaudido por aqueles que só têm um objetivo – destruir a pessoa política

 – porque não quero dizer física – do Presidente da República.”639 

A notícia da renúncia de Moura Andrade deve ter mudado o rumo da prosa

durante aquela tarde nas duas casas legislativas, mas infelizmente não existem registros

disso nessa fonte. Na verdade, ao menos nessa documentação nem mesmo existem

637 E futuro senador pela Guanabara, eleito naquele outubro de 1962.638  Diário do Congresso Nacional, Brasília, 5 de julho de 1962, (Seção I), p.3921.639  Idem, ibidem, p.3921.

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“Sr. Presidente [da Câmara], notícias que nos chegam aoconhecimento revelam que vem eclodindo greves em vários Estados doPaís. Cumpre, assim, a classe trabalhadora as promessas feitas caso estaCasa não tomasse providência positivas e urgentes, no sentido de umasolução à crise de abastecimento, realmente a mais dura que atravessamas classes menos favorecidas.

Esses acontecimentos vêm [se] agravando sempre nos últimosmeses. No Estado do Rio já se verificam depredações e assaltos, comsaques.”642 

Em seguida, o deputado buscou ligar o protesto do movimento sindical à reivindicação

 por um plebiscito sobre o parlamentarismo, tese da preferência de Goulart, Brizola e

encampada pela FPN. E após (irritantes) intervenções no plenário sobre assuntos

diversos, a greve voltou a ocupar os temas da tribuna através de novo pronunciamento

de Aurélio Vianna, que depois de comentar as graves contradições sociais do país,

disse:“Recebi telefonema de pessoa autorizada, das mais ilustres e dignas destePaís, quando passei a saber que o Rio está paralisado, que a Nação está

 paralisada. As classes trabalhadoras, determinadas, cumpriram sua palavra. Querem ser ouvidas.

Quando o Deputado ou Senador se elege, não quebrou o vínculocom o povo, não passou a ser soberano, não passou a ser senhor. Ele temque continuar ouvindo o povo, sua gente, sentindo e expressamente suasreivindicações, suas aspirações. Se ele continua sendo porta-voz do povo,tem que se aproximar do povo. Não deve, de modo nenhum, ter ocomportamento de um soba, de um senhor de escravos, porque neste País

não há escravos.Pois que ouça agora a voz do operário, a voz do trabalhador, avoz do intelectual, a voz da classe média. Que ouça e sinta que este País édiferente.”643 

Em seguida a outras considerações, travou-se um embate entre o parlamentar alagoano e

Miguel Bahury (PSD-MA), sobre as razões da renúncia de Auro Moura Andrade.

Aurelio Vianna lembrou da posição “legalista” de Moura Andrade na crise de agosto,644 

entretanto ponderou que, como o mesmo tinha buscado organizar um gabinete

conservador de oposição ao próprio Jango, acabou perdendo a confiança dos setores

que, originalmente, acreditavam que esse fosse se comprometer com a realização de um

 plebiscito sobre o parlamentarismo. Tal como Breno da Silveira, a linha de Aurélio

642  Diário do Congresso Nacional, Brasília, Seção I, 6 de Julho de 1962, n.3955, p.7.643  Idem, ibidem, p.8.644  O “legalismo” de Moura Andrade consistiu no apoio à posse de Goulart com a adoção do

 parlamentarismo. Em suma, como muitos outros parlamentares, o “legalismo” ligou-se a essa manobra, e por isso lhe servem as aspas, pois em 1964 a lei foi golpeada quando este senador declarou “vaga aPresidência da República”, consumando o golpe de Estado.

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Em primeiro lugar é preciso pontuar que a notícia de que a esquerda sindical

 planejava uma outra greve política seguiu-se quase que automaticamente ao triunfo do

movimento de julho. Embora no momento seguinte, a interação entre elementos do

governo Goulart e o CGT fosse cada vez mais intensa, esse tipo de articulação política

não era consensual entre as esferas do poder. Não eram poucos aqueles que repeliam aideia de que a mobilização operária poderia ser utilizada como suporte, à maneira do

 peronismo. A começar pelo próprio Goulart, como ficou claro no episódio de julho.

O segundo semestre daquele ano estava tomado pela agenda das eleições de

outubro e, passada a euforia da vitória brasileira na Copa do Mundo de Futebol (de 30

de maio a 17 de junho, no Chile), as atenções populares cada vez mais se voltaram para

o processo político e eleitoral (com a crise ministerial, a campanha pela antecipação do

 plebiscito sobre o parlamentarismo, os conflitos entre Goulart e Congresso, as eleições

de 7 de outubro). No âmbito governamental, o gabinete Brochado da Rocha buscavaarrancar mais algumas concessões do Congresso, a saber, a delegação de poderes

extraordinários “para realizar reformas e resolver o problema do abastecimento”,

segundo suas alegações. Além disso, pressionou os parlamentares pela aprovação de

uma emenda que marcasse o mais breve possível a realização de um plebiscito sobre o

 parlamentarismo, de preferência para se realizar simultaneamente às eleições de

outubro.

Quando o CGT anunciava a realização de mais uma greve de advertência, para

novamente pressionar o Congresso a favor de Goulart, no Senado a greve de julho seria

novamente lembrada. De acordo com registro nos  Anais do Senado, o senador

trabalhista Paulo Fender (MTR-PA), simpático ao CGT, interveio no plenário

condenando a intransigência daquela casa em negar apoio à realização do plebiscito

sobre o parlamentarismo. Aparteando o adversário político, e alegando que as entidades

sindicais que propagandeavam a realização desta greve estavam “dirigidas por

comunistas”, o senador udenista Padre Calazans (UDN-SP), também conhecido pela

esquerda como “Lacerda do Senado”, mencionou a greve geral de julho como exemplo

da “pouca influência” dos sindicalistas ligados ao CGT junto à classe trabalhadora. De

acordo com Calazans, “a minoria dirigida pelo Sr. Dante Pelacani que ameaça a greve,

não conseguiu efetivá-la da outra vez, em São Paulo, como também não conseguiu no

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Rio de Janeiro. E se não houve trabalho foi apenas porque os ônibus pararam. Se tivesse

condução teriam trabalhado”.648 

Em 11 de setembro, o CGT divulgou novo manifesto onde exigia a realização do

 plebiscito para coincidir com as eleições de outubro,649 tese rejeitada pela ADP, o que

incluía parte expressiva da bancada do PSD, quadros do Partido Libertador (PL), doPDC e quase toda a UDN650  que temia ser penalizada por uma associação com o

impopular parlamentarismo nas mesmas eleições.651 Isso pode ser exemplificado no fato

do tema da greve geral ter sido pautado como fonte de preocupações em uma das

últimas reuniões do Conselho de Ministros chefiado por Brochado da Rocha. Nas notas

taquigráficas da reunião de 11 de setembro, o então ministro da Aeronáutica, brigadeiro

Reinaldo de Carvalho, dá a seguinte declaração:

“Queria trazer ao conhecimento do Conselho um fato da maior

gravidade, comunicado do Rio de Janeiro. É que o Sindicato dosAeronautas e Aeroviários comunicou ao Diretor da Aeronáutica Civilque, se não for votado o plebiscito, eles entrarão em greve em 15 desetembro. Como esse fato é grave, e esse Sindicato tem ligações comoutros Sindicatos, estou comunicando, inclusive já tendo tomado diversas

 providências preventivas.”652 

Em seguida falou o Ministro da Justiça Cândido de Oliveira Neto:

“O Conselho ouviu a comunicação do Ministro da Aeronáutica, e pareceque em matéria de greve devíamos delegar ao Ministro do Trabalho

 poderes para as providências indicadas.”653 

 No que, segundo consta nestas notas, o Ministro do Trabalho, Hermes Lima, apenas

teria respondido: “Tomei conhecimento da comunicação do Ministro da

648  Anais do Senado Federal, Brasília, 12 de setembro de 1962, p.119. Nesta sua “leitura” da greve de julho, Calazans reproduz uma interpretação compartilhada pela direita agrupada na APD e pelo O Globo,assunto a que voltaremos mais à frente.649 Manifesto reproduzido em Bancário, Rio de Janeiro, n.51, 12 de setembro de 1962.650 Quase toda, porque alguns poucos pertenciam à Frente Parlamentar Nacionalista, como o deputadomaranhense José Sarney.651 A essa altura, em pleno calendário eleitoral, o IBAD centralizou recursos conseguidos ilegalmente noexterior, para financiar a campanha dos candidatos da ADP, o que acabou gerando um escândalo quelevou a instauração da CPI do IBAD. Essa acabou fracassando, em razão de muitos de seus componentesterem sido beneficiados pela famosa “caixinha do IBAD”, acabando por levar Goulart a fechar a entidade“na marra” em fins de 1963.652  “Notas taquigráficas da reunião do Conselho de Ministros realizada em 11 de setembro de 1962.”Fundo Conselho de Ministros Parlamentarista 1T-05 (Gabinete Brochado da Rocha), Arquivo Nacional(RJ), p.1.653  Idem.

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Aeronáutica.”654 Na verdade, muitos são os indícios de que nessa nova movimentação

 por uma greve política, existiu articulação do CGT com elementos do governo.

 Neste mesmo dia 11 a imprensa divulgava a declaração do general Peri Constant

Bevilaqua, que acabava de assumir a chefia do II Exército no estado paulista: “Se a

aspiração popular é pelo Plebiscito, o Congresso Nacional não deve negá-lo!”655

 Comocomentamos anteriormente, Bevilaqua foi o candidato derrotado à presidência do Clube

Militar, pela chapa nacionalista nas eleições realizadas no primeiro semestre daquele

ano. Hostilizando desde o início a manobra parlamentar que instituiu o sistema de

gabinete, o general mantinha coerência.656 

 Nesse mesmo contexto, o líder do chamado “grupo compacto” do PTB, o

deputado federal Almino Afonso também destacaria a necessidade do Congresso “dar

ao povo o direito de decidir se esse caminho [a instituição do parlamentarismo] foi

correto ou não”, aprovando o plebiscito para coincidir com as eleições de 7 deoutubro.657  Essas pressões avolumavam-se sobre um Congresso nacional desgastado,

 prestes a ser renovado totalmente na Câmara e parcialmente no Senado e que carregava

no colo os impasses de um parlamentarismo híbrido.

Brochado da Rocha resolveu então colocar a “questão de confiança” perante o

Congresso, focando num pedido de delegação de poderes e exigindo o plebiscito. Como

é sabido, nos sistemas parlamentaristas a “questão de confiança” é uma atitude do

Primeiro ministro face ao parlamento, estando o próprio cargo condicionado à aceitação

ou não de sua demanda. Com a recusa do Congresso à “questão de confiança”,

Brochado da Rocha renunciaria. Na dramática última reunião daquele Conselho de

Ministros, a 13 de setembro, o Premier  colocou novamente a questão da ilegitimidade 

do sistema parlamentar em termos exemplares de que pretendia ir às últimas

consequências em sua atitude:

“O regime é, sem dúvida, legal, mas é sem dúvida, ilegítimo. Os dias quedecorrem entre a reunião informal do Ministério, realizada em Brasília ea realização do esforço concentrado, dediquei-me ao exame profundo da

654  Idem, p.2.655 Última Hora, Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1962.656 Tendo se pronunciado em apoio à posse de Jango na crise de agosto de 1961 e em apoio à declaraçãodo general Osvino Alves em meados do ano, Peri Bevilacqua evoluiria posteriormente para uma posiçãoanti-CGT e no mínimo displicente com a conspiração golpista que se preparava contra Jango. Sobre essaevolução política do general, ver LEMOS, Renato. “Introdução” à  Justiça Fardada  – o general PeriBevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Rio de Janeiro: Bomtexto, 2004, p.9-32. DEMIER,Felipe Abranches. Soldados x operários. Monografia de bacharelado em História. Universidade Federaldo Rio de Janeiro, 2005.657 Última Hora, Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1962.

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situação, verificando que não é possível, sem agravo, realizar as eleições para o novo Congresso, sem decidir o plebiscito. Esta é a norma geralque vigora em todos os países em que o povo é soberano, em todos os

 países em que o Governo, pela opinião esclarecida de seu povo...”658 

Por sua vez, naquela altura o comandante de III Exército, general Jair Dantas

Ribeiro, enviou um telegrama ao ministro da Guerra, Nelson de Mello, afirmando que

não teria condições de manter a ordem pública no Rio Grande do Sul caso o Parlamento

se recusasse a aprovar a realização do plebiscito.

“Face à intransigência do Parlamento... e tendo ainda em vista as primeiras manifestações de desagrado que se pronunciam nos territóriosdos Estados ocupados pelo III Exército, cumpre-me informar a V. exa.,como responsável pela garantia da lei, da ordem... e da propriedade

 privada deste território, que me encontro sem condições para assumircom segurança e êxito a responsabilidade do cumprimento de tais

missões, se o povo se insurgir pela circunstância de o Congresso recusaro plebiscito para antes ou no máximo simultaneamente com as eleiçõesde outubro próximo vindouro.”659 

Os generais Osvino Alves e Peri Constant Bevilaqua, comandantes do I e II Exércitos,

respectivamente, solidarizaram-se com Dantas Ribeiro. Apenas o general Castelo

Branco, que substituiu Costa e Silva no comando do IV Exército, recusou-se a apoiar a

declaração. O ministro da Guerra, general Nelson de Melo, contrariado, considerou a

declaração do comandante do III Exército uma “manifestação de insubordinação”, já

que, alegou, Dantas Ribeiro tinha o dever constitucional de manter a ordem a qualquercusto. O CGT e a FPN naturalmente se solidarizaram com Dantas Ribeiro.

Em 14 de setembro, Brochado da Rocha renunciou.660  Na edição especial do

semanário comunista Novos Rumos, quando se anunciava a nova greve geral, aparecia a

declaração do general Jair Dantas Ribeiro nos seguintes termos: “O povo é soberano no

regime democrático. Negar-lhe o direito de pronunciamento sobre o sistema de governo

que lhe foi imposto, é abominar o regime ou querer destruí-lo.”661  A greve geral

estourou no mesmo dia.

 No estado da Guanabara muitas categorias começaram a paralisação já no dia14, como os ferroviários da Leopoldina e Central do Brasil, que foram novamente a

658  Notas taquigráficas da reunião do Conselho de Ministros realizada em 13 de setembro de 1962.”Fundo Conselho de Ministros Parlamentarista 1T-05 (Gabinete Brochado da Rocha), Arquivo Nacional(RJ), p.5.659 O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 de setembro de 1962.660 Doze dias após sua renúncia, no dia 26 de setembro, Brochado da Rocha faleceu em Porto Alegre.661  Novos Rumos, Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1962, capa.

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 primeira categoria a encerrar suas atividades e entraram em greve já ao meio dia e meia,

e na parte da tarde também pararam o porto, os metalúrgicos, os funcionários da

Petrobrás, aeronautas, aeroviários e outros.662 Ficaram paralisadas também as refinarias

de Manguinhos e de Duque de Caxias no estado do Rio de Janeiro. As barcas Rio-

 Niterói paralisaram suas atividades às 21:30 do dia 14.663

  Em Minas Gerais 15 milmetalúrgicos pararam no dia 14 – sendo os trabalhadores da Mannesman os primeiros –,

combinando o movimento com sua própria campanha salarial, mas muitas outras

categorias só entraram em greve no sábado dia 15,664  dia em que muitas cumprem

 jornadas.665 Entretanto, naquele sábado as zonas industriais da Guanabara funcionaram,

não sem contar com forte esquema policial que impediu a formação de piquetes.

Já no dia 14 a polícia política da Guanabara interveio de forma contundente para

desmontar a greve. Em primeiro lugar, cumprindo uma “ordem” judicial do Tribunal

Regional Eleitoral (TRE), buscou-se fechar a Rádio Mayrink Veiga, que tal como nagreve de julho, abriu suas ondas para que o CGT divulgasse seus manifestos e

 proclamassem a greve. No entanto, tropas do I Exército cercaram a Rádio e impediram

que a polícia política da Guanabara cumprisse a ordem do TRE. Na mesma noite, a

mesma polícia conseguiu prender praticamente toda a direção do CGT, na sede da

CNTI. Todavia, com a atuação do único líder não preso, o também deputado pela

Guanabara, Hércules Correa, com o apoio do secretário do Ministério do Trabalho, João

Pinheiro Neto e novamente de tropas do I Exército, a direção do CGT foi libertada em

 poucas horas, garantindo-se a continuidade da greve.

Além disso, a polícia também interveio na sede do Sindicato dos Metalúrgicos e

na Gráfica e Editora Itambex, onde era editada a folha comunista  Novos Rumos.666 Por

fim, temendo ter suas sedes invadidas, nos Sindicatos dos Aeronautas e Aeroviários,

seus membros tiveram o apoio do comandante da 3ª Zona Aérea, Brigadeiro Francisco

Teixeira, que garantiu o envio forças da FAB para proteger suas sedes.667 A greve no

setor aéreo, aliás, foi um dos seus pontos de maior eficiência política, pois, com a

662  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1962, capa.663 Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1962, capa.664  Idem, ibidem, p.5.665  Além de trabalhadores em setores essenciais, como transporte público, que trabalham no fim desemana, muitas categorias cumpriam jornadas aos sábados, como os bancários e expressivas categoriasoperárias.666  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1962, p.10. Voltaremos a esse episódio no

 próximo capítulo, quando discutiremos, através da documentação policial, o relato feito pelos própriosagentes da repressão.667  Idem, ibidem, p.10.

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 paralisação da aviação comercial, os parlamentares viram-se presos em Brasília,

contribuindo para que os mesmos chegassem ao acordo que afinal marcou a data de

realização do plebiscito para 6 de janeiro do ano seguinte, em sessão ocorrida na

madrugada do dia 15 de setembro.

Do mesmo jeito que na anterior, no caso desta greve geral realidades regionais e paralisações parciais combinaram-se à greve nacional. Foi o caso, por exemplo, dos

trabalhadores em carris urbanos da cidade de Santos, que, desde o dia 11 haviam

entrado em greve por melhores salários. No dia seguinte, quando tudo indicava que a

 paralisação chegaria ao fim, os grevistas foram surpreendidos com a fuga do prefeito e a

 prisão de doze sindicalistas por policiais que realizavam um cerco na Prefeitura. Isto

levou a que diversas outras categorias entrassem em greve de solidariedade. Assim,

conforme esclareceu o historiador Fernando Teixeira da Silva, quando o CGT decretou

a greve geral, a cidade de Santos já estava quase inteiramente paralisada. 668  Omovimento sindical da cidade de Santos ficou mobilizado até o dia 18, bem depois do

fim oficial da greve – anunciado na segunda-feira (17) pela manhã – quando os

sindicalistas foram soltos. Mas a verdade é que no fim de semana o movimento se

enfraqueceu, e, quando acabou oficialmente, era irrisório.

 Novamente a cidade de São Paulo não aderiu à greve.

Os indícios de que havia uma articulação entre o movimento sindical e alguns

elementos do governo são mais evidentes no desenrolar dessa segunda greve geral do

que na de julho. A própria declaração fria do demissionário ministro do Trabalho frente

à denúncia da preparação do movimento naquela última reunião do gabinete Brochado

da Rocha é um sinal evidente de que sua posição sobre o assunto não era do mesmo teor

que a de titulares de outras pastas.669  Mas é razoável supor que, face ao êxito da

 primeira greve geral nacional como fator de  pressão  no processo político, setores da

cúpula do PTB e o próprio Goulart tivessem buscado animar a preparação de um novo

dispositivo grevista para definir a relação de forças ao seu favor.

Por outro lado, a esfera governamental parecia não falar a mesma língua em

muitos assuntos, e sobre a greve de setembro também surgiram rumores de que se

tratava de peça de uma manobra golpista patrocinada por Leonel Brizola, com vistas ao

fechamento do Congresso por um golpe da ala nacionalista das Forças Armadas, e que

só não vingou por que o próprio Goulart na última hora desmantelou o dispositivo.

668 SILVA, A carga e a culpa, op. cit., p.178-179.669 De acordo com as notas taquigráficas supracitadas.

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Paulo Schilling, antigo colaborador de Brizola, defende essa versão em seu livro Como

se coloca a direita no poder ,670  e além dele algumas outras fontes suspeitas de direita

 política, como o próprio embaixador Lincoln Gordon, conforme veremos ainda neste

capítulo, mas é preciso ir com prudência. Se é que houve tal articulação com vistas ao

fechamento do Congresso por um “golpe de esquerda”, é preciso lembrar que um dosseus supostos articuladores, como o governador Brizola, caracterizava o próprio

Congresso Nacional como “golpista”, pois, havia “violando a Constituição” na crise de

agosto do ano anterior.671  O crescimento de sua candidatura à Câmara Federal, pela

Guanabara, certamente deve ter dissipado intenções nesse sentido, então não seria

exagerado supor que essa ideia de “golpe de esquerda” não deve receber muito crédito.

Mas mesmo levando isso em consideração, é evidente de Jango não participou desta

suposta aventura. De qualquer modo, mais uma vez este soube surfar na onda de crise

do parlamentarismo e dobrar de novo o Congresso, arrancado o referendo.Com a greve de setembro, o movimento sindical também conseguiu arrancar do

governo um compromisso com o reajuste do salário mínimo, tendo ficado estabelecido

o compromisso com o aumento de 100%. Com a queda do gabinete Brochado da Rocha,

alguns dias depois Goulart indicou o socialista Hermes Lima para chefiar no novo

Conselho de Ministros e fechar a conta do Parlamentarismo. Para o Trabalho foi

designado o então secretário da pasta, João Pinheiro Neto, que pessoalmente colaborara

 para que os líderes sindicais presos na greve de setembro – mais de cem – fossem

soltos. Pinheiro Neto seria também o avalista das reivindicações encaminhadas pelo

CGT a Goulart, e este via no novo Ministro do Trabalho um elemento a partir do qual

seria possível envolver a área trabalhista na campanha pelo NÃO no plebiscito do ano

seguinte. Todavia, Goulart o demitiu em 4 de dezembro dois dias depois de Pinheiro

 Neto ter feitos duras críticas, em um programa de televisão, ao embaixador norte-

americano Lincoln Gordon, ao embaixador do Brasil em Washington, Roberto Campos,

670 SCHILLING, Paulo. Como se coloca a direita no poder . Vol.1. Os protagonistas. São Paulo: Global,

1979, p.234-238.671 Em depoimento a Moniz Bandeira no final dos anos setenta, Leonel Brizola afirmou precisamente isto:“Considerava e continuei considerando que o Congresso violou a Constituição, ao votar a emenda

 parlamentarista. Por esse motivo entendia que o III Exército, juntamente com a Brigada Militar e corposde voluntários que pudéssemos armar, deviam avançar na direção do centro do País e da Capital daRepública. Estava convencido de que não haveria maior resistência, podendo Goulart assumir aPresidência da República sem considerar quaisquer restrições ao seu mandato. A única medidaexcepcional, que eu advogava era a dissolução do Congresso, por ter violado a Constituição, e aconvocação simultânea de uma Assembléia Constituinte para dentro de 30 ou 60 dias no máximo .”BANDEIRA, Moniz. Brizola e o trabalhismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1979, p. 85. Grifomeu.

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e ao diretor da Superintendência de Reforma Agrária (SUPRA), Otávio Gouveia de

Bulhões. Na televisão, Pinheiro Neto acusou os três de serem os responsáveis em

manter o país subordinado ao Fundo Monetário Internacional, o que não era de nenhum

modo implausível, sendo desnecessário lembrar que os três estavam articulados no

esquema IPES (inclusive Gordon). Em desagravo ao ministro demitido, o CGTanunciou que poderia ir novamente à greve geral para reempossá-lo no cargo, mas

acabou recuando depois que Benjamin Eurico, então diretor do Departamento Nacional

do Trabalho, foi indicado para a pasta.672 No entanto, uma declaração deste ainda em

dezembro é indicativa de como são exageradas as imagens de “tolerância” dos

 burocratas do PTB em relação ao movimento sindical. Disse Benjamin Eurico que “este

Ministério não pode abrigar a greve política!”

O episódio todo mostrava como Goulart estava disposto a negociar com

Washington, sacrificando seus compromissos internos. Mas em vez da boa vontade, aCasa Branca enviou de surpresa Robert Kennedy ao Brasil, visita marcada pela

arrogância, que alguns alegam ser resultado do agravamento das hostilidades dos EUA

com a URSS por causa de Cuba (a crise dos mísseis foi em outubro), ponto sensível de

desentendimentos entre a administração de John Fitzgerald Kennedy e a política externa

independente praticada pelo Brasil.

De qualquer modo, Goulart também não podia prescindir do apoio da classe

trabalhadora para liquidar o parlamentarismo, e dias antes do plebiscito, majorou o

salário mínimo, não em 100% como queria originalmente o CGT, mas em 75%.673 

As ameaças de greve geral foram um dos grandes legados da greve de julho

 para todo o período posterior do conturbado governo Goulart. Até a greve geral

decretada em 31 de março de 1964, que atingiu alguns pontos do país, como a

Guanabara e Santos,674  mas que falhou em outras cidades brasileiras, declarações do

CGT de que “os trabalhadores poderão de novo realizar uma greve geral de

672  Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1962, p.3. Última Hora, Rio de Janeiro, 5 dedezembro, p.1.673 Pinheiro Neto sugeriu o índice de aumento de 56,25% ao Conselho de Ministros na reunião de 8 denovembro, bem abaixo do que, após algumas gestões, o CGT aceitou negociar, com 80% a 1º dedezembro e o 13º com base no salário de novembro. O Conselho de Ministros já havia aprovado a

 proposta de Pinheiro Neto, quando Goulart mostrou quem é que dava as cartas e desconsiderou todosestes índices, numa manobra para conseguir o apoio incontestável dos trabalhadores no plebiscito. Poucoantes de fechar a conta do parlamentarismo no plebiscito, Goulart apresentou seu Plano Trienal, cujofracasso, como já comentamos no capítulo 2, foi decorrente também do rechaço por parte do CGT e dediversos outros grupos da esquerda – mas também de parte da burguesia, que se opunha às restrições aocrédito também constantes no Plano.674 Sobre a greve geral contra o golpe na Guanabara e em Santos, ver, respectivamente, MATTOS, Novose velhos sindicalismos, op. cit.; TEIXEIRA DA SILVA, A carga e a culpa, op. cit.

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advertência” pontuariam a cena da crise política. É por isso que a greve de julho

continuaria a desempenhar um importante lugar simbólico na construção do discurso

 político da esquerda sob o governo Goulart, situação que se alterou significativamente

após o golpe, no contexto das autocríticas. Vejamos só mais alguns episódios que

reafirmam isso.Pouco antes da realização do referendum, o plano do futuro governo

 presidencialista veio a público. Elaborado por Celso Furtado, ministro especial sem

 pasta, e San Tiago Dantas, o Plano Trienal implicava em medidas de contenção dos

aumentos salariais e restrição ao crédito, seguindo o mote da ortodoxia da austeridade,

enquanto prometia, após “arrumar a casa”, a execução paulatina das reformas

estruturais. Não era um problema de ritmo. O início da recessão econômica em 1962

 penalizava fortemente a renda da classe trabalhadora, e mesmo o significativo aumento

de 75% no salário, com o aumento do custo de vida, logo deteriorou-se. Não foi poracaso que alguns consideraram o Plano de Dantas-Furtado uma “grande traição”, fato

esquecido pela apologética revisionista.675 

Em maio de 1963, frustrado com o conteúdo do Plano Trienal, o CGT planejou

mais uma greve política para pressionar o Congresso a aprovar as reformas de base,

entretanto não conseguiu recursos para efetivá-la. De acordo com Erickson, a recente

conquista do aumento no salário mínimo esvaziou um dos argumentos importantes na

mobilização das bases para as greves gerais de 1962, ao mesmo tempo em que o apoio

na área militar, oriundo de oficiais nacionalistas como Osvino Ferreira Alves, estava

675  Jorge Ferreira, por exemplo, em sua biografia sobre Goulart, alega: “O Plano Trienal, concordamvários analistas, era uma inovação. Pela primeira vez o país enfrentaria um processo inflacionário semapelar, unicamente, para o equilíbrio financeiro, com medidas estritamente monetaristas. Sem deixar derecorrer ao receituário monetarista, Celso Furtado adotou também a estratégia estruturalista parasolucionar os problemas que o país enfrentava. Inicialmente, o plano tinha como meta assegurar uma taxade crescimento da renda nacional, estimada em 7% ao ano, correspondendo a 3,9% de crescimento  percapita. Depois, reduzir, por meio de corte nos créditos e contenção salarial, a espiral inflacionária. Aseguir, renegociar os prazos de pagamento da dívida externa. Além dessas medidas iniciais, também

almejava reduzir as disparidades regionais com o incentivo de atividades que se adequassem a cadaregião, assimilação de novas tecnologias etc. Com a inflação controlada e o crescimento assegurado, areforma agrária daria impulso a um ciclo de crescimento. Ao mesmo tempo, o plano procurava valorizar ocapital humano (sic), com investimentos em educação, saúde pública, pesquisa científica e habitação.”FERREIRA,  João Goulart , op. cit., p.327-328. Não se sabe sob o argumento de qual “especialista” ohistoriador constrói esse raciocínio recheado dos argumentos tradicionais da “necessidade da austeridadefiscal” – tão comum nos tempos de crise – e de conceitos claramente retirados do vocabulário neoliberal,como “capital humano”. Ao contrário dessa mistificação, um especialista como Francisco de Oliveira, umcrítico das limitações da tal abordagem estruturalista, encontra enorme semelhança entre o Plano Trienal eo Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), implementado pelo primeiro governo da ditadura.OLIVEIRA, Crítica à razão dualista, op. cit., p.93.

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desmantelado.676 No mesmo mês, pressionado, Goulart autorizou o aumento do crédito

e deu um aumento de 70% aos funcionários públicos federais. Como lembraria mais

tarde o ex-dirigente do CGT Hércules Correa, pouco antes de morrer, “de maio a julho

de [19]63, houve praticamente um rompimento entre o CGT e o presidente João

Goulart”.677

 Outra ameaça de greve geral política seria anunciada quando da rebelião dos

sargentos em Brasília, pois ao mesmo tempo em que a corte suprema decidia pela

ilegibilidade dos subalternos militares, reafirmava a validade do Decreto 9.070, contra o

qual o CGT movia campanha pela inconstitucionalidade. Goulart intercedeu

 pessoalmente junto ao CGT para evitar a eclosão desta greve. Quando a rebelião dos

sargentos veio a lume, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo buscou mobilizar

outros quartéis no estado, e conclamou a direção do CGT, no Rio de Janeiro, a decretar

uma greve geral em apoio ao levante. Em São Paulo os ativistas sindicais acabariam presos, “quando transportavam folhetos que incitavam sargentos e trabalhadores a um

levante conjunto”.678 Mesmo apoiando publicamente o motim dos subalternos militares,

através de um manifesto assinado em conjunto com outras entidades como a UNE e a

Frente de Mobilização Popular, o CGT não chamou a greve, mais uma vez. Suas

declarações, agora, pareciam ser um blefe.

Quando em outubro deste ano desencadeou-se nova crise governamental, com o

 pedido de estado de sítio de Goulart ao Congresso, o CGT, percebendo que o conteúdo

da medida poderia penalizar os sindicalistas e até políticos de esquerda, recuou de um

apoio inicial e novamente lançou a palavra de ordem da greve geral em defesa das

liberdades. Ficou só na palavra de ordem. Em situações até mais graves que a vivida

entre junho/julho de 1962, a greve geral não se efetivou; no contexto do golpe, muito

mais do que falhar, a greve geral perdeu sua importância como instrumento de pressão

 política, pois onde ocorreu, operou no vazio, posto que o alegado dispositivo militar de

Goulart se denotou um fiasco.

 Não pensaram os líderes do CGT, comunistas e trabalhistas, ser simplesmente

uma greve geral capaz de deter um golpe de natureza militar em 1964, mas que uma

676  “A oposição militar também impediu que esta ameaça se transformasse em greve. O generalnacionalista Osvino Ferreira Alves, a apenas alguns meses da aposentadoria compulsória, viu seu poderdissipar-se, quando, por exemplo, 243 majores e capitães lotados no principal quartel sob sua jurisdiçãodesafiaram sua ordem de não fazer pronunciamentos políticos e condenaram o CGT por participar deassuntos puramente militares.” ERICKSON, Sindicalismo no processo político, op. cit., p.168.677 Depoimento publicado em MELLO BASTOS, A caixa preta do golpe de 1964, op. cit., p.154.678 ERICKSON, Sindicalismo no processo político, op. cit., p.177.

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greve geral fizesse parte de um dispositivo mais geral de apoio a Goulart, que envolvia

necessariamente um dispositivo militar. Como afirmou Kenneth Paul Erickson, o

dispositivo sindical-militar, que teria importância nas manobras feitas por Goulart para

dobrar o Congresso Nacional e conseguir os poderes do presidencialismo, desfez-se

após o plebiscito de janeiro de 1963. Sem a existência do apoio na área militar, a grevegeral foi absolutamente ineficiente como instrumento para deter o golpe em 1964. 

5.3 Esquerda e direita no espelho da greve de 5 de julho

A forma como a greve geral de 5 de julho de 1962 foi percebida pela produção

intelectual de todo o espectro político é o tema desta seção. A ideia é perceber como,

através das avaliações e de sua repercussão ao longo do tempo, a greve de julho foi

tomada como ponto de referência desde a esquerda até a direita, usando para isso tanto

os editoriais da imprensa, quanto a documentação reservada do serviço de inteligência

dos EUA, passando pela produção militante e acadêmica.

Começaremos comentando como parte da imprensa escrita do país caracterizou

o episódio. A partir da leitura dos editoriais dos principais órgãos é possível verificar

 posições que variaram desde uma tentativa de negar a efetividade da paralisação, até

acusações de que se tratava de um dispositivo integrado a um movimento golpista com

vistas a instalação de uma “República sindicalista”.

Esta última opinião, por exemplo, foi veiculada pelo Correio da Manhã , que era

o veículo da imprensa escrita mais importante em circulação no Rio de Janeiro nos anos

sessenta, e dos maiores do Brasil. Já no próprio dia da greve, em editorial, a folha

atacou a greve como um “ato irresponsável” promovido pelo próprio Jango através de

“pelegos”.679 Mais do que “irresponsável”, a greve foi também definida como um ato

criminoso:

“Greve geral, neste país em que o povo se acotovela nas filas semconseguir um pedaço de pão, um grão de arroz, é crime. E aresponsabilidade por esse crime está com os irresponsáveis, com osagitadores. Ou pior: com um astuto que aproveita os males e os

sofrimentos impostos ao povo para atribuir a outrem a culpa.”680 

 No dia seguinte à greve, o Correio da Manhã   elevou o tom e não só acusou

Goulart de ser o responsável pela crise de abastecimento e pela greve, como também de

679 “Irresponsável.” Correio da Manhã , 5 de julho de 1962, p.6.680  Idem, ibidem, p.6.

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 planejar um “golpe” com vistas à instalação de uma “ditadura de pelegos” ou uma

“República sindicalista” no Brasil.

“Começa a haver mais do que simples indícios de que se planeja umgolpe, que se trama a instalação de uma “república sindicalista”. Estãoexasperando o povo, para isso. Estamos assistindo e vivendo, nesses

 primeiros dias de ditadura dos pelegos, num processo caracterizado de“curra política”.”681 

Como “provas” de que a greve estava dentro deste esquema, o jornal carioca mencionou

os telefonemas que personagens do círculo de Goulart teriam feito à CNTI – justamente

 para pedir a não deflagração da greve, como já vimos – e a reunião em Brasília entre os

representantes do CGG e Jango. Além disso, a presença, entre os líderes da greve, de

notórios comunistas, como Hércules Correia e Roberto Morena, é inserida como

exemplificação da natureza das forças políticas que estariam por detrás desta suposta

manobra “golpista”. Além disso, o Correio da Manhã  também recorreu ao expediente

de desqualificar a greve geral como uma atitude feita “contra a população”,

mencionando o caso de uma (pobre) mulher que não havia conseguido chegar ao velório

de um parente em razão da paralisação do sistema de transportes.682 

Em um outro, editorial do dia 7 de julho, intitulado “Ato de acusação”, Goulart é

apontado como “um conspirador convicto, cujas atividades sinistras acabam de

culminar no ato de desenfrear o terrorismo”, um “usurpador”, “embora eleito e

legalmente empossado”. É mais uma vez acusado de ter instigado a greve geral, para

depois se esconder “atrás de conselhos, impunemente desobedecidos, de voltar ao

trabalho”. Por fim, afirma-se, fechando a trama, “mancomunou-se com Luis Carlos

Prestes – com quem, na madrugada de anteontem, confidenciava no Torto – juntando os

 pelegos trabalhistas aos pelegos comunistas, numa frente única para a projetada ditadura

sindical.”683 

Como o movimento havia sido encerrado com o alerta de que o CGG poderia

convocar os trabalhadores novamente à greve geral, o Correio da Manhã  levou a sério a

 possibilidade de uma nova paralisação. Contudo, atribuiu sua não eclosão à atitude dosgovernadores da Guanabara, São Paulo e Minas Gerais,684  e já no dia 17 de julho

681 “Inimigo público.” Correio da Manhã , 6 de julho de 1962, p.6.682  “Humilhação”, Idem, ibidem, p.6.683 “Ato de acusação.” Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 07 de julho de 1962, p.6.684 “Resistência à usurpação.” Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 13 de julho de 1962, p.6.

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asseverou em editorial que o governador Carlos Lacerda havia tomado providências que

tornavam “praticamente impossível a repetição da greve geral”.685 

Outro importante jornal carioca, O Globo, representou o episódio da greve geral

com outro viés. Na manhã daquele 5 de julho exibiu à manchete: “TENTATIVA DE

GREVE GERAL”.686

 Mais do que negar a capacidade de mobilização, buscou dar vozàs lideranças sindicais anticomunistas na condenação ao movimento grevista:

“O presidente da Resistência Democrática dos Trabalhadores Livres[REDTAL], Sr. Floriano da Silveira Maciel, seguiu ontem à tarde paraSão Paulo, a fim de articular com o presidente da Federação dosEmpregados do Comércio de São Paulo, Sr. Antonio Pereira Magaldi, eos dirigentes do Movimento Sindical Democrático [MSD], as

 providências necessárias para se opor ao movimento grevista.”687 

Consultando essa edição, pode-se observar que o periódico carioca queria esvaziar o

movimento paredista, antecipando o final de semana e divulgando o “roteirogastronômico” da Guanabara – afinal, a paralisação foi numa quinta-feira! E quando foi

obrigado a admitir a efetividade da paralisação, na edição do dia seguinte, O Globo 

informou o prejuízo contabilizado em 4 bilhões de cruzeiros.688 

 Na esquerda, como era de se esperar, a postura de O Globo de tentar, no dia da

greve, negar a sua existência, foi objeto de comentários sarcásticos. Segundo o

semanário comunista Novos Rumos, do dia 5 até a semana posterior, o jornal carioca foi

reconstruindo sua própria narrativa sobre o movimento grevista: depois de ter de admitir

a existência da greve em sua edição do dia 6, no editorial do dia 10 voltou a diminuir o

evento: “A greve não chegou a explodir em São Paulo, o maior centro fabril do País.

 Nem quase aqui no Rio e fora dele.”, disse O Globo. Sobre essa “falsificação histórica”

 – de teor similar ao pronunciamento do senador Calazans, visto acima –, assim comenta

a reportagem de Novos Rumos:

“O abuso não podia ser maior. Ainda não transcorreu nem uma semana e‘O Globo’ já tem o cinismo de afirmar que a greve fracassou naGuanabara e demais Estados. Só que o movimento foi grande demais, enão há dólar que chegue para fazer os escribas inimigos do povo

conseguirem enganar a opinião pública, engodar, procurar apagar umagreve política que ficará como um marco na história da classe operáriabrasileira.”689 

685 “Fim da crise”, Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 17 de julho de 1962, p.6.686 O Globo, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, capa. Ver Anexo 2, no final desta tese.687  Idem, ibidem, p.6.688 O Globo, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, capa.689  Novos Rumos, Rio de Janeiro, n.178, 12 a 19 de julho de 1962, p.6, grifo nosso.

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  Na imprensa sindical que esteve na linha de frente do movimento grevista, os

comentários foram no mesmo sentido. No jornal do combativo Sindicato dos Bancários

da Guanabara encontramos o seguinte:

“O jornal do golpe, ‘The Globe’, saiu-se com esta manchete:‘TENTATIVA DE GREVE GERAL’!!! Populares, em torno das bancasde jornais, ridicularizavam a penúria do pasquim de luxo. Tentativa! –gracejavam, olhando as ruas vazias e as portas fechadas. ‘O Globo no Ar’

 – que se diz porta-voz ‘do maior jornal do país’, blasfemou: – ‘eatenção, atenção! Rio. Urgente. Contrariando a decretação da greve geral,funcionam normalmente na Guanabara cafés e bares. Também nãoaderiram ao movimento subversivo os restaurantes cariocas. As linhasinternacionais de aviação (aviões estrangeiros, que nada tinham a vercom a greve) também decolam normalmente.’ Diante do ridículo, o

 jornal ‘The Globe’ ficou encalhado nas bancas; os possíveis compradoresou leitores exclamavam que o pasquim ‘estava por fora’.”690 

Enquanto alguns órgãos optaram por tentar num primeiro momento negar aefetividade da paralisação, outros buscaram caracterizar o movimento como parte de

uma articulação palaciana.

Já o Jornal do Brasil não só anunciou a decretação da greve geral, como também

 produziu uma das mais completas reportagens sobre todo o processo. Em editorial do

 próprio dia 5, no entanto, embora surpreendentemente reconhecesse a justeza dos

motivos que levaram à eclosão do movimento – uma ameaça à legalidade –, considerou

a oportunidade da greve geral equivocada, depois que ficou conhecida a renúncia de

Moura Andrade.

“No momento em que encerrávamos esta edição, os dirigentes do Pactode Unidade e Ação continuavam rejeitando todos os apelos que asautoridades lhes dirigiam para que não deflagrassem a greve geral deadvertência, de 24 horas. Ainda nos parecia possível, no entanto, que elesvoltassem atrás na sua decisão, com um claro gesto de compreensão dosfatos. Não poderemos deixar de registrar essa esperança que tínhamos deque este comentário se tornasse, graças aos acontecimentos, inteiramentesuperado.

É compreensível que os dirigentes sindicais, por um grandemotivo de natureza política, numa hora em que a legalidade parecia

ameaçada, decretassem a greve. É compreensível que eles tenham, agora,dificuldades para suspender essa mesma greve. É compreensível –humanamente compreensível – que eles queiram experimentar o poderque conseguiram. Não é compreensível, porém, que corram um risco aesta altura desnecessário, que façam o País correr mais um risco, que

690  Bancário, n.39, Rio de Janeiro, 11 de julho de 1962, p.3. Biblioteca Aloísio Palhano do Sindicato dosBancários do Rio de Janeiro.

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 ponham em risco, inclusive, a unidade das forças sociais –evidentemente, logicamente heterogêneas – que defendem a legalidade.

À greve falta, neste instante, a motivação necessária. Até à noitede anteontem, ela era uma atitude política, como podia ser uma atitude

 profissional. Hoje, entretanto, ela é um cacoete, a mera caricatura de ummovimento que antes podia ser justificável e que agora está vazio de

sentido e de objetivos. E, como se tudo isso não bastasse, ainda há uma pergunta a fazer aos grevistas: - Afinal, para que tanto esforço, se aindase entregam a provocações?”691 

Com a greve e suas repercussões, especialmente a revolta popular na Baixada

Fluminense, o Jornal do Brasil assumiu um tom mais alarmista. Em editorial publicado

na primeira página do dia 6 de julho, intitulado “Ordem e Desordem” é feita uma crítica

aos debates dos políticos sobre o regime, debate tomado como “estéril” e irresponsável

frente ao “desespero do povo”, que, sem orientação dos líderes, “acéfalo”, “reage” de

forma instintiva, numa alusão aos distúrbios no estado do Rio e no subúrbio daGuanabara. A situação é descrita como “anárquica”, com um verdadeiro “vácuo de

 poder”:

“A cabeça precisa voltar a seu lugar. A autoridade necessita voltar aexercer-se, democrática e cabalmente. Urge que um verdadeiro poderocupe o vácuo que aí está. Abreviem-se as conversas, acabem-se asmanobras. Cessem as explorações da situação. Deixem-se as formas e asfórmulas para depois: trate-se, agora, do conteúdo, do pão, da carne, doleite, da ordem legal e real, da ordem das ruas e da ordem nas mesas.Pois é tão desordem o motim na praça pública como a falta de comida e

de confiança nos lares.O povo quer a ordem, o povo ama a ordem. Só se desespera,como no trágico dia de ontem, quando se sente só. É preciso manter atodo custo, democraticamente, a ordem que ainda existe nas bases, erestaurar a ordem que falta nas cúpulas. O que está em desordem, em

 perigosa e vergonhosa desordem, é Bizâncio, são os dirigentes, são asrelações entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, entre os

 partidos, entre as classes patronais e as trabalhadoras, entre os líderesde classe e as próprias classes. 

Essa é a desordem. A desordem de que se estão aproveitando osaproveitadores de sempre. A desordem que o povo ordeiro repele, de quenão quer ser nem o responsável nem a vítima. A desordem que precisa

acabar, hoje, agora, já.”692 

Em outro editorial desta mesma edição, o  Jornal do Brasil  novamente

caracterizou a greve geral como “inoportuna”, mesmo admitindo de forma explícita que

691 “Greve inútil.” Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, p.6.692 Editorial “Ordem e desordem.” Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, capa.

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setores da UDN já jogavam a cartada do golpismo. Falando mais uma vez da falta de

oportunidade do movimento, conclui o raciocínio com as seguintes palavras:

“Desse modo, a greve política se transformou em aventura política. Nosescalões de comando, havia interesses políticos conflitantes. A resultantedo entrechoque dessas tendências foi uma greve mecânica, que apenas

concorreu para tornar ainda mais grave a situação nacional, quecomprometeu – inclusive – o prestígio do Presidente junto aos sindicatos – isto a partir do momento em que o apelo público feito pelo Sr. JoãoGoulart não foi aceito pelos dirigentes que sentiam medo de parar omovimento, e, também, de continuá-lo. Não há dúvida de que osdirigentes sindicais demonstraram a sua força. Mas também deixaram àmostra as suas fraquezas. E, seguramente, deram provas, com a sua greve

 política, de falta de senso político e de senso de responsabilidade.”693 

Como vimos no capítulo anterior, o  Diário de Notícias  estampou a manchete

“Movimento inédito na História do País: Brasil em Greve!”694 e outros órgãos acabaram

caracterizando o evento do mesmo jeito, como “a maior greve já verificada no Brasil”,

como descreveu a revista semanal Fatos e Fotos, que, contudo, também definiu a

 paralisação como um “equívoco”.695  Aliás, essa revista concluiu seu comentário

afirmando que “a parede demonstrou – pela 2ª vez desde a crise de agosto do ano

 passado – que as greves já funcionam como arma de coerção política”.

Como já havíamos assinalado acima, em meados de 1962, o IPES – sob a

cobertura do IBAD – lançava no Brasil o pequeno livro O Assalto ao Parlamento, no

qual existira uma explicação para uma a suposta “estratégia” utilizada pelos comunistas

 para tomarem o poder na Tchecoslováquia, em 1948.696  Ao publicar esse livro, o

IBAD fez-lhe, além de um texto de apresentação, inúmeras notas de rodapé para

“explicar” aos seus leitores o significado de termos, e, principalmente, afiançar a

existência dos mesmos esquemas descritos no livro em operação no Brasil.697 

Ainda no dia 18 de junho no jornal O Globo, Glycon de Paiva, eminência parda

do complexo IPES/IBAD, já havia publicado o artigo “A grande conspiração”, no qual

693 Editorial “Falta de senso”, Idem, ibidem, p.6.694  Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962.695 Fatos e Fotos, n.76, Rio de Janeiro, 14 de julho de 1962, p.16.696 KOZAK, O assalto ao parlamento, op. cit.697 Lançado no ocidente em 1961, e traduzido em inúmeras línguas, o livro de Kozak é até hoje uma das

 principais peças de histéricas campanhas anti-comunistas, como a que vem sendo feita atualmente contrao presidente dos EUA, Barak Obama, acusado de ser “comunista” por causa de sua tímida proposta dereforma do sistema de saúde. Em outro trabalho importante, René Dreifuss observou que o livro de Kozakvoltaria a ser impresso no Brasil nos anos 1980, em meio aos trabalhos da Assembleia Constituinte,distribuído nos meios militares. DREIFUSS, René Armand. O jogo da direita. Petrópolis: Vozes, 1989,

 p.120. Para o trabalho de divulgação do livro em suas páginas, O Globo teria recebido 714.000 cruzeirosdo IPES. DREIFUSS, 1964, a conquista do Estado, op. cit., p.653.

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afirmava estar em curso no Brasil um sinistro plano para a “tomada do poder” pelos

comunistas, plano este que estaria seguindo os passos da mesma estratégia utilizada na

Tchecoslováquia.698  O artigo “explicaria” uma estratégia de três momentos onde se

realizariam “pressões na cúpula” combinados com outros três momentos simultâneos de

“pressões na base”. Realizando suas campanhas contra o governo Jango, é do interiordesta mitologia política que o IBAD faria sua própria leitura sobre os significados da

crise do gabinete e da greve geral de julho de 1962.

 Na edição de agosto de sua revista mensal  Ação Democrática, os ibadianos

rechearam as reportagens de considerações em torno à greve, enquadrando-a como parte

do alegado “dispositivo comunista” para a tomada do poder. É reproduzido o

mencionado artigo de Glycon de Paiva, onde é inserida ao final a seguinte nota:

“A 18 de junho, quando o Sr. Glycon Paiva escreveu este artigo, ainda

não tinha ocorrido a crise política pré-fabricada pela cúpula, a fim defazer uma experiência com o funcionamento das pressões de base. Osepisódios que se desenrolaram antes da formação do Gabinete do Sr.Brochado da Rocha mostraram à sociedade que o esquema de Kozak está

 plenamente articulado no Brasil. O ponto máximo dessa articulação severificou quando da deflagração da chamada greve geral ordenada pelaConfederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, na mais estreitaarticulação com o Governo que forneceu apoio aos comunistas do“comando de greve”, apoio apregoado pelos próprios “comandantes”,inclusive transporte no avião presidencial.Era o trabalho de cúpula, conjugado com o trabalho de base.”699 

 Nessa versão, a greve nacional de julho teria sido um movimento articulado a uma

“crise artificial”, provocada pelo próprio Goulart quando das indicações de San Tiago

Dantas e a renúncia de Moura Andrade. Em outra nota à reprodução deste artigo,

quando seu autor fala do “estado de absoluta ausência de liderança governamental”

característico de governos de “união nacional” – com era de fato o primeiro gabinete

 parlamentarista – onde o povo seria levado a “aceitar qualquer forma de autoridade”, é

mencionado o editorial do Jornal do Brasil, do dia 6 de julho, já discutido logo acima.

O tom das diversas reportagens sobre os embates entre Goulart e Congresso, em junho/julho daquele ano, caracteriza a situação como parte de uma “crise pré-

fabricada”, que teve o intuito de promover a “subversão” e a escalada de homens

698 PAIVA, Glycon de. “A grande conspiração.” O Globo, Rio de Janeiro, 18 de junho de 1962, p.4.699 PAIVA, G. de. “A grande conspiração.” Ação Democrática: publicação mensal do Instituto Brasileirode Ação Democrática, Ano IV, n.39, agosto de 1962, p.4-5, negritos no original. Arquivo Nacional (RJ).Fundo Paulo Assis Ribeiro, Caixa 133.

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ligados ao governador Brizola aos altos postos do governo, como era o caso do próprio

Brochado da Rocha. Em outro texto desta mesma edição, de título “Breve análise da

crise pré-fabricada”,700 é defendida a ideia de que a greve não teria sido totalmente bem

sucedida:

“Líderes sindicais, colocados em posições-chave pela influência da presidência da República, promoveram a greve geral, que só não paralisou o país, porque houve resistência por parte de outros líderesque ainda não são escravos da União Soviética.”701 

 Nesse mesmo diapasão, a greve é tomada em outra reportagem como um

“movimento grevista-revolucionário” através do qual o PCB desejava garantir que o

Ministério do Trabalho fosse ocupado por um “dirigente sindical comunista”.702  Teria

sido também um movimento com “cobertura governamental”, sendo a posição contrária

de Goulart uma prova de sua “incompetência”:“Mesmo admitindo-se que o Presidente da República não se interessasse

 pelo movimento naquela ocasião, fica claro que a infiltração comunista por ele propiciada em todos os setores da administração pública –especialmente no Palácio da Alvorada, onde pontifica o sr. Raul Ryff,comunista confesso, militante, participante ativo e processado daintentona comunista de 1935 – fica claro que o dispositivo comunista jáse sente forte para desatender mesmo as ordens de interesse eventual doPresidente.”703 

Ao mesmo tempo, o artigo busca vincular o desenrolar da greve a uma coordenação em

Brasília, não deixando de buscar envolver o próprio Goulart neste esquema:

“Mas uma coisa é preciso que não fique no esquecimento: no dia 5 de julho, voltando de Brasília, onde se avistaram com o Presidente, osdirigentes comunistas transmitiram aos sindicatos a ordem decontinuação da greve. Ordem oriunda de Brasília. Mas, poucas horasdepois, eram os sindicatos grevistas informados de que a parede seriasuspensa. E isso, porque sentiram os donos da fracassada greve geral quemesmo na Guanabara a posição grevista não aguentaria mais 24 horas.

 Na tarde do dia 5, em plena ordem de greve, táxis em abundância, elotações e ônibus, em menor número, começavam a trafegar nas ruascariocas. No dia imediato, a greve seria furada espetacularmente pelo

setor de transportes urbanos.”704 

700 “Breve análise da crise pré-fabricada.” Ação Democrática, agosto de 1962, op. cit., p.10-12 e 15.701  Idem, ibidem, p.10, grifos nossos.702 “Como agem os comunistas na pressão de base.” Ação Democrática, agosto de 1962, op. cit., p.16.703  Idem, ibidem.704  Idem, ibidem.

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Ou seja, é como se a decisão de continuar a greve até o fim do dia 5 tivesse sido tomada

 por determinação do próprio Presidente da República, ao mesmo tempo em que o

movimento é apresentado como sem efetividade, “artificial” e feito contra a opinião dos

trabalhadores que, se não cumpriram suas jornadas principalmente na cidade do Rio de

Janeiro, “é porque não havia meios de transporte”.705

 Por sua vez, no final daquele ano de 1962, o IPES, através do seu programa de

entrevistas na TV Cultura, “Peço a Palavra”, do apresentador Heitor Augusto,

entrevistou o deputado estadual Camilo Ashcar (UDN-SP) – apresentado como

 professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie

de São Paulo. O tema do dia era o seguinte: “As greves deixaram de ser uma exceção

 para tornarem-se uma perigosa constante no quadro social brasileiro.”706 O propósito do

 programa era, obviamente, desqualificar as greves políticas. O entrevistado, apelando

 para todas as restrições legais ao direito de greve, buscou pintar um cenário de agitaçãoconspiratória, bem ao gosto da campanha de desestabilização do governo promovida

 pelo IPES.

Respondendo a uma pergunta sobre as chamadas “greves políticas”, o deputado

udenista referiu-se à greve de julho nos seguintes termos: “Há pouco tempo, houve

ameaça de greve  em todo o País, porque o Congresso Nacional não quis aprovar a

nomeação de um primeiro Ministro.”707 E após longo comentário para afirmar que as

greves eram para favorecer certos líderes políticos, e que “pelegos sindicais” passaram a

ter “poder de comando na vida nacional”, Ashcar conclui: “Estas greves não são

legítimas, não podem ser aceitas pela consciência democrática e constituem um perigo

nacional porque deturpam o sentido normal da greve.”

As greves políticas de 1962 voltariam a ocupar as paginas de Ação Democrática 

em março de 1963, em artigo de Fernando Mendes Filho, cujo sugestivo título é “A

greve como instrumento de assalto ao poder”.708  Sempre lembradas pelas constantes

“ameaças de greve geral de advertência” do CGT, o autor buscaria apresentá-las como

 parte de um dispositivo formado por Goulart e o movimento sindical, cuja mediação era

705 A matéria ainda apresenta uma foto na qual aparecem populares em cima de um caminhão, enquantoem baixo aparecem personagens de terno e gravata muito parecidos com agentes da polícia política.Existe a legenda: “Onde havia um caminhão, havia gente que queria trabalhar.” Idem, ibidem.706  Notas taquigráficas do programa Peço a Palavra  da TV Cultura de São Paulo, entrevistando odeputado Camilo Ashcar. Arquivo Nacional (RJ), Fundo Paulo Assis Ribeiro, Caixa 51, Pasta 3, p.1.707  Idem, ibidem, p.3, grifo meu.708  FILHO, Fernando Mendes. “A greve como instrumento de assalto ao poder.”  Ação Democrática:

 publicação mensal do Instituto Brasileiro de Ação Democrática. Ano IV, n.46, Rio de Janeiro, março de1963, p.8. Fundo Paulo Assis Ribeiro, Caixa 133.

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feita pelo assessor sindical da Presidência da República, Gilberto Crockat de Sá.709 De

acordo com o artigo, figurando como parte do “esquema-grevista” estava o diretor do

ISEB, Álvaro Vieira Pinto, também chamado de “professor marxista” dos “subversivos

da UNE”. É que em seu pequeno livro Por que os ricos não fazem greve?, o filósofo

isebiano teria defendido que o objetivo maior dos trabalhadores que fazem greve era “aconquista do poder político”, de modo a poder “resolver os problemas aparentemente

apenas de ordem salarial”. Estaria aí, segundo Mendes Filho, a prova do esquema de

“sovietização do Brasil”, do qual as greves políticas constituiriam instrumento.

Com todo aquele alarde que marca esse tipo de produção anti-comunista, o tom

do artigo é de “algo precisava ser feito”. Ele clama por uma atitude das Forças

Armadas, e menciona como “uma luz no fim do túnel” a atitude assumida pelo general

Peri Constant Bevilaqua, comandante do II Exército que, no momento em que era

 promovido a general-de-exército em março de 1963, desferiu ataques às organizaçõesinter-sindicais (CGT, Fórum Sindical de Santos e PUA), acusando-as de espúrias e

orientando seus comandados a não estabelecer qualquer tipo de colaboração com os

mesmos.710 

“Contra essa bolchevização intensiva começam (um tanto tardiamente) atomar posição autoridades militares ainda não contaminadas pelocomunismo apátrida. E foi exatamente em razão dessa crescente ondagrevista de fins puramente subversivos que o General Peri Bevilaqua,Comandante do II Exército, em nota aos seus comandados, alertou-os nosentido de que ‘não há motivos para escrúpulos de consciência ao tratarcom grevistas e principalmente com os seus incitadores, comocriminosos que são, em flagrante delito’. Mesmo porque, acrescentou,‘isto é ditadura exercida por uma classe sobre as demais e o bolchevismonada mais é do que a ditadura exercida por um grupo em nome do

 proletariado’.”711 

Para o jornal O Estado de São Paulo, cujo proprietário Júlio de Mesquita Filho

era um dos principais animadores da seção paulista do IPES, a greve de julho fora parte

de um “golpe” contra o parlamentarismo “e a Constituição”. Em editorial publicado já

no dia seguinte à greve, o jornal paulistano acusou uma “minoria” de “comunistas decostas quentes” de estarem por trás do dispositivo grevista que, não obstante só atingira

os serviços essenciais da cidade de Santos, do Rio de Janeiro, Salvador e Recife,

709 Personagem cujo descrédito no meio da esquerda sindical brasileira era enorme, como já comentamosno capítulo anterior.710 LEMOS, “Introdução” à Justiça Fardada, op. cit., p.18.711 FILHO, “A greve como instrumento de assalto ao poder”, op. cit.

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enquanto teria reinado “perfeita calma” no restante dos estados de São Paulo, Paraná,

Santa Catarina e Rio Grande do Sul.712 Ademais, no caso do Rio de Janeiro, o Estadão 

afirma ter a população manifestado “repulsa à manobra subversiva da esquerda

revolucionária”, segundo informações que o periódico diz serem seguras.713 

Tudo não passaria de uma “técnica”, que consistiria em primeiro lugar em criarum clima na opinião pública de que haveria um “perigo de golpe contra Goulart”, de

modo a propiciar apoio à “agitação” e o “assalto ao poder”. À maneira do coronel Juan

Domingos Perón e de seu “mestre e protetor”, Getúlio Vargas, Goulart lançava mão dos

“pelegos sindicais” para apoiar seu projeto de usurpação do poder. Interessante é que

neste editorial busca-se exemplificar a natureza do “golpe” com o movimento ocorrido

em 11 de novembro de 1955, conhecido como “Novembrada”, quando o general

nacionalista Lott efetuou um contra-golpe que garantiu a posse de Juscelino Kubitschek

na Presidência da República em princípios de 1956. Tal como toda a tradição dogolpismo udenista, O Estado de São Paulo  acusou os legalistas de “golpistas”. Vale

transcrever todo o trecho:

“A técnica é elementar e grosseira, mas sem dúvida eficiente: a preocupação preliminar das articulações “golpistas” no Brasil consisteem convencer a opinião pública, avessa a soluções violentas e ilegais

 para as questões políticas, de que os adversários preparam um atentadocontra a normalidade do regime. Prescindiríamos desta observação paranos convencermos de que o atual presidente da República vemalimentando, desde a sua posse no Palácio da Alvorada, a ideia de um

golpe que o liberte das restrições legais ao abuso do Poder. O sr. JoãoGoulart formou, de fato, a sua mentalidade política à sombra da ditadurae temos tido demonstrações inumeráveis de que seus pendores para atirania superam os do seu próprio mestre e protetor, por se teremaproximado dos de Perón, com quem aprendeu a utilizar, em benefício deseus planos subversivos, o confusionismo estabelecido entre as massastrabalhadoras por seus prepostos, os “pelegos”, nas organizaçõessindicais. A sua própria persistência em manter o predomínio que desdeditadura Vargas vem exercendo sobre considerável parcela dos sindicatosoperários é prova de que faz parte dos seus planos sustentar-se na políticaindependentemente dos partidos, que representam, pela Constituição, a

 base do regime. Mas se não dispuséssemos dessas indicações de suas

irreversíveis tendências, teríamos os mais fortes indícios de seus propositores, no cuidado com que vinha tentando convencer a Nação deque se urdia, nos meios adversos aos seus interesses políticos, um golpecontra as instituições.

712 “Golpe contra a Constituição.” (Editorial). O Estado de São Paulo, 6 de julho de 1962, p.3.713  “No próprio Rio de Janeiro, segundo estamos seguramente informados, toda a população opôsenérgica repulsa à manobra subversiva da esquerda revolucionária. Na ex-capital da República sentia-seontem, por toda a parte, a mais formal reprovação à prepotência com que essa minoria entrara em conflitocom a cidade.” Idem, ibidem, grifos nossos.

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  Ora, esse golpe está sendo tentado, ou está sendo desferido – éimpossível definir precisamente a fase em que se encontra neste instantede extrema confusão. Mas não resultou da trama dos adversários do sr.João Goulart, pois é o próprio sr. presidente da República que à sua testase encontra. A opinião pública brasileira dispõe de todos os elementos

 para julgar com segurança a situação em que nos encontramos e para

apontar e julgar os culpados por esta grave crise institucional que nosarrasta a perigos ainda mais extremos, de verdadeira convulsão política esocial. Os acontecimentos aí estão a provar que os conspiradores são

 precisamente os que se esmeravam em prevenir a Nação contra astendências “golpistas” dos seus contrários. Foi graças ao mesmo processode confusão da opinião pública que de outras feitas as correntesditatoriais lançaram o País em outro golpe de Estado. A quartelada de 11de novembro, por exemplo, foi precedida da mesma preparação

 psicológica, tendente a confundir o entendimento popular e a fazeracreditar a Nação de que os legalistas eram os “golpistas” e os“golpistas” os legalistas.”714 

O jornal ainda lamenta o fato de que boa parte da opinião pública “se deixou

engodar pela trama”, manobra que possuiria contorno até mais “perigoso” que o da

 Novembrada, pois não só o regime teria sido ameaçado, quanto para isso Goulart teria

optado por manobrar com forças “dificilmente controláveis, mobilizadas à margem da

 política para a efetivação da aventura”, referindo-se, claramente, à greve geral de 5 de

 julho. Assim, de acordo com o jornal, o “latifundiário” presidente da República estaria

fazendo o “jogo dos comunistas” para que estes o apoiassem em seu suposto “propósito

golpista”.715 

***

714  Idem, ibidem, grifo nosso.715 “Não houve originalidade, portanto, nas últimas urdiduras golpistas: seus autores trilharam as mesmasveredas do passado, na convicção de que elas os conduziriam ao mesmo venturoso fim. É natural que aindiscriminada repetição dos mesmos processos não surtisse desta vez resultados tão completos como osdas tentativas anteriores, mas é indisfarçável que parte de opinião pública se deixou engodar pela trama. Eé lamentável que isto se dê, porquanto desta vez os propósitos “golpistas” se tornaram duplamente

 perigosos, primeiro pelo atentado, em si, projetado contra o regime e, depois, pelas  forças, dif icilmente

controláveis, mobilizadas à margem da política para a efetivação da aventura . Este perigo se vemtornando há muito evidente com a ascendência das correntes comunistas sobre parte da cúpulagovernamental. Já muitas vezes acentuamos que o sr. João Goulart, seja pelo colorido do seu extremismo,seja pela natureza dos interesses de quem é um dos maiores latifundiários do País, não se pode confundircom o matiz escarlate dos comunistas. Mas é inegável que vem fazendo o jogo dos moscovitas , seja porserem comuns às extremas da direita e da esquerda as conveniências na perturbação da ordem e nocombate à democracia, seja por supor que os vermelhos estão desta vez dispostos a fazer o seu jogo. Comesta esperança, preparou, com o auxílio indisfarçável do comunistas, não só uma greve geral de sentido

 político destinada a paralisar o País no momento propício à deflagração do golpe, mas ainda toda umasérie de perturbações destinadas a serem confundidas com manifestações de insatisfação popular pelaordem legal vigente no Brasil.” Idem, ibidem, grifos nossos.

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Do ponto de vista ideológico, as forças da esquerda nacionalista também

reforçariam suas crenças a partir dos êxitos do movimento paredista de julho de 1962,

(percepção que seria alterada após o golpe).

O jornal do PCB, Novos Rumos, em uma de suas reportagens sobre a greve de 5

de julho, lembrou da “coincidência feliz” do movimento ter se realizado no mesmo diaem que “se comemorava o quadragésimo aniversário do primeiro 5 de julho”, ou seja,

do levante tenentista de 1922, buscando, a partir da autoridade de possuir como seu

secretário-geral o legendário Luís Carlos Prestes, ligar as lutas dos trabalhadores às

tradições reivindicadas pelo “movimento nacionalista”.716  Outra coincidência, não

mencionada na reportagem de  Novos Rumos  foi a da presença de Prestes em Brasília,

naquele mesmo 5 de julho de 1962, quando levou toda a documentação pertinente para

conseguir a legalização do PCB junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE),

documentação essa que incluía mais de cinquenta mil assinaturas de um pedido queacabou por ser negado.

Por sua vez, o jornal da Frente Parlamentar Nacionalista também se pronunciaria

alguns dias depois da greve em sentido próximo, mencionando a paralisação como uma

“data histórica na luta da classe operária por sua emancipação”.717  Embora sua

 participação no movimento não pareça ser tão efetiva quanto a da imprensa comunista,

 pelo menos desde sua edição do dia 21 de junho O Semanário já havia mencionado as

resoluções tomadas em uma das muitas reuniões de articulação política promovida pela

esquerda sindical, onde é dita a decisão tomada pelos trabalhadores de convocar uma

greve geral, “caso o futuro Primeiro Ministro não seja um homem identificado com os

anseios da classe operária e do povo.”718  Em edição do dia 5 de julho, embora O

Semanário  não tenha feito nenhuma menção à greve desencadeada naquele dia –

 provavelmente pela edição semanal já estar pronta quando os acontecimentos

desenrolaram-se –, é divulgada a posição das lideranças sindicais de convocar a

716  Novos Rumos, Rio de Janeiro, 12 de julho de 1962, p.2. Prestes, na verdade, é fruto do segundo levantetenentista (1924). Todavia, a suposta ligação ente tenentismo e movimento nacionalista, estabelecida pelaimprensa comunista, não deve ser tomada sem reservas como historicamente pertinente. Entretanto, eraassim que os comunistas e muitos outros grupos da esquerda nacionalista compreendiam a relação entreos processos.717 O Semanário, Rio de Janeiro, 12 de julho de 1962, n.289, p.7.718 “Trabalhadores e deputados da FPN exigem um gabinete nacionalista.” O Semanário, Rio de Janeiro,21 de junho de 1962, p.9.

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 paralisação de protesto caso não se formasse um “gabinete democrático e

nacionalista”.719 As razões fundamentais da greve estavam esclarecidas.

Voltando aos comunistas, ao final daquele ano 1962, quando realizou a sua

Quarta Conferência Nacional, o PCB aprovou uma resolução com uma avaliação sobre

a situação política do Brasil. A resolução apontava o agravamento das contradições nointerior do bloco governamental, sendo destacado o papel da “burguesia ligada aos

interesses nacionais”, cujo maior representante seria o próprio João Goulart, círculos

dirigentes do PTB e setores de outros partidos favoráveis às reformas de base e

interessados no “desenvolvimento econômico capitalista” e por isso mesmo interessados

em medidas tais como a regulamentação da remessas de lucros para o exterior e uma

reforma agrária limitada. No que nos interessa imediatamente, nota-se o destaque do

documento à “unidade e organização das lutas das massas populares”, a exemplo do que

teria ocorrido nas greves gerais de julho e setembro, onde teria ficado constatado que “omovimento operário exerce uma influência dia a dia mais importante na vida política do

 país e no conjunto de forças que se opõem ao imperialismo e ao latifúndio”.720 Sendo o

PCB a mais influente organização política a atuar no seio do movimento operário,

evidencia-se, no tocante a esta participação do movimento no processo político, a sua

importância como uma das forças sociais na qual Goulart teria se apoiado para

“fortalecer suas posições tanto no Poder Executivo como nas Forças Armadas”.721 

Em alguns trabalhos escritos por militantes de esquerda no período anterior ao

golpe, e que tratavam de analisar o contexto de emergência das lutas sociais, a greve de

 julho seria bastante destacada. Isso pode ser visto no livro O movimento sindical no

 Brasil – já bastante mencionado nesta tese –, escrito pelo responsável pela área sindical

em Novos Rumos, Jover Telles, publicado ainda em 1962 pela editora Vitória, ligada ao

PCB, na oportunidade da criação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). O livro

de Telles é também uma compilação de suas reportagens em Novos Rumos desde o final

dos anos cinquenta. Na obra, que termina com o capítulo “O movimento operário na

 primeira metade de 1962”, o autor dedica boa parte ao relato do processo de montagem

do dispositivo grevista e à própria greve geral.

719 “Trabalhadores exigem governo democrático e nacionalista.” O Semanário, Rio de Janeiro, 5 de julhode 1962, p.6.720   Resolução política dos comunistas  (dezembro de 1962). Cadernos Novos Rumos. Rio deJaneiro/Guanabara: Editoria Aliança do Brasil Ltda, 1962, p.4-5. Fundo Roberto Morena, Arquivo deMemória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ), Rio de Janeiro, IFCS-UFRJ.721  Idem, ibidem, p.8.

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Constituindo uma importante fonte para o estudo deste processo (Telles

reproduz os mais importantes manifestos redigidos pelo Comando Nacional de Greve),

o autor entende que a crise política era atravessada pelo “aguçamento da luta de classes”

cujo auge foi a realização, em suas palavras, da “maior greve política da história do

movimento operário no Brasil”.722

 De acordo com o autor, a crise política vivida emmeados de 1962 era nada mais do que o acirramento do choque entre as mesmas forças

 políticas que haviam se enfrentado em 24 de agosto de 1954, 11 de novembro de 1955 e

na crise de agosto/setembro de 1961.723 Entretanto, diferentemente destas mencionadas

crises, Telles vê como particularidade do processo político em junho/julho de 1962 a

maior participação da massa dos trabalhadores na luta política, destacando-se a atuação

“mais independente” da classe operária.

Tal como figura na documentação oriunda dos sindicatos sob influência da

esquerda sindical, os pronunciamentos do general Osvino são tomados como um dosimpulsionadores da movimentação dos sindicalistas nestes meses. E a ideia de que o

movimento de greve foi feito em razão de impedir o triunfo de um golpe de Estado –

que poderia ter aprofundado o esvaziamento dos poderes de Goulart – constitui o cerne

de sua explicação, assim como pudemos observar em toda a produção oriunda da

esquerda nacionalista. Entretanto, mesmo nesta são explícitas as importantes diferenças

havidas no interior das forças que apoiavam o governo, pois, por exemplo, a articulação

da candidatura de Auro Moura Andrade é atribuída a um “cambalacho” resultante de

um acordo entre Jango, representantes oficiais da UDN e do PSD, além do senador

Juscelino Kubitschek e o governador gaúcho Leonel Brizola.724  Assim, a eleição de

Moura Andrade pela Câmara é tomada como “verdadeiro golpe branco”, posto que,

como já comentamos, além da composição do Conselho de Ministros sugerida pelo

senador paulista buscar eliminar os traços da política externa independente, na área

militar ameaçou-se a restauração completa do dispositivo golpista.

Telles apresenta ainda dados sobre a amplitude da greve, dando conta de sua

efetividade nas seguintes cidades: Fortaleza, Belém, Recife, Salvador, Campina Grande,

Vitória, Santos, Cubatão, Belo Horizonte (cidade industrial), Paranaguá, Itajaí e

722 TELLES, O movimento sindical no Brasil, op. cit., p.145.723 É realmente sintomático do processo de reconstrução da memória dos comunistas a inclusão da crisede agosto de 1954 neste rol, pois, como se sabe, naquela altura, o PCB encontrava-se também na oposiçãoao governo Vargas, embora não estivesse, tal como a direita golpista (UDN, oficiais da CruzadaDemocrática etc.), empreendendo ações para consecução de um golpe de Estado.724  Idem, ibidem, p.159-160. Essa crítica de um militante comunista a elementos importantes do bloconacional-reformista como Goulart e Brizola denota-se como forma de demonstrar a justeza da linhaseguida pelo PCB face às outras forças e lideranças políticas, sempre tachadas de inconsequentes.

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Crisciúma.725 Além de destacar o sucesso do movimento também no estado do Rio de

Janeiro e na Guanabara, anota o fato da greve no Rio Grande do Sul ter sido feita contra

o pedido do governador Brizola. Sobre a greve na Guanabara, sem dúvida uma das mais

fortes e emblemáticas – já que se enfrentou com a repressão e triunfou – Telles nos

 bridou com uma bela (embora impressionista) imagem:“A partir da meia-noite do dia 4, conforme ordenara o Comando

 Nacional, as ruas ficaram desertas de ônibus e lotações, os trilhostornaram-se inúteis, o aeroporto vazio e as fábricas em silêncio. E umagrande alegria iluminava os lares humildes dos operários. Tinhamconseguido paralisar toda a atividade do Estado numa demonstração deque a classe operária fortalece sua unidade e afirma na posição devanguardeira das lutas de nosso povo contra os imperialistas elatifundiários.”726 

 Na apresentação de  O movimento sindical no Brasil, escrita por Astrojildo

Pereira,727 o autor destaca a politização havida nos meios operários brasileiros naquele

contexto, sendo a própria greve de julho tomada como “uma significativa demonstração

deste fato”. De acordo com o legendário intelectual comunista:

“Foi a primeira grande greve política de âmbito nacional já deflagrada noBrasil, assinalando a presença na arena política do País de uma  forçaindependente, cujo poder de decisão tem de ser levado em conta – aclasse operária organizada e consciente de seus objetivos. Ora, seu êxitose deve não apenas à capacidade organizativa e combativa dos sindicatosoperários, mas sobretudo ao grau de amadurecimento político já atingido

 pelos trabalhadores brasileiros.”728 

Como continua Astrogildo Pereira, intervindo no processo político, a classe

operária dava uma lição aos porta-vozes dos “círculos reacionários” que advogavam a

ideia de que os sindicatos não deveria “imiscuir-se”729 no processo político.

725  Como já comentamos no capítulo anterior, nossa pesquisa concluiu que em algumas localidadesarroladas por Telles, a greve, embora tenha ocorrido, foi bastante fraca, como em Belém e BeloHorizonte.726  Idem, ibidem, p.165.727 Anarquista em sua juventude, tendo participado da tentativa de insurreição de 1918 no Rio de Janeiro,Astrojildo Pereira foi uma das principais lideranças do PCB nos primeiros anos de sua existência. Amudança para o marxismo lhe valeria duras críticas por parte de anarquistas como José Oiticica, antigocamarada que passou a atacá-lo na imprensa operária como um verdadeiro “traidor”. Em 1930 aorientação obreirista  advinda da Internacional Comunista deslocou Astrojildo Pereira da direção do

 partido, levando-o ao afastamento. Voltaria às hostes pecebistas em 1945, quando passou a colaborar comsuas revistas (Problemas da Paz e do Socialismo  e Estudos Sociais) e imprensa ( Imprensa Popular e

 Novos Rumos). Após o golpe de 1964, já com a saúde precária, foi preso em outubro daquele ano, ficandoencarcerado por três meses. Morreu no início de 1965.728 PEREIRA, Astrojildo. “Prefácio” a TELLES, O movimento sindical, op. cit., p.XI, grifos nossos.729 As aspas, irônicas, são de Pereira.

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“A propósito da greve geral de 5 de julho, cabe aqui um comentário acertas opiniões que sobre ela emitiram conhecidos porta-vozes doscírculos reacionários. Segundo tais opiniões, cheias de ódio e também demedo, não compete aos sindicatos operários ‘imiscuir-se’ nas questões

 políticas que agitam o País. Isso equivale a afirmar-se que a política é um privilégio das classes dominantes, matéria privativa das cúpulas

 partidárias e dos grupos econômicos, da chamada grande imprensa e daalta hierarquia eclesiástica, dos espertos cavalheiros da indústriaanticomunista e dos vigaristas do terrorismo ideológico. Para essa gente,os sindicatos, os operários, os trabalhadores, os camponeses nada têm aver com a política. Os estudantes também não. A função do sindicato écolaborar com os patrões, e do operário e do empregado é trabalhar, a docamponês é cavar a terra do latifundiário. A do estudante é cavar canudode doutor para vir a servir à ordem reinante, ocidental e cristã,supervisionada pelo bom homem da Casa Branca. Tal o pensamentocorrente nos círculos reacionários.”730 

Ou seja, de acordo com essas representações produzidas pelos dirigentescomunistas, a ação da classe operária aquela altura já se mostrava como independente, a

 própria greve geral é apontada como prova disto, embora tenha sido realizada em meio

ao choque entre os grupos dominantes (e em favor de um deles).

Outro trabalho importante a tratar da greve de julho é Como são feitas as greves

no Brasil?, de Jorge Miglioli.731 Como parte de uma coleção de panfletos escritos pela

intelectualidade nacionalista do ISEB, intitulada Cadernos do Povo Brasileiro, o livreto

de Miglioli, concluído em dezembro de 1962 e publicado em 1963, deu lugar destacado

à primeira greve geral da classe trabalhadora brasileira.Logo no início do livro o autor esclarece que seu propósito não era o de tecer

maiores considerações teóricas sobre as greves, remetendo o leitor para outro título da

coleção, o já mencionado Por que os ricos não fazem greve? , do filósofo Álvaro Vieira

Pinto, então presidente do ISEB.732 Em Como são feitas as greves no Brasil?, Miglioli

 parte de algumas considerações de ordem sociológica, segunda a qual as greves são

tomadas como um fato social das sociedades industriais capitalistas, como uma forma

típica em que operam os conflitos dentro das relações de trabalho.

Traçando um painel da ocorrência de greves nos países pioneiros daindustrialização na Europa, adentra a história do Brasil na greve dos tipógrafos de 1858

no Rio de Janeiro – durante muito tempo considerada a primeira de nossa história –,

730  Idem, ibidem, p.XI-XII.731  MIGLIOLI, Jorge. Como são feitas as greves no Brasil?  Coleção Cadernos do Povo Brasileiro.Vol.13. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.732 PINTO, Álvaro Vieira. Por que os ricos não fazem greve? Coleção Cadernos do Povo Brasileiro.Vol.4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.

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 passando por julho de 1917 em São Paulo – talvez a mais lembrada – chega-se ao ciclo

ascendente de greves que compreendeu o período entre o final dos anos 1950 até o ano

de 1962, foco dos exemplos históricos arrolados ao longo do livro. São as greves do

início dos anos sessenta as que merecem maior destaque nesse painel, sendo frequentes

as menções às greves gerais nacionais de julho e setembro de 1962.O destaque à greve de julho é feito em função do ciclo de mobilização e da

capacidade de organização do operariado brasileiro, segundo a avaliação presente no

texto. Assim, conclui-se que “enquanto as greves de agosto de 1961 foram apenas

reações espontâneas contra uma situação confusa, de início, e contra uma clara tentativa

de golpe político-militar, depois, as greves gerais de julho e setembro de 1962 foram

deflagradas com objetivos precisos, organizadamente”.733  Enfatizando o caráter

histórico desta parede, o autor conjura – como muitos outros – a mística do 5 de julho,

enfatizando também o caráter pioneiro da mesma:“A Classe Trabalhadora alcançou grandiosa vitória ao realizar pela

 primeira vez na história do movimento sindical brasileiro, uma grevegeral em todo o território nacional. O dia 5 de julho, data da afirmaçãoda luta libertadora, já agora se tornará, também, uma data histórica do

 proletariado brasileiro, que reúne em torno de sua ação as forças progressistas de nosso povo.”734 

Ao final do livro, Jorge Miglioli discorre sobre as condições que tornaram

 possível a realização das greves políticas de julho e setembro de 1962. Elenca primeiro

as dificuldades em executá-las. Na primeira: a extensão territorial do país, a dispersão

dos centros industriais, e por sua vez a inexistência de grandes concentrações operárias,

 prejudicando a comunicação; também o “domínio do espírito sindicalista (apolítico)

entre certos grupos de trabalhadores, como aconteceu em São Paulo, principalmente por

ocasião da primeira greve geral”;735 perseguição policial em certos estados. Em seguida

fala das condições favoráveis, que preponderaram e permitiram o êxito do movimento

que compreendem os seguintes itens: a) situação econômica, política e social do país; b)

inflação desenfreada; c) aumento do pauperismo e intensificação da carestia de vida; d)

em vários estados, falta de gêneros alimentícios, como feijão, arroz e açúcar; e) crises

governamentais desde a renúncia de Jânio; f) conflito Executivo x Legislativo; g)

radicalização dos Partidos; h) conjunto de reivindicações realistas ao movimento

733 MIGLIOLI, Como são feitas as greves..., op. cit., p.116-117.734  Idem, ibidem, p.120.735  Idem, ibidem, p.124.

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operário; i) reivindicações que também interessavam a elementos do Governo e das

Forças Armadas, o que contribuiu para a não-intervenção federal e não repressão por

 parte destes setores; j) as próprias crises políticas contribuíram para o forte

desenvolvimento da consciência política da classe operária; k) unificação dos comandos

operários no CGT.736

 Constituindo-se num dos muitos textos de “conscientização” das camadas

letradas da população (intelectualidade tradicional, professores universitários,

estudantes, camadas cultas do operariado etc.) que marcaram parte da produção

intelectual nacionalista difundida no período, o texto de Miglioli é também parte do

esforço de legitimação do CGT como entidade representativa do movimento sindical

 brasileiro, e nesse sentido é possível entender quão destacada foi a greve que afinal deu

ensejo à conformação da entidade. Não é por acaso que na nota inicial de

agradecimentos do livro, o nome do eminente líder operário comunista, RobertoMorena, seja lembrado. A mesma característica pode ser encontrada no já mencionado

livro de Telles.

Entre os setores mais à esquerda do PCB a greve de julho também seria tomada

como um momento impar na história do movimento operário. Embora com quase nula

influência no sindicalismo operário, os membros da Organização Marxista-

Revolucionária Política Operária (mais conhecida como POLOP) também valorizaram

aquele episódio.737  O então dirigente da organização, também jornalista e assessor

 político do deputado Sérgio Magalhães (do PTB-GB e líder da FPN), Moniz Bandeira,

em texto sobre a estratégia da “Revolução Brasileira”, localizaria a greve geral de julho

como momento que confirmaria sua análise da crise brasileira. Inspirado nos textos de

Trotsky sobre a Alemanha no início dos anos 1930,738  Bandeira apresentou um

 profundo estudo das condições do capitalismo brasileiro e das contradições de classe

originadas pelo desenvolvimentismo, caracterizando a situação política do Brasil no

início dos anos 1960 como pré-revolucionária.

736  Idem, ibidem, p.126-126.737  Fundada em princípios de 1961, a partir da fusão de várias organizações de cunho marxistainfluenciadas pela Revolução Cubana, o grupo editava o jornal Política Operária, de onde se originou o“apelido” de POLOP. Nela militaram nomes como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, MichealLöwy, os irmãos Eder e Emir Sader, Vânia Bambirra, Luiz Alberto Moniz Bandeira, entre outros. Cf.MATTOS, Marcelo Badaró. “Em busca da revolução socialista: a trajetória da POLOP (1961-1967).” In.RIDENTI, Marcelo & REIS FILHO, Daniel Aarão (org,).  História do Marxismo no Brasil. Campinas:Ed.Unicamp, 2002, v.V, p.185-212.738 Reunidos na compilação  Revolução e contra-revolução na Alemanha, e re-editada recentemente noBrasil em TROTSKY, Leon. Revolução e contra-revolução na Alemanha. São Paulo: Sundermann, 2011.

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Segundo informa em suas linhas iniciais, seu trabalho já se encontrava pronto

quando a classe trabalhadora saltou ao centro da cena política, paralisando o trabalho

em várias cidades do país num movimento político. Cito:

“Os acontecimentos que se precipitam, no Brasil, confirmam o quadroesboçado no correr deste livro. Os seus originais já estavam prontos,quando, a 5 de julho de 1962, as massas saíram às ruas, em várias cidadesdo Estado do Rio. Lincharam comerciantes, expropriaram osexpropriadores. As massas estavam dispostas a intervir, diretamente, nacrise, no processo político do país.” 739 

E prossegue:“As facções das classes dominantes, que disputavam a hegemonia doGoverno, trataram, assustadas, de conciliar-se, como, aliás, sempreacontece. Procuraram ocultar, reduzir as proporções do episódio, paraque não servisse de estímulo, de exemplo, e não se repetisse no resto do

 país. A imprensa, praticamente, não se referiu aos casos do comerciante

enforcado e do que teve a cabeça esmagada a golpe de pedra, porqueatirou contra o povo.A greve geral, a primeira grande greve política, paralisava,

naquele mesmo dia, quase todo o país. Mas, faltou ao proletariadodireção revolucionária, que lhe desse perspectiva própria, independente,de classe. Da greve, embora todos os seus aspectos positivos, ainda seaproveitaram João Goulart e a facção reformista da burguesia. E essemesmo fator permitiu que os pelegos e burocratas esvaziassem eentregassem ao fracasso a greve geral de agosto, ainda com as mesmaslimitações, que colocavam a classe operária a reboque da burguesia.”740 

Após o golpe de 1964, os balanços imediatos da derrota feito pelos comunistas e

outras esquerdas igualmente derrotadas parecem ter contribuído para um relativo

esquecimento da importância das lutas operárias ocorridas nos anos imediatamente

anteriores ao golpe, entre elas a greve aqui estudada. Em seu O combate nas trevas,

Jacob Gorender chama atenção para este fato, atribuindo a responsabilidade ao balanço

feito pela direção do PCB (Prestes e Giocondo Dias), que, entre outras coisas, condenou

a “radicalização” por parte da esquerda. Segundo a posição oficial do “Partidão”, tal

“radicalização” havia tornado a situação insustentável para Goulart.741  Deste modo,

739 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. “O caminho da Revolução Brasileira.” In.  A renúncia de JânioQuadros e a crise pré-64. São Paulo: Brasiliense, 1979, p.66.740  Idem, ibidem, p.66.741 Enquanto no documento “Esquema para discussão”, assinado por Mário Alves, Jover Telles, JacobGorender, Giocondo Dias, Orlando Bonfim e Carlos Marighella, de maio de 1964, se afirmava que acausa da derrota havia sido um grave “desvio de direita” – a ilusão da aliança com a burguesia nacionaletc. – na primeira reunião do Comitê Central, de maio de 1965, a posição que prevaleceu foi a de que o

 problema havia residido em um “desvio de esquerda”, que teria acabado por abandonar a “bandeira dalegalidade” nas “mãos dos inimigos” (da direita). VINHAS, Moisés. O partidão. A luta por um partido demassas (1922-1974). São Paulo: Hucitec, 1982, p.236-237. É possível verificar enorme semelhança entre

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numa memória construída pelos comunistas que se mantiveram fieis a esta direção,

ganhou força a desqualificação daquilo que Gorender com razão definiu como um dos

 períodos altos das lutas da classe trabalhadora brasileira no século XX. Sobre a greve de

 julho, suas palavras são essas:

“Diante da derrota da indicação de San Tiago Dantas e da aprovação dosenador pessedista Auro Moura Andrade para Primeiro-Ministro, oComando Geral de Greve proclamou uma greve nacional a fim de

 pressionar o Congresso. Realizada no dia 5 de julho, a greve foi praticamente completa nos serviços públicos, nas empresas estatais, nosetor bancário, mas parcial, embora com elevados percentuais, em outrossetores da empresa privada. Durante o seu transcurso, estabelecimentoscomerciais no Rio e na Baixada Fluminense sofreram saques, dandolugar a conflitos com mortos e feridos. O Congresso cedeu e aprovou aindicação de Brochado da Rocha, político trabalhista do Rio Grande doSul desconhecido no cenário nacional.”742 

Interessante é que neste mesmo o autor também contribua para, em certa

medida, desqualificar as greves políticas de 1962 como parte do processo de ascenso

operário, ao afirmar que na já comentada Quarta Conferência Nacional do PCB, a

maioria dos seus delegados havia questionado a orientação do Comitê Central de

colocar o movimento operário a reboque da burguesia, “principalmente nos episódios

das greves nacionais”.743  Ora, por mais que fosse correta a percepção de que a

orientação dada pela direção do PCB levasse o movimento operário para a estratégia da

colaboração de classes, a greve de julho parece até certo ponto questionar o

“reboquismo” nessa aliança de classe. Afinal, a paralisação do trabalho foi feita contra o

desejo de Goulart, San Tiago Dantas, Brizola e do próprio general Osvino, ainda que em

 proveito do presidente da República.

 Não obstante Gorender afirmar que naquelas greves nacionais de 1962 tenha

havido “coordenação direta e operacional entre Jango e as lideranças dos

trabalhadores”, reconhece que o sindicalismo de esquerda avançou “além do limite

desejável pelo Presidente”, que por isso mesmo teve de fazer concessões: a lei do 13º

as teses do grupo dirigente do PCB e o atual revisionismo historiográfico sobre o golpe de 1964, jádiscutido no primeiro capítulo desta tese.742 GORENDER, O combate nas trevas, op. cit., p.48.743  Idem, ibidem, p.50. De acordo com o autor, apesar dos dirigentes comunistas Prestes e Giocondo Diasterem ficado surpresos quanto ao teor das críticas, a minoria mais à esquerda da direção – formada porMarighella, Mário Alves e Jover Telles –, que encampou tais críticas, ganharia maior peso na ComissãoExecutiva do PCB. Idem, ibidem, p.51.

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salário quando da primeira greve nacional, e a criação da Superintendência para a

Reforma Agrária (SUPRA), quando da segunda.744 

 Nas alas mais à esquerda da intelectualidade marxista, a greve de julho

continuaria a ser referida com a mesma dubiedade. Em trabalhos como o de Rui Mauro

Marini, que nos anos do governo Goulart foi um dos mais importante intelectuais edirigentes políticos da POLOP, as imagens sobre a greve de julho permaneceriam muito

 próximas ao que escrevera Moniz Bandeira em 1962. Em um estudo publicado em

1969, Rui Mauro Marini faz uma profunda análise histórico-social da crise brasileira,

discutindo as alianças e contradições entre os grupos dominantes, até a cisão entre elas

nos anos antecedentes ao golpe de Estado.745 Neste roteiro, a luta política desencadeada

no país a partir da crise de agosto/setembro de 1961 operou uma cisão entre as classes

dominantes, situação que no léxico gramsciano aqui adotado constitui a crise orgânica.

Para Marini, a greve de julho de 1962 constitui um momento impar deste processo, poisnaquelas jornadas observou-se que Goulart viu-se sem o controle da situação, ainda que

ao longo de todo o processo o mesmo tenha conseguido manobrar com base no apoio

deste movimento sindical e do nacionalismo militar para dobrar a resistência do

Congresso e arrancar-lhe o plebiscito sobre o parlamentarismo. Segundo autor:

“Se se considerar, com efeito, o modelo das crises políticas pelas quais passou o país, se verá claramente que, desde 1961, as forças popularesganhavam autonomia de ação e as crises se resolviam cada vez menosfacilmente por acordos de cúpula. No ‘movimento pró-legalidade’, que se

desatou depois da renúncia de Jânio Quadros, foi ainda possível aosgrupos dominantes encontrar uma forma de transição, o regime parlamentar. Mas, nas lutas subsequentes pelo restabelecimento do presidencialismo, se o mando esteve sempre nas mãos de João Goulart,houve um momento – na greve geral de julho de 1962 – em que quaselhe escapou. Foi o pânico provocado pela amplitude da greve geral desetembro e a memória dos distúrbios sangrentos que se haviam verificadoem julho, no Rio de Janeiro, que, aliados ao temor de uma intervençãomilitar a favor de João Goulart, dobraram a resistência do Congresso.”746 

Como se vê, para Marini o grau de autonomia alcançado pelo movimento operário nos

episódios daquelas greves gerais de 1962 foi muito maior do que costuma se admitir,inclusive se comparada à posição de Bandeira.

744  GORENDER, O combate nas trevas, op. cit., p.48. Além disso, como vimos, da segunda grevenacional resultou o acordo para revisão do salário mínimo.745 MARINI, Rui Mauro. “Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil.” In. SADER, Emir (org.).

 Dialética da dependência. Antologia de Rui Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 1996, p.11-103.746  Idem, p.45, grifo nosso.

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Em seu clássico O colapso do populismo, Otávio Ianni destaca a greve de julho

no capítulo VII, “A Esquerdas e as Massas” de um modo bem diferente.

Apresentando/formulando a noção de sindicalismo populista, Ianni discute as limitações

da mobilização operária no período anterior ao golpe, apresentando o quadro tradicional

da concentração da mobilização grevista no serviço público e nas empresas estatais,etc., afirmando que as próprias greves por razões econômicas possuíam participação

limitada.

De acordo com esse quadro, Ianni atribui a eclosão da greve de julho de 1962 à

decisão de entidades de cúpula do sindicalismo brasileiro, que reuniram um conjunto de

reivindicações que constituíam os “objetivos correntes da política populista e aqueles

específicos da esquerda”. Após apresentar a pauta de reivindicações da greve geral de

 julho, conclui,

“A esquerda presente na formulação dessas reivindicações precisouconformar-se às exigências reformistas inerentes ao funcionamento dademocracia populista. Aliás, ela percebe a situação e define o programatendo em vista as ambiguidades das condições de luta. Entretanto, nofinal, ela própria não escapa às ambiguidades desse jogo. Revertem-seuma e muitas vezes os meios e os fins, no âmbito do populismo.” 747 

É importante lembrar que a perspectiva interpretativa de Ianni teria larga

influencia entre os setores críticos à esquerda da política do PCB, que, segundo esses

grupos, teria levado a classe operária ao beco-sem-saída da aliança com a burguesia

nacional, pavimentando a derrota de 1964. A leitura sobre o colapso do populismo feita

 por Ianni, como, aliás, por toda intelectualidade de esquerda ligada à Universidade de

São Paulo (Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort,

Roberto Schwarz), apontava a inconsequência do projeto pecebista de “revolução por

etapas”, avaliação também encontrada em alguns grupos que romperam com o PCB e

aderiram à luta armada.748 Constituídas por muitos jovens frustrados com a derrota de

1964, oriundos do movimento estudantil, muitas organizações revolucionárias armadas

não cultuariam a mobilização operária do período anterior ao golpe, ligando-a aos

747 IANNI, O colapso do populismo no Brasil, op. cit., p.108.748 A hegemonia intelectual do PCB por outro lado não pode desconsiderar a existência de pensamentomarxista alternativo no início dos anos sessenta, oriundo tanto da intelectualidade da USP, quanto degrupos mais à esquerda do PCB, como a própria POLOP e a pequena organização política trotsquista,POR-T. Quanto às Ligas Camponesas, Brizola, PCdoB e AP, esses grupos não parecem ter sidoresponsáveis pela elaboração de uma interpretação estratégica alternativa daquilo que predominava naesquerda nacionalista, de que o PCB e o ISEB constituíram-se como os principais centros elaboradores.

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muitos impasses provocados pela fragilidade da orientação estratégica das esquerdas,

em especial do “Partidão”.

Aliás, a experiência que mais despertou esperanças, logo frustradas, das

organizações mais radicais da esquerda, foram as greves de Contagem e Osasco em

1968, logo tomadas pela análise acadêmica da esquerda como episódios queinaugurariam uma nova forma de sindicalismo no Brasil, como aparece em outro

clássico texto de Weffort.749 

Entre os destaques feitos pelo cientista político uspiano, Weffort destacou a

importância da “estrutural dual” do sindicalismo vigente até o golpe de 1964 como um

entrave à conformação de um movimento operário autônomo no Brasil, e as

organizações por local de trabalho surgidas nas greves de 1968 como uma “novidade”

capaz de superar os problemas que levaram à derrota de 1964. Sobre a greve geral de

 julho de 1962, Weffort, aponta que o movimento só foi expressivo nos serviços públicose empresas estatais, posição reabilitada por um crítico de Weffort e do conceito de

 populismo como Daniel Aarão Reis, como já havíamos mencionado no capítulo 2.750 

5.4 CIA, Departamento de Estado e a greve geral de julho

Como já é bastante conhecido, no início dos anos 1960 o processo político

 brasileiro era acompanhado de perto pelo governo dos EUA.751 É plenamente plausível

a percepção dos revolucionários cubanos de que a Aliança para o Progresso era uma

nova roupagem para a intervenções do imperialismo americano no sub-continente latino

americano. Afinal de contas, pouco depois de propô-la, o governo John F. Kennedy

(1961-1963) protagonizou a fracassada tentativa de invasão à Cuba, manobra que

acabou por fortalecer a simpatia latino-americana pela Revolução que neste momento

declarava-se abertamente socialista. Seu propósito era o de chantagear as frágeis

economias latino-americanas no sentido de estabelecerem uma posição de “lealdade

hemisférica” se quisessem receber seus recursos. Em alguns casos, os aportes

destinaram-se a conspirações golpistas, como aconteceu no Brasil.

749 WEFFORT, Participação e conflito industrial, op. cit.750 WEFFORT, Sindicato e política, op. cit, capítulo IV, p.34. REIS, “O colapso do colapso do populismoou a propósito de uma herança maldita” op. cit., p.336-337.751 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil: dois séculos de História.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. PARKER, 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe deEstado de 31 de março, op. cit. AYERBE, Luiz Fernando. Estados Unidos e América Latina. Aconstrução da hegemonia. São Paulo: Ed.UNESP, 2002, p.135-143. FICO, Carlos. O Grande Irmão: daoperação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

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 Na reunião da OEA, em Punta del Este (Uruguai) em janeiro de 1962, o

secretário de Estado americano, Dean Rusk, e o chanceler brasileiro San Tiago Dantas

divergiram quanto à política a ser adotada em relação à Cuba. E já em 16 de fevereiro

do mesmo ano, o governador Leonel Brizola encampava a ITT, levando o ex-presidente

da companhia a enviar um telegrama para Kennedy no qual denunciava o processo deexpropriação assemelhando-a ao que fora utilizado em Cuba.752  Para evitar uma

deterioração das relações entre o Brasil e os EUA – quando estava prevista ainda

naquele primeiro semestre uma visita de Goulart aos EUA – conformou-se uma

negociação entre os dois governos para estabelecer a indenização, sendo os

representantes brasileiros nestas tratativas o embaixador do Brasil em Washington,

Roberto Campos, o chanceler San Tiago Dantas e, como vimos, o Secretário do Interior

e Justiça do Rio Grande do Sul, Brochado da Rocha. Não é possível deixar passar em

 branco, e deve-se sublinhar, a presença de um ativo quadro do IPES (Roberto Campos)nestas negociações.

A visita feita por Jango aos EUA em abril de 1962, quando também discursou no

 plenário das Nações Unidas e explicou parte de suas ideias sobre reformas de estrutura,

além das encampações de empresas estrangeiras e do projeto de limitação da remessa de

lucros para o exterior, foi também um momento do Brasil buscar a ajuda financeira

 junto ao governo Kennedy. Goulart e sua comitiva buscaram entrar em entendimentos

 para renegociar a dívida externa e conseguir novos emprestimos capazes de reverter à

tendência à recessão econômica que já se manifestava. Da visita aos EUA ficaria o

compromisso do presidente Kennedy de visitar o Brasil, algo que, na verdade, nunca

aconteceria. A esperada “ajuda” econômica norte-americana também nunca viria, e na

verdade, como já é conhecido, através da Aliança para o Progresso o governo dos EUA

 preferiu deslocar recursos para os estados cujos governadores eram hostis a Goulart,

como a Guanabara, São Paulo e Minas Gerais.

O nome indicado por Goulart para presidir o Conselho de Ministros

naturalmente chamou atenção da representação diplomática e o setor de inteligência dos

EUA no Brasil, mas os documentos desclassificados disponíveis não nos oferecem

 pistas de uma provável pressão ianque nos bastidores da ação patrocinada pela ADP na

Câmara. Como estavam interessados nas articulações entre o governo Goulart e os

movimentos sociais, é provavel que informações mais abundantes tenham sido

752 O nome do presidente da ITT era Harold S. Geneen, e o telegrama é citado em PARKER, 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de Estado de 31 de março, op. cit., p.34.

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 produzidas também nesse sentido. Com o que dispomos, pudemos constatar que o

episódio da greve chamou a atenção desses agentes.

Já em 6 de julho de 1962, o embaixador Lincoln Gordon enviou um telegrama

ao Departamento de Estado onde reconhecia que “O Congresso [estava] completamente

desmoralizado pela demonstração [da] habilidade de João Goulart [de] organizar ostrabalhadores em seu apoio [na] forma [de] greve geral.”753 Alguns dias depois, num

relatório da CIA, classificado como ultra-secreto (“Top Secret”) e datado de 13 de julho

de 1962, a greve de julho é apresentada como um movimento que atingiu “proporções

inéditas na história do Brasil”.754  Caracteriza ainda a importância da greve por ter

contribuído decisivamente para que o desfecho da crise acabasse sendo favorável a

Goulart. Diz o relatório:

“Organizações trabalhistas sob a considerável influência comunista

convocaram uma greve de 24 horas nas principais cidades em todo oBrasil, em apoio de Goulart. As greves foram difusas, masimpressionantes para os padrões brasileiros e, portanto, politicamenteeficazes.”

Um pouco mais tarde, em telegrama enviado para o Departamento de Estado em

11 de setembro daquele ano, Lincoln Gordon voltaria a comentar o episódio da crise do

gabinete, caracterizando-a como “artificial”, provocado pelo próprio Goulart, o qual

estaria manobrando para conseguir poderes presidenciais.755 Apesar de ser uma opinião

muito parecida com a propagandeada pelo IBAD – como vimos acima, o embaixador

estadunidense parecia ter uma visão aguda sobre o processo quando escreveu que:

“A última crise na instável situação política brasileira começou no finalde junho quando o primeiro-ministro e seu gabinete renunciaram paraestabelecer sua elegibilidade e concorrer nas eleições de 7 de outubro. Arenúncia resultou em uma renovação da luta, iniciada na crise de agostode 1961, entre forças esquerdistas que apoiam o presidente Goulart e osmoderados e conservadores que controlam o Congresso. O presidenteGoulart viu a oportunidade para criar uma crise artificial para atender seudesejo de retomar os poderes plenos da presidência. Conquanto ele não

753 Telegrama do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, Lincoln Gordon, 06 de julho de 1962, NSF,no Arquivos JFK, apud  DREIFUSS, op. cit., p.260.754  “Organized labor under considerable Communist influence called 24-hour strikes in major citiesthroughout Brazil in support of Goulart. The strikes were scattered but impressive by Brazilian standardsand hence politically effective.” Central Intelligence Agency. Office of Current Intelligence. Current

 Intelligence Weekly Review. 13 de julho de 1962, p.25. Disponível em<http://www.foia.cia.gov/sites/default/files/document_conversions/89801/DOC_0000585281.pdf>. VerAnexo 4.755 GORDON, Lincoln. Background on Current Situation in Brazil. (Telegrama enviado ao Departamentode Estado em 11 de setembro de 1962, classificado como “Secreto”, desclassificado em 1976). In.

 Documenti Riguardanti Il Brasile, vol.II. Fundo ASMOB, CEDEM/UNESP, São Paulo.

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tenha atingido esse objetivo maior, ele foi bem sucedido em instalar um primeiro-ministro e gabinete de sua própria escolha, incluindo suasescolhas de ministros militares.”756 

É significativo que a greve de julho não apareça neste relato de Gordon, mas os

rumores do avizinhar-se de uma outra greve geral estavam presentes. A forma com queesta outra greve aparece em tal telegrama merece o nosso comentário, pois Gordon

relata a suspeita de que Goulart estaria tramando um “golpe para ocorrer nos dias 15 e

16 de setembro, em conjungação com uma greve geral”.757 Anuncia ainda a disposição

do Ministro da Guerra, general Nelson de Melo, de agir para prevenir a greve,

“prendendo seus líderes se necessário”.758 

Ao contrário do que predomina na documentação proveniente da direita política

discutida acima, a CIA e o embaixador Lincoln Gordon não buscaram diminuir a

importância política do movimento grevista de julho. Contudo, é necessário lembrar atendência do embaixador e do serviço secreto estadunidense a apresentar o quadro

 político brasileiro como caótico, justificando seus soldos e levando seu governo a

 participar ativamente da conspiração organizada pelo IPES. Entretanto, o que se percebe

em 1962 é um tom mais brando e um pouco menos alarmista.

5.5 A greve no IPM 709

Entre os mais conhecidos documentos oriundos da devassa sobre as

organizações de esquerda feitas pelo regime ditatorial, está o famoso Inquérito Policial-Militar No 709, cujo título é O comunismo no Brasil. Publicado entre 1966 e 1967 como

 parte da campanha para justificar perante a opinião pública a justeza da intervenção

“salvacionista” das Forças Armadas, tal fonte foi produzida entre o golpe de 1964 e

756  “The latest crisis in the unstable Brazilian political situation began in late June when the PrimeMinister and Cabinet resigned in order to establish their eligibility to run for Office in the October 7thelections. The resignation resulted in a renewal of the struggler, initiated in the August 1961 crisis,

 between the Leftist forces supporting President Goulart and the Moderates and Conservatives who controlCongress. President Goulart seized the opportunity to create an artificial crisis to further his desire toregain the full powers of the Presidency. While he did not attain this major objective, he did succeed in

installing a Prime Minister and Cabinet of his own choosing, including his choice of military ministers.” Idem, ibidem.757 Ele relata uma conversa havida entre o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto (UDN), e oCônsul americano naquele estado, a partir de informações oriundas do comando do IV Exército.758 “In conversation with Consul this afternoon, Governor Magalhães gave his opinion that resignation ofBrochado Rocha this time would be designed prepare way illegal seizure power by Goulart. Has heardfrom Fourth Army that coup is planned for period September 15-16, in conjunction with general strike.Goulart would be supported by Commander First Army, Commandant Marine Corps, Air Force. Othermilitary and political leaders would oppose him. Commander First Army does not have support hisDivision Commanders. (…) Nelson de Mello said he would act to prevent general strike, arresting leadersif necessary.” Idem, ibidem.

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1966, expressando naturalmente a visão dos vencedores em 1964. É, antes de tudo, uma

narrativa oficial da ditadura sobre o golpe de Estado.

 Nessa narrativa sobre as razões da intervenção “salvacionista”, segundo a qual

antes da intervenção militar o país estaria vivendo um processo de intensa agitação

social resultante da “infiltração comunista” – desde a esfera política à sindical, passando pelas próprias Forças Armadas –, a greve de julho encontrou um lugar importante. No

seu capítulo II, destinado ao estudo da “infiltração dos comunistas” nos sindicatos, a

greve é denunciada como verdadeiro crime. Os pronunciamentos públicos de Dante

Pelacani no mês de junho – quando percorreu o país – são apresentados como uma

“ameaça à Nação”. A partir de uma tosca compilação do conteúdo do manifesto do

Comando Nacional de Greve, o inquérito policial-militar nos diz:

“A 5 de junho, Dante Pelacani, presidente da CNTI e membro dirigente

do Comando Nacional da Greve, baixou um manifesto no qual ameaça a Nação com a greve geral e conclamava a todos os trabalhadores e suasorganizações a realizarem assembleias e reuniões nos locais de trabalho,organizarem atos públicos para examinar a situação que atravessa o Paíse envidarem, desse já, todos os esforços na preparação da greve para serdesencadeada no momento em que ela se torne necessária, sob ocomando de suas organizações.”759 

Disso, é concluído que havia-se estabelecido um novo poder no Brasil, o CGT, “capaz

de paralisar, a qualquer momento, toda a vida nacional, colocando o País em uma crise

de consequências econômicas, sociais e políticas imprevisíveis”.760 Na trama descrita, a

montagem do dispositivo preparatório da greve geral nos estados, com a criação de

comandos locais, estando os sindicatos em assembleias permanentes, a paralisação é

apresentada como “um instrumento de coação” (...), “dentro de uma esquematização

 puramente comunista”.761  São destacados também os incidentes no estado do Rio, os

saques e depredações de estabelecimentos comerciais principalmente na Baixada

Fluminense, concluindo que aquele havia sido um verdadeiro “crime político”.

“Eis aí a história de um dos maiores crimes políticos impetrados contra a Nação pelo comunismo e pelo oportunismo inconsequente de um

governo inepto. A greve geral, instrumento subversivo de coação política, ocasionou um incalculável prejuízo ao País.”762 

759  Inquérito Policial Militar N o 709. O comunismo no Brasil. Vol.2. I – A construção. II – A infiltração.Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1966, p.184.760  Idem, ibidem, p.184.761  Idem, ibidem, p.186.762  Idem, ibidem, p.192.

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 Num anexo dedicado ao Fórum Sindical de Debates de Santos, a greve geral de

5 de julho recebe uma nota em que são destacados o caráter “irresponsável” do

movimento – que teria prejudicado uma campanha de vacinação infantil –, além do

“envolvimento” de autoridades públicas como o presidente Goulart, o general Osvino

Alves e o próprio prefeito de Santos, no “esquema comunista”:“5.7.62 – À 0 hora inicia a GREVE GERAL (nesta data dava-se aaplicação da Vacina Sabin às crianças de Santos e, em face da falta detransportes, grandes foram as dificuldades encontradas pelas famílias),merecendo destacar que o pessoal da Refinaria Presidente Bernardestomou a dianteira nesse movimento grevista, com exceção do pessoal damanutenção (serviço de operação), que cientes da importância de seusetor (não havia comunistas na secção), continuaram trabalhando. Umacomissão do F.S.D. dirigiu-se ao Prefeito a fim de solicitar a paralisaçãodo S.M.T.C.[Sistema Municipal de Transportes Coletivos] no que foi

 prontamente atendida. Foram distribuídos manifestos do F.S.D., da

USOMS, e da (sic) PUA, solidarizando-se com a CNTI e, em todos elesaparecia o apoio irrestrito ao Presidente da República e ao Comandantedo 1º Exército, Gen. Osvino Alves.”763 

Termina por reafirmar o compromisso entre Goulart e o esquema grevista:

“Terminada a GREVE GERAL, que teve duração de 24 de horas, reuniu-se o FSD, sob a presidência de RAYMUNDO SOARES DEVASCONCELOS e secretariada por OSWALDO LOURENÇO eHENRIQUE MARTINS DOS SANTOS, contando com a presença deDANTE LEONELLI, SÉRGIO MARTINS e outros notórios comunistas,e resolvem, ao encerramento do movimento grevista, enviar telegramasao Presidente da República, na qualidade de representante de 56sindicatos de trabalhadores, afirmando que continuam vigilantes e sevangloriando do êxito obtido.”764 

 No capítulo IV do IPM, em seção “Movimento de massas”, no item “Greves”,

seus autores enquadrariam a greve de julho entre as principais do período:

“Entre os principais movimentos grevistas do início de 1962 situam-se agreve dos ferroviários da Soracabana em janeiro, a greve geral dosestivadores, ferroviários, marítimos e portuários, a dos operários daFábrica Nacional de Vagões, dos motoristas de ônibus de Salvador, emfevereiro, a greve de advertência de todos os transportes, em março, a dos

servidores da Prefeitura de Niterói em abril, a dos trabalhadores daBaixada Santista, em maio, a greve geral de 5 de julho já sob o controledo Comando Geral dos Trabalhadores.”765 

763  Idem, ibidem, p.363.764  Idem, ibidem, p.363.765 Inquérito Policial-Militar N o 709. O comunismo no Brasil. Vol.3. III – A agitação e a propaganda. IV –A movimentação de massas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1967, p.296, grifo nosso.

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 Neste trecho são transcritos os principais manifestos escritos pelo Comando Nacional da

Greve (ou CGG) entre junho até a greve, além de declarações tecidas por influentes

lideranças sindicais comunistas. Nessa construção ideológica, a ditadura reservaria à

greve de 5 de julho o lugar de momento de inflexão:

“A greve de 5 de julho abriu o ciclo de generalização e violência que seimplantaria no País até março de 1964. Desde então a ação comunista nasatividades grevistas passaram a realizar-se ostensivamente como declaraRoberto Morena no artigo publicado em Novos Rumos (número 229 de12-18 Jul.63), ao comentar elogiosamente a publicação do livro: “Comosão feitas as greves no Brasil”, de Jorge Miglioli (edição Cadernos doPovo).”766 

Além deste livro de Miglioli, também o livro de Telles e as reportagens de  Novos

 Rumos  são amplamente citadas nesse IPM 709, não obstante os autores do inquérito

tenham pretendido dar a ideia de que embasavam sua tese – segundo a qual, o Brasilvivia a iminência de um “golpe comunista” ao longo do governo Jango – tal coisa é

sequer sugerida em qualquer trecho da documentação produzida pelos comunistas e

arrolada naquele dossiê.

766  Idem, ibidem, p.303.

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Capítulo 6 – A greve como “caso de polícia” 

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“A classe operária consciente compreende hámuito o ridículo desta teoria policial, segundo aqual todo o movimento operário moderno seria oresultado artificial e arbitrário de um punhado de‘agitadores e mentores’ sem escrúpulos.”  RosaLuxemburgo (1906)767 

“Ainda por muitos anos, e eu vos falo para ominuto de um quatriênio, entre nós, em São Paulo,

 pelo menos, a agitação operária é uma questãoque interessa mais à ordem pública que à ordemsocial; representa ela o estado de espírito dealguns operários, mas não de uma sociedade.” Washington Luis (1920) 768 

Por vezes a conjuração da famosa frase atribuída ao ex-presidente Washington

Luís na República Velha, “A questão social é caso de polícia”, parece levar a uma ideia

enganosa de que, após a subida de Vargas ao poder em 1930, a repressão sobre o

movimento operário tenha cessado, ou pelo menos abrandado. É como se, com a

fundação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, a Lei de Sindicalização

(1931) e a promulgação das leis sociais naquela década, as lutas operárias tivessem

deixado de ser matéria obrigatória para o aparelho de repressão do Estado, tornando-se

simplesmente assunto para as áreas sociais dos governos. Nada mais equivocado, pois,

afinal, o que se operou foi, ao lado da subordinação dos sindicatos ao Estado através da

estrutura corporativista, uma combinação da nova legislação social com a modernização

das estruturas das polícias políticas.769 Muito menos, após o fim do Estado Novo e o

início daquela que pode ser considerada a primeira experiência de regime democrático

no Brasil, isso mudou.770  Vejamos alguns aspectos importantes.

Órgãos com a função de polícia política existiram desde 1907 no antigo Distrito

Federal, como o Corpo de Investigações e Segurança Pública da Polícia Civil. Em fins

de 1922 foi criada a 4ª Delegacia Auxiliar, e com ela a Seção de Ordem Política e

767 LUXEMBURGO, Rosa. Greve de massas, partido e sindicatos. São Paulo: Kairós, 1979, p.18.768 Trecho da plataforma do então candidato à presidência de São Paulo, Washington Luís, em 25 de

 janeiro de 1920. Citado por RODRIGUES, Conciliação e reforma no Brasil, op. cit., p.90.769 MORAES FILHO, O problema do sindicato único no Brasil, op. cit., p.259-260.770 Por outro lado, essa constatação não se coaduna com outro aspecto do revisionismo historiográfico,que tem se notabilizado por construir uma leitura apologética daquele regime, a tal ponto de condenartodos os que sob a República de 1946 criticaram a natureza limitada do mesmo, principalmente aesquerda, agora co-responsável pelo colapso daquele regime. Para uma leitura mais sóbria sobre anatureza daquela democracia, que não obstante incorpora parte do espírito revisionista, CARVALHO,Cidadania no Brasil, op. cit., p.126-153. E para uma visão apologética, ver a apresentação do dossiê“1946-1964: a experiência democrática no Brasil.” FERREIRA, Jorge. “Apresentação”, Tempo, Niterói,n.28, p.11-18, junho de 2010.

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Social, com o desígnio de reprimir a atuação das correntes revolucionárias (anarquistas

e comunistas) no meio operário, sendo desta época a criação do Departamento de

Ordem Política e Social (DOPS) (1924) e de alguns DOPS estaduais, como o de São

Paulo. Em 1933, Vargas substituiu a 4ª Delegacia Auxiliar pela Delegacia Especial de

Segurança Política e Social (DESP), subordinada à Chefia de Polícia e dividida em trêsseções: segurança, segurança social, armas e explosivos.771  Com a federalização da

 polícia do Distrito Federal e a criação do Departamento Federal de Segurança Pública,

em 1944, a Divisão de Polícia Política e Social (doravante DPS) permaneceu como

órgão subordinado, até que em 1960 suas atribuições fossem transferidas para o recém-

criado estado da Guanabara, tornando-se um pouco depois (em 1962) o Departamento

de Ordem Política e Social (DOPS). Até 1955, por exemplo, ficou a cargo do Setor de

Fiscalização Trabalhista (e, após essa data, simplesmente Seção Trabalhista) a

“vigilância” sobre a vida sindical do país.Ao lado disso, a legislação anti-greve baixada pelo governo, especialmente a Lei

de Segurança Nacional, de 4 de abril de 1935 – chamada “Lei Monstro” –, que

enquadrou a greve do funcionalismo público e nos “serviços essenciais” como delito,

reforçou os atributos do aparelho de repressão para o controle do protesto operário.772 O

mesmo espírito manteve-se no Código Penal de 1940, que continuou a restringir esse

direito como um “atentado à liberdade de trabalho” (Art.197 e 198), vetando as greves

em serviços considerados “de interesse coletivo” (Art.201), e especialmente aquelas que

 por ventura levassem à “perturbação da ordem” (Art.200). Nem mesmo sob o ciclo

grevista no período final do Estado Novo e da redemocratização, esses expedientes

foram abandonados.

Devido à natureza das atividades desempenhadas pela polícia política, ao longo

da história da República seus agentes produziram um volume considerável de registros

sobre a atuação do movimento operário e sindical, em especial da ação dos sindicalistas

de esquerda, material onde é possível encontrar informações não disponíveis em outras

fontes sobre a história do trabalho no Brasil. Desde o final dos anos 1990 os arquivos

das Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS) – extintas em 1983 – têm sido

771 MENDONÇA, Eliana Rezende Furtado de. “Documentação da Polícia Política do Rio de Janeiro.”Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.12, n.22, p.379-388, 1998l. MATTOS, Marcelo Badaró. “Greves,sindicatos e repressão policial no Rio de Janeiro (1954-1964).”  Revista Brasileira de História, vol.24,n.47, p.241-270, 2004, p.257. As informações que seguem foram retiradas destas fontes.772 O que motivou a publicação da Lei de Segurança Nacional foi, além de uma espiral grevista que sedesenvolvia desde 1934, a ampliação do movimento antifascista que desembocou na criação da Aliança

 Nacional Libertadora (ANL) em 1935. Cf. PRESTES, Anita Leocádia. “70 anos da Aliança NacionalLibertadora (ANL).” Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v.31, n.1, p.101-120, junho de 2005.

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abertos para a consulta dos pesquisadores em vários estados. No Rio de Janeiro, o

Arquivo Público (APERJ), que desde 1992 passou a ter a guarda da documentação

acumulada pelos órgãos que exerceram a função de polícia política na antiga capital

federal e no extinto estado da Guanabara, depois de um processo de tratamento

arquivístico, possibilitou a transformação deste acervo em fonte para a pesquisahistórica, abrindo muitas possibilidades aos profissionais da área.773 

Alguns dos resultados do trabalho com estas fontes podem ser aferido nos livros

Greves e repressão ao sindicalismo carioca (1945-1964)774 e Trabalhadores em greve,

 polícia em guarda: greves e repressão policial na formação da classe trabalhadora

carioca775  obras coletivas coordenadas por Marcelo Badaró Mattos, onde os

 pesquisadores lançaram mão desta documentação para estudar algumas das greves mais

emblemáticas da história do sindicalismo carioca.776  Baseados em documentação

depositada no APERJ, no fundo das Polícias Políticas, pôde-se também realizar umlevantamento mais completo sobre o volume de paralisações trabalhistas ocorridas sob a

República de 1946, desfazendo alguns lugares comuns presentes na noção de

sindicalismo populista, especialmente aquela que diz haver, no início dos anos sessenta,

uma concentração da agitação sindical nas empresas públicas ou de atividade pública,

em detrimento dos setores mais modernos da indústria brasileira.777 

Além deste livro, investigadores deste campo como Luciana Lombardo Costa

Pereira que utilizou esse mesmo fundo do APERJ em sua dissertação de mestrado, 778 

Antonio Luigi Negro e Murilo Leal Pereira Neto que valeram-se do acervo do

Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS) do Arquivo Público do Estado de

São Paulo (APESP) em suas respectivas teses de doutorado,779  produziram pesquisas

acadêmicas inovadoras sobre o movimento operário no período 1945-1964. No caso de

773 SOUZA, Jessie Jane Vieira de. “Apresentação” a  A Contradita – Polícia Política e Comunismo no Brasil (1945-1964). Rio de Janeiro, APERJ, 2000, mimeo.774 MATTOS, Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca, op. cit.775 MATTOS, Marcelo Badaró (coord.). Trabalhadores em greve, política em guarda: greves e repressão

 policial na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004.776 São elas: a greve geral bancária de 1946, dos ferroviários da Leopoldina Railway também de 1946, agreve dos sapateiros de 1952, dos tecelões em 1953, a greve da paridade em 1960 e as greves pelaLegalidade em 1961.777 Ver os dados em MATTOS, Greves e repressão policial, op. cit., p.52-53.778 PEREIRA, Luciana Lombardo Costa. Caça às bruxas nos sindicatos: polícia política e trabalhadoresentre 1945-1964. Dissertação de mestrado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu Nacional daUFRJ, 2004._______“Polícia política e caça aos comunistas: repressões sobre o movimento operário noRio de Janeiro (1945-1964).” In. MATTOS, Trabalhadores em greve, polícia em guarda, op. cit., p.161-199.779 NEGRO, Linhas de montagem, op. cit. PEREIRA NETO,  A reinvenção do trabalhismo no ‘vulcão doinferno’, op. cit.

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 Negro, cuja pesquisa se estende até o ciclo grevista do fim dos anos 1970, o historiador

levantou a existência de uma bem articulada aliança entre o empresariado do ramo

automotivo na região do ABCD paulista e a polícia política (a “aliança empresarial-

 policial”), elemento até então relativamente negligenciado por aqueles que haviam

discutido os limites da ação operária nos setores de ponta da indústria na etapa final do“populismo”.780 

Sobre a importância da documentação do DOPS, Luciana Pereira é precisa em

lembrar que o tipo de atividade desempenhada pelos agentes da repressão compreendia

uma “contínua classificação, catalogação e organização de dados e documentos”.781 E

em razão disto,

“(...) por uma dessas inexplicáveis ironias da história, [essadocumentação policial é] uma valiosa fonte de informações a respeitodos mesmos movimentos que [este agentes] se encarregavam de reprimir.

Através da inscrição em seus fichários, eternizam-se nomes e eventos quenão são encontrados em qualquer outra parte. Entrevemos a ação desujeitos, sem outro registro a não ser o de sua passagem pela polícia

 política. E se há uma tarefa que parece encerrar a razão de ser dessaespecialização da polícia é a incessante atividade de produção eacumulação de registros escritos.”782 

Esta mesma autora, trabalhando com os aportes foucaultianos, e inspirada nos

estudos sobre a feitiçaria do antropólogo Evans-Pritchard, observou que, como o

 processo acusatório a partir do qual os agentes policiais relatavam as atividades do

movimento sindical estavam altamente inseridos na paranoia anticomunista da Guerra

Fria, seus relatos se assemelham às acusações de bruxaria.783  Certamente, como

veremos neste capítulo, tal visão de mundo destes agentes da repressão constitui um

filtro a partir do qual devem ser entendidas suas narrativas. Deste modo, como qualquer

registro do passado, tal documentação deve ser trabalhada de forma cuidadosa,

evitando-se posturas ingênuas que desconsiderem as intenções manifestas ou implícitas

nas suas representações sobre o processo político e o movimento operário em particular.

780 Conceito, aliás, rejeitado por Antonio Luigi Negro.781 PEREIRA, “Polícia política e caça aos comunistas...”, op. cit., p.162.782  Idem, ibidem, p.162.783  Idem, ibidem, p.166. A relação entre a paranoia anticomunista da guerra fria e as perseguições à bruxas

 já havia motivado Arthur Miller a escrever a peça de teatro The Crucible em 1953, cujo enredo narra osepisódios passados de um caso de perseguição e execução de mulheres acusadas de bruxaria em umaaldeia puritana no final do século XVII, obra cujo propósito era criticar o macarthismo. O texto foiadaptado para o cinema e exibido no Brasil com o título de As Bruxas de Salem (EUA, 1996), dirigido por

 Nicholas Hytner.

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Pois como lembra Pereira Neto, em comentário metodológico sobre o lugar destas

fontes em sua tese de doutorado:

“Como já foi observado, parte do que se registrou sobre as classes populares no passado foi com o objetivo de controlá-las – não restando àsvezes ao pesquisador outra alternativa senão trabalhar com esses

documentos, empreendendo sua crítica como documentos-monumentosque são. Cabe, portanto, aqui, o mesmo cuidado a ser observado naanálise de quaisquer documentos produzidos por determinadasinstituições: revelam mais sobre a instituição que os produziu e de comoa mesma entendeu e agiu sobre outros espaços e personagens do que ‘darealidade’.”784 

Por outro lado, nas condições da crise orgânica dos anos sessenta, o espectro de

uma “Revolução socialista” no Brasil, embora fosse mais um espectro que uma ameaça

real – afinal, a esquerda que liderava a agitação social estava interessada em tão

somente modernizar o “débil” capitalismo brasileiro, além de ampliar o espaço dacidadania da certamente débil democracia realmente existente –,785 é possível verificar

como o pânico ante sua possibilidade contaminou a escrita dos agentes da repressão. E

se a greve geral aqui estudada constituiu apenas um episódio na trama conflituosa do

 processo político brasileiro no início dos anos 1960, é possível observar nesta

documentação uma visão da própria greve geral de 5 de julho de 1962 como parte de

uma “trama” com vistas à implantação do “comunismo no Brasil”, bem próximo ao teor

do IPM 709, discutido no capítulo anterior.

Como já asseveramos, sem dúvida alguma, num estudo sobre o papel políticodesempenhado pelo sindicalismo de esquerda no Brasil naqueles anos, foi possível

encontrar muito mais nestas fontes do que naquilo que o próprio movimento escreveu

sobre si. E nesse sentido, e também por outros, a documentação produzida pelos órgãos

de repressão pôde contribuir para o estudo da dinâmica da crise. Mas antes são

necessárias mais algumas palavras sobre a natureza desta documentação.

6.1 Sobre a documentação policial

Carlo Ginzburg, em seu instigante prefácio à edição italiana de O queijo e os

vermes, mostrou como arquivos da repressão (como os da Inquisição, utilizados pelo

autor), tanto quanto, aliás, uma boa parte da produção textual sobre as classes

784 PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no ‘vulcão do inferno’, op. cit., p.8.785 TOLEDO, Caio Navarro de. “1964: O golpe contra as reformas e a democracia.” Revista Brasileira de

 História, São Paulo, v.24, n.47, p.13-28, 2004.

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subalternas, foi e é feita pelas classes dominantes e seus agentes. Têm, assim, caráter de

uma produção hostil e “duplamente indireta” sobre a história dos grupos subalternos:

afinal são “escritas  e, em geral, de autoria de indivíduos, uns mais outros menos,

abertamente ligados à cultura dominante”. Nesse sentido, ainda segundo Ginzburg, “os

 pensamentos, crenças, esperanças dos camponeses e artesãos do passado chegam aténós através de filtros e intermediários que os deformam”.786 

O mesmo pode ser dito da documentação policial sobre o movimento

operário/sindical, embora as conclusões de Ginzburg não sejam totalmente aplicáveis.

Afinal é considerável a produção proveniente dos próprios intelectuais orgânicos do

movimento operário, presente em livros, jornais, panfletos, representações imagéticas

etc., em contraposição com a capacidade de produzir as suas próprias representações das

comunidades camponesas na época moderna trabalhadas pelo historiador italiano. Ainda

assim, em períodos históricos cujo desfecho foi terrível para o movimentooperário/sindical, como no contexto do golpe de 1964, as marcas da repressão e da

clandestinidade produziram uma relativa escassez de fontes para o estudo deste objeto

naquele período anterior. Além do empastelamento de centenas de sindicatos pelas

forças da repressão, muitos militantes de esquerda em fuga levaram consigo ou

destruíram parte dos vestígios que poderíamos ter hoje para o estudo de suas lutas

naqueles anos de crise.

Em nosso levantamento no Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), da Unicamp, que

abriga o maior volume de documentação referente à história da esquerda no Brasil, é

 possível verificar a existência maior de fundos referentes ao período da Primeira

República e ao período da luta contra a ditadura pós-64, do que no período anterior ao

golpe, excetuando materiais como jornal do PCB,  Novos Rumos, encontrado em outras

instituições, como a Biblioteca Nacional (RJ). O quadro repete-se em outros centros de

memória e documentação do movimento operário e da esquerda, como o Centro de

Documentação e Memória (CEDEM) da Unesp e o Arquivo da Memória Operária do

Rio de Janeiro (AMORJ) da UFRJ. O quadro é também comum nos arquivos de

sindicatos cuja trajetória se ligou àquele contexto, sendo comum a notícia de que, face à

repressão desencadeada com o golpe de Estado de 1964, muito materiais seriam

destruídos pelos próprios militantes em fuga.

786  GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pelaInquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.13, grifo do autor.

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Mais frustrante foi constatar a existência no Arquivo Nacional (RJ) de uma

coleção de documentos sindicais, apreendidos pela Divisão de Segurança e Informações

do Ministério da Justiça durante o governo de João Goulart. Embora descritos no Banco

de Dados do SIAN (Sistema de Informação do Arquivo Nacional – disponível em

http://www.an.gov.br/sian/inicial.asp), os documentos encontram-se indisponíveis, emrazão de terem sido retirados para um processo de digitalização que não tem qualquer

 prazo para acontecer. De acordo com as informações do Bando de Dados, existiriam

séries da imprensa sindical de entidades ligadas principalmente aos bancários

(sindicatos e federações de todo o país), mas também metalúrgicos paulistas,

documentos relativos ao CGT, CNTI, CONTEC, CPOS da Guanabara, de sindicatos

nacionais (como dos aeroviários) entre outras, todas devidamente colhidas pelos

aparelhos de repressão da esfera federal, mesmo estado a administração federal em

mãos de um presidente trabalhista.Um problema burocrático nos impossibilitou de explorar essa documentação

 para essa tese, havendo ainda o risco de que esteja deteriorada a ponto de não poder ser

consultada nem futuramente, conforme informaram os funcionários daquela instituição.

Isso ter ocorrido em período sob o qual (finalmente) existe uma iniciativa por parte do

Estado brasileiro de melhorar o acesso à documentação oficial, especialmente daquele

 período, nos permite torcer para que o mais breve possível seja disponibilizada.

6.2 As estratégias da repressãoApós o golpe de 1964, quando as forças da contra-revolução operavam uma caça

às bruxas na estrutura sindical brasileira, os aparelhos de repressão puderam contar com

a colaboração de antigos desafetos do movimento sindical. Além, obviamente, daqueles

líderes sindicais de direita, que voltariam à frente das entidades sindicais após o golpe,

as bases sociais desses elementos também promoveriam ação coordenada na

 perseguição aos “comunistas” através de delações. Um desses dedos-duros, em 3 de

fevereiro de 1965, de nome José Maria Gaspar de Souza, denunciou à polícia Jayme

Souza Magalhães, bancário e ativista sindical carioca, conforme pode ser lido em um

Dossiê pertencente ao fundo das Polícias Políticas do APERJ. De acordo com o

alcaguete Gaspar de Souza:

“À guisa informações, relato-lhe que uma noite, já vai longe, telefonei para o sr. Dr. Cecil Borer, participando-lhe que os comunistas doSindicato pretendiam deflagrar uma greve – demonstração de força do

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famigerado CGT – e iriam, dessa noite para o outro dia, construir piquetes de greve em frente ao prédio para que a polícia ficasseimpotente de os conter, e além do mais, provocar uma reação por partedo povo em prol dos bancários, caso houvesse uma reação por parte dasautoridades. Recordo-me ainda, que a pessoa com quem falava dizia ser o

 próprio Sr. Borer, e em resposta agradecia-me a lembrança, mas que já

tinha pensado como desbaratar tal trama.”787

 

Como é evidente, para os opositores do movimento sindical combativo que marcaram a

cena política brasileira no período anterior ao golpe de 1964, as greves políticas eram

uma evidência de uma processo de “subversão” e de “ameaça de comunização” do

Brasil.

Cecil de Macedo Borer, personagem mencionado acima, foi um dos mais

importantes quadros da repressão policial desde o período do Estado Novo, passando

 pela República de 1946 e durante a própria Ditadura empresarial-militar de 1964, tendosido, entre outras coisas, chefe do Setor de Fiscalização Trabalhista, da Divisão de

Polícia Política e Social (DPS) do Distrito Federal, encarregado da vigilância ao

movimento operário, principalmente na repressão ao PCB no período 1945-1964. Por

sua participação no movimento golpista contrário à posse de Juscelino Kubitschek na

Presidência da República em 1955, Borer foi afastado do cargo no início deste governo.

Todavia, com a formação do estado da Guanabara em 1960, o governador Carlos

Lacerda o designou para a chefia da Delegacia de Vigilância, tendo sido transferido para

o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em 1962. Como uma de suas primeiras atividades nesse último posto, Borer foi um dos elementos mais ativos na

repressão às greves gerais políticas de julho e setembro daquele ano.

Em um depoimento dado a pesquisadores do APERJ nos anos noventa, Borer

 buscou esclarecer a forma como estabelecia seus contatos nas bases de modo a manter o

DOPS informado das movimentações do sindicalismo, exemplificado acima.

Respondendo ao entrevistador quanto à forma como elementos como Gaspar de Souza

colaboravam com o serviço de inteligência, Borer afirmou

“Bem, existem várias maneiras da informação chegar a você. Dependedos meios de que você dispõe e também dos artifícios de ordem pessoal.Um processo de inteligência usado no mundo inteiro é a infiltração. Nainfiltração, ou você procede com a técnica inglesa ou de acordo com atécnica americana. O inglês produz o agente, eu fiz muito disso. Eu

 pegava um indivíduo qualquer, que não tinha formação ideológica

787 Dossiê 2, p.36-37, Pasta 42, Caixa 833, Setor DOPS, Fundo Polícias Políticas. Arquivo Público doEstado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ).

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absolutamente nenhuma, e alertava, preparava mais ou menos politicamente, arranjava um emprego para ele trabalhar exatamente ondeeu queria. Então, ele chegava e se apresentava como esquerdista,começava a frequentar o sindicato. Dentro de pouco tempo ele eraabsorvido pela célula. Aí, ele começava a produzir informações. Bem,essa é uma das maneiras de que você prepara o agente, é a maneira que o

inglês faz. A outra é a maneira do americano. O americano compra oagente. Você está num ponto que lhe interessa, ele cerca você por váriasmaneiras, lhe oferecendo alguns favores, relação de amizade e, dentro de

 pouco tempo, através do dólar, coloca você como elemento deinformação. Eu tinha poucos agentes comprados. Porque havia recursosquase insignificantes.”788 

Seria uma falha metodológica grave simplesmente “comprar” o depoimento do antigo

chefe da Delegacia de Vigilância da Guanabara, que, nesta mesma entrevista, sugere

que tais “infiltrados” se posicionavam em posições de mando nas diretorias sindicais da

esquerda, ou mesmo no PCB.789 Nunca é demais lembrar que, como regra, os agentes darepressão sempre buscaram superestimar a sua própria capacidade de investigar as

organizações de esquerda. Caso suas ações fossem tão eficientes, não teríamos a eclosão

de tão expressivo número de movimentos grevistas nos primeiros anos da década de

1960, por exemplo. Todavia, através de seu depoimento, é certamente possível

encontrar algumas chaves para o entendimento de como funcionava o serviço de

inteligência, pois, como veremos a seguir, os “meganhas” estavam relativamente bem

informados das movimentações da esquerda sindical durante o governo Goulart.

6.3 A greve de julho no Boletim Reservado 

Como já vimos, nos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, o nível de

conflitualidade social foi alto na greve geral de julho de 1962. É preciso atentar para a

importância das fontes da polícia política da Guanabara quanto à abrangência de suas

informações, pois transcendem o interesse apenas regional por uma série de razões,

entre elas o fato de que todas as instituições de cúpula do sindicalismo nacional

 possuíam suas sedes centrais no Rio de Janeiro, cidade que havia deixado recentemente

de ser capital da República. Como já assinalamos, com a transferência da capital federal

788 Entrevista com Cecil Borer por Leila Menezes Duarte e Paulo Roberto de Araújo, em  A Contradita,op. cit, p.24-25.789 “Esses agentes especializados eram agentes de primeira infiltração: secretário do partido, dirigente deorganismo estadual, dirigente de organismo de fábrica, aquela coisa toda, para quem você carreava o

 pouquinho de recurso que tinha e orientava para que eles tomassem do partido o que pudessem.” Idem,ibidem, p.30.

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 para Brasília, o Departamento Federal de Segurança Pública e sua DPS foram

transferidos, mas as estruturas montadas na antiga capital acabaram por ser incorporada

ao jovem estado da Guanabara.790 E, a partir dessa experiência acumulada, os “tiras”

cariocas continuaram o seu acompanhamento diário ao movimento sindical, o que torna

a documentação produzida por esse órgão especialmente interessante para o estudo dagreve nacional de julho de 1962.791 

Os Boletins Reservados da DPPS da Guanabara são uma das séries documentais

mais interessantes disponíveis para os estudos das greves e da agitação operária da

esquerda durante o governo de João Goulart.792  Tais  Boletins  foram originalmente

 produzidos para a consulta da comunidade de informações e da Presidência da

República desde o Estado Novo, estando posteriormente disponíveis para a consulta do

governo da Guanabara, chefiado por Carlos Lacerda no período de nosso estudo. Esses

 Boletins  consistiam num acompanhamento quase diário das reuniões de diretoriassindicais e dos organismos de cúpula (CNTI, CGT, PUA etc.), feitos a partir de

informações de agentes infiltrados nesses espaços e também dos elementos

característico dos órgãos de repressão – o alarmismo, a paranóia, a fantasia etc. –, que

serviam também para justificar a dotação de recursos públicos. Nossas considerações a

seguir discutem as informações contidas nestas fontes.

A partir desta série podemos constatar que a polícia política não levou muito a

sério as articulações e reuniões públicas ocorridas ao longo do mês de junho e que

anunciavam a possibilidade de realização de uma greve geral de protesto. Embora já

tenhamos visto que a proposta de uma greve geral em favor de um “gabinete

nacionalista e democrático” tinha sido publicizada pela CNTI no início de junho, foi só

no final daquele mês que os rumores sobre a possibilidade de tal greve aparecem no

 Boletim Reservado.

790 “Com a mudança da capital federal para Brasília em 1960, a função de polícia política exercida pelaDPS foi transferida para o recém-criado Estado da Guanabara. A Lei que ditou as normas para aconvocação da Assembleia Constituinte do Estado na Guanabara também fixou a transferência dosserviços da Polícia Civil do antigo Distrito Federal subordinado, inclusive a função de polícia política, aoGovernador da Guanabara.” DUARTE, Leila Menezes; ARAÚJO, Paulo Roberto Pinto de.“Redemocratização, polícia política e anticomunismo.” Introdução A Contradita, op. cit., p.20.791 Aliás, é preciso fugir do formalismo para entender que, para além do fato de muitas das estruturasfederais ainda estarem sediadas no Rio de Janeiro sob o governo Jango, a cidade ainda era um dos maisimportantes centros políticos do Brasil. Afinal, não é possível esquecer que, em 1964, os golpistas sedirigiram de Juiz de Fora para o Rio, e não para a nova capital no Planalto Central.792 Ver o fac-simile da capa de um desses Boletins no Anexo 3, no fim desta tese.

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Vejamos pela ordem cronológica como a greve foi retratada nesses Boletins, de

modo a ter pelo menos uma ideia de como a DPS moveu-se em função desta greve. No

dia 29 de junho, aparece a primeira menção com estas linhas:

“Em face das notícias de que a Divisão de Polícia Política e Social estariadisposta a prender os líderes sindicais da Guanabara, visando abortarqualquer movimento grevista em favor da formação de um Gabinetenacionalista e democrático, apuramos junto às entidades sindicais que aameaça policialesca não atemorizará qualquer dirigente, pois o Comando

 Nacional de Greve é constituído pelos operários em geral, e principalmente pelos delegados sindicais que atuam nas fábricas, alémdos líderes que se encontram à frente das confederações, federações esindicatos.”793 

Já vimos que, apesar de terem sido efetuadas dezenas de prisões no dia da greve, a DPS

da Guanabara não conseguiu prender os líderes do movimento; decapitando-o, poderia

tê-lo desmantelado. Todavia é importante verificar através deste trecho acima que jáexistia essa orientação por parte do aparelho de repressão, mesmo quando a DPS parecia

não acreditar na capacidade dos sindicalistas em promover a greve.

Parece que é só no início do mês de julho de 1962 a ameaça da greve política

acendeu o “sinal vermelho” na polícia política da Guanabara. Nessa mesma fonte do dia

2 de julho é possível ler logo em suas primeiras linhas o seguinte: 

“Conforme já tivemos oportunidade de anunciar, o mês de julhoentretanto trará para o país um grande período de agitação, se as  forçasdemocráticas existentes  não permanecerem firmes na defesa do regimeconstituído no Brasil.

Sob o pretexto do alto custo de vida e pela constituição de umConselho de Ministros “nacionalista e democrático” pretendem os gruposcomunistas que militam no meio sindical testar a força de suaorganização, para uma  futura revolução, através de uma greve geral deâmbito nacional, tarefa há muito ensaiada e nunca realizada.

Presentemente, porém, com o incremento que tiveram no país asforças “nacionalistas” que nada mais são do que as  forças comunistas

 fantasiadas, cremos que, se não houver uma reação séria do blocodemocrático  propriamente dito, conseguirão os comunistas levar acontento a sua grande tarefa.”794 

Do conteúdo geral do trecho, com destaque para os termos grifados, é possível discutir

um pouco sobre a forma como os autores deste documento representavam a ação

793  “Líderes sindicais.”  Boletim Reservado, n.111, 29 de junho de 1962, p.1. Fundo Polícias Políticas.APERJ.794 “Greve geral de âmbito nacional.” Boletim Reservado, n.112, 2 de julho de 1962, p.1, grifos nossos.Fundo Polícias Políticas. APERJ.

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“subversiva” do sindicalismo. Nesse ponto é importante considerar que conceitos

 políticos como “democracia”, “revolução”, “reformas de base”, “nacionalismo” etc.,

estavam em disputa entre os atores políticos na conflituosa cena política do início dos

anos sessenta. Deste modo, boa parte da celeuma provocada pelo atual revisionismo

historiográfico sobre o golpe de 1964, calcado na ideia de que “a esquerda também eragolpista”, está baseada, entre outras coisas, em uma leitura unilateral do significado

destas noções naquele contexto histórico. Afinal, até as forças golpistas que

conspiravam no IPES também organizaram seu próprio Congresso Pelas Reformas de

Base.795 E o que dizer da noção de “revolução”? Tamanho era o prestígio do termo que

os próprios golpistas atribuíram ao seu ato histórico o nome de “Revolução.”796 

A partir deste entendimento, acreditamos ser facilmente percebido no trecho

supracitado do Boletim que as tais “forças democráticas” às quais o texto se refere são

 justamente os grupos anti-comunistas de direita, os efetivamente golpistas capitaneados por elementos como o próprio Carlos Lacerda, “o Corvo”, como o apelidaram as

esquerdas da época. Ao mesmo tempo, a noção de que o “nacionalismo” era um

“disfarce dos comunistas” também só pode ser entendido naquele contexto em que as

forças que tradicionalmente tramavam sedições contra o poder constituído eram ligadas

aos interesses do capital estrangeiro, como era o caso de boa parte dos grupos de

conspiradores da direita.797 Além do mais, como as opções estratégicas dos grupos da

direita estavam baseadas no alinhamento automático ao bloco liderado pelos EUA e,

mais que isso, a vanguarda de tais forças representava os interesses do processo de

internacionalização da economia brasileira, a bandeira do nacionalismo foi levantada

 pelas esquerdas para denunciar o “entreguismo” e a intromissão da Embaixada dos EUA

no Rio de Janeiro na política interna do Brasil.

795 DREIFUSS, 1964, op. cit., p.243.796  “É um anacronismo analisar aquele passado com base numa ideia de democracia estabelecida

 posteriormente e consolidada no presente (cujos limites os futuros historiadores também apontarão).

Outro anacronismo é ressaltar a discussão da democracia em detrimento do tema que mais mobilizava asociedade no início dos anos 1960, a ‘revolução brasileira’, hoje tão esquecida, mas que na época tinha tallegitimidade que os golpistas logo apelidaram seu movimento de ‘revolução de 1964’.” RIDENTI,Marcelo. “Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura: armadilhas para os

 pesquisadores.” Anais do Seminário 40 anos do golpe: ditadura e resistência no Brasil. Rio de Janeiro:7Letras; Faperj, 2004, p.147.797 Uma das críticas mais frágeis que é feita ao trabalho de René Dreifuss é a de que ele teria visto uma“centralização inexistente” na conspiração contra Goulart, quando “na verdade”, dizem tais críticos, “hojese sabe que eram várias conspirações”. Ora, essa não é um questão que tenha passado desapercebida porDreifuss, que pontuou a existência de pelo menos três grupos de conspiradores: o grupo IPES/ESG, osextremistas de direita e os tradicionalistas. Cf. DREIFUSS, 1964, op. cit., p. 368-372.

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Entretanto, o que salta mais aos olhos neste documento policial é a associação

fantasiosa feita entre a “ameaça de greve” com uma suposta “ameaça de revolução”,

tema recorrente em toda a documentação policial sobre a agitação sindical no período.

Em se tratando de um texto destinado à circulação interna da comunidade de

informação, é significativo que seus produtores recorram aos termos da paranoiaanticomunista, o que nos leva ao entendimento de que esse compartilhamento de sentido

servia para orientar a ação deste aparelho de repressão como se, “realmente”, o Brasil

estivesse prestes a assistir a uma “revolução socialista”. Desse modo, tal tipo de

narrativa certamente servia para arregimentação dos prováveis leitores do texto, os

 próprios agentes da repressão, o governador e a Secretaria de Segurança Pública da

Guanabara, que, inculcados desses temores irreais, agiam como se estivessem

combatendo a própria “revolução social”, o que explica, em parte, a violência de suas

ações na repressão à greve na Guanabara.O documento liga toda a articulação dos sindicalistas em torno da greve ao

 presidente Goulart, ideia sugerida no trecho em que se lê que o presidente da República

estava tão somente atendendo a “solicitações feitas pelos líderes sindicais comunistas”,

mencionando um manifesto da CPOS da Guanabara, em que os dirigentes sindicais

notoriamente comunistas reconheciam essa “tendência” do presidente trabalhista.798 A

indicação do nome de San Tiago Dantas para o cargo de chefe do Conselho de

Ministros, o convite para Afonso Arinos – é ocioso lembrar, senador pela UDN – para

ocupar de novo a pasta do Exterior e o suposto papel do General Osvino Ferreira na

escolha dos titular do Ministério da Guerra são elementos tratados como evidência desta

articulação entre comunistas e o governo federal. Também é dito que, com a recusa do

Parlamento ao nome de San Tiago, no dia 28 de junho, as mais importantes entidades

nacionais do sindicalismo brasileiro, o próprio CPOS, a CNTI, a CONTEC e o PUA,

estavam reunidas em “sessão permanente” na sede da CNTI, articulando a greve de

 protesto em todo o território nacional:

“Em face da recusa, pelo Parlamento, do nome do Sr. SAN

TIAGO DANTAS, no mesmo dia 28, ficou resolvido na aludida sessão permanente, o envio de uma carta aberta ao Sr. Presidente da República,exigindo firmeza na luta para a constituição de um Conselho de

 Ministros nos moldes apresentados pelos comunistas, sendo que cópiasde referido documento, acompanhado de cópias de uma Manifestoelaborado à Nação, no dia 27 de junho último, em reunião no Sindicato

798  Afinal o dirigente da intersindical CPOS era Hércules Correa, um operário têxtil que também eradeputado comunista pela legenda do velho PTB da Guanabara.

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dos Rodoviários da Guanabara, foram enviados para todos os Estados daFederação.

O Manifesto foi inclusive, enviado a todas as entidades sindicais para, nos moldes comunistas, serem seus textos debatidos e discutidosem todas as assembleias da espécie.”799 

 No trecho grifado, revela-se novamente o propósito dos autores de passar a imagem de

que o presidente da República era manipulado pelos comunistas, afinal, o tal Conselho

de Ministros deveria ser constituído “nos moldes apresentados pelos comunistas”.

 No mesmo Boletim existem informações sobre a greve geral baiana do dia 28 de

 junho. Como vimos, esta foi realizada em razão da dura repressão que se abateu sobre o

movimento popular que se reunira pacificamente no dia anterior para manifestar seu

apoio a San Tiago Dantas e ao presidente Jango. É reproduzido o manifesto assinado

 pela Comissão Permanente de Organizações Sindicais (CPOS) da Bahia, o Pacto de

Unidade Operário-Estudantil-Camponês, União dos Estudantes da Bahia e uma série

infindável de organizações sindicais baianas e nacionais,800 cujo teor é o seguinte:

“As entidades sindicais da Bahia, infra-firmadas, a União dosEstudantes da Bahia e o Pacto de Unidade Operário-Estudantil-Camponês, reunidos em assembleia geral convocada pela ComissãoPermanente de Organizações Sindicais da Bahia (C.P.O.S.B) paraapreciar e deliberar sobre as arbitrariedades e violências policiais

 praticadas na noite de ontem, na Praça Municipal, ocasião em que foram brutalmente massacrados líderes estudantis, sindicais, camponeses e pessoas do povo e, [interrompida a redação]

Considerando que estas inomináveis violências foramconsequência da intolerância do Governo estadual, cuja prepotência seexternou pelo fato do comício dissolvido reivindicar, em termos

 pacíficos, a constituição de um gabinete ministerial nacionalista-democrático.

Considerando que o objetivo de garrotear e violentar as liberdadesdemocráticas não se deteve nem ante outras autoridades constituídas,como bem demonstra a invasão do edifício da Prefeitura, onde popularesse refugiaram da sanha policial, dando assim a medida exata dodespotismo do governo estadual.”801 

Em seguida, o Manifesto sindical associa a truculência da polícia baiana à oposição dogovernador Juracy Magalhães (UDN) à “realização das reformas de base”, hipotecando

total solidariedade às vítimas da violência governamental, em particular à sofrida pelo

líder bancário e presidente em exercício da CPOS baiana, Raimundo Ramos Reis, que,

799 “Greve geral de âmbito nacional”, op. cit., p.3.800 Cf. capítulo 4 desta tese, p.165-166.801 “Greve geral de âmbito nacional”, op. cit., p.7-8.

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como já vimos, havia sido brutalmente espancado. Por fim, o manifesto convocou a

greve geral de protesto que atingiu toda a cidade de Salvador a partir do meio dia de 28

de junho, movimento que culminou com um comício no fim da tarde na Praça da Sé,

centro da capital baiana. A repressão e a comoção em torno ao movimento sindical-

reformista na Bahia certamente debilitou de tal modo os ativistas que, como jádiscutimos anteriormente, a greve de 5 de julho de 1962 praticamente não aconteceu na

capital baiana, restringindo-se aos petroleiros, portuários e marítimos, diferentemente de

outros estados do Nordeste.

Ao final deste boletim é reproduzido o artigo “Intensificar a luta”, escrito pelo

dirigente comunista Orlando Bonfim Jr. e publicado no semanário  Novos Rumos  do

PCB. Esse artigo é apresentado pelos agentes policiais como uma forma de Bonfim

levantar a moral dos ativistas sindicais comunistas abatidas pela repressão do

governador Juracy Magalhães, lembre-se, correligionário do governador CarlosLacerda.802 

Já o Boletim Reservado do dia 3 do mesmo mês de julho relatou uma reunião do

Conselho Sindical de Niterói, onde os presidentes dos Sindicatos dos Têxteis e dos

Rodoviários de Niterói e São Gonçalo, Almir Reis Netto e Pedro Mairink Filho,

respectivamente, teriam discutido sua participação nas revoltas populares contra o

desabastecimento no Rio de Janeiro, ocorridas alguns dias antes da greve, quando, como

 já foi mecionado, moradores do bairro de Saracuruna, no município de Duque de

Caxias, haviam descoberto um depósito clandestino de feijão e iniciado um motim

 popular que tão somente forçou o dono do estoque escondido vender o produto aos

 populares. Essa revolta popular é retratada no documento como “ante-sala de uma

revolução”, sendo conectadas ao dispositivo grevista que então se articulava na

Guanabara. Segundo esse mesmo Boletim:

“Encerrando a reunião falou o Sr. Almir Reis Netto, presidente doSindicato dos Têxteis de Niterói e São Gonçalo, dizendo que ‘nós doConselho devemos dar todo o apoio ao povo contra os tubarões eexploradores do povo. Esta demonstração de hoje é apenas o começo

 porque estamos trabalhando para explodir de modo geral, não somente noEst. do Rio, mas, por todos os quadrantes do Brasil, a fim de que

 possamos tomar o poder   e levar os lacerdistas, os reacionários e ostrustes ao paredon.’

Endossando as palavras do companheiro Almir, falou o lídercomunista Pedro Mairink Filho, que disse: ‘a minha classe já era paraentrar em greve hoje, dia 2, mas, em virtude do levante do povo, que

802  Idem, ibidem, p.11-14.

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 precisa de nossa orientação neste momento, transferir para zero hora dodia 3 corrente, não haverá transporte a fim de que povo possa fazer deuma vez a revolução, para que possamos tirar proveito da situação, quemsabe? Se amanhã já estamos em revolução’.”803 

Além disso, esse  Boletim dá conta da mobilização levada a cabo pelo Sindicato

dos Bancários da Guanabara, tendo sua sede, localizada em um prédio da Avenida

Presidente Vargas, centro do Rio, se tornado um dos centros da “agitação”, isto é, da

 preparação da então almejada greve política. É dito que os sindicalistas bancários

haviam feito panfletagem de uma carta aberta a Goulart, na Central do Brasil, a mais

importante estação ferroviária da cidade no centro do Rio de Janeiro. Segundo essa

fonte, o documento distribuído pelos sindicalistas cariocas havia sido também mandado

 para Brasília, “a fim de ser distribuído no meio bancário e ao povo”,804 o que indica que

 provavelmente foi distribuído em todo o país.

805

 Entretanto, o mais curioso deste relato é o total erro da avaliação dos agentes

 policiais quanto ao prestígio e à capacidade de arregimentação destes sindicalistas,

explicitado no trecho a seguir:

“A greve do setor bancário da Guanabara existe somente na boca e navontade dos líderes, pois a classe em sua absoluta maioria não temtomando conhecimento das atividades políticas do Sindicato e também oseu pensamento é: para “greve” com fins políticos, NÃO. Os líderessabem perfeitamente que somente podem contar com restrito número de

 bancários, mas... não estão tomando conhecimento do fato.”806 

Completando os equívocos da polícia política, afirma-se que os bancários não estavam

 prevendo nenhum piquete para paralisar as agências bancárias, quando sabemos que

entre esta categoria tais piquetes eram operados pelos próprios elementos de ligação

entre os funcionários dos bancos e o Sindicato, através das Comissões Sindicais

803 “Alerta Geral contra os Agentes do Golpe.”  Boletim Reservado, n.113, 3 de julho de 1962, p.2, grifosnossos. Fundo Polícias Políticas. APERJ.804  Idem, ibidem, p.1-3.805 O que também denota como o sindicalismo bancário utilizou-se da estrutura da sua confederação, aCONTEC, para mobilizar a categoria em todo o país para efetivar o movimento grevista. E nisso éimportante lembrar que, ao contrário da CNTI, resultado de uma manobra dos pelegos sindicais paracombater a influência do PCB na categoria, a CONTEC foi resultante de uma opção do sindicalismo

 bancário para criar uma entidade de cúpula no interior da estrutura sindical corporativista. Foi do ascensogrevista, do fortalecimento da representatividade do sindicatos e da consolidação da hegemonia daesquerda comunista neste meio que surgiu a Confederação.806  Idem, ibidem, p.1.

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espalhadas pelas agências da cidade. Ao contrário do que pensava a polícia, a atuação

dos piquetes nesta greve (como em outras) foi deveras eficiente.807 

Os agentes ainda relatam uma reunião ocorrida neste mesmo dia 3, entre dois

sindicalistas bancários chamados de “comunistas”, Antônio Bacellar de Couto e Írio

Lima, e o deputado Hércules Correa. Reunidos para a elaboração de um manifesto, édito que entre os três não havia acordo quanto ao dia de realização da planejada greve

geral, pois enquanto Írio Lima previa a realização da paralisação para o dia das eleições

gerais (7 de outubro), os demais teriam afirmado que não era possível esperar tanto. Não

obstante essa controvérsia, segundo a fonte policial, na reunião entre esses líderes

também se definiu uma operação de agitação nas portas de fábrica, agências bancárias,

nos canteiros de obras, áreas de concentração popular (como a Central do Brasil) etc.,

de modo a orientarem os trabalhadores quando a ordem da greve fosse dada. Do mesmo

modo que em relação aos bancários, é clara a subestimação desta operação demobilização generalizada de todas as principais categorias de trabalhadores por parte

dos agentes da repressão.

Todavia, nada se compara à forma como foi relatada a reunião da tarde de 4 de

 julho, na sede da CNTI, que deflagrou a greve em todo o país. Como já vimos, a partir

das notícias relatadas na imprensa sabemos que houve uma controvérsia no Comando

Geral de Greve quanto à duração do movimento. Segundo o  Boletim de 4 de julho,808 

que supostamente reproduz as declarações de todos os oradores, a polêmica sobre a

duração do movimento (24 horas ou por tempo indeterminado?) desembocou numa

improvável reunião onde se discutiu um “plano revolucionário” para a “tomada do

 poder” pelos comunistas no Brasil. Isso mesmo, de acordo com o relato deste boletim o

que se planejava naquela tarde de quarta-feira era uma “Revolução igual à de Fidel

Castro”.

807 Indiscutivelmente o sindicalismo bancário carioca era um dos mais bem organizados naquele período,

com um trabalho cotidiano em suas bases sociais que dava enorme representatividade à sua entidade,evidenciada pela surpreendente taxa de sindicalização de 75% da categoria. MATTOS, Trabalhadores esindicatos no Brasil, op. cit., p.92. Além do mais, como mostra Marcelo Badaró Mattos em  Novos evelhos sindicalismos, entre os bancários (como em outras categorias) a existência destes piquetes não

 poderia ser entendida como indício de uma suposta debilidade da organização sindical bancária. Aocontrário, a chegada de piquetes, formados sempre por bancários de outras agências, era uma garantia desegurança para os trabalhadores que eventualmente enfrentavam-se com gerentes reacionários. Essesgerentes, via de regra, cediam à pressão de uma numerosa aglomeração de trabalhadores na porta dos

 bancos. Cf. MATTOS, Novos e velhos sindicalismos, op. cit., p.184-186.808 “Reunião na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria.” Boletim Reservado, n.114, 4 de

 julho de 1962, p.1-15. Fundo Polícias Políticas. APERJ.

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Pelo menos em suas primeiras linhas o relato policial parece relativamente

factível. De acordo com ele, o comunista Hércules Correa, presidindo a reunião, teria

imediatamente sugerido a realização da greve: “caso não venha um Gabinete

 Nacionalista, deveremos fazer uma greve geral por 24 horas, começando à Zero Hora do

dia 5 do corrente, até o dia 6, pois não queremos Gabinete reacionário e de gorilas”.809

 Essa proposta teria sido logo posta em dúvida pelo líder marítimo do PUA, Waldir

Gomes dos Santos, que propôs que a greve fosse “por tempo indeterminado”, para

 poder impedir a instalação de um gabinete reacionário, “nem que seja preciso agirmos

 pegando em armas para defender os nossos direitos de nacionalistas”. Apoiando

Hércules Correa, o presidente em exercício da CNTI, Dante Pelacani, teria afirmado ser

factível a realização de uma greve de 24 horas, inclusive afirmando haver possibilidade

de participação dos trabalhadores paulistas no movimento nacional. Teria ainda

convocado os trabalhadores a apoiar as posições do presidente da República, deixandoclaro o objetivo político da greve:

“Nós devemos dar todo o apoio ao Presidente João Goulart, para que oPoder não caia nas mãos dos golpistas, que desejam através das baionetassufocar a voz dos trabalhadores, e, por isso nós temos que agir o maisrápido possível. DIRIGENTES! devemos decretar a greve geral, para que

 possamos lutar ombro a ombro para salvar a Nação dos trustesinternacionais e do imperialismo norte-americano e do golpista CORVOLACERDA.”810 

Segundo a narrativa desta fonte, o líder comunista Roberto Morena teria sido o primeiro a mencionar que a luta por um “gabinete nacionalista e democrático”, bandeira

da greve geral, estaria relacionada à realização de uma “revolução igual à de Fidel

Castro”. Em primeiro lugar, dando apoio à proposta de Waldir Gomes dos Santos, teria

afirmado:

“Analisando os fatos, dou inteiro apoio ao camarada Waldir, pois a grevedeverá ser por tempo indeterminado e não somente de 24 horas, porquedentro de 24 horas, não se poderá escolher de modo nenhum o Gabinete

 Nacionalista. É preciso aproveitar a situação para que tenhamos êxito.

 Nós, comunistas, verdadeiros brasileiros, que lutamos pela legalidade na posse do Sr. Jango Goulart, queremos agora, conforme nos prometeu, umGabinete Nacionalista, não permitindo a escolha de nenhum reacionáriogolpista.”811 

809  Idem, ibidem, p.3.810  Idem, ibidem, p.4.811  Idem, ibidem, p.4.

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Ainda num terreno factível, Morena teria afirmado que a trama que estava se armando

no Congresso era a de favorecer os golpistas como Carlos Lacerda, enquanto que os

sindicalistas de direita ligado à ORIT eram nada mais que esteios deste grupo golpista,

se tratando, na verdade, de

“falsos líderes operários que estão à frente dos Sindicatos que se dizemdemocráticos mas... que eu tive a honra de desmascarar em Brasília,quando da escolha do nome do Chanceler San Tiago Dantas, presencieiesse grupo reacionário de pelegos, com faixas e cartazes financiados pelaORIT, pelo Governador desse Estado, comparecendo em frente aoCongresso Nacional, para que não fosse aceito o nome desse grande

 Nacionalista que é o insigne San Thiago Dantas, que tanto fez por nós,em Punta Del Este”812 

E criticando a escolha de Auro de Moura Andrade e do gabinete que este estava

 propondo formar, teria concluído com as seguintes palavras:

“Nós não aceitamos de forma alguma esta manobra que os golpistasquerem nos infligir. Aproveitando a oportunidade para podermos, enfim,lutar nas ruas por um Gabinete Nacionalista com o mesmo ideal de Cuba.Façamos uma revolução igual à de Fidel Castro, encostemos camaradas,os golpistas em ‘El Paredon’.”813 

Seguindo a mesma linha, Osvaldo Pacheco teria dado apoio à proposta de

Waldir Santos, pois, de acordo com esse relato, o comunista sergipano teria concluído

que “24 horas é muito pouco tempo para que nós possamos fazer a revolução nos

moldes da de Fidel Castro”.814 A partir daí o relato vai por um caminho insólito de uma

“grande conspiração esquerdista” que envolveria o governador gaúcho Leonel Brizola,

Francisco Julião e suas Ligas Camponesas, agentes cubanos e russos, Luiz Carlos

Prestes e naturalmente o próprio João Goulart, além, é claro, do movimento

operário/sindical. Pacheco aparece no relato afirmando que o governador gaúcho estaria

“dando todo o apoio financeiro e armamento” para a tal “conspiração esquerdista”. Em

alguns trechos do relato observam-se como seus autores não tiveram limites em sua

imaginação, como este sobre o que teria sido a intervenção do eletricitário Orlando

Maurício Scancetti, o sétimo orador:“Já sabemos como fabricar bombas infalíveis, conforme orientação deum nosso companheiro que se encontra em Moscou, fornecendo toda aorientação para que possamos ter uma revolução no Brasil, nos moldesda de Cuba. Ai então, perguntaremos ao CORVO LACERDA e a sua

812  Idem, ibidem, p.5.813  Idem, ibidem, p.5, grifo nosso.814  Idem, ibidem, p.5.

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 polícia de pelegos, pelas suas invernadas de Olaria e em outros lugares,massacrando operários e matando-os de fome e de pancada.Perguntaremos, ainda, se nós comunistas, com o apoio do povo

 brasileiro, teremos ou não um dia glorioso como o da Tomada daBastilha?”815 

Em síntese, segundo os agentes policiais que produziram esse documento, teria

havido no início de julho de 1962, em pleno centro do Rio de Janeiro, uma reunião

subversiva  pública  na sede da CNTI, onde foi discutida abertamente a “tomada do

 poder” e a “revolução comunista”, reunião esta realizada na frente de jornalistas dos

insuspeitos órgãos da conservadora imprensa carioca. É ocioso dizer que os jornalistas

do  Jornal do Brasil  e do Correio da Manhã , que em suas reportagens relataram em

detalhes a reunião do Comando Geral de Greve, não teriam qualquer motivo para omitir

de seus leitores esta suposta “conspiração revolucionária”. Nem mesmo O Globo  foi

capaz de reproduzir tamanha insanidade. Além do mais, personagens importantes que

 participaram daquela reunião do dia 4, como o presidente da UNE, Aldo Arantes, que

 presidiu a plenária ao lado de Dante Pelacani e Hércules Correa, não é sequer

mencionado. Assim como uma série de fantasias criadas pelo anticomunismo militante

durante os anos Goulart,816 nesta fonte policial, em conclusão, aquela reunião combinou

um planejamento revolucionário.

 Não obstante o notório desdém com o qual os agentes relataram o potencial do

que se estava decidindo naquela reunião, esse mesmo boletim nos traz preciosas

informações sobre o funcionamento do dispositivo sindical. É que após a decisão de

 parar o país à zero hora do dia 5, os dirigentes sindicais realizaram reuniões em suas

entidades com as bases, tendo os agentes anotado o andamento deste processo neste

mesmo  Boletim. Segundo essa fonte, às 18 horas a Federação Nacional dos Marítimos

815  Idem, ibidem, p.8.816 Como, por exemplo, o mito em torno a uma suposta articulação entre a URSS e o governo Goulart em1964, como aparece no já mencionado artigo “A Nação que se salvou a si mesma”, quando comenta osepisódios em torno ao golpe: “Pelo meio da tarde de quarta-feira, 1º de abril, tudo estava terminado, e os

líderes da classe média do Brasil estavam nos microfones saudando o colapso do comunismo. Em todasas janelas do Rio esvoaçavam lençóis e toalhas saudando a vitória, e as ruas de todas as grandes cidadesdo Brasil se encheram de gente alegre e dançando num espírito carnavalesco.

Do Rio Grande do Sul chegou a notícia de que Jango Goulart fugira para o Uruguai.Também escaparam às pressas Brizola, o Embaixador de Cuba e chefes graduados dos vermelhos, quedispararam para as fronteiras dos países vizinhos, pularam depressa dentre de aviões rumo a Cuba ou seesconderam em embaixadas amigas de países da Cortina de Ferro.

 Navios procedentes da Tchecoslováquia, cheio de armas para os revolucionáriosvermelhos, foram assinalados virando rumo a Havana.  E, no Rio, densas nuvens de fumaça subiam dosincineradores da Embaixada Russa, onde grandes quantidades de documentos e papéis foram queimadosàs pressas.” HALL; WHITE, “A Nação que se salvou a si mesma.”, op. cit., p.113, grifo nosso.

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foi palco de uma reunião da qual participaram o presidente do Sindicato dos

Carpinteiros, identificado apenas como Juscelino, juntamente com o “comunista”

Waldir Gomes dos Santos. Esses sindicalistas chegaram à reunião com a notícia de que

o Sindicato dos Taifeiros havia decidido aderir à orientação emanada da reunião da

CNTI. Ainda de acordo com esse relato, o que se seguiu foi a informação de que emtodo o setor marítimo o dispositivo grevista estava em pleno funcionamento, inclusive

“todos os Sindicatos já haviam retirado o dinheiro dos Bancos para fazer face ao

movimento”.

Em seguida, o “comunista” Nelson Pereira de Mendonça teria proposto a

interrupção do tráfego das barcas entre o Rio de Janeiro e Niterói e ilhas, tendo um

elemento identificado como Antônio Carneiro, do Sindicato dos Motoristas, afirmado

que o pessoal da rendição que iria entrar no serviço às 22 horas já estava trabalhando

nesse sentido. Apenas os sindicatos dos Oficiais de Náutica e Maquinistas não haviamexpedido ordem para a paralisação do trabalho.

O relato ainda dá conta de que os piquetes estariam sendo organizados pelo

Sindicato Nacional dos Taifeiros, e que estava sendo articulado um Comando-Geral de

Greve nacional, “distribuído em todo o país, sob a orientação da CNTI, da CONTEC e

do Comitê Nacional, para assuntos sindicais do PCB”.817  Além disso, é dito que

cumprindo “às mesmas determinações comunistas”, o Sindicato dos Bancários marcou

o operativo dos piquetes para se reunirem na manhã do dia 5, às 6 horas.

Ainda sobre a reunião na CNTI, os agentes também relataram as visitas feitas

 pelos agentes do governo Goulart, que foram à entidade sindical levar a mensagem de

desaprovação de Goulart ao movimento paredista, confirmando a versão que está em

todas as fontes já discutidas no capítulo anterior.

O documento ainda nos diz sobre o andamento da paralisação em vários setores,

como no Instituto do Açúcar, que paralisou as Usinas às 21 horas do próprio dia 4, e, no

mesmo dia também, os ferroviários da Estrada de Ferro Leopoldina, às 19h45m, e a 1ª

Secção (Ponte dos Marinheiros) da Cia. Carris Urbanos às 21h22m. O Sindicato dos

Rodoviários da Guanabara também resolveu aderir à greve, paralisando os ônibus a

 partir da zero hora do dia 5. Por sua vez, é dito que o Comando de Greve dos

Ferroviários havia se instalado na região da Baixada Fluminense, mais particularmente

na cidade de Caxias, “na Estrada Rio-Petrópolis, 1.700”. A Estrada de Ferro Central do

817  Idem, ibidem, p.3.

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Brasil iniciou à 00h35m sua adesão ao movimento e o Sindicato da Energia Elétrica

decidiu às 22h55m que iria aderir ao movimento às primeiras horas do dia seguinte.

Também à zero hora do dia 5 partiu a última barca que realizava o trajeto entre a Praça

15 e Niterói, o mesmo ocorrendo com a última embarcação que realizava a viagem no

sentido contrário.Enquanto a UNE enviava telegramas para todos os estados da Federação

orientando as entidades estudantis a colaborarem com os trabalhadores na paralisação,

uma comissão de sindicalistas dirigiu-se à Rádio Mayrink Veiga, de propriedade de

Brizola, às 23 horas da noite do dia 4 para convocar a greve geral. Desta comissão,

segundo a narrativa dos meganhas, fizeram parte Hércules Correa dos Reis, Dante

Pelacani, Waldir Gomes dos Santos, entre outros, que havia utilizado esse que era o

mais importante meio de comunicação de massas daqueles tempos, para, segundo os

 policiais, pregar a “subversão da Ordem Pública”. Ao mesmo tempo em que o locutorsolicitava aos pais que não enviassem seus filhos à escola no dia seguinte, os líderes

grevistas liam o Manifesto do Comando Geral de Greve, explicando as razões da

 paralisação.

O  Boletim  também reproduz o manifesto do Sindicato dos Trabalhadores nas

Indústrias Metalúrgicas do Estado da Guanabara, onde o movimento é apresentado

como resultado também do desejo do presidente João Goulart, o que certamente tem

relação com o prestígio que a figura de Jango tinha entre tal categoria. Afinal, sabiam

estes sindicalistas que o presidente da República estava se opondo à decretação da

greve.818  São reproduzidos também os manifestos dos sindicatos de aeroviários e

aeronautas, bancários, dos trabalhadores em carris urbanos e dos ferroviários da

Leopoldina. Na carta assinada pelos aeronautas e aeroviários podemos destacar dois

 pontos. Em primeiro lugar, tendo como base uma crítica nacionalista à postura do

Congresso de recusar o nome indicado por Jango para presidir o Conselho de Ministros,

afirma-se:

“Nossa greve não é contra nossos empregadores, a quem

apelamos neste momento a se unirem conosco na defesa daindependência da democracia e do progresso da nação.

 Nossa greve, ao nos irmanar aos trabalhadores de todo o Brasil,que nesta hora junto conosco enfrentam já não apenas a mais terrívelcarestia, como também a sonegação dos gêneros alimentícios organizada

 pelos que tramam a implantação de um regime de exceção no país, nos põe lado a lado com todas as forças patriotas, com os estudantes, com a

818  Idem, ibidem, p.6.

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intelectualidade progressista, com a maioria democrática de nossasForças Armadas.”819 

Como se vê, nada mais longe do que uma proposta de “revolução à maneira de Fidel

Castro” do que estes princípios de “colaboração de classes” entre o sindicato e os donos

das empresas aéreas. Ao contrário, o que se revela em tal manifesto destes sindicalistas

é mais o limite do seu programa, que uma postura supostamente “subversiva”. Para

somar-se ao bloco de forças nacionalista, a entidade queria simplesmente contar com a

colaboração do empresariado do setor, que deveria entender que, naquele dia 5 de julho,

“os aviões da aviação comercial brasileira, nas próximas 24 horas, ficamà disposição do Sr. Presidente da República, dos Chefes Militares fiéis àlegalidade democrática, dos parlamentares e outras autoridades civis quedignificam o mandato popular, para servirem em tudo que seja necessárioà formação de um governo nacionalista e democrático.”820 

Como já discutimos no capítulo anterior, essa ação dos sindicatos dos aeronautas e

aeroviários definiu a dinâmica das articulações políticas que se processaram no próprio

dia 5, quando uma comissão de sindicalistas representando o Comando-Geral de Greve,

 partiu pela manhã do Rio de Janeiro para se encontrar com Goulart em Brasília.

Enquanto isso, nos outros manifestos sindicais reproduzidos no  Boletim  a

ideologia nacionalista aparecia segundo a formulação adotada pelo PCB desde o

Manifesto de Março de 1958: o “governo nacionalista e democrático”. O Sindicato dos

Trabalhadores em Carris Urbanos, através de uma nota de seu secretário-geral, MaxTorres Pimentel, buscou relacionar o tipo de manobra política perpetrada pelas forças

conservadoras (que no Congresso Nacional visavam bloquear todas as iniciativas de

Goulart) ao golpe contra o governo de Arturo Frondrizzi na Argentina, em 29 de março

daquele mesmo ano.

“Solidários com toda a classe operária de nosso país e as demaiscorrentes progressistas civis e militares, no sentido de defender osinteresses nacionais, pela constituição de um Gabinete nacionalista, ostrabalhadores em carris, no exato momento em que as franquias e as

liberdades sindicais estão ameaçadas, sente-se no dever de conclamar aclasse, para que esta se mantenha unida e vigilante,  para que nãosejamos amordaçados conforme nossos irmãos argentinos, e para tantoeste sindicato, cumprindo o que foi deliberado pela CNTI, DECRETAGREVE GERAL NOS SERVIÇOS DE BONDES, dentro do esquema jáacordado para à zero horas do dia 5 de julho de 1962.”821 

819  Idem, ibidem, p.8.820  Idem, ibidem, p.9.821  Idem, ibidem, p.9-10, grifos nossos.

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Enquanto o Comando de Greve dos ferroviários da Leopoldina fez divulgar um

manifesto assinado por seu presidente Demisthóclides Batista, o “Batistinha”, em que

este explicitamente afirmava que o objetivo da greve era

“fortalecer a posição legalista e democrática manifestada publicamente pela S. Excia. o Senhor Presidente da República, no sentido de formaçãode um Gabinete progressista, nacionalista e democrático, capaz de porfim as vergonhosas filas a que estão obrigadas as donas de casa e oscompanheiros operários, à procura de gêneros de primeiranecessidade.”822 

Segundo a formulação destes protagonistas do movimento, tratou-se de uma greve para

apoiar Jango em sua luta contra o Congresso e o “golpe branco” parlamentarista.

 No dia 5 de julho não há nenhum registro de um desses Boletins, certamente

 porque os meganhas estiveram muito ocupados em prender grevistas, conter a explosão popular e rever suas próprias noções sobre a capacidade da esquerda sindical de realizar

a greve. Já no  Boletim Reservado  de 9 de julho relata-se uma importante reunião

realizada no dia 6, na sede do Sindicato dos Bancários, ocasião em que, de acordo com

essa fonte, afluíram à entidade sindical por volta de 100 bancários. 823 O propósito da

reunião era prestar à categoria “informações sobre os acontecimentos do dia 5 em

Brasília”, ou seja, de como se procederam às negociações entre a comissão do

Comando-Geral de Greve e o presidente João Goulart.

Presidindo os trabalhos estavam o presidente do Sindicato, Antônio Pereira, o

tesoureiro Montezuma Góes, o secretário Fernando Rodrigues, o presidente licenciado,

Aloízio Palhano Pedreira Ferreira e o presidente da Federação dos Bancários da

Guanabara, Rio de Janeiro e Espírito Santo, Luiz Viegas da Mota Lima, sendo que

apenas Pereira, Palhano e Luiz Viegas são descritos como “comunistas”.824 Como não

 poderia ser diferente, o balanço da paralisação política é tomado positivamente por

todos os oradores, sendo evidenciado que, não obstante o encerramento da parede, os

822  Idem, ibidem, p.14.823  Boletim Reservado, n.115, 9 de julho de 1962, p.1-15. Fundo Polícias Políticas, APERJ.824 E realmente, com a exceção de Palhano, tais personagens eram pertencentes aos quadros do PCB e,reconhecidamente, o sindicalismo bancário era hegemonizado pelos comunistas. Em relação a AloízioPalhano, na verdade um companheiro de viagem dos comunistas antes do golpe, no exílio em Cubadecide aderir às propostas guerrilheiras, tornando-se o delegado brasileiro no encontro da OrganizaçãoLatino Americana de Solidariedade (OLAS), realizado em Havana, em 1967. Posteriormente, se juntaria àVanguarda Popular Revolucionária (VPR), sendo tragado pela violência da ditadura militar, assassinadono DOI-CODI de São Paulo, em 21 de maio de 1971. Tamanha foi a importância desse dirigente nahistoria do Sindicato dos Bancários, que a Biblioteca da entidade leva o seu nome.

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 bancários deveriam continuar mobilizados, pois, segundo os “meganhas”, Antonio

Pereira havia deixado claro que “a luta não parou nem com a greve, nem tão pouco com

a vitória da mencionada greve”.825 E intervindo no debate que tomaria a agenda política

do país neste segundo semestre de 1962, Pereira enfatizou que “aos trabalhadores não

interessava se o Brasil ficará no Parlamentarismo ou Presidencialismo. O que interessa éum Governo Democrata-Nacionalista”, posição adotada na ocasião pelo PCB.826 

Os confrontos travados entre os ativistas sindicais e a polícia política, são um

dos principais temas tocados nas falas dos oradores, assim como as já mencionadas

distorções do jornal O Globo. Aloízio Palhano abordou a repressão policial em diversos

momentos de sua fala, quando, por exemplo, narrou o já referido episódio envolvendo

Cainã Costa Pereira, funcionário da Federação dos Bancários, que, descrito como

“magrinho”, teria enfrentado o Governador “no peito”.827  Falando da “interpretação”

dos jornais conservadores sobre os eventos relacionados à greve, e do própriogovernador da Guanabara, que acusavam os sindicalistas de terem aprendido o

“processo do terror” com os “russos” e “cubanos”, o sindicalista teria respondido:

“Nós bancários não precisamos aprender com ninguém como fazer grevee outras coisas mais, não precisamos porque já somos mestres no assuntoe vejam como nós somos também de coragem, vejam o exemplo doCanaan (sic), da Federação dos Bancários, magrinho como é, enfrentou oGovernador no peito.”828 

Concluindo o comentário, afirmou: “Para outra greve nós todos devemos ser Cainã,

 para enfrentarmos de fato o Governador, que só é valente com os capangas e tiras de

meia tigela.”829 

Ainda conforme essa fonte, o sindicalista teria feito críticas também ao caráter

seletivo das leis existentes no Brasil, que “existem para uns e outros não”, referindo-se

ao fato do próprio governador Lacerda cometer arbitrariedades, ficando livre de sanções

 penais. De acordo com o relato policial, Palhano teria dito que

“Era preciso acabar com tais leis; os trabalhadores devem lutar para queas leis beneficiem a todos; Leis que punam a todos; Leis para acabar com

os multi-milionários; Leis para a divisão das terras para os camponeses.Disse que não estava pregando a mudança de Governo, que não estava

 pregando o socialismo, o que desejava é que os trabalhadores no dia 7 deoutubro vindouro soubessem votar , votando principalmente nos

825  Idem, ibidem, p.1-2.826 Discutimos isso no terceiro capítulo de nossa dissertação, MELO, O plebiscito de 1963, op. cit.827  Boletim Reservado, n.115, op. cit., p.3-4.828  Idem, ibidem, p.4.829  Idem, ibidem, p.4.

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nacionalistas; que saibam constituir uma Câmara Popular, pois somentedesta forma o Brasil se libertará, definitivamente, do imperialismoamericano e de um Congresso podre que nada mais irá fazer em

 benefício do povo.”830 

Por fim, teria afirmado que a data daquela greve geral iria ficar “marcada na vida dos

 bancários, pois pela primeira vez, participaram de uma greve política”, denotando que a

classe estava mais politizada e que poderia dar outros passos no mesmo sentido.831 

De especial interesse é o que teria sido o relato do líder Luiz Viegas da Motta

Lima sobre o encontro da comissão do CGG com Goulart em Brasília, naquele dia 5. De

acordo com essa fonte, ante a insistência dos emissários de Jango para que a greve geral

fosse sustada, o CGG propôs o encontro entre estes e o presidente Goulart para que

fosse discutido o porquê da impossibilidade de interromper o movimento. Teria ficado

acertado que seria disponibilizado um avião para transportar essa comitiva à capitalfederal, já às 7 horas da manhã do dia 5, o que certamente indica que, a certa altura dos

acontecimentos, os próprios emissários de Jango já haviam se convencido da

inevitabilidade da paralisação nacional.

Como vimos, a própria aviação comercial brasileira encontrava-se em greve, e

quando os sindicalistas chegaram no Aeroporto do Galeão encontrava-se disponível

uma aeronave em cujo interior já estavam presentes alguns assessores do presidente

Goulart, a esposa do deputado Antônio Balbino (PSD-BA), um jornalista não

identificado e o radialista César de Alencar. O Comando de greve dos própriosaeronautas teria decidido que o avião só decolaria com a ordem do CGG. Por sua vez,

este não permitiu que César de Alencar e o jornalista viajassem para Brasília, enquanto

aos outros, por serem “pessoas ligadas a um Presidente que tinha o espírito

nacionalista”, foi permitido continuar na aeronave.832 

Ao chegar em Brasília, a comissão sindical deparou-se com muitos deputados e

senadores que estavam ávidos para deixar a capital da República, e alguns deles teriam

 pedido para pegar “carona” na aeronave utilizada pelo CGG para regressarem a seus

estados. Luiz Viegas da Mota Lima teria afirmado que a comissão sindical tinhasinalizado que só decidiria sobre essa “carona” após a reunião com Goulart. Ainda

segundo essa narrativa, no aeroporto de Brasília alguns destes parlamentares estavam

exaltados, como o senador Padre Calazans (UDN-SP) – como já referido, apelidado pela

830  Idem, ibidem, p.3, grifos nossos.831  Idem, ibidem, p.3.832  Idem, ibidem, p.5-6.

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esquerda de “Lacerda do Senado”. Este teria afirmado que havia chegado a Brasília em

um avião que havia furado a greve em São Paulo – e de fato, como vimos, em São

Paulo a greve foi um fiasco – e que iria retornar para a capital paulista, passando pela

Guanabara, no que foi aparteado pela comissão sindical que determinou que nenhuma

aeronave deveria levantar voo naquele dia, e que só levariam os parlamentares quehaviam apoiado San Thiago Dantas e se posicionado favoravelmente aos projetos de

interesses dos trabalhadores.833 

Tratando do encontro entre Goulart e o CGG, este relato informa que em

 primeiro lugar o presidente da República parabenizou os sindicalistas pelo “êxito da

greve”, enquanto estes teriam afirmado: “Presidente, pode contar muito mais com a

classe trabalhadora que estará unida em torno de V. Excia. e não admitirá um Ministério

que não seja democrático-nacionalista.” Goulart teria afirmado que este também era o

seu ponto de vista, e em seguida teria se estabelecido um diálogo menos protocolarentre os presentes.

As dificuldades em compor o novo gabinete teriam sido os pontos tratados

inicialmente pelo presidente Jango, que teria esclarecido como o senador Auro Moura

Andrade tinha manobrado para esvaziar totalmente seus poderes, tornando-o refém de

um Conselho de Ministros conservador e que bloquearia todas as suas iniciativas de

caráter reformista. Além do mais, a própria composição das pastas militares apresentada

 por Moura Andrade apontava no sentido de aprofundamento do “golpe

 parlamentarista”, como era o caso do Almirante Bardi, que havia assumido

 posicionamento golpista na crise de agosto do ano anterior, e era sugerido para ocupar a

 pasta da Marinha. De uma forma um tanto quanto irônica, o presidente da República

teria afirmado ao senador paulista que “se me apresentam um nome destes para o

Ministério da Marinha, eu apresento para o Ministério do Trabalho o Sr. Clodsmith

Riani”.834 Goulart teria dito que na composição do novo ministério não abria mão das

 pastas da Viação, Relações Exteriores, Minas e Energias, e as pastas militares (Guerra,

Marinha e Aeronáutica), ao mesmo tempo em que se comprometia em dar continuidade

à política externa independente.

Interrompendo a conferência, Leonel Brizola teria ligado para o Palácio do

Planalto e falado ao telefone com o líder geral do PUA, o portuário de Santos, Oswaldo

Pacheco. Na conversa, o governador gaúcho teria pedido o apoio dos sindicalistas ao

833  Idem, ibidem, p.6-7.834  Idem, ibidem, p.7-8.

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movimento de retorno ao sistema presidencialista, no que Pacheco teria afirmado que

levaria tal mensagem às entidades sindicais, porém o momento era de apoiar as ações de

Jango. Brizola também teria mencionado que o Rio Grande do Sul não havia entrado em

greve porque as senhas não chegaram a tempo, embora saibamos, como já foi referido,

que o próprio governador buscou persuadir os sindicalistas gaúchos a não realizarem agreve no dia seguinte.

Após esses entendimentos com Goulart, a comissão do CGG teria se

comprometido em retornar à Guanabara para determinar a suspensão da greve. Em

seguida ao informe de Luiz Viegas, o plenário demonstrou satisfação com os resultados

alcançados, ao mesmo tempo em que estavam revoltados com as atitudes de Carlos

Lacerda durante a greve, no que alguns teriam sugerido uma intervenção na Guanabara,

exigindo que o general Osvino Alves tomasse atitudes nesse sentido.

Sobre esse tema, o  Boletim Reservado  reproduz um manifesto divulgado peloSindicato dos Bancários no próprio dia 5, cuja razão era a crítica ao “deplorável

comportamento do Governador, com relação aos bancários grevistas”.835 

“Desce o Governador da Guanabara a provocações de rua! Tomados damaior indignação, levamos ao conhecimento dos trabalhadores e do povocarioca o deplorável comportamento do Governador, com relação aos

 bancários grevistas.Desde às 8 hs. da manhã de hoje, o Sr. Governador,

acompanhado de policiais armados de metralhadoras de mão e deelementos da DPPS, disfarçados em populares, começou a percorrer os

diversos bancos do centro da cidade, arrancando, ele mesmo, cartazesexplicativos da já vitoriosa greve geral dos trabalhadores brasileiros. Não se contentando com a primeira “blitz”, desceu o Sr.

Governador da indispensável dignidade do seu cargo e passou a efetuar, pessoalmente, prisões arbitrárias e ilegais, com objetivo nítido de provocar os bancários e desvirtuar o legítimo sentido patriótico de nossagreve.”836 

 No manifesto, as atitudes de Lacerda são explicadas em razão dos vínculos

mantidos pelo governador e dos interesses dos banqueiros, exportadores de café (que

regularmente tinham suas dívidas públicas perdoadas por ele) e os sonegadores de

gêneros de primeira necessidade, sendo este último ponto relacionado à crise de

abastecimento já comentada. Além disso, os sindicalistas convocaram os bancários a

manterem-se tranquilos e mobilizados, não só para efetivarem a greve, mas também

 para prepararem-se para a campanha salarial daquele ano (que deveria ocorrer em

835  Idem, ibidem, p.14.836  Idem, ibidem, p.14-15.

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setembro), ocasião em que, novamente, deveriam enfrentar-se com as manobras

repressivas de Lacerda e de sua polícia política.

Por fim, este  Boletim também reproduz um manifesto do Comando Geral de

Greve lançado após o fim da paralisação, onde a greve geral é afirmada como a primeira

da história do movimento sindical brasileiro. A análise desse documento mostra como o próprio movimento pensou sua ação e como esteve empenhado em, imediatamente,

construir uma memória do episódio, ponto que discutimos no capítulo anterior. Nesse

sentido, outro ponto importante ressaltado tem a ver com a própria coincidência

histórica do movimento ter se realizado num dia, 5 de julho, que carregava o

simbolismo do movimento tenentista, interpretado como um legado eminentemente

nacionalista. Afinal, como vimos a partir do destaque dado à data pelos jornais da

esquerda, esse era o dia em que se comemoravam os levantes tenentistas de 1922 e

1924, além de ter sido também a data do histórico comício da Aliança NacionalLibertadora no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, quando Luís Carlos Prestes foi

aclamado como presidente de honra da organização.837  O 5 de julho, nessa leitura,

 parecia associar-se às tradições nacionalistas e da própria esquerda, particularmente em

sua principal expressão presente naquela quadra histórica, o comunismo.

Se isso certamente foi importante para a construção desta autoimagem das

esquerdas, ao mesmo tempo era relembrado como munição para as direitas, todas em

 pânico com essa cada vez mais intensa participação dos trabalhadores na cena política

 brasileira. Ao mesmo tempo, pelo próprio caráter da ação, o manifesto busca também

representar a própria classe trabalhadora brasileira como “uma força organizada e

independente”,

“disposta a lutar com todas as camadas sociais do nosso povo para tornarefetivas as reformas de base, consolidar e ampliar as liberdadesdemocráticas e sindicais, defender e ampliar a política externa que vemsendo executada.”838 

Além disso, o documento também denota a posição que a cúpula do sindicalismo

de esquerda possuía sobre o Parlamentarismo naquela ocasião, afirmando o que seria a posição de que, mais importante que a forma de governo, interessava “um governo que

seja capaz de realizar as reformas”. Deveria esse governo tomar medidas imediatas para

combater a sonegação de gêneros alimentícios. O Comando ainda orientava as

837 Aclamado pelo então jovem militante comunista Carlos Lacerda, como é bem conhecido.838  Idem, ibidem, p.14-15.

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organizações sindicais a realizarem reuniões de balanço com suas diretorias e bases, de

modo a poderem examinar sua atuação na greve, visando corrigir as falhas e continuar a

mobilização para as batalhas que se aproximavam, “de forma a podermos, com presteza

e eficiência, voltar a cumprir o patriótico papel que nos está destinado, caso as

condições assim o determinem”.839

 Por fim, no  Boletim de 11 de julho, são apresentadas informações sobre o

desenvolvimento e os problemas da greve geral no estado de São Paulo. 840 Através de

uma série de notas, lê-se um apanhado das principais questões que estiveram por trás da

“calma” situação em São Paulo, com exceção da Baixada Santista, “sacudida pela onda

de greves ilegais resultantes da crise política”.841 Interessantes são as alegações para a

atitude tomada pelo governador Carvalho Pinto, que ao contrário de outros colegas, não

emitiria nenhuma declaração de apoio ao presidente Goulart. De acordo com a anotação

 policial, face ao clima de relativa tranqüilidade registrada naquela unidade da federação,o governador paulista, em discurso na cidade de Mogi Mirim, quando fazia campanha

eleitoral, assim se pronunciou:

“Neste momento em que o povo paulista acaba de dar este edificanteexemplo de ordem e compreensão da gravidade do momento políticonacional, é chegado o momento de se planificar e construir, segundo osanseios da grande pátria que já assiste ao derramamento de sangue denossos coirmãos. O povo já pagou demais aos demagogos. Não quer maisfalas aéreas e discursos vazios: a nação exige que se planifique e se façao que o povo reclama”.842 

Todavia, a despeito de toda essa confiança no “espírito do povo paulista”, diante da

crise que culminou na renúncia do senador paulista Moura Andrade do cargo de

Presidente do Conselho de Ministros, é dito que

“todas as Unidades militares subordinadas ao II Exército, e bem assim aForça Pública, a Guarda Civil e os órgãos da Secretaria de SegurançaPública de São Paulo se encontra[vam] em rigorosa prontidão, a despeitode reinar calma e ordem na capital do Estado e na área do TriânguloIndustrial do ‘ABC’.”843 

839  Idem, ibidem, p.15.840  “Notas diversas de São Paulo.”  Boletim Reservado, n.117, de 11 de julho de 1962, p.1-10. FundoPolícias Políticas, APERJ.841  Idem, ibidem, p.1.842  Idem, ibidem, p.1-2.843  Idem, ibidem, p.4.

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Entre os elementos explicativos para o flagrante fracasso da greve geral na área da

moderna indústria automobilística paulista, é certamente prudente arrolar o dispositivo

da “aliança empresarial-policial” assinalada pela historiografia.844 

Todavia, nem sempre tal dispositivo seria eficiente em impedir o

desencadeamento de um movimento como aquele, como é possível aferir no mesmodocumento quando trata também da efetividade daquela greve na Baixada Santista.

Menciona-se que a Associação Comercial, Industrial e Agrícola de São Vicente havia

enviado ofício ao governador Carvalho Pinto, no qual a entidade empresarial

denunciava a “acintosa e solerte participação de elementos comunistas, que açulavam os

 populares contra a propriedade particular, deixando em pânico o comércio local, sem

qualquer garantia”. Ainda de acordo com este  Boletim, esse ofício também fazia a

seguinte reclamação: “Procuramos, em vão, uma autoridade, um soldado ao menos, para

garantir nossa integridade física e moral”, denotando como o esquema repressivomobilizado pelo governo paulista não havia sido eficiente naquela região.845 Em outra

nota reproduzida neste mesmo  Boletim Reservado, é dito que a greve geral em Santos

levou à paralisação os 65 mil trabalhadores filiados aos 56 sindicatos da Baixada

Santista (precisamente o número de sindicatos e filiados do Fórum Sindical de Debates).

6.4 A Polícia Política depois da greve

Aquela quase ingênua subestimação da capacidade do sindicalismo bancário em

 paralisar seu ramo de atividade na Guanabara, tal como a subestimação dos sindicatos

dirigidos pela esquerda de uma forma geral, seria agora substituída por uma

 preocupação cada vez maior por parte das polícias políticas. Isso fica patente através da

leitura da documentação produzida pelo órgão posteriormente à greve de julho, como é

 possível perceber nas supracitadas notas sobre São Paulo. Nestas, também se assinalou

a grande capacidade do líder Dante Pelacani em produzir a “agitação”, apresentado

como possuidor de grande prestígio nos meios sindicais de São Paulo e de Santos,

“tendo tido marcante atuação na preparação e desenrolar das grandes greves levadas a

efeito nos meios obreiros de São Paulo”.846 Além disso, é mencionada uma reportagem

do jornal O Estado de São Paulo onde foi destacada a ida do sindicalista à Alemanha

Federal para participar do congresso internacional da CIOSL e disputar a direção da

844 NEGRO, Linhas de montagem, op. cit., p.44 e 107. PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no‘vulcão do inferno’, op. cit., p.147 e 244.845 “Notas diversas de São Paulo.”, op. cit., p.2.846  Idem, ibidem, p.3.

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direção latino-americana da entidade, ocasião em que teria feito uma exposição sobre a

greve geral de 5 de julho.847 

A partir de então, era necessário “levar a sério” as ameaças de greve política, e

agora a retórica anticomunista se somava à certeza de que tais “elementos vermelhos”

 possuíam capacidade de paralisar diversas cidades do país ao mesmo tempo.Além dos já mencionados  Boletins, na documentação avulsa disponível no

APERJ é possível acompanhar essa importante “tomada de consciência”. Um exemplo

significativo pode ser encontrado em documento classificado como “Confidencial”,

datado de 27 de julho de 1962.848  O autor do texto informa à cúpula da Segurança

Pública da Guanabara que diversas reuniões entre líderes do Comando Geral de Greve

estavam sendo realizadas no Rio e em São Paulo. O propósito de tais encontros seria a

montagem de um novo dispositivo grevista para funcionar assim que os “líderes

comunistas” desejassem.Obviamente, em tais reuniões os balanços da greve de julho serviriam para

acumular as experiências da greve nas cidades onde essa triunfou, como também

discutir as razões do fracasso em São Paulo e Minas Gerais. E segundo o autor deste

relato policial, os líderes haviam chegado à conclusão de que

“não se pode confiar no “espírito de luta” das massas trabalhadoras,tornando-se necessário organizar dispositivos capazes de coagir ostrabalhadores a abandonar o trabalho ou, simplesmente, de não permitirque eles cheguem às fábricas, escritórios etc.”849 

 Naturalmente a ideia de que os líderes grevistas não confiavam no “espírito de luta dos

trabalhadores” era uma forma dos autores destas linhas desqualificar o trabalho político

dos sindicatos ligados ao Comando Geral Sindical850  junto às suas bases. Ainda de

acordo com o relato policial, a experiência do sucesso da greve no Rio, e do fracasso na

cidade de São Paulo, permitiu aos líderes sindicais concluir que o mais importante

deveria ser assegurar a “paralisação forçada dos transportes”, para “forçar a greve

geral”. Assim, teriam decidido que a iniciativa para garantir a greve era a organização

dos piquetes, inclusive com a presença de elementos de categorias diversas, cuja tarefacentral seria a “paralisação dos transportes”.

847  Como já vimos, a delegação brasileira acabou abandonando o Congresso da CIOSL em razão daquestão cubana.848 “Assunto: GREVE GERAL”. Fundo Polícia Política, setor Geral, Caixa 1065, dossiê n.4, notação 88.APERJ.849  Idem, ibidem, p.1, sublinhado no original.850 Como, segundo esse documento, àquela altura o Comando era denominado.

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A forma como é apresentado o novo plano grevista do Comando era mais

uma vez o de uma “grande conspiração vermelha” à maneira d’ O   Assalto ao

Parlamento, onde se afirma que a participação de estudantes ligados à UNE no tal

dispositivo dos piquetes incluía também a tarefa destes estudantes de “criar um clima de

coação e terror, capaz de alarmar a população e, assim, afastá-la dos locais detrabalho”.851  Nesse esquema conspiratório teria destaque também a ação do

sindicalismo bancário, através da “guerra psicológica”, “campanha de boatos”:

“Aqui se dá um lugar de destaque à campanha de boatos, visando a forçaro fechamento dos bancos não só pela ação dos piquetes, mas

 principalmente pela psicológica, capaz de fazer pairar sobre eles aameaça irresistível da corrida [aos bancos]. Sabe-se que essa questão foilongamente discutida numa reunião de dirigentes sindicais realizada emSão Paulo, na semana passada. Nessa reunião concluiu-se que, lançandoum clima de intranquilidade e ameaças sobre a rede bancária, isso é

suficiente para provocar uma reação de pânico em todos os setores da produção, obrigando-os a parar e desorganizando-se. Trata-se de umesquema infernal para minar a confiança pública, colocando o povo, comisso, à mercê dos grupos de ação.”852 

Deste modo, ficavam os ativistas bancários com a tarefa de organizar esse esquema de

modo que o pânico provocasse a própria “paralisação da indústria”. À paralisação dos

transportes e ao “esquema terrorista” de estudantes e bancários se somaria uma

campanha de “boatos” em relação a problemas de abastecimento de gêneros, de forma a

que o movimento para estocar levasse a uma crise de abastecimento. E nisso a própria

 paralisação dos transportes contribuiria para impedir a renovação dos estoques. Por fim,

elementos em posições chave seriam responsáveis pela interrupção dos abastecimentos

de combustíveis e de energia elétrica.

O relato ainda dá conta de que nessas sucessivas reuniões no Rio e em São Paulo

existia a participação de sindicalistas de diversos outros estados da federação, como Rio

Grande do Sul, Minas, Pernambuco e Bahia. Além do que, a informação de que o

 planejamento final e a execução do esquema grevista havia ficado sob a

responsabilidade do Comando Geral Sindical, que era resultante da “ampliação” doCGG, e que contava como “última peça” da engrenagem da “maquina grevista”, a UNE,

descrita como “controlada pelo Partido Comunista Brasileiro”.

Como já tivemos oportunidade de expor, o grau de fantasia dos autores deste

tipo de documentação policial não tem limites. E embora algumas das informações

851  Idem, ibidem, p.2, sublinhado no original.852  Idem, ibidem, p.3-4, sublinhado no original.

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contidas neste relato das reuniões de balanço do Comando tenham traços de

verossimilhança, é necessário apontar alguns detalhes que nos parecem contaminados

 pela visão ideológica destes agentes. Afinal, os setores nos quais está baseado o

esquema grevista descrito pelos “meganhas” são justamente aqueles que efetivamente se

destacaram na greve geral do início de julho: ferroviários, portuários, marítimos e bancários. O movimento estudantil, por sua vez, estava altamente politizado, tendo

realizado a famosa greve do 1/3 em junho e tendo atuado, através da UNE (cujo setor

majoritário na direção era da recém-fundada Ação Popular, e não o PCB), na direção da

 paralisação de 5 de julho.

Por outro lado, como já apontamos, o que talvez seja mais significativo seja a

mudança de atitude no comportamento do aparelho de repressão, pois embora o teor

deste relato seja permeado pelos preconceitos anti-esquerdistas e sua fantasia sediciosa,

seu propósito fundamentalmente são as autoridades superiores do estado da Guanabara,obviamente o próprio governador Carlos Lacerda. Tratava-se agora de organizar um

dispositivo policial anti-sindical, que impedisse o desencadeamento de uma nova greve

geral política. Até que ponto esse novo esquema seria eficiente, foi o que mostrou a

greve geral de setembro daquele ano, como veremos a seguir.

6.5 A greve geral de setembro e o dispositivo sindical-militar

Os eventos relacionados à greve geral decretada na crise de 14-15 de setembro de

1962 revelam o funcionamento de alguns dos esquemas pelos quais o movimento

sindical estava articulado. Certamente escapou à percepção dos policiais cariocas que

um dos fatores que havia mobilizado os trabalhadores para a greve foi simpatia

despertada pelas declarações do general Osvino Alves, quando denunciou em fins de

maio um esquema golpista para implantar uma “ditadura de extrema direita” no Brasil.

Mesmo tendo ido pedir ao Comando Geral de Greve que sustasse a paralisação, foi o

general nacionalista e Machado Lopes (interino da pasta da Guerra) que negociaram

com as autoridades do governo da Guanabara a libertação dos sindicalistas presos na

ocasião daquela greve. E mesmo em alguns outros pontos do país, subalternos militares

colaboraram com comandos locais de greve. No capítulo anterior, já vimos que na greve

de setembro ficaria mais explícito o funcionamento daquilo que o brasilianista Erickson

denominou de “dispositivo sindical-militar”, conformado entre o CGT e a oficialidade

militar nacionalista.

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Em uma etapa preliminar desta pesquisa nos pareceu exagerada a idéia desse

dispositivo como elemento determinante para o sucesso daquelas greves políticas. 853 

Afinal, embora o general Osvino realmente fosse tratado como um aliado pelo CGT,

outros importantes comando militares estavam em mãos de generais reacionários, como

Arthur da Costa e Silva à frente do IV Exército (sediado no Recife), e logicamente nãoapoiariam qualquer greve. As razões para o êxito do movimento deveriam ser buscadas

na própria capacidade organizativa do movimento da esquerda sindical (ponto que

reafirmamos), mas acabamos por negligenciar o fato daquele ter se configurado como

um movimento feito para, fundamentalmente, apoiar Goulart. Através dessa

documentação policial, no que tange pelo menos à greve de setembro, esse dispositivo

sindical-militar teve certamente um papel central naquela greve. Em uma comunicação

de nove páginas endereçada ao Chefe de Polícia, escrita pelo diretor da Divisão de

Polícia Política e Social, o já mencionado delegado Cecil Macedo Borer, há um relatoimpressionante sobre o choque com as tropas do I Exército em favor do CGT em

setembro de 1962.854 

De acordo com este documento, após ter decretado greve a partir do meio deste

dia, a direção do CGT reuniu-se na noite daquele dia 14 na sede da CNTI, centro do

Rio. Por volta das 22 horas, patrulhas chefiadas por um sujeito identificado como

Detetive Simas detiveram todo o comando de greve presente na sede da confederação.

Entre os presos estavam os “cabeças do movimento”, conforme descreve o documento,

dos quais destacam-se os trabalhistas Benedito Cerqueira e Dante Pelacani, e os

comunistas Osvaldo Pacheco, Roberto Morena, Felipe Ramos Rodrigues e Rafael

Martinelli, apenas para citar os mais expressivos. Além destes, também foram presas

diversas outras lideranças importantes, desmantelando temporariamente a direção

nacional da greve.855 A única exceção foi o líder operário comunista Hércules Correia,

853 Aproveitamos para retificar essas impressões preliminares presentes em MELO, Demian Bezerra de.“A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa.” Revista

 História & Luta de Classes, Marechal Rondon (PR), v.10, p.36-43, 2010.854 Documento sem título, Fundo Polícia Política, setor Guanabara, Dossiê 4, Caixa 1082. APERJ.855 Conforme o documento, os outros presos foram: Zacarias Fernandes da Silva, Bibliotecário da CNTI;Fausto Reis, Assistente Social do Sindicato dos Foguistas da Marinha Mercante; Manuel de Azevedo,Secretário do Sindicato dos Condutores de Veículos Rodoviários e Anexos do Rio de Janeiro; NiltonEduardo de Oliveira, Presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias Gráficas; JúlioMarques da Silva, 2º Secretário da CNTI; Augusto Ferreira da Silva, Suplente do Sindicato dosTrabalhadores nas Indústrias de Trigo, Milho, Mandioca e Massas Alimentícias e Biscoitos naGuanabara; Nelson Pereira Mendonça, membro do Conselho Fiscal da Federação Nacional dosTrabalhadores em Transportes Marítimos e Fluviais; Valdemar Monteiro da Silva, do Sindicato dosConferentes Navais; Geraldo Rodrigues da Silva Jr., membro da Comissão Permanente de OrganizaçõesSindicais, da qual era presidente o Deputado Hércules Correia; Sebastião Pereira Leite, do Sindicato dos

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que era Deputado pelo PTB na Assembleia da Guanabara e possuía imunidade

 parlamentar.856 Conforme avaliou um ressentido Borer,

“A prisão desses elementos constituiria passo decisivo para reduzir agreve a proporções mínimas, pois sem eles, responsáveis que eram pelacoordenação da parede do Estado e do País, ficariam os grevistas

desarvorados, incapazes de tomar qualquer decisão de profundidade.”857

 

Todavia, conforme narra o autor, tão logo os sindicalistas haviam sido

acomodados nos carros da patrulha policial naquela fatídica noite de sexta-feira, eis que

surgiria um capitão da Polícia do I Exército, acompanhado de um cabo e de um soldado.

De acordo com esse relato, seguiu-se então uma sucessão de acontecimentos que trazem

à tona a profundidade das contradições daquele regime no início dos anos sessenta:

“Já estavam todos recolhidos às viaturas da Polícia para serem trazidos àD.P.S., quando surgiu o Capitão Hermes da Fonseca, da Polícia do I

Exército, que se fazia acompanhar de um cabo e um soldado. Essesmilitares assestaram suas armas automáticas contra as patrulhas,impedindo seu deslocamento e exigindo a libertação dos detidos. O

 policial a isso se recusou, argumentando que só cumpriria ordememanada da autoridade competente, no caso a Chefia de Polícia ou D.P.S.Logo depois chegava ao local um choque armado da Polícia do Exército,sob o comando do mesmo Te[enente] C[oron]el Donato Machado, e o

 próprio Secretário do Trabalho, Sr. Pinheiro Neto, que insistiram nalibertação dos grevistas. Mediante ordem da D.P.S., após entendimentoshavidos com a Chefia de Polícia, foi autorizado o relaxamento dadetenção. Nesse momento, a patrulha do I Exército, sob aclamação dosgrevistas, assestou suas armas contra os policiais e ordenou que os

 próprios grevistas abrissem as portas das viaturas e dessem liberdade aseus companheiros.”858 

Ou seja, não só tropas militares enfrentaram-se diretamente com o aparelho policial da

Guanabara, como acabaram por humilhar os agentes da polícia política carioca, ao

determinar que os próprios grevistas libertassem seus companheiros.

Mestres e Contra Mestres na Indústria da Fiação e Tecelagem da Guanabara; Jorge de Castro, do mesmo

Sindicato; Ernesto Costa Fonseca, do Sindicato Nacional dos Aeronautas; José Pereira de Santana,Secretário Geral do Sindicato dos Mestres e Contra Mestres na Indústria da Fiação e Tecelagem daGuanabara; João Elias Barbosa, Secretário do Sindicato Nacional dos Contra-Mestres, Moços Remadoresem Transportes Marítimos; Carlos Sá Pereira, Presidente do Sindicato do Petróleo do Pará, Amazonas eMaranhão; Valdemar Monteiro da Silva, Presidente do Sindicato Nacional dos Carpinteiros Navais daMarinha Mercante; e José Alves Campos, conselheiro do Sindicato Nacional dos Trabalhadores nasIndústrias Gráficas. Idem, ibidem, p.3-4.856 Presumidamente comunicou-se com outras lideranças políticas e se dirigiu ao Comando do I Exército,localizado no bairro de São Cristóvão.857  Idem, ibidem, p.4.858  Idem, ibidem, p.4.

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 Não obstante o imprevisto descrito acima, Borer assegurou aos seus superiores

hierárquicos que esses “atos ilegais” e “de violência” do I Exército não impediram a

repressão à greve geral. Segundo o mesmo, foram feitas ainda duzentas detenções de

outros líderes sindicais, “ativistas e agitadores” que promoviam reuniões com as bases

operárias nos sindicatos de alfaiates, marceneiros, taifeiros, eletricistas e dos frios. Os“elementos de menor expressão foram logo soltos”, e sabe-se que mesmo alguns

daqueles libertados pelas tropas do I Exército, como Rafael Martinelli, acabariam presos

de novo, ficando alguns dias no xilindró, ao lado do também ferroviário comunista

Demisthóclides Batista, o “Batistinha”.

Além do mais, patrulhas da polícia estavam nas ruas para conter a ação dos

 piquetes desde o meio dia do dia 14, quando se iniciou oficialmente a greve geral. As

áreas a receber maior atenção foram o setor industrial, do Centro à Zona Norte,

especialmente o subúrbio. Regiões de grande concentração popular como a Muda (naTijuca), Praça da Bandeira, Central do Brasil, Estação Barão de Mauá, Cinelândia,

Vigário Geral, Penha, Madureira, Rua Leandro Martins, Rua da Proclamação, Ana

 Nery, Avenida das Bandeiras, Largo do Machado e Praia de Botafogo, ficaram sob a

guarda das viaturas.

A greve geral foi decretada a partir do meio dia de 14 de setembro, uma sexta-

feira, mas o movimento foi estendido ao sábado, quando, ao contrário do que se pode

 pensar, havia muitas categorias que cumpriam jornadas, como os bancários,

industriários e trabalhadores no transporte público. Um exemplo do que significou essa

greve no sábado pode ser apreendida nesse mesmo relato de Cecil Borer, que conta que

a partir das 5 horas da manhã do dia 15 foi providenciado policiamento para

salvaguardar os estabelecimentos fabris e garantir o “trabalho livre”, conforme se

referiu à “escravidão assalariada” aos sábados. Deste modo, de acordo com essa fonte,

as plantas da Standar Eletric, White Martins, Elevadores Schindler, General Eletric,

Companhia de Cigarros Souza Cruz, Fábrica Corcovado e Moinho Fluminense tiveram

a cobertura policial para que o mais-valor fosse produzido “livremente” no dia em que

até o “Criador” descansou. Explicitava-se, como bem caracterizou Antonio Luigi

 Negro, a natureza da “aliança empresarial-policial”.859 

859 NEGRO, Linhas de montagem, op. cit., p.44 e 107. PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no‘vulcão do inferno’, op. cit., p.147 e 244. 

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6.6 Em 1964, as greves gerais de 1962 

A história dessas greves gerais de 1962, conforme já tivemos a oportunidade de

observar no capítulo anterior, foi sendo apropriada por diferentes forças do espectro

 político ao longo desses anos críticos, numa disputa pela memória. No contexto

imediatamente anterior ao golpe de 1964, como vimos, estas greves voltariam aaparecer, quando em uma das muitas vezes onde o CGT buscou agitar as massas

trabalhadoras com a palavra de ordem da “greve geral contra o golpe”. Também

voltariam a ocupar novamente as páginas dos Boletins Reservados.

Ao contrário do que alguns teimam em defender, as esquerdas tinham plena

consciência das conspirações levadas a cabo por governadores como Carlos Lacerda,

 jornais como O Globo e O Estado de São Paulo, órgãos como o IBAD etc., com vistas a

derrubar o governo Goulart. É claro que isso não é considerado na historiografia

revisionista, como na biografia de Goulart escrita por Jorge Ferreira, que nos diz o

seguinte: “As esquerdas pareciam não ouvir as ameaças feitas de maneira ostensiva

 pelos conspiradores. Decididamente, elas não acreditavam na possibilidade de um golpe

de direita, mas, sim, do seu maior aliado, o presidente da República.”860 No que nossa

tese visa modestamente contribuir para o debate historiográfico, acreditamos estar claro

que isso não é exato e que essa parte importante das esquerdas, o movimento operário e

sindical, desde junho de 1962 chamou a palavra de ordem da “greve geral” contra “o

golpe da direita”. A questão mesmo é que talvez a confiança da esquerda em que

Goulart fosse capaz de deter o golpe é que fosse exagerada.

Enquanto isso, os golpistas do complexo IPES-IBAD – de acordo com larga

tradição latino-americana – divulgavam pela mídia que era o próprio Jango que

 planejava “um golpe de Estado”; ou que estava sendo “manipulado pelos comunistas”,

tornando-se mero “jogete” nas mãos de “vermelhos” que visavam “submeter um país ao

 jugo soviético”, conforme “denunciou” o histérico chefe nacional da UDN, Bilac Pinto,

em janeiro de 1964.861 

É inegável que dentro da própria esquerda existiam aqueles que desconfiavam de

intenções chamadas “continuístas” de Jango, um possível “golpe” consumado através da

reforma da Constituição para permitir sua reeleição etc., mas nunca se provou nada

860 FERREIRA, João Goulart , op. cit., p.440.861  “Declarações de Bilac Pinto sobre o perigo de guerra revolucionária.” In. FICO, Carlos.  Além dogolpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.280-281.

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nesse sentido em relação ao ex-presidente trabalhista.862 São conhecidas as declarações

de Prestes quando Darci Ribeiro o informou sobre o golpe, mas o fato concreto é que

Goulart não possuía nem mesmo um esquema militar capaz de sustentar o seu governo,

quanto mais um alegado “dispositivo golpista”.

Integrado a um dos esquemas golpistas “realmente existente”, capitaneado pelogovernador Carlos Lacerda, o DOPS da Guanabara registrou as seguintes linhas em um

de seus Boletins Reservados de março de 1964:

“GOLPE DO SR. JOÃO GOULART

O deputado federal da bancada do PTB, Rio G. do Sul, OmarGrafulha, telefonou dia 24.1.64, de Brasília para sua esposa, cunhada deoficial da FAB (QG 5), informando ser ideia fixa do sr. João Goulart daro golpe nas instituições democráticas com o fechamento do Congresso,mas que a bancada do PTB era contra. Esse informe cruza com omanifesto da bancada do PTB dado à publicidade nos jornais do dia 26

de janeiro. Informes de outras fontes, indicam que a época será na primeira quinzena de abril. “O plano” prevê desencadeamento de greves políticas tipo 1962 para a obtenção do plebiscito, com pressão da massacontra o Congresso. O esquema militar do golpe tem como base de apoioo III Exército. Está sendo montado pelo General Assis Brasil, o qual dizter nesse Exército 60 oficiais em postos chaves. Continuamdesenvolvendo-se no III Exército os esquemas de montagem de apoio.Todas as transferências e classificações de oficiais nesse Exército sãofeitas por ordem direta do Gal. Assis Brasil. Não acreditamos no númerode 60 oficiais, acima citado. Foram identificados até o presente, mais oumenos 25, sendo a maioria das unidades de Porto Alegre e SãoLeopoldo.”863 

Como se lê, ao apresentar o que seria a “prova” de que Goulart planejava um “golpe”, o

autor, que diz está baseando suas “informações” em uma intercepção de um telefonema

de um correligionário de Jango, conjurou a memória das greves gerais de 1962 como

 parte deste “esquema”.

862 Ainda assim, há alguns anos tornou-se lugar comum entre os historiadores profissionais encapar taltese, como pode ser lido em trecho do mesmo livro citado na nota anterior,. “Na verdade, [no início de1964] o presidente dava sinais dúbios de suas verdadeiras intenções, havendo  forte suspeita de que eleestaria urdindo um golpe que lhe permitiria um segundo mandato, proibido pela Constituição.” FICO,

 Além do golpe, op. cit., p.17, grifo nosso. Em trabalho posterior, o mesmo autor buscou se afastar desterevisionismo histórico, quando escreveu: “A identificação de suas atitudes como causas do golpe de 64seria a base da tese do ‘contragolpe preventivo’, isto é, a suposição de que Goulart pretendia perpetuar-seno poder para além do prazo constitucional e que, por isso, precavidamente, foi deposto antes que elemesmo desse um golpe (a tese também é utilizada em relação aos comunistas). Trata-se de especulaçãoinconsistente não apenas porque é anacrônica: embora alguns episódios indiquem a radicalização das

 posições (especialmente o pedido malogrado de decretação do estado de sítio e o episódio do ‘ultimato’de Leonel Brizola ao Congresso Nacional), não há nenhuma evidência empírica de que Goulart planejasseum golpe e todos sabemos que um golpe era planejado contra ele.” FICO, O Grande Irmão, op. cit., p.73.863  Boletim Reservado, n.40, 3 de março de 1964, grifos nossos. Fundo Polícias Políticas. Caixa 481.APERJ.

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Conclusão 

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Fazer greves de caráter político não constituía uma grande novidade na trajetória

da classe trabalhadora, e muitas com esse sentido haviam pipocado no país na crise de

agosto de 1961. Além daquelas, ainda fortes na memória da classe trabalhadora de

então, grandes e massivas greves acabaram sempre por assumir conotação política na

história republicana brasileira, mesmo quando calcadas numa pauta “econômica”. Aantológica Greve Geral de 1917 também não representou um desafio político à

República oligárquica então vigente no Brasil? Todavia, em 5 de julho de 1962 se tratou

de um movimento organizado nacionalmente, com um comando unificado, uma pauta

nacional única, ainda que as diversas categorias possuíssem suas próprias demandas.

Em perspectiva, foi um movimento inédito.

Seria essa capacidade política tão somente o resultado das boas relações com o

 poder da República? Certamente, quando comparado ao padrão histórico, nunca a classe

trabalhadora havia visto seus representantes frequentando com tanta desenvoltura salõese palácios como durante o governo Goulart. Entretanto, as lideranças da esquerda

sindical não foram ungidas a posições de comando das entidades sindicais pelo Estado,

ao contrário dos pelegos. As “amaldiçoadas” entidades sindicais horizontais, chamadas

“paralelas”, burlando justamente o espírito corporativista da legislação vigente, foram

fundamentais para que aquela “operação greve” fosse desencadeada. Como essa tese

discutiu, as intersindicais estaduais, assim como aquelas já com caráter nacional – como

foi o caso do PUA – estruturaram fóruns e assembleias permanentes que, mantendo as

 bases mobilizadas, puderam fazer chegar a ordem da greve pelo país. Porém, não é

recomendável, por outro lado, idealizá-las – pois ao mesmo tempo, acabavam, por um

motivo ou por outro (por exemplo, o acesso aos recursos financeiros advindos do

imposto sindical), acomodando-se à estrutura sindical oficial.

 Nas tendências historiográficas discutidas nos dois primeiros capítulos desta

tese, objetivamos demonstrar que, sem distanciar-se da apologética em torno a Era

Vargas, o trabalhismo e seus herdeiros, não é possível compreender a posição assumida

 por Goulart e seus próceres políticos diante do desencadeamento da greve política.

Mesmo recorrendo a seu apoio, o movimento, como demonstramos, recebeu oposição

de Goulart, ainda que esta oposição – ao contrário do já mencionado padrão histórico –

não tivesse desembocado em atitudes repressivas. Ao contrário do que afirmam as

visões que retratam Goulart como um ingênuo, o presidente da República sabia que a

greve poderia beneficiá-lo – como de fato ocorreu. Optou por convocar o comando

sindical para Brasília, em operação até então inédita na história do país.

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Por que então se perdeu no tempo a história dessa primeira greve geral nacional

da classe trabalhadora brasileira? Afinal, quem lembra nesses termos daquele 5 de

 julho? É claro que nunca um evento como este pode disputar o mesmo lugar no

“Panteón das grandes crises nacionais”, como o são o suicídio de Vargas, ou o próprio

Golpe de 1964. Embora decretada para apoiar as posições políticas do presidente JoãoGoulart em sua tenaz luta contra o Congresso (e pelo poder), a direção política do

movimento sindical brasileiro mostrou-se relativamente autônoma ao decretar aquela

greve geral, o que certamente expressava a posição política assumida pelo PCB e o resto

do movimento nacional-reformista, mas não só. Sem a radicalização da espiral grevista

que se afirmava desde o fim da década anterior, uma grande politização da sociedade

em torno à campanha pelas reformas estruturais, e certo “espírito do tempo” que marcou

aquela década, um movimento nacional de greve para pressionar os poderes da

República seria implausível.864  Nos anos 1960 a visibilidade da luta operária nos grandes centros urbanos

nacionais, em palcos da luta política como eram (e são) as cidades do Rio de Janeiro,

São Paulo, Recife e Porto Alegre, aproximava seus protestos do cotidiano e,

 principalmente, do processo político nacional. Havia, antes de mais nada, no contexto

internacional, um certo “espírito de época”, marcado pelas lutas de libertação nacional,

 pela Revolução Cubana, pela crença rara de que as pessoas comuns podem mudar o

rumo das coisas; em suma, podem “fazer a História”, para usar uma imagem comum

daquela época.

Ao mesmo tempo, a própria forma da política na “época do populismo” em certo

sentido se dividia por um lado entre aqueles que apoiavam, e/ou queriam

instrumentalizar essas lutas, e por outro, os que imputavam-lhe a condição de um

“delito criminal”, tendência, aliás, de longa duração em nossa história nacional. 1964

veio pra acabar com essa forma da política, ou pelo menos impôs a última alternativa,

com todos os poderes de que dispunha o Estado brasileiro. No fim das contas, o protesto

operário voltou a eclodir nos anos finais da ditadura e na transição para a democracia

nos anos 1980. Mas quando o protesto operário voltou à cena, essas histórias das lutas

no pré-1964, como nas greves discutidas aqui na tese, haviam ficado para trás.

864  Nestes tempos que correm, inúmeras greves gerais sacodem os governos no Sul da Europa,assinalando o início do novo século – deixando constrangidas muitas respeitáveis vozes acadêmicas dovelho continente, que ainda ontem haviam decretado o fim destes movimentos baseados nessas “ideias doséculo XIX”.

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 Nesse intervalo, como já é um truísmo, a emergência do protesto operário

afirmou sua identidade como Novo Sindicalismo. Na ideia de “Novo” carregava-se uma

representação social calcada na noção de uma cisão, que não era só com a  pelegada 

imposta pela ditadura na máquina sindical, mas também em oposição “a tudo que havia

antes de 1964”, como definiu o então sindicalista Luis Inácio Lula da Silva emconhecida entrevista.865  Nessa dialética entre memória e esquecimento, alguns

depoimentos de velhos dirigentes sindicais nos indicam algumas explicações do porquê

destas greves terem se perdido no tempo.

Em conversa conosco, o ex-líder ferroviário Rafael Martinelli se recordou das

greves políticas de 1962, mas não de muitos detalhes, nem mesmo de sua prisão por

alguns dias durante a greve de setembro. Foi possível perceber que frente a uma intensa

atividade militante que conheceu diversas fases, os episódios por nós destacados nesta

tese não mereciam um destacado lugar em sua memória. Tendo iniciado suas atividadescomo líder de sua categoria desde os anos 1940, se tornou o mais importante líder

ferroviário do país, capaz de paralisar o sistema ferroviário nacional, como aconteceu na

“Greve da Paridade” em 1960, e na aqui estudada greve geral de julho de 1962. Após o

golpe de 1964, Martinelli se encontraria com a alternativa da luta armada ao lado de

Carlos Marighella e sua ALN, tornando-se fundador e dirigente da organização até

1970, fundador do PT em 1980, e hoje, numa intensa militância como coordenador do

Fórum dos ex-Presos Políticos e Perseguidos de São Paulo.

O mesmo fenômeno encontramos no rico depoimento do comandante Paulo de

Mello Bastos, que embora em sua belíssima obra memorialística A caixa preta do golpe

de 64 anote a “primeira greve política do país”,866 em entrevista realizada por nós em

 janeiro de 2011 não assinalou qualquer informação extraordinária sobre sua participação

naquelas greves nacionais. A paralisação da aviação comercial foi qualquer coisa de

significativo para o êxito político daquelas greves gerais de julho e setembro de 1962,

destacada em todos os relatos colhidos na imprensa. Mello Bastos tem uma razão para

deixar aqueles episódios um pouco de lado em suas recordações: é que em meados de

1963, o CGT ameaçaria mais uma vez decretar greve geral em razão da sua demissão da

VARIG, no dia do seu aniversário (25 de maio).

865  Lula: entrevistas e discursos. São Paulo: NÚCLEO AMPLIADO DE PROFESSORES DO PT (SÃOPAULO), 1981. Para uma crítica a essa mitologia histórica, MATTOS, Novos e velhos sindicalismos, op.cit.866 MELLO BASTOS, A caixa preta do golpe de 64, op. cit., p.126.

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O comandante, como presidente da Federação dos Trabalhadores em

Transportes Aéreos e membro da direção da correspondente Confederação Nacional dos

Trabalhadores em Transportes Marítimos, Fluviais e Aéreos, não poderia ser demitido,

em virtude da sua imunidade sindical, o que, após negociações entre o próprio governo

federal e o presidente da empresa, Ruben Martin Berta, contribuiu para suareadmissão.867 A greve política, marcada para o dia 5 de junho de 1963, acabaria sendo

suspensa, tendo o CGT desta vez atendido o apelo do presidente Goulart.868  Mello

Bastos esteve no centro dos acontecimentos políticos no início de 1964, tendo feito

 parte do restrito núcleo de sindicalistas do CGT – ao lado dos chamados secretários

 políticos: Hércules Correa, Osvaldo Pacheco, Clodsmidt Riani, Dante Pelacani – que

articulavam diretamente a frente política com Goulart, situação que Weffort denominou

de “intimidade palaciana”.

“Houve realmente essa greve, mas não foi assim... Foi apenas um gesto,decretado, publicado..., era uma coisa política. Praticamente foi umagreve burocrática! Quer dizer, foi decretada, todo mundo concordou, acoisa funcionou mais ou menos na direção que nós queríamos, mas agreve ficou só no papel.”869 

Esse intrigante depoimento, em flagrante contraste com alguns dos resultados

desta tese, serve para colocar certo limite à saudável revalorização das lutas dos

trabalhadores no período pré-1964. Afinal, de que vale esse resgate se acabássemos por

 produzir uma outra apologética? Não reconhecer também as limitações daquela

experiência histórica da classe trabalhadora não faria mais do que criar uma visão

mistificadora cujo resultado seria debilitar a compreensão do próprio golpe de 1964.

De forma bem diferente, contudo, o ex-líder bancário Luiz Viegas da Motta

Lima, também parte da direção do CGT, lembrou detalhes daquelas greves políticas, em

especial a de julho de 1962.870  Referiu-se às condições políticas que permitiram ao

movimento sindical de esquerda realizar aquela greve geral, como a intensa politização

da sociedade, a representatividade dos sindicatos e a espiral grevista. Enfatizou que só

com a pauta política, San Tiago Dantas, Presidencialismo etc., os sindicalistas nãoteriam conseguido êxito naqueles movimentos; era necessário apresentar pautas que

tocassem as condições objetivas da vida da classe trabalhadora para que esta

867 Apesar de readmitido, nunca mais pilotaria uma aeronave da VARIG.868  Idem, ibidem, p.146-152.869 Entrevista nossa com Paulo de Mello Bastos, em 18 de janeiro de 2011.870 Entrevista nossa com Luiz Viegas da Motta Lima em 27 de janeiro de 2012.

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encampasse movimentos políticos como foram aquelas greves. Além de pautas

específicas das categorias, a demanda pela Lei do 13º Salário unificava o interesse da

classe.

Lembrou ainda aquele detalhe pitoresco da greve de julho, que era o poder do

seu comando em determinar qual aeronave poderia levantar vôo no dia da greve, poisvivenciou pessoalmente os acontecimentos, como parte da comissão que se dirigiu a

Brasília. Aliás, indicou que o comandante Mello-Bastos havia feito parte desta mesma

comitiva, informação que não pudemos confirmar em nenhuma fonte, nem no

depoimento do ex-líder sindical, como já vimos.

“Era uma tripulação escolhida a dedo, pelo Comando Geral deGreve. Nós fomos num avião daqueles turbo hélice, naquela época um

 baita avião, com apenas quatro pessoas dentro e a tripulação. Chegamoslá e o avião ficou esperando. Nós fomos atendidos pelo Jango.

Conversamos com ele. Detalhes dessa conversa..., o que é que se tratou láetc., foram os seguintes: a preocupação maior do Jango era que a grevenão fosse estendida e não houvesse uma radicalização, em função doêxito da greve. Por que ele tinha receio, ainda haveria a eleição para onovo primeiro-ministro.”871 

Com muita descontração, lembrou de como os membros do piquete de greve

enfrentaram o governador Lacerda, dentre os quais destacou o memorável episódio

envolvendo Cainã, como discutimos no capítulo sexto.

Quanto à nossa contribuição no debate historiográfico, a já bastante debilitada

noção de sindicalismo populista  recebeu neste trabalho mais uma crítica. Afinal, caso

aqueles sindicalistas de esquerda fossem apenas burocratas pouco capazes de mobilizar

suas bases para uma ação eminentemente política, aquela greve geral de julho de 1962

teria sido um enorme fracasso.

Em relação à historiografia sobre o Governo João Goulart e o Golpe de 1964,

acreditamos que nossa contribuição tenha sido jogar luz sobre um momento

fundamental, quando Jango se lançava na luta contra o parlamentarismo, no primeiro

ano de seu governo. Ao contrário de uma “oportunidade perdida”, como teima em

afirmar a historiografia revisionista discutida no primeiro capítulo desta tese, a

instauração do sistema de gabinete foi não só um “golpe branco” (como se alegou

àquela altura), mas também um celeiro para a perpetração de outros “golpes

 parlamentares”, como se viu na crise ministerial de junho/julho de 1962 – quando

871  Idem.

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setores, que em 1964 seriam vitoriosos, já se movimentavam para consumar a

esterilização do bloco nacional-reformista liderado pelo Presidente da República,

impondo-lhe um gabinete reacionário. Em 1962, a atuação do movimento operário

sindical foi decisiva para que Goulart bloqueasse tal iniciativa e empreendesse um passo

decisivo na liquidação do parlamentarismo. Como tentamos demonstrar, na ocasiãodaquela crise ministerial, portanto, já se esboçava um golpe, que, contudo, não foi

efetivado em função da relação de forças sociais favoráveis a Goulart, expressa tanto no

 posicionamento de militares nacionalistas, quanto na greve geral em tela.

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Última Hora – Curitiba – junho/julho de 1962

Última Hora – Porto Alegre – junho/julho de 1962

 Diário de Notícias – Porto Alegre – junho/julho de 1962

Correio do Povo – Porto Alegre – junho/julho de 1962

 A Hora – Recife – 1961-1962

Folha Bancária – Recife – junho/julho de 1962

Última Hora – Recife – 1962

 Diário de Pernambuco – Recife – junho/julho de 1962

O Povo – Fortaleza – junho/julho de 1962

Correio do Ceará – Fortaleza – junho/julho de 1962

 A Tarde – Salvador – junho/julho de 1962

Província do Pará – Belém – junho/julho de 1962

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Arquivo Nacional (RJ)

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro

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Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da Universidade Estadual Paulista

(UNESP)

Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação

Getúlio Vargas (CPDOC/FGV-RJ)

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Anexos

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Anexo 1

Divisão de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ.

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Anexo 2

Divisão de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ.

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Anexo 3

Fundo Polícias Políticas (APERJ).

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Anexo 4