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7/26/2019 Crise orgânica e ação política da classe trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de 1962)
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I
Universidade Federal Fluminense (UFF)Centro de Estudos Gerais (CEG)Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)Programa de Pós Graduação em História (PPGH)
Crise orgânica e ação política da classe trabalhadorabrasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de1962)
Autor: Demian Bezerra de Melo
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Badaró Mattos
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal Fluminense, como requisito parcial para o grau de Doutor.Linha de pesquisa: Poder e Sociedade
Niterói, março de 2013
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II
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
M528 Melo, Demian Bezerra de.Crise orgânica e ação política da classe trabalhadora brasileira: a
primeira greve geral nacional (5 de julho de 1962) / Demian Bezerra deMelo. – 2013.
325 f. ; il.
Orientador: Marcelo Badaró Mattos.Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2013.
Bibliografia: f. 308-316.
1. Crise política. 2. Greve geral, 1962. 3. Goulart, João, 1918-1976.4. Historiografia. I. Mattos, Marcelo Badaró. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.
CDD 331.892981
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III
DEMIAN BEZERRA DE MELO
Crise orgânica e ação política da classe trabalhadorabrasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de1962)
Banca examinadora
_____________________________________
Prof. Dr. Marcelo Badaró Mattos (orientador)
Universidade Federal Fluminense (UFF)
______________________________________
Prof.a Dr.a Virgínia Fontes (arguidora)
Universidade Federal Fluminense (UFF)
_____________________________________
Prof. Dr. Renato Lemos (arguidor)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
_____________________________________
Prof. Dr. Eurelino Teixeira Coelho Neto (arguidor)
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
____________________________________Prof. Dr. Ruy Braga (arguidor)
Universidade de São Paulo (USP)
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IV
Resumo:
Em 5 de julho de 1962, os trabalhadores brasileiros realizaram uma greve geral,
intervindo decisivamente na crise política nacional, quando o Congresso Nacional
estava prestes a aprofundar o esvaziamento dos poderes do presidente João Goulart, a
partir da imposição de um gabinete parlamentarista hostil. Hegemonizado por umaaliança entre comunistas e trabalhistas de esquerda, o movimento sindical brasileiro
fazia uma aparição contundente na cena política, mesmo porque, embora decretada para
apoiar as posições políticas de Goulart, a greve também encaminhou uma pauta de
reivindicações econômicas, entre as quais a aprovação da Lei do 13º Salário. Partindo
de considerações críticas quanto a certas tendências da historiografia recente, um dos
objetivos deste trabalho é também intervir no debate historiográfico sobre a crise dos
anos sessenta. Nesse sentido, tomando emprestado o conceito de revisionismo, este
estudo pretende-se como uma contribuição crítica.
Palavras-chaves: crise, greve geral, João Goulart, anos 1960, historiografia,
revisionismo
Abstract:
On July 5, 1962, the Brazilian workers perceived a general strike, intervening decisively
in the national political crisis, when the National Congress was about to deepen theemptying of the powers of President João Goulart, from the imposition of a hostile
parliamentary ministerial council. Hegemonized by an alliance between communists
and leftist labor, the Brazilian trade union movement made a forceful appearance on the
political scene, even because, though enacted to support the political positions of
Goulart, the strike also submitted a list of economic demands, including the approval of
the Law of 13th salary. Starting from critical considerations regarding certain trends of
recent historiography, one of the goals of this work is also intervene in the
historiographical debate on the crisis of the 1960s. Accordingly, borrowing the conceptof revisionism, this study is intended as a critical contribution.
Keywords: crisis, strike, João Goulart, historiography, revisionism
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V
Índice ....................................................................................................................V
Apresentação .......................................................................................................1
Capítulo 1 – Revisão e revisionismo histórico............................................8
1.1
– Nota teórica: o conceito de revisionismo ..............................................9
1.2
– Revisão e revisionismo: o golpe de 1964 e a ditadura.........................28
1.2.1 – O golpe e a ditadura do grande capital .......... ............. ......... .......30
1.2.2 – O revisionismo sobre o golpe e a ditadura..................................36
Capítulo 2 – A evolução dos estudos sobre o trabalho no
Brasil e a controvérsia do populismo .........................................................50 2.1 – As interpretações “sociológicas” e “políticas” sobre a
trajetória da classe trabalhadora brasileira entre 1930-1964 ....................................51
2.2 – As críticas ao conceito de populismo: revisão e revisionismo............ ..72
2.3
– A “volta” do populismo .................. ........... ....... ............ .......... .......... ..86
2.4
– A greve geral e o debate sobre o populismo ............... ............ ...... .......93
Capítulo 3 – A natureza da crise dos anos sessenta ..............................97
3.1 – Nota teórica: Da crise .........................................................................99
3.2 – Dimensões da crise dos anos 1960 no Brasil .....................................119
3.2.1 – Crise econômica....................................................................127
3.2.2 – Determinantes políticos da crise orgânica..............................138
3.3 – O rompimento dos de baixo ..............................................................146
Capítulo 4 – A greve geral de 5 de julho de 1962:
intervenção dos trabalhadores na crise política ...................................156
4.1 – A queda do Gabinete Tancredo Neves e a articulação da
greve política.............................................................................................157
4.2 – A montagem do dispositivo grevista .................................................164
4.3 – Auro Moura Andrade .......................................................................168
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VI
4.4 – A direita se movimenta para o aprofundamento do “golpe
branco” ..... ............ ........... ......... .............. ........... ....... ............ ........... ......... 172
4.5 – No meio do caminho havia uma greve... ...........................................175
4.6 – “Movimento inédito na História do País: Brasil em Greve” .......... ....179
4.7 – A greve geral no Brasil ............ .......... .......... ............. ........... ........ ....187
Capítulo 5 – O êxito da greve e seu impacto na conjuntura ..............213
5.1 – Desdobramentos imediatos ...............................................................214
5.2 – A greve geral no processo político brasileiro ....................................218
5.3 – Esquerda e direita no espelho da greve .............................................234
5.4 – CIA, Departamento de Estado e a greve geral de julho .......... ........... 257
5.5 – A greve no IPM 709 .........................................................................260
Capítulo 6 – A greve como “caso de polícia” 264
6.1 – Sobre a documentação policial .........................................................269
6.2 – Estratégias da repressão ................. .......... ........ ........... ............ ......... 271
6.3 – A greve de julho no Boletim reservado .............................................273
6.4 – A Polícia Política depois da greve ....................................................295
6.5 – A greve geral de setembro na documentação policial: uma
comparação importante .........................................................................................298
6.6 – Em 1964, as greves gerais de 1962 ...................................................302
Conclusão .......................................................................................................304
Fontes ...................................................................................................................... 311
Bibliografia ............................................................................................................ 313
Anexos .................................................................................................................... 324
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1
Apresentação
Em 2004, quando se completavam quarenta anos do golpe de 1964, fomos
ouvintes de diversos eventos acadêmicos relacionados à efeméride. Em razão de nossa
participação desde os primeiros anos da graduação no Laboratório de Estudos sobre os
Militares na Política (LEMP), da UFRJ, já conhecíamos parte da literatura produzida
pelas ciências sociais brasileiras sobre variadas temáticas ligadas ao golpe e à ditadura.
Em razão disto, por sugestão do coordenador do LEMP e orientador do trabalho, Prof.
Dr. Renato Lemos, resolvemos discutir as novas representações historiográficas sobre o
golpe em monografia de graduação.
Também por sugestão deste último, construímos um projeto para uma
dissertação de mestrado que lançasse uma luz sobre a primeira metade do governo
Goulart, o intervalo entre sua posse em 7 de setembro de 1961 e a recuperação dos seus
poderes, com o plebiscito sobre o parlamentarismo, em 6 de janeiro de 1963. O
resultado foi a dissertação de mestrado, O plebiscito de 1963: inflexão de forças na
crise orgânica dos anos sessenta, defendida no PPGH-UFF, em março de 2009. O
sentido de nossas pesquisas poderia ter evoluído para um estudo do período posterior,
mas o que nos chamou muita atenção foi a importância da participação do movimento
sindical de esquerda nas manobras feitas por Goulart em vistas ao desgaste do
parlamentarismo. As greves políticas de julho e setembro de 1962, desencadeadas em
momentos chave do conflito do presidente da República com o Legislativo federal,
foram objeto de algumas páginas de capítulos de nossa dissertação. Pudemos conferir
também a existência de uma importante literatura sobre o movimento sindical no pré-
64, tendo estas greves figurado também em diversas obras fundamentais para o
entendimento do golpe de 1964.
Destas greves nos chamou muita atenção a primeira, ocorrida em 5 de julho,
pois, numa dimensão mais abrangente da história do movimento operário, foi a primeira
greve geral nacional ocorrida no Brasil. É claro que tal movimento não poderá ser
comparado ao significado quase mítico que tiveram as greves gerais da década de 1910,especialmente a de julho de 1917 na capital paulista, nem mesmo às massivas greves
operárias do final dos anos 1970, que abalaram alguns dos pilares do regime ditatorial.
Mas também não havia sido simplesmente um movimento articulado nos “corredores do
Ministério do Trabalho”, como certa literatura acadêmica calcada na noção de
sindicalismo populista apresentou.
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As greves gerais do início da República, como a carioca de 1903, ou mesmo a já
mencionada greve geral de 1917 em São Paulo, foram movimentos gerais da classe
trabalhadora, mas que possuíram uma abrangência em cidades ou regiões de uma
mesma unidade da federação. E embora o legendário anarquista Edgar Leuenroth tenha
apresentado, em seu singelo texto sobre a vida de outro velho militante socialista, agreve geral de outubro de 1919 em São Paulo como um movimento “com articulação
em todos os centros industrializados do País”,1 alguns décadas se passariam até que a
classe trabalhadora brasileira engendrasse um movimento grevista realmente nacional.
A primeira greve nacional teria ocorrido apenas em janeiro de 1946, com o movimento
dos bancários. Todavia, nesse caso foi um movimento de apenas uma categoria, e não
uma paralisação geral da classe trabalhadora brasileira. Além desta, a Greve da Paridade
em 1960, que parou marítimos, portuários e ferroviários de todo o país e dobrou a
intransigência do governo Juscelino Kubitschek (1956-1960), também foi ummovimento nacional. Entretanto, concentrado nessas categorias, não se configurou num
movimento geral da classe.
Nas lutas políticas ocorridas pela posse de João Goulart na crise de
agosto/setembro de 1961, pipocaram greves políticas de trabalhadores em diversos
pontos do país. A participação da classe trabalhadora na resistência ao golpe dos
ministros militares não se deu só através destas ações grevistas, pois, como ensinam as
novas pesquisas sobre as lutas operárias no Rio Grande do Sul, antes do governador
Brizola convocar a luta pela posse de Jango, sindicatos gaúchos já estavam fazendo esse
chamado.2 Entretanto, também nesse episódio, não se teve uma greve nacional pela
posse de Jango, mas greves políticas em todo o país, sem a articulação de um
movimento nacional, com um comando nacional.
Ao contrário desses movimentos precedentes, em 5 de julho de 1962 ocorreu um
movimento nacional dos trabalhadores brasileiros, uma greve geral que paralisou quase
todo o país e envolveu diversas categorias de trabalhadores, em empresas privadas e
públicas, setores de serviço e transporte público, inclusive o aéreo. Dos movimentos
deste gênero que pontuaram o governo João Goulart (1961-1964), o mais significativo e
1 LEUENROTH, Edgar. “Dados biográficos do autor”. DIAS, Everardo. História das lutas sociais no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1977, p.12.2 Chamo atenção para duas dissertações de historiadores do movimento operário gaúcho que embasameste ponto de vista, e na qual as greves gerais aqui mencionadas têm o merecido destaque. SANTOS, JoãoMarcelo Pereira dos. Herdeiros de Sísifo. Ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos1958 a 1963. Dissertação de Mestrado em História. Campinas, Unicamp, 2002. JAKOBY, Marcos André.
A organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a 1964.Dissertação de mestrado em História. UFF, 2008.
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exitoso foi este primeiro de julho de 1962. Primeiro porque, como buscamos apresentar
no terceiro capítulo desta tese, a greve parou todas as regiões do Brasil, as principais
cidades do país, com exceção da Grande São Paulo, incluindo o ABC. No entanto,
mesmo nesse estado a Baixada Santista ficou totalmente paralisada. Na Guanabara e no
Estado do Rio de Janeiro foi total, geral no Nordeste, especialmente nos estados doCeará e de Pernambuco, sendo também geral no Rio Grande do Sul, onde a greve
atrasou seu início e começou no dia seguinte.
Estudar essa greve também nos fez adentrar a controvérsia em torno da teoria do
populismo, especialmente aquela formulada pelo cientista político Francisco Weffort, e
a forma como este apresenta essas greves políticas como uma síndrome das debilidades
do movimento operário brasileiro no período imediatamente anterior ao golpe de
Estado. Queremos provar aqui que se trata justamente do contrário, tendo o golpe de
1964 sido feito muito mais em razão das virtudes do movimento sindical no início dosanos sessenta que de suas (certamente não poucas) debilidades. A greve de julho de
1962 é aqui estudada como exemplo da capacidade do sindicalismo de esquerda, que se
expressou não apenas nestas greves políticas, mas também (e principalmente) na espiral
grevista que acompanhou o governo Goulart, em representar a base da classe
trabalhadora. Desse modo, foi necessário começar esta tese enfrentando a construção do
campo da história do trabalho no Brasil para acompanhar como a teoria do populismo,
que foi o paradigma hegemônico nos estudos até os anos oitenta, não ajudou a
esclarecer a natureza do tipo de movimento operário que havia no Brasil antes do golpe
de 1964. Tal paradigma do populismo entrou em decadência nos anos noventa, com um
aprofundamento das pesquisas e a incorporação de novos referenciais teóricos. Hoje já
existe certo consenso de que na teoria do populismo o lugar atribuído aos trabalhadores
não é mais sustentável, tendo a noção de sindicalismo populista a que sofreu maiores
críticas. Ainda assim, não poucos historiadores dedicados ao mundo do trabalho
continua a utilizar o conceito, descontadas essas ressalvas.
Por outro lado, seja lá qual for a compreensão da história do país em princípios
dos anos sessenta, pelo menos os mais sensatos reconhecem que eram tempos de crise.
Mas, o que se entende por crise? E qual a natureza da crise dos anos sessenta, em todas
as suas dimensões? Buscamos responder essas questões no terceiro capítulo, que versa
sobre a crise dos anos sessenta. Após uma breve (mas necessária) digressão teórica,
onde são apresentados nossos referenciais, buscamos apresentar a cena histórica do
início dos anos sessenta no Brasil a partir do conceito gramsciano de crise orgânica.
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O quarto capítulo aborda a própria greve, e o capítulo seguinte discute o impacto
do protesto operário no processo político brasileiro. No sexto capítulo, adentramos a
documentação produzida pela polícia política, especialmente aquela depositada no
acervo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). A utilização de fontes
produzidas pelo aparelho de repressão contra dissidentes políticos e as classessubalternas tem sido muito frequente no campo de estudos do trabalho, e nesse capítulo
pretendemos tão somente discutir a importância de tais fontes como material capaz de
nos fazer pensar com mais cuidado sobre os limites da experiência democrática vigente
nos país no início dos anos sessenta. Ao falar dessa documentação, apresentamos
rapidamente as outras fontes utilizadas nesta tese.
No rico acervo da divisão de Periódicos da Biblioteca Nacional (RJ) existem as
coleções tanto dos jornais de maior circulação do país, aqueles sediados no centro-sul,
quanto das folhas de regiões mais afastadas. Para apanhar a dimensão nacional domovimento e seus desdobramentos locais, essa foi uma documentação importante. Além
do mais, a própria imprensa da esquerda, dos comunistas e dos nacionalistas, as folhas
de alguns sindicatos, foram consultadas tanto na Biblioteca Nacional quanto no Arquivo
Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE), no Arquivo de
Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ), do IFCS-UFRJ, no fundo do Archivio
Storico del Movimento Operaio Brasiliano (ASMOB) depositado no Centro de
Documentação e Memória (CEDEM) da UNESP, e nos arquivos das bibliotecas de
alguns sindicatos, como a Biblioteca Aloísio Palhano do Sindicato dos Bancários do Rio
de Janeiro.
O levantamento no ASMOB em São Paulo nos chamou atenção para uma série
de documentos guardados no fundo Roberto Morena, que compreendiam desde
correspondência entre a Embaixada dos EUA no Rio de Janeiro e o Departamento de
Estado, e documentos do Central Intelligence Agency (CIA). Na página da CIA 3
encontramos um relatório ultra-secreto de 13 de julho de 1962, onde é narrada a greve
geral e feita uma avaliação do seu impacto na conjuntura. No mesmo sentido, na página
da John F. Kennedy Presidential Library and Museum4 encontramos uma série mais
completa das mesmas correspondências entre o embaixador dos EUA no Rio de Janeiro,
Lincoln Gordon, e o secretário de Estado, Dean Rusk, onde se registra a percepção do
governo norte-americano sobre a crise brasileira, já em meados de 1962.
3 <http://www.foia.cia.gov/>4 <http://www.jfklibrary.org>
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Na literatura produzida pelos militantes da esquerda, que escreveram no calor
daqueles acontecimentos, a greve aparece em inúmeros relatos, como no último capítulo
do livro de Jover Telles, O movimento sindical no Brasil.5 Telles apresenta uma série de
documentos importantes para a apreensão daquele processo, como os manifestos
escritos pelo Comando Geral de Greve, além de informações resultantes da própriamilitância política do autor no noticiário sindical do semanário Novos Rumos, do
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Outro trabalho que se insere no mesmo perfil é de
autoria de outro militante comunista, Jorge Miglioli, Como são feitas as greves no
Brasil?, que é parte de uma coleção de panfletos produzidos por intelectuais ligados ao
Instituto Superior de Estudos Sociais (ISEB).6 Embora não acrescente muitas
informações, essa espécie de pequeno tratado histórico-sociológico sobre as greves no
Brasil dá grande ênfase à greve de 5 de julho de 1962, mencionada em todos os
capítulos da obra, mostrando a importância daquele movimento no processo deconstrução da identidade da esquerda brasileira.
Entre os trabalhos acadêmicos destacamos os clássicos dos brasilianistas
Kenneth Paul Erickson7 e Timothy Fox Harding,8 e os livros de Lucília de Almeida
Neves Delgado9 e Sérgio Amad Costa,10 todas pesquisas acadêmicas consistentes que
assinalaram o caráter nacional daquelas greves políticas de 1962. Entretanto, em
nenhum desses trabalhos seus autores foram movidos pela necessidade de buscar
informações sobre sua abrangência no território do país. Para construirmos um quadro
mais completo, além de um levantamento em fontes primárias, contamos também com
estudos regionais ou de categorias específicas, em trabalhos de recorte temporal
variado, que discutiram essas greves em algumas das mais importantes cidades do
país.11
5 TELLES, Jover. O movimento sindical no Brasil. Rio de Janeiro: Vitória, 1962.6 MIGLIOLI, Jorge. Como são feitas as greves no Brasil? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 19637 ERICKSON, Kenneth Paul. Sindicalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.8 HARDING, Timothy Fox. The political history of organized labor in Brazil. Ph.D. dissertation,
Stanford University Press, 1973.9 DELGADO, Lucília Almeida Neves. O Comando Geral dos Trabalhadores no Brasil (1961-1964) .Petrópolis: Vozes, 1986.10 COSTA, Sérgio Amad. O CGT e as lutas sindicais brasileiras (1960-1964) . São Paulo: GrêmioPolitécnico, 1981.11 Apenas a título de exemplo: SILVA, Fernando Teixeira da. A carga e a culpa: os operários das docasde Santos, direitos e cultura da solidariedade (1937-1968). São Paulo: Hucitec; Santos: PrefeituraMunicipal de Santos, 1995. MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e velhos sindicalismos. Rio de Janeiro (1955-1988). Rio de Janeiro: Vício de Leitura,1998. SANTOS, Herdeiros de Sísifo, op. cit.; JACOBY, Aorganização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre, op. cit. Outras contribuições sãomencionadas ao longo da tese.
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Nos livros de memórias do ex-comandante Paulo Mello Bastos, A Caixa-preta
do golpe de 64: a república sindicalista que não houve,12 tal como no de Hércules
Correa,13 e na obra de Denis de Moraes, A esquerda e o golpe de 64,14 os episódios
foram narrados por personagens centrais daqueles acontecimentos, de muita valia para
esta pesquisa. Muito importante foi o livro de Melo Bastos, resultado de uma série deentrevistas que o mesmo realizou com algumas figuras centrais do sindicalismo, como
os ex-dirigentes do CGT Hércules Correa, Clodesmidt Riani, além de homens chave do
governo como Waldir Pires, Almino Afonso, Neiva Moreira, o que torna esse livro uma
fonte muito importante. Outra documentação consultada foram livros de entrevistas com
lideres sindicais daquele período, como aquele com Clodesmidt Riani,15 trabalhista
mineiro que presidia a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI)
em 1962. Consultamos ainda um conjunto de entrevistas feitas pela historiadora Lucilia
Almeida Neves Delgado com proeminentes líderes sindicais comunistas e trabalhistasda época, como Hércules Correia, Armando Ziller, Rafael Martinelli e o próprio Riani,
disponíveis na página do Programa de História Oral da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG).16
Além destas fontes orais já publicadas, tivemos oportunidade de colher o
depoimento do ex-comandante Paulo Melo Bastos, do histórico líder do sindicalismo
bancário carioca, Luiz Viegas da Motta Lima e do ex-dirigente dos ferroviários,
Raphael Martinelli, remanescentes de uma geração de sindicalistas brasileiros que
lideraram diversas lutas trabalhistas e personagens diretamente envolvidos na greve
geral de 5 de julho de 1962. O próprio Riani, que hoje dá nome a um Centro de
Memória em sua cidade natal de Juiz de Fora (RJ), nos concedeu alguns minutos de sua
simpatia em uma conversa telefônica onde pôde esclarecer que, quando da greve, o
mesmo estava fora do país para participar de um congresso internacional de
sindicalistas.
Todavia, qualquer estudo sobre o processo político brasileiro ao longo do
governo João Goulart (1961-1964) deve se deparar com a prolífica literatura existente
sobre (principalmente) a sua derrocada, o Golpe de 1964, notadamente com suas mais
recentes controvérsias. Como qualquer campo maduro do conhecimento histórico, o
12 Rio de Janeiro: Família Melo Bastos Editora, 2006.13 Memórias de um stalinista. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994.14 Rio de Janeiro: Espaço & Tempo, 1989, recentemente relançado pela Expressão Popular, 2011.15 PAULA, Hilda Rezende & CAMPOS, Nilo de Araujo (orgs.). Clodesmidt Riani: trajetória. Juiz deFora: FUNALFA Edições; Ed. UFJF, 2005.16 <http://www.fafich.ufmg.br/historiaoral/entrevistas>
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tema do golpe de 1964 é atravessado por controvérsias que estão muito além de um
mero embate entre a produção acadêmica e o senso comum (ou as memórias)
construídos sobre aquele contexto. Mas como um marco fundamental de nossa história
recente, o debate acadêmico também não opera numa torre de marfim, afastado dos
embates políticos como se os historiadores profissionais pudessem estar confinados emuma “Torre de Marfim”, apartados da realidade a tal ponto de poderem oferecer um
“parecer técnico” sobre o passado. Nesse sentido, o primeiro capítulo desta tese é
dedicado ao conceito de revisionismo, começando por um esclarecimento do significado
desta operação na historiografia contemporânea.
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Capítulo 1. Revisão e revisionismo histórico
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1.1 Nota teórica: o conceito de revisionismo
Em sua História dos homens, Josep Fontana17 dedica todo um capítulo para
discutir as “guerras da história”, que consistiriam (e consistem) nas rivalidades entre
interpretações sobre o passado. Via de regra, tais disputas foram (e são) focadas em
processos chaves na definição de épocas históricas e na constituição de identidades
coletivas que se apresentam como uma espécie de espaços de “luta pelo passado”. Em
outro trabalho relevante, o mesmo Fontana enunciou a hipótese de que toda análise do
passado está calcada em um projeto social de presente/futuro;18 toda teoria da história
tem sua própria “economia política”. Cito:
“A descrição do presente – produto resultante da evolução histórica –completa-se com o que chamo, genericamente, uma ‘economia política’,isto é: uma explicação do sistema de relações que existem entre oshomens, que serve para justificá-las e racionalizá-las – e, com elas, oselementos de desigualdade e exploração que incluem –, apresentando-ascomo uma forma de divisão social de trabalho e funções, que não sóaparece agora como resultado do progresso histórico, senão como aforma de organização que maximiza o bem comum. Como etapa daevolução social, cada sistematização da desigualdade e da exploração,teve sua própria ‘economia política’, sua racionalização da ordemestabelecida, e assentou-a em uma visão histórica adequada. Dessaevolução do passado ao presente, mediatizada pelo filtro da ‘economia
política’, obtém-se um projeção até o futuro: um projeto social que seexpressa numa proposta política.”19
Assim, isso que comumente é apresentado como “batalha pela memória” ou “disputaem torno do passado”, é algo bem menos ingênuo do que costuma figurar, envolvendo
embates das forças sociais sobre o presente/futuro. Essa questão não pode ser reduzida a
uma reelaboração individual à luz das preocupações do historiador – como no
presentismo de Croce e Collingwood –, nem mesmo a um mero problema de identidade
de algumas tradições políticas e/ou culturais, mas é “algo que se realiza coletivamente e
que tem uma função social”.20 Parece ser em acordo com isso que Fernando Rosas nos
ensina que tais batalhas pela interpretação do passado são, antes de mais nada,
atravessadas pelas lutas pela hegemonia nas sociedades contemporâneas. Diz o autor:
17 FONTANA, Josep. História dos homens. Bauru: Edusc, 2004, p.343-379.18 FONTANA, Josep. História, análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998.19 Idem, p.9-10. É claro que nesse conceito o autor evoca a “economia política” como uma metáfora, jáque a própria economia política enquanto disciplina tem sua própria visão sobre o passado e o futuro,como nos mostra Marx. MARX, Karl. “Introdução à crítica da economia política [1857].” Grundrisse.Rio de Janeiro: EdUFRJ; São Paulo: Boitempo, 2011, p.39-64.20 FONTANA, História, análise do passado..., op. cit., p.9.
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“ao convocarmos, ao inscrevermos a Memória nos debates de hoje, nãoestamos só a olhar para trás, isto é, não nos refugiamos no passado, nãofugimos para a nostalgia, estamos necessariamente, seja qual for osentido mais ou menos assumido do exercício, a discutir os conteúdoscivilizacionais, as representações societais, os conteúdos políticos eideológicos que estruturam os discursos sobre o Mundo de hoje e de
amanhã. A luta pela inscrição da Memória, para retomar o conceito dofilósofo José Gil, é, neste sentido, um combate pelo presente e pelofuturo que travamos aqui e agora.”21
Nas últimas décadas alguns casos têm sido emblemáticos dessas “guerras”,
como a controvérsia historiográfica sobre a Revolução Francesa, quando de seu
bicentenário. Desde que um anti-comunista da estirpe de François Furet (1927-1997)
“subiu ao poder” na vida universitária francesa nos anos de 1980 e propôs que a
“Revolução havia terminado”, o fulcro da abordagem canônica sobre aquela Revolução
seria atacado. Nesse sentido, o caráter burguês da Revolução passaria a sersistematicamente refutado, no mesmo passo que as influentes interpretações de autores
como Georges Lefebvre (1874-1959) e Albert Soboul (1914-1982) reduzidas a uma
leitura “marxista-leninista”, que alegadamente olharia 1789 como prenuncio de 1917,
numa espécie de esquema teleológico simplista que Furet reduz a um “catecismo
revolucionário”. O termo “catecismo revolucionário” apareceu já no título de um artigo
seu publicado em 1971 na revista Annales, e republicado em Penser la Révolution
française, de 1978 (Paris, Gallimard), que é uma espécie de “manifesto” desta ofensiva
revisionista.22
Como não foi muito difícil de perceber, o propósito do revisionismo de Furet era
a desqualificação do próprio conceito de “revolução”. Carregando em sua lapela a
posição de ex-esquerdista que havia “tomado juízo” depois de 1956,23 o historiador
francês combateu em sua trincheira para favorecer o consenso conservador que
caracterizou a cena política dos anos 1980, de triunfo do neoliberalismo nos países
centrais do capitalismo e de crise ideológica da esquerda. O balanço de sua atuação
21 ROSAS, Fernando. “Seis teses sobre memória e hegemonia, ou o retorno da política.” In. LEMUS,Encarnación; ROSAS, Fernando; VARELA, Raquel (orgs.). O fim das ditaduras ibéricas (1974-1978).Lisboa: Pluma, 2010, p.13-18.22 FURET, François. Pensando a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p.99-144.23 Refiro-me ao contexto da “revelação” dos crimes de Stálin, no XX Congresso do Partido Comunista daUnião Soviética, e a invasão da Hungria pelas tropas do Pacto de Varsóvia, eventos que acabaramlevando a que muitos militantes dos PCs do ocidente abandonassem suas fileiras. Entre a intelectualidade,a crise de 1956 seria mais sentida, mas diferentemente dos dissidentes ingleses – que permaneceram naesquerda política, como os historiadores E. P. Thompson e Christopher Hill –, no contexto francês amaioria migrou para o liberalismo anticomunista, como fez Furet.
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parece ter sido reconhecido, especialmente depois que o mesmo escreveu a sua própria
explicação de sua pretérita vinculação ao Partido Comunista Francês, através de um
livro “sobre a ideia de comunismo” – o livro O passado de uma ilusão. Tal percurso
levou a que, após a sua morte, o (pouco crível) Livro Negro do Comunismo fosse
dedicado a sua memória.24
Analisando o “assalto” a este grande objeto da história moderna, Eric
Hobsbawm (1917-2012) ironizou o fato de Furet e seus epígonos, sob o pretexto de
declarar a eternidade da sociedade liberal-burguesa no fim do século XX, atacavam o
que, na verdade, seriam as próprias interpretações burguesas para 1789, feitas por
homens como Joseph Barnave (1761-1793), Louis Adolphe Thiers (1797-1877),
François Mignet (1796-1884), Augustin Thierry (1795-1856), François Guizot (1787-
1874) etc., especialmente as do período da Restauração (1815-1830).25 Como é
conhecido, na verdade, foi essa literatura liberal-burguesa que trouxe à tona o próprioconceito de luta de classes que influenciou o pensamento de Karl Marx (1818-1883) e
Friedrich Engels (1820-1895),26 construindo uma chave importante nas leituras
clássicas sobre a Revolução. Ademais, toda a historiografia que podemos definir como
socialista – além de Lefebvre e Soboul, Jean Jaurès (1859-1914) e Albert Mathiez
(1874-1932) – compartilhou com a historiografia liberal oitocentista a caracterização
daquela como uma revolução burguesa.27 Para além do liberalismo da Restauração e do
socialismo, no século XX esse paradigma canônico estruturou pesquisas que se valeram
de distintos registros teóricos, como na sociologia histórica de Theda Skocpol28 e
24 FURET, François. O passado de uma ilusão: ensaios sobre a idéia de comunismo . São Paulo:Siciliano, 1995. COURTOIS, Stéphane (org.). O livro negro do comunismo: crimes, terror e repressão.São Paulo: Bertrand, 1999.25 HOBSBAWM, Eric. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa. São Paulo:Companhia das Letras, 1996.26 Idem, ibidem, p.25. Um apanhado da influência desses autores (particularmente de Barnave) na obra de
Marx, pode ser encontrado na Introdução de SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: MartinsFontes, 1978, p.9-62.27 HOBSAWM, Ecos da Marselhesa..., op. cit., capítulo 1. E mais que isso, compartilharam também ageneralização desta compreensão para outros processos históricos, como a Revolução Inglesa do séculoXVII. “Pode-se dizer, de fato, que eles leram não apenas a Revolução Francesa como revolução burguesa,mas também a Revolução Inglesa do século XVII. (Esse é outro aspecto da herança da restauração liberalque ressoaria nos marxistas posteriores).” Idem, ibidem, p.33,28 SKOCPOL, Theda. Estado e Revoluções Sociais. Análise comparativa da França, Rússia e China.Lisboa: Presença, 1985.
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Barrington Moore Jr,29 até a Begriffsgeschichte (“História dos Conceitos”) de Reinhart
Koselleck.30
Entretanto não há dúvida de que a crítica de Furet, embora quisesse aparecer
como “desinteressada” e “não-ideológica”, se dirigiu ao que chamou de “catecismo
revolucionário”, “vulgata lenino-populista” ou “jacobino-marxista”, portanto,ideologicamente contra a esquerda. Isto posto, tal como os que queria fazer desacreditar,
François Furet também pensou 1789 a partir de 1917, só que do ponto de vista dos que
queriam exorcizar, não só o comunismo/socialismo, mas a reflexão histórica de uma das
revoluções mais paradigmáticas do mundo contemporâneo. Nesse sentido tem razão
Domenico Losurdo ao apontar que este revisionismo objetiva a liquidação da tradição
revolucionária, desde 1789 até 1917, produzindo o que o autor chama de
“desabamentos em série”, onde outras explicações da História Contemporânea são
desestruturadas.31 De sorte que se acaba na seguinte situação: sem 1789 como umarevolução burguesa torna-se incompreensível o Risorgimento italiano ou mesmo a
interpretação da Guerra Civil americana como uma revolução de Norte contra o Sul
escravagista; ao passo que, sem 1917, passa a ser ininteligível a luta de libertação
anticolonial, a resistência antifascista, ou ainda a dos defensores da II República na
Espanha, onde é conhecido o papel protagonista cumprido pelos militantes identificados
com a revolução bolchevique.32
Furet e seus seguidores conseguiriam penetrar também no ambiente acadêmico
anglo-saxão – ele próprio se tornaria pesquisador da Universidade de Chicago –,
notadamente nos ascendentes círculos culturalistas da historiografia, a ponto de um
crítico ter afirmado que tal revisionismo havia reduzido a Revolução a “um
acontecimento linguístico”.33 Na verdade isso foi facilitado pelo fato do próprio
caminho para o revisionismo já ter sido aberto anteriormente pelo historiador britânico
Alfred Cobban (1901-1968), que deve ser tomado como o pioneiro nessa
reinterpretação, pois já em 1964, em seu livro The social interpretation of the French
29 MOORE JR, Barrington. Origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses nasorigens do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983.30 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio deJaneiro: Contraponto; Ed.UERJ, 1999.31 LOSURDO, Domenico. Il resivionismo storico: Problemi e miti. 5ª edição. Roma-Bari: Laterza, 2002,
p.3-35.32 Idem, ibidem, p.6-7 e passim. Cf. também HOBSBAWM, Ecos da Marselhesa, op. cit., p.110.
Notadamente os comunistas ligados a Moscou, mas também os comunistas dissidentes, como trotsquistase militante do Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM) que se consideravam herdeiros de 1917.33 JONES, Colin. “The return of the banished bourgeoisie.” Times Literary Supplement , 29 de março de1991, p.7 apud FONTANA, A história dos homens, op. cit., 362.
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revolution, criticou a ideia de “revolução burguesa” a partir da “constatação” de que o
evento teria “atrapalhado” o desenvolvimento econômico da França, num raciocínio
calcado na teoria da modernização. Sem dúvida alguma, esse revisionismo também tem
sua dívida com o livro On Revolution (1960), de Hannah Arendt (1906-1975), onde a
mesma se recente do debate sobre o conceito de Revolução sempre privilegiar osmodelos francês e russo, em detrimento do americano, cuja revolução (1776), segundo a
autora, teria sido “a única que não devorou seus filhos”.
Em 1989, no mundo de fala inglesa, o revisionismo figurou em narrativas como
no livro Cidadãos de Simon Schama, um best seller , que segundo Alex Callinicos,
pintava o evento francês como “uma explosão demoníaca de violência irracional”, e
cuja mensagem comercial não poderia ser outra senão a de que: “as revoluções são uma
Má Coisa, sangrenta, destrutiva, irracional”,34 constituindo um capítulo daquilo que o
historiador português Manuel Loff descreveu como “anatemização da Revolução”.35 Nada talvez tenha sido mais significativo da trajetória hegemônica do
revisionismo sobre 1789 do que o fato de sua apoteose ter se dado justamente em torno
às comemorações oficiais e à repercussão na mídia do “bicentenário indigno”,36 quando
a cena pública foi dominada por “aqueles que, em uma palavra, não gostam da
Revolução Francesa nem de sua herança”, como ironizou Hobsbawm.37 Escrevendo
algum tempo depois, Josep Fontana chamou atenção para sua coincidência com a queda
do Muro de Berlim e da publicação de artigo de Fukuyama sobre o “fim da História”,
texto que se notabilizou tanto pela mediocridade, como pelo caráter comemorativo do
que se acreditou ser o triunfo global (e definitivo) do capitalismo.38
Tendo esses elementos em vista, torna-se evidente o vínculo entre a
historiografia revisionista de Furet e sua “economia política”, que é o pensamento
neoliberal do fim do século XX. No âmbito das ciências humanas, essa abordagem
relacionou-se de forma mais ampla por uma (normativa) concepção do fazer política na
modernidade que busca, entre outras coisas, substituir o tema da revolução pelo tema da
34 CALLINICOS, Alex. A vingança da História. O marxismo e as revoluções do Leste Europeu. Rio deJaneiro: Zahar, 1992, p.17.35 LOFF, Manuel. “ Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução.”
História & Luta de Classes, n.12, p.11-16, setembro de 2011, p.13.36 BENSAÏD, Daniel. Moi, La Révolution. Remembrances d’une Bicentenaire Indigne. Paris: Gallimard,1989.37 HOBSBAWM, Ecos da Marselhesa, op. cit., p.9.38 FONTANA, A história dos homens, op. cit., p.413. Cf. também CARDOSO, Ciro Flamarion. “Históriae poder: uma nova história política?” In. CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.).
Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p.37-54.
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democracia, separando um do outro e transformando o primeiro numa maldição e o
segundo – na chave da teleologia liberal – no futuro desejável e único possível.39 De
acordo com Lynch, ao abandonar o comunismo, o autor de Penser la Révolution
française teria se tornado caudatário de outro ex-esquerdista muito conhecido e
influente, o sociólogo Raymond Aron (1905-1983), que por sua vez desenvolveriatrabalho para reabilitar a concepção democrática de um liberal-conservador como
Alexis de Tocqueville (1805-1859), em oposição à tradição jacobina, Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778)40 e (naturalmente) ao socialismo/marxismo.41
Além de sua influência no mundo anglo-saxão, esta elaboração também acabaria
por se condensar naquilo que se chama de Escola Francesa do Político, cujas teorizações
sobre a democracia se fazem em contraponto ao que seriam regimes autoritários e
totalitários.42 Aliás, a teoria do totalitarismo, que apresenta uma indistinção entre os
regimes nazista/fascistas e o da URSS, concepção típica da Guerra Fria, 43 é a basecomum que une pensadores como Hannah Arendt, o neoliberal Friedrich von Hayek
(1899-1992), e até Claude Lefort (1924-2010), que passou de esquerdista do grupo
Socialisme ou Barbarie a “teórico da democracia” da mencionada Escola Francesa.44 Na
sua “evolução”, Lefort passaria a professar a opinião de que Furet havia ajudado a
39 Para uma crítica da visão liberal sobre a democracia, WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contracapitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003, capítulo “O demo versus ‘nós, o povo’: das antigas às modernas
concepções de cidadania”, p.177-204. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios (1875-1914). Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1988, capítulo “A política da democracia”, p.125-161.40 A crítica deste último autor iluminista, cujo projeto utópico ancorava-se na limitação ao direito de
propriedade, de acordo com Carlos Nelson Coutinho animou “praticamente todos os liberais, desde osiluministas de seu tempo (como Voltaire), passando pelos liberais antidemocratas do século XIX (comoBejamin Constant) e chegando até os neoliberais do século XX (como J.L. Talmon, que inaugurou amoda de considerá-lo o precursor da ‘democracia totalitária’).”COUTINHO, Carlos Nelson. “Crítica eutopia em Rousseau.” Lua Nova, São Paulo, n. 38, 1996, p.18. MACPHERSON, C.B. A democracialiberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p.2341 Já em 1955, Aron publicou o seu livro O ópio dos intelectuais, onde buscou responder o porque domarxismo ter se tornado uma “moda” entre os intelectuais franceses.42 LYNCH, Christian Edward Cyril. “A democracia como problema: Pierre Rosanvallon e a EscolaFrancesa do Político.” In. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político. São Paulo:Alameda, 2010, p.9-35.43 “Muito sucintamente, além das suas potencialidades políticas imediatas (legitimar teoricamente adivisão política efectiva do planeta, no quadro da Guerra Fria, entre Estados/movimentos não totalitários,configuradores do Mundo Livre, e Estados/movimentos totalitários, necessariamente liderados pela UniãoSoviética; hermanar um Comunismo a derrotar com um Nazismo já derrotado como subprodutos domesmo conceito totalitário de intervenção na sociedade), a teoria do totalitarismo propunha umaexplicação da mudança social radical e da mobilização social das massas nas sociedades contemporâneascomo fenômenos necessariamente explicáveis pela manipulação deliberada, calculada, arquitetada porgrupos políticos que se autodescrevem como vanguardas.” LOFF, “ Depois da Revolução?...”, op. cit.,
p.15.44 LOSURDO, Domenico. “Para uma crítica da categoria de totalitarismo.” Crítica Marxista, Rio deJaneiro: Revan, n.17, p.51-79, 2006.
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“redescobrir a análise do político”, e de que, como já dizia Aron, o estudo do
“totalitarismo soviético” era necessário para a compreensão da democracia.45
Após o colapso da URSS, ganhou enorme espaço a ideologia da superioridade
incontestável da economia de mercado sobre qualquer forma de regulação social –
desde o Estado de Bem-Estar até o planejamento de tipo soviético –, que combinou-se àdecretação não menos ideológica da impossibilidade de uma mudança radical na
sociedade. “There is no alternative!”, o slogan de Margaret Thatcher nos anos 1980,
tornar-se-ia a voz corrente na década seguinte, e mudanças radicais na História seriam
desacreditadas ou tomadas como “perigosas”, ainda que a convulsão social provocada
pelo colapso dos regimes soviéticos fosse apresentada pela grande mídia como
“revoluções”, só que – com um sinal invertido – “em direção ao capitalismo e a
democracia”.46
Aliada à enorme influência das teorias pós-modernistas nos meios intelectuais, eseu niilismo conformista/catastrofista que caracterizou o ambiente intelectual daqueles
anos – quando, como pontuou Fredric Jameson, no início da década de 1990, para
amplos círculos parecia mais fácil “imaginar a completa deterioração da terra e da
natureza do que a quebra do capitalismo” – 47 a liquidação da tradição revolucionária
ganhou forte significação. O revisionismo histórico sobre uma revolução que foi tomada
por longo tempo como paradigma da mudança social (1789) insere-se, deste modo,
nesse contexto de criação dessa “grande narrativa” do neoliberalismo sobre o “fim da
história”. A propósito, os próprios vínculos públicos entre Furet e o programa neoliberal
45 LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. São Paulo:Paz e Terra, 1991, p.115. LYNCH, “A democracia como problema...”, op. cit., p.20-25. De qualquermodo é importante considerar a existência de outra acepção para o termo totalitarismo, como na tradiçãofrankfurtiana que fala do “capitalismo totalitário”.46 O debate sobre o fim da URSS é tão antigo quanto o próprio acontecimento, e as descrições dasenormes convulsões sociais no Leste Europeu no fim dos anos 1980 como “Revolução” não foram apenas
produzidas por autores inseridos à direita do espectro político, mas também por representantes daesquerda marxista, como Alex Callinicos e Valério Arcary. CALLINICOS, A vingança da história, op.cit.; ARCARY, Valério. As esquinas perigosas da história. São Paulo: Xamã, 2004.47 JAMESON, Fredric. “As antinomias da pós-modernidade.” In. A virada cultural: reflexões sobre o
pós-moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.91. Na mesma época, Slavoj Žižek chamouatenção para o caráter ideológico dessa virada descrita por Jameson, explorando o fato de que algumasdécadas antes ainda se imaginavam “diferentes formas de organização social da produção e do comércio(o fascismo ou o comunismo como alternativas ao capitalismo liberal; hoje, como assinalou FredricJameson com muita perspicácia, ninguém mais considera seriamente as possíveis alternativas aocapitalismo, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões do futuro ‘colapso da natureza’,da eliminação de toda a vida sobre a Terra. Parece mais fácil imaginar o ‘fim do mundo’ que umamudança muito mais modesta no modo de produção, como se o capitalismo liberal fosse o ‘real’ que dealgum modo sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global...” ŽIŽEK, Slavoj.“Introdução. O espectro da ideologia.” In. ŽIŽEK, Slavoj (org,). O mapa da ideologia. Rio de Janeiro:Contraponto, 1996, p.7.
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não são difíceis de estabelecer. Em um de seus artigos publicados na revista Débat , na
edição de novembro/dezembro de 1989, quando mirava na crise terminal vivida pela
URSS, o historiador ironizou as reformas introduzidas por Gorbachev como prova de
que, até no regime oriundo de 1917 (agora) se reconhecia o “caráter insubstituível de
uma economia de mercado”.48
Nesse mesmo contexto da emergência do revisionismo da Revolução,
desenvolveu-se outro debate cujos quadros foram similares, embora fosse esposado em
função não de controvérsias sobre revoluções, mas sim sobre uma das contrarrevoluções
mais brutais no século XX: o nazismo alemão. Conhecido como Historikerstreit (“A
querela dos historiadores”), o debate foi provocado pela reação a um artigo do
historiador Ernest Nolte (1923 - ) no jornal conservador Frankfurter Allgemeine Zeitung
(FAZ), em junho de 1986, onde apresentou sua tese de que o Nazismo e mesmo o
Holocausto foram “reações ao bolchevismo”.49 Publicizando teses que vinhadefendendo há algum tempo, Nolte afirmava que o “nexo causal” entre as duas
experiências seria uma suposta similitude entre o “extermínio de classe” dos
bolcheviques, face ao “extermínio de raça” dos nazistas, numa formulação que
inegavelmente tem pontos de contato com a já mencionada teoria do totalitarismo, mas
é preciso lembrar que o autor possuía uma conceituação própria sobre o assunto.
Excêntrico de direita, discípulo do filósofo Martin Heidegger (1889-1976), Nolte
já possuía uma influente obra sobre o fascismo quando publicou seu artigo na FAZ nos
anos oitenta, de que são exemplo o seu Der Faschismus in seiner Epoche, de 1963, e
Theorien über den Faschismus, de 1972. No livro de 1963 contribuiu com um conceito
de fascismo como um fenômeno metapolítico (ou “transpolítico”, que compreendia uma
resistência contra modernidade, combinada à resistência ao que chama de
“transcendência prática”, o comunismo/marxismo). Após 1968, sua obra teve uma
inflexão importante, tendo assumido posição central o argumento da precedência do
“Terror Vermelho” a Auschwitz.50 Fazendo eco a esta formulação, em seu artigo de
1986 escreveu: “Não foi o arquipélago Gulag anterior a Auschwitz? Não foi a ‘morte à
classe’ dos bolcheviques o antecedente (Prius) lógico e fático da ‘morte à raça’ dos
48 FURET, François. A Revolução em debate. Bauru (SP): EDUSC, 2001, p.119.49 Publicado no Brasil em NOLTE, Ernest. “O passado que não quer passar.” Novos Estudos CEBRAP,São Paulo, n.25, p.10-15, 1989.50 De acordo com o historiador Pier Paolo Poggio, o renascimento do marxismo nas universidades daAlemanha Federal nos anos 1960 havia surpreendido Nolte, que, por esta época, teve constantes choquescom a juventude estudantil de esquerda, que por volta de 1968 estava a perguntar aos seus pais e
professores “como passavam o tempo nos anos 1930”. POGGIO, Píer Paolo. Nazismo y revisionismohistórico. Madrid: Akal, 2006, p.213-214 e 227.
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nacional-socialistas?”.51 Além do mais, argumentou que massacres de massa foram
comuns no século XX, de que são exemplos os feitos pelos EUA no Vietnã, por Pol Pot
no Camboja e o próprio Gulag soviético.52 Deste modo, em vez de ficarem com a eterna
culpa face ao Holocausto, os alemães (ocidentais) deveriam ficar em “paz consigo
mesmos” e deixar o “passado passar”. No dia 8 de maio do ano anterior, quando das comemorações oficiais dos 40
anos do fim da Segunda Guerra Mundial, o presidente norte-americano Ronald Reagan,
visitou as ruínas de um antigo campo de concentração em Bergen-Belsen e um
cemitério de guerra de Bitburg onde estavam enterrados “heróis” nazistas alemães. O
episódio ficaria conhecido como “Bitburg fiasco”, resultante de uma aparentemente
desastrosa intenção dos dois governos ocidentais de esquecer as antigas hostilidades que
levaram à guerra de 1939-1945, com o compromisso comum de combate ao
Comunismo.53 Isso se combinaria à iniciativa do governo alemão (presidido desde 1982 pelo neoliberal Helmut Kohl) no sentido de construção do Museu Histórico Alemão em
Berlim, e um Centro de Memória em Bonn, monumentos que, indistintamente,
rememorassem criminosos e vítimas do nazismo.54
No verão de 1986, quando Nolte publicou seu artigo, a Alemanha Federal estava
em clima pré-eleitoral,55 e para círculos oposicionistas o teor do texto parecia uma
grande provocação. Foi nesse contexto que o filósofo Jürgen Habermas publicaria uma
crítica no semanário Die Zeit , denunciando as “tendências apologéticas” do artigo de
Nolte, tanto quanto da historiografia produzida por autores como Michael Stürmer
(1938 - ) e Andreas Hillgruber (1925-1989), cujo propósito era o de normalizar o
Nazismo e o próprio Holocausto na identidade histórica alemã.56 Para o discípulo de
51 NOLTE, “O passado que não quer passar.”, op. cit., p.14. 52 Nos anos 1970 apareceu no Ocidente o livro Arquipélago Gulag, de Aleksandr Solzhenitsyn (1918-2008), escritor russo que fez um penoso relato da vida nos campos de trabalhos forçados na URSS, queespalhados em todo o território russo conformariam uma espécie de “corrente de ilhas” (daí o termoarquipélago), já que tais campos só eram conhecidos pelos que, desgraçadamente, fossem alvo da
perseguição do Estado stalinista. Ganhando o Nobel da Literatura em 1970, o livro foi instrumento
ideológico importante no combate tanto ao Comunismo como proposta de futuro desejável, quanto, num plano mais geral, a qualquer projeto de transformação radical da realidade, supostamente condenada a produzir o autoritarismo.53 ELEY, Geoff. “Nazism, Politics and the Image of the Past: Thoughts on the West German
Historikerstreit 1986-1987.” Past and Present , n.121, p.171-208, novembro de 1988, p.175-176.54 MADSEN, Jacob Westergaard. “The Vividness of the Past: A Retrospect on the West German
Historikerstreit in the mid-1980s.” University of Sussex Journal of Contemporary History, (1), 2000.55 As eleições se realizaram janeiro de 1987, com a vitória dos conservadores e a continuidade dogabinete de Kohl.56 Publicado no Brasil em HABERMAS, Jürgen. “Tendências Apologéticas.” Novos Estudos CEBRAP,São Paulo, n.25, p.16-27, 1989.
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Adorno, ao tornar o Comunismo o “mal absoluto” do século XX, Nolte e demais
revisionistas acabavam por tornar o Nazismo um “mal menor”.
O debate também contaria com intervenções dos historiadores Hans-Ulrich
Wehler e Jürgen Kocka (esses da respeitada “Escola de Bielefeld”), Hans Mommsen,
Martin Broszat, Heinrich August Winkler, Wolfgang Mommsen, e o presidente daassociação de historiadores alemães, Christian Meyer, ao lado de Habermas. Aliaram-se
a Nolte, o jornalista, biógrafo de Hitler e editor do FAZ, Joachim Fest (1926-2006),
Stürmer, Hillgruber, além de Klaus Hildebrand e Hagen Schulze. O termo
“revisionismo”, utilizado por Habermas, seria logo assumido por Nolte em intervenções
posteriores, ainda que para um e outro possuíssem acepções distintas. Sintetizando a
controvérsia, Wehler apontou o propósito dos revisionistas de aliviar a consciência
alemã de sua responsabilidade histórica, transferindo-a para as teorias de Marx, os
comunistas e mesmo os social-democratas.57 Nos anos 1990, o próprio François Furet não se furtaria a dar sua chancela
acadêmica ao seu colega alemão, protagonizando outra suposta “querela”, numa “troca
de correspondência” pública sobre a comparação entre “Comunismo” e “Fascismo”. Em
suma, enquanto Furet defendeu a tese de que ambos eram “gêmeos totalitários”, ao
mesmo tempo em que Nolte afastava-se do seu próprio conceito meta-político de
fascismo de 1963 para abraçar a teoria do totalitarismo.58 Por outro lado, enquanto Furet
apresentava reservas quanto a interpretação do historiador alemão para a Shoà, Nolte
resolveu conferir crédito aos negacionistas do Holocausto, que auto-denominaram-se
“revisionistas”, buscando cidadania no debate acadêmico. Nesse sentido, Domenico
Losurdo parece ter razão quando vincula esses dois debates historiográficos dos anos
1980 – sobre a Revolução Francesa e o Historikerstreit – a um mesmo fenômeno de
revisionismo histórico, cuja raiz comum é a condenação geral dos ciclos revolucionários
de 1789 e 1917.59 Um das consequências é o esvaziamento da Resistência anti-fascista,
importante na construção da identidade política de parte significativa do sistema
partidário das democracias da Europa ocidental no após II Guerra.
Na Itália o revisionismo sobre o fascismo já tinha feito sua aparição algumas
décadas antes, através da obra de Renzo De Felice (1929-1996), que, antes de mais
57 ELEY, “Nazism, politics and the image of the past.”, op. cit., p.177 e passin.58 FURET, François & NOLTE, Ernest. Fascismo y comunismo. México/Buenos Aires : Fondo de CulturaEconómica, 1998. TRAVERSO, Enzo. El pasado, instrucciones de uso. Historia, memória, política.Madrid: Marcial Pons, 2007, p.86.59 LOSURDO, Il resivionismo storico, op. cit, p.6-7.
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nada, buscou circunscrever o fenômeno ao contexto italiano.60 Em sua monumental
biografia sobre o Il Duce, que começou a publicar no fim dos anos 1960, De Felice
interpretou a guerra civil italiana de 1943-1945 como resultado da ação de uma
“minoria de resistentes”, caracterizados como “antinacionais”. Nos anos setenta, uma
entrevista sua provocaria fortes reações em círculos políticos identificados com o anti-fascismo (comunistas principalmente), e a alcunha de revisionista foi-lhe empregada
como forma de censura, e (ao contrário de Nolte) De Felice nunca aceitou o epíteto.61
Mas o grande impacto produzido pelo revisionismo defeliceano ocorreu na
década de 1990, num contexto político marcado pelo declínio das organizações
partidárias identificadas com a Resistência e que constituíram a República no pós-II
Guerra – principalmente o Partido Comunista, o Partido Socialista e a Democracia
Cristã. Em 1995, quando subiu ao poder Silvio Berlusconi, cuja composição levou ao
governo pela primeira vez desde 1945 um partido claramente fascista (a Alleanza Nazionale), o historiador publicaria seu livro Rosso e Nero, culminância de uma obra de
reabilitação de Mussolini, que figura como um “patriota” que, fundando a República de
Salò,62 havia impedido que a Itália tivesse o mesmo destino que a Polônia.63 No final
das contas, é a própria Resistência que acaba por figurar no banco dos réus, com a
participação do Partido Comunista transformada em elemento acusatório para levantar
dúvidas sobre o “caráter democrático” da mesma.64
Também por esta época, o politólogo americano Daniel Goldhagen apresentou
um novo revisionismo sobre o Nazismo, com a publicação de seu livro Os carrascos
voluntários de Hitler (1996), no qual apresentava a tese de que “todo o povo alemão”
havia sido conivente com os crimes nazistas e com o próprio Holocausto. A evidente
deficiência do ponto de vista da pesquisa empírica para hipótese tão generalizante, logo
60 Numa interpretação por seus críticos tida como “empirista-positivista”. POGGIO, Nazismo yrevisionismo histórico, op. cit., p.205 e 217.61 Entretanto, na historiografia italiana, o legado defeliceano como um revisionismo é consensual,
inclusive entre seus partidários. GROPPO, Bruno. “’Revisionismo’ histórico y cambio de paradigmas enItalia y Alemania.” Políticas de la Memoria, Buenos Aires, n.4, p.47-60, verão de 2003/2004, p.53.POGGIO, Nazismo y revisionismo histórico, op. cit. LOSURDO, Il revisionismo storico, op. cit.62 Fundada na parte norte da Itália, após o rei italiano demitir Mussolini do cargo de premier em 1943, soba ocupação do Exército Alemão, a guerra civil foi estabelecida entre os partidários da República SocialItaliana (também conhecida como República de Salò, pois foi fundada nessa cidade próxima à Milão),apoiados pelos nazistas (que ocuparam o território) contra a Resistência e as tropas aliadas, americanas efrancesas principalmente.63 FELICE, Renzo De. Rosso e Nero. Milão: Baldini & Castoldi, 1995 apud TRAVERSO, El pasado,instrucciones de uso, op. cit., p.98-99.64 GROPPO, “’Revisionismo’ histórico y cambio de paradigmas en Italia y Alemania”, op. cit., p.54.
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desacreditaria Goldhagen entre os historiadores profissionais,65 ainda que não seja
muito difícil encontrar abordagens mais aceitas que incorrem no mesmo tipo de
generalização.
Ainda na Alemanha, outro episódio no fim da década de 1990 denotou como a
onda revisionista não havia se esgotado. Realizado em 1998, um tradicional encontro deuma associação de historiadores daquele país ( Historikertag), a adesão aberta ao regime
nazista de figuras como Werner Conze e Theodor Schieder, que haviam formado grande
parte da geração que dominava a disciplina naquele contexto, constituiu ponto de
discórdia, com críticas severas dos profissionais mais jovens.66 A esta altura é
necessário pontuar um dos resultados de todo esse revisionismo: do Historikerstreit ao
contexto de divulgação do Livro Negro do Comunismo nos anos 1990 – que reclamou
um “Nuremberg do Comunismo” –, Enzo Traverso notou um verdadeiro eclipse do
conceito de fascismo na historiografia alemã para tratar do Nazismo – substituído, namaioria dos casos, pelo de totalitarismo (como vimos, até Nolte acabaria abandonado
sua conhecida conceituação).67
Esse breve olhar sobre a Historikerstreit e seus desdobramentos também serve
para afirmar uma distinção importante entre o significado daquilo que estamos
conceituando como revisionismo do que se chama negacionismo, de autores de extrema-
direita como Robert Faurisson e Paul Rassiner. Pois o negacionismo destes retorce as
evidências históricas para negar a existência do Holocausto, posição que não é de
nenhum modo compartilhada por revisionistas como Ernest Nolte (ainda que esse aceite
dialogar com os primeiros). Deste modo, em acordo com uma série de autores, é
necessário assinalar essa distinção entre os dois conceitos.68 Até porque os
negacionistas do Holocausto buscaram (e buscam) legitimar sua própria “interpretação”
com base na ideia de que representariam um revisionismo academicamente válido que
65 Embora discordasse dos pontos centrais da tese, Hans-Ulrich Wehler reconheceu que a obra do politólogo lançava uma luz para a questão do apoio de massa ao governo de Hitler. GOLDHAGEN,Daniel Jonah. Os carrascos voluntários de Hitler : o povo alemão e o Holocausto. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997. Sobre o ponto de vista de Wehler, cf. FONTANA, História dos homens, op. cit., p.366-377.66 TRAVERSO, El pasado, instrucciones de uso, op. cit., p.83-84.67 Idem, ibidem, p.81-91.68 VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memoria: uma Eichmann de papel e outros ensaios sobre orevisionismo. Campinas: Papirus, 1994. TRAVERSO, El pasado, instrucciones de uso, op. cit., p.57-60.PISANTY, Valentina. L’irritante questione delle camere a gas. Logica del negazionismo. Milão: RCSLibri, 1998, p.6-7. LOSURDO, Il resivionismo storico, op. cit. POGGIO, Nazismo y revisionismohistórico, op. cit. SOUTELO, Luciana de Castro. A memória do 25 de Abril nos anos do cavaquismo: odesenvolvimento do revisionismo histórico através da imprensa (1985-1995). Dissertação de mestrado emHistória Contemporânea. Universidade do Porto, Porto, setembro de 2009, p.97-130.
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apenas representaria uma interpretação alternativa a abordagem que classificam como
“exterminacionista”.69
Tal distinção encontra-se no conceito de revisionismo tomado por Hobsbawm,
para quem Furet e epígonos estavam fazendo era “ajustando de forma diferente os fatos
conhecidos”,70
até porque, naquele caso, a contribuição do revisionismo na questão doconhecimento sobre a própria Revolução era pífia, senão nula.71 Ao mesmo tempo,
como pondera a historiadora Luciana Soutelo, o negacionismo relaciona-se de modo
importante ao revisionismo em um sentido mais geral, como uma corrente minoritária
no seu interior deste.
“É importante explicitar que em inúmeros casos tampouco aargumentação revisionista é baseada em ‘premissas teóricas ehistoriográficas legítimas’, já que, apesar de não haver negação dos fatoshistóricos em si, se desconsideram as especificidades e os contextos
históricos de modo a favorecer determinados posicionamentosideológicos do presente, muitas vezes em total negligência da lógicahistórica do período estudado – por exemplo, a relação estabelecida porErnest Nolte entre o nazismo e sua política de extermínio como reação ao
bolchevismo ignora o fato, ressaltado por muitos autores, de que osfundamentos originários desta política são bem anteriores à eclosão daRevolução Russa. Nesse sentido, também muitas interpretaçõesrevisionistas violam princípios metodológicos da historiografia em nomede propósito ideológicos – talvez o façam, no entanto, de forma maissutil do que os negacionistas, através de subterfúgios e confusõesinterpretativas que acabam por conferir-lhes uma fachada de maiorrespeitabilidade teórica. Todavia, a distinção entre revisionismo e
negacionismo é pertinente e deve ser salientada. É adequado, portanto,considerar o negacionismo como uma variante minoritária dorevisionismo histórico.”72
Nos tempos que correm, algumas dezenas de historiadores protagonizam uma
outra batalha pela história contra o revisionismo expresso no Diccionario Biográfico
Español, feito sob os auspícios da Real Academia de la Historia. Os problemas mais
graves de tal obra aparecem nos volumes referentes à República, Guerra Civil e Franco.
A biografia de Franco, a cargo do historiador medievalista Luis Suarez, nada menos que
o presidente da Fundación Francisco Franco, resulta no perfil do texto, em que esse personagem aparece como um político “moderado” e “prudente” que encabeçou um
69 TRAVERSO, El pasado..., op. cit., p.93-94.70 HOBSBAWM, Ecos da Marselhesa..., op. cit., p.106.71 FONTANA, A história dos homens, op. cit., p.360-361.72 SOUTELO, A memória do 25 de Abril nos anos do cavaquismo..., op. cit., p.100.
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“regime autoritário”, não uma “ditadura”, muito menos uma “ditadura fascista”.73 Ao
mesmo tempo, nas páginas do Diccionario, dirigentes do Partido Socialista Obrero
Español (PSOE) que chefiaram a II República entre 1936-1939, Juan Negrín López
(1892-1956) e Francisco Largo Caballero (1869-1946), são apresentados como
“ditadores”. Além disso, a própria Guerra Civil iniciada em 1936 é retratada como setivesse sido provocada pelo “caos reinante a partir da instalação da República (1931)”,
de modo a apresentar o levante contra-revolucionário de Franco como uma espécie de
“expressão da revolta do povo contra a República”, uma “cruzada” ou mesmo uma
“guerra de libertação contra a invasão vermelha estrangeira”.
Em resposta, En el combate por la historia. La república, la guerra civil, el
franquismo,74 editado por Ángel Viñas e que contam com 45 capítulos temáticos e 12
biografias, escritos por especialistas do porte Paul Preston, Julia Casanova, Julio
Aróstegui, além de Josep Fontana e mais uma dezena de pesquisadores, apresenta-secomo uma espécie de “Contradiccionario”. Com um título que rememora o clássico
livro Combats pour l’Histoire (1952) de Lucien Febvre (1878-1956), o propósito de En
el combate por la historia é o de também apresentar o resultado da investigação
histórica dos últimos 30 anos sobre a evolução da sociedade espanhola no período
compreendido entre 1931 até 1975, além, é claro, de combater o uso ideológico da
História feito pelo revisionismo neo-franquista. Na apresentação, Ángel Viñas nos dá
uma boa descrição da obra da Real Academia de la Historia:
“Franco apareció bajo una luz rosada, algo inimaginable en el caso deuna institución comparable en cualquier país europeo con los restantesdictadores autóctonos del siglo XX. La experiencia republicana fuedemonizada. La guerra civil resurgió en ocasiones como una lucha contralos ‘rojos’. En algunas de las entradas aireadas en la prensa fue imposibledesconocer el sesgo antidemocrático y a veces próximo a las querenciasde la extrema derecha española. Todo ello presentado, bajo la autoridadde la augusta Institución, como si fuese la última palabra en historia.”75
Todavia, em perspectiva com os revisionismos já mencionados, o teor notoriamente
pró-Franquismo do Diccionario o aproxima mais do negacionismo, ou seja, umavariante caricatural do revisionismo, mais próxima daquilo que virtuosamente os
73 É evidente que não há consenso na historiografia sobre o enquadramento do Franquismo como umaexperiência fascista, mas deve-se observar que o propósito desta absolvição de fascista não opera a partirde uma rigorosa elaboração conceitual.74 VIÑAS, Ángel (ed.); PRESTON, Paul; ARÓSTEGUI, Julio; FONTANA, Josep et al. En el combate
por la historia. La república, la guerra, el franquismo. Barcelona: Pasado & Presente, 2012.75 VIÑAS, Ángel. “Presentación.” In. VIÑAS, En el combate por la Historia, op. cit., p.13.
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autores do Contradiccionario denominam de “historietografía”. Nesse mesmo sentido, o
próprio Viñas diferencia esta de outras controvérsias recentes sobre o passado.
“Lo que ocurre en nuestro país, con la carta blanca que en él se da acualesquiera versiones, distorsiones o plenas estupideces, es algo muydiferente de lo que ocurrió en otros de pasados no menos sombríos: la
Historikerstreit – la querella de los historiadores – en Alemania, lasoleadas que suscitó la ‘recuperación’ de Mussolini en Italia de la manode Renzo De Felice o la visión relativamente balsámica que durante añosse propagó en Francia sobre el régimen de Vichy hasta que la reventó deun trallazo Robert O. Paxon.
Aquí se venden sucesivas ediciones de un libritoinfumable que presente a Franco como católico ejemplar y nadie seconmueve.”76
Para outro dos autores do Contradiccionario, Julio Aróstegui (1939-2013),
revisionismo franquista teria se habilitado a partir da ascensão do Partido Popular (PP)
ao governo, em 1996,77 donde em espaços como a própria Academia Real de História,
historiadores conservadores teriam começado a divulgar versões como a de que a
Guerra Civil não foi mais que uma “cruzada” contra o “terror vermelho”, e onde os
maquis (resistentes republicanos) são retratados como “bandoleros-terroristas”.78
Em Portugal o revisionismo histórico sobre o Salazarismo e a própria Revolução
Portuguesa de 1974-1975, também não deixou de figurar nos últimos anos. As
relativizações do passado salazarista – naturalmente descaracterizado como “fascista”, e
qualificado de simplesmente “autoritário” – 79 e a desqualificação da própria Revolução
dos Cravos, coincidem com a emergência dos governos da direita a partir de 1979,
especialmente ao longo do período conhecido como “cavaquismo” (1985-1995).80
Sintonizado aos ventos revisionistas que vimos descrevendo, certa historiografia, ao
lado da mídia, tem buscado, ao mesmo tempo, “reabilitar” Salazar e apresentar o
76 Idem, ibidem, p.24.77 “El revisionismo coincide con la llegada del PP al Gobierno en 1996.” Público, Madrid, 26 de abril de2012. Disponível em http://www.publico.es/espana/430950/el-revisionismo-coincide-con-la-llegada-del-
pp-al-gobierno-en-1996 (acessado em 9 de dezembro de 2012)78 “Manipulación en el ‘Diccionario Biográfico Español: La Guerra Civil fue una ‘cruzada’ y una ‘guerra
de liberación’.” Publico, Madrid, 2 de junho de 2011. Disponível emhttp://www.publico.es/culturas/379651/la-guerra-civil-fue-una-cruzada-y-una-guerra-de-liberacion(acessado em 9 de dezembro de 2012). “La obra convierte a los maquis en ‘terroristas’ y ‘bandoleiros’.”Público, Madrid, 1 de junho de 2011. Disponível em http://www.publico.es/culturas/379437/la-obra-convierte-a-los-maquis-en-terroristas-y-bandoleros (acessado em 9 de dezembro de 2012).79 Por outro lado, da mesma forma que no Franquismo, a caracterização daquele regime (1933-1974)como “fascista” não é consensual na literatura.80 SOUTELO, A memória do 25 de Abril nos anos do cavaquismo..., op. cit.; ______. “Visões daRevolução dos Cravos: combates pela memória através da imprensa (1985-1995).” In. VARELA, Raquel(coord.). Revolução ou Transição? História e Memória da Revolução dos Cravos. Lisboa: Bertrand, 2012,
p.229-249. LOFF, “ Depois da Revolução?...”, op. cit.
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processo revolucionário desencadeado após o golpe de 25 de abril de 1974 como um
“delírio coletivo”, à maneira dos furetianos. Todavia, o revisionismo português parece
não ter o mesmo sucesso que os seus congêneres em outras latitudes, pelo menos nos
que diz respeito aos seus aspectos mais escandalosos, como denota esse comentário da
historiadora Raquel Varela:“Com a ascensão do neoconservadorismo norte-americano da era GeorgeBush, alguns intelectuais portugueses conservadores, como o historiadorRui Ramos, reunidos em torno da revista Atlântico e da Rádio Europa-Lisboa, tentaram de alguma forma reabilitar Oliveira Salazar, mas comescasso sucesso. O ponto culminante desta fase foi o amplamentenoticiado talk show sobre ‘Grandes Portugueses’ vencido por Salazar,logo seguido de Álvaro Cunhal, líder do Partido Comunista. Apesar damediatização do programa, a sua base real era escassa. Na verdade, amaioria dos cientistas sociais nacionais, de vários quadrantes políticos,assinaram um manifesto denunciando a manipulação do programa. Foi,
como veio a compreender-se rapidamente, um epifenómeno. O 25 deAbril é o feriado nacional com mais ampla participação popular econtinua a ser celebrado oficialmente em todas as intuições do Estado,que reflectem o sentimento popular generalizado de defesa da revoluçãoe das suas conquistas democráticas e sociais: direitos democráticos,generalização do acesso aos cuidados de saúde, educação, segurançasocial, etc.”81
Por outro lado, em amplos círculos acadêmicos, as teses revisionistas sobre a
Revolução tem tido um peso considerável, e podem ser resumidas nos seguintes pontos:
1) a Revolução foi nada mais que um golpe perpetrado por um pequeno grupo de
militares que é aproveitado pelos partidos anti-salazaristas; 2) insinua-se que o próprio
Marcelismo (1968-1974) já encaminhava um “processo de mudança”, a partir de
modernizações socioeconômicas e uma suposta resolução do problema da Guerra
Colonial; 3) que o próprio processo revolucionário em si foi pontuado por “erros” e
“excessos”, que, além do mais, teriam na verdade contrariado o que seria uma suposta
“tradição portuguesa”, representada em instituições como a Igreja Católica e setores
políticos e militares moderados, entre outros aspectos.82 Outro ponto deste revisionismo,
4) é a busca de substituir o conceito de Revolução pelo de “Transição”, para descrever acena portuguesa de 1974-1976, desvinculando a própria Democracia portuguesa do 25
de Abril.83 Como é regra, tal revisionismo português não apresenta novas pesquisas que
81 VALERA, Raquel. “Conflito ou coesão social? Apontamentos sobre história e memória da Revoluçãodos Cravos (1974-1975).” In. VARELA (coord.), Revolução ou Transição?, op. cit., p.186-187.82 LOFF, “ Depois da Revolução?...”, op. cit., p.13-14.83 VARELA, “Conflito ou coesão social?...”, op. cit. ROSAS, Fernando. “Notas para um debate sobre aRevolução e a Democracia.” In. VARELA, Revolução ou Transição?, op. cit., p.251-283.
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possam endossar tais teses, trata-se, mais uma vez, da sugestão de uma “nova
interpretação” de fatos já conhecidos, ao mesmo tempo em que a significativa produção
historiográfica sobre o tema, representada hoje por nomes como Fernando Rosas,
Raquel Varela, Valério Arcary, Manuel Loff, Luciana Soutelo, Jorge Fontes, entre
outros, tem se insurgido contra essa tendência conservadora.
Depois deste comentário geral, é necessário também assinalar os distintos usos
que a palavra revisionismo apresentou no século XX para precisar-lhe o sentido
conceitual que adquire para a crítica historiográfica e nesta tese. Primeiramente, cabe
mencionar que o termo apareceu no debate aberto pela intervenção de Eduard Bernstein
(1850-1932) na socialdemocracia alemã e na Internacional Socialista já em fins do XIX
e início do XX, sendo novamente habilitada nas controvérsias posteriores do
movimento comunista internacional ao longo deste século, tornando-se praticamentesinônimo de “traição”.84 Nesses dois casos, carregava forte carga pejorativa, justificador
de dissensos, cisões e perseguições no interior do movimento socialista. Só após a II
Guerra Mundial é que os historiadores introduziriam o termo no seu vocabulário, em
alguns casos para afirmar o caráter renovador de abordagens, em outros, viradas ético-
políticas informadas pela disputa ideológica do presente, na maior parte das vezes uma
mistura entre essas duas. Como define Enzo Traverso:
“Muchos intentos de renovar la interpretación de una época o de un
acontecimiento, de poner en causa el punto de vista dominante, ha sidocalificados de ‘revisiones’. Esta palabra intentaba subraya su carácterinnovador y no deslegitimar, ya que sus representantes eran reconocidosmiembros de la comunidad de los historiadores.”85
Na historiografia ocidental sobre a Revolução Russa de 1917, por exemplo, o
termo “revisionismo” refere-se a um conjunto de trabalhos que, a partir da segunda
metade dos anos 1960, se opuseram à interpretação ortodoxa/anticomunista dos cold
warriors, e se caracterizou pela introdução da história social. De acordo com o balanço
do especialista Ângelo Segrillo,
86
enquanto os cold warriors de modo geralsimplificaram a explicação da tomada do poder pelos bolcheviques como um “golpe”
84 COATES, David. “Revisionismo.” In. BOTTOMORE, Tom (Ed.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p.323-324. SETTEMBRINI, Domenico. “Revisionismo.” In.BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de Política. 12ªEd. Vol.2. Brasília: Ed. UNB, 2004, p.1117-1121.85 TRAVERSO, El pasado, instrucciones de uso…, op. cit., p.95-97.86 SEGRILLO, Ângelo. “Historiografia da Revolução Russa: antigas e novas abordagens.” Projeto
História, São Paulo, n.41, p.63-92, dezembro de 2010.
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perpetrado por um grupo (bolcheviques) com pouco enraizamento social, um autor
considerado revisionista como Moshe Lewin desmontou tal ideia, e mais uma outra
muito comum, qual seja a de que o stalinismo era um desdobramento natural do
leninismo, discutindo o caráter antiburocratizante dos últimos escritos de Lênin.
Enquanto também o francês Marc Ferro pode ser mencionado como revisionista, já queconclui que “o papel dos bolcheviques na Revolução de Outubro não foi de um líder (ou
manipulador) das massas em uma situação desesperada”.87
Não seria por acaso que no establishment universitário dominado pelos
historiadores ortodoxos, os revisionistas fossem visto como “esquerdistas”. O
interessante é que, após o fim da URSS, autores da historiografia cold warriors como
Richard Pipes e Robert Conquest voltaria à carga, reafirmando seus pontos de vista. Na
ocasião se sentiram confortáveis para compartilhar o revisionismo de François Furet, a
ponto de reduzirem 1917 a uma “psicose revolucionária”,88 constituindo mais umcapítulo da “anatemização da Revolução”.89
Diretamente ligado ao último tema, também nos Estados Unidos a historiografia
sobre a Guerra Fria o termo revisionismo refere-se a toda uma importante produção
sobre as origens das tensões EUA-URSS onde, ao contrário da tradicional justificativa
para um conflito que seria provocado unilateralmente pelos soviéticos, encara a
complexidade e as responsabilidades do governo estadunidense. 90 Ligada ao clima de
contestação generalizada da Guerra do Vietnã e da chamada Nova Esquerda, mas
também baseado em pesquisas de fôlego, os livros de nomes como Gabriel Kolko, em
The Politics of War (1968) e The Roots of American Foreign Policy (1969), Walter
LaFeber em American, Russian, and the Cold War (1967) e Lloyd Gardner em
Architects of Illusion (1970), são representativos desta corrente. Já na historiografia
israelense, autores como Benny Morris e Illan Pappé representam também uma corrente
chamada revisionista, já que seus trabalhos tornaram a compreensão da Guerra de 1948
mais complexa ao introduzir a espinhosa questão da limpeza étnica dos palestinos.
Deste modo, revisaram a narrativa oficial israelense – e no caso de Pappé com o recurso
87 Idem, ibidem, p.76, citação à p.78.88 Idem, ibidem, p.79-81.89 LOFF, “ Depois da Revolução?...”, op. cit., p.13.90 SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma reavaliação da História dos EstadosUnidos. Da Colônia à Potência Imperial. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p.382-383.
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constitui um movimento necessário na disciplina toda a vez que surgem novas questões
para iluminar o passado. Como bem comentou Christopher Hill, historiador da
Revolução Inglesa do século XVII,
“A história precisa ser reescrita a cada geração, porque embora o passadonão mude, o presente se modifica; cada geração formula novas perguntasao passado e encontra novas áreas de simpatia à medida que revivedistintos aspectos das experiências de suas predecessoras.”96
Todavia, nessa reescrita a possíbilidade de que no final se acabe por produzir um
conhecimento inferior ao que se pretendia superar está sempre colocada, especialmente
quando o que move a produção de uma nova leitura não é mais que produzir uma
memória sob a roupagem acadêmica. É nesse sentido que na muito mencionada crítica
de Hobsbawm à Furet o historiador britânico ensina:
“Todos nós, inevitavelmente, escrevemos a história de nosso própriotempo quando olhamos para o passado e, em alguma medida,empreendemos as batalhas de hoje no figurino do período. Mas aquelesque escrevem somente a história de seu próprio tempo não podementender o passado e aquilo que veio dele. Podem até mesmo falsificar o
passado e o presente, mesmo sem intenção de o fazer.”97
Temos assim o que poderíamos dividir, grosso modo, de acordo com cada
contexto hermenêutico um revisionismo progressista e um revisionismo regressivo (ou
reacionário). Todavia, para evitar maiores confusões, o que aqui é chamado de
revisionismo está ligado a esta última acepção, pois se refere a proposições teórico-conceituais materializadas em narrativas que não avançam em nada nosso conhecimento
sobre o passado, ao contrário, o mistificam. Vejamos isso com detalhe na próxima
seção.
1.2 Revisão e revisionismo: o golpe de 1964 e a ditadura
A primeira parte do documentário de Patricio Guzman, A batalha no Chile, cujo
tema é o golpe contra Salvador Allende, é denominado de “A insurreição da
burguesia”.98 Como o próprio subtítulo indica, seu autor atribuiu àquele 11 de setembro
de 1973 não simplesmente o sentido de uma intervenção militar contra um governo
constitucional de esquerda; nem simplesmente o de uma intervenção de “civis” e
96 HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça. Ideias radicais durante a revolução inglesa de 1640. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1987, p.32.97 HOBSBAWM, Ecos da marselhesa, op. cit., p. 14. Grifo do autor.98 GUZMAN, Patrício. A batalha no Chile (Cuba, Chile, França, 1975).
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militares interrompendo um regime democrático; mas o de uma ação das classes
dominantes chilenas articuladas ao imperialismo estadunidense. Para além do
terrorismo de Estado, o caráter de classe do golpe chileno seria logo evidenciado pela
rápida implantação de políticas econômicas neoliberais, estabelecendo uma experiência
pioneira na aplicação das ideias de Hayek, Friedman, e seus epígonos.99
Quase uma década antes, o golpe de 1964 no Brasil foi entendido por uma série
de críticos numa chave muito próxima à de Guzman quando interpretou os eventos
chilenos. Embora por aqui o projeto vencedor não tenha sido o neoliberal, não há
dúvida de que também consistiu em um movimento das classes dominantes lideradas
por setores das Forças Armadas e apoiadas pelo imperialismo estadunidense. Não
obstante a natureza militar da operação golpista e da ditadura que se seguiu, a reflexão
crítica sempre procurou compreender esse processo como parte da dinâmica mais geral
do capitalismo brasileiro, buscando estabelecer a relação entre o “Big business”, osnúcleos do poder e a política daquele regime.
O golpe de 1964 como ação de classe foi, antes de tudo, um desdobramento
lógico da compreensão geral daquela ação e o regime que dali se originou como obra da
direita política. O crítico Roberto Schwarz iniciou célebre ensaio com o seguinte dizer:
“Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e o
continente contra o socialismo.”100 Porém, em tempos mais recentes, tem se construído
uma historiografia destinada a apresentar as esquerdas como co-responsáveis pelo
golpe, seja em função de seu (alega-se!) “pouco apego aos valores democráticos”, seja
por rumores de um golpismo por parte também da esquerda. Esse revisionismo
histórico, ao contrário do que acontece com a “historietografia neo-franquista”, vem
sendo impulsionado por alguns dos mais influentes historiadores acadêmicos, que
obviamente apresentam tanto um certo grau de sofisticação, como certa distância de
teses escandalosamente negacionistas que fazem parte dessa onda – como a da
“ditabranda”, defendida pelo famoso editorial do jornal Folha de São Paulo. 101
99 HARVEY, David. O Neoliberalismo: história e implicações. 2ª edição. São Paulo: Loyola, 2011, p.17-19.100 SCHWART, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969.” In. O pai de família e outros estudos. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1978, p.61.101 Em 17 de fevereiro de 2009, o jornal paulista resolveu “inovar” e, em editorial (“Limites a Chávez”)denominou o regime ditatorial instalado no Brasil em 1964 como “ditabranda”, o que provocou fortereação de setores da opinião pública que organizaram uma manifestação em frente aos escritórios daFolha. O apanhado do ocorrido pode ser lido em TOLEDO, Caio Navarro de. “Crônica política sobre umdocumento contra a ‘ditabranda’.” Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v.17, n.34, p.209-217, 2009.
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Esse reconhecimento de uma corrente revisionista na historiografia, não só por
parte de seus críticos,102 mas também por uma interlocutora desta corrente,103 já faz
deste um dos debates mais importantes da historiografia do Brasil Contemporâneo.
Todavia, a parte alcunhada de revisionista, não tem (aparentemente) se interessado por
responder seus críticos, comportando-se de forma similar à atitude de “candidatosfavoritos” nos processos eleitorais.
O propósito das linhas a seguir é o de discutir essa mudança da explicação para o
golpe de 1964, começando por comentar alguns trabalhos que se tornariam referência
obrigatória ao estudo do golpe de 1964 e da ditadura, para em seguida discutir o
revisionismo, elegendo os trabalhos dos autores mais influentes nos estudos sobre a
história do Brasil contemporâneo.
1.2.1 – O golpe e a ditadura do grande capitalFlorestan Fernandes, ao caracterizar, em A Revolução Burguesa no Brasil, a
natureza contra-revolucionária da modernização capitalista brasileira, considerou o
golpe e a ditadura iniciada em 1964 como uma exacerbação da natureza autocrática da
nossa classe dominante. Se na República de 1946 a dominação política foi feita com a
manutenção de procedimentos típicos de uma democracia-liberal, dando à autocracia
burguesa um aspecto velado, com a ditadura militar a burguesia continuaria seu “baile
sem máscaras”, concluía o sociólogo paulistano.104
Em seu influente ensaio Crítica à razão dualista, escrito no contexto do
chamado “Milagre brasileiro”, Francisco de Oliveira também discutiu as condições sob
as quais o regime ditatorial, ao contrário de estagnar a economia, 105 foi eficiente em
acelerar a acumulação capitalista no Brasil, aceleração essa que se tornou possível
graças às condições de uma super-exploração da classe trabalhadora estabelecida pelo
102 TOLEDO, Caio Navarro de. “1964: golpismo e democracia. As falácias do revisionismo.” Crítica Marxista, São Paulo, n.19, p.27-48, 2004. MATTOS, Marcelo Badaró. “Os trabalhadores e o golpe de
1964.” História & Luta de Classes, n.1, p.7-18, 2005. MELO, Demian. “A miséria da historiografia.”Outubro, São Paulo, n.14, p.111-130, 2006. ARANTES, Paulo Eduardo. “1964, o ano que não terminou.”In. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. SãoPaulo: Boitempo, 2010, p.205-236.103 O reconhecimento da existência dessa controvérsia por parte de uma interlocutora da historiografiarevisionista – que, no entanto, afirma-se em distanciamento crítico à mesma – está em DELGADO,Lucilia de Almeida Neves. “O Governo João Goulart e o Golpe de 1964: memória, história ehistoriografia.” Tempo, Niterói, vol.14, n.28, p.123-143, jan.jun.2010.104 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p.340.105 Como acreditava Celso Furtado. Cf. FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América
Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
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regime ditatorial.106 De acordo com o autor, a brutal concentração de riqueza e a
repressão salarial – facilitada pela desarticulação da vida sindical – teriam criado as
condições para a retomada do ciclo econômico, com a recuperação das taxas de lucro.
Oliveira concluiu seu raciocínio com as seguintes palavras:
“(...) o pós-1964 dificilmente se compatibiliza com a imagem de umarevolução econômica burguesa, mas é mais semelhante com o seuoposto, o de uma contra-revolução. Esta talvez seja sua semelhança mais
pronunciada com o fascismo, que no fundo é uma combinação deexpansão econômica e repressão.”107
Não é por acaso que o auge da repressão tenha sido justamente no período do
“milagre”, como, a propósito, também apontaram Rui Mauro Marini e Theotônio dos
Santos.108 Autores que partiriam de registros teóricos distintos também enfatizariam a
forte imbricação da ditadura militar brasileira com a dinâmica do capitalismo, como, por
exemplo, Guilllermo O’Donnell em seu conceito de “Estado Burocrático
Autoritário”.109 Pensado como um tipo ideal weberiano para caracterizar as ditaduras do
Cone Sul dos anos 1960, tais regimes teriam como sentido a profundización da forma de
capitalismo dependente que emergiu no subcontinente na década de 1950. Deste modo,
tanto a experiência argentina de 1966-1973 quanto a brasileira iniciada em 1964
caracterizavam-se, segundo O’Donnell, pelo fato de serem regimes que buscaram criar
as garantias institucionais que permitiriam a acumulação capitalista dependente. A
despeito da experiência argentina ter sido um enorme fiasco, principalmente em
comparação com o Brasil (que viveu seu “milagre” entre 1968-1973), o pesquisador
encontrou a importante conexão histórica entre aquela nova forma de autoritarismo
emergente com as ditaduras militares e as necessidades do padrão capitalista dependente
recuperar as condições para o seu pleno desenvolvimento.
Os trabalhos de Moniz Bandeira são uma parada obrigatória neste debate,
especialmente o seu clássico O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil .110
Um dos pontos altos da literatura sobre o golpe, fartamente documentado e teoricamente
106 Publicado originalmente em 1972, o ensaio recentemente foi republicado em: OLIVEIRA, Francisco.Crítica à razão dualista. O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.107 Idem, ibidem, p.106.108 A tese seria contestada por Fernando Henrique Cardoso e José Serra nos anos setenta, uma vez queestes estavam interessados em convencer o empresariado nacional de que não haveria afinidade eletivaentre repressão e crescimento econômico, e de que deveriam apoiar a redemocratização.109 O’DONNELL, Guilermo. Reflexões sobre os estados burocrático-autoritários. São Paulo: Vértice;Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1987.110 A primeira edição é de 1977, pela Civilização Brasileira, e a 7ª pelas Ed.UNB e Revan. A mais recentee ampliada é BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil (1961-1964). 8ªedição. São Paulo: UNESP, 2010.
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informado, estando já em sua 8ª edição atualizada, o livro é explicitamente inspirado
nos textos históricos de Karl Marx sobre a França. Nesse sentido, sua simpatia pelas
lideranças da esquerda nacionalista, como Jango e Brizola, não o impede de ver
profundas contradições na sociedade capitalista brasileira constrangendo as opções dos
atores políticos. Assim, as lutas políticas não operam em um vazio de determinações; aocontrário, há uma crise profunda no início dos anos sessenta que determinava os limites
das opções dos sujeitos históricos. Estas contradições acabaram resolvidas à direita,
com o golpe de Estado e a ditadura, tal como na França em 2 de dezembro de 1851.
Com o trabalho do cientista político uruguaio René Armand Dreifuss, 1964, a
conquista do Estado, o esclarecimento sobre a ação das classes dominantes naquele
período-chave da história brasileira ganhou maiores contornos.111 A partir de extensa
documentação, Dreifuss estudou a fundo duas entidades centrais no processo político
que conduziu ao golpe de 1964 – o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e oInstituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) –, buscando entender aquela
“insurreição da burguesia” como resultado da ação organizada do setor mais
internacionalizado do empresariado brasileiro. Tendo emergido como um capital
multinacional e associado a partir do desenvolvimentismo do período Juscelino
Kubitschek (1956-1961), tal fração de classe organizada por seus intelectuais orgânicos
no IPES tornou esta entidade da sociedade civil um dos principais centros da
conspiração que depôs o presidente João Goulart, apoderando-se do aparelho de Estado
através da ocupação dos seus postos estratégicos. Áreas estratégicas como o
Planejamento e a Fazenda ficariam, desde o governo Castelo Branco (1964-1967) até o
fim do regime, em mãos de ipesianos como Delfim Neto, Roberto Campos, Otávio
Gouveia de Bulhões, entre outras eminências pardas civis.
Dreifuss demonstrou que, uma vez no poder, o IPES (como representante dessa
fração internacionalizada do capital) conseguiu implementar grande parte de seu
programa anteriormente formulado, empreendendo transformações importantes no
arcabouço institucional de regulação do capitalismo brasileiro, através de uma vasta
Reforma Administrativa, da criação do Banco Central e do Conselho Monetário
Nacional, introduzindo a primeira flexibilização da legislação trabalhista no Brasil –
através da lei do FGTS – entre outras medidas no interesse do capital monopolista, além
do Serviço Nacional de Informações (SNI), criado ainda em 1964 pelo general Golbery
111 DREIFUSS, René Armand. 1964, a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.
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Não foi assim descabido que a intelectualidade crítica não tivesse dúvidas em
vincular o “terror de Estado” ao “Big business”. E não foi por acaso que alguns
opositores do regime recorreram à “expropriação de bancos” como forma de financiar
sua luta, enquanto o grande empresariado nacional juntou-se ao regime para organizar a
brutal repressão à resistência armada.Buscando apreender criticamente esse processo, trabalhos como o de Dreifuss
começariam a propor uma formulação conceitual tanto para o golpe quanto para a
ditadura a partir do adjetivo “civil-militar”, tendo “civil” aí um sentido claramente
classista. Entendendo esses civis, como vimos, como parte de uma elite organicamente
ligada aos interesses do capital multinacional e associado, o cientista político uruguaio
nos ensina algo de fundamental sobre aqueles “civis” que fizeram parte do IPES:
“Um exame mais cuidadoso desses civis indica que a maioria
esmagadora dos principais técnicos em cargos burocráticos deveria (emdecorrência de suas fortes ligações industriais e bancárias) ser chamadamais precisamente de empresários, ou, na melhor das hipóteses, de tecno-empresários.”116
Todavia, nesses tempos que correm, o termo “civil-militar” tem servido mais
para criar uma mistificação do processo histórico, qual seja, a de que a “sociedade” foi
cúmplice daquela ditadura. A verdade é que o próprio termo presta-se a equívocos, por
que pode levar a uma utilização na qual se passa a compartilhar a ideologia corporativa
própria dos militares, que concebem a sociedade dividida entre eles e os “civis”.
Certamente não foi nesses termos simplórios que Dreifuss propôs a noção de “civil-
militar”.
Mas antes de adentrarmos na crítica de certa historiografia recente, caberia
apenas mencionar como esse aporte crítico, tornou-se praticamente uma leitura canônica
do golpe de 1964,117 já nas condições do processo de luta final contra o regime
ditatorial. Isso fica bastante evidenciado no documentário de Silvio Tendler, Jango
(1984), lançado bem no meio da campanha popular pelas eleições diretas para a
Presidência da República, e que levou milhões de pessoas às ruas do país. Com o textode Maurício Dias e música de Wagner Tiso e Milton Nascimento, o filme fez parte do
116 DREIFUSS, 1964, op. cit., p.417. Grifo nosso.117 Ao mesmo tempo em que, desde seu lançamento, o trabalho de Dreifuss recebeu objeção justamente
por considerar o golpe como uma ação de classe, como apareceu na resenha de Maria Vitória Benevides, publicada à época do lançamento de 1964, a conquista do Estado, e republicada já no contextorevisionista em: BENEVIDES, M. V. “64, um golpe de classe? (sobre um livro de René Dreifuss).” Lua
Nova, v. 58, p. 255-261, 2003.
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A adesão de toda a região ao neoliberalismo – que a essa altura alcançava uma inédita
hegemonia global –,118 combinada à capitulação da esquerda à ordem institucional
liberal,119 condicionou o ambiente da produção intelectual nessa latitude do mundo.
Para completar o “exorcismo da Revolução”, tratava-se agora de anatemizar a estratégia
que parte da esquerda latino-americana alimentou ao longo do século XX,especialmente quando do combate às ditaduras militares, mas não só.120 Tal como
acontece em todo o mundo, também por aqui a esquerda está no “banco dos réus”, e seu
“crime” foi ter pretendido “mudar o mundo”.121
Assim, não foi por acaso que nos anos 1990 que ganharam força no Brasil visões
relativizadoras do golpe e da ditadura. A primeira operação realizada por essa “nova”
literatura foi a de deslocar a explicação daquela ditadura da problemática do
capitalismo. Sob o argumento falacioso segundo o qual conectar o processo político à
dinâmica econômica seria o mesmo que “economicismo”, uma leitura “politicista” veio propor como explicação para o golpe e a ditadura um suposto “déficit democrático” na
sociedade brasileira, de acordo com o qual, nos idos dos anos sessenta, tanto a direita
quanto a esquerda seriam igualmente “golpistas”. Um raciocínio que, antes de mais
nada, beira a tautologia e se aproxima do de algo como: “existiu a ditadura por que não
éramos democratas!”
O trabalho que inaugura este revisionismo histórico sobre o golpe de 1964 é o
livro da cientista política Argelina Cheibub Figueiredo, Democracia ou reformas?
Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964.122 Fruto de sua tese de
doutorado em Ciência Política na Universidade de Chicago, defendida em 1988, a
autora foi a primeira a propor uma abordagem explicitamente alternativa ao livro de
Dreifuss. Em seu livro, nos dois momentos em que visa criticar diretamente Dreifuss
118 Sobre a hegemonia planetária do neoliberalismo nos anos 1990, cf. ANDERSON, Perry. “O balançodo neoliberalismo.” In. SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociaise o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p.9-23. _______. “Ideias e ação política na mudançahistórica.” Margem Esquerda, n.1, São Paulo, p.19-92, 2003.119 Um profundo estudo do caso do Partido dos Trabalhadores no Brasil está em COELHO, Eurelino.Uma esquerda para o capital: o transformismo dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). Feira de
Santana: Ed. UEFS; São Paulo: Xamã, 2012.120 Um livro que é quase um emblema desse clima intelectual é CASTAÑEDA, Jorge G. Utopiadesarmada: intrigas, dilemas e promessas da esquerda latino-americana. São Paulo: Companhia dasLetras, 1994.121 Com o flagrante propósito de apenas desqualificar personagens importantes da história da esquerda
brasileira, temos dois monumentos erguidos nos anos 1990: o livro de Luis Mir ( A revolução impossível:a Esquerda e a Luta Armada no Brasil. São Paulo: ed. Best Seller, 1994), e o filme de Bruno Barreto Oque é isso companheiro? (Brasil, 1997), baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira (escrito em1979).122 FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise
política: 1961-1964. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
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possibilidade de uma saída conciliatória para a crise política: durante o parlamentarismo
e no início de 1963, quando o governo tentou implementar o Plano Trienal do ministro
Celso Furtado. No primeiro caso, a autora condena Goulart por ter deixado de
“aproveitar” o parlamentarismo, preferindo desmoralizá-lo; no segundo, condena as
esquerdas por terem sido “apressadas”, pois obviamente o Plano Trienal desagradou osmovimentos populares frustrados com a diretiva da ortodoxia monetarista que previa a
contenção salarial como forma de deter a inflação. Para a autora, após o fracasso dessas
“possibilidades”, estreitou-se o campo de ação do governo, fazendo crescer o poder
daqueles que acabaram por depô-lo, liquidando com a democracia e a possibilidades de
reformas.
Por fim, é necessário fazer uma observação sobre a natureza ideológica do
problema que orienta o trabalho de Argelina Figueiredo. Afinal, tal oposição entre
“democracia” e “reformas” é sintomática da adesão a um conceito específico de“democracia” que se liga ao pensamento neoliberal, cuja agenda esteve ligada ao
desmonte dos direitos sociais (e parte dos políticos) e à redução do regime democrático
aos marcos da concepção schumpeteriana.124 De tal concepção, deriva uma outra, qual
seja, a de que seria possível “negociar”, com base nesse suposto “acordo” entre todos os
“atores políticos relevantes”, um programa de “reforma agrária moderado”, como
também o restante das “reformas de base”. Assim, de acordo com a pesquisadora, o que
teria faltado mesmo foi a disposição dos tais “atores políticos relevantes” para negociar
uma saída que “preservasse a democracia”.
Em uma historiografia que começaria a ser produzida no início os anos 2000 e
que ganharia grande repercussão no contexto dos quarenta anos do golpe de Estado
(2004), as teses revisionistas de Argelina Figueiredo encontrariam guarida, como pode
ser aferido nos trabalhos do professor Jorge Ferreira (do Departamento de História da
UFF), que explicitamente a toma como referência. Em inúmeros artigos em revistas
acadêmicas e de divulgação científica, em capítulos de livros e em sua recente biografia
124 Na visão do economista austríaco, a democracia deveria ser simplesmente um procedimento para aescolha de elites políticas, isto é, desprovida de várias das características que marcaram os regimes deWelfare State na Europa Ocidental, após a II Guerra, como o sistema de segurança social e serviços
públicos universais. Nos anos 1970, cientistas políticos como Samuel Huntington iriam reabilitar a “teoriademocrática schumpeteriana”, o mesmo também acontecendo na lavras de intelectuais aparentementedistantes da direita política, como o cientista político polonês Adam Przeworski, não por acaso, orientadorda tese de Argelina Figueiredo. Sobre a importância das proposições schumpeterianas nainstitucionalização das democracias realmente existentes na América Latina após as ditaduras, verMACHADO, Eliel. “Limites da ‘democracia procedimental’ na América Latina.” Mediações, v.13, n.1-2,
p.260-282, jan/jun e jul/dez. 2008.
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esquecer também que, em nenhum momento de seu discurso na Central,137 Goulart
insinuou pretensões continuístas, embora esta acusação tenha sido feita justamente pelo
jornal lacerdista no dia posterior ao comício,138 tendo sido utilizada como argumento
por aqueles que o depuseram. Não seria também ingenuidade abstrair o fato de que as
perguntas que orientaram tal “pesquisa” estivessem de acordo com as acusações feitas pela direita golpista, perguntas feitas justamente para azeitar a mobilização contra-
revolucionária?
O ponto mais característico deste revisionismo historiográfico – a acusação do
golpismo da esquerda –, é reafirmado em diversos pontos de seu livro, mesmo quando,
aparentemente, Ferreira isenta Jango de intenções continuístas:
“Não se pode afirmar que um golpe de Estado liderado por Jango e pelasesquerdas estaria em curso. Ninguém, com segurança, pode fazer taldeclaração. Mas é inegável que a Frente de Mobilização Popular
manifestava desprezo pelas instituições liberais democráticas. Nosdiscursos das lideranças de esquerda e do próprio governo,
principalmente com a Mensagem presidencial, o regime político eradescrito com imagens bastante negativas: a Constituição de 1946 estavaultrapassada, o Congresso Nacional era um antro de latifundiários, enovas formas de governabilidade deveriam ser implementadas – aexemplo de plebiscitos, delegação de poderes e uma Constituinteformada de operários, camponeses, sargentos e oficiais militaresnacionalistas. As mudanças nas regras eleitorais, beneficiando acandidatura de Brizola à presidência da República e permitindo areeleição de Jango, somente contribuíam para criar mais suspeições. AFrente de Mobilização Popular e o PCB não escondiam que seu projetoera governar o país com exclusividade, impondo seu programa degoverno e não considerando outras tendências políticas do quadronacional – vista como conservadoras, decadentes, reacionárias,entreguistas etc.”139
Ou seja, aquilo que provavelmente era a percepção mais realista da esquerda sobre a
sorte daquele regime – que era a sua crise e a necessidade de modificá-lo –, é tomado
como opinião “golpista” por Ferreira. Afinal, como é possível negar que, ao contrário
do que sugere o teor deste trecho, de fato, “a Constituição de 1946 estava ultrapassada,
o Congresso Nacional era um antro de latifundiários, e novas formas de governabilidade
137 O discurso está reproduzido na íntegra em vários lugares. Consultamos em CARONE, Edgar. AQuarta República (1945-1964). São Paulo; Rio de Janeiro: DIFEL, 1980, p.232-243.138 Com a manchete “Jango começa reeleição”, o jornal Tribuna da Imprensa assim sintetizou osignificado do Comício: “O discurso do sr. João Goulart, no comício da Central do Brasil, deixou claro
para os que o ouviram os seus propósitos espúrios de continuísmo. Brizola voltou a ser cúmplice.”Tribuna da Imprensa, 14 de março de 1964, p.1.139 FERREIRA, João Goulart , op. cit., p.433-434.
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deveriam ser implementadas”? Afinal, não foi esse mesmo Congresso que, na
madrugada do dia 1º de abril consolidou o golpe de Estado, através da fala do presidente
do Senado, Auro Moura Andrade, declarando “vaga à Presidência da República”, e
empossando o presidente do Congresso, Ranieri Mazzili?140
Esse revisionismo vem ganhando importante lugar na produção de uma literaturadestinada ao grande público. Em seu já famoso livro Ditadura envergonhada, o
jornalista Elio Gaspari afirma, como se fosse auto-evidente, que em março de 1964
existiam “dois golpes em curso”, o de Jango e o dos militares. Sua explicação é que “o
país estava uma bagunça” e, temendo o golpe de Jango, os militares simplesmente
“chegaram antes”.
“Havia dois golpes em marcha. O de Jango viria amparado no“dispositivo militar” e nas bases sindicais, que cairiam sobre oCongresso, obrigando-o a aprovar um pacote de reformas e a mudança
das regras do jogo da sucessão presidencial.”141
E quais as evidências que sustentam esta afirmação? A carta de um coronel golpista, o
livro pró-golpe de Glauco Carneiro e um memorando do embaixador estadunidense
Lincoln Gordon. Mais uma vez, nenhum tipo de evidência minimamente confiável.142
Os intragáveis guias politicamente incorretos disso e daquilo, ladeados pela biografia
do ex-presidente deposto escrita por Marco Antonio Villa, que acusa Jango de
golpismo, vem somando-se a essa onda.143 É de fato curioso: tanto na biografia quase
hagiográfica de Ferreira, quanto na escrita por um direitista como Villa – que pauta toda
sua explicação na suposta “incompetência” de Goulart – convergem para uma
explicação similar do golpe de 1964.
Enquanto isso, no âmbito dos estudos dedicados à ditadura propriamente, o
argumento do “déficit democrático” tem ganhado ares de uma condenação generalizada
às oposições armadas, em leitura proposta por um historiador de passado ligado a tais
correntes. Sob o argumento de que ainda sob o regime de terror os “compromissos” da
esquerda com a democracia não existiam (já que estas queriam “implantar outra
ditadura”), Daniel Aarão Reis ganhou expressivos setores acadêmicos e da opinião
pública para a reprodução do que, afinal, sempre foi um dos argumentos principais dos
golpistas e ditadores de plantão.
140 Como, aliás, Ferreira anota em seu livro. Idem, ibidem, p.500.141 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.51.142 Ver MAESTRI, Mário & JAKOBSKIND, Mário Augusto. “A historiografia envergonhada” Revista
História & Luta de Classes. Ano 1, nº 1, 2005, pp. 125-131.143 VILLA, Marco Antonio. Jango, um perfil (1945-1964). São Paulo: Editora Globo, 2004, p.7-9.
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Em outro momento da sua produção intelectual, por volta dos vinte anos do
golpe (1984), quando em entrevista publicada, Aarão Reis assim descreveu aquele
processo:
“Março de 1964 representou um marco na história de nosso país. Asclasses dominantes e uma importante parcela das classes médias deramentão cobertura para um golpe militar que teve como principal objetivodeter o movimento social dos trabalhadores urbanos e rurais e destruirsuas formas de organização. Os partidos políticos tradicionais foramdescartados. O novo poder prepararia as condições para um novo salto
para a frente do capitalismo brasileiro. Os trabalhadores, do campo e dacidade, foram os grandes perdedores.”144
Em sua afamada tese de doutorado sobre a história da luta armada contra a ditadura, A
revolução faltou ao encontro, nosso autor assinalou que o golpe “reforçou a hegemonia
do capital internacional no bloco do poder”.145
Entretanto, em livro publicado em 2000, denominado Ditadura militar,
esquerdas e sociedade, esposou a tese de que em 1964 os sinais se inverteram e foi a
direita que apareceu ao lado da “defesa da Constituição” (uma tese, a propósito, dos
próprios golpistas) – pois, em suas palavras, a esquerda “radicalizou” e passou a
defender as “reformas na lei e na marra”. Na mesma obra, o historiador propôs um novo
marco para o fim da ditadura: o ano de 1979, em razão da revogação do AI-5 e da
promulgação da Lei de Anistia, que permitiu a volta dos opositores exilados.146
Recentemente, o autor tem insistido na natureza “civil-militar” da ditadura, mas parece
bem distante do sentido dado a este termo no citado trabalho de Dreifuss.
Participando do deslocamento do capitalismo do centro da reflexão sobre o
sentido da ditadura, a historiografia revisionista coloca em seu lugar um programa de
pesquisas dedicado a investigar o “apoio” da “sociedade” ao “autoritarismo”,
incorporando perspectiva muito próxima ao revisionismo de Goldhagen. Embora
rechaçada pela maior parte dos especialistas, justamente por culpar “todos os alemães”
pela Shoà, um ponto de vista semelhante ao de Goldhagen parece estar presente nesses
trabalhos interessados em apresentar o que seria a “opinião dos brasileiros sobre aditadura” – algo evidentemente metafísico e mistificador.
144 O depoimento está publicado em SILVA, José Luiz Werneck da. A deformação da História ou Paranão esquecer . Rio de Janeiro: Zahar, 1985. Agradeço ao historiador Eduardo Stotz pela indicação destareferência.145 REIS, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. 2ª edição. São Paulo:Brasiliense, 1990, p.22.146 REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
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Depois de explicar o golpe através da afirmação de que a esquerda também era
“golpista” e “autoritária”, o que se passa a dizer agora é que também a “sociedade
brasileira” foi cúmplice daquela ditadura. Nessa visão, a “sociedade” é tratada quase
como se fosse uma pessoa, algo, aliás, presente no paradigma liberal – que a define
como uma “soma de indivíduos” – e que engendra argumentos como os de que “não é possível vitimizar a sociedade”, ou de que, sendo pessoa, deveria “se colocar na frente
do espelho”.147 Em recente intervenção nesse debate,148 Daniel Aarão Reis elencou três
argumentos com os quais queria provar o tal “apoio da sociedade brasileira” à ditadura:
1)
as Marchas com Deus, pela Pátria e Família, organizadas antes (em São
Paulo) e depois do golpe de Estado (no Rio de Janeiro, capitais e muitas
cidades do país);
2)
as votações expressivas no partido de apoio à ditadura – Aliança Renovadora
Nacional (Arena);3)
e a suposta popularidade do presidente general Emílio Médici (1969-1974).
Vejamos a consistência desses elementos. Em primeiro lugar, sim as marchas em
apoio ao golpe e à ditadura já instalada foram massivas, afinal, ao contrário do que
afirma parte dessa historiografia revisionista, o povo “não assistiu bestializado” ao
golpe de Estado,149 pois uma parte dele certamente o apoiou com algum grau de
ativismo. Essa é, aliás, a natureza da crise dos anos 1960: a sociedade estava divida, à
esquerda e à direita. Os derrotados obviamente não poderiam se manifestar depois do
golpe.
Em segundo lugar, o argumento da “expressiva votação da Arena” não leva em
conta que parte não desprezível da oposição ao regime pregou o voto nulo como forma
de denunciar a farsa de ter de escolher entre o partido do “sim” (ARENA) e o do “sim
senhor”, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), oposição consentida. O próprio
147 Em obra coletiva animada por este programa revisionista, em sua “Apresentação” as organizadoras –
após reproduzirem as mesmas imagens fetichistas assinaladas – assim se referem ao propósito de“entender como os ditadores foram amados – quando se trata de ditaduras pessoais – não porque temidos,mas, provavelmente, porque expressam valores e interesses da sociedade que, em dado momento, eramoutros que não os democráticos”. ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construçãosocial dos regimes autoritários. Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010,
p.17, grifo nosso.148 Ver esse argumento em REIS, Daniel Aarão. “Ditadura, anistia e reconciliação.” Estudos Históricos,Rio de Janeiro, vol.23, n.45, p.171-186, jan./jun.2010.149 Em já citado capítulo de livro, Ferreira assim concluiu seu argumento sobre o golpe: “Entre aradicalização da esquerda e da direita, uma parcela ampla da população apenas assistia aos conflitos,silenciosa.” FERREIRA, “O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964”, op. cit., p. 400.
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autor, em seu supracitado livro Ditadura militar, esquerdas e sociedade havia
enfatizado a enorme proporção de votos nulos e brancos nas eleições de 1966 e 1970,150
mas hoje prefere abandonar esse elemento que afinal esclarece como parte significativa
da sociedade brasileira não colaborou nem apoiou aquela barbárie. Aliás, nas eleições
de 1974, quando o regime afrouxou o controle sobre a propaganda eleitoral, o votooposicionista foi vencedor, ainda sob o agora “popular” Médici.
Certamente nos anos Médici a ditadura viveu seu auge, o “Milagre brasileiro” e
o desbaratamento da oposição anti-sistêmica simbolizaram a vitória dos preceitos que
em 1964 conquistaram o Estado. A modernização capitalista e a contra-revolução
estavam plenamente vitoriosas.151 E, certamente, essa supremacia, somada ao amplo uso
de publicidade estatal (combinada a uma dose cavalar de coerção) produziu certo
consenso, mas é preciso não exagerar.
Pois o mínimo que se espera é que os historiadores sejam capazes de problematizar certas fontes, como o são as pesquisas de opinião feitas no contexto de
uma ditadura. Qualquer opositor do regime ditatorial – qualquer que fosse sua tendência
política –, em face de uma entrevista sobre o comandante em chefe da ditadura,
certamente, por uma questão de sobrevivência, evitaria pronunciar-se de forma crítica
em relação àquele governo. Desse modo, é sob suspeita quanto à verossimilhança de
suas informações que uma fonte deste gênero deve ser mobilizada na prática
historiográfica. Muito menos a euforia com o tricampeonato mundial de futebol (1970),
a frequência a festividades cívicas, ou os aplausos ao general Emílio Garrastazu Médici
nos estádios de futebol, podem ser contabilizados como provas suficientes de que
apenas “uns loucos” não percebiam que aquele era “um país que vai pra frente”, ainda
que, certamente, a ditadura tenha sabido tirar um bom proveito disso tudo.
* * *
Jogando essa luz inicial, acreditamos ter começado a situar o lugar deste estudo
sobre a participação da classe trabalhadora no processo político brasileiro,
apresentando-o como uma contribuição crítica. Resta-nos ainda discutir como evoluíram
150 Naquele livro ele afirma que nas eleições de 1966 os votos brancos e nulos alcançaram proporçõesinéditas, e sobre as eleições de 1970 o número destes votos de protesto seria ainda maior, alcançando oíndice de 30%. REIS, Ditadura militar , op. cit., p.44 e 59.151 LEMOS, Renato. “Contrarrevolução e ditadura no Brasil: elementos para uma periodização do
processo político brasileiro pós-1964.” (mimeo) Disponível emhttp://www.ifcs.ufrj.br/~lemp/imagens/textos/Contrarrevolucao_e_ditadura_no_Brasil.pdf
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Capítulo 2 - A evolução dos estudos sobre o
trabalho no Brasil e a controvérsia do populismo
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Já se disse que uma marca das primeiras gerações de pesquisadores acadêmicos
sobre o mundo operário no Brasil é que, particularmente no que diz respeito ao período
de 1930 a 1964, a classe trabalhadora foi caracterizada sempre no negativo.153 Seja em
decorrência de sua recente experiência no mundo industrial capitalista, ou pelas
debilidades das suas direções políticas, os primeiros autores que na jovem vidauniversitária brasileira se debruçaram sobre a classe operária no país tinham em comum
a certeza de que naquele período esta esteve aquém de outras experiências históricas.
Como é sabido, tais leituras estiveram ligadas às diversas formulações do
conceito de populismo, utilizado por um certo número de analistas para entender a
formação social latino-americana quando o subcontinente operava seu processo de
modernização urbano/industrial capitalista. Neste capítulo, discutiremos algumas
características desta literatura com o propósito de apresentar o lugar de nosso objeto
nesse debate mais geral. O sentido da exposição será o de apresentar as insuficiênciasdo conceito de sindicalismo populista, noção já muito criticada pela literatura recente.
2.1 As interpretações “sociológicas” e “políticas” sobre a trajetória da
classe trabalhadora brasileira entre 1930-1964
Em um conhecido texto dos anos setenta, Eric Hobsbawm discutiu como o
campo de estudos sobre a história dos trabalhadores foi originariamente formado pela
literatura produzida pelos próprios intelectuais orgânicos do movimento operário, tendo
a maior parte deles nenhuma ligação com o mundo acadêmico/universitário, “mesmo
quando sua formação e erudição eram impecáveis”.154 Além do casal Sidney e Beatrice
Webb na Grã Bretanha, ligados ao Labour Party e autores de uma importante obra
dedicada ao movimento cartista, ou mesmo dos socialdemocratas alemães Franz
Mehring e Gustav Mayer, Hobsbawm lembra apropriadamente o fato de que, quando
publicou em 1963 seu influente The Making of the English Working Class, E. P.
Thompson não pertencia ao mundo universitário, tendo se tornado professor
universitário somente depois da repercussão daquela obra. O vínculo com a militância política é, de certo modo, uma marca que caracteriza a maior parte dos estudiosos do
tema. Como conclui o autor,
153 MATTOS, Marcelo Badaró (coord.), Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca (1945-1964). Rio de Janeiro: Faperj/Aperj, 2003, p.19.154 O artigo foi publicado originalmente no Journal of Social History, em 1974, e no Brasil emHOBSBAWM, Eric. “História operária e ideologia.” In. Mundos do Trabalho. Novos estudos sobrehistória operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p.15-31, a citação é da p.16.
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“Para muitos de nós o objeto final de nosso trabalho é criar um mundo noqual os trabalhadores possam fazer sua própria vida e sua própriahistória, ao invés de recebê-las prontas de terceiros, ainda queacadêmicos.”155
No Brasil foi também da pena de militantes do movimento operário que esse
campo de estudos começou a se formar. Até porque, como lembrou Paulo Sérgio
Pinheiro também pelos anos setenta, acompanhando a tendência pelo alto da nossa
modernização burguesa, “a historiografia [brasileira] até então sempre havia
privilegiado as classes dominantes em detrimento das relações sociais que marcaram o
processo histórico”.156 E durante muito tempo, a única literatura disponível sobre esse
tema era também proveniente de antigos militantes comunistas, socialistas e
anarquistas.157
Como também discute Hobsbawm no mesmo artigo supracitado, a produçãooriginária deste campo, não obstante seus méritos, possuía alguns problemas com os
quais a nova história social do trabalho teve que lidar, como a indistinção entre os
movimentos organizados da classe trabalhadora e a classe em sua totalidade, ou mesmo
a redução da vida da classe à história de um partido, sindicato ou movimento social.
Ainda que as organizações tivessem sido altamente representativas na experiência
histórica de diversas classes trabalhadoras, a história destas não poderia ser
simplesmente reduzida à vida daquelas entidades.158 Além disso, em muitos casos essa
historiografia militante tendeu a reproduzir certos cacoetes típicos das disputas nointerior do movimento operário em suas narrativas, produzindo também hagiografias.159
No Brasil, por exemplo, Astrogildo Pereira, legendário personagem da história
da esquerda, que trocou o anarquismo pelo comunismo no início dos anos vinte
(tornando-se fundador do PCB), chegou ao ponto de propor uma periodização que
considerava a etapa anterior à fundação do Partido (1922) como uma espécie de “pré-
história da classe operária no Brasil”.160 Certamente se apoiando nos ombros desta
155 Idem, ibidem, p.30.156 PINHEIRO, Paulo Sérgio. “Trabalho industrial no Brasil: uma revisão.” Estudos Cebrap, São Paulo,n.14, p.120-131, 1975, citação p.121.157 Idem, ibidem, p.122. O autor arrola os livros provenientes de históricos militantes como EverardoDias, Edgar Rodrigues, Edgar Leuenroth, José Oiticica, Gigi Damiani.158 Embora não seja possível entender a história da classe trabalhadora sem as instituições criadas por elae que resultam do choque de contradições sociais que, afinal, constitui as próprias classes.159 Cf. HAUPT, Georges. “Por que a história do movimento operário?”, Revista Brasileira de História,São Paulo, v.5, n.10, p.208-231, março/agosto de 1985.160 Ideia expressa em conjunto de artigos dos anos cinquenta editados sobre a forma de livro com o títuloFormação do PCB: 1922-1928. Notas e documentos. Rio de Janeiro: Vitória, 1962.
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produção originária, os primeiros pesquisadores do campo do trabalho no meio
universitário – como Azis Simão, Leôncio Martins Rodrigues, José Albertino
Rodrigues, entre outros, – tenderam a criticar a insuficiência destas abordagens
militantes, ainda que estes pesquisadores também fossem personagens ligados (ou de
pregressa ligação) com a causa operária.161
É ocioso dizer que os estudos universitários sobre o trabalho se iniciaram em
primeiro lugar nas ciências sociais, pioneiramente no campo da sociologia, sendo logo
seguidos pela ciência política e pela antropologia nos anos sessenta do século XX,
muito antes de interessar aos historiadores. Somente já na segunda metade dos anos
setenta é que aparecerão os primeiros estudos feitos propriamente por historiadores de
formação, tendo sido os anos oitenta pontuados por uma significativa presença de
estudos sobre o movimento operário e outros aspectos do mundo do trabalho na
historiografia brasileira.De acordo com Cláudio Batalha, nos anos noventa tal campo entrou em crise,
sendo pouco visitado pelos historiadores,162 sendo sintomático o fato de uma importante
obra coletiva publicada nos anos noventa com o propósito de realizar o balanço sobre os
rumos da disciplina, Domínios da História, dedicar precisamente dois parágrafos de um
artigo para o campo da história social do trabalho.163 Não obstante esse eclipse da classe
trabalhadora que se verificou nos anos noventa, o tema continuou a ser objeto das
preocupações pelas ciências sociais, particularmente pela sociologia e também, em
escala bem menor, pela antropologia.164 E foi precisamente das ciências sociais que
161 Enquanto Leôncio Rodrigues pertenceu aos quadros da pequena agremiação Partido OperárioRevolucionário Trotskista (POR-T) nos anos cinquenta, José Albertino foi do PCB por breve período,mas continuou a ter uma prática intelectual próxima ao movimento operário devido sua atuação noDepartamento Intersindical de Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE). Outro pioneiro dos estudosacadêmicos do movimento operário, Azis Simão, foi atuante no Partido Socialista nos anos trinta, etambém pertenceu ao partido homônimo durante os anos cinquenta.162 BATALHA, Cláudio H. M. “A história da classe operária no Brasil: Trajetórias e tendências.” In:FREITAS, Marcos César (org.) Historiografia Brasileira em perspectiva. 3a Ed. São Paulo: Contexto,2000. p. 145-158.163 O que é observado por Batalha como um mérito da autora destes dois parágrafos. Cf. CASTRO, Hebe.
“História Social.” In. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da História.Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.45-59, os dois parágrafos referidosestão nas p.57-58.164 No Rio de Janeiro temos o trabalho pioneiro do antropólogo José Sérgio Leite Lopes, do Museu
Nacional da UFRJ, e dos sociólogos José Ricardo Ramalho, Elina Pessanha, Regina Morel e, de umageração mais jovem, Marco Aurélio Santana, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da mesmauniversidade. E também no âmbito da sociologia do trabalho, temos no estado de São Paulo odesenvolvimento das pesquisas de Ricardo Antunes (Unicamp), Ruy Braga (USP) e Giovanni Alves(Unesp), que na verdade só se ampliaram dos anos noventa até o presente. Nas ciências sociais aplicadas,em áreas como Serviço Social, Educação e Saúde Pública, existe um volume considerável de pesquisasligadas ao tema do trabalho e dos trabalhadores. De qualquer modo, como teremos oportunidade de
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recentemente se notou a persistência deste eclipse no mundo acadêmico, pois mesmo
depois que o corpo eleitoral brasileiro elegeu um ex-sindicalista para à Presidência da
República, foi também sintomática “a quase completa ausência dos trabalhadores e seus
sindicatos como tema dos debates” dedicados ao exame dos 40 anos do golpe de 1964,
em 2004. 165
Talvez essa persistência seja resultado da opção mais presente nos historiadores
dedicados a pensar a dimensão política, como os que organizaram o evento acadêmico
de maior repercussão sobre os 40 anos do golpe de 1964 no Rio de Janeiro, onde essa
ausência se verificou.166 Afinal, como é notório, os sindicatos e a classe trabalhadora
que estas entidades organizavam foram um dos principais pontos de apoio do governo
João Goulart, derrubado por um golpe de Estado que se afirmou como uma
“Revolução” para impedir que o herdeiro de Vargas implantasse uma “República
Sindicalista” no Brasil.Voltando aos primórdios da constituição do campo, anote-se que essa entrada
dos estudos sobre o trabalho na jovem vida universitária brasileira nos anos sessenta
dava-se num contexto onde a presença da classe trabalhadora na cena política brasileira
era um elemento que todas as forças políticas deveriam ter em consideração. Seja para
reprimir ou atacar as mobilizações, denunciando a existência ou ameaça de uma suposta
“República sindicalista” durante o segundo governo Vargas e no governo Goulart, seja
para apoiá-las ou aparecer ao lado das greves, todo o espectro político do país tomou o
movimento sindical como ator do jogo político na República de 1946. No contexto de
ascenso sindical, a greve nacional de 5 de julho de 1962 – discutida em detalhes nesta
tese –, foi um dos pontos culminantes da crise política brasileira, posto que, como
pretendemos demonstrar, a intervenção do movimento organizado da classe
trabalhadora foi decisiva. De forma semelhante ao ocorrido em outros episódios, como
nas greves pela posse de Jango em 1961, ou no dramático comício da Central do Brasil
em 1964, a presença operária pontuou o cenário político desse governo do chefe
discutir, também nessa década seriam produzidos alguns trabalhos importantes no âmbito dahistoriografia, denotando que o eclipse não foi total.165 SANTANA, Marco Aurélio. “Trabalhadores, sindicatos e ditadura militar: o 1968 operário no Brasil.”In. FICO, Carlos; ARAUJO, Maria Paula. 1968 40 anos depois: história e memória. Rio de Janeiro:7Letras, 2009, p.150.166 Promovido pelos prestigiados Departamentos de História da UFF e da UFRJ, além do Centro dePesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas(FGV) e o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), os anais deste encontro foram
publicados em FICO, Carlos et al. 1964-2004, 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil.Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.
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nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado por Vargas nos estertores da
sua ditadura do Estado Novo, e baseado na máquina do Ministério do Trabalho.
Mas a importância da presença operária na crise daquela República não era só
uma exclusividade do PTB, e assim, pode-se entender porque um governador
reacionário como Carvalho Pinto, de São Paulo (1959-1963), que reprimiu de formaviolenta a greve geral pelo abono de Natal em dezembro de 1961 (ou mesmo a de julho
do ano seguinte, como veremos), tenha atendido ao apelo de um grupo de sociólogos da
USP – entre os quais Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni –
para financiar o Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT). Ou seja, não
era só para os trabalhistas e os comunistas, para Jango e a outros líderes populistas que
o mundo do trabalho poderia ser visto como importante. Todavia, certamente a subida
ao poder de Goulart, homem que fez sua carreira política na máquina do Ministério do
Trabalho, e, mais que isso, sua derrubada em 1964, deu ensejo ao desenvolvimento das preocupações sobre o mundo do trabalho na vida universitária brasileira.
O primeiro estudo acadêmico sobre o tema do trabalho no Brasil é na verdade do
início dos anos cinquenta e proveio da área do Direito: a tese de doutoramento de
Evaristo de Morais Filho, O problema do sindicato único no Brasil, publicada em 1952.
Nesse belíssimo livro, o autor discute com fina ironia a continuidade da legislação
sindical do Estado Novo sob o regime democrático instituído a partir da Constituição de
1946. E como um intelectual ligado ao mundo operário,167 Evaristo não deixou de
considerar que tal legislação possuía inspiração na Carta del Lavoro da Itália fascista,
fazendo uma engenhosa comparação entre a nossa e a legislação mussoliniana, num dos
pontos altos do seu livro. Para ele, a legislação sindical erigida na ditadura de 1937-
1945 era “totalmente fascista”,168 tendo a subordinação dos sindicatos ao Estado, via
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, funcionado sempre entre a combinação
deste Ministério e os órgãos policiais de Ordem Política e Social.169
167 Ele era filho de um dos primeiros grandes advogados trabalhistas da história do Brasil, o socialistareformista Evaristo de Moraes.168 MORAES FILHO, Evaristo. O problema do sindicato único no Brasil: seus fundamentos sociológicos.São Paulo: Alfa-Omega, 1978, p.245.169 Idem, ibidem, p.259-260. Recentemente, a historiografia tem destacado ser maior a presença dafilosofia positivista comtiana, uma importante componente da cultura política gaúcha, na legislaçãotrabalhista do pós-1930. BOSI, Alfredo. “Arqueologia do Estado-Providência.” In. Dialética dacolonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.273-307. HALL, Michael. “Corporativismo eFascismo na origem das leis trabalhistas brasileiras.” In. ARAÚJO, Ângela (org.). Do corporativismo aoneoliberalismo. Estado e trabalhadores no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2002, p.13-28.
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Poucos anos depois, foi a vez de Azis Simão apensar um novo estudo ao campo
em construção, em trabalho ao Primeiro Congresso Brasileiro de Sociologia em 1955,
sobre o voto operário na cidade de São Paulo.170 A partir dos dados de quatro zonas
eleitorais, onde localizou uma proporção acima de 40% de eleitores da classe
trabalhadora, o autor busca explicar as razões para a preferência do voto do operariado paulista no Partido Comunista do Brasil (PCB) e no Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB).
Todavia, Simão assinalou uma diferença entre os eleitores operários: enquanto
entre os que optavam pelos comunistas predominavam os nascidos na Capital paulista e
ocupados em profissões mais qualificadas, o eleitorado petebista era formado
majoritariamente por uma jovem classe trabalhadora de migrantes nordestinos ou das
cidades do interior de Minas Gerais, mas também por uma tradicional parcela de
trabalhadores com baixa qualificação, acima dos 40 anos e que se reconhecia amparadona Legislação Social getulista. De acordo com tal raciocínio, que terá larga trajetória no
debate originário dos estudos sobre o trabalho no Brasil, essa população de origem rural
apresentava características sociológicas que a impeliam a aderir à política trabalhista,
facilitando a mistificação segundo a qual todas as políticas sociais seriam “dádivas de
Vargas”. Diferentemente daquele proletariado do início do século XX – que Azis
Simão, tomando o caso de São Paulo, tipifica como “imigrante, em geral de origem
italiana e anarquista” –, esse novo proletariado paulista dos anos cinquenta é nacional e
oriundo do mundo rural. Não possuía, segundo o autor, experiência no trabalho
industrial nem conhecia as teorias socialistas, estando mais acostumado com as relações
autoritárias e paternalistas predominantes no mundo rural brasileiro.
Essa problemática baseada na origem da classe operária irá embasar os trabalhos
de Juarez Rubens Brandão Lopes e Leôncio Martins Rodrigues, que compõem um
representativo grupo de sociólogos da USP e que foram os pioneiros em tal campo de
estudos no Brasil. Esses pioneiros seriam de certo modo influenciados pela démarche
weberiana do estrutural-funcionalismo/teoria da modernização (via Talcott Parsons, a
sociologia industrial francesa de Alain Tourraine e norte-americana de Elton Mayo),
170 SIMÃO, Azis. “O voto operário em São Paulo.” Anais do Primeiro Congresso Brasileiro deSociologia, São Paulo, 1955, p.201-214. Também publicado na Revista Brasileira de Estudos Políticos,Belo Horizonte, dezembro de 1956. O estudo aparecia num momento sensível, em meio ao contexto dosuicídio do presidente Getúlio Vargas, antecedido pela proscrição do PCB (1947) e a volta triunfal deVargas através do voto popular (1950), a ascensão de Jânio Quadros como prefeito paulista, apoiado peloPartido Socialista Brasileiro (PSB), agremiação a qual pertencia Simão. Deste autor é Sindicato e Estado,de 1966, sua tese de doutorado em sociologia na USP e seu principal livro.
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presente nos trabalhos de Tocuato Di Tella e Gino Germani. Esses sociólogos
argentinos advogam a existência de uma a-sincronia entre elementos de ação social
tradicional e moderna no processo de transição da ordem agrária-tradicional para a
modernidade urbana-industrial na América Latina ao longo do século XX, em especial
em países como a Argentina, o Brasil e o México, que teriam erigido uma estruturasocial dualista. Segundo Di Tella e Germani, a classe trabalhadora argentina seria presa
fácil da demagogia peronista, sendo sua recente origem rural considerada responsável
por sua suposta ação “irracional” e “heterônoma”,171 conclusão muito semelhante à do
estudo de Simão.
Representativo dos estudos pioneiros sobre a classe trabalhadora no Brasil,
Juarez Brandão Lopes parece compartilhar esse programa de pesquisas quando realizou
investigações com o propósito de verificar o “ajustamento do trabalhador à indústria”,
nos setores mais dinâmicos da economia em São Paulo no contextodesenvolvimentista.172 Este autor concluiu que os trabalhadores da então indústria de
ponta não se identificavam com a condição de operários industriais, sendo pouco aptos
para as ações coletivas através do movimento sindical. Muitos pensavam em voltar para
a região rural, sendo o emprego industrial concebido muitas vezes como uma utópica
opção para juntar recursos até que fossem estabelecidas as condições para o retorno ao
local de origem.
Estes autores pioneiros, que Luiz Werneck Vianna caracterizaria como
partidários de uma interpretação sociológica,173 se veriam com a necessidade de
explicar a mudança ocorrida no comportamento operário após 1930. Compartilhando
uma memória construída pela velha guarda da militância socialista, esse sociólogos
naturalizaram a imagem de que na Primeira República a ação operária assumiu feições
combativas e anarco-sindicalistas, mas transitou para um sindicalismo subordinado ao
Estado após a subida de Getúlio Vargas. A síntese desta proposição está na ideia de uma
ruptura entre uma classe trabalhadora autônoma na “República Velha”, em contraste
com uma classe heterônoma após 1930. Como já vimos, tais autores atribuem esta
ruptura à mudança na composição sócio-nacional da classe: enquanto a classe operária
171 GERMANI, Gino. Política e Sociedade numa época de transição. São Paulo: Mestre Jou, 1973. DITELLA, Torcuato. Para uma política latino-americana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.172 LOPES, Juarez Rubens Brandão. “O ajustamento do trabalhador à indústria: mobilidade social emotivação.” In. Sociedade industrial no Brasil. 1ª edição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro;Universidade de São Paulo, 1964.173 VIANNA, Luiz Werneck. “Estudos sobre sindicalismo e movimento operário: resenha de algumastendências.” Travessia – da abertura à Constituinte de 86 . Rio de Janeiro: Taurus, 1986.
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dos primórdios da industrialização do Brasil era formada basicamente por imigrantes
europeus, que supostamente trariam na bagagem a “experiência do trabalho industrial” e
as ideologias socialistas (como o anarco-sindicalismo), após 1930 passa a predominar
um proletariado nacional, formado por migrantes rurais acostumados ao sistema
despótico patriarcal, desconhecendo práticas de organização coletiva. De acordo comeste raciocínio, quando o Estado depois de 1930 passou a adotar uma política com vistas
a controlar o movimento operário, tornando os sindicatos órgãos estatais, sua tarefa foi
facilitada pela natureza sociológica da nova classe trabalhadora que então se formava.
Nas palavras de Leôncio Martins Rodrigues:
“A nova política governamental foi facilitada pela entrada maciça detrabalhadores de origem rural, orientados por outros valores e aspirações,favorecendo o isolamento das antigas lideranças e criando doissegmentos bem diferenciados no interior da classe operária. Os temas
habituais do movimento operário europeu (de tipo anarco-sindicalista,socialista ou comunista) não conseguiram motivar a massa detrabalhadores que abandonava o campo, trabalhadores analfabetos,socializados num padrão de submissão ante as camadas superiores e queencontravam, ademais, no meio fabril e urbano, condições de trabalho ede vida geralmente mais satisfatórias do que tinham no meio rural.”174
Essa nova classe operária, de origem rural, que irá se ampliar muito no período
desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956-1960), não figura mais nos
tradicionais bairros operários da capital paulista – Brás, Mooca, Belém etc. –, mas nas
cidades da periferia que conformam a Grande São Paulo e no ABC. Vejamos o que diz
o mesmo autor sobre a “atitude” desta nova classe operária:
“Para estas novas camadas, o processo de incorporação à indústriaadquire outro significado, associado-se com frequência a um processo deascensão social ou de melhoria de vida, o que não poderia ocorrer com ostrabalhadores dos antigos bairros, originários de famílias já operárias.”175
Seria, assim, esse novo proletariado incapaz de expressar-se “de forma típica”, como no
padrão europeu explicitamente tomado como modelo pelo autor. É preciso anotar que
embora esteja discutindo o problema da consciência de classe, o cientista político não
aborda a questão com base na tradição marxista, como poderia parecer. Em seu livro
174 RODRIGUES, L. M. “Sindicalismo e classe operária (1930-1964).” In. FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, O Brasil Republicano, 3º Volume. São Paulo: DIFEL,1983, p.520.175 RODRIGUES, L. M. Industrialização e atitudes operárias (Estudo de um grupo de trabalhadores).São Paulo: Brasiliense, 1970, p.XVI-XVII.
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Industrialização e atitudes operárias Rodrigues explicitamente opta pela démarche de
Alain Touraine que se baseia em um tipo de ideal de classe operária. Diz Rodrigues:
“Quiçá possa parecer estranho que, lidando com um conceito ligado àteoria marxista, deixemos de lado os trabalhos de Lukács, o autorclássico do assunto. Mas o tratamento que este dá à questão, a nosso ver,
além de implicar um a priori ideológico impede a utilização sociológicado conceito, observação, aliás, ociosa pois Lukács deixa claro que aconsciência de classe, para ele, não se apresenta como uma questão de“interesse sociológico”.176
Em Industrialização e atitudes operárias, com base em questionários sobre as
expectativas de operários recém-chegados do campo ao ABC paulista, definiu esta
classe operária como: passiva, pouco adaptada ao trabalho industrial e ao associativismo
político, em suma, incapaz de produzir um movimento autônomo de classe. Subsumida
ao jogo do Estado populista, a consciência de classe destes é tomada como umdesdobramento mecânico e estático da estrutura da sociedade brasileira.177
O desenvolvimento das pesquisas sobre o mundo dos trabalhadores demonstraria
que o paradigma desta interpretação sociológica não se sustenta empiricamente, muito
menos teoricamente. A noção de que o imigrante estrangeiro traria a experiência do
trabalho industrial e as ideologias socialistas não considerou que a maioria destes
provinha do meio rural, no caso dos italianos, da região Sul da península, como
demonstrou Michael Hall em sua a tese de PhD, de 1969.178 Ademais, nesta
problemática “sociológica” é negligenciado o fato, ressaltado por Paulo Sérgio Pinheiro,de que “características relativas à composição tendem a ser redefinidas pelas relações
sociais a que está submetido o operário no processo de industrialização”, deste modo é
temerário acreditar que ele não possa constituir outra cultura em sua nova experiência
de socialização.179 E nesse sentido é notável a contribuição do antropólogo José Sergio
Leite Lopes, que, em seu estudo sobre uma das maiores plantas têxteis do país,
176 RODRIGUES, Industrialização e atitudes operárias, op. cit., p.161, nota 24. Veja-se como éenviesado certo debate sobre os estudos pioneiros sobre o trabalho no Brasil, quando se atribui suas
limitações à influência do pensamento marxista. Sobre a importância do conceito de consciência de classeno interior da teoria marxista e a problematização do mesmo em outros registros sociológicos, ver IASI,Mauro Luis. O dilema de Hamlet . O ser e o não ser da consciência. São Paulo: Viramundo, 2002.177 Como foi justamente do ABC paulista que ressurgiria o movimento operário brasileiro no fim daditadura, o autor poderia, em obras mais recentes, ter reconhecido o equívoco de tal hipótese. Mas estanão parece ser uma postura muito cultivada em nossos meios acadêmicos.178 HALL, Michael. The origins of mass immigration in Brazil, 1872-1914. PhD, Columbia University,1969. HALL, Michael; PINHEIRO, Paulo Sérgio. “Imigração e Movimento Operário no Brasil: umainterpretação.” In. DEL ROIO, José Luiz (org.). Trabalhadores do Brasil – Imigração e Industrialização.São Paulo: Ícone, 1990, p.43-58.179 PINHEIRO, “Trabalho industrial no Brasil: uma revisão.”, p.123.
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localizada na cidade de Paulínia (PE), discutiu a fundo como a origem rural do
operariado não constituiu um obstáculo à formação de uma consciência de classe.180
Por outro lado, é certamente verdadeiro que os imigrantes, que compuseram
parcela importante do operariado na virada para o século XX, tiveram um papel
proeminente na difusão das ideias socialistas no Brasil (de resto, nas Américas). Masnaturalmente não é possível atribuir esse papel ao conjunto deles, muito menos idealizá-
los como todos versados em Malatesta, Bakunin ou mesmo Marx. Afinal, desde o
influente trabalho de Boris Fausto, Trabalho urbano e conflito social, a historiografia
tem se inclinado a mostrar que essa imagem de uma classe operária no início da
República como tipicamente “italiana” e “anarquista” não passa de uma idealização
reducionista.181
Como já vimos, há outras influências teóricas importantes nestas formulações e
que devem ser brevemente mencionadas: as teorias sobre o populismo formuladas pelosGermani e Di Tella, em seus estudos sobre o peronismo, onde se inspiraram alguns
partidários da interpretação sociológica para pensar o caráter heterônomo da classe
operária no Brasil. Afinal, para estes autores argentinos, o peronismo seria a forma mais
acabada de populismo e teria como cerne explicativo a rápida migração do campo para
as cidades a partir dos anos 1930. Para Otávio Ianni, um dos principais (re)formuladores
do conceito de populismo e também um crítico das proposições de Germani e Di Tella,
na abordagem dos sociólogos argentinos “o populismo acaba por ser encarado como um
desvio no que deveria ser a evolução, natural e desejável, para o regime
democrático”.182 Além do mais, segundo a crítica feita nos anos 1970 por Juan Carlos
Portantiero e Miguel Murmis a Germani e Di Tella, a mudança na composição social do
operariado argentino foi ainda menos importante na formação do populismo argentino
em comparação com outros casos nacionais.183 Ainda de acordo com esses críticos –
que também ficaram conhecidos na historiografia como revisionistas –,184 a história do
180 LEITE LOPES, José Sergio. A tecelagem dos conflitos de classe. São Paulo: Marco Zero, 1988.181 FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito industrial. São Paulo: Difel, 1976. Ver tambémBATALHA, Cláudio. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.182 IANNI, Otávio. A formação do Estado populista na América Latina. 2ª edição. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1990, p.33, grifo nosso.183 PORTANTIERO, Juan Carlos; MURMIS, Miguel. Estudos sobre as origens do Peronismo. São Paulo:Brasiliense, 1973.184 Assinalando o lugar de Portantiero e Murmis no debate sobre o peronismo, outro estudioso assimcomenta: “En los estudios revisionistas, el apoyo de la clase trabajadora a Perón ha sido visto como ellógico compromiso de los obreros con un proyecto reformista dirigido por el Estado que les prometiaventajas materiales concretas. Más recientes, esos estudios no han presentado la imagen de una masa
pasiva manipulada sino la de actores, dotados de conciencia de clase, que procuraban encontrar un
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movimento operário daquele país sido marcada muito mais por uma continuidade do
que por uma ruptura. Por fim, é preciso assinalar também que tal hipótese da origem
tem como substrato uma teoria social extremamente conservadora, uma variante latino-
americana da teoria da modernização de corte weberiano, que trata todos os padrões de
relacionamento social diferentes da racionalidade-burocrática como “obstáculos àmodernização”.185
Mas até que surgissem vozes críticas, a teoria do populismo de Germani e Di
Tella foi extremamente influente nas ciências sociais latino-americanas, constituindo-se
numa das primeiras grandes explicações para o processo de mudança ocorrido no
subcontinente, figurando ao lado dos também dualistas modelos da CEPAL.
No Brasil a noção de populismo foi introduzida no debate intelectual a partir do
chamado “Grupo de Itatiaia”, um fórum patrocinado pelo Ministério da Agricultura a
partir de 1952. Deste grupo fizeram parte intelectuais de São Paulo e do Rio de Janeiro,entre os quais nomes como Guerreiro Ramos, Cândido Mendes de Almeida, Hermes
Lima, Ignácio Rangel, João Paulo de Almeida e Hélio Jaguaribe, que se encontrava
periodicamente no Parque Nacional de Itatiaia, localizado entre as duas capitais.
Posteriormente, sob o patrocínio do Ministério da Educação, conformariam o Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).186
Apesar do perfil “nacionalista” desta última entidade, Ângela de Castro Gomes
vê nas primeiras formulações do conceito de populismo por estes intelectuais uma
sistematização sofisticada dos preconceitos da elite liberal-conservadora, cuja
contrariedade com a crescente participação das massas populares na política seria
evidente.187 Esse Grupo editava o periódico Cadernos de Nosso Tempo, que em seu
segundo número trouxe o artigo “O que é o ademarismo?”, que apresenta basicamente
os argumentos do paradigma estrutural-funcionalista para compreender o voto em
Adhemar de Barros entre as camadas populares de São Paulo. Em suma, tanto na
intelectualidade formada em torno da Universidade de São Paulo, quanto na que
camino realista para la satisfacción de sus necesidades materiales.” JAMES, Daniel. Resistencia e Integración. El Peronismo y la Clase Trabajadora Argentina, 1946-1976 . 2ª ed. Buenos Aires: SigloXXI, 2010, p.26.185 Toda sorte de teorias de inspiração liberal que acreditam que a “herança ibérica” é a responsável poresse “atraso”, desde Os donos do poder de Faoro até a teoria do “jeitinho brasileiro” de Roberto DaMatta,seguem nesse mesmo diapasão. Também a teoria do “pretorianismo” das sociedades latino-americanas,vulgarizada por cientistas políticos como Samuel Huntington.186 TOLEDO, Caio Navarro. ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1977.187 Cf. GOMES, A. C. “O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória do conceito.”In. FERREIRA, O populismo e sua história, op. cit., p.17-57.
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conformou o ISEB, a reflexão sobre a entrada das massas na política e o fenômeno do
populismo bebia na fonte comum do estrutural-funcionalismo de Germani e Di Tella.
Ou pelo menos concordavam com as ideias centrais desses sociólogos argentinos.
Uma problemática certamente diferente foi introduzida pelo cientista político da
USP Francisco Weffort, o mais eminente teórico do (que teria sido o) populismo na política brasileira entre 1930-1964. Um artigo seu sobre o tema, publicado numa edição
especial da revista Les Temps Modernes, em 1967, é até hoje tomado como um marco
obrigatório no debate sobre esse conceito nas ciências sociais latino-americanas.188 No
volume organizado por Celso Furtado, a pedido do editor Jean-Paul Sartre –
posteriormente publicado em forma de livro no Brasil –,189 o artigo de Weffort figura
certamente como o mais influente.190 Posteriormente, em conjunto com outros textos,
Weffort publicou o mesmo artigo no livro O populismo na política brasileira, título
homônimo do texto em tela.191 Logo em suas primeiras linhas, o fenômeno é assimdefinido:
“O populismo é produto da longa etapa de transformações por que passaa sociedade brasileira a partir de 1930. Como estilo de governo, sempresensível às pressões populares, ou como política de massas, que buscavaconduzir, manipulando suas aspirações, o populismo só pode sercompreendido no contexto do processo de crise política e dedesenvolvimento econômico que se abre com a revolução de 1930. Foi aexpressão do período de crise da oligarquia e do liberalismo, sempremuito afins na história brasileira, e do processo de democratização doEstado que, por sua vez, teve que apoiar-se sempre em algum tipo deautoritarismo, seja o autoritarismo institucional da ditadura Vargas(1937-1945), seja o autoritarismo paternalista ou carismático dos líderesde massa da democracia do após-guerra (1945-1964). Foi também umadas manifestações das debilidades políticas dos grupos dominantesurbanos quando tentaram substituir-se à oligarquia nas funções dedomínio político de um País tradicionalmente agrário e dependente,numa etapa em que pareciam existir as possibilidades de umdesenvolvimento capitalista nacional. E foi sobretudo a expressão maiscompleta da emergência das classes populares no bojo dodesenvolvimento urbano e industrial verificado nestes decênios e danecessidade, sentida por alguns dos novos grupos dominantes, de
incorporação das massas ao jogo político.”
192
188 WEFFORT, Francisco. “Le populisme.” Les Temps Moderns, Paris, ano 23, n.257, p.624-649, 1967.189 FURTADO, Celso (coord.). Brasil: Tempos Modernos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.190 WEFFORT, Francisco. “O populismo na política brasileira.” In. FURTADO, Brasil: Tempos
Modernos, op. cit., p.49-75.191 WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.192 WEFFORT, “O populismo na política brasileira.”, op. cit., p.49-50.
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Em síntese, no que diz respeito ao papel dos trabalhadores na experiência
populista, sua posição nessa aliança de classe é certamente de subalternidade, já que os
únicos canais organizativos disponíveis foram aqueles erigidos pela própria estrutura
sindical corporativista do Estado. Nesse caso, o que então explicaria esse caminho? O
cerne da explicação de Weffort está na ação desorganizadora do próprio Estado a partirde 1930, no que diz respeito à vida sindical brasileira, mas, também, nas opções feitas
pelas direções políticas deste mesmo movimento, ou seja, pela esquerda. Produzindo
sob o impacto da derrota da esquerda em 1964, Weffort irá dirigir sua crítica
principalmente às políticas adotadas pelo Partido Comunista (PCB), que era a mais
importante organização da esquerda no meio sindical entre 1945-1964.193 É preciso
notar que nessa explicação a importância da questão da origem rural foi deslocada para
incorporar elementos como a longa crise, a debilidade das classes sociais e a
manipulação. Não obstante, não é certamente outra senão negativa a posição da classetrabalhadora nesta teoria re-elaborada do populismo, reiterando aspecto presente no
paradigma tradicional, ainda que esta negatividade não fosse tomada como um
fatalismo, e sim a resultante das opções de suas vanguardas políticas, notadamente o
PCB.
Ao mesmo tempo, é preciso notar que nos anos 1980 as elaborações de Weffort
ainda seriam tomadas como uma abertura crítica para os estudos sobre a classe operária
no Brasil, como pode ser visto no emblemático artigo “Pensando a classe operária:
sujeitos no imaginário acadêmico”, 194 de autoria de Maria Célia Paoli, Eder Sader e
Vera da Silva Telles. De acordo com esses autores, na problemática inaugurada por
Weffort “a classe operária não é vista como portadora passiva da estrutura da
sociedade”, como faziam os partidários do paradigma da origem rural, até porque, “ao
qualificar politicamente a ação da classe operária enquanto possibilidade de negar o
lugar subordinado que o Estado lhe impõe, movimenta-se num campo onde já se faz
possível pensar a classe operária enquanto sujeito.”195 O ponto de inflexão mais
193 A posição proeminente do PCB na esquerda brasileira naquele período, embora hoje tenha sido postaem dúvida por certos resgates de outras importantes tradições da esquerda atuantes naquele período, erareconhecida por um dos mais eminentes sindicalistas do PTB, Dante Pelacani, que em entrevista a Denisde Moraes nos anos oitenta afirmou: “O PTB tinha muito mais recursos do que o Partido Comunista paraarrebanhar, entre os dirigentes sindicais, um número maior de adeptos. Mas os dirigentes arrebanhados
pelo PTB eram líderes de categorias pouco expressivas e sem tradição de luta.” MORAES, Denis de. Aesquerda e o golpe de 64. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, p.37.194 PAOLI, Maria Célia; SÁDER, Eder; TELLES, Vera da Silva. “Pensando a classe operária: ostrabalhadores sujeitos ao imaginário acadêmico.” Revista Brasileira de História, São Paulo, v.3, n.6, p.129-149, 1983.195 Idem, ibidem, p.147 e p.149.
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significativo na obra do cientista político uspiano se daria nos anos 1970, quando no
esforço de sofisticar o próprio conceito de populismo, construiu a noção de sindicalismo
populista, como forma de apresentar o que seria o desenho das lutas da classe
trabalhadora naquele período histórico. Principalmente depois do seu artigo sobre as
greves de Contagem e Osasco em 1968 – quando pela primeira vez no Brasil é afirmadoser nossa classe trabalhadora “sujeito de sua própria história”–,196 o cientista político
paulistano promoveu o início de uma inflexão fundamental nas análises do movimento
operário e o período 1930-1964. Em sua tese de livre-docência Sindicato e política,197
Weffort é enfático ao criticar as proposições originárias que buscaram explicar a
modificação na história do movimento operário após-1930 a partir da origem rural do
proletariado brasileiro.198
De qualquer modo, para Weffort, pensar os trabalhadores brasileiros como
sujeitos de sua própria história não implicava abandonar uma reflexão crítica sobre oslimites de sua experiência histórica. É no interior de sua teoria do populismo que
Weffort apresenta o que teria sido prejudicial ao desenvolvimento da organização
autônoma da classe trabalhadora no Brasil: a política de aliança de classes com os
líderes populistas praticada pela esquerda, em especial o PCB. Para este autor, em
primeiro lugar, os comunistas não fizeram um combate consequente à estrutura sindical
oriunda do Estado Novo, o que contribuiu de forma decisiva para que esta perdurasse
durante a República liberal-democrática de 1946.199 Isto porque, durante o período de
1943-1964 teria sido predominante na estratégia do PCB a aliança com Getúlio Vargas
e seus herdeiros políticos, como João Goulart, o que teria sido feito ao arrepio dos
princípios socialistas da independência de classe.200
196 WEFFORT, Francisco. “Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco, 1968.” CadernosCebrap, n.5, 1972, p.10.197 WEFFORT, Francisco. Sindicato e política. Tese de Livre-Docência, Universidade de São Paulo, SãoPaulo, 1972.198 “Parece-me inteiramente evidente que a análise histórica não pode ser reduzida ao jogo de supostosautomatismos estruturais.” Idem, ibidem, capítulo I, p.7.199 Obviamente esta crítica é despropositada, posto que o PCB não possuía peso institucional para barrar
as forças interessadas na continuidade da legislação estadonovista. Uma posição mais razoável sobre oassunto está em VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1976.200 Seguidor das proposições de Weffort, o também cientista político uspiano José Álvaro Moisés, emestudo sobre a greve geral paulista de 1953, apresenta maiores nuances sobre a questão da consciência declasse sob o populismo, como pode ser visto no trecho a seguir: “(...) o populismo poderia ser visto demaneira inteiramente diferente. Ao invés de afirmar que ele foi uma alternativa reformista aceita pelaclasse trabalhadora, nas condições de repressão e na ausência de uma orientação política clara (...), alémde constituir um modo específico de dominação de classe, foi também uma maneira encontrada pelaclasse trabalhadora de se manifestar nas condições adversas em que se achava e de ter algumas de suasreivindicações atendidas, tais como uma melhor participação na renda. Isto não significa, entretanto, do
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Essa aliança comunista-trabalhista seria a base para a conformação de um
“sindicalismo populista”, cuja gênese remete à política moderada do PCB durante o fim
do Estado Novo, expressa na diretriz de “apertar os cintos” e “evitar as greves”.
Todavia, na conjuntura do após Segunda Guerra tal tentativa de formação do
sindicalismo populista acabaria frustrada em razão das medidas repressivas tomadas pelo governo Dutra. Depois disso, após breve período que se seguiu à cassação do
registro legal do PCB (1947), cuja consequência mais lembrada foi a sistemática
oposição dos comunistas ao segundo governo Vargas (1951-1954), a política de aliança
do PCB com o PTB conformou um mecanismo através do qual os líderes populistas
arregimentaram apoio entre os trabalhadores urbanos.
A partir de uma engenhosa comparação com a emergência do peronismo
argentino (onde o movimento sindical foi desde a origem uma das bases do regime do
coronel Juan Domingo Perón), o autor observa que no Brasil o regime populista só teria buscado apoio no sindicalismo como “última tábua de salvação”, podendo isso ser
observado tanto na crise do Estado Novo, quanto na crise do segundo governo Vargas
(depois que este teve frustrada suas intenções de atrair o capital estrangeiro e a UDN
para seu governo e) deu uma guinada para o nacionalismo e para os trabalhadores,
através dos sindicatos e de João Goulart na pasta do Trabalho. Depois de uma “tentativa
frustrada” de formação no período de 1945-1946, Weffort vê emergir o sindicalismo
populista finalmente a partir de meados do segundo governo Vargas em razão de dois
elementos: as inovações trazidas por Goulart no Ministério do Trabalho, no contexto
das grandes greves de São Paulo e do Rio, em 1953; e na reorientação dos comunistas
em voltar para os sindicatos oficiais. Especialmente após o suicídio de Vargas, quando a
reorientação política do PCB se efetiva (cujo emblema é o apoio dos comunistas à
candidatura de Juscelino Kubitscheck), é formado o chamado sindicalismo populista.
Assim, ao contrário do Primeiro Peronismo (1943-1955), o tal sindicalismo populista no
Brasil teria se formado no momento em que o próprio desenvolvimento capitalista
nacional era “quase um anacronismo histórico”, face às modificações do plano
econômico internacional do período posterior à Guerra de Coréia (1950).201 Como
define em diversas passagens de sua obra:
meu ponto de vista, ausência de consciência de classe. Significa, ao contrário, que a classe trabalhadoradefendia-se como podia, nas condições históricas objetivas da época.” MOISÉS, José Álvaro. Greve demassa e crise política. Um estudo sobre a Greve dos 300 mil em São Paulo – 1953-1954. São Paulo:Polis, 1978, p.60.201 WEFFORT, Sindicato e política, op. cit., p.6, 29-30.
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“O movimento sindical populista é um fenômeno recente na história brasileira. Só começa a tomar corpo em inícios dos anos 50 e só a partirda segunda metade da década chega a definir-se plenamente. É a partirdos anos 50, portanto, que se podem perceber mais claramente suascaracterísticas: no plano da orientação, subordina-se à ideologianacionalista e se volta para uma política de reformas e colaboração de
classes; no plano da organização, caracteriza-se por uma estrutural dual em que as chamadas “organizações paralelas” [intersindicais], formadas por iniciativa da esquerda, passam a servir de complemento à estruturasindical oficial, inspirada no corporativismo fascista como um apêndiceda estrutura de Estado; no plano político, subordina-se às vicissitudes daaliança formada pela esquerda com Goulart e outros populistas fiéis àtradição de Vargas. O sindicalismo populista atingirá o ponto máximo deseu desenvolvimento nos anos 60 na linha de aproximação esubordinação crescentes ao regime populista. Em 1964, este sindicalismoentra em crise para finalmente desaparecer com o regime político ao qualassociara o seu destino.”202
Acreditamos não estar extrapolando ao atribuirmos a esta interpretação de
Weffort a seguinte dedução: através de suas práticas, a esquerda não só foi responsável
pela permanência da estrutura sindical corporativista, como deu legitimidade e “vida” a
uma instituição cuja razão de ser é o controle sobre a classe operária. Portanto, a
esquerda reforçou uma estrutura do regime em crise, “dando vida” ao sindicalismo
populista. É assim que, para Weffort, em vez de praticar uma política autônoma da
classe trabalhadora, o PCB colaborou para que o movimento ficasse subordinado ao
Estado e, consequentemente, à própria burguesia.
Não foi por acaso nos anos oitenta essa formulação foi muito bem recebida por
setores críticos da esquerda que se enfrentaram no terreno prático da política com a
esquerda tradicional (PCB, PCdoB e o MR8). É que esta última defendia, naquele
contexto da luta contra a ditadura, a aliança com todos os pelegos sindicais oriundos da
própria – alguns deles com trajetória que remetia ao período anterior a 1964, como Ary
Campista – como forma de participar da frente ampla com a própria burguesia liberal
pela democratização do país. E um dos motes dessa aliança só poderia ser a ausência de
crítica à estrutura sindical oficial. Sendo Weffort por esta época um dos mais eminentesteóricos do Partido dos Trabalhadores (PT), partido que se caracterizou nos primeiros
anos por uma prática classista, com denúncia do pacto social e defesa da independência
política da classe trabalhadora, parecia coerente hipotecar a toda trajetória do PCB o
202 WEFFORT, Sindicato e política, op. cit., capítulo I, p.2-3. Trecho idêntico encontra-se em _______“Origens do sindicalismo populista: a conjuntura do após-Guerra.” Estudos CEBRAP, n.4, SãoPaulo, jun. 1973, p.67; e ________. Participação e conflito industrial, op. cit., p.67.
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atraso na organização do movimento operário brasileiro. Afinal não era exatamente isso
que o PCB estava fazendo nos anos finais da ditadura militar, negando-se a criticar a
estrutura sindical oficial, se aliando aos pelegos203 e à burguesia “democrática”?204
Todavia essa imagem do PCB dos anos oitenta não nos ajuda a compreender sua
postura no movimento sindical brasileiro no período de 1945-1964. Ademais, tal procedimento, muitas vezes, acaba por revelar uma frágil visão teleológica, que em
casos mais radicais chega ao ponto de defender que desde o princípio estava certo que
os comunistas “trairiam” a classe trabalhadora. Mesmo tendo tido uma orientação
muitas vezes moderada, como no fim do Estado Novo, o PCB continuou a abrigar em
seus quadros os mais importantes líderes sindicais do período, líderes de greves
combativas, desafetos da classe patronal e perseguidos pelas autoridades da repressão
política.
A dinâmica das pressões das bases e as contradições entre a linha oficial do partido e a prática real de sua militância são também pontos que tem sido investigados
pela historiografia para mostrar que, ainda nos momentos em que adotava posições mais
moderadas, lideranças do PCB, contra a orientação do partido, estavam na cabeça de
greves, e em diversos casos sua rebeldia acabou contribuindo para a mudança na linha
partidária. É nesse sentido que autores como Hélio da Costa e Marco Aurélio Santana
falam da existência de “dois PCs”.205 Isso não implica em deixar de verificar que, se nos
anos iniciais da implantação da estrutura sindical corporativista o PCB, como o restante
da esquerda (anarquistas, trotsquistas e socialistas), denunciaram-na como fascista, após
203 Nesta tese acreditamos ser importante reafirmar a pertinência do conceito de pelego, não só por fazer parte de um arsenal teórico utilizado pela esquerda no movimento operário, como por acreditarmos emsua adequação heurística. Como é bem conhecido, o pelego é o líder sindical cuja prática orienta-se emamaciar os conflitos de classe, prática na qual se inscreve a oposição sistemática às greves comomecanismo de conquistas de direitos e ganhos materiais, sendo essa oposição ainda mais evidente quandoas greves são feitas com propósito eminentemente político. Entram no rol de pelegos figuras comoDeocleciano de Holanda Cavalcanti, que de 1947 a 1961 foi o presidente da Confederação Nacional dosTrabalhadores na Indústria (CNTI), época em que circulava em um automóvel Cadillac com chofer. Foialijado do comando da CNTI no final de 1961, quando a esquerda sindical, formada pela aliança do PCBcom a esquerda do PTB, ganhou as eleições para a entidade. Voltou à frente da mesma pelas mãos daditadura, logo após o golpe de 1964.204 O contexto de emergência da noção de “novo sindicalismo” diz muito sobre este debate sobre o
passado, já que o termo foi usado para denominar o movimento grevista surgido a partir do ABC paulistaem fins dos anos setenta, e que se expressou partidariamente no próprio PT (1980) e na Central Única dosTrabalhadores (1983). Sobre a trajetória desta noção de “novo sindicalismo” na produção historiográficae das ciências sociais, ver MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e velhos sindicalismos. Rio de Janeiro(1955/1988). Rio de Janeiro: Vicio de Leitura, 1998. SANTANA, Marco Aurélio. “Entre ruptura econtinuidade: visões da história do movimento sindical brasileiro.” Revista Brasileira de CiênciasSociais, vol.14, n.41, p.103-120, outubro de 1999.205 COSTA, Hélio da. Em busca da memória. Organização no local de trabalho, partido e sindicato emSão Paulo: Scritta, 1995. SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos. Comunistas e sindicatos noBrasil. Rio de Janeiro: Ed.Unirio; São Paulo: Boitempo, 2001.
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1945 na maior parte do tempo a opção dos comunistas (e do resto da esquerda) foi pela
convivência com a estrutura oficial, de forma a poder aproveitar-se de seus recursos.
Isto esteve na base das alianças formadas pelos comunistas com os elementos mais à
esquerda do PTB.
Mas é preciso ser justo na avaliação desta tática, pois ninguém pode desmentirque esta aliança esteve à frente das mais importantes lutas operárias do período entre o
governo Juscelino Kubitscheck e a queda de Jango. Na verdade, desde antes do suicídio
de Vargas, a linha política do PCB foi alterada para a aliança com os trabalhistas no
plano sindical. Conforma-se assim uma corrente nacionalista no movimento sindical
brasileiro, que irá paulatinamente galgando postos à frente dos principais sindicatos,
federações e confederações da estrutura sindical oficial. Em muitos casos, a aliança dos
comunistas com os elementos de esquerda do PTB já era uma prática mesmo durante o
segundo governo Vargas, quando a linha do PCB era de oposição ao governo. Depoisde um breve período de “esquerdismo”,206 que se seguiu à cassação do registro do PCB
e dos mandatos parlamentares, em 1947, no qual o partido orientou seus militantes a
retirarem-se da estrutura sindical, os sindicalistas comunistas voltaram aos sindicatos,
por perceberem ser a melhor forma de militar junto à classe operária. Atuar fora dos
sindicatos oficiais, em condições de clandestinidade, levaria ao isolamento completo.207
Quando, já em 1º de maio de 1951, Vargas acaba com a exigência de “atestado de
ideologia” para a participação nas eleições sindicais,208 os comunistas puderam de
forma discreta voltar a disputar as diretorias dos sindicatos. A partir de então, o PCB irá
conquistar uma influência cada vez maior nos sindicatos, federações e confederações
oficiais, e também nas inúmeras intersindicais extra-legais que pontuaram o
sindicalismo do período. Na maior parte das vezes, em aliança com os trabalhistas.
Por outro lado, a conceituação de Weffort parece querer negar a importância que
a esquerda teve à frente das greves, principalmente quando fala do que teria sido a
estrutura dual do sindicalismo daquele período. Essa estrutura dual tinha como pedra
de toque a existência das “entidades paralelas”, assim definidas pelo autor:
“A expressão ‘organização paralela’, de inspiração jurídica, não é talveza melhor. É porém a que vem sendo usada pelos estudiosos dosindicalismo brasileiro para designar as organizações inter-sindicais de
206 Esquerdismo em relação aos métodos, pois em relação ao programa o PCB continuou a propugnar umarevolução nacional-democrática que impulsionasse o desenvolvimento do capitalismo brasileiro.207 Ver SANTANA, Homens partidos, op. cit., capítulo 2.208 Outra continuidade do Estado Novo, que o governo do Marechal Dutra fará ressurgir no início da vagarepressiva de 1947.
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caráter horizontal (Pacto de Unidade e Ação, Pacto de Unidade Inter-sindical, etc.), que complementavam e dinamizavam a estrutural oficial(por isso, talvez, fosse melhor dizer ‘organizações complementares’).Embora proibidas pela legislação, foram toleradas pelos governos
populistas, os quais evidentemente tiravam vantagens políticas de suasatividades. Submetidas em geral ao controle dos comunistas, estas
organizações começaram nos anos 50 ao nível dos sindicatos, passaramdepois aos níveis superiores das federações e confederações eculminaram na formação do Comando Geral dos Trabalhadores em1962.”209
O que nos parece mais frágil nesta formulação é a forma como o autor enquadra as
entidades intersindicais horizontais. Voltaremos mais à frente a tratar deste tema, que
constituirá um dos pontos centrais de nossa crítica nesta tese.
Por agora, cabe dizer que, ao contrário do que diz a ortodoxia sobre o
populismo, o sindicalismo durante a República de 1946 teve forte atuação na base, nãosendo desconhecidas as organizações por local de trabalho. Na historiografia isso já foi
demonstrado algumas vezes, e um exemplo é o trabalho de Mattos sobre o sindicalismo
carioca, que no período de meados dos anos cinquenta até o golpe de 1964 encontrou
uma série de “greves participativas, organizadas a partir do local de trabalho e com
integração visível entre demandas políticas gerais e bem sucedidos encaminhamentos de
reivindicações econômicas”,210 portanto em contraste com as formulações sobre o
“sindicalismo populista”.211
De acordo com a visão tradicional do sindicalismo populista, as greves quemarcaram a conjuntura de meados dos anos cinquenta até o golpe de 1964 era feitas “de
fora pra dentro da empresa”, como definiu Leôncio Martins Rodrigues.212 Isso decorria
da natureza “cupulista” dos aparelhos sindicais e a inexistência de trabalho político dos
mesmos nos locais de trabalho, sendo sempre necessário o recurso aos piquetes como
forma de garantir a paralisação do trabalho. Nessa literatura os próprios piquetes são
209 WEFFORT, Sindicato e política, op. cit., p.2, nota.210 MATTOS, Novos e velhos sindicalismos, op. cit., p.219.211 Alguns outros trabalhos que a partir do estudo de categorias específicas demonstraram a existência
destas organizações de base do sindicalismo naquele período (e consequentemente a ausência de basesempíricas para a formulação de Weffort) são: RAMALHO, José Ricardo. Estado patrão e luta operária.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; SILVA, Francisco Teixeira da Silva. A carga e a culpa – os operáriosdas docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade (1937/1968). São Paulo: Hucitec; Santos: Pref.Munc. de Santos, 1995; SANTANA, Homens partidos, op. cit.; COSTA, Hélio da. Em busca damemória. São Paulo: Scritta, 1995; FONTES, Paulo. Trabalhadores e cidadãos – Nitroquímica: a fábricae as lutas operárias nos anos 50. São Paulo: Annablume/Sind. dos Químicos e Plásticos-SP, 1997.
NEGRO, Antonio Luigi. Linhas de montagem: o industrialismo nacional-desenvolvimentista e asindicalização dos trabalhadores (1945-1978). São Paulo: Boitempo, 2004.212 RODRIGUES, Leôncio Martins. Sindicalismo e conflito industrial no Brasil. São Paulo: Difel, 1966,
p.59.
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entendidos como recursos que exprimem a debilidade dos sindicatos. Marcelo Badaró
Mattos ajudou também a desconstruir essa imagem tradicional.213 No mesmo estudo
supracitado, o autor buscou pensar o recurso aos piquetes de uma forma mais complexa
e, partindo do estudo de três categorias, bancários, metalúrgicos e ferroviários,
verificou-se que o recurso ao piquete muitas vezes era tomado como segurança para queos trabalhadores não sofressem maiores represálias das empresas ao pararem de
trabalhar.
Como vimos, Mattos demonstrou também ser falsa a ideia de que inexistiam
organizações por local de trabalho, e partindo de dados colhidos em documentação
variada, constatou que em metade da base do Sindicato dos Metalúrgicos existiam tais
organizações, sendo que no caso do Sindicato dos Bancários, onde índice de
sindicalização correspondia quase que ao total da base sindicalizada, 75%, tais
organizações eram das mais dinâmicas. Além do mais, nem sempre os piquetes sefaziam necessários.214 Outro ponto importante deste mesmo trabalho é que apensou
dados mais precisos sobre o volume de greves que marcaram a espiral sindical no pré-
1964. Até Novos e velhos sindicalismos, os dados sobre a mobilização sindical no Rio
de Janeiro haviam sido os elaborados por Régis de Castro Andrade nos anos 1970, e o
por Salvador Sandoval215 dos anos oitenta, ambos baseados em levantamentos no jornal
paulista Folha de São Paulo, e os importantes trabalhos dos brasilianistas Kenneth Paul
Erickson216 e Timothy Fox Harding,217 que basicamente realizaram levantamentos no
Jornal do Brasil e no semanário comunista Novos Rumos. Trabalhando com uma série
de periódicos cariocas, como Correio da Manhã , Jornal do Brasil, O Dia, O Jornal etc.,
Mattos demonstrou que o número de paralisações considerados nestes trabalhos havia
sido subestimado, havendo mais que o dobro das ocorrências.218
Além de Mattos, os também supracitados trabalhos de Marco Aurélio Santana e
Hélio da Costa, e uma certa produção historiográfica desenvolvida na Unicamp desde os
anos noventa, também seguiram na mesma direção de crítica à noção de sindicalismo
populista. Exemplar desta última produção está condensada na obra coletiva Na luta por
direitos de 1999, que contribuiu com estudos sobre as lutas operárias no período, muitos
213 MATTOS, Novos e velhos sindicalismos, op. cit.214 Idem, ibidem, 184 e passim.215 SANDOVAL, Salvador. Os trabalhadores param. Greves e mudança social no Brasil, 1945-1990. SãoPaulo: Ática, 1994.216 ERICKSON, Kenneth Paul. Sindicalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.217 HARDING, Timothy Fox. The political history of organized labor in Brazil. Ph.D dissertation,Stanford University Press, 1973.218 MATTOS, Novos e velhos sindicalismos, op. cit., p.182-183.
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delas focados na conquista e efetivação de direitos sociais.219 A contribuição vem, de
certo modo, a somar-se ao esforço empreendido desde o trabalho seminal de Luis
Werneck Vianna, Liberalismo e sindicato no Brasil, de 1976, para desmontar o que
Vianna denominou de “ideologia da outorga”, calcada na ideia de uma suposta
“benevolência das elites” na “concessão” dos direitos sociais.220
Referenciados naabordagem sobre direito, justiça e costumes de E. P. Thompson, e nas contribuições do
brasilianista John French, o que os autores de Na luta por direitos vieram a acrescentar
foram justamente estudos que demonstraram como os trabalhadores não só foram atores
na construção da legislação social brasileira, como de que modo a classe foi capaz de
realizar sua própria leitura da lei e da Justiça Trabalhista, de modo a forçar os patrões a
cumprirem os acordos celebrados nos Tribunais, ou mesmo a cobrar dos tribunais por
decisões em seu favor.
No mesmo sentido segue o trabalho mais recente do historiador Murilo LealPereira Neto sobre o movimento operário paulista entre os anos cinquenta e o golpe de
1964, que também mostrou como é falha a ortodoxia sobre a carência de organizações
por local de trabalho, chamando atenção para informações contidas em documentação
variada, como dossiês do DOPS, jornais de sindicatos, Atas de Assembleias e
depoimentos. O autor descobriu que diversas destas organizações estiveram por trás de
greves e que algumas delas chegaram a produzir pequenos jornais. As próprias células
do PCB são também consideradas por Pereira Neto como uma forma dessas
organizações nos locais de trabalho, o que é certamente fato negligenciado durante
muito tempo.221 Em relação ao tema dos direitos, Pereira Neto nos trouxe a lembrança
da longa luta pelo direito ao 13º salário, conquistado no Brasil sob o governo João
Goulart, na qual a greve geral paulista de 13 de dezembro de 1961 constituiu-se num
dos capítulos mais dramáticos.222 Como sintetiza o historiador:
“O 13º salário é um desses casos de reivindicação surgida no chão defábrica, legitimada nas relações costumeiras entre patrões e empregadosem algumas firmas, transformada em lei às custas de greves, demissões,abaixo assinados, prisões e cuja memória é depois ofuscada pelo brilho
219 FORTES, Alexandre et al. Na luta por direitos: leituras recentes em história social do trabalho.Campinas: Ed. Unicamp, 1999. 220 VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1976.221 PEREIRA NETO, Murilo Leal. A reinvenção do trabalhismo no “vulcão do inferno”. Um estudosobre os metalúrgicos e os têxteis de São Paulo. A fábrica, o bairro, o sindicato e a política (1950-1964).Tese de doutorado em História. São Paulo: USP, 2006.222 Idem, ibidem, p.276-288.
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da lei que, supõe-se, como toda lei, deve ter sido iniciativa de algum presidente, deputado ou senador.”223
2.2 As críticas ao conceito de populismo: revisão e revisionismo
Em suma, de acordo com o painel até aqui exposto, a historiografia tem se
movimentado criticamente em relação à noção de sindicalismo populista, que
praticamente entrou em desuso entre os historiadores do trabalho, embora seja
importante mencionar trabalhos como o do cientista político Armando Boito Jr.,
publicado no início dos anos noventa, e que faz largo uso da noção tradicional de
populismo, submetendo-o à abordagem marxista/althusseriana.224 Já em relação ao
conceito de populismo, seu abandono não parece ser consensual. No início dos anos
2000, mesmo do campo da historiografia política, de onde partiria a proposta aberta de
abandono do conceito de populismo, pôde-se ler na lavra de José Murilo de Carvalho a
noção de populismo conjurada.225 É preciso asseverar ainda que mesmo entre os críticos
do conceito de sindicalismo populista, não há consenso ante o abandono da noção de
populismo, de que são exemplos os trabalhos de autores como Alexandre Fortes e John
French, já citados acima. Vejamos isso com maior detalhe.
Uma das principais censuras direcionadas à teoria do populismo liga-se, pois, à
categoria da “manipulação”. A historiadora Ângela de Castro Gomes, na sua
contribuição crítica à história deste conceito,226 atribui importância central ao que
chama de “categoria-chave” da teoria do populismo, que remeteria “à ideia básica decontrole e tutela do Estado”. De acordo com essa autora, a relação entre o líder
populista/Estado e as massas é pensada por Weffort nos seguintes termos:
“Há o desenho de uma relação em que um dos termos é concebido comoforte e ativo, enquanto o outro é fraco e passivo, não possuindocapacidade de impulsão própria por não estar organizado como classe. Asmassas ou os setores populares, não sendo concebidos como
223 Idem, ibidem, p.287.224 BOITO JR., Armando. O Sindicalismo de Estado no Brasil. São Paulo: Hucitec/ Ed.Unicamp, 1991.225 “O populismo pode, sob certos aspectos, ser considerado manipulação política, uma vez que seus
líderes pertenciam às elites tradicionais e não tinham vinculação autêntica com causas populares. Pode-sealegar que o povo era massa de manobra em disputas de grupos dominantes. Mas o controle que tinhamesses líderes sobre os votantes era muito menor do que na situação tradicional. Baseava-se em apelos
paternalistas ou carismáticos, não em coerção. Exigia certo convencimento, certa relação de reciprocidadeque não era puramente individual. Vargas e seus sucessores exibiam como crédito a legislação trabalhistae social, os aumentos de salário mínimo. Sobretudo, a relação populista era dinâmica. A cada eleição,fortaleciam-se os partidos populares e aumentava o grau de independência e discernimento dos eleitores.Era um aprendizado democrático que exigia algum tempo para se consolidar mas que caminhava comfirmeza.” CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2001, p.147-148.226 GOMES, “O populismo e as ciências sociais no Brasil...”, p.33.
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atores/sujeito nesta relação política, mas sim como destinatários/objeto aque se remetem as formulações e políticas populistas, só poderiam sermanipulados ou cooptados (caso das lideranças), o que significa
precipuamente, senão literalmente, enganados ou ao menos desviados deuma opção consciente.”227
Seriam essas massas, segundo tal crítica, concebidas na teoria do populismo de Weffort
como “por definição, desorganizadas e inconscientes –, alvo privilegiado, portanto, da
política de manipulação do Estado: o populismo.”228
É possível sustentar que, ao contrário do que parece sugerir essa crítica, é a
questão da crise de hegemonia que organiza toda a reflexão de Francisco Weffort sobre
a vigência do populismo entre 1930-1964. María Moira Mackinnon e Mario Alberto
Petrone, por exemplo, em texto de referência para o debate sobre o conceito na América
Latina publicado no fim dos anos 1990, enquadram o trabalho do cientista político
uspiano ao lado dos já mencionados Murmis e Portantiero, para quem o conceito de
crise de hegemonia é central.229 Isto nos parece muito mais preciso, posto que, como
definem esses autores, o populismo seria um fenômeno encontrado em algumas
formações sociais latino-americanas após o colapso da ordem oligárquica no período
histórico aberto pela crise de 1929, situação que teria se notabilizado pela debilidade
das classes sociais relevantes, incapazes de assumir tanto a condução do Estado, quanto
uma oposição consequente contra ele. É propriamente do entendimento desta crise de
hegemonia que é possível compreender a questão espinhosa da “manipulação” nas
elaborações de Weffort, que, além do mais, parece ter sido pensada em cores muitos
mais sofisticadas do que a simplificação em que “lideranças populistas inescrupulosas”
“manipulam” massas “bestializadas”, “inconscientes” e “passivas”.
Ao contrário daqueles que pensavam que o proletariado brasileiro formado pelas
grandes levas de migrantes internos que se dirigiram do Nordeste e das Minas Gerais
para os centros mais industrializados do Brasil, como incapaz de desenvolver uma
consciência de classe, já discutimos, Weffort foi um dos primeiros a afirmar a
necessidade de entendimento desta classe trabalhadora como “sujeitos da sua própriahistória”. E mesmo no tal “tempo do populismo”, para Weffort esse foi “um modo
determinado e concreto de manipulação das classes populares mas foi também um modo
227 Idem, ibidem, p.34-35.228 Idem, ibidem, p.35.229 MACKINNON, María Moira; PETRONE, Mario Alberto. “Los complejos de la Cenicienta.” In.MACKINNO, M. M.; PETRONE, M.A. (compiladores.). Populismo y neopopulismo en América Latina:el problema de la Cenicienta. Buenos Aires: Editora de la Universidad de Buenos Aires, 1998, p.13-38.
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de expressão de suas insatisfações”, como escreveu no seu emblemático artigo “O
populismo na política brasileira”, citado na crítica feita por Gomes.230 Afinal, para
Weffort, no populismo “a manipulação nunca foi absoluta”. E com essas palavras
esclarece:
“Se fosse, estaríamos obrigados a aceitar a visão liberal elitista que, emúltima instância, vê no populismo uma espécie de aberração da históriaalimentada pela emocionalidade das massas e pela falta de princípio doslíderes.”231
Em flagrante contraste com a crítica endereçada por Gomes, na verdade Weffort
parece pensar uma relação bem mais dialética entre o Estado/líderes populistas e as
classes populares do que a visão dicotômica entre um polo ativo e outro passivo.
“A noção de manipulação, tanto quanto a de passividade popular, temque ser relativizada, concretizada historicamente, para que possamos
entender a significação real do populismo. A imagem, se não o conceito,mais adequado para entendermos as relações populistas entre as massasurbanas e alguns grupos representados no Estado é de uma aliança(tácita) entre setores de diferentes classes sociais. Aliança na qualevidentemente a hegemonia se encontra sempre com os interessesvinculados às classes dominantes, mas impossível de realizar-se sem oatendimento de algumas aspirações básicas das classes populares, entreas quais caberia mencionar a reivindicação do emprego, de maiores
possibilidades de consumo e de direito de participação nos assuntos doEstado.”232
É por isso que o líder populista deve ser alguém que exerça alguma autoridade noaparelho de Estado – prefeito, vereador, governador, presidente etc. –, que esteja em
condições de “doar”, “seja uma lei favorável às massas, seja um aumento de salário ou,
mesmo, uma esperança de dias melhores”.233
Essa “dialética da doação”, empiricamente observável como prática política
vigente naquele contexto também conhecido como Era Vargas, Ângela de Castro
Gomes prefere pensar a partir das proposições de Marcel Mauss (1872-1950), presente
em seu influente Ensaio sobre a dádiva (1925), a partir da dinâmica social entre dom e
contra-dom, de modo a comprovar sua tese de que sob o Estado Novo teria seconformado um “pacto-trabalhista” (que veremos a seguir). O curioso é que o estudo de
Mauss refere-se aos métodos de troca em sociedades pré-monetárias.
230 WEFFORT, “O populismo na política brasileira.”, op. cit., p.51, grifo nosso.231 Idem, ibidem, p.51.232 Idem, ibidem, p.70.233 Idem, ibidem, p.67.
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Em outra controvérsia recente da historiografia brasileira, a historiadora Laura
de Mello e Souza censurou o recurso às reflexões de Mauss para o estudo do mundo
colonial na América portuguesa, procedimento feito por António Manuel Hespanha e
pelos partidários da abordagem do “Antigo Regime nos Trópicos” na historiografia
brasileira. De acordo com a historiadora paulistana, isso “desloca a análise feita porMauss com base sobretudo num mundo desmonetarizado e a lança no universo do
capitalismo nascente”.234 Ora, se há alguma justeza nessas palavras é necessário
estender o mesmo tipo de censura às proposições de Ângela de Castro Gomes para
entender a relação social que emerge no contexto do “populismo” ou do “trabalhismo”,
como queiram.235 Não obstante, em leituras a partir de registros teóricos distintos, é
possível verificar a aceitação desta “cadeia do dom” de Mauss como uma “rocha eterna”
da sociabilidade humana, e, nesse sentido, o recurso não seria descabido para a
compreensão das relações que se estabeleceram entre os agentes do Estado e a classetrabalhadora na Era Vargas, caso não enquadrássemos essa como uma relação de troca
mercantil.236 O problema então seria se essa questão da reciprocidade já não estaria
presente no próprio conceito de populismo.
Seja lá o que for, em suas proposições sobre a “invenção do trabalhismo”,
Gomes parece fazer coro com uma postura intelectual amplamente desenvolvida nos
anos 1980 que dizia ser em as análises “tradicionais” sobre a relação entre o Estado e a
sociedade baseadas em esquemas “maniqueístas”, segundo os quais esta última seria
234 SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.58-9.Elaborado pelo historiador carioca João Fragoso, o paradigma do Antigo Regime nos Trópicos tem dadoo tom da produção sobre a América portuguesa na última década. Suas origens podem ser pensadas comoum desdobramento da tese do “arcaísmo como projeto” enunciada pelo próprio Fragoso e por ManoloFlorentino. Em artigo publicado na revista portuguesa Penélope em 2000, no contexto do boom na
produção historiográfica sobre o período colonial – face à efeméride dos 500 anos – Fragoso ao lado deMaria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouveia (“Uma leitura do Brasil colonial – bases damaterialidade e da governabilidade do Império”, Penélope, n.23, Oeiras, Celta Editora, p.67-88, 2000) eculminou na publicação da obra coletiva FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA,Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (século XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Os supracitados comentários de Laura de Mello eSouza referem-se principalmente a esta última obra.235 Os chamados “críticos do valor” oferecem outro argumento a essa crítica de Laura de Mello e Souza.
O filósofo e ensaísta alemão Anselm Jappe, por exemplo, em seu livro As aventuras da mercadoria lançamão dos estudos sobre a dádiva de Marcel Mauss – como também o trabalho de outros antropólogoscomo Marshall Sahlins, Louis Dumont, Karl Polanyi – para discutir como a troca de equivalentes, quecaracteriza a sociabilidade do valor, não é “a única forma possível de socialização e que a subordinaçãototal da sociedade às exigências do trabalho produtivo, tal como a condição prévia dessa subordinação,nomeadamente a desvinculação da ‘economia’ e do ‘trabalho’ do conjunto do domínio da vida,representam um fenômeno relativamente recente, limitado somente à sociedade capitalista” JAPPE,Anselm. As aventuras da mercadoria. Por uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006, p.223.236 LANNA, Marcos. “Notas sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva.” Revista de Sociologia ePolítica, Curitiba, n.14, p.173-194, jun.2000. SABOURIN, Eric. “Marcel Mauss: da dádiva à questão dareciprocidade.” Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.23, n.66, p.131-208, fevereiro 2008.
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sempre apresentada como “passiva”. Por volta da época em que publicou sua tese de
doutorado, A invenção do trabalhismo, José Murilo de Carvalho, em seu Os
bestializados, buscou pensar a questão da constituição da cidadania e a relação com o
Estado brasileiro nos seguintes termos:
“Trata-se do problema do relacionamento entre o cidadão e o Estado, ocidadão e o sistema político, o cidadão e a própria atividade política. Temhavido recentemente tendência a ver tal relação de maneira maniqueísta,segundo a qual o Estado é apresentado como vilão e a sociedade comovítima indefesa. (...) Na prática, [essa visão maniqueísta] acaba porrevelar uma atitude paternalista em relação ao povo, ao considerá-lovítima impotente diante das maquinações do poder do Estado ou degrupos dominantes. Acaba por bestializar o povo.”237
É difícil saber de que análises “maniqueístas” o autor e parte da historiografia se
lamentam quando assim se pronunciam, e certamente estes dizeres, embora marquem
uma posição historiográfica nada ingênua – que visa amaciar as relações contraditórias
entre os grupos e classes sociais na desigual sociedade brasileira –, não necessariamente
se dirige contra a noção de populismo. Afinal, como já vimos, o próprio historiador
mineiro não abre mão das noções de “manipulação” e mesmo “populismo”. Enquanto
em Gomes a rejeição ao populismo é total, e, respondendo críticos a quem acusa de
fazer uma crítica apenas parcial ao conceito, diz com essas palavras:
“o que se deseja rejeitar na categoria populismo são as idéias que elasanciona: a de lideranças orientadas basicamente pelo desejo de
manipular o povo/trabalhadores e de um povo que se deixa facilmenteenganar comportando-se freqüentemente de forma inconsciente einconseqüente”238
Reduzido a um mito político – no sentido dado por Raul Girardet em seu livro
Mitos e Mitologias Políticas –,239 como uma formulação que resiste ao “tempo e às
chamadas provas empíricas”, o populismo seria ainda uma mitologia carregada de
significado negativo sobre a natureza do povo e das elites nacionais.240
“Ela evoca a desesperança e o ceticismo. Ela narra um destino manifesto
que se configura como um impasse permanente. É como se houvesseuma “caveira de burro” enterrada no solo político brasileiro, que sela um
237 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1987, p.10.238 GOMES, Ângela de Castro. “Reflexões em torno de populismo e trabalhismo.” Varia História, BeloHorizonte, n.28, p.55-68, dezembro de 2002, citação a p.63.239 São Paulo: Companhia das Letras, 1987.240 GOMES, “Reflexões em torno de populismo e trabalhismo”, op. cit., p.64.
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pacto perverso entre elites e povo, ambos marcados pela ausência deatributos positivos de forma verdadeiramente ontológica.”241
Por outro lado, o fulcro do problema que a teoria do populismo traz não é tanto o
que supostamente se manifestaria com a “manipulação”, mas as condições sob as quais
a “manipulação populista”, ou melhor, o regime populista, tornou-se a forma possível
da política no período de aceleração histórica da objetivação do modo de produção
efetivamente capitalista no Brasil.242 Nestes termos, parece-nos que a principal questão
da teoria do populismo liga-se realmente à questão da crise de hegemonia como
apontaram Mackinnon e Petrone. Em suma, a questão da manipulação é subordinada ao
entendimento das relação de forças sociais no período histórico aberto pela “Revolução
de 1930”, ou da capacidade de organização autônoma das classes sociais num período
de crise, dos seus partidos políticos e demais organizações na sociedade civil, o que
remete à problemática da consciência de classe. De acordo com o que é possível aferir
das proposições canônicas de Weffort, a própria manipulação se inscreve nessa
determinação prévia. Como diz em seu clássico artigo, foi antes de mais nada o
resultado “de um período de crise”243
Em texto recente, os historiadores Sidney Chalhoub e Fernando Teixeira da
Silva identificaram uma enorme afinidade entre os trabalhos “tradicionais” sobre a
escravidão Brasil, calcados, segundo os autores, na noção do “escravo-coisa”, e os
estudos pioneiros sobre o trabalho livre no Brasil, estudos, que como vimos, embasaram
e constituíram a própria noção de populismo.244 Essa afinidade conformaria o que
Chalhoub e Teixeira da Silva denominam de “paradigma da ausência”, presente, por
exemplo, em todas as representações dos escravos que derivam da brutalidade do
cativeiro a incapacidade destes em produzir um sentido para sua própria vida. De acordo
com esses autores, essa mesma imagem também está presente nas formulações sobre a
“heteronomia” da classe operária do período 1930-1964, entre os quais a do
241 Idem, ibidem, p.67.242 Sobre modo de produção efetivamente capitalista e a questão da industrialização, ver. MARX, Karl.Capítulo inédito d’O capital. Resultados do processo imediato. Porto: Escorpião, 1975, p.89. ______. Ocapital. Livro I, vol. II. São Paulo: Nova Cultural, 1983, capítulo XV, p.105-112.243 WEFFORT, “O populismo na política brasileira”, op. cit., p.50, grifo nosso.244 CHALHOUB, Sidney & SILVA, Fernando Teixeira da. “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravose trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980.” Cadernos AEL, Campinas, v.14, n.26,
p.13-47, 2009.
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populismo.245 Ainda de acordo com estes autores, com a crítica dos últimos vinte anos
ao conceito de populismo, operou-se a emergência de um paradigma alternativo,
calcado na incorporação da noção de agência humana.
Todavia, é preciso notar que alguns críticos do conceito parecem mais
interessados em reabilitar como “autênticos líderes populares” homens como Vargas,Goulart ou até mesmo Jânio, do que investigar as diversas formas como as classes
subalternas lutaram sob seus governos. Pois neste debate, em que mesmo sujeitados,
todos são apresentados como “sujeitos que realizam escolhas”, apela-se sempre para a
obra de E. P. Thompson.246 Como já havíamos mencionado acima, a parte mais
interessante dos críticos do conceito de populismo têm mostrado que no período entre
1930 e 1964 a classe trabalhadora lutou de diversas formas e soube transcender, ainda
que parcialmente, os limites impostos pela estrutura sindical oficial. Foi sujeito de sua
própria história, e mesmo quando integrando uma aliança poli-classista, foi capaz deencaminhar suas demandas no interior deste pacto de classe.
Deste modo, é inteiramente necessário assinalar no movimento de crítica do
conceito duas posturas antagônicas.247 A nosso ver é certamente fecundo recusar noções
simplificadas de uma “massa manipulada” e/ou “trabalhadores passivos”, mas
acreditamos ser possível fazer uma reelaboração do conceito, não abrindo mão de
caracterizar homens como Getúlio Vargas, Ademar de Barros, João Goulart e Jânio
Quadros como populistas, como tem feitos alguns estudiosos. No livro Afogados em
leis, John French parece se encaminhar nesse sentido quando critica de forma dura uma
certa historiografia revisionista no tratamento à figura de Getúlio Vargas:
“Na verdade, apesar do revisionismo corrente, devemos ir além e perguntar até que ponto os trabalhadores poderiam ter confiança no próprio Getúlio Vargas – se é que tinham alguma. Infelizmente, algunsanalistas têm se inclinado a favor de uma visão acrítica de Vargas.Baseados muito mais em sua retórica do que em sua atuação concreta,
245 Essa afinidade também foi notada pela própria Ângela de Castro Gomes. GOMES, Ângela de Castro.“Questão social e historiografia no Brasil pós-1980: notas para um debate.” Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, n.34, p.157-186, julho/dezembro de 2004.246 A importância da obra de E. P. Thompson para a historiografia brasileira e os usos feitos por diversoshistoriadores vêm sendo estudadas por Marcelo Badaró Mattos. Ver MATTOS, M. B. “E. P. Thompsonno Brasil.” Outubro, n.14, p.81-110, 2006. ______. Edward Palmer Thompson e a tradição de críticaativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2012. Para o lugar da obra de Thompson nosestudos sobre a classe trabalhadora, cf. LINDEN, Marcel van der. “História do Trabalho: o velho, o novoe o global.” Revista Mundos do Trabalho, vol.1, n.1, p. 11-26, janeiro-junho de 2009.247 DEMIER, Felipe Abranches. “Trabalhadores e populismo vistos sob outra perspectiva: a correntehistoriográfica da Unicamp e a tese da luta por direitos.” Anais do I Seminário Internacional Mundos doTrabalho: História do Trabalho no Sul Global, Florianópolis (SC), 2010. Disponível<http://labhstc.ufsc.br/globalsouth/program.htm>
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atribuem a ele ‘boas’ intenções e um projeto reformista. A melhor provade que isto não corresponde aos fatos pode ser encontrada na políticatrabalhista da segunda presidência de Vargas, entre 1951 e seu suicídio,em agosto de 1954. Durante a campanha de 1950 e após sua eleição,Vargas havia criticado com vigor a perversão do ‘sistema CLT’ naadministração de Dutra. Seus discursos frequentemente expressavam
simpatia e compreensão para com os problemas enfrentados pelostrabalhadores e sindicalistas. Ao mesmo tempo, entretanto, Vargasnomeou consecutivamente dois reacionários para encabeçar o Ministériodo Trabalho, Indústria e Comércio. O primeiro, de janeiro a setembro de1951, foi Danton Coelho, líder do PTB, que era seu aliado próximo masnão possuía ligações com a classe trabalhadora. O segundo foi SegadasVianna (entre setembro de 1951 e junho de 1953), que tinha experiênciana área mas mantinha um posicionamento político repressivo econservador sobre as questões trabalhistas.”248
Pois, como continua French, de fato, é somente depois da grande greve de massas de
São Paulo em 1953 (a greve dos 300 mil) que dobrou o empresariado paulista e teve oapoio de Jânio Quadros (recentemente eleito Prefeito, com importante base no
operariado), que Vargas busca mudar o estilo de tratar a questão trabalhista, nomeando
o jovem amigo João Goulart para a pasta do Trabalho. Conclui o autor:
“A disposição do governo Vargas em tolerar por tanto tempo ministrosque praticavam esta política trabalhista lastimável [refere-se àcontinuidade do tratamento das greves como caso de polícia] exige queaprimoremos nossos julgamentos sobre o próprio Vargas, sobre otrabalhismo e o populismo. Fatos como este demonstram, no mínimo,que era baixa a sensibilidade aos interesses dos trabalhadores e
sindicalistas no que diz respeito às prioridades políticas de GetúlioVargas, ao menos quando ele retornou ao poder. Também sugerefortemente que os historiadores devem ser cautelosos ao tratar Vargascomo se ele realmente fosse um reformador social coerente e consistente.Tal ingenuidade poderia somente levar à falsa conclusão de que os
populistas como Vargas eram “a favor dos trabalhadores”, de forma ativae intencional, em vez de serem forçados a atuar em um estilo favorável aestes em certas conjunturas, devido a uma combinação de auto-interessee pressão vinda de baixo.”249
É certamente em A invenção do trabalhismo, de Ângela de Castro Gomes, 250 um
marco em todo esse debate, que muitos autores têm buscado inspiração para a crítica às proposições de Weffort sobre o populismo no Brasil.251 Como já mencionamos, para
248 FRENCH, John. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. SãoPaulo: Perseu Abramo, 2001, p.47-48.249 Idem, ibidem, p.50.250 GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3ª Ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.251 Entretanto, a autora só apresentou uma rejeição explicita do conceito de populismo em artigo re-
publicado em 2001. GOMES, “O populismo e as ciências sociais no Brasil....”, op. cit.
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essa autora, durante o Estado Novo teria havido um “pacto trabalhista” entre a classe
trabalhadora e o Estado, numa situação em que a classe trabalhadora é apresentada
como que fazendo uma “escolha num campo de possibilidades”. Em vez de Thompson,
a verdade é que a última proposição é inspirada em outra referência teórica: a proposta
de Adam Przeworski para o estudo da social-democracia europeia. Para este cientista político polonês, os trabalhadores europeus tiveram que decidir entre “participar ou não
do jogo eleitoral”, tendo optado pela alternativa reformista da social-democracia em
detrimento das posições revolucionárias dos comunistas.252 Seguindo raciocínio
semelhante, para autora de A invenção do trabalhismo a partir de 1942 teria se firmado
um pacto entre esses “atores desiguais”, o Estado (elites políticas) e a classe
trabalhadora, contexto em que foi inventada a tradição trabalhista no Brasil.
Como pertinentemente problematizou Virgínia Fontes, no afã de valorizar
aquela experiência histórica dos trabalhadores brasileiros, propostas como essa deÂngela de Castro Gomes isentam-se de discutir os limites da mesma.
“O louvável intuito redunda, entretanto, em outra dificuldade, aovalorizar positivamente o que antes era criticado como “passividade”,agora traduzia numa espécie de “consciência possível” e, portanto,desejável, dos trabalhadores brasileiros, expressa no trabalhismo.”253
Além do mais, a própria ideia de pacto parece esta sujeita a outras restrições, como a
feita por Marcelo Badaró Mattos:
“A interpretação tradicional para esse processo de aproximação doEstado em relação aos trabalhadores defende a ideia de que ocorrera alium pacto, em que os últimos abriam mão da autonomia e combatividadede seus sindicatos, em troca dos benefícios materiais concedidos pelalegislação social. Com base na análise das várias fases do primeiroGoverno Vargas (...) acreditamos ser necessário negar essa interpretação.Em primeiro lugar porque a legislação social já estava, em sua maior
parte, elaborada entre 1930 e 1935 e os trabalhadores organizados e suaslideranças combativas continuaram a resistir à ideia do sindicato tutelado
pelo Estado. quando, na conjuntura da constituinte, muitas organizaçõesautônomas foram buscar o enquadramento no modelo do sindical oficial,
252
Cf. PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e social-democracia. São Paulo: Companhia das Letras,1989. Anote-se que tal hipótese baseia-se numa mistificação histórica, afinal todas as alas da social-democracia histórica bateram-se pela democratização do sistema político através das lutas pelo sufrágiouniversal entre o fim do século XIX e início do XX. Não foi assim uma “escolha estratégica” dos partidosoperários frente a um sistema político já democratizado, como demonstrou Hobsbawm em seu famosocapítulo “A política da democracia.” da sua Era dos Impérios. Cf. HOBSBAWM, A Era dos Impérios,op. cit., p.125-161. Além do mais, o cientista político polonês incorre em uma simplificação grosseira dascorrentes operárias, negligenciando o principal debate que levou à cisão da Internacional Socialista, aGuerra Mundial.253 FONTES, Virgínia. “Que hegemonia Peripécias de um conceito no Brasil.” Reflexões im-pertinentes.História e capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p.211.
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isso não significou paralisia; ao contrário, os primeiros meses de 1935caracterizam-se por uma vigorosa mobilização com grande número demovimentos grevistas. Foi preciso que, a partir de 1935, as liderançascombativas fossem aniquiladas pela violenta repressão, para que oconformismo dos pelegos se instalasse.”254
Não obstante seja necessário, como o fazem Fontes e Mattos, reconhecer os méritos de
Ângela de Castro Gomes na renovação da historiografia brasileira, é necessário também
reconhecer as limitações de suas proposições. Especialmente depois que, ao lado de
outros historiadores revisionistas passou a advogar a substituição da categoria
populismo pela de trabalhismo. Tal proposição recebeu censuras entre os estudiosos da
classe trabalhadora, por assumir o risco de “substituir um estigma pela apologia”. 255
Por fim, é preciso assinalar que é só no artigo já citado, “O populismo e as ciências
sociais no Brasil”, originalmente publicado na revista Tempo, da UFF,256 e que
posteriormente compõe a coletânea O populismo e sua história, de 2001, que a
historiadora de forma evidente propõe o abandono do conceito de populismo. Mais
precisamente no pós-escrito que aparece no livro, pois no artigo original essa posição
está apenas implícita (como também só era implícita essa posição em A invenção do
trabalhismo), já que mesmo em trabalhos da autora dos anos 1990 era possível
encontrar o criticado conceito, em chave weffortiana.257
Integrando esse campo revisionista está a proposta de Jorge Ferreira, cujos
trabalhos se notabilizam em reabilitação histórica dos acusados de populismo, Vargas,
Jango, Brizola etc., tornados (agora) como “autênticos líderes populares”. De acordo
com Ferreira, a opção pelo “trabalhismo” (que o mesmo define como uma “tradição”
que congrega um conjunto de estruturas jurídicas, assistenciais, sindicais e partidárias,
além de líderes carismáticos com “competência” para expressar as demandas de suas
bases), em face das outras correntes da esquerda (anarquistas, socialistas e comunistas),
foi uma escolha consciente e autêntica dos trabalhadores brasileiros.
254 MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão Popular,
2009, p.72-73.255 FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito. A classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas.Tese de doutorado em História. Campinas: Unicamp, 2001, p.438.256 GOMES, Ângela de Castro. “O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória deum conceito.” Tempo, Rio de Janeiro, vol.1, n.2, p.31-58, 1996.257 “A ‘manipulação populista’ não é, de maneira simplista, uma estratégia ‘urdida por político espertos
para enganar o povo ingênuo’. É bem mais complexa, pois dotada de um ambigüidade intrínseca: é tantouma forma de controle sobre as massas, como uma forma de atendimento de suas reais demandas.”GOMES, Ângela de Castro. “A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o públicoe o privado.” In. SHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil. vol.4. Contrastes daintimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.546.
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Em um de seus livros sobre a Era Vargas,258 por exemplo, Ferreira atribuiu a
uma série de cartas de populares endereçadas a Getúlio uma “consciência de classe”
trabalhista. O impressionismo com que trata estas fontes evidencia-se pela não
problematização dos adjetivos elogiosos com os quais os missivistas se referiam a
Vargas, tomando-os como exemplo de uma afinidade estabelecida entre o ditador e os“trabalhadores do Brasil”; como se as pessoas que escreveram para o ditador pudessem
ter tido a “opção” de criticá-lo. Além do mais, o autor não responde a uma questão
óbvia: o que fazer com os outros milhares de trabalhadores que não escreveram
nenhuma carta ao “Pai dos Pobres”? Por que os que escreveram ao Presidente são mais
representativos da classe e de sua consciência política que os sindicalistas da esquerda
aprisionados nas masmorras da ditadura do Estado Novo?
Outra questão intrigante diz respeito ao “sucesso” do trabalhismo face às outras
correntes da esquerda, como se tais opções político-ideológicas estivessemhistoricamente equidistantes; como se os trabalhadores tivesse escolhido num
“supermercado de ideologias políticas” aquela que apresentava os “melhores
benefícios”, optando “racionalmente” pelo trabalhismo. Anote-se que esse é um vício
comum a diversos pesquisadores que, no afã de negar as determinações sociais do
processo histórico, como se falar em “determinação” fosse sinônimo de
“determinismo”, e em razão de uma suposta valorização dos atores sociais como
“sujeitos”, acabam por interditar qualquer postura crítica do analista social. É como se a
legitimidade de certas opções fosse dada simplesmente por si mesma. Ora, não é cabível
afirmar que a opção pelo comunismo estivesse na mesma “distância” para os
trabalhadores do que aquelas pelo conservadorismo político católico, o fascismo ou
mesmo pela apatia.
No livro já mencionado O populismo e sua história, organizado por Ferreira,
esse, Ângela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis lançaram forte ofensiva na
historiografia brasileira pelo abandono daquele conceito canônico. Sem exagero, pode-
se dizer que tal obra coletiva se tornou um marco incontornável neste debate. Todavia,
existem algumas nuances entre as proposições tanto destes autores, quanto de outros
que também participam do livro.259 Em sua própria contribuição, por exemplo, Ferreira
desloca-se das ponderações feitas por Ângela de Castro Gomes, pois agora em vez do
258 FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1997.259 Os outros são: Eliana G. da Fonte Pessanha, Fernando Teixeira da Silva, Hélio da Costa, LucíliaAlmeida Neves Delgado, Maria Helena Rolim Capelato e Regina Lúcia M. Morel.
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O fulcro de sua abordagem está calcado no (confuso) conceito de “tradição
nacional-estatista”, que vem desenvolvendo há alguns anos, e que visa oferecer como
alternativa heurística à noção de populismo. De acordo com o autor, no interior desta
tradição, inscrita numa proposta de modernidade não-liberal encontrada em diversas
realidades nacionais e períodos históricos, o trabalhismo inventado no Estado Novoseria um dos momentos históricos de sua afirmação. Encarnada por Vargas e seus
herdeiros políticos ligadas ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), seria também uma
criação ativa da classe trabalhadora que optou por uma aliança com o Estado para criar
limites à ganância de seus patrões. No início dos anos 1960, tal tradição encontraria sua
formulação mais à esquerda, com o surgimento inclusive de uma ala nacional-
revolucionária (representada naquela época particularmente por Leonel Brizola).
Especialmente ao longo do governo Goulart, quando o movimento pelas “reformas de
base” impulsionado pelos trabalhistas, e que atraiu comunistas e socialistas, atingiu seuauge. Todavia, após o golpe de 1964, com a derrota de todo esse movimento, quando
essa tradição teria ameaçado desaparecer, numa espécie de acerto de contas, a extrema-
esquerda acadêmica – localizada especialmente na USP – junto com a direita liberal
agora no poder teriam se encarregado de, numa aliança tácita, liquidar o trabalhismo,
desqualificado-o de forma pejorativa através do termo populismo. Todavia, segundo o
autor, a tradição nacional-estatista acabaria renascendo em chave autoritária ao longo da
própria ditadura especialmente durante o governo do general Ernesto Geisel (1974-
1979), com a grande expansão do setor estatal da economia.264 Conclui o raciocínio
ironizando o fato de um célebre formulador do conceito, Weffort, outrora um intelectual
socialista do Partido dos Trabalhadores (PT), ter assumido o Ministério da Cultura do
governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), materializando assim a
síntese da aliança entre a intelectualidade elitista da USP com o projeto liberal, cujo
propósito sempre foi a destruição do legado da “Era Vargas”.
Na verdade, tal argumentação é de natureza eminentemente teleológica, como se
estivessem dados desde os anos sessenta os elementos que explicariam a “evolução”
política liberal de antigos quadros acadêmicos da esquerda brasileira, como Francisco
Weffort. Cabe ainda pontuar a parcialidade deste tipo de “crítica”, posto que tal
“evolução política” não pôde ser verificada no já falecido Otávio Ianni, por exemplo,
cuja retidão e convicções socialistas contrastam com o que certamente é uma grande
264 Ver nossas considerações no primeiro capítulo desta tese.
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tradição da intelectualidade brasileira que é o de se abrigar à sombra do poder. Nesse
passo, em vez de explicar as origens do conceito, se acaba por criar uma verdadeira
mistificação, até porque o argumento carece de fundamento factual, pois o populismo
como conceito já circulava na intelectualidade brasileira antes de 1964, sendo na
verdade reformulado após essa data pelos cientistas sociais da USP. A propósito, nestareformulação, não há dúvida de que a problemática do capitalismo dependente – que
naquele mesmo contexto emergiu como grande área de investigação para uma
intelectualidade marxistizante latino-americana, muito além das fronteiras da USP –, foi
central, ponto, aliás, abandonado na reflexão de autores como Daniel Aarão Reis, como
já vimos no capítulo anterior.
É aqui que se pode perceber de uma forma algo mais profunda o sentido de
certas críticas ao conceito de populismo, quando aparecem, em meio às declarações de
que “somos todos sujeitos”, a noção de “sindicalismo de cúpula”, de contrabando. Emalguns casos emblemáticos, reforça-se aquela imagem tradicional do sindicalismo no
pré-golpe de 1964 “ativo apenas nos setores públicos”, sem “trabalho político nas
bases” etc, tal como figura na ortodoxia da teoria do populismo. Um exemplo é
ilustrativo. Tratando das greves políticas durante o governo Goulart, Daniel Aarão Reis,
afirma: “Apesar de decretadas como gerais, quase sempre não passavam de parciais,
sendo que, no mais das vezes, seus principais contingentes encontravam-se nas
autarquias ou nos serviços públicos.”265 Concluindo tal raciocínio, o autor “esclarece”
em nota que “a pesquisa”, segundo ele, desde os anos sessenta até o presente, teria
enfatizado o “caráter limitado política e geograficamente” destas greves gerais. Tal
posição denota um profundo desconhecimento da historiografia do trabalho nos últimos
vinte anos, e não por acaso que o crítico cite sintomaticamente um trabalho de Leôncio
Martins Rodrigues, Conflito industrial e sindicalismo no Brasil, 266 como vimos, nada
menos que um dos elaboradores da própria noção (mais tradicional) de “sindicalismo
populista”. Como forma de ilustrar essa afinidade entre a abordagem tradicional sobre o
sindicalismo populista e a “crítica” de Daniel Aarão Reis, vale transcrever como o
próprio Weffort caracterizou de forma idêntica as tais greves políticas durante o
governo Goulart:
“As greves políticas do período Goulart são talvez o ponto máximo nodesenvolvimento do sindicalismo populista. Conforme um estudo
265 REIS, “O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita” op. cit., p.336-337.266 Idem, nota 10, p.337. RODRIGUES, Conflito industrial e sindicalismo no Brasil, op. cit.
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É que a direita neoliberal no poder na América Latina nos anos 1990 – em alguns casos
desde muito antes, como no Chile de Pinochet – classificou como inimigos a serem
combatidos: 1) as empresas estatais (que deveriam ser privatizadas), 2) as políticas
públicas universais (de saúde, educação etc., que deveriam também serem entregues à
lógica do mercado) e 3) os direitos sociais (chamados de “custo” e por nossas praias de“custo Brasil”). Em suma, todas construções histórico-sociais identificadas com o
período chamado populista. Agora que o inimigo histórico do capitalismo (o
socialismo) já havia (aparentemente) batido em retirada em 1989-1991, aos neoliberais
restava combater os restos deste “populismo”.
O curioso é que “populismo” foi termo utilizado por alguns para caracterizar
Fernando Collor no Brasil, e Fujimori no Peru, implementadores do ajuste neoliberal.
Mas com o desgaste deste modelo no final dos anos noventa e a emergência na década
seguinte de uma série de governos identificados com a esquerda política e com astradições nacionalistas, seriam estes próprios governos tachados agora também de
“populistas” pela mídia e todo o cortejo da direita empedernida.
No âmbito propriamente acadêmico, um teórico do conceito de populismo, o
argentino radicado na Inglaterra, Ernesto Laclau, que desde os anos setenta já vinha
produzindo uma conceituação própria,270 reacendeu o debate teórico. Publicado em
2005, seu livro La razón populista271 estabelece que, em vez de transitório (ou mesmo
aberrante, como figura em parte considerável da produção das ciências sociais latino-
americanas), o populismo está sempre presente na estruturação da vida política. Em
suma, toda forma de política é populista.
“Una consecuencia de nuestra intervención es que el referente del‘populismo’ se vuelve borroso, pues muchos fenómenos quetradicionalmente no fueron considerados como populistas, en nuestroanálisis caen dentro de esta calificación. Aquí reside una crítica potenciala nuestro enfoque, a la cual sólo podemos responder que el referente del‘populismo’ siempre ha sido ambiguo y vago en el análisis social. Bastacon revisar brevemente la literatura sobre populismo – a la que hacemosreferencia en el capítulo 1 – para ver que está plagada de referencias a la
vacuidad del concepto y a la imprecisión de sus límites. Nuestro intentono ha sido encontrar el verdadero referente del populismo, sino hacer loopuesto: mostrar que el populismo no tiene ninguna unidad referencial
porque no está atribuido a un fenómeno delimitable, sino a una lógica
270 O mais conhecido texto do autor publicado no Brasil é LACLAU, Ernesto. “Para uma teoria do populismo.” In. Política e ideologia na teoria marxista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.149-204.271 LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005.
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outro lado, inspirados nas mesmas categorias, outros autores tem buscado justamente
uma alternativa ao que veem ser um inevitável abandono, como Alberto Aggio que
propõem o conceito gramsciano de revolução passiva em lugar do de populismo.277
O advento do governo de Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, do Partido dos
Trabalhadores (PT), reacendeu o debate quando ele parecia que estava fadado aextinguir-se. Constituindo apreciação crítica pioneira, o ensaio de Francisco de Oliveira
“O Ornitorrinco”, embora rejeite a noção de passividade dos trabalhadores em relação a
Vargas (e também a associação que parte da sociologia latino-americana fez com o
fascismo), manteve a arquitetura da sua clássica argumentação presente em sua Crítica
à razão dualista que concebeu o populismo como a forma da revolução burguesa no
Brasil.278 Em debate provocado pelo ensaio, numa edição do programa Roda Viva da
TV Cultura de São Paulo, o filósofo Paulo Arantes interpelou Oliveira sobre a
pertinência do conceito de populismo para analisar o que poderia ser o resultadodaquele tipo de experiência governamental do PT.
“Paulo Arantes: Chico, eu posso lhe fazer uma pergunta a respeito dasintuições do Ornitorrinco? Inclusive, é um prognóstico que você fala queestá fazendo, mas não está publicado ainda. Você descobriu que ofamoso populismo brasileiro foi caluniado pela sociologia de esquerda noBrasil e que o verdadeiro populismo vem por aí, está à nossa frente. Você
poderia explicar?Francisco de Oliveira: É isso, eu acho que a sociologia uspiana... houveum fenômeno interessante. No fim da [Segunda] Guerra, todas as forçasanti-fascistas uniram-se no mundo, e o populismo foi assimilado aofascismo pela direita internacional e, surpreendentemente, pela esquerda,em razão da luta anti-fascista. Assimilou-se o populismo ao fascismo, eeles não têm nada em comum; na verdade, o fascismo foi uma contra-revolução em todos os países em que ocorreu. O populismo não, o
populismo foi uma forma autoritária de incorporar a classe operária, anova classe. Então, eu acho que sociologicamente comeu-se gato porlebre e isso criou preconceitos, não para se louvar, e de novo dizer que[Getúlio] Vargas é o pai dos pobres. Portanto, desse ângulo, não temnada que ver. Agora, aquela forma foi, portanto, uma forma de incorporarà agenda política e à cena política uma nova classe social, incorporarautoritariamente, por cima, a clássica via passiva brasileira e latino-
americana em geral, que foi mais do que brasileira e latino-americana emgeral. Quer dizer, a via passiva, você teve pelo menos, de forma forte, na
277 AGGIO, Alberto. “A emergência das massas na política latino-americana e a teoria do populismo.” In.AGGIO, Alberto & LAHUERTA, Milton (org.). Pensar o século XX . Problemas políticos e histórianacional na América Latina. São Paulo: Ed. UNESP, 2003, p.137-164.278 Não por acaso, a edição em forma de livro de “O Ornitorrinco” fez-se em edição em conjunto com“Crítica à razão dualista”. Quanto ao tema da passividade, Oliveira incorpora a crítica que a novahistoriografia do trabalho fez a essa noção. OLIVEIRA, Crítica à razão dualista. O Ornitorrinco, op. cit.,
p.145.
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Alemanha, na Itália e no Japão, exatamente os três países... Hoje, o quevocê tem? Como não dá para incorporar, o sistema não incorpora mais ooperariado; na verdade, a regra neoliberal desincorpora, desregula e, nostermos do [sociólogo francês Robert] Castel, ela desfilia, ou seja, vocêestá à frente a que situação? Exatamente às identidades de classe; arelação entre classes, interesses e representação quebrou-se. Aí você está
com 60% da força de trabalho na informalidade, você está com o campoaberto para o populismo. O populismo de novo tipo e, ao meu ver, destavez realmente predatório. Isso, a gente olha a América Latina e, por todoo canto, está aparecendo. Qual é o problema do [presidente venezuelanoHugo] Chávez, por exemplo, sem apelidá-lo disso ou daquilo outro?”279
O conceito de populismo também foi conjurado por André Singer, cientista
político da USP e ligado ao PT, em debate sobre a caracterização do governo de Lula e
o fenômeno do “lulismo”.280 Para Singer, o fenômeno emerge entre o primeiro (2003-
2006) e segundo (2007-2010) mandatos de Lula, e poderia ser apreendido a partir de
uma estrutura semelhante à aquilo que Marx definiu como “bonapartismo”. 281 A síntese
das ideias de Singer, apresentadas no trecho a seguir, busca explicitamente mostrar a
atualidade do conceito de populismo:
“Árbitro acima das classes, o lulismo não precisa afirmar que o povoalcançou o poder ou que “os dominados comandam a política”, como naformulação que [Francisco de] Oliveira foi buscar na África do Sul pós-apartheid . Ao incorporar tanto pontos de vista conservadores,
principalmente o de que a conquista da igualdade não requer ummovimento de classe auto-organizado que rompa a ordem capitalista,como progressistas, a saber, o de que um Estado fortalecido tem o deverde proteger os mais pobres, independentemente do desejo do capital, eleachou em símbolos dos anos de 1950 a gramática necessária. A noçãoantiga de que o conflito entre um Estado popular e elites antipovo sesobrepunha a todos os outros poderá cair como uma luva para o próximo
período. Agora enunciada por um nordestino saído das entranhas dosubproletariado, ganha uma legitimidade que talvez não tenha tido na
boca de estancieiros gaúchos. Por isso, se a hipótese do realinhamento se
279 Transcrição do debate disponível emhttp://www.rodaviva.fapesp.br/materia/697/entrevistados/francisco_de_oliveira_2003.htm (acessado em 3de fevereiro de 2013)280 SINGER, André. “Raízes sociais e ideológicas do lulismo.” Novos Estudos CEBRAP, p.83-102,
novembro de 2009, grifo nosso.281 Como tem demonstrado o historiador Felipe Demier – outro que vem recuperando as potencialidadesheurísticas do conceito de populismo –, as reflexões marxistas sobre o bonapartismo estiveram presentesna elaboração do conceito de populismo em autores uspianos como Weffort e Ianni. DEMIER, Felipe.
Do movimento operário para a Universidade. Leon Trotsky e os estudos sobre o populismo brasileiro.Dissertação de Mestrado em História. Niterói, PPGH-UFF, 2008. ______ “Bonapartismo e cesarismo nosestudos sobre o período 1930-1964 da república brasileira: alguns apontamentos introdutórios.” Outubro,São Paulo, n.19, p.105-154, 2011. _____. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomiarelativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operário. Tese de doutorado em História.Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), Niterói,2012.
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confirmar, o debate sobre o populismo ressurgirá das camadas pré-salanteriores a 1964, em que parecia destinado a dormir para todo osempre.”282
Do campo da Sociologia do Trabalho, em outra seminal reflexão sobre o
fenômeno do “lulismo”, Ruy Braga também recuperou a história da classe trabalhadora brasileira, dialogando criticamente com o conceito.283 Buscando discutir a relação
estabelecida entre o proletariado precarizado e a hegemonia lulista, nos termos
propostos por Francisco de Oliveira (isto é, de uma “hegemonia às avessas”),284 e em
diálogo crítico tanto com as proposições de Singer, quanto de Jessé Souza, Ruy Braga
lança a tese de que o lulismo é uma superação dialética ( Aufhebung: nega; conserva;
eleva a um patamar superior) do populismo. 285 Explicitamente reabilitando a categoria
na chave weffortiana,286 o sociólogo paulista entende o próprio fenômeno como um
“modo de regulação populista” que, no após-Segunda Guerra operou a superação do“taylorismo primitivo” para o estabelecimento do “fordismo periférico”.287
Constituindo-se como uma hegemonia precária, o modo de regulação populista
encontraria seus limites históricos justamente a partir dos desdobramentos internos do
fordismo periférico, que após 1964 continuaria se expandindo através do “modo de
regulação autoritário”.288
Como se pode ver, seja para defender governos, atacá-los (como faz a mídia) ou
discutir um fenômeno político de envergadura no atual contexto latino-americano, o
conceito de populismo parece estar bem vivo. E ainda que possa ser condenado
retoricamente à lata do lixo da história, parece disposto a renascer como Fênix. Essa
“persistência do populismo” talvez sirva para jogar uma luz num dos argumentos
282 SINGER, “Raízes sociais...”, op. cit., p.102.283 BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia. São Paulo: Boitempo, 2012.284 Trata-se da tese da “hegemonia às avessas”, que Oliveira apresentou no artigo OLIVEIRA, Franciscode. “O momento Lênin.” Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.75, p.23-47, julho de 2006. O debate emtorno a esse artigo deu lugar à publicação de OLIVEIRA, Francisco; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele(orgs.). Hegemonia às avessas. Economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo:Boitempo, 2010.285 Para o sociólogo, a hegemonia forma-se a partir de dois elementos: de um consentimento passivo do
precariado, seduzido por políticas redistributivas e os ganhos salariais advindos do crescimentoeconômico; o consentimento ativo da maioria das lideranças sindicais, que ascenderam à burocraciaestatal e ao rentável controle dos fundos de pensão. BRAGA, A política do precariado, op. cit., p.30.286 Pensada agora nos termos da chamada “escola francesa da regulação”, e incorporando a crítica
proveniente da nova historiografia do trabalho.287 Idem, ibidem, p.20-23. De acordo com o autor, o “taylorismo primitivo” se liga às iniciativas a-sistemáticas de empresários como Roberto Simonsen, já nos anos 1920, de racionalização do processo detrabalho, tendo o modo de regulação populista promovido a implantação de uma racionalização mais
planejada/dependente, o “fordismo periférico”.288 Idem, ibidem, p.41-88.
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utilizados por Gomes, Ferreira e Aarão Reis para rejeitar o conceito, que parece ser
justamente o fato deste ter surgido do debate público antes de ganhar contornos
científicos na produção universitária. Esta nos parece ser uma crítica de corte
positivista, como se os conceitos com capacidade heurística fossem apenas aqueles
criados pelo cientista social em seu gabinete. Teríamos que supor, seguindo essa lógica,que a própria crítica ao populismo não é ela própria, permeada por concepções e
projetos políticos.
Ao contrário desta suposta dinâmica de elaboração conceitual que pudesse ser
feita de forma apartada da vida social, é preciso lembrar que uma série quase infinita de
conceitos das ciências humanas não nasceu de dentro dos muros universitários, mas sim
dos conflitos históricos concretos e do debate público.289 Além do mais, como já
dissemos, seria preciso considerar que a rejeição ao conceito não fosse ela própria uma
postura intelectual permeada por proposições políticas e ideológicas, e sim um meroacerto de contas entre o “senso comum” e a “ciência”. Isto não deve ser entendido como
se estivéssemos propondo que os cientistas sociais (e os historiadores entre eles) devam
abrir mão do dever de criticar as noções oriundas do meio social, de modo a produzir
ferramentas conceituais que nos ajudem a entender o passado e o que veio dele. Afinal,
como nos ensina Marx, “toda a ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a
essência das coisas coincidissem imediatamente”.290
Além do mais, substituir “populismo” por “trabalhismo”, como propõem os
autores revisionistas, já se mostrou insuficiente, pois como também lembra John
French, no importante Estado industrial de São Paulo, no período entre 1945-1964,
inexistiu algo similar à tal ideologia trabalhista.291 Entre os paulistas o PTB nunca teve
o peso que possuiu na capital federal, ou no Rio Grande do Sul, o mesmo podendo ser
dito dos outros partidos trabalhistas menores. Por outro lado, proposições como as de
289 Podemos pensar na noção contemporânea de “revolução” como ruptura + mudança social profunda,que remete diretamente à Revolução de 1789. Göran Therborn, em seu comentário sobre Revolutions andWorld Politics de Fred Halliday, anota a mudança: “Até a década de 1790, o termo “revolução”significava normalmente um movimento para trás, ou uma rotação numa direção circular ou cíclica. (...)
De maneira mais frouxa, por volta de meados do século XVIII a palavra podia, como em Voltaire,designar mudanças no sentido geral. O que o termo certamente não denotava era uma ruptura com osistema político tradicional, abrindo um portão para um novo futuro. As palavras de Tomas Paine noinício de 1791 assinalaram uma virada: ‘É um tempo de Revoluções, em que tudo pode ser buscado.’”THERBORN, Göran. “Revoluções reconsideradas.” In. SADER, Emir. Contra corrente: o melhor da
New Left Review em 2000. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.281-282. Ver também KOSELLECK,Reinhart. “Critérios históricos do conceito moderno de revolução.” In. Futuro Passado. Contribuição àsemântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed.PUC-RJ, 2006, p.61-77.290 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro III. O processo global de produçãocapitalista. São Paulo: Abril Cultural, 1983, capítulo XLVIII, p.271.291 Entrevista do autor publicada em FORTES, Na luta por direitos, op. cit., p.189-190.
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Laclau e Singer, ainda que busquem a atualidade da noção, revelam os problemas de sua
positivação conceitual, pois esvaziam os aspectos críticos que acompanharam a
emergência do conceito no debate acadêmico latino-americano. Nesse sentido, não
ajudam em nossa compreensão histórica, servindo, tal como o revisionismo, para
mistificá-lo.
2.4 A greve geral e o debate sobre o populismo
Temos então o desafio de estudar nesta tese a ação do movimento sindical
organizado, tendo à sua frente lideranças sindicais comunistas e trabalhistas de
esquerda, que possuíam fácil trânsito nas altas esferas governamentais no período do
governo Goulart. Por sua representatividade, conformaram uma aliança de classes,
como notam tanto os partidários quanto os críticos do conceito de populismo. Por sua
vez, ainda que a relação tenha sido tensa em muitos momentos (como em meados de
1963, quando o CGT praticamente rompe com o governo por causa do Plano Trienal),
já assinalamos que Jango teve nos sindicatos uma de suas principais bases de apoio
social. Era o que críticos como Weffort denominaram de “intimidade palaciana” entre a
esquerda sindical e os políticos populistas. Assim, em face de nosso objeto constituir-se
uma greve geral para apoiar as manobras de Goulart, porque não atribuir a esse
sindicalismo o adjetivo de “populista”?
Mesmo nas condições adversas nas quais era vetada pela lei a possibilidade de
diversas categorias profissionais dos trabalhadores se unificarem numa representação
nacional, estes realizaram greves massivas em diversas cidades do Brasil sob a
República de 1946. A história do período 1945-1964 parece confirmar o critério
metodológico enunciado por Antonio Gramsci, sobre a dialética entre tendências e
contra-tendências que operaram no processo de auto-fazer-se dos grupos sociais
subalternos. Gramsci adverte que ao mesmo tempo em que se verifica uma tendência à
unificação, a história destes grupos é sempre “desagregada e episódica”.292 Neste
sentido, mesmo que tenha sido o desejo daqueles que elaboraram a legislação sindical
corporativista manter a classe trabalhadora dividida em suas categorias profissionais, de
292 “A história dos grupos sociais subalternos é necessariamente desagregada e episódica. É indubitávelque, na atividade histórica destes grupos, existe tendência à unificação, ainda que em termos provisórios,mas esta tendência é continuamente rompida pela iniciativa dos grupos dominantes e, portanto, só podeser demonstrada com o ciclo histórico encerrado, se este se encerra com sucesso. Os grupos subalternossofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e insurgem: só a vitória“permanente” rompe, e não imediatamente, a subordinação.” GRAMSCI, Antonio. Caderno 25, § 2,Cadernos do cárcere. Volume 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.135.
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Capítulo 3 – A natureza da crise dos anos
sessenta
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A cena histórica dos anos 1960 foi marcada pelo cruzamento de uma série de
crises de ordem e temporalidades distintas, desde o plano econômico até a própria
estrutura do regime político liberal instituído em 1945-46. Em meados da década de
1960 esse mesmo regime (e não só o governo Goulart) foi golpeado e em seu lugar
instituiu-se a ditadura militar, em si mesma, um regime de crise. O propósito destecapítulo é o de discutir essas dimensões da crise dos anos sessenta a partir da literatura
já consagrada, onde será possível empreender algumas polêmicas com certas
interpretações que ganharam força nos últimos anos e que aqui são tratadas a partir do
conceito de revisionismo .
Inicialmente, em razão da hodierna vulgarização da noção de crise, pois, seu uso
se tornou corriqueiro e muitas vezes impreciso. Nesse sentido, sentimos a necessidade
de apresentar nossa compreensão da cena histórica do início dos anos sessenta não para
chegar a uma conclusão óbvia, que se vivia numa crise, mas para tomar essa mesmacrise em sua dimensão profunda, como constituinte das determinações para as ações dos
sujeitos sociais, entendendo essas determinações como limites e pressões a partir dos
quais estes realizam suas escolhas. Deste modo, será possível discutir nos capítulos
subseqüentes o processo político-social envolto na primeira greve geral nacional
realizada pela classe trabalhadora brasileira, em princípios de julho de 1962.
Em razão da peculiaridade desta crise estar no fato de que ela condensa diversas
ordens de determinações (e diferentes crise), nossa exposição irá se debruçar sobre o
entendimento de como tais dimensões se relacionaram naquele contexto histórico-
concreto. Deste modo, a primeira parte deste capítulo discute tal questão em um nível
teórico mais geral. Em seguida, adentraremos as determinações do processo brasileiro
que conformam a cena histórica dentro da qual se desenvolveu a greve que é o objeto
desta tese. Assim, esse capítulo está dividido em duas partes, sendo a primeira de
natureza teórica, e a seguinte sobre a crise no Brasil no início dos anos sessenta.
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Parte 1 - Da crise: digressão teórica
Corriqueiramente ligado à noção decadência, o conceito de crise tem sido
preferido pela historiografia contemporânea em razão do primeiro possuir uma carga
simplificadora.296 Tal como a palavra crítica, o termo crise origina-se do grego Krisis,
ligando-se ao ato de separar, de romper, julgar, discernir, decidir, eleger etc., oriundo da
medicina de Hipócrates (460 a.C. – 370 a.C.), denotando aí um momento de virada, de
desdobramento de uma enfermidade, tanto para a melhora, quanto para piora do
paciente.297 Em sua História da Guerra do Peloponeso, Tucídides (460 a.C. – 400 a.C)
foi provavelmente o primeiro a utilizar o termo crise para análise de um episódio
histórico, relacionado ao momento decisivo antes da batalha entre a confederação
espartana e Atenas.298 No entanto, o termo ficaria basicamente confinado à acepção
médica ao longo do medievo ocidental, até que, pelo menos desde o século XVII, crise
passasse a ser utilizada em relação a momentos específicos do processo político, como
na Guerra Civil inglesa. Transpunha-se, assim, da linguagem médica para a política em
um momento em que a própria reflexão filosófica passou a tratar o Estado (e a
sociedade) como um corpo, como no Leviatã de Thomas Hobbes (1588-1679). Como
esclarece Koselleck:
“Dada a concepção, então predominante, de Estado como um corpo, nãoera algo remoto aplicar a linguagem médica da crise ao domínio da
política. Mas Rousseau foi o primeiro a aplicar publicamente o termo aogrande corpo político, ao ‘corps politique’.”299
Além de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e outros iluministas franceses
como Denis Diderot (1713-1784), que usaram o termo para caracterizar os limites do
Ancien Regime no continente europeu, Koselleck assinala também de The Crisis de
Thomas Paine (1737-1809), série de panfletos escritos entre 1776-1782 sobre o
desenrolar dos acontecimentos da chamada “Revolução Americana”, onde também
conjura a palavra no mesmo sentido.300 Nota-se que a emergência desta aplicabilidade
296 LE GOFF, Jacques. “Decadência” (Verbete). In. Enciclopédia Einaudi. Volume 1. Memória –História. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984, p.424.297 ABBAGNANO, Nicola. “Crise” (Verbete). In. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes,2003, p.222.298 Cf. TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. 4ª edição. Brasília: Ed. UNB, Instituto dePesquisas de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001,especialmente as partes terceira e sétima.299 KOSELLECK, Crítica e crise, op. cit., p.229 (nota 124) e p.145. BRUNKHORST, Hauke. “Crise.”(Verbete). In. BOTTOMORE, Tom & OUTHWAITE, William (Eds.). Dicionário do Pensamento Socialdo Século XX . Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p.156-160.300 KOSELLECK, Crítica e crise, op. cit., p.229-230.
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da noção de crise ocorreu no contexto político das revoluções burguesas e das
elaborações teóricas que as acompanhariam, expressas na atitude conhecida como
Esclarecimento ( Aufklärung), que, grosso modo, consistia na liberdade de crítica aos
dogmas do Antigo Regime. Nesse sentido, a noção de crise se generaliza nos séculos
XVIII e XIX não só como maneira de descrever uma sociedade em que determinadasestruturas sociais chegaram ao seu limite, mas também como “aviso” de que outra
forma social deveria se impor (no caso, a sociedade burguesa). Há assim, a esta altura,
além de uma associação com a noção de crítica, também uma íntima relação entre as
noções de crise e de revolução, ou ao menos entre crise e mudança das estruturas
sociais.
No século XIX, críticos da sociedade capitalista então em ascensão notariam a
recorrência de uma outra forma específica de crise, que periodicamente passava a
perturbar o desenvolvimento econômico. Ao contrário do que até então ocorria nassociedades pré-capitalistas, onde as crises econômicas eram fundamentalmente de
subprodução (muitas vezes em função de problemas naturais – tempestades, secas,
rigorosos invernos etc. – ou propriamente políticos – como as guerras), com o
desenvolvimento industrial do capitalismo, as crises econômicas se configurariam como
de superprodução de mercadorias.
Para estes críticos da sociedade capitalista, tais crises eram resultantes dos
movimentos internos que presidem o desenvolvimento econômico neste modo de
produção. Em oposição evidente ao enunciado de Jean-Baptiste Say (1767-1832) – que
advogava a possibilidade de, em uma situação de funcionamento adequado das leis de
mercado, existir um equilíbrio “metafísico” entre produção e consumo –,301 os mais
importantes destes críticos, Karl Marx e Friedrich Engels, buscaram demonstrar que
estas crises eram parte da dinâmica interna daquele modo de produção. Já no seu livro
de juventude, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, Engels estabeleceu o
301 Segundo Marx, a ideia de um “equilíbrio metafísico entre vendedores e compradores”, ou seja, da“estupidez em torno da impossibilidade da superprodução”, na verdade foi originalmente proposta pelo
britânico James Mill (1773-1836). Todavia, tal hipótese acabou por ficar conhecida como “Lei de Say”,em razão da popularização da mesma pelo economista francês. A “Lei de Say” seria largamentemajoritária no pensamento econômico e influenciou mesmo o mais destacado economista político, DavidRicardo (1772-1823), autor que Marx considerava como o ponto mais alto desta disciplina. Ver. MARX,Karl. Teorias da mais-valia. Vol.II. São Paulo: DIFEL, 1980, p.929 e passim. ____. Elementos
fundamentales para la crítica de la economia política (Grundrisse) 1857-1858 . Vol.I, 15ª edição.México: Siglo XXI, 1987, p.377.
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vínculo entre a concorrência e tais perturbações,302 algo que posteriormente ganharia
contornos mais precisos na lavra de Marx.
Embora tenha sido o autor que esclareceu de forma mais precisa esta dinâmica
cíclica da economia capitalista, Marx não foi o primeiro a perceber que o próprio
sistema engendrava as crises de superprodução. Em seu clássico livro sobre a formaçãoda classe trabalhadora inglesa, E. P. Thompson localizou em uma resolução dos tecelões
de Leicester de 1817 algo que caracterizou como uma espécie de “teoria sobre as crises
capitalistas baseada no subconsumo”.303 Isso sem falar de economistas burgueses como
Thomas Robert Malthus (1766-1834) em Princípios de economia política (1820), e,
pouco antes dele, românticos como Jean Charles de Sismondi (1773-1842) com seu
livro Novos princípios de economia política (1819), que buscariam estabelecer as razões
da recorrência das crises, criticando a “Lei de Say”. Não obstante esses últimos casos no
interior do pensamento burguês, a maior parte do economistas políticos aderiu à proposição de Say, passando a apontar como causas das perturbações econômicas
questões exteriores à própria dinâmica interna da lógica produtiva (guerras, problemas
climáticos, “subversão da ralé” etc.), chegando no último quartel do século XIX, a
produzir opiniões extravagantes, como a de atribuir à existência de “manchas solares”
as crises periódicas, já no contexto da emergência da chamada economia neoclássica.304
Em sua crítica da economia política sintetizada em sua obra O capital, Karl
Marx demonstrou, antes de tudo, o caráter necessário de tais crises, entendidas como
desdobramento de suas contradições imanentes, estando sua possibilidade de ocorrência
presente na própria oposição interna da forma mercadoria, entre valor e valor de uso,
desdobrada no dinheiro (forma acabada do valor), que, como meio de pagamento,
inscreve essa potencialidade.305 É que, além de realizar a mediação entre a troca
mercantil, o dinheiro permite a interrupção desta mesma mediação, produzindo uma
302 No capítulo “A concorrência”. ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. SãoPaulo: Boitempo, 2008, p.117-130.303 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol.II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987,
p.31.304 De autoria do economista britânico W. S. Jevons (1835-1882), tal noção absurda buscou explicar osciclos agrícolas com base na incidência destas manchas solares (sunspots). Cabe notar que, quando o
pensamento econômico elaborava tal “hipótese” – contexto em que surge o chamado pensamentoneoclássico de que Jevons é um dos fundadores –, o capitalismo vivia sua primeira grande depressão(1873-1896). É apenas com a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (1936) de John MaynardKeynes (1883-1946) e os estudos de Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) que o pensamento econômico
burguês passou a tentar explicar os ciclos econômicos como parte da natureza da economia capitalista.305 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Nova Cultural, 1983,capítulos 1, 2 3.
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ruptura na metamorfose mercantil, o que implica na destruição de capital: falências,
desemprego etc.
Quando de seu exílio em Londres, Marx pôde observar o desenvolvimento da
crise de 1857, a primeira de caráter mundial na história do capitalismo, 306 lançando-se
na escrita do primeiro esboço de sua crítica da economia política, manuscrito publicado postumamente e que seus editores deram o nome de Grundrisse.307 Um conjunto de
oito cadernos, totalizando um milhar de páginas, onde, entre outras coisas, Marx
apresentou um primeiro roteiro da sua exposição, onde concebia a existência de seis
livros dos quais o último seria dedicado ao exame das crises. Como assinalou Roman
Rosdolsky, é possível afirmar que neste roteiro o tema ocuparia o papel de uma síntese
dialética de todo seu raciocínio.308 Como se sabe, tal roteiro seria posteriormente
abandonado, e quando publicou finalmente o primeiro volume de O capital, em 1867, o
tema da crise aparece incorporado ao movimento dialético de desdobramento dascategorias, ganhando maior concretude no livro III, publicado postumamente por
Engels, em 1894. O que é certo é que não existe nem mesmo um capítulo em sua obra
onde se possa ler uma teoria de Marx sobre as crises, muito embora a seção terceira do
livro III, que trata da tendência à queda da taxa de lucro, seja comumente referida como
tal. Em certo sentido, como ensina Jorge Grespan, do mesmo modo que também não
existe um capítulo onde se possa ler uma definição acabada do que seja o próprio capital
– sendo necessário percorrer toda obra (os três livros) para se conhecer o capital como
uma rica totalidade de múltiplas determinações –, o mesmo se pode dizer do conceito de
crise, que, pressuposto ao longo da exposição, constitui-se dialeticamente no negativo
do capital.309 Vejamos.
Ao longo dos três livros que compõem sua Magnum opus, Marx expõe desde as
condições imanentes que, num plano mais abstrato, tornam possível a existência de
crises, até a concretude de sua efetividade, quando já incorpora a questão da
306 KRÄTKE, Michael R. The first world economic crisis: Marx as an economic journalist. In. MUSTO,
Marcello (Ed.). Karl Marx´s Grundrisse: foundations of the critique of political economy 150 years later .London/New York: Routledge’s, 2008, p.162-168.307 Com exceção de um pequeno texto publicado por Karl Kautsky em 1903 – a Introdução à crítica daeconomia política – o manuscrito ficaria inédito até que em 1939/1941 fossem publicados na URSS como nome de Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Rohentwurt (1857-1858), mais conhecidocomo simplesmente Grundrisse. O texto foi só recentemente publicado no Brasil: MARX, Karl.Grundrisse. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed.UFRJ, 2011.308 ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Contraponto,2001, p.27-60.309 GRESPAN, Jorge. O negativo do capital. O conceito de crise na crítica de Marx à economia política.São Paulo: Hucitec; FAPESP, 1999.
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concorrência entre os capitalistas no livro III. Portanto, embora Marx não tenha nos
deixado um livro ou mesmo um capítulo de sua obra onde exista uma exposição
completa do conceito de crise, há uma constante reflexão sobre esta que acompanha a
autonomização categorial das formas sociais ao longo de O capital. Da mercadoria
desdobrando-se no dinheiro no início do livro I até os desdobramentos no capital portador de juros e no capital fictício no livro III de O capital – suas formas mais
reificadas e fetichistas –, a crise constitui um dos momentos deste modo de produção.
Em síntese, sendo as próprias crises capitalistas o resultado do desdobramento de todas
as contradições deste sistema, no texto marxiano não há como ela não estar pressuposta
em todas as fases da exposição categorial de sua crítica.310
No movimento tautológico de valorização desmedida da forma acabada do valor
(dinheiro que se torna mais dinheiro), de tempos em tempos são produzidas essas
perturbações: o volume da produção social não encontra possibilidade de realização,sendo interrompida a metamorfose mercantil (basicamente as operações D-M e M-D).
Isso decorre do fato de que, sendo o processo de acumulação capitalista composto pela
unidade contraditória entre as esferas da produção e da circulação de mercadorias, a
aceleração do processo produtivo nas fases de expansão da atividade econômica acaba
por produzir uma autonomização relativa entre estas duas esferas, exacerbando essa
oposição como se fossem dois processos independentes.311 Tal contradição acaba por se
explicitar historicamente nas crises, que contraditoriamente restabelecem, de forma
violenta, a unidade entre esses dois processos. Daí a natureza cíclica da economia
capitalista, com fases de expansão da atividade produtiva seguidas de depressões.312
Para entender como essa possibilidade de crise se impõe efetivamente como
necessidade, em primeiro lugar é preciso entender o sentido daquilo que Marx define
como a lei geral da acumulação capitalista, conforme está exposta na última seção do
livro I de O capital. Sendo dialética, tal lei é tão somente uma tendência que o
movimento tautológico de valorização do valor impõe substantivamente. Ligada à
dinâmica da reprodução social deste modo de produção, a acumulação capitalista é o
consumo produtivo de parte do mais-valor transformado em capital adicional, isto é,
310 GRESPAN, Jorge. A crise na crítica da economia política. Crítica Marxista, São Paulo, v.10, p.94-110, 2000.311 MARX, Teorias da mais valia, op. cit., p.929 e passim.312 “(...) crise é apenas a imposição violenta da unidade das fases do processo de produção, as quais setornam independentes uma da outra.” Idem, ibidem, p.945. Ver também CARCANHOLO, Marcelo.Formas, conteúdo e causa: uma proposta de interpretação marxista do fenômeno crise. Leituras deeconomia política, Campinas, n.5, p.15-31, 1997.
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novamente convertido em meios de produção e força de trabalho, capital constante e
capital variável.313 O desenvolvimento do modo de produção especificamente capitalista
é, deste modo, a repetição cíclica desta relação social cujos sujeitos são: os donos dos
meios de produção e os produtores direitos de mais valor (os trabalhadores). Tal
processo de expansão das forças produtivas acaba por apresentar também umadisfuncionalidade, posto que tendencialmente leva ao aumento da composição orgânica
do capital, o que acaba por impor um crescimento relativamente menor do capital
variável em relação ao capital constante, provocando tanto a concentração e
centralização do capital, quanto a criação de uma superpopulação relativa, o exército
industrial de reserva.314 Deste modo, do próprio movimento interno do capital, que se
caracteriza por uma expansão desmedida de suas forças produtivas, impõe uma barreira
ao consumo da produção e, consequentemente, ao seu próprio desenvolvimento.
Além disso, sendo o capital variável o único que efetivamente produz mais-valor, a taxa de lucro – que é sua forma de manifestação na circulação – tende a cair,
retraindo os investimentos produtivos e aumentando ainda mais o montante de
desempregados. Deste modo, conforme Marx discute no livro III d’O capital, da lei
geral da acumulação capitalista desdobra-se dialeticamente a tendência histórica à queda
da taxa de lucro,315 que, também dialeticamente (e não de forma determinista), opera em
face de fatores contra-atuantes que impedem que o capitalismo entre em colapso; e que
em momentos de crise servem para o capital recolocar as condições de um próximo
ciclo de expansão das suas forças produtivas.316 Deste modo, como define Marx, tais
313 No livro I, ao localizar como categoria central de sua crítica da economia política o mais-valor – oumais-valia, como aparece na tradução mais corriqueira – Marx identificou os dois investimentos básicosfeitos pelos proprietários dos meios de produção: capital constante – maquinário, matérias primas,impostos etc.; e capital variável – salários. Este último recebe o adendo variável pelo fato de ser o únicocujo valor de uso possui o atributo de valorizar as mercadorias. Sendo o salário a forma fetichista com aqual o contrato jurídico se efetiva entre capital e trabalho no capitalismo, este se apresenta como o
pagamento por toda a jornada do trabalho social, quando na verdade corresponde apenas o pagamento pelo preço da força de trabalho. MARX, O capital: crítica da economia política. Livro I, Seção VI, op.cit ., p.125-148.314 Em polêmica com a teoria da população de Malthus, a abordagem marxiana entende a constituição de
uma massa de despossuídos como parte da lógica interna do capital, sendo esse mesmo exército dereserva funcional por pressionar os salários para baixo. Cf. o capítulo XXIII do livro I. Idem, ibidem,
p.187-259.315 Verificada desde David Ricardo, Marx lhe atribuiu o status de principal “lei de movimento daeconomia”, conforme aparece nos Grundrisse, enquanto em O capital é apresentada como umdesdobramento da lei geral da acumulação capitalista, como vimos acima. MARX, Grundrisse, op. cit.,
p.626. ______ O capital: crítica da economia política . Livro III, Tomo 1. São Paulo: Abril Cultural,1983, p.161-200.316 “Deve haver influências contrariantes em jogo, que cruzam e superam os efeitos da lei geral, dando-lheapenas o caráter de uma tendência, motivo pelo qual também designamos a queda da taxa geral de lucrocomo uma queda tendencial.” Idem, ibidem, p.177.
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“crises são sempre apenas soluções momentâneas violentas das contradições existentes,
irrupções violentas que restabelecem momentaneamente o equilíbrio perturbado.”317
Sendo deste modo a crise um processo necessário a partir do qual esse sistema
regula seus “excessos”, é importante notar que a ocorrência de tais crises comparece na
cena histórica nesta forma de sociabilidade contemporânea sem que estejamos diante deseu esgotamento. Ao contrário, tais crises fazem parte do seu modo de ser. Mas se
obviamente não podem existir crises econômicas que não possuam desdobramentos na
vida social, para Marx estas são crises bastante específicas. É que, segundo sua leitura, a
modernidade capitalista instaura uma abstração da esfera econômica de tal modo que
acaba por produzir uma dinâmica temporal de ritmo próprio, algo que E. P. Thompson
explorou em conhecido artigo e Moishe Postone, um fecundo leitor da obra de Marx,
denominou de um “tempo abstrato”.318 Assim sendo, esse ritmo relativamente
autônomo do desenvolvimento econômico do capital passa a conviver com outrastemporalidades, outros tempos discordantes como definiu Daniel Bensaïd,319 como os
tempos da natureza, ou o das conjunturas políticas, que possuem seus próprios ciclos.
Por outro lado, como também apontou Marx, estas crises constituem situações nas quais
aos sujeitos sociais se apresenta a “limitação e o caráter tão-somente histórico e
transitório do modo de produção capitalista”,320 constituindo a “forma mais contundente
em que o capital é aconselhado a se retirar e ceder espaço a um estado superior de
produção social”.321
Destarte, é importante considerar que, se Marx buscou apreender essa dinâmica
relativamente autônoma do movimento de valorização do valor, isso não significa dizer
que em sua teoria possa se conceber uma “economia” como uma esfera absolutamente
apartada do Estado, como aparece na vulgata liberal. Ao contrário, essa autonomia é
precisamente relativa, e não absoluta, pois, desde sua constituição até sua reprodução
317 Idem, ibidem, p.188.318 THOMPSON, Edward P. Tempo, disciplina do trabalho e capitalismo industrial. In. Costumes emcomum. Estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.267-304.
POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination: A Reinterpretation of Marx's Critical Theory. Nova York e Cambridge: Cambridge University Press, 1993, capítulo 5, p.186-225. Podemos pensartambém no que Ellen Wood denomina de “separação” entre o econômico e o político, própria docapitalismo. Cf. WOOD, Ellen M. A separação entre o “econômico” e o “político” no capitalismo.
Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003, p.27-49.319 BENSAÏD, Daniel. La discordance des temps: essais sur les crises, les classes, l’historie. Paris: LesÉditions de la Passion, 1995. _____ Marx, o Intempestivo. Grandezas e misérias de uma aventura crítica(séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.320 MARX, O capital, Livro III, op. cit., p.184.321 MARX, Grundrisse, op. cit,, p.627.
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histórica, o Estado opera na acumulação capitalista. Tanto naquilo que é entendido
como “acumulação originária”,322 passando pela ativação por parte do Estado das
contra-tendências à queda da taxa de lucro, como também através do mecanismo na
dívida pública, não há um Estado exterior à lógica da acumulação capitalista. Nem
mesmo na época de vigência do capitalismo concorrencial, em que viveu Marx, este prescindiu do Estado.323
Entretanto, qual a relação entre essa forma específica de crise surgida da
objetivação do capitalismo industrial e as crises políticas, já tematizadas desde o século
XVIII? Como isto se relaciona na teoria de Marx? Sendo um revolucionário interessado
em investigar o funcionamento do capitalismo, Marx também produziu uma série de
reflexões importantes sobre esse tema, antes mesmo de ter dado a forma mais acabada
de sua crítica ao capitalismo sintetizada em O capital. No seu balanço da derrota da
Revolução de 1848, num tom deveras melancólico, Marx afirmou:“Nessa prosperidade geral em que as forças produtivas da sociedade
burguesa se desenvolvem tão exuberantemente quanto é possível no seiodas relações burguesas, não se pode falar de uma verdadeira revolução.Tal revolução só é possível nos períodos em que ambos os fatores, asmodernas forças produtivas e as formas burguesas de produção, entremem contradição entre si. (...) Uma nova revolução só é possível nasequência de uma nova crise. É, porém, tão certa como esta.”324
É inegável que esta conclusão expressa uma posição absolutamente determinista
quanto ao problema da relação das crises econômicas com as situações políticas. Esobre isso alguns comentários são oportunos. Em primeiro lugar é preciso notar que o
equívoco de Marx esteve ligado também à sua polêmica com a ala mais esquerdista da
Liga dos Comunistas, liderada por Karl Schapper (1812-1870),325 que acreditava que,
322 Ao contrário do que comumente se afirma, uma leitura mais atenta do capítulo XXIV do livro I de Ocapital, nos mostra que, embora Marx esteja remetendo ao processo histórico de constituição do pioneirocapitalismo inglês, a lógica de seu argumento diz respeito a entender como o capital se põe a partir daexpropriação dos produtores diretos do processo de reprodução de sua vida, em condições históricas nasquais já existe a generalização da forma mercantil. Deste modo, aquilo que ironicamente Marx denominade “a assim chamada acumulação primitiva” (ou “acumulação originária”) não é um processo datado
entre os séculos XIV e XVIII, e sim uma dinâmica que constitui a expansão (até mesmo territorial) dasforças produtivas capitalistas até o presente. Uma boa discussão sobre esse ponto está em FONTES,Virgínia. “Capitalismo, exclusão e inclusão forçada” e “As condições históricas e sociais de generalizaçãodo trabalho abstrato: permanência e transformação das formas de expropriação.” In. Reflexões im-
pertinentes. História e capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p.19-50 e 73-90.323 Como, aliás, verificou um não-marxista como Karl Polanyi. POLANYI, Karl. A grandetransformação. As origens da nossa época. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000. 324 MARX, Karl. “As lutas de classe na França 1848-1850.” In. A revolução antes da revolução. SãoPaulo: Expressão Popular, 2008, p.183, grifo nosso.325 Ver ENGELS, Friedrich. “Contribuição à história da Liga dos Comunistas.” In. Karl Marx &Friedrich Engels (obras escolhidas). Vol.3. São Paulo: Alfa-Ômega, s.d., p.152-168.
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ainda em 1850, o processo revolucionário estava em curso. Em segundo, conforme ele e
Engels expressaram no Manifesto Comunista, Marx acreditava já estar vivendo os
estertores da sociedade burguesa, quando na verdade esta só estava dando seus
primeiros passos, conforme ambos reconheceriam posteriormente. Isto não deve jogar
uma cortina de fumaça sobre o equívoco da conclusão do trecho supracitado, todavia é preciso também notar que uma das fontes principais do pensamento de Marx para
pensar o tema da revolução foi a própria historiografia liberal sobre a Revolução
Francesa, que, toda ela, estava convencida que um dos estopins para as grandes
revoluções (não só a de 1789, mas também a de 1830) foram os problemas
econômicos.326 E de fato, a crise comercial da Inglaterra havia contribuído para a
ativação do próprio Cartismo e da Revolução no continente. Não era tão absurdo assim
estabelecer esse vínculo, ainda que não seja difícil considerá-lo simplista.
Sobre esse ponto no desenvolvimento do pensamento de Marx, Bensaïd 327 comenta que, tendo em vista as revoluções anteriores, como em 1789, 1830 e naquela
em que o mesmo atuou (1848), Marx acabou por fazer um prognóstico no qual buscava
sincronizar as futuras crises econômicas – o que era demonstrável (dada a natureza
cíclica do sistema) – à uma nova revolução – algo indemonstrável por si só. De acordo
com o filósofo francês, haveria nessa conclusão ambígua de Marx um “mal-estar
teórico” entre sua nascente crítica da economia política e a filosofia da história
hegeliana, com a qual Marx e Engels já haviam acertado suas contas entre 1845-
1846.328
Todavia, Marx acabaria por abandonar tal raciocínio em função de um fato
concreto: a crise seguinte, aparecida em 1857 – que foi inclusive mais profunda que a de
1847, pois foi a primeira grande crise capitalista mundial –,329 não ter sido seguida por
nenhum “dilúvio”; por nenhuma revolução ou algo minimamente parecido.330 Isso
326 Na Introdução de seu livro História e Verdade, o filósofo polonês Adam Shaff fez um interessanteapanhado sobre a historiografia a respeito da Revolução francesa e mostrou que até os anos cinquenta doséculo XIX todos os seus grandes interpretes creditaram como uma de suas causas a crise fiscal do Estado
e as dificuldades econômicas do Antigo Regime. Ver, SCHAFF, História e verdade, op. cit., p.9-62.327 BENSAÏD, La discordance des temps, op. cit., p.83-84.328 Refere-se naturalmente aos textos de A sagrada família (1845) e d’ A ideologia alemã (1845-46), ondeos dois jovens autores haviam criticado a concepção teleológica e fetichista da filosofia da história deHegel.329 KRÄTKE, Michael R. “The first world economic crisis: Marx as an economic journalist.” In.MUSTO, Marcello (Ed.). Karl Marx´s Grundrisse: foundations of the critique of political economy 150
years later . London/New York: Routledge’s, 2008, p.162-168.330 Como esclareceu Hobsbawm, “Marx e Engels, que mantiveram alguma esperança no renascimentorevolucionário por um ou dois anos depois de 1849, transferiram depois essas esperanças para a grandecrise econômica seguinte (a de 1857) e resignaram-se depois.” HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 12ª
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obviamente impactou suas elaborações, e no momento seguinte, ao produzir uma das
mais controversas sínteses de seu pensamento, no célebre Prefácio à sua Contribuição à
crítica da economia política de 1859, Marx apresentou uma abordagem mais nuançada
sobre essa relação entre crise e revolução:
“Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivasmateriais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas atéentão se tinham movido. De forma de desenvolvimento das forças
produtivas essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevêmentão uma época de revolução social.”331
Naquele escrito, redigido à luz da crise – mas também da redação febril de sua primeira
síntese da crítica da economia política – 332 ao referir-se às condições que possibilitam
uma revolução, Marx fala agora de uma “época de revolução social”, o que certamenteremete a tempos longos. Ao mesmo tempo, o grau de abstração da proposição também
remete para contradições profundas na estrutura social, e não ao resultado de uma
interrupção periódica do metabolismo econômico. Não se trata, portanto, de uma
relação de causalidade mecânica entre os ziguezagues da conjuntura econômica
imediata e a luta de classes, como aparece no balanço da Revolução de 1848. Até
porque, como é desenvolvido naquele mesmo antológico Prefácio de 1859, uma
formação social nunca desaparece sem que antes tenham sido desenvolvidas todas as
suas contradições e potencialidades; e que os homens não se põem tarefas históricas para as quais as condições de sua resolução não estejam dadas ou em vias de aparecer.
Isto certamente esteve ligado a percepção de que, ao contrário do que aparece no
Manifesto Comunista, o capitalismo estava apenas na sua infância, como Marx
posteriormente reconheceria.
Como vimos, o uso do conceito de crise no século XVIII estava ligado à
reflexão do esgotamento geral de uma forma de sociedade, entretanto, com o
desenvolvimento do modo de produção capitalista, vemos emergir uma forma de crise
que, por assim dizer, acompanha o próprio desenvolvimento desta forma de
edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.160. Discuto esse tema mais à fundo em MELO, DemianBezerra de. “Marx, as crises e a revolução.” Outubro, São Paulo, n.20, p.123-147, 2012.331 MARX, Karl. Para à crítica da economia política. Os economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1982,
p.25.332 Trata-se naturalmente dos Manuscritos de 1857-1858, conhecidos como Grundrisse. MARX, Karl.Grundrisse. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ; São Paulo: Boitempo, 2011.
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sociabilidade. Temos assim uma dinâmica histórica onde variáveis temporais
relativamente independentes operam nas esferas econômica e política.333
As crises e a luta de classes na tradição marxista
Na tradição marxista, a temática das crises e sua associação com o tema daRevolução encontrou diversas leituras. Desde as mais esquemáticas, que buscam
encontrar uma espécie de “sincronia” entre as flutuações econômicas e as lutas de
classe, até proposições que destacam a significativa autonomia entre essas esferas da
modernidade capitalista. No âmbito da Internacional Socialista, fundada em 1889, uma
das mais importantes controvérsias da social-democracia alemã, o já mencionado
Bernstein-Debatte, girou de certo modo em torno a esse problema, ainda que tivesse
sido mal colocado por Eduard Bernstein (1850-1932), que defendeu o abandono da
“teoria do colapso” ( Zusammenbruchstheorie), que, segundo ele, teria embasado a
teoria de Marx sobre a transição ao socialismo. A conhecida resposta de Rosa
Luxemburgo (1871-1919), por exemplo, para combater tal revisionismo, acabou por
reafirmar a existência (e a correção) da alegada teoria do colapso de Karl Marx.334
Todavia, de acordo com o historiador Franco Andreucci, no congresso do SPD
em Hannover (1899) (contexto de divulgação das posições revisionistas de Bernstein),
um delegado de nome Woltmann defendera que não havia indício da teoria do colapso
inevitável do capitalismo em Marx, sendo apenas encontrada em Engels e nos auto-
identificados “marxistas”. 335
Quanto ao tema da revolução e sua implicação com as crises cíclicas, é notável
que as conhecidas passagens de Lênin (1870-1924) apresentem uma visão na qual as
depressões econômicas só implicitamente contribuam para a criação das condições para
uma crise revolucionária. Em um texto escrito em 1915, bastante conhecido e citado, A
falência da II Internacional, o dirigente bolchevique discute a partir de duas ordens de
333 BENSAÏD, La discordance des temps, op. cit. _______. Marx, o intempestivo. Grandezas e misériasde uma aventura crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.334 BERTELLI, Antonio Robert. “O pano de fundo histórico-teórico do Bernestein-Debatte.” Novos
Rumos, São Paulo, n.32, p.3-47, 2003.335 ANDREUCCI, Franco. “A difusão e a vulgarização do marxismo.” In. HOBSBAWM, Eric. Históriado Marxismo II . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.30. O debate sobre a existência de uma teoria docolapso em Marx transcende esse contexto, atravessando o século XX. Um apanhado da questão até osanos setenta, cf. COLLETI, Lucio (org.). El marxismo y el “derrumbe” del capitalismo. 2ª ed. Madrid;México: Siglo XXI, 1983. Uma discussão sobre a impertinência da teoria do colapso, cf.MAZZUCHELLI, Frederico. A contradição em processo: o capitalismo e suas crises. São Paulo:Brasiliense, 1985.
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o antigo governo, que não ‘cairá’ jamais, mesmo em época de crise, sem‘ser derrubado’.”337
Após o triunfo da Revolução de Outubro, o autor irá retomar a definição de crise
revolucionária em outro texto, Esquerdismo: doença infantil do comunismo (1920), no
contexto da formação da Internacional Comunista.338 Novamente, em sua definição de
uma situação revolucionária, não há qualquer proposição de uma relação sincrônica
entre as flutuações econômicas e a luta de classes.
No caderno 13, Antonio Gramsci parte justamente do Prefácio de 1859 de Marx
para enunciar critérios metodológicos de sua “crítica da política”. Caderno escrito entre
1932 e 1934, no seu conhecido parágrafo (§17) sobre a análise das relações de forças,
recomenda, em primeiro lugar, “distinguir os movimentos orgânicos (relativamente
permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de conjuntura (e que seapresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais)”.339 Tomando dois
princípios340 extraídos de sua leitura do Prefácio marxiano,341 o autor estava
preocupado em formular uma estratégia revolucionária consequente para as sociedades
337 Idem, ibidem, p.28, primeiro grifo nosso, segundo grifo do autor. Segundo Valério Arcary, com estetexto Lênin “introduziu pela primeira vez no debate marxista uma diferenciação entre a hierarquia dosfatores objetivos e subjetivos”. ARCARY, As esquinas perigosas da História, op. cit., p.64. 338 “A lei fundamental da revolução, confirmada por todas as revoluções e, em particular por todas as t rêsrevoluções russas do século XX, consiste no seguinte; para a revolução não basta que as massas
exploradas e oprimidas tenham consciência da impossibilidade de viver como dantes e exijam mudanças; para a revolução é necessário que os exploradores não possam viver e governar como dantes. Só quandoos ‘de baixo’ não querem o que é velho e os ‘de cima’ não podem como dantes, só então a revolução
pode vencer. Esta verdade exprime-se de outro modo, com as palavras: a revolução é impossível sem umacrise nacional (tanto dos explorados como dos exploradores). Por conseguinte, para a revolução énecessário, em primeiro lugar, que a maioria dos operários (ou pelo menos a maioria dos operáriosconscientes, pensantes, politicamente activos) compreenda plenamente a necessidade da revolução eesteja disposta a dar a vida por ela; em segundo lugar, é preciso que as classes dirigentes atravessem umacrise governamental que arraste para a política mesmo as massas mais atrasadas (o sintoma de toda arevolução autêntica é a rápida decuplicação ou centuplicação da quantidade de representantes dostrabalhadores e da massa oprimida, antes apática, aptos para a luta política), que enfraqueça o governo etorne possível aos revolucionários o seu rápido derrubamento.” LENIN. V. I. A doença infantil do‘esquerdismo’ no comunismo. Moscou: Edições Progresso, 1986, p.64.339 GRAMSCI, Antonio. § 17 do Caderno 13. Cadernos do cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a
política. Vol.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.36.340 “1) o de que nenhuma sociedade se põe tarefas para cuja solução ainda não existam as condiçõesnecessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em vias de aparecer e se desenvolver; 2) e o deque nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes que se tenham desenvolvido todas asformas de vida implícitas em suas relações”. Idem, ibidem, p.36.341 O que certamente é algo significativo da envergadura do processo de reelaboração do materialismohistórico operado por este, posto que o Prefácio de 1859 é um texto que se prestou às mais esquemáticasleituras, particularmente no marxismo ossificado e mecanicista das II e III Internacionais. Ver BIANCHI,Alvaro. “Revolução passiva: o pretérito do futuro.” Crítica Marxista, Campinas, n.23, p.34-57, 2006.Sobre a reelaboração do materialismo histórico na obra de Gramsci, nos baseamos no mesmo autor em
______. O Laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008.
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caracterizadas por ele como “Ocidentais”.342 Ou seja, como construir um caminho para
a tomada do poder político pela classe operária em países onde a burguesia operava o
processo de dominação não só com a supremacia do Estado sobre a sociedade, mas
estando o Estado em uma relação mais equilibrada com as organizações privadas de
hegemonia, isto é, com a sociedade civil. Desse modo, as preocupações de Gramsciestiveram voltadas para pensar como são criadas as condições objetivas e subjetivas
para as mudanças sociais profundas, para as revoluções.
Como é notório, na proposição do marxista sardo é de fundamental importância
o tema da hegemonia nas sociedades capitalistas industriais modernas. De acordo com
sua conhecida formulação, nas sociedades industriais, urbanizadas e capitalistas, o
processo de dominação social é efetivado por uma combinação entre elementos de
força, centralizados no Estado stricto sensu (Forças Armadas, Justiça, Sistema
Carcerário, Legislativo etc.), com elementos de consenso, produzidos por uma amplarede de aparelhos privados de hegemonia, que funcionam no âmbito da sociedade civil,
e também do próprio Estado (que também é um importante produtor de elementos de
consenso).343 Ao lado desta compreensão mais matizada do processo de dominação nas
sociedades capitalistas avançadas, chamadas pelo autor de “Ocidentais”, em
contraposição às “Orientais”,344 desenvolve-se, é claro, o problema da crise de
hegemonia. Sobre esse assunto Gramsci esclarece:
“A distinção entre “movimentos” e fatos orgânicos e movimentos e fatos
de “conjuntura” ou ocasionais deve ser aplicada a todos os tipos desituação, não só àquelas em que se verifica um processo regressivo ou decrise aguda, mas àqueles em que se verifica um processo progressista oude prosperidade e àquelas em que se verifica uma estagnação das forças
produtivas.”345
Seguindo o critério metodológico acima enunciado, Gramsci discute como, no
estudo de todo um período histórico, devem-se compreender os momentos em que é
forjada a crítica histórico-social, que envolve grandes agrupamentos humanos; quando
342 Sobre o “Ocidente” e o “Oriente” em Gramsci, ver. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Um estudosobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. ANDERSON, Perry.“Antinomias de Antonio Gramsci.” In. Crítica Marxista. São Paulo: Joruês, 1986, p.7-74.343 Perry Anderson chama atenção para esse fato quando menciona o quão importante é a eleição dosgovernantes, que ocorre regularmente nas democracias liberais ocidentais, como ato político do Estadocujo propósito é convencer os cidadãos comuns de que são eles que governam a sociedade através de seusrepresentantes. ANDERSON, “As antinomia de Gramsci”, op. cit.344 Conforme conhecida fórmula gramsciana, no “Oriente”, “o Estado é tudo e a sociedade civil é poucodesenvolvida e gelatinosa”.345 GRAMSCI, §17 do Caderno 13, op. cit., p.38.
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se impõem questões de tal profundidade que não encontram solução nos quadros
institucionais vigentes; em suma, nos períodos de crise de hegemonia, atravessados por
guerras, revoluções, golpes de Estado, contra-revoluções etc. Por vezes esses momentos
de crise podem demorar anos para terem suas contradições solucionadas, gerando um
longo período de instabilidade política no qual o grupo dirigente tenta resolver osimpasses no interior dos quadros institucionais vigentes, ou modificando-os de forma
gradativa. Em outros casos, como o francês, o longo período de instabilidade que se
verificou entre 1789 e 1871 é pontuado pela ocorrência de ondas revolucionárias que,
nesse longo tempo, foram impondo a objetivação do capitalismo através de grandes
comoções sociais.
No período histórico em que escreve, Gramsci vive a crise profunda estabelecida
pelas contradições da fase imperialista do capitalismo, que gerou a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918) e o desafio ao capital que significou a Revolução Russa de 1917.Tal crise é entendida como ligada aos profundos movimentos orgânicos e contraditórios
da sociedade, não sendo uma simples derivação de uma crise econômica particular.
Afinal, o marxista sardo foge de todos os figurinos deterministas quando afirma sobre
esse assunto:
“Pode-se excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam eventos fundamentais; podem apenas criar um terreno maisfavorável à difusão de determinados modos de pensar, de pôr e deresolver as questões que envolvem todo o curso subsequente da vida
estatal.”346
No § 5 do Caderno 15, escrito em 1933 e dedicado ao exame da crise de 1929,
Gramsci esclarece como entendia o caráter do desenvolvimento capitalista desde a
Guerra mundial como uma “crise contínua”. E assim, criticando as interpretações
superficiais sobre a própria crise, o crash da Bolsa de Wall Street é entendido como
simplesmente uma forma de manifestação de uma crise que deitava raízes em todo o
período anterior, e que deveria ser entendida através do exame das suas contradições
fundamentais:“os eventos do outono de 1929 na América são exatamente uma dasmanifestações clamorosas do desenvolvimento da crise, e nada mais.Todo o após-guerra é crise, com tentativas de remediá-la que às vezestêm sucesso neste ou naquele país, e nada mais. Para alguns (e talvez nãosem razão), a própria guerra é uma manifestação da crise, ou melhor, a
346 Idem, Ibidem, p.44.
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primeira manifestação; a guerra foi precisamente a resposta política eorganizativa dos responsáveis.”347
Entretanto, a própria Guerra como tentativa de resposta para crise se mostrou
insuficiente, e o pós-guerra viu aflorar novas contradições. Como está dito no trecho
acima, nosso autor entende todo o pós-guerra como crise. Nas condições desta crise
profunda manifestada com a eclosão da Guerra, as estruturas das instituições que nas
sociedades ocidentais organizam as vontades dos grupos sociais, os partidos políticos,
se demonstraram incapazes de continuar a representar essas mesmas forças sociais. Das
contradições amadurecidas pela Guerra surgem as vagas revolucionárias de 1917 na
Rússia, 1918-1919 na Alemanha, 1919 na Hungria e 1919-1920 na Itália, mas também
se forjam os elementos que iriam desembocar no nazi-fascismo. Produz-se, deste modo,
o que o autor denomina conceitualmente de crise orgânica, conforme o §23 do seu
caderno 13:
“Em um certo ponto de sua vida histórica, os grupos sociais se separamde seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradicionais naquela dadaforma organizativa, com aqueles determinados homens que osconstituem, representam e dirigem, não são mais reconhecidos como suaexpressão por sua classe ou fração de classe.”348
Estas situações costumam abrir o campo de luta para soluções de força, “à atividade de
potências ocultas representadas pelos homens providenciais ou carismáticos”, além de
reforçar a posição relativa da burocracia (civil e militar), da alta finança, da Igreja etc.na relação social de forças. E o conteúdo desse processo é a crise de hegemonia da
classe dirigente, que perdeu a capacidade de governar, seja porque se desmoralizou
frente a algum grande empreendimento político, seja porque setores expressivos das
massas saíram da letargia e foram à ação política, ação esta que de certo modo abala as
estruturas de domínio e pode colocar a revolução na ordem do dia.
Inspirado nos textos históricos de Karl Marx sobre a França, em especial o 18
Brumário de Luis Bonaparte, Gramsci explica esta relação dialética entre as bases e os
partidos, advertindo que nem sempre estes aparelhos políticos sabem “adaptar-se àsnovas tarefas e às novas épocas”, 349 como foi o caso patente de todos os partidos
347 GRAMSCI, Antonio. § 5 do Caderno 15. Cadernos do cárcere. Vol. 4. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2002, p.317.348 GRAMSCI, §23 do Caderno 13, op. cit., p.60, grifos nossos. Uma exposição minuciosa do conceito
pode ser lida em CASTELO, Rodrigo. “Gramsci e o conceito de crise orgânica.” Margem Esquerda, SãoPaulo, v.19, p.69-83, 2012.349 Idem, ibidem, p.61.
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franceses no contexto da Revolução de 1848. Este também era o caso dos aparelhos
partidários da Europa central no contexto da Guerra Mundial de 1914-1918350 e
especialmente nas décadas seguintes, tendo como caso mais importante o da social-
democracia, cuja desmoralização frente à Guerra imperialista levou Lênin e outros
revolucionários a decretarem a sua “falência”.351
Era principalmente uma crise derepresentatividade dos partidos burgueses tradicionais, incapazes de apresentarem-se
como alternativa de direção hegemônica em sociedades onde os grupos subalternos já
haviam construído uma ampla rede de instituições originalmente contra-hegemônicas,
como partidos operários, sindicatos com bases de massas, imprensa operária etc.,
exercendo forte pressão democratizadora sobre os sistemas políticos liberais.352 Além
do mais, a expansão das organizações operárias, dos Partidos Comunistas, por exemplo,
ocorria em muitos casos por fora dos parlamentos. Sendo os parlamentos o local por
excelência de mediação dos conflitos nos regimes liberais, esse desenvolvimento político por fora era uma evidência da incapacidade destas estruturas políticas em
absorver as contradições sociais que emergiam. Era a crise do Estado liberal, o qual,
incapaz de incorporar estas novas contradições sociais, vê ocorrer o deslocamento de
suas bases sociais.
É claro que, sendo os partidos formas organizativas que visam a tomada do
poder, os regimes políticos não podem passar incólumes quando ocorrem esses
rompimentos entre os partidos tradicionais e suas bases sociais, e, por isso, tal crise se
constitui como orgânica, pois seu conteúdo é a crise de hegemonia das classes
dominantes, que não podem mais manter o processo de dominação sobre as mesmas
bases. Uma crise no regime define-se exatamente por isto, e nesse sentido se difere
daquelas crises governamentais corriqueiras, as quais o regime é capaz de absorver no
interior de suas instituições.
As crises do regime apresentam-se em situações onde à classe dominante não
resta outra saída senão refazer os seus arranjos no poder, tarefa que nunca é possível de
ser feita tranquilamente, e que se torna mais árdua nos momentos de dificuldades
econômicas. Nestas situações, é necessário recompor o pacto de dominação, de modo a
redefinir as bases com a quais o Estado estará em condições de defender os interesses
350 GRAMSCI, § 37 do Caderno 13, op. cit., p.92-107.351 Sobre as controvérsias no interior do marxismo sobre esse tema, ver o capítulo 3 de ARCARY,Valério. As esquinas perigosas da história. Situações revolucionárias em perspectiva marxista. SãoPaulo: Xamã, 2004.352 O caso mais emblemático é o da luta pelo sufrágio universal masculino e pelo sufrágio feminino, quena Europa foram bandeiras do movimento operário.
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estratégicos da classe dominante, ao mesmo tempo em que possa seguir incorporando as
demandas não antagônicas das classes subalternas. A fragilidade e as dificuldades da
classe dominante em recompor as condições de sua supremacia são sintomas
característicos de uma crise orgânica. E justamente por isto, tais crises orgânicas podem
ser, de acordo com uma relação de forças muito específica, propícias para que as classessubalternas rompam com sua condição de subalternidade. Será justamente o grau de
auto-organização destas, combinado ao grau de cisão entre as classes dominantes, que
determinará o realismo da sua rebelião. 353 Ao mesmo tempo, no caso em torno do qual
Gramsci produziu sua reflexão, tal crise orgânica se expressou também nas fragilidades
das organizações das classes subalternas. Como sintetiza Alvaro Bianchi, naquele
contexto do pós-Guerra:
“A crise não atingia apenas a burguesia e o parlamento. Ela era, também,
uma crise de direção das classes subalternas, que não conseguiam imporseu projeto hegemônico, muito embora conseguissem desarticular ahegemonia das classes dominantes.”354
De qualquer modo, Gramsci também irá relacionar sua reflexão sobre as crises de
hegemonia com as situações em que estas se combinam com a crise cíclica na economia
capitalista, atentando principalmente para as tendências de longo prazo. Em suma,
“Colocando de tal maneira o problema, temos que a crise de hegemonianão é definida automaticamente pela crise econômica. A criseeconômica, tomada em seu sentido amplo como crise de acumulação
resultante da queda tendencial da taxa de lucro, pode ser pressuposta dacrise de Estado. Mas ela não põe, por si própria, a crise de hegemonia.Quando a crise econômica e a crise de hegemonia coincidem no tempotemos o que Gramsci chama de crise orgânica, uma crise que afeta oconjunto das relações sociais e é a condensação das contradiçõesinerentes à estrutura social. Para a eclosão da crise orgânica é preciso acoincidência dos tempos dessa crise de acumulação com o acirramentodo choque entre as classes, e no interior delas próprias entre suasfrações.”355
O tema das relações entre as crises econômicas e as situações políticas ocupa
também a polêmica de Gramsci com a análise de Rosa Luxemburgo sobre a Revolução
353 A isso se deve acrescentar a importante discussão metodológica também desenvolvida nas notascarcerárias de Gramsci, no § 2 do caderno 25, já mencionada no primeiro capítulo e referente à históriados grupos subalternos. Cf. GRAMSCI, Cadernos do cárcere. Risorgimento, vol.5, op. cit., p.135. Esseassunto está desenvolvido em DEL ROIO, Marcos. “Gramsci e a emancipação do subalterno.” Revista deSociologia e Política, Curitiba, n.29, p.67-78, nov. 2007.354 BIANCHI, Alvaro. “Crise, política e economia no pensamento gramsciano.” Novos Rumos, São Paulo,no36, 2002, p.35.355 Idem, ibidem, p.36.
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Russa de 1905,356 onde a revolucionária polonesa explicitamente relaciona a situação
revolucionária com uma crise econômica, estando aí a base de seu mal afamado
“espontaneísmo”. Gramsci critica duramente essa posição teórica de Rosa como um
“determinismo economicista”, discutindo de que forma as crises econômicas são
percebidas pela autora “como artilharia de campo que, na guerra, abria a brecha nadefesa inimiga, brecha suficiente para que as tropas próprias irrompessem e obtivessem
um sucesso definitivo (estratégico) ou, pelo menos, um sucesso importante na diretriz
da linha estratégica”.357 O marxista sardo via nesse raciocínio de Rosa um “férreo
determinismo economicista”, no qual “os efeitos eram concebidos como rapidíssimos
no tempo e no espaço; por isso, tratava-se de um verdadeiro misticismo histórico, da
expectativa de uma espécie de fulguração milagrosa”.358
No prosseguimento desta crítica, Gramsci discute como, nas sociedades
“Ocidentais”, os Estado avançados – onde a sociedade civil é desenvolvida –desenvolveram a capacidade de resistir às “irrupções catastróficas do elemento
econômico imediato (crises, depressões etc.)”, sendo a superestrutura estatal similar ao
que representa o sistema de trincheiras no teatro de operações da Guerra Mundial. Outro
aspecto diz respeito ao fato de que, em decorrência da crise econômica capitalista, as
classes sociais antagônicas (burguesia x proletariado) poderem optar por distintas
estratégias de luta, o que certamente implica no grau de autoconsciência social e
organização de cada classe. Assim, uma crise econômica não leva automaticamente a
um desenvolvimento organizativo “fulminante” no tempo e no espaço entre as classes
subalternas; por outro lado, os capitalistas “tampouco se desmoralizam, nem
abandonam suas defesas, mesmo entre ruínas, nem perdem a confiança na própria força
e no próprio futuro”.359 É claro que a própria crise movimenta as posições originais da
relação de forças, mas em sociedades Ocidentais o mais certo é que a luta política seja
operada como numa “guerra de trincheiras”.360 Parece claro que o objetivo de Gramsci
era o de polemizar tanto com as análises “catastrofistas” da Internacional Comunista em
seu VI Congresso (1928) – fortalecidas com a crise de 1929 –, como também com as
356 Gramsci se refere ao ensaio Greve geral, partido e sindicalismo, de 1906.357 GRAMSCI, §24 do caderno 13, op. cit., p.71.358 Idem, ibidem, p.71.359 Idem, ibidem, p.73.360 De tal raciocínio resulta o outro célebre par dialético de Gramsci: guerra de posição x guerra demovimento.
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formulações da social-democracia alemã, que propugnava a ideia de que, com a
emergência do capitalismo monopolista, as crises cíclicas não mais operariam.361
Destarte, se a modernidade capitalista se caracteriza pela autonomização dos
ritmos do desenvolvimento econômico em relação às outras esferas da sociabilidade
humana, essa “discordância dos tempos”, como define Bensaïd, não exclui a possibilidade de que tais crises de ordens distintas se cruzem. As crises orgânicas são,
de certa forma, esses momentos excepcionais.
Deste quadro sucinto podemos apreender que a experiência histórica da
modernidade capitalista constata a existência de crises que operam em temporalidades
distintas; crises cíclicas de superprodução, as crises política de profundidade e ordem
variada (governamentais, orgânicas, do regime, de hegemonia ou “crise do Estado em
seu conjunto”362 etc.) compõem o modo de ser das sociedades burguesas. No âmbito
econômico, períodos de expansão e ou depressão podem durar décadas, como foram asduas grandes depressões, de 1873-1894 e a dos anos trinta do século XX, ou como nos
excepcionais “anos de ouro” do pós Segunda Guerra Mundial.
O desenvolvimento econômico, todavia, não opera num vazio, e sim de acordo
com uma relação de forças sociais que sempre implica em formas institucionais
necessárias à reprodução do sistema, uma forma de Estado, um regime político, algum
tipo de pacto social entre as classes, uma dada forma de relacionamento entre os
Estados no sistema internacional, etc.363 Entretanto, dado que os humores políticos e os
acirramentos das contradições sociais nem sempre acompanham as flutuações da
economia, crise governamentais ou mesmo situações revolucionárias podem ocorrer
quando a situação econômica do capitalismo é, na superfície das taxas de crescimento e
de lucro, relativamente confortável, como evidencia a vaga revolucionária de 1968.
Na própria esfera política, além das diferenças fundamentais entre as
perturbações corriqueiras do processo político, da “pequena política”, das intrigas da
imprensa, das crises governamentais, temos também as crises do regime, de hegemonia,
orgânica, do “Estado em seu conjunto”. Por outro lado, em formações sociais como a
brasileira, onde se observou ao longo do século XX uma grande dificuldade das classes
361 Sobre isso, ver ALTVATER, Elmar. “A crise de 1929 e o debate marxista sobre a teoria da crise.” In.HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo. Vol.8. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989,
p.79-133. SWEEZY, Paul. “A controvérsia do colapso.” A teoria do desenvolvimento capitalista. SãoPaulo: Abril Cultural, 1983, p.153-169.362 GRAMSCI, §23 do caderno 13, op. cit., p.60.363 Por exemplo: para manter em funcionamento uma forma social de produção baseada na flexibilizaçãodos mercados de trabalho é necessária uma formatação do Estado, uma forma de regime político quegaranta que, qualquer que seja a pressão social, nada poderá levar à conquista de direitos sociais.
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dominantes em exercer a direção da sociedade, as perturbações econômicas combinadas
a certos cenários políticos produziram situações explosivas, como no início dos anos
1960.
Parte 2 - Dimensões da crise dos anos 1960 no BrasilA etapa decisiva do processo de objetivação do capitalismo brasileiro operou-se
em face de uma longa crise de hegemonia, no qual uma sucessão de arranjos através do
Estado buscou estabilizar a dominação burguesa diante da incapacidade de qualquer das
frações das classes dominantes em exercer uma supremacia consentida. Ao longo dos
anos 1920 o regime da República oligárquica apresentou um quadro de crise, expresso
pelas cisões intra-oligárquicas (principalmente a Reação Republicana) e revoltas
tenentistas (1922, 1924 e a Coluna Prestes), e dos anos 1930 em diante, a aceleração do
desenvolvimento capitalista fez-se no contexto desta crise profunda, tal como já é
bastante conhecido na literatura.364 Nesse sentido, entre outras coisas, a “Revolução de
1930” marcou uma mudança na formatação do Estado brasileiro, que, frente à
impossibilidade de qualquer uma das frações da burguesia em exercer a hegemonia,
autonomizou-se de modo a impor uma alteração no modelo de desenvolvimento
econômico, favorecendo a industrialização capitalista.
Tal viés expressou-se numa forma bonapartista de poder, no qual a figura
histórica de Getúlio Vargas apresentou-se como a de um César que operou, “por cima
das classes sociais”, a guinada modernizadora. Esse cesarismo, já discutido na literatura
e retomado em pesquisas recentes,365 expressou sua face progressiva366 na construção
364 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1970.WEFFORT, O populismo na política brasileira, op. cit.. VIANNA, Liberalismo e sindicato no Brasil, op.cit. Um comentário pertinente sobre a presença do conceito de hegemonia (e crise de hegemonia) nessaliteratura está em FONTES, “Que hegemonia? Peripécias de um conceito no Brasil.” In. Reflexões Im-
pertinentes, op. cit., p.201-232.365 MORAES, João Quartim de. “O argumento da força.” In. OLIVEIRA, Eliezzer Rizzo de, et. al. As
forças armadas no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço & Tempo, s.d. DEMIER, “Bonapartismo e cesarismonos estudos sobre o período 1930-1964...” op. cit._____. O longo bonapartismo, op. cit.366 De acordo com Antonio Gramsci, no seu estudo sobre os eventos históricos que culminaram emgrandes personalidades “heroicas”, podem-se distinguir formas progressistas ou regressivas de cesarismo,além de uma combinação engenhosa entre os dois sentidos, que acreditamos ter sido o caso do cesarismo-varguista. “Pode haver um cesarismo progressista e um cesarismo regressivo; e, em última análise, osignificado exato de cada forma de cesarismo só pode ser reconstruído a partir da história concreta e nãode um esquema sociológico. O cesarismo é progressista quando sua intervenção ajuda a força progressistaa triunfar, ainda que com certos compromissos e acomodações que limitam a vitória; é regressivo quandosua intervenção ajuda a força regressiva a triunfar, também neste caso com certos compromissos elimitações, os quais, no entanto, têm um valor, um alcance e um significado diversos daqueles do casoanterior. César e Napoleão I são exemplos de cesarismo progressista. Napoleão III e Bismarck, decesarismo regressivo. Trata-se de ver se, na dialética revolução-restauração, é o elemento revolução ou o
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do Estado moderno brasileiro e dos mecanismos de acumulação capitalista. A ampliação
da base histórico-social do próprio Estado, outro aspecto deste cesarismo, foi feita
através da institucionalização (estatização) dos aparelhos sindicais dos trabalhadores
urbanos, como contra-partida para o acesso aos direitos sociais, direitos esses que
fizeram parte da pauta histórica de reivindicações do jovem proletariado brasileiro. Deuo tom regressivo do cesarismo varguista essa mesma tutela do Ministério do Trabalho
sobre os sindicatos, aliada à modernização do aparelho de repressão policial, o que
remete diretamente à continuidade do tratamento da questão social como “caso de
polícia”,367 além da restrição dos direitos sociais aos trabalhadores urbanos.368
Esse caráter regressivo, cujo emblema é a restrição à cidadania política para as
classes subalternas, só pode ser entendido se levarmos em conta o caráter hiper-tardio
da modernização capitalista brasileira, feita já num momento, como lembra Renato
Lemos,369 em que a alternativa histórica ao capitalismo já havia emergido (em 1917 naRússia) e era necessário prevenir a eclosão de novas revoluções.
“Com a revolução socialista na Rússia, em 1917, o cenário político-ideológico mundial é enriquecido com um novo elemento. Até então, osocialismo era, basicamente, um horizonte ideológico que servia dereferência a pensadores e militantes, interessados em manter ou emrevolucionar o sistema social capitalista. A derrubada do czarismo e aascensão dos bolcheviques ao poder na Rússia fizeram disparar o alarmeda burguesia. Daí para frente, o socialismo, como possibilidade real oucomo espectro, passaria a constar, explícita ou tacitamente, favorável oudesfavoravelmente, de todos os programas políticos. O Brasil como, deresto, outros países de capitalismo hipertardio, conheceu oanticomunismo antes mesmo de possuir uma classe operária. Depois datentativa frustrada de revolta da Aliança Nacional Libertadora, liderada
pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), o anticomunismo ganharia novafaceta graças à mística militar que o faria um dos elementos maisimportantes da crise dos anos 60 e do regime ditatorial.”370
elemento restauração que predomina, já que é certo que, no movimento histórico, jamais se volta atrás enão existem restaurações in toto.” GRAMSCI, Caderno 13, § 27, Cadernos do cárcere, vol.3, op. cit.,
p.76-77.367 MATTOS,. Greves e repressão ao sindicalismo carioca (1945-1964), op. cit. ________ (coord.).
Trabalhadores em greve, polícia em guarda. Greves e repressão policial na formação da classetrabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bomtexto; Faperj, 2004.368 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1978.369 LEMOS, “Contrarrevolução e ditadura no Brasil: elementos para uma periodização do processo
político brasileiro pós-1964.”, op. cit.370 Idem, ibidem, p.2-3. Sobre a existência do anticomunismo antes da formação da classe operária noBrasil, o autor refere-se à Revolução Praieira de 1848 em Pernambuco, mas também à acusação de“comunista” endereçada ao positivista Benjamin Constant, que no contexto do impacto da Comuna deParis (1871) no Brasil, foi acusado de ser partidário do “credo vermelho” simplesmente por ter defendidoo ensino escolar para cegos. Ver também, LEMOS, Renato. Benjamin Constant, vida e história. Rio deJaneiro: Topbooks, 1999, p.231.
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Assim, ainda segundo Lemos, as tarefas desta modernização foram cumpridas pelas
classes dominantes brasileiras através do recurso daquilo que autores como Florestan
Fernandes caracterizaram como uma “contra-revolução preventiva”. E nesse sentido é
significativa a frase atribuída pelo presidente do estado de Minas Gerais, Antonio
Carlos, no contexto da “Revolução de 1930”, que convocando uma insurreição entre asclasses dominantes após o assassinato do líder político paraibano João Pessoa teria
afirmado: “Façamos a revolução antes que o povo à faça!”
Se o regime oligárquico da chamada República Velha esteve baseado no espírito
liberal e no poder dos grandes proprietários ligados à agro-exportação, após os anos
trinta será o corporativismo – comum a diversas fontes do pensamento político
“autoritário” (como o próprio fascismo) –, somado ao industrialismo, que iriam dar o
tom da política econômica do novo Estado. Por outro lado, justamente por não ter se
tratado realmente de uma revolução, estando próximo daquilo que Gramsci definiucomo uma revolução passiva,371 o movimento de 1930 não instituiu um sistema
hegemônico. E ao longo dos anos posteriores manifestaram-se crises sucessivas (em
1932, 1935, 1937, 1938, 1945, 1954, 1955, 1956, 1961, 1964 e a própria ditadura
militar, que foi um “regime de crise”372), que intercalaram-se com momentos de maior
consenso (mesmo sob as ditaduras), expressão da dificuldade de estabilizar a dominação
burguesa no Brasil.
É que, como muito bem definiu Florestan Fernandes, o caráter autocrático da
burguesia brasileira fez com que a sua “revolução”, diferentemente dos casos clássicos
de países pioneiros do capitalismo como França e os EUA, ocorresse sem a resolução
democrática do problema da terra e da ampliação da cidadania política para os
371 Pensado originalmente para o processo de entificação da sociedade burguesa na Itália do XIXconhecido como conhecido como Risorgimento, Gramsci tomou de Vincenzo Cuoco (1770-1823) e seuestudo sobre a revolução em Nápoles em 1799, associando-o ao conceito de revolução-restauração deEdgar Quinet (1803-1875) e os escritos de Marx e Engels sobre a Revolução de 1848. Explicitamente
buscou aplicar o conceito para outras realidades nacionais e contextos históricos, como os do fascismo
italiano e da cultura americana ligada ao fordismo (o “Americanismo”), ambas formas capitalistas deresolver a crise do capitalismo. “O conceito de revolução passiva me parece exato não só para a Itália,mas também para os outros países que modernizaram o Estado através de uma série de reformas ou deguerras nacionais, sem passar pela revolução política de tipo radical-jacobino.” GRAMSCI, Antonio.Caderno 4. Cadernos do cárcere. Vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.209-210. Sobreas fontes do conceito BIANCHI, “Revolução passiva...”, op. cit. Sobre a aplicação do conceito derevolução passiva para Brasil, COUTINHO, Carlos Nelson. “As categorias de Gramsci e a realidade
brasileira”, In. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1999, p. 191-219.372 Sobre os “regimes de crise”, ver POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. Porto: Portucalense,1972.
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subalternos sociais.373 Operada no mesmo momento em que, além da primeira grande
crise capitalista (I e II Guerras Mundiais), aparece a alternativa histórica ao capitalismo
– a URSS –, a modernização burguesa no Brasil foi feita quando a tarefa histórica da
burguesia já era prevenir-se de todas as formas da eclosão da revolução social. Assim,
ao contrário da França, a revolução burguesa no Brasil se processou como uma “contra-revolução permanente”.374
Após 1930, a partir da ampliação seletiva dos direitos de cidadania como forma
de incorporação das massas no processo político, institui-se uma relação social à contra-
partida do apoio destas a líderes políticos que imprimiram novo estilo à forma de fazer
política. A conquista do apoio das massas urbanas, ou seja, a constituição dessa aliança
de classes, permeada de contradições, constitui um dos fulcros da sempre frágil
estabilidade do processo político brasileiro. Mas a seletividade desta aliança constitui
dado estrutural daquela via. No problema agrário isso fica explícito, pois, tácita eefetivamente, acordou-se à maneira “prussiana”375 entre os grandes proprietários
agrários (que impuseram aos trabalhadores do campo a continuidade de formas
pretéritas de extração do sobre-trabalho)376 e o Estado; uma transação pelo alto que
caracteriza as revoluções passivas. Esse pacto proprietário conformaria a base do
373 Nesse sentido, enquadra-se nas características do que, além do próprio Gramsci, Barrington Moore Jr.
chama de “revolução pelo alto”. MOORE JR, Origens sociais da ditadura e da democracia, op. cit.Inspirado neste autor, uma análise sobre o Brasil pode ser lida em VELHO, Otávio Guilherme.Capitalismo autoritário e campesinato. São Paulo; Rio de Janeiro: DIFEL, 1979.374 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. Riode Janeiro: Zahar, 1975.375 Segundo a definição clássica de Lênin, diferentemente do caminho de tipo norte-americano – em que“não existem domínios latifundiários ou são liquidados pela revolução [no caso dos EUA, guerra civil,expansão para o Oeste etc.], que confisca e fragmenta as propriedades feudais” – no caso prussiano, “aexploração feudal do latifundiário transforma-se lentamente numa exploração burguesa-junker,condenando os camponeses a decênios da mais dolorosa exploração e do mais doloroso jugo, ao mesmotempo em que se distingue uma pequena minoria de ‘Grossbauers’ (lavradores abastados)”. LENIN, O
programa agrário da social-democracia russa na primeira revolução russa (1905-1907). São Paulo:Livraria Editora Ciências Humanas, 1980, p.30. O alargamento heurístico deste conceito foi proposto porLukacs, de modo a poder entender as raízes profundas do surgimento do nazi-fascismo. Cf. LUKÁCS,
Georg. El assalto a la razon. Barcelona; México: Grijalbo, 1968, particularmente no capítulo 1, p.29-74.Os primeiros autores a propor a categoria de “via prussina” para entender o processo de objetivação docapitalismo brasileiro foram Carlos Nelson Coutinho e José Chasin. Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. “Osignificado de Lima Barreto na literatura brasileira.” In. COUTINHO, et. al. Realismo e anti-realismo naliteratura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p.3 e passim. CHASIN, José. O integralismo dePlínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio. São Paulo: Ciências Humanas,1978, p.618-652.376 Já que na transição do trabalho escravo para o trabalho livre este não se caracterizou peloassalariamento. Cf. MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 9ª edição revista e ampliada. SãoPaulo: Contexto: 2009. CARDOSO, Adalberto. “Escravidão e sociabilidade capitalista. Ensaio sobreinércia social.” Novos Estudos CEBRAP, n.80, São Paulo, p.71-88, 2008.
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compromisso entre as frações das classes dominantes, pacto este que uma parte
importante da literatura acadêmica caracterizou como “populista”.377
Após assumir uma configuração claramente bonapartista entre 1937-1945, esse
bloco histórico populista reorganizou-se em torno a um regime democrático-liberal, que,
também marcado por sucessivas crises, foi derrubado por um golpe de Estado articulado pelos setores mais internacionalizados do capitalismo brasileiro com a alta oficialidade
das Forças Armadas em 1964. O último capítulo deste regime foram os governos de
Jânio Quadros e João Goulart, envoltos em uma crise orgânica, quando esfacelaram-se
as condições para a manutenção daquela forma de dominação política, em razão das
contradições oriundas da nova etapa de objetivação do capitalismo brasileiro operada
pelo nacional-desenvolvimentismo.
Das análises sobre a crise dos anos 1960, quase todas voltadas para investigação
das razões do golpe de 1964, acreditamos ser a de Dreifuss378 a mais consistente, tendosido um dos primeiros a caracterizar a situação a partir do conceito de crise orgânica.379
Para o cientista político uruguaio, em meados dos anos cinquenta uma nova fração das
classes dominantes emerge no plano econômico brasileiro: o capital multinacional e
associado, que seria a base de um “novo bloco histórico”.380 Resultado da aceleração do
processo de industrialização baseado da implantação do setor de produção de bens
duráveis, monopolizados e ligados ao capital estrangeiro, capitalistas nacionais e
estrangeiros formaram associações, ao mesmo tempo em que o Estado serviu-se do
endividamento externo para desenvolver a infra-estrutura necessária para a implantação
desse capital. Esse setor mais dinâmico do capitalismo brasileiro convive
tranquilamente com a forma institucional do regime de 1946, até que em fins dos anos
cinquenta começam a aparecer os sinais de uma crise mais profunda, com o descontrole
da espiral inflacionária. A eleição de Jânio Quadros, um outsider no sistema partidário
brasileiro, que renunciou poucos meses após sua posse, foi para Dreifuss a última
377 WEFFORT, O populismo na política brasileira, op. cit. IANNI, Otávio. O colapso do populismo no
Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. ______. A formação do Estado populista na América Latina, op. cit.378 DREIFUSS, 1964, a conquista do Estado, op. cit.379 Idem, ibidem, p.144.380 Dreifuss utiliza a noção de “bloco histórico” tal como predominava no debate marxista do pós-IIGuerra, como sinônimo de aliança de classes. Todavia, essa não parece ser a leitura mais adequada parauma noção que no léxico dos Quaderni liga-se às relações estabelecidas nas formações sociais concretasentre base e superestrutura, entre economia e política (Estado ampliado), entre formas de produção,formas de regime político e modos de ser. Ver GRAMSCI, §10 e §23 do caderno 13, op. cit., p.26 e p.70.PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. BIANCHI,
Laboratório de Gramsci, op. cit., p.136-138.
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oportunidade dessa fração de classe do capital multinacional e associado de dirigir a
política de Estado dentro daquela forma democrática do regime. A partir deste ponto,
que coincide com o início do governo João Goulart, tal grupo passa a propugnar o golpe
de Estado como método para assenhorar-se do poder.
Para tanto, esses setores econômicos fundam o Instituto de Pesquisas e EstudosSociais (IPES) em fins de 1961, apresentado ao público em fevereiro de 1962 como um
inofensivo “centro de estudos”. Em conjunto com outras entidades conservadoras, como
o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), a Escola Superior de Guerra (ESG),
fortes articulações na imprensa e com grupos para-militares de extrema-direita – como o
Movimento Anti-Comunista (MAC) – o IPES promoveu uma campanha de
desestabilização do governo João Goulart, contribuindo decisivamente para sua
deposição. O mais importante, e que é um achado empírico do autor, é que o IPES
imporia o essencial de seu projeto de classe, anteriormente formulado, no aparelho deEstado a partir do golpe de 1964.381 Em suma, no IPES não se reuniram apenas
talentosos conspiradores, mas intelectuais orgânicos desse novo bloco histórico capazes
de elaborarem um projeto de classe que conquistou o aparelho de Estado com a
ditadura.
Todavia, essa ação de classe não operou no vazio, como se fosse um mero
reflexo do poder econômico emergente, mas sim numa situação histórica caracterizada
por um “ataque bifrontal” ao regime populista: por um lado, pelas forças do capital
multinacional e associado; por outro, pelas classes subalternas em plena atividade no
campo e na cidade.382 É nesse sentido que, para Dreifuss, no início dos anos sessenta
tem-se uma crise orgânica:
“Tal crise se tornou orgânica quando os efeitos de mudanças econômico- produtoras que ocorriam com intensidade crescente a partir de meados dadécada de cinquenta foram traduzidos para a política por duas forçassócio-econômicas fundamentais, os interesses multinacional-associados eas classes trabalhadoras que passavam por um processo de intensa
politização. Essas mudanças levaram a um confrontação ideológica e política das classes, tornando-se a crise da forma populista de domínio
em princípios da década de sessenta.”383
381 Em seu último capítulo, Dreifuss discute a ocupação dos postos estratégicos do aparelho de Estado pelos intelectuais orgânicos do IPES, como Roberto Campos e o general Golbery. DREIFUSS, 1964, op.cit., p.417-479.382 Idem, ibidem, p.141. O termo “ataque bifrontal” é de João Quartim de Moraes. MORAES, J. Q.
Dictatorship and armed struggle in Brazil. Londres: New Left Books, 1971, p.39-57 apud DREIFUSS,1964, op. cit., p.157.383 Idem, ibidem, p.144.
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Se a análise dreifussiana considerou as mudanças operadas no mundo da produção, com
a entrada no país do capital multinacional e associado, a conquista do Estado pelo bloco
de poder ligado a este não constitui “um mero reflexo da supremacia econômica”, mas
“um resultado de uma luta política empreendida pela vanguarda destes novos
interesses”.384
Outro analista de peso da crise dos anos sessenta é Jacob Gorender, para quem,
no início de 1964, esboçou-se no Brasil uma situação pré-revolucionária, motivo pelo
qual caracteriza o golpe de Estado de 1964 como uma “contra-revolução preventiva”.385
Para este autor, os primeiros anos da década de sessenta marcam o ponto alto das lutas
dos trabalhadores brasileiros no século XX, onde a luta de classes pôs em xeque a
estabilidade institucional burguesa, ameaçando a propriedade privada e a própria força
coercitiva do Estado, com as cisões na hierarquia militar. Nesse sentido, para Gorender,
o golpe preventivo fez-se necessário para a burguesia brasileira e para o imperialismo,que “tinham sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse”. 386 No mesmo
sentido se direcionam os entendimentos de Florestan Fernandes e Caio Navarro de
Toledo para o golpe, definido também como uma “contra-revolução preventiva” ao
movimento de ampliação da democracia.387 Outras abordagens acadêmicas, que
partilham dos mais variados registros teóricos e dos mais variados campos do
conhecimento, também buscaram caracterizar a natureza da crise dos anos sessenta,
como são os trabalhos de Wanderley Guilherme dos Santos,388 Alfred Stepan,389 Otávio
Ianni,390 Hélio Jaguaribe,391 Fernando Henrique Cardoso,392 Moniz Bandeira,393
Francisco de Oliveira394 etc.
384 Idem, ibidem, p. 482.385 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1999, p.60-76.386 Idem, ibidem, p.73.387 FERNANDES, Florestan. “Revolução ou Contra-Revolução?” In FERNADES, F. Brasil: emcompasso de espera. São Paulo: HUCITEC. 1980, p. 113. TOLEDO, Caio Navarro. O governo Goulart eo golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 1983. ____. “1964: o golpe contra as reformas e a democracia.”
Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.47, p.13-28, 2004.388 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira.
Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Editora UFMG; Iuperj, 2003.389 STEPAN, Alfred C. Os militares na política: mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro:Artenova, 1975.390 IANNI, O colapso do populismo no Brasil, op. cit.391 JAGUARIBE, Hélio. Brasil: crise e alternativas. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.392 CARDOSO, Fernando Henrique. “O modelo político brasileiro.” In. O modelo político brasileiro eoutros ensaios. 5ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993, p.50-82.393 BANDEIRA, O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil, op. cit. ______. A renúncia de
Jânio Quadros e a crise pré-64. São Paulo: Brasiliense, 1979.394 OLIVEIRA, Francisco de. “A economia brasileira: critica à razão dualista.” Estudos Cebrap, n.2,1972.
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Todavia, a já mencionada tendência revisionista que se esboçou na historiografia
nos anos 1990, começou a buscar entender o período do governo João Goulart e o golpe
ignorando que houvesse uma crise daquele regime. Um dos partidários desta posição, o
cientista político Antonio Lavareda, em seu livro A democracia nas urnas apresenta a
ideia de que o sistema partidário brasileiro no início dos anos 1960 não estava em crise.Ao contrário, segundo o cientista político pernambucano
“o sistema em questão, na sua etapa final [os primeiros anos da década desessenta], ao contrário de encontrar-se experimentando o estertor dadesinstitucionalização, estaria em processo de implantação econsolidação, isto é cumprindo de modo cada vez mais efetivo o primeiro
papel básico de qualquer sistema partidário democrático, que é o deimprimir organização e regularidade a parcelas significativas dasescolhas eleitorais. Em outras palavras, estruturar e canalizar a maior
parte da participação político-eleitoral.”395
Na verdade, para este autor, o que caracterizaria todo o período da República de
1945-64 seria a “inexistência de conflitos de monta”, mesmo os “de classe”, hipótese
com a qual não podemos concordar de forma alguma. Segue abaixo o referido
raciocínio:
“Os partidos brasileiros da fase analisada [1945-1964] desenvolveram-seem um cenário caracterizado em larga medida pela grande simplicidadeda estrutura de clivagens efetivamente politizadas, se comparada, porexemplo, às que tiveram lugar na Europa. Inexistiam na sociedadeconflitos de monta, quer religiosos, culturais, étnicos e sobretudo
territoriais, capazes, pelo seu impacto, de se transladarem para o sistema partidário. Até mesmo as clivagens que têm lugar nas linhas divisóriasentre as classes sociais estiveram longe de constituírem em dimensão de
peso sobre a qual se estruturasse o conflito político.”396
É esse sistema político reificado, que tem lugar numa sociedade certamente muito
diferente da que concebemos, onde o conflito de classes não encontraria expressão
(mesmo que distorcida) no sistema político, que segundo Lavareda estaria em
“consolidação”. Do que só é possível concluir que o colapso daquela democracia foi
resultado puro e simples da falta de compromisso dos atores políticos relevantes emmanter aquele quadro institucional. Neste tipo de análise é abandonada qualquer
determinação do processo político em favor de uma interpretação em que o jogo político
se dá “no vazio”, na pura contingência.
395 LAVAREDA, Antonio. A Democracia nas urnas. O processo partidário-eleitoral brasileiro. Rio deJaneiro: IUPERJ; Rio Fundo, 1991, p.97.396 Idem, ibidem, p.99, grifos nossos.
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Posição similar pode ser encontrada no trabalho já comentado de Argelina
Cheibub Figueiredo. Além das restrições enunciadas no primeiro capítulo desta tese, é
preciso incorporar outros problemas ligados a dimensão aqui examinada. Pois em sua
narrativa, o processo político parece operar (ou opera) num vazio de determinações, e
não é por acaso que em trabalho apresentado em seminário sobre os 40 anos do golpe,Figueiredo incorporou explicitamente as proposições de Lavareda sobre a “marcha
acelerada para a consolidação” do sistema partidário, dando o “acabamento” de sua
“explicação” revisionista para o golpe.397 Deste modo, as lutas de classes, que para os
partidários do materialismo histórico conformam o cerne das explicações da luta
política, nestas proposições revisionistas, mal aparecem; e quando dão as caras, estão
“fora” do conflito político (que é praticamente reduzido à institucionalidade), numa
situação de forte atividade política de grandes segmentos da sociedade. Nesta démarche
revisionista, o estudo sobre a atuação do movimento sindical em uma greve geral nãoguarda grande interesse. A não ser como coadjuvante de um personagem outrora
chamado de populista (e recentemente como um animal político) como o presidente
Goulart, o movimento sindical mal pode ser considerado.
Passemos agora a apresentar nossa compreensão dos elementos constituintes do
cenário de crise no início dos anos sessenta.
3.1 Crise econômica
A aceleração da inflação e a perda de dinamismo na atividade econômica a partir
de 1962 tiveram uma forte influência sobre os humores políticos. As raízes do mal-estar
estavam nas contradições do próprio modelo de desenvolvimento econômico que
começou a ser constituído no país com a Instrução 113 da Superintendência de Moeda e
Crédito (SUMOC) em 1955, durante a curta gestão de Café Filho na Presidência da
República. 398
A depressão econômica dos anos trinta teve como uma de suas características a
desorganização dos sistemas de poder internacional, que permitiram a implantação de
iniciativas de modernização industrial de países periféricos como o Brasil. O processo,
397 Cf. FIGUEIREDO, Argelina. “Estruturas e escolhas: era o golpe de 1964 inevitável?” In. 1964-2004,40 anos do golpe, op. cit., p.26-35. O curioso é que em seu trabalho anterior, a autora tenha cobrado
justamente Dreifuss por não considerar “fatores extrínsecos, tais como a situação econômica do país e oconteúdo das políticas governamentais”, constituindo uma das maiores deturpações registradas naliteratura sobre o golpe de 1964. ________, Democracia ou reformas?, op. cit., p.173.398 Utilizo aqui a periodização proposta por Sônia Regina de Mendonça. MENDONÇA, Estado eeconomia no Brasil: opções de desenvolvimento, op. cit.
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descrito pela maior parte da literatura através do termo “substituição de importações”,
conferiu o desenho da etapa decisiva de objetivação do modo de produção capitalista. A
criação das indústrias do departamento I (bens de capital) a partir de uma intervenção
direta do Estado, permitiu uma certa modalidade de desenvolvimento capitalista
nacional baseada tanto na criação de empresas públicas, quanto no confisco cambial dosrecursos da agro-exportação canalizado para o setor industrial, beneficiado por taxas de
juros especiais. No após II Guerra, em especial depois que os planos de reconstrução da
Europa frutificaram, foi iniciada uma importante fase de expansão da economia
capitalista mundial conhecida por nomes elogiosos como “os trinta anos gloriosos”, ou a
“Era de Ouro”, que duraria até o fim dos anos sessenta. E é na carona dessa forte
expansão do pós-guerra que se dará um dos momentos decisivos da objetivação do
capitalismo monopolista no Brasil.
Pelo menos até o fim da década de 1940, as atenções das grandes corporaçõescapitalistas estavam voltadas para o investimento nos seus próprios mercados nacionais
e, no caso dos EUA, no investimento na reconstrução européia através do Plano
Marshall. Entretanto, no início dos anos cinqüenta o panorama começou a mudar, e
iniciou-se um movimento de deslocamento de plantas industriais para territórios
periféricos do capitalismo, como alguns países latino-americanos. O carro-chefe desse
movimento foi a indústria de bens duráveis, especialmente a automobilística e a que
produzia a chamada linha-branca de eletrodomésticos, geladeira, fogão etc. O Brasil
apresentava-se como um território adequado a expansão desta forma de acumulação: já
contava com uma industrialização de bens correntes – especialmente têxtil e da
alimentação –, uma indústria de base em formação (Companhia Siderúrgica Nacional
(CSN) e a Companhia Vale do Rio Doce), além de um contingente cada vez maior de
sujeitos sociais “livres como pássaros” (na irônica expressão de Marx) para a
exploração capitalista, que migravam em massa das zonas rurais do Nordeste e das
cidades do interior de Minas para os centros urbanos do Sudeste.399 Todavia, eram
necessários ajustes institucionais para permitir sua emergência.
399 “O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os revolucionamentos que servem dealavanca à classe capitalista em formação; sobretudo, porém, todos os momentos em que grandes massashumanas são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado detrabalho como proletários livres como os pássaros. A expropriação da base fundiária do produtor rural, docamponês, forma a base de todo o processo. Sua história assume coloridos diferentes nos diferentes paísese percorre as várias fases em sequência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra,que, por isso, tomamos como exemplo, mostra-se em sua forma clássica.” MARX, O capital, Livro 1,volume II, op. cit., p.263, grifo nosso.
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E ele veio com a Instrução 113, que marcou o momento a partir do qual
começou a se implantar com vigor esse setor de ponta da acumulação capitalista no
Brasil. De acordo com a medida, era permitido às corporações multinacionais a
importação de equipamentos por um preço 45% abaixo das taxas oficiais e isenta da
cobertura cambial exigida como norma para a importação de maquinário. Um privilégioao capital estrangeiro, já que o benefício não foi estendido aos empresários brasileiros,
exceto àqueles que se associavam a estes capitais forâneos. É com base neste elemento
que se constitui uma das partes fundamentais do chamado tripé do modelo de
desenvolvimento industrial brasileiro: a do capital estrangeiro, que se forma no
investimento no setor de produção de bens duráveis, o Departamento III. Ao capital
nacional cabe a continuidade de seu predomínio nos chamados ramos tradicionais da
indústria, ligados à produção de bens de consumo popular (Departamento II), ficando ao
capital estatal o papel de investidor no ramo das indústrias de base (Departamento I),onde o tempo de rotação e o volume das inversões é maior, e por isso mesmo não
atraente para uma valorização a um prazo curto. A alta composição orgânica400 do
Departamento III impedia que pequenos capitalistas nacionais tivessem capacidade de
investimentos, e o estímulo oferecido pela legislação mencionada acima, atraindo o
capital estrangeiro e obrigando os capitais nacionais a se associarem, desembocou na
rápida monopolização do novo setor.401
O aumento do peso do capital estrangeiro na economia brasileira teve como
corolário uma nova forma de dependência na economia brasileira, pois se “uma parcela
da mais valia extorquida internamente pelo capital estrangeiro [era] reinvestida, (...)
outra parcela [era] remetida para o exterior sob a forma de lucros, juros e
dividendos”.402 Tornado esse o eixo dinâmico da economia a partir de então, construiu-
se com base nele o modelo de desenvolvimento dependente-associado.403
400 No processo de reprodução ampliada, o capital investido produtivamente é decomposto em duas partes: capital constante e capital variável. O primeiro refere-se ao capital investido em meios de produção e matérias primas; o segundo, no pagamento do valor da força de trabalho, nos salários. Quanto
maior for a parte alíquota do capital constante, maior é sua composição orgânica. Um empreendimentocom alta composição orgânica, significa um setor que só pode ser passível de investimentos a grandesmassas de capital.401 MORAES, Maria. “Considerações sobre a crise de 1964.” In. MANTEGA, G & MORAES, M.
Acumulação monopolista e crises no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.27-28.402 Idem, ibidem, p.28.403 CARDOSO, Fernando Henrique & FALETTO, Enzo. Desenvolvimento e dependência na América
Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. Pensado este processo também em outros países da América Latina,estes dois autores assim definiram esta nova forma de dependência: “A vinculação das economias
periféricas ao mercado internacional se dá, sob esse novo modelo, pelo estabelecimento de laços entre ocentro e a periferia que não se limitam apenas, como antes, ao sistema de importações-exportações; agora
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Isto não quer dizer que date daquela época a presença de investimentos
estrangeiros no país, que, ao contrário, desde cedo se fizeram presentes na economia
brasileira, mas até então sua presença mais forte era nos setores comercial e bancário.
Em suma, antes da década de 1950 o capital estrangeiro já havia se estabelecido nos
ramos de serviço, extração e comércio agrícola; em menor medida, tinha realizadoinvestimentos industriais, como, por exemplo, na incipiente indústria de caminhões.
A partir deste período, porém, este capital passa a ser investido largamente no
setor produtivo, e o impulso decisivo deste processo se deu com o Plano de Metas do
governo Juscelino Kubitschek (1956-1961). Outro elemento importante diz respeito ao
fato de terem sido os capitais com sede na Europa (na conjuntura de emergência do
Mercado Comum Europeu), e do Japão os pioneiros nos investimentos naquela fase da
economia brasileira. A economia capitalista hegemônica, a norte-americana, só se faria
mais atuante após o golpe de Estado de 1964, mesmo que sua presença anterior não possa ser subestimada. Francisco de Oliveira esclarece que tal processo se deu porque o
país capitalista hegemônico ainda estava preso à antiga divisão internacional do
trabalho, em que o Brasil aparecia apenas como exportador de commodities agrícolas.404
O governo Kubitschek marca também uma modificação na forma de
financiamento do processo de industrialização brasileira, que no período anterior havia
sido feito com o mecanismo do confisco cambial (da agro-exportação, especialmente do
café), passando agora a recorrer, entre outras coisas, a recursos externos. A grande
liquidez do mercado internacional de capitais, advinda do próprio ciclo virtuoso de
crescimento, permitia que o Estado e os grandes capitalistas nacionais privados
obtivessem os recursos necessários. O outro instrumento fundamental era a inflação,
que na segunda metade dos anos cinqüenta oscilou acima dos 20%, com exceção de
1957 (que ficou em 7%), encostando nos 40% em 1959 e descendo à casa dos 30% em
1960, o que desaguava na formação de uma poupança forçada que penalizava os
assalariados. Na década seguinte, tal contradição acabaria constituindo um dos
elementos da crise do sistema de dominação.405
Essa é uma das razões que explicam o fato de que a aceleração do processo de
acumulação capitalista se fez acompanhar também pelo aumento da taxa de exploração,
as ligações se dão também através de investimentos industriais diretos feitos pelas economias centrais nosnovos mercados nacionais.” Idem, p.125.404 OLIVEIRA, op. cit., p.76. Ver também o trabalho de BOITO JR., Armando. 1954: a burguesia contrao populismo. São Paulo: Brasiliense, 1980, em que o autor discute as tentativas frustradas de Vargas(1951-1954) em atrair investimentos estrangeiros à produção fabril do país até 1952.405 MEDONÇA, Estado e economia no Brasil, op. cit., p.55-57.
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contrabalançado pelo aumento global da taxa de emprego. Ao mesmo tempo ocorre o
processo de expansão da mercantilização da renda das classes subalternas, que passam a
contar com cada vez mais bens industrializados em seu consumo, e a entrada mais forte
de mulheres no mercado de trabalho. Como é sabido, tais elementos contribuem para a
desvalorização do valor da força de trabalho, aumentando a taxa de exploração.406
Nessemesmo sentido o historiador Murilo Leal Pereira Neto, com base em dados do DIEESE,
mostra que, enquanto em 1955 o salário mínimo foi reajustado 14,7% acima do custo de
vida, em 1959 essa relação caiu para 3,0%.407 Este mesmo historiador, estudioso do
caso de São Paulo, ainda aponta que durante o governo de Kubitschek a
superexploração da força de trabalho foi feita com base na diminuição dos
investimentos em itens de segurança para o trabalho, o que acabou dando ao Brasil o
“título macabro de campeão mundial de acidente do trabalho no pós-guerra”.408
Sendo assim, não passa de uma imagem invertida a ideia muito cultuada nainterpretação liberal (que logo comentaremos) de que a política desenvolvimentista de
JK era “irresponsavelmente distributivista”. Entretanto a aceleração da acumulação
capitalista também aumentou a massa salarial, e num momento decisivo do processo de
migração de grandes levas populacionais das áreas rurais para os centros urbanos,
absorveu parte desse contingente. Foi deste padrão de desenvolvimento econômico que
se engendrou a dimensão econômica da crise na década seguinte.
Os dados do crescimento da economia brasileira no quinquênio JK, dos “50 anos
em 5”, são indicadores da aceleração do processo de acumulação capitalista neste
período. Segundo Sonia Mendonça, o crescimento verificado superaria mesmo os
objetivos traçados no Plano de Metas:
“Enquanto se previra a construção de 10 mil km de novas rodovias, elasestenderam-se por mais de 20 mil km. Enquanto a potência hidrelétricaem 1955 era de 3 milhões de kw, em 1961 a capacidade instalada atingia4,75 milhões de kw. Muito mais expressiva foi a rapidez do crescimentoda produção petrolífera, que saltou dos 2 milhões de barris/ano em 1955,
para 30 milhões em 1960. Também no setor de bens de produção houve
406 Segundo Francisco de Oliveira, no período de 1945-1964 “podem-se perceber claramente três fases nocomportamento do salário mínimo real: a primeira, entre os anos 1944 e 1951, reduz pela metade o poderaquisitivo do salário; a segunda, entre os anos de 1952 e 1957, mostra recuperações e declíniosalternando-se na medida do poder político dos trabalhadores: é a fase do segundo Governo Vargas, que se
prolonga até o primeiro ano do Governo Kubitschek; a terceira, iniciando-se no ano de 1958, é marcada pela deterioração do salário mínimo real, numa tendência que se agrava pós-1964, com apenas um ano dereação, em 1961, que coincide com o início do Governo Goulart” OLIVEIRA, op. cit., p.78.407 PEREIRA NETO, M. L. “A fábrica, o sindicato, o bairro e a política: a “reinvenção” da classetrabalhadora de São Paulo (1951-1964). Revista Mundos do Trabalho, vol.1, n.1, p.225-257, janeiro-
junho de 2009, p.227.408 Idem, ibidem, p.231.
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ganhos notáveis, em particular na siderurgia, cuja produção passou de1,15 milhão de toneladas de aço (1955) para 2,5 milhões em 1960.”409
Após notável euforia desenvolvimentista, no início dos anos sessenta começam a
aparecer os sinais da perda de dinamismo na economia brasileira, sendo o aumento
descontrolado da taxa de inflação uma das formas em que esse processo se manifestou.
Enquanto as taxas do crescimento do PIB no período anterior conheceram índices de 8 a
11%, em 1962 essa taxa já foi de 6,6%, nada comparada ao sintomático 0,6% de 1963 e
ao um pouco maior, mas mesmo assim pífio 3,4% em 1964, se comparado, é claro, às
taxas anteriores.410 Mas o fenômeno mais visível das dificuldades da economia
brasileira era certamente a espiral inflacionária, que no início dos anos sessenta
conheceu claro descontrole. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, a taxa anual de
inflação nesse mesmo período seria de 51,3% em 1962, 81,3% em 1963, e 91,1% em
1964, manifestação contundente da crise por que passava a economia do país no
contexto do governo de João Goulart e do início da ditadura militar.411
Ao contrário do que tentam fazer crer as interpretações liberais da crise, segundo
as quais as dificuldades da economia brasileira seriam explicadas pelo já comentado
“populismo redistributivista” supostamente praticado por JK (e continuado sob Jango),
já vimos que tal modelo não tinha nada de redistributivo.412 Descartando-se tal
perspectiva notadamente mistificadora, existem pelo menos duas visões sobre a crise
econômica que se estende de 1962 até 1967.
Em primeiro lugar, como uma crise de realização (subconsumo), baseada na
incapacidade do mercado absorver a produção ligada ao Departamento III, como
aparecem nos trabalhos de Maria da Conceição Tavares, Celso Furtado e demais autores
constituintes daquilo que se denomina “pensamento estruturalista latino-americano”.413
409 MENDONÇA, Estado e economia no Brasil, op. cit., p.63.410 BUCARESKY, André. Dependência e o balanço de pagamentos no Brasil: um estudo sobre a açãodo capital estrangeiro na extração do excedente econômico e na reprodução da dependência. Dissertaçãode mestrado em Economia, Niterói, UFF, 2005, p.123-124.411 Dados retirados da revista Conjuntura Econômica (Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas), apud MARTINS, Luiza Mara Braga. “O populismo, a crise do modelo exportador da economia e a liberdadesindical (1960-1964). In LOBO, Eulália Maria Lahmeyer (coord.). Rio de Janeiro operário: natureza doEstado, conjuntura econômica, condições de vida e consciência de classe. Rio de Janeiro: Access Editora,1992, p.308-392, p.371.412 Esse tipo de hipótese liberal está presente em ABREU, Marcelo de Paiva. “Inflação, estagnação eruptura, 1961-1964.” PAIVA, Marcelo Abreu (org.). A ordem do progresso: cem anos de políticaeconômica republicana. 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus, 1990.413 Ver, por exemplo, TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo
financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
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Esses autores trabalham com a ideia de que no início dos anos sessenta o Brasil vivia o
“esgotamento do processo de substituição de importações”. Um corolário dessa visão da
crise ligava-se às proposições políticas no sentido da “criação de novas classes médias”
capazes de absorver a produção dos bens de consumo duráveis, e é nesse sentido que
tais autores estiveram ligados politicamente às proposições em favor de reformasestruturais que visariam a ampliação do mercado interno – notadamente a reforma
agrária –, medidas capazes de destravar os gargalos que impediam a realização interna
do processo de “substituição de importações”. Como se vê, em tal abordagem não há
qualquer consideração das contradições do modelo de desenvolvimento econômico
vigente, sendo seu ponto de vista ligado àqueles que – como é o caso notório de Furtado
–, estavam empenhados em salvar o “desenvolvimentismo”.
Diversamente, num registro teórico distinto, Francisco de Oliveira e Maria
Moraes procurariam entender a crise dos anos sessenta como desdobramento dascontradições do modelo econômico vigente. Numa crítica mais geral ao arcabouço
dualista da abordagem estruturalista, Francisco de Oliveira observou pertinentemente
que o tal modelo interpretativo calcado na noção de “substituição de importações”
desconsiderava que “a industrialização se dá visando, em primeiro lugar, atender às
necessidades da acumulação, e não as do consumo”; e nesse sentido o processo do que
se chamou de substituição de importações “é apenas a forma dada pela crise cambial”
ao processo de industrialização.414 Outro problema, apontado por Maria Moraes, ligava-
se ao fato de que “o processo de produzir internamente bens até então importados
est[ava] longe de ter se esgotado”,415 e portanto a ideia de fim da “etapa fácil” do
processo de substituição de importações não era capaz de explicar a crise vivida pela
economia brasileira no início dos anos sessenta. São justamente estes dois autores que
em nossa opinião apresentam as melhores hipóteses para a compreensão daquela crise,
ainda que entre eles existam importantes diferenças, como veremos a seguir.
Francisco de Oliveira rejeita a ideia de que aquela foi uma crise clássica de
realização (de subconsumo). Observa que
“o consumo de bens produzidos principalmente pelos novos ramosindustriais, bens duráveis de consumo (automóveis, eletrodomésticos emgeral), era assegurado pelo mesmo caráter concentracionista, que se gestaa partir da redefinição das relações trabalho-capital e pela criação, comorequerimentos da matriz técnica-institucional da produção, das novas
414 OLIVEIRA, op. cit., p.50-51.415 MORAES, op. cit., p.22.
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ocupações, típicas da classe média, que vão ser necessárias para a novaestrutura produtiva.”416
No entanto, o mesmo autor verifica uma crise de realização nos ramos industriais
tradicionais (Departamento II), cujo mercado consumidor era formado
fundamentalmente pelas classes trabalhadoras, onde o salário assistia a uma intensa
desvalorização decorrente da escalada inflacionária. Partindo da constatação de que a
marca geral do período – e que se aprofunda no período ditatorial – é o aumento da taxa
de exploração, Francisco de Oliveira assim caracteriza a crise:
“A crise que se gesta, repita-se, vai se dar no nível das relações de produção da base urbano-industrial, tendo como causa a assimetria dadistribuição dos ganhos da produtividade e da expansão do sistema. Eladecorre da elevação à condição de contradição política principal daassimetria assinalada: serão as massas trabalhadoras urbanas que
denunciarão o pacto populista, já que, sob ele, não somente não participavam dos ganhos como viam deteriorar-se o próprio nível da participação na renda nacional que já haviam alcançado.”417
É assim, de certo modo política uma das razões para a crise que se gesta na economia
brasileira nos idos dos anos de 1960, com o rompimento político dos trabalhadores com
o pacto populista.
“A luta reivindicatória unifica as classes trabalhadoras, ampliando-as: aosoperários e outros empregados, somam-se os funcionários públicos e ostrabalhadores rurais de áreas agrícolas críticas. Tal situação alinha em
polos opostos, pela primeira vez desde muito tempo, os contendores atéentão mesclados num pacto de classe. A luta que se desencadeia e que passa ao primeiro plano político se dá no coração das relações de produção. Pensar que, nessas condições, poder-se-iam manter oshorizontes do cálculo econômico, as projeções de investimentos e acapacidade do Estado de atuar mediando o conflito e mantendo o climainstitucional estável, é voltar ao economicismo: a inversão cai não
porque não pudesse realizar-se economicamente, mas sim porque não poderia realizar-se institucionalmente.”418
Embora o autor apresente uma série de elementos reais da crise, nos parece demasiado
extravagante reduzir a crise econômica à impossibilidade institucional de realização denovos investimentos. E nesse sentido nos parece adequada na caracterização daquela
416 OLIVEIRA, op. cit., p.87. Em outro momento, retoma a mesma crítica: “(...) não havia a crise derealização porque o próprio modelo concentracionista havia criado seu mercado, adequado, em termos dedistribuição da renda, à realização da produção dos ramos industriais mais novos.” Idem, ibidem, p.92,nota.417 Idem, ibidem, p.88. Grifos do autor.418 Idem, ibidem, p.91-92, grifos do autor.
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como uma crise de superacumulação, ligada ao ciclo do capitalismo monopolista
implantado no país. É assim que entende Maria Moraes,
“Uma situação como a que viemos de descrever corresponde a uma crisede superacumulação de capital, entendida como a impossibilidade, para oconjunto do capital social, de valorizar-se a taxas que não fossem
decrescentes ou, mesmo, de valorizar-se.”419
Ainda de acordo com Moraes, já em 1962 é possível observar uma sensível
diminuição da taxa de inversões privadas, levando a que, no ano seguinte, a taxa de
crescimento industrial fosse negativa (- 1,7%). A autora afirma que, já em 1962, uma
parte importante do capital social total não se valorizou, escapando da reprodução
ampliada. Inúmeros elementos indicam a modalidade da crise. Em primeiro lugar, no
início dos anos de 1960 a economia brasileira vivia uma fase descendente do ciclo
industrial, com um declínio considerável da taxa de crescimento da produção, o que emsi já abria uma possibilidade de crise. Para compreender como esta possibilidade se
tornou efetiva, a autora centra a análise em dois elementos principais: o papel
econômico do Estado e a situação política do país. Além da importância do setor
produtivo estatal, o Estado era também importante em outras esferas fundamentais da
atividade econômica, como o financiamento público da produção, através dos bancos
estatais (BNDE, etc.), no controle da entrada do capital estrangeiro no país e na fixação
do preço da força de trabalho. Isto dava ao Estado um papel fundamental na economia
do país, e, não por acaso, os investimentos realizados por este até 1962 haviam evitadouma queda geral no nível das atividades produtivas. Uma série de fatores, como o
déficit crescente na balança comercial e a pesada dívida externa, levou a que o Estado
tivesse perdido a capacidade de investir e manter estes níveis produtivos já em 1963,
quando a crise se agrava.
Moraes também encontra certa dose de exagero na formulação de Oliveira sobre
a luta política do movimento de massas ter se chocado com as relações de produção
vigentes, fazendo uma sugestiva comparação com a situação do Chile sob o governo da
Unidade Popular (1970-1973).420 No caso chileno, inegavelmente a luta de classes
419 Idem, ibidem, p.44.420 “Indiscutivelmente o acirramento da luta política constitui o principal obstáculo para a continuidade dareprodução capitalista. Basta lembrar como a instabilidade das ‘condições institucionais’ pesoudecisivamente no ritmo da acumulação, no caso do Chile, sob a Unidade Popular (quando, apesar dasaltas taxas de lucro em muitos setores, os capitalistas não investiam). Sem embargo, é preciso levar emconta a situação concreta da sociedade e da economia brasileira no período em estudo. Por um lado, nos
parece equivocado considerar que o movimento popular, naquilo que tinha de mais significativo enumericamente mais expressivo, estivesse colocando em questão as relações de produção existentes. Da
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precisamente nesse sentido que o golpe e a instalação de uma ditadura se imporiam
como necessidade.
Voltando às razões da crise econômica, outro dado importante apontado por
Maria Moraes diz respeito à crise do setor agrícola, lembrando que este ainda era o setor
mais importante na geração de divisas e na fixação do valor da força de trabalho, já que produzia os gêneros alimentícios da cesta básica dos trabalhadores. A autora apresenta
os seguintes dados:
“Do ponto de vista do desempenho global do setor agrícola temos que, no período 1950/1970, enquanto a taxa média anual de crescimento do produto industrial atingiu 8,9%, o produto agrícola crescia à taxasmedíocres de 4,4%. E, particularmente nos anos da crise (1963 e 1964), o
produto agrícola cresce em 1,0% e 1,3%, isto é, a taxas inferiores aocrescimento demográfico.”421
Assim, este desempenho do setor acarretou: 1) um aumento no custo de reprodução daforça de trabalho; 2) aumento nos preços de insumos industriais de origem agrícola; 3) o
bloqueio à captação de divisas para contrabalançar a tendência ao déficit da balança
comercial. Conclui a autora que a crise é resultado de uma unidade de determinações
econômicas e políticas.
Todavia, um elemento da crise que escapou da avaliação dos dois autores, e que
é lembrado por Moniz Bandeira422 – que trabalha com a mesma avaliação da
monopolização da economia brasileira –, é a Instrução 204 da SUMOC decretada pelo
governo de Jânio Quadros, que teve um sentido recessivo e de atendimento aos
interesses do capital financeiro internacional. Tratou-se de uma política ortodoxa de
combate à inflação, com base na “compressão dos salários, contenção do crédito e
outras medidas, que sacrificariam os trabalhadores, as classes médias e os setores mais
débeis do empresariado”. Certamente, em que pese o curto período de Jânio no poder, a
política se liga por afinidade a outros pacotes recessivos, como o Plano Trienal e o
Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) do primeiro governo ditatorial, 423 mas
também à gestão de Lucas Lopes na pasta da Fazenda de Kubitschek (1959), quando
tentou levar a fundo uma política monetarista, o que teria provocado um conflito
governamental que resultou no rompimento do país com o Fundo Monetário
421 Idem, ibidem, p.46.422 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil (1961-1964) .7ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: Ed.UNB, 2001, p.44.423 Francisco de Oliveira fala de uma semelhança formal entre o Plano Trienal e o PAEG. OLIVEIRA,Crítica à razão dualista, op. cit., p.93.
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Internacional (FMI), em junho de 1959. Pelo peso que o capital internacional possuía na
economia brasileira, tal agenda demonstrava a tendência do FMI a pressionar no sentido
de uma política que ampliasse tanto a recessão, quanto o poder interno do capital
multinacional e associado. Nesse sentido, tal política econômica esteve ligada também à
quebra de dinamismo da acumulação brasileira, no momento em que o país conheceria asua primeira longa recessão do desenvolvimentismo, entre os anos de 1962 e 1967.
3.2 Os determinantes políticos da crise orgânica
Na conformação do regime liberal de 1946 já anotamos de passagem as
continuidades sintomáticas dos arranjos instituídos ainda sob a ditadura do Estado Novo
para a regulação das relações trabalhistas. Além disso, também já foi comentada outra
continuidade importante, que diz respeito à manutenção do pacto proprietário
“prussiano” sancionado pelo Estado após 1930, o qual, face à modernização industrial-
burguesa, manteve intacta a estrutura agrária do país. Todavia, ao contrário do que quis
crer a interpretação dualista, esse “arcaísmo” no campo não constituiu um “entrave” ao
desenvolvimento industrial, estando, ao contrário, fortemente integrado ao modo de
objetivação do capitalismo industrial brasileiro.424 Assim, a ampliação seletiva das
bases sociais do Estado na Era Vargas, em que pese a incorporação truncada do
proletariado urbano industrial ao mundo dos direitos sociais, excluiu os subalternos
rurais, assim como vedou os direitos políticos aos subalternos urbanos e rurais durante
longo período. Desse modo, após a ditadura do Estado Novo, embora tenha sido
incorporada a oposição liberal ao sistema político e ampliado o corpo eleitoral em
proporções inéditas, importantes restrições à vida democrática conformaram o novo
regime que viveu à sombra de constantes crises no período de 1945-1964.
Parafraseando um dizer virtuoso de Caio Navarro de Toledo sobre o governo
Goulart, a partir de uma observação do processo político durante a República de 1946
acreditamos ser possível afirmar que aquele regime democrático nasceu, conviveu e
morreu sob o signo do golpe de Estado.425 O apelo ao golpe esteve como um espectro
assombrando o processo político, especialmente por parte do principal partido
oposicionista da direita, que combinou desde seu nascedouro liberalismo e golpismo.
Estamos naturalmente fazendo referência às práticas da União Democrática Nacional
424 OLIVEIRA, Crítica à razão dualista, op. cit.425 A afirmação sobre a sorte do governo João Goulart está em TOLEDO, O governo Goulart e o golpe de1964, op. cit., p.7.
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(UDN), partido político que, sempre frustrado em chegar ao poder Executivo nacional
através do processo eleitoral, regularmente lançou mão de conspirações golpistas ao
lado de parcela da oficialidade militar. Nunca é demais lembrar o batismo de fogo do
partido, com sua posição assumida na conspiração com a cúpula das Forças Armadas
que levou à deposição de Vargas em 29 de outubro de 1945. E o que dizer daconspiração que acabou resultando no dramático suicídio de Vargas em 25 de agosto de
1954, quando seus próprios ministros militares retiraram-lhe o apoio e o aconselharam a
renunciar? Com o contra-golpe do general Lott para garantir a posse de Kubitschek se
evitou o triunfo de uma nova conspiração golpista dos liberais, quando novamente a
UDN lançou mão de sua plêiade de “constitucionalistas” para defender que a eleição do
candidato do PSD era “ilegal” porque o mesmo não havia conseguido uma “maioria
absoluta” de eleitores e, pior, havia sido apoiado pelo ilegal PCB.
A ilegalidade do PCB, proscrito desde maio de 1947, encerrando dois anos dereconhecimento pelo sistema político-eleitoral, é uma das características mais relevantes
das restrições daquele regime democrático. Alijados do processo eleitoral, tendo seus
quadros que recorrer a outras legendas para disputar cargos eletivos – primeiro no
pequeno Partido Social Trabalhista (PST), e posteriormente no também pequeno Partido
Socialista Brasileiro (PSB), além do próprio PTB –, os comunistas continuaram a
exercer uma importante influência no processo político também através do movimento
sindical, exceto no breve período entre a cassação de seu registro e a perseguição de
seus líderes sindicais durante o governo Dutra, quando a própria mobilização operária
foi silenciada. Esse peso no operariado dava ao PCB elementos para que, mesmo frente
a sua situação jurídica, fosse considerado – seja como aliado potencial, seja como
inimigo que deveria ser definitivamente extirpado da vida nacional – relevante também
no sistema político. No início dos anos sessenta, a sua crescente influência nas entidades
sindicais oficiais e “paralelas”, entre trabalhadores rurais, estudantes e entre a
intelectualidade, além de suas representações parlamentares, especialmente durante o
próprio governo Goulart, provocou alarde dentre a direita política, que passou a
denunciar com regularidade a “infiltração comunista”.
Certamente é preciso não superestimar o peso dos comunistas na crise daquela
República no início dos anos sessenta, estando o PCB muito longe de ter condições de
encampar o poder, como quis crer a propaganda anti-comunista “infiltrada” nos
aparelhos privados de hegemonia e no próprio aparelho de Estado. Mas é necessário não
desconsiderar seu papel naqueles acontecimentos como uma das forças decisivas do
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jogo político, muito superior a toda a sorte de pequenas legendas que compunham, ao
lado do PTB, PSD, PSP e a UDN, o sistema partidário. O que é importante considerar é
que, após o suicídio de Vargas, foi sentida uma reorientação política no Partido
Comunista, que se expressou imediatamente no apoio à candidatura Kubitschek em
1955, desdobrando-se programaticamente na chamada Declaração de Março de 1958 eno seu V Congresso, em 1960. O sentido dessa reorientação esteve ligado também às
mudanças ocorridas no movimento comunista internacional após o Relatório Kruchev
(1956), com as famosas denúncias ao culto à personalidade de Stálin, serviu de pretexto
para que os PCs seguissem uma orientação notoriamente reformista, expressa em
resoluções nas quais, como no caso brasileiro, mesmo frente a sua proscrição do jogo
partidário-eleitoral, fosse propugnado um “caminho pacífico” para a “Revolução”.
Já a estratégia socialista proposta pelo PCB continuou a ser pensada dentro dos
cânones da ortodoxia erigida desde o stalinizado VI Congresso da InternacionalComunista (1928), onde se previa uma primeira etapa democrática de “libertação
nacional”. Nesta, o papel central seria atribuído a um bloco de forças que incluía uma
suposta burguesia nacional, a pequena-burguesia e o campesinato, liderados pelo
proletariado através do PCB. De acordo com essa tese, só depois de terem se
desenvolvido as forças produtivas capitalistas, estariam dadas as condições para uma
segunda etapa da revolução, que seria de caráter socialista. No início dos anos
cinquenta, mesmo quando encampou posições esquerdistas (como fundar sindicatos
paralelos e propor a derrubada do segundo governo Vargas pela via da insurreição
armada), o PCB não abriu mão de tal visão da revolução em duas etapas, e em 1958
esse dogma foi combinado ao reconhecimento de que o capitalismo brasileiro estava a
desenvolver-se, à proposta reformista de um “governo nacionalista e democrático”,
capaz de pôr em marcha profundas reformas sociais que abolissem os “restos de
feudalismo” no campo, e rompessem com o imperialismo norte-americano. É com esse
programa que o PCB irá viver os turbulentos anos 1960.
Em relação ao Partido Social Democrático (PSD), fundado ainda sob o Estado
Novo, em 1944, abrigou, como se sabe, os interventores estaduais, burocratas do
governo e grandes proprietários rurais que controlavam a política nos grotões.
Originalmente se pensou que pudesse também incorporar os pelegos sindicais e os
burocratas da máquina do Ministério do Trabalho, mas esta “aliança” acabou bloqueada
pelo espírito das elites que acabaram por dar a forma final ao PSD, e àqueles não restou
outra alternativa senão fundar o PTB. Em relação ao peso eleitoral, o PSD foi a maior
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agremiação do sistema partidário durante todo o regime, tendo feito os únicos dois
presidentes que conseguiram concluir os seus mandatos: Dutra e JK. Em razão de sua
base social majoritária, notadamente os proprietários rurais, o PSD exerceu ao longo do
período um poder de bloqueio às iniciativas reformistas que eventualmente apareceram
na cena política. E ao contrário de constituir-se em um “esteio de estabilidade”, pelomenos em dois episódios esse anti-reformismo se expressou no rompimento do partido
com o governo – Vargas em meados de 1954, e em relação a Goulart, praticamente
desde o início de seu governo (salvo alguns quadros marginais, incapazes de atrai-lo
para a aliança com o PTB) –, jogando uma cartada decisiva na crise daqueles governos.
O chamado “aliado tradicional” do PSD, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)
disputou com os comunistas a influência no movimento operário, e ao contrário do que
quer nos fazer crer a recente apologética revisionista, o objetivo da organização da
legenda criada por Vargas foi sim o de contrabalançar a influência dos comunistas entreos trabalhadores. Não foi por acaso que partiu de um dos seus deputados o pedido de
cassação do registro do PCB em 1947. Conforme alegou o deputado Barreto Pinto
(PTB-DF), um dos autores da denúncia no Tribunal Superior Eleitoral, o PCB era “um
partido cujo comando estava numa nação estrangeira”, a URSS.426 Todavia, não
obstante a iniciativa ter saído de suas hostes, na ocasião a maior parte da bancada do
PTB votou contra a cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas, enquanto o
PSD votou maciçamente a favor da medida, e a UDN ficou dividida ao meio. Os
elementos mais progressistas do PTB conformariam alianças com os comunistas no
plano político/sindical, colaboração que se intensificou após o suicídio de Vargas, como
vimos. Ao lado de ex-integralistas, como San Tiago Dantas, os quadros dirigentes do
PTB foram também homens do convívio pessoal de seu dirigente máximo, como foi o
caso do presidente nacional da legenda desde 1952, João Goulart, amigo pessoal de
Vargas nas estâncias da sua terra natal, São Borja (RS). Inegavelmente, a ascensão de
Goulart ao Ministério do Trabalho em 1953 significou uma guinada na história da
própria agremiação que, no plano sindical, passou a colaborar e se identificar
ideologicamente com a esquerda. No período posterior, a formulação do programa das
reformas de base – muito similar a plataforma defendida pela comunistas – definiu um
caráter de centro-esquerda à legenda.
426 O segundo autor da denúncia no TSE foi o advogado Himalaia Virgulino, um ex-procurador doTribunal de Segurança Nacional. Sobre Barreto Pinto, que havia sido eleito para o posto com apenas 400votos, e cassado posteriormente por quebra de decoro.
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Nesse plano ideológico, o PTB era um amálgama da doutrina social cristã, com
esparsas referências ao trabalhismo britânico, propostas de cunho estatistas e, é preciso
não esquecer, boa dose de pragmatismo eleitoral.427 A partir da Carta Testamento de
Getúlio, tomada a partir de então como documento programático, cujo teor nacionalista
é inegável, incluíram-se em sua trajetória as propostas para realização de reformasestruturais no país. Essa evolução política do “varguismo sem Vargas” acabou por
encontrar forte afinidade com o teor reformista da nova orientação do PCB, criando as
condições para a aliança que, já efetivada no plano sindical, passou às suas direções
políticas.
Como sempre houve uma ala mais conservadora e fisiológica no PTB, os grupos
mais ideologicamente identificados com a esquerda conformaram no plano institucional
frentes parlamentares no Congresso, atuando ao lado do pequeno PSB (e de alas
minoritárias do PSD e da própria UDN), como o chamado “Grupo Compacto”, quedurante o governo Goulart era liderado pelo deputado federal pelo Amazonas, Almino
Afonso. Desta atuação comum nos anos JK, os setores de esquerda do PTB
conformariam a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN),428 liderada durante o governo
Jango por Sérgio Magalhães (1916-1991), deputado federal pela Guanabara e autor da
Lei sobre a limitação das remessas de lucros ao exterior.
Por outro lado, a centralização do comando da legenda nas mãos de Goulart
desde 1952, embora tivesse significado a consolidação do PTB como um partido
reformista com um sinal ideológico para a esquerda, foi responsável por diversas cisões,
entre as mais significativas aquela liderada pelo também gaúcho Fernando Ferrari, que
acabou por fundar o Movimento Renovador Trabalhista (MRT), em nenhum sentido
uma ruptura à esquerda com o PTB. Outro caso emblemático foi o do ex-ministro do
Trabalho de Vargas, Segadas Viana,429 um dos organizadores do PTB nos estertores do
Estado Novo e que, posteriormente, mesmo estando formalmente ainda no partido,
427 Um exemplo emblemático pode ser visto na participação do partido Integralista, o Partido da
Representação Popular (PRP), no governo estadual de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul (1959-1963),sendo este um personagem notoriamente considerado de esquerda. Sobre as relações entre PRP e o PTBgaúcho desde o início dos anos cinquenta e depois na eleição de Brizola ao Governo gaúcho, ver CALIL,Gilberto. Integralismo e Hegemonia Burguesa: a intervenção do PRP na política brasileira (1945-1965).Cascavel: Ed.Unioeste, 2010, p.115-121 e 215-219.428 Fundada em 1956, a FPN organizava a esquerda nacionalista no Congresso e editava o jornal OSemanário. Cf. BRASIL, Rafael do Nascimento Souza. Um jornal que vale por um partido – OSemanário (1956-1964). Dissertação de mestrado em História. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, 2010.429 Não confundir com o homônimo general Segadas Viana, que foi Ministro da Guerra do primeirogabinete parlamentarista chefiado por Tancredo Neves (setembro de 1961 – junho de 1962).
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assumiu postos na administração do mais virulento inimigo do governo João Goulart, o
governador Carlos Lacerda na Guanabara. Assim, à medida que se aprofundava a crise
explicitada no início dos anos sessenta, enquanto se afirmava como agremiação de
esquerda e conhecia também um significativo crescimento eleitoral, aumentaram essas
deserções à direita no PTB. Apesar das defecções, no contexto do golpe que depôsGoulart em 1964 (e, de resto, o próprio regime democrático restrito), ainda existiam
importantes elementos fisiológicos no PTB.
Essas e outras contradições do PTB eram elementos que acabaram se
explicitando na crise dos anos sessenta e, frente à polarização que se estabeleceu, o setor
mais ideologicamente afinado com a plataforma nacionalista lançou mão da formação
da FPN para superar sua fragmentação partidária. Enquanto isso, a direita liberal afinada
com o golpismo da UDN conformou, também nos anos JK, a Ação Democrática
Parlamentar (ADP), que durante o governo Goulart foi a caixa de ressonância daquiloque René Dreifuss denominou de complexo IPES/IBAD. Ainda de acordo com este
autor, a formação destas frentes, que agrupavam de uma forma mais ou menos coerente
as incoerências internas dos grandes partidos (PSD, UDN e PTB), foi uma expressão da
própria crise orgânica que veio à superfície nos idos dos anos sessenta. O cientista
político uruguaio também incorpora como elemento mais relevante de manifestação
desta crise orgânica a própria eleição de Jânio Quadros, candidato apoiado pela UDN,
sendo ele próprio na verdade um outsider no sistema partidário.
Todavia, em Jânio a UDN viu a sua chance de finalmente chegar ao poder
através do processo eleitoral, sem ter de recorrer ao golpe. Mas além dessa evidência do
esgotamento do sistema partidário que foi a candidatura e a eleição de Jânio, o próprio
processo eleitoral que o consagrou também evidenciou a crise. Em primeiro lugar, no
final do seu mandato, Juscelino Kubitschek buscou articular uma candidatura de “união
nacional”, em tese apoiada pelos três grandes partidos, PSD, PTB e UDN, e que seria
encabeçada pelo governador baiano, o udenista Juracy Magalhães. Segundo essa curiosa
proposta, a chapa teria como vice o próprio João Goulart, que chegou a aventar a
hipótese de apoiar tal frente.430 Além do que, foi nesse período que se explicitou a
dissidência de Fernando Ferrari, que também se lançou como postulante à Presidência
da República. Por fim, a candidatura afinal lançada pela aliança PSD-PTB, a do
Marechal Lott, tendo como vice o próprio Jango, foi alvo de “fogo amigo” que, em
430 Cf. FERREIRA, João Goulart , op. cit., p.205-206.
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razão do imbatível favoritismo de Jânio Quadros, constituiu a informal frente em apoio
a esse para presidente e Goulart como vice, iniciativa eleitoral que ficou conhecida
como “Jan-Jan”. Como é muito conhecido, tal situação era permitida pela legislação
eleitoral que estabelecia a desvinculação dos votos para o poder Executivo e esteve na
base das contradições do regime em suas etapas finais. No plano ideológico, o nacionalismo que se expandiu nos anos cinquenta e
conformou o centro da linguagem política naquele contexto, explica muito dos
elementos que se explicitariam na crise política na década seguinte. Afinal, como
discutem diversos autores, esse nacionalismo, que no plano das disputas pelo poder se
expressou na aliança PSD-PTB e que deu sustentação ao governo JK, apresentava a
realidade de forma invertida. Afinal, em plena internacionalização-monopolista da
economia brasileira patrocinada, a retórica governamental e de seus aparelhos privados
de hegemonia (como o ISEB), buscou apresentar a aceleração do processo deindustrialização como uma “luta nacionalista”. Por sua vez, a “visão de mundo” do PCB
e sua proposição de um “governo nacionalista e democrático”, no que denunciavam a
“ala entreguista do governo” JK, operava no interior dessa mesma ideologia quando
afirmava existir um outro setor “patriótico”, o que certamente desorganizava, pelo
menos no plano ideológico, a sua base social operária e popular.
Porque, se é certo que no interior do governo Kubitschek existiram alas mais
pró-imperialistas,431 com o desenvolvimento de um novo bloco histórico resultante do
também novo modelo de desenvolvimento econômico, as bases materiais do
“nacionalismo” já estavam sendo superadas; no dizer de Francisco Weffort, o modelo
de desenvolvimento capitalista nacional construído por Vargas já constituía um
“anacronismo histórico”432. Por sua vez, a oposição virulenta da UDN e da imprensa
conservadora (O Globo, Tribuna da Imprensa, O Estado de São Paulo etc.), além das
constantes tentativas de golpe planejadas pelo deputado Carlos Lacerda e setores da
oficialidade militar, acabava por reforçar tal ideologia, e todo o jogo político foi
traduzido em variações de nacionalismo x “entreguismo” (ou “desenvolvimentismo” x
“interesses do imperialismo”), o que encobria o processo estrutural em curso.433
431 Como o seu Ministro da Fazendo, Lucas Lopes, e o diretor geral do BNDE, Roberto Campos.432 WEFFORT, Sindicato e política, op. cit, p.6.433 Sobre esse tema existe um importante volume de pesquisas com viés crítico, onde podemos destacar otrabalho clássico de Miriam Limoeiro Cardoso e recentemente o livro de Lúcio Flávio de Almeida.CARDOSO, Miriam Limoeiro. Ideologia e desenvolvimento – Brasil: JK-JQ. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1977. ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. A ilusão do desenvolvimentismo: nacionalismo edominação burguesa nos anos JK . Florianópolis: EdUFSC, 2006.
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A trajetória de alguns personagens do empresariado brasileiro é emblemática do
deslocamento das bases sociais do regime de 1946, que constituiu o cerne da crise
orgânica dos anos 1960. Esse é o caso de João Pedro Gouveia Vieira, empresário que,
por indicação de Getúlio Vargas, fez parte do conselho de administração do BNDE
entre 1952-1955, tendo apoiado em seguida o governo Juscelino Kubitschek.434
Em1959, através da compra de ações da estrangeira Gulf Oil Corporation, Gouveia Vieira
fundou a Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga e sua Distribuidora de Produtos de
Petróleo (da qual faziam parte os postos Ipiranga). Na época dessa operação é notável
que nas propagandas dos postos Ipiranga, encontradas na imprensa, transpareça uma
forte retórica nacionalista, de defesa da exploração deste mercado por empresários
nacionais.435 Em uma dessas propagandas publicadas no Diário de Notícias do Rio de
Janeiro, lê-se a mensagem:
“Dois marcos na história econômica do Brasil: 7 de setembro de 1937 –instalação e funcionamento da primeira refinaria nacional – IpirangaS.A., Companhia Brasileira de Petróleo – na cidade de Rio Grande (RS)
– e que logo contribuiu com o esforço de guerra do país, abastecendo oSul com produtos de petróleo indispensáveis ao progresso de suasatividades vitais e que hoje colabora decididamente para seudesenvolvimento comercial e sua emancipação econômica; 21 de abril de1959 – instalação dos POSTOS IPIRANGA destinados a distribuição de
produtos derivados de petróleo em todo o país e a prestação de serviçosaos veículos automotores, visando o desenvolvimento econômico e amaior circulação de nossas riquezas através das rodovias brasileira. –1937 – 1959: duas datas relevantes na luta do povo brasileiro pela auto-solução de seus problemas de petróleo.”436
Não obstante toda essa retórica nacionalista da propaganda de seu empreendimento, o
que é significativo deste deslocamento de classe característico de uma crise orgânica é o
fato deste empresário ter se associado ao IPES no início dos anos sessenta, e mesmo
tendo sido eleito suplente de senador pelo PTB do estado do Rio em 1962 – tendo
assumido a vaga em diversas oportunidades –,437apoiou o golpe de Estado em 1964 e o
regime ditatorial que lhe sucedeu. Deste modo, sua trajetória é exemplar da
434 Verbete “João Pedro Gouveia Vieira”. Dicionário Histórico-Biográfico do Brasil. Rio de Janeiro:FGV, 2001.435 Na ocasião o jornalista Hélio Fernandes do Diário de Notícias, um importante opositor do governo JK,denunciou o que seria na verdade um negócio “entreguista” (segundo o jargão da época), em que GouveiaVieira teria funcionado como “testa de ferro” de uma iniciativa do capital estrangeiro para a exploraçãoda área petrolífera. A despeito da justeza ou não da denúncia, o jornalista nunca apresentou qualquer
prova contra o empresário.436 Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 01 de maio de 1959, p.9.437 Entre julho/agosto de 1963, julho/outubro de 1964, março/setembro de 1966 e julho/outubro de 1967,nos dois últimos casos pela ARENA.
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metamorfose ocorrida no interior das classes dominantes e que esteve na base do
rompimento desta com o regime que, até então, havia servido muito bem aos seus
negócios.
Quando, no dia 10 de março de 1964, reunidos no auditório da Associação
Comercial do Rio de Janeiro, os mais eminentes representantes da burguesia brasileiraanunciaram a fundação do Comando Nacional das Classes Produtoras (uma iniciativa
do IPES), o rompimento das classes dominantes com a República de 1946 estava
praticamente consumado.438 Anunciando a insurreição das classes dominantes, os mais
exaltados na “Casa de Mauá” – como também é conhecida a já centenária Associação –
não tiveram pudores em afirmar seu propósito não só de derrubar o governo, mas de
instaurar um regime de exceção que garantisse o desenvolvimento pacífico de seus
negócios. “Armai-vos uns aos outros!” foi uma das frases mais ouvidas na ocasião.
Todavia, a intenção de se livrar daquele arcabouço institucional, embora sótenha sido declarada explicitamente naquela oportunidade, já estava na consciência da
vanguarda dos setores mais modernos do capitalismo brasileiro – agrupados no IPES –
desde a renúncia de Jânio e a ascensão de Goulart. A classe dominante era plenamente
consciente da crise. O tema desta tese versa sobre um dos momentos em que a forma do
golpe de Estado esteve ligada a um desses arranjos que foi o parlamentarismo instituído
de forma oportunista em princípios de setembro de 1961. Como veremos, na crise
ministerial de meados de 1962, e que está na base da greve geral aqui estudada, setores
ligados ao IPES, em associação com expressiva bancada no Congresso Nacional,
buscariam alterar o quadro por dentro as regras do jogo, dando uma face aparentemente
“legal” à sua escalada ao poder.
3.3 O rompimento dos de baixo
Por sua vez, a forte ativação dos movimentos sociais no campo e na cidade
também erodia as bases sociais do regime, apontando para sua superação. Como forma
de equacionar as limitações daquela democracia, a esquerda, com suas propostas de
reformas estruturais, tão somente apontava para a necessidade de ampliar a democracia
realmente existente, e, portanto, também desenhava a necessidade de superação dos
bloqueios existentes naquele regime.
438 O Globo, 11 de março de 1964; Tribuna da Imprensa, 11 de março de 1964.
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Desse modo, constituem uma manobra diversionista as tentativas recentemente
encampadas pela historiografia no sentido de “valorizar aquela experiência
democrática”, como se aquele regime não estivesse em crise no início dos anos sessenta
e pudesse ter ficado de pé caso os atores políticos assim o desejassem. E aqui cabe, mais
uma vez, apontar a natureza ideológica dessa construção revisionista, pois, se não restamuita dúvida quanto ao fato de que o “autoritarismo” seguido ao colapso do regime de
1946 teve inegável sentido ideológico para a direita, o revisionismo histórico em curso
nada mais faz do que habilitar com ares acadêmicos a retórica dos golpistas quando
sugere que, em razão da suposta “falta de apego pela democracia” por parte da
esquerda, esta não teria outro projeto senão uma “variante esquerdizante do
autoritarismo”. Do mesmo modo, nesta abordagem aqui criticada, todos os comentários
críticos àquela experiência democrática limitada são desqualificados como baseados em
concepções “autoritárias” e, seguindo esse raciocínio, não resta mais nada ao historiadorsenão construir uma apologética daquela democracia realmente existente.
Voltando aos determinantes políticos, deve-se incluir a crise da estrutura sindical
no processo político. A República de 1946, como já tivemos oportunidade de comentar,
foi marcada por grande continuidade em relação ao arcabouço institucional
estadonovista, cujo propósito constitui-se no controle da mobilização operária. Além da
vigência dessas normas, essa continuidade também se fez presente através de uma séria
de medidas tomadas pelo governo Dutra, algumas das quais feitas à revelia dos
trabalhados da Assembleia Constituinte. Dentre as mais significativas estavam o
Decreto 9.070, de 15 de março de 1946, que estabeleceu enormes restrições ao exercício
do direito de greve, proscrevendo-o na prática. Embora o Brasil fosse signatário do
acordo internacional de Chapultepec (México, 1945), promovido pelas Nações Aliadas
que se comprometeram a reconhecer esse como um direito democrático, e a própria
Constituição de setembro de 1946 tivesse versado sobre o tema (através do seu art. 158
– “É reconhecido o direito de greve, cujo exercício a lei regulará”, regulação esta que
nunca aconteceria em todo o período), o Decreto 9.070 praticamente impedia o
exercício deste direito democrático. O que se queria era caracterizar a paralisação do
trabalho como um “recurso anti-social”, tal como figura na fascistizante Carta
Constitucional de 1937, em seu art. 139. Todavia, como normas legais nunca impediram
o afloramento das contradições de classe na sociedade capitalista, após a conjuntura
repressiva do governo Dutra, especialmente a partir da metade do segundo governo
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Vargas, ocorre uma retomada das mobilizações grevistas, tendo o movimento sindical, a
partir de então, “desconhecido”, na prática, esse famigerado Decreto.
Outro dado relevante, e já comentado no capítulo anterior, foi a proibição da
formação de centrais sindicais. Originalmente, em meados de 1946, o Ministério do
Trabalho buscou conformar uma Central oficial, convocando um congresso derepresentantes sindicais para setembro daquele ano. Mas como a esquerda comunista
conseguiu conquistar a maior parte dos 2.400 delegados, um grupo minoritário de
ministerialistas resolveu abandonar o encontro e chamar a polícia para impedir a sua
continuidade. Entretanto, apesar da repressão, a maioria (cerca de 2.000) dos
representantes sindicais resolveu manter o encontro e acabou por fundar a Central dos
Trabalhadores do Brasil (CTB), enquanto os ministerialistas fundariam a esvaziada
Confederação Nacional do Trabalho (CNT). Embora desconhecida pelo Ministério do
Trabalho, a CTB continuaria a desenvolver suas atividades até que, no rastro dorecrudescimento da repressão aos comunistas, fosse também desmantelada em 1947.
Ao passo que, como o Congresso Nacional e o Judiciário acabaram também por
se pronunciar sobre a inconveniência de uma central sindical na nova ordem liberal, até
a oficialista CNT foi obrigada a se extinguir, dividindo-se em duas: a Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI) e a Confederação Nacional dos
Trabalhadores no Comércio (CNTC). Assim, os poderes da República seguiam a noção
corporativista herdada do Estado Novo segunda a qual as organizações nacionais dos
trabalhadores deveriam ser divididas por ramo de atividade econômica.
A CNTI e CNTC, naturalmente, acabaram ficando em mãos dos pelegos
sindicais, e ligaram-se desde o fim dos anos quarenta às iniciativas divisionistas do
movimento sindical internacional capitaneadas pela American Federation of Labor-
Congress Industrial Organization (AFL-CIO), que atuava como braço da CIA e do
Departamento de Estado dos EUA.439 Através da ação da AFL-CIO, em colaboração
439 A conservadora American Federation of Labor (AFL) foi fundada nos EUA em fins do século XIX e
se caracterizou pela proposição de um “sindicalismo de resultados” e da colaboração de classes. No iníciodo século XX seria questionada pela criação da Industrial Workers of the World (IWW), uma iniciativadas esquerdas (anarquistas, socialistas e sindicalistas revolucionários), que seria duramente reprimida emfins da década de 1910. O conservadorismo dos anos 1920 penalizaria não só a IWW – que na práticadeixou de existir – mas também a própria AFL, que viu o número de seus filiados despencarem. Nos anos1930, no contexto do New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt, seria a vez da criação daCongress Industrial Organization (CIO), uma iniciativa dos comunistas no interior da AFL, que acabou seautonomizando e dando origem a uma central sindical orientada para a esquerda. Todavia, no contextoque se abriu após a II Guerra e o início da Guerra Fria (1947) a CIO sofreria um expurgo e acabaria sefundindo com a AFL, dando vez a criação de uma central sindical conservadora, a AFL-CIO, ligada aosinteresses do imperialismo estadunidense. Cf. MORRIS, George. A Cia e o movimento operário
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com as mais degeneradas organizações sindicais social-democratas europeias, operou-se
um processo de cisão na Federação Sindical Mundial (FSM), fundada após a II Guerra e
que congregava originalmente organizações sindicais de variados matizes ideológicos e
que acabou por ficar identificada com as correntes sindicais comunistas. A partir dessa
operação de racha, liderado pela AFL-CIO, conformou-se a Confederação Internacionaldas Organizações Sindicais Livres (CIOSL) e seu braço latino-americano, a
Organização Regional Interamericana de Trabalhadores (ORIT), que também se
originou de um movimento do mesmo tipo em relação à Central dos Trabalhadores da
América Latina (CTAL). Desde o nascedouro dessa iniciativa divisionista e claramente
pró-imperialista, a CNTI e a CNTC passaram a integrar o dispositivo internacional
CIOSL/ORIT.
Todavia, parcelas importantes do movimento sindical brasileiro acabaram
moldando confederações de forma independente a estas iniciativas, como foi o caso dosindicalismo bancário, que em 1958 conformou a sua Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Empresas de Crédito (CONTEC), hegemonizada pelos comunistas e
não ligada ao esquema CIOSL/ORIT. Em 1961, depois de um longo reinado dos
pelegos à frente da CNTI, a esquerda sindical formada pela aliança PCB/PTB
conquistou a entidade que, em meados do ano seguinte, acabou por se desligar da
CIOSL, enquanto que o secretário-geral da CNTI, o presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos da Guanabara, o trabalhista de esquerda Benedito Cerqueira, passou a ser
o representante brasileiro na FSM.
Para além do plano da evolução da estrutura oficial e das organizações
horizontais paralelas, outra restrição, que não sobreviveu por muito tempo foi a
exigência de “atestado ideológico” aos postulantes às eleições para as diretorias
sindicais, baixado também pelo governo Dutra em 1947, quando o mesmo também
suspendeu a realização de novas eleições para renovação daquelas mesmas diretorias.
Com o natural propósito de evitar o avanço dos comunistas nos sindicatos oficiais,
medidas restritivas à vida sindical forjadas no Estado Novo seriam reeditadas.
Oficialmente, a exigência de “atestado ideológico” não durou muito tempo, pois em 1º
de maio de 1951, foi revogada por Getúlio Vargas, contribuindo para a derrubada de
diretorias pelegas e para a transformação de muitas entidades sindicais em verdadeiros
americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. WELCH, Clifford Andrew. “Internacionalismotrabalhista: o envolvimento dos Estados Unidos nos sindicatos brasileiros, 1945-1964.” Perseu, SãoPaulo, ano3, n.3, p.184-219, 2009.
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espaços de articulação das lutas dos trabalhadores, processo que se desenvolveu com
mais intensidade nos anos posteriores.440
Intensificando-se as lutas do movimento operário a partir de meados do segundo
governo Vargas, e conhecendo forte desenvolvimento durante o governo Kubitschek,
chega-se ao princípio dos anos 1960 com essa estrutura sindical – montada desde osanos 1930 para apaziguar a luta de classes e deslocar o conflito capital-trabalho para o
interior do Estado –, tornando-se contraditoriamente suporte para diversas lutas
operárias. Greves, passeatas, mobilizações, posicionamentos políticos, alianças com
líderes populistas, comícios etc., uma infinidade de atividades que caracterizam o início
dos anos sessenta como um período com um alto nível de conflitualidade social no
Brasil, ao lançarem mão desta estrutura oficial em conjunto com as “organizações
paralelas”, evidenciaram um dos sintomas mais evidentes da crise de uma das
instituições mais importantes daquele regime. Pois, como já tivemos oportunidade decomentar, ao burlar o princípio corporativista de uma organização sindical apenas por
ramos de atividade econômica, a reunião de diversas categorias de trabalhadores nestas
“entidades paralelas”, que conheceriam forte desenvolvimento a partir de 1958, criava a
possibilidade de contradizer a ação desorganizadora do Estado em relação à classe
trabalhadora, ainda que a orientação nacionalista da esquerda diminuísse o potencial
dessa contradição. E embora tais lutas não tivessem colocado em xeque as bases da
acumulação capitalista, as mesmas tiravam o sono das classes dominantes e avivavam o
“fantasma do comunismo”. A partir daquele ponto, a realização de congressos sindicais
nacionais acabaria por desembocar na criação do Comando Geral dos Trabalhadores
(CGT), resultante do Comando Nacional da greve geral de 5 de julho de 1962, quando
se edificou o embrião do que poderia ter sido uma Central Sindical, processo sustado
pelo golpe de 1964.441
Por sua vez, compondo o cenário da crise dos anos sessenta, e não menos
importantes, as lutas sociais dos trabalhadores do campo, seja pela reforma agrária, seja
pela extensão da legislação social e a formação dos sindicatos de trabalhadores rurais,
colocavam em xeque o pacto proprietário que constituiu uma das bases fundamentais
daquele regime. Não foi por acaso que a violência dos proprietários rurais assumiu
contornos dramáticos ao longo do governo Jango, do que é um caso exemplar o
440 MATTOS, Trabalhadores e sindicatos no Brasil, op. cit., p.77-100.441 O processo que culminou na formação do CGT foi objeto de um estudo importante. DELGADO,Lucília Almeida Neves. O Comando Geral dos Trabalhadores do Brasil (1960-1964). Petrópolis: Vozes,1986.
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assassinato do líder da Liga Camponesa da cidade paraibana de Sapé, João Pedro
Teixeira, em 2 de abril de 1962. A Liga de Sapé, a maior do Brasil, era parte de um
fenômeno importante de organização dos subalternos rurais, também impulsionado
pelos comunistas e por outros elementos mais independentes da esquerda, como o
legendário advogado pernambucano Francisco Julião. Com o desenvolvimento dasLigas, o tema da reforma agrária saltou ao centro do debate político nacional, não pela
iniciativa de bondosas lideranças trabalhistas – como quer nos fazer crer a apologética
do PTB – mas pelas ações concretas de homens e mulheres que saíram das páginas da
literatura e adentraram a cena histórica. Nunca é demais lembrar o caráter agudo da
questão que estas lutas impunham, pois enfrentavam o pacto proprietário “prussiano”,
que constituía uma longa continuidade e uma das bases do regime vigente, que era
colocado em xeque.
Mas o que certamente constituiu um dos contornos mais explosivos dascontradições daquela República foi a ativação política entre os subalternos militares.
Um estudioso deste assunto, Paulo Eduardo Castello Parucker,442 aponta que após o
Estado Novo os clubes dos sargentos em várias unidades da Federação seriam
convertidos em espaços de articulação política. O mesmo autor afirma que, embora não
constituíssem novidade no cenário nacional, os sargentos só voltariam a figurar, “ainda
em um plano bastante secundário”, no movimento conhecido como “Novembrada”, o
contragolpe preventivo do general Lott.443 Entretanto, é justamente na crise de 1961 que
os subalternos militares aparecem com força na cena política, tendo uma ação
autônoma, alinhada aos setores da oficialidade militar legalista e/ou nacionalista, mas
não controlada totalmente por eles. Assim, com a entrada destes setores, as já maduras
contradições no seio da oficialidade militar, expressas publicamente nas disputas pelo
controle do Clube Militar – que como ensinam Alain Rouquié e Antônio Carlos
Peixoto, era a caixa de ressonância da opinião militar e onde se enfrentavam o que estes
autores denominaram de “partidos militares” – 444assumiam outro sentido. Pois se
tratava agora de uma “intromissão” dos elementos subalternos da hierarquia militar.
442 PARUCKER, Paulo Eduardo Castello. Praças em pé de guerra: o movimento político dos subalternosmilitares no Brasil, 1961-1964. (Dissertação de mestrado.) PPGH – UFF, Niterói, 1992, p.42.443 Idem, p.49.444 Ver os textos dos autores constantes no volume ROUQUIÉ, Alain (org.). Os partidos militares no
Brasil. Rio de Janeiro: Record, s.d.
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“No quadro da intensa turbulência política, as cisões no seio das ForçasArmadas não tardaram. Mas, diferentemente de outros momentos, não serestringiram às esferas militares superiores.”445
Alguns episódios são significativos dos sintomas desta crise militar. Na Crise da
Legalidade, por exemplo, subalternos militares reagiram às ordens do ministro daGuerra (general Denys) para que paraquedistas fechassem o Congresso Nacional. 446
Mas muitas outras teriam sido as ações destes setores na própria Crise da Legalidade,
como aquela em conjunto com os suboficiais da Base Aérea de Gravataí (RS) que
impediu que, sob as ordens do major Cassiano, o Palácio Piratini – centro da resistência
legalista no Rio Grande do Sul, onde se encontravam Brizola e uma multidão de
gaúchos na crise de agosto/setembro de 1961 – fosse bombardeado. Sem falar no fato de
que os sargentos e suboficiais da Aeronáutica da Guarnição de Brasília teriam sido
decisivos no desmantelamento da “Operação Mosquito”, por meio da qual um grupo deoficiais da FAB pretendia derrubar o avião que trouxe Goulart do Uruguai ao território
nacional (Porto Alegre e depois Brasília).
Tais episódios foram um marco na politização daqueles setores até o golpe de
1964, quando se tornaram um dos principais alvos dos expurgos do regime ditatorial.
Assim, ainda de acordo com Parucker, é a partir de 1961 que se pode falar de um
“movimento dos sargentos”, que no plano ideológico e político se identificou com as
esquerdas e as reformas de base, e no plano de seus interesses corporativos com a
campanha pela elegibilidade, por melhores condições materiais e até pelo direito de
casar.
No mês de março de 1964, marinheiros e fuzileiros navais amotinaram-se na
sede do Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, com a reivindicação de que sua
Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), fundada em 1962,
fosse reconhecida, o que foi considerado um dos estopins para a precipitação do golpe
de Estado. Só aos oficiais militares estava reservado este atributo, pois, como apontou
de forma arguta o historiador Nelson Werneck Sodré,447 a hierarquia estava sendo
rompida a partir do momento em que um setor da oficialidade militar conspirava para a
derrubada do Executivo de Goulart, que afinal era o chefe constitucional das Forças
445 PARUCKER, op. cit., p.52.446 Idem, p.54.447 Este aspecto é lembrado pelo historiador em seu livro História militar do Brasil (Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1965, pp. 393-394), o que deve servir para apreender algo que em geral énegligenciado nas análises.
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Armadas. Mais uma vez, valida-se a observação de José Honório Rodrigues quanto ao
tratamento diferenciado que os “mais iguais” desferem sobre “menos iguais”.448 Deste
modo, a quebra da hierarquia nas Forças Armadas aponta um dos elementos da crise
orgânica do regime: uma crise na principal instituição encarregada das funções de
coerção do Estado capitalista.Em diversos momentos da obra de Leon Trotsky (1879-1940), o revolucionário
russo dá grande importância aos humores políticos dos setores médios da sociedade
como determinantes para o desfecho de situações de crise que poderiam evoluir para
situações revolucionárias, contra-revolucionárias, anti-revolucionárias ou de
estabilidade política.449 E, se esse é um critério justo, podemos verificar uma das razões
da evolução política no início dos anos sessenta ter se encaminhado para uma contra-
revolução preventiva no fato de que boa parte da classe média colocou-se ao lado da
histeria anticomunista, sendo uma das bases sociais do movimento golpista. Umexemplo da polarização social e da mobilização reacionária das classes médias
encontra-se num caso contado por Rui Mauro Marini, em texto de 1969, onde narra um
dos inúmeros conflitos que envolveram a classe média mineira em face ao
desenvolvimento das atividades de organização do movimento sindical pela esquerda.
“Em janeiro de 1964, por ocasião do Congresso Unitário dosTrabalhadores da América Latina, que se deveria realizar ali, a pequena
burguesia de Belo Horizonte saiu às ruas, provocada pelos latifundiáriose pelos padres, e conseguiu que fosse transferido para Brasília. Pela
primeira vez, desde o “integralismo” fascista dos anos 30, a direitamobilizava as massas.” 450
A partir da consulta a outras fontes é possível verificar que aquele episódio
acabaria por ser tomado como uma referência da “luta contra o comunismo” que
mobilizava os setores médios. Um exemplo se deu a poucos dias do famoso Comício da
Central, quando a quase totalidade dos jornais do Rio estava em franca campanha
448 RODRIGUES, J. H. Conciliação e reforma no Brasil. Um desafio histórico-cultural. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1982.449 Apresentando o que seriam as condições para o triunfo de uma revolução socialista, Trotsky elenca osseguintes elementos: “1) O impasse da burguesia e a consequente confusão da classe dominante; 2) Aaguda insatisfação e a ânsia de mudanças decisivas nas fileiras da pequena burguesia, sem cujo o apoio agrande burguesia não pode se manter; 3) A consciência da situação intolerável e a disposição para asações revolucionárias nas fileiras do proletariado; 4) Um programa claro e uma direção firme davanguarda proletária.” TROTSKY, Leon. “Manifesto sobre la guerra imperialista de maio de 1940.” In:Escritos. Bogotá: Pluma, 1979, p.297, apud ARCARY, As esquinas perigosas da História, op. cit., p.67.450 MARINI, Ruy Mauro. “Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil.” In. SADER, Emir (org.).
Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Rui Mauro Marini. Petrópolis: Vozes/ Laboratóriode Políticas Públicas (LPP), 2000, p.42.
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oposicionista em relação ao governo Jango e à realização daquele encontro resultante da
colaboração entre autoridades do governo federal e o CGT. Apresentado como “comício
dos comunistas” por Carlos Lacerda e os jornais cariocas O Globo e Tribuna da
Imprensa, a violência política em Belo Horizonte era claramente reivindicada.
“Façamos como os mineiros”, foi uma das frases mais repetidas nestes órgãos daimprensa, e de todos os cantos surgiam rumores de que um ato de violência similar
poderia cancelar o meeting popular na Guanabara. Na véspera do encontro, o palanque
montado na Praça Cristiano Otoni, ao lado do Ministério da Guerra, onde ocorreria o
comício da Central do Brasil, foi incendiado por extremistas de direita. E no entardecer
do dia 13, enquanto 200 mil populares lotaram as imediações da Central do Brasil,
seguindo orientações de Lacerda, parte da classe média carioca colocou velas nas
janelas, simbolizando “luto” contra o comunismo. Uma verdadeira “macumba” contra
Jango.Assim, as massivas manifestações da classe média em apoio ao golpe de Estado
no dia 19 de março de 1964 na capital paulista e no dia 2 de abril no Rio de Janeiro (em
comemoração à derrubada do governo), seriam só os momentos mais espetaculares da
explicitação dos humores políticos desses setores em apoio à insurreição da burguesia
liderada pela maior parte da oficialidade militar. Entretanto, evidências de tal postura da
classe média já podiam ser percebidas na mobilização de meados de 1962 para impedir
que o Chanceler demissionário San Tiago Dantas fosse alçado à condição de Premier
(episódio que esteve ligado diretamente à eclosão da greve geral de julho de 1962). Na
base daquela atitude, como ensina Décio Saes, estava o “medo da proletarização” que
tornava a classe média sensível ao discurso segundo o qual o mal-estar econômico era
resultante dos “constantes aumentos de salário”, das constantes greves e de um “plano
diabólico dos comunistas para tomarem o poder”.451
Em síntese, a crise dos anos sessenta expressou um realinhamento entre as
classes sociais no Brasil, cindindo as alianças que formaram a base do regime
democrático surgido no fim do Estado Novo. Assim, além de uma crise daquele regime,
vivia-se, como já foi dito, uma crise cíclica do capitalismo brasileiro, conformando uma
crise orgânica. E como todas as crises capitalistas têm nos ensinado, para a retomada do
ciclo era necessário atacar direitos sociais, baixar os salários, e para tanto desmantelar
as organizações políticas de esquerda que mobilizavam grandes massas populares no
451 Cf. SAES, Décio. “Classe média e política no Brasil. 1930-1964.” In. FAUSTO, Boris (org.). HistóriaGeral da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano, Vol. 3. São Paulo: Difel, 1981.
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sentido de ampliação daquela democracia. A incapacidade da própria burguesia em
efetuar diretamente essa tarefa, e as debilidades das organizações de esquerda em
impedi-la, são assim os sintomas evidentes do que aqui entendemos a partir do conceito
de crise orgânica.
Resta-nos agora um comentário final, pois trabalhar com tal noção de queaqueles eram tempos de crise orgânica não nos leva a pensar que eram simplesmente
tempos sombrios. Pois, como muito bem frisou Roberto Schwarz em antológico ensaio,
durante o governo de João Goulart
“o debate público estivera centrado em reforma agrária, imperialismo,salário mínimo ou voto do analfabeto, e mal ou bem, resumira, não aexperiência média do cidadão, mas a experiência organizada dossindicatos, operários rurais, das associações patronais ou estudantis, da
pequena burguesia mobilizada etc.”452
Em suma, como diz o mesmo autor, no início dos anos sessenta o Brasil estava
“irreconhecivelmente inteligente”.453 Eram tempos em que a “grande política” – para
utilizar mais um conceito de Antonio Gramsci – pautava a cena histórica. E foi nesse
contexto que o movimento sindical brasileiro saltou ao centro da cena política e realizou
uma intervenção decisiva com a greve geral que mobilizou a classe trabalhadora
brasileira e que constitui assunto de nosso próximo capítulo.
452 SCHWARZ, Roberto. “Cultura e Política, 1964-1969.” In. O pai de família e outros estudos. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1978, p.71.453 Idem, ibidem, p. 69.
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Capítulo 4 - A greve geral de julho de 1962:
intervenção dos trabalhadores na crise política
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Já passava do meio do dia 4 de julho de 1962, quando o Comando Geral de
Greve se reuniu na sede da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria
(CNTI), localizado nas imediações da Rua da Andradas com a Marechal Floriano, no
Centro do Rio de Janeiro. Estavam lá os dirigentes da própria CNTI, da CONTEC,
sindicatos nacionais importantes, como o dos aeroviários, aeronautas etc. eintersindicais como o Pacto de Unidade e Ação (PUA) – que congregava trabalhadores
marítimos, portuários e ferroviários –, a Comissão Permanente de Organizações
Sindicais (CPOS) da Guanabara, entre outras entidades e representantes sindicais de
outras regiões do país. Decidiram decretar uma greve geral política em todo o Brasil.
Formado nas articulações entre líderes sindicais de todo o país, que ao longo do
último período acumulavam uma experiência de anos de lutas grevistas e da conquista
de entidades sindicais pela esquerda, o Comando Geral de Greve (CGG) desde o início
de junho anunciava a realização de uma greve nacional política. O que era ameaça setornou realidade: após a decisão tomada naquela tarde de 4 de julho, senhas foram
distribuídas a todos os sindicatos do país, e a zero hora do dia 5 a greve pipocou em
várias regiões do Brasil.
O significado histórico desta greve está ligado às lutas decisivas travadas sob o
governo de João Goulart no primeiro ano após sua posse, quando este ainda se batia
pela recuperação dos poderes que lhe haviam sido tolhidos pela emenda constitucional
parlamentarista, aprovada de forma casuística pelo acordo que garantiu a sua posse em
setembro de 1961. Nas páginas seguintes veremos em que condições do processo
político brasileiro eclodiu a primeira paralisação de caráter nacional da classe
trabalhadora brasileira.454
4.1 A queda do Gabinete Tancredo Neves e a articulação da greve
política
Em junho de 1962 a crise política brasileira voltava à superfície, reabrindo as
fissuras do frágil acordo que engendrou o parlamentarismo na crise de agosto/setembro
454 Entendendo por classe trabalhadora o conjunto dos assalariados que se opõem ao capital no processode acumulação capitalista. Nossa ênfase na dimensão classista decorre do fato de que algumas categoriasespecíficas da classe trabalhadora brasileira já terem realizado paralisações nacionais anteriormente,como os bancários em 1946, e os ferroviários, marítimos e portuários em 1960. Em 1962 temos ummovimento nacional da classe trabalhadora, envolvendo trabalhadores da iniciativa privada, comometalúrgicos, têxteis, bancários, garçons, condutores de transportes urbanos, aeroviários e aeronautas,além de trabalhadores em empresas estatais como operários da Petrobrás, ferroviários, portuários emarítimos, além de funcionários públicos e bancários da rede pública.
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do ano anterior. A instituição de um sistema de gabinete em um regime político baseado
na Carta presidencialista de 1946, saída conciliatória para evitar que a crise provocada
pela renúncia de Jânio Quadros desembocasse numa guerra civil, não poderia gerar
outros frutos senão uma nova crise. O próprio gabinete parlamentarista era um celeiro
de crises, já que formado no espírito de uma inexistente união nacional, com os maisrepresentativos partidos ocupando pastas, inclusive a própria UDN, com Virgílio
Távora (Viação e Obras Pública) e Gabriel Passos (Minas e Energia). O PSD ocupou as
pastas da Educação (Antônio de Oliveira Brito), Armando Monteiro Filho (Agricultura),
Ulisses Guimarães (Indústria e Comércio), além da própria presidência do Conselho de
Ministros (Tancredo Neves); enquanto o PTB, partido de Goulart, ficaria com a mesma
quantidade de pastas que a UDN, com o Exterior (San Tiago Dantas) e Saúde (Estácio
Souto Maior). Além desses, o Partido Democrata Cristão (PDC) ocupou o Ministério do
Trabalho (Franco Montoro), ficando a Fazenda com o banqueiro (sem partido) ValterMoreira Sales. Por sua vez, as sensíveis pastas militares ficariam sob o comando do
general Segadas Viana (Guerra), o almirante Ângelo Nolasco (Marinha) e o brigadeiro
Clóvis Travassos (Aeronáutica).
À medida que o meio do ano de 1962 se aproximava, o primeiro gabinete
parlamentarista preparava-se para se demitir. De acordo com a híbrida fórmula
institucional vigente, os postulantes às eleições de 7 de outubro daquele ano deveriam
se desincompatibilizar, e esse era o caso do próprio Tancredo, que havia perdido as
eleições para o governo de Minas Gerais em outubro de 1960 para o udenista Magalhães
Pinto, e pretendia candidatar-se à Câmara Federal. Tancredo havia assumido o cargo de
primeiro-ministro sem estar no exercício de qualquer cargo eletivo, e, como condição
para sua carreira política, precisava eleger-se à Câmara Federal.
Goulart precisava indicar um nome que ao mesmo tempo fosse de confiança e
compartilhar de seus confessados propósitos de liquidar o sistema parlamentar, 455 e,
mais que isso, pudesse ser aprovado pela maioria conservadora da Câmara Federal. O
nome escolhido foi o do titular da pasta do Exterior, o empresário e trabalhista mineiro
San Tiago Dantas, que despertava de grande respeito entre os setores da esquerda
nacionalista por sua postura em defesa da continuidade da chamada “política externa
independente” (iniciada por seu antecessor, o udenista Afonso Arinos de Melo Franco),
455 Isso obviamente não pode ser considerado por analistas políticos como Argelina Cheibub Figueiredo,que, como vimos no primeiro capítulo desta tese, lamenta o fato de Goulart não ter “aproveitado aoportunidade” de, sob o parlamentarismo, “negociar com o Congresso” uma “agenda reformista”.
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motivo pelo qual era mal visto entre os círculos de direita, em especial aqueles que já
vinham se movimentando por um golpe de Estado. Sua candidatura não era um mero
improviso. Por sua atuação como Chanceler, San Tiago havia passado por um teste no
Congresso no fim de maio daquele ano de 1962, quando a moção de censura à política
externa independente, apresentada pelo deputado Eurípedes Cardoso de Meneses(UDN-GB), foi rejeitada por 131 votos contra 44.456
Entre os atos mais significativos da gestão de San Tiago Dantas esteve o
reatamento de relações diplomáticas com a URSS, em fins de 1961, e a postura
neutralista adotada na conferência da Organização dos Estados Americanos (OEA), em
Punta del Este (Uruguai), quando o Brasil impediu que fosse aprovada uma intervenção
militar na República Socialista de Cuba.457 Na relação de forças no parlamento, a Frente
Parlamentar Nacionalista (FPN) moveria suas baterias para a aprovação da indicação
feita por Jango, enquanto a caixa de ressonância do complexo IPES/IBAD, a AçãoDemocrática Parlamentar (ADP), acusava San Tiago Dantas de ser um “aliado do
comunismo internacional”.
Ao mesmo tempo, nos meios militares o debate político estava extremamente
intensificado. Não só em razão da clara divisão dentro da cúpula da oficialidade em
relação à postura do setor golpista que no ano anterior pretendera violar a Constituição.
Mas também em razão de que em meados deste ano estas divisões começariam a ficar
mais claras, com a realização das eleições para a renovação da diretoria do Clube
Militar, instituição que já vimos ser significativa da “opinião” da caserna sobre a luta
política nacional. Encabeçando a chapa nacionalista, o general Peri Bevilaqua seria
derrotado pelos setores identificados com o golpismo da UDN, liderados pelo general
Augusto da Cunha Magessi. Na campanha da chapa vencedora, o espectro do
comunismo seria imputado pelos apoiadores de Magessi à chapa nacionalista, e não foi
por acaso que após ser derrotado (e de ter denunciado a fraude no processo eleitoral do
Clube Militar),458 Peri tenha sido um dos generais que vieram a público para denunciar
456 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 de maio de 1962, capa.457 Ao lado do Brasil, também se posicionaria a Argentina do presidente Arturo Frondrizi (1958-1962),cujo governo acabaria vítima de um golpe “gorila” alguns meses depois (29 de março de 1962).458 Esta eleição é estudada com profundidade na dissertação de Mestrado em História de Rachel MottaCardoso. De acordo com esta pesquisadora, “O resultado foi considerado fraudulento e gerou uma sériede ações judiciais visando a anulação do pleito, todas, contudo, frustradas. A vitória da chapa associada àCruzada Democrática significou um êxito também dos setores militares e civis que conspiravam contra o
presidente João Goulart.” CARDOSO, Rachel Motta. Depois, o golpe: as eleições de 1962 no Clube Militar . Dissertação de mestrado em História. Rio de Janeiro, UFRJ, 2008, p.13.
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que o anti-comunismo estava sendo utilizado para criar as condições para a instalação
de um regime ditatorial no Brasil.
Entretanto, seriam os pronunciamentos contundentes do general Osvino Ferreira
Alves, comandante do I Exército (sediado no então estado da Guanabara), feitos nos
meses de maio e junho de 1962, que iriam repercutir positivamente entre os setores daesquerda nacionalista.459 O jornal O Bancário, do sindicato da Guanabara
(hegemonizado pelo PCB), estamparia a foto do general Osvino em sua edição de 30 de
maio, reproduzindo na íntegra um de seus pronunciamentos em que denunciava um
movimento
“que já encontrou similares de triste memória na Itália com o fascismo elogo após na Alemanha com o nazismo – tem por finalidade apossar-sedo poder para estabelecer em nossa terra uma ditadura de direita. Amesma ditadura que se tentou implantar no país em 25 de agosto do ano
passado e nos dias subsequentes e que encontrou o repúdio dos bravossoldados do Brasil.”460
Segundo a denúncia, estava-se utilizando o “pretexto de combater o comunismo” para
perseguir oficiais.461
Por sua vez, através da imprensa, os generais de direita denunciavam a
“infiltração comunista” nos mais altos postos do governo e na própria “cúpula das
Forças Armadas”, como fizeram os generais Arthur da Costa e Silva, Taurino de
Rezende e Souza Aguiar, no que eram apoiados pelas declarações de Carlos Lacerda e
nos editoriais da imprensa golpista.462 Na edição de 1º de junho, O Globo exibiu a
manchete “ALERTA CONTRA A AMEAÇA COMUNISTA” “Exército, Marinha e
Aeronáutica relevarão o perigo que pesa sobre a Nação.” Pela chamada parecia ser um
posicionamento da cúpula das Forças Armadas, entretanto, na verdade, a reportagem
falava de um relatório elaborado pelos comandos da 8ª Região Militar, do 4º Distrito
Naval e da 1ª Zona Aérea, chefiadas, respectivamente, pelo General Estevam Taurino
459 “General Peri: Bicho-Papão do anticomunismo ameaça a Constituição” e “Gen. Osvino: trama golpista para implantar ditadura no País.” Novos Rumos, Rio de Janeiro, 1 a 7 de junho de 1962, p.3 e 8. Fundo
Roberto Morena, Arquivo da Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ).460 “Defesa das liberdades.” O Bancário, Rio de Janeiro (GB), 30 de maio de 1962, capa. BibliotecaAloísio Palhano do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro.461 Esta perseguição a que o general Osvino se refere foi uma das decorrências do processo de disputainterna à oficialidade (que já repercutia nos seus subordinados, que tendiam a, quando mobilizados,direcionar-se à esquerda), no qual desafetos eram deslocados para regiões afastadas dos centros políticos,com o propósito de isolá-los de tropas e influência política. Assim, enquanto o I e III Exércitos estavamem mãos de nacionalistas como Osvino e o general Jair Dantas Ribeiro, respectivamente, o IV Exército,sediado em Recife, era comandado pelo golpista general Arthur da Costa e Silva, enquanto o II Exércitoestava sob o comando do general Nelson de Melo, que posteriormente se juntaria ao esquema do IPES.462 Editorial “Nem Golpismo, Nem Conciliação.” Novos Rumos, 8 a 14 de junho de 1962, capa.
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de Rezende, Vice-Almirante José Luís da Silva Júnior e Major-Brigadeiro Francisco de
Oliveira Borges. Direcionava-se aos ministros das três armas, e afirmava terem
conhecimento de um “plano comunista para ocupar 5 milhões de quilômetros
quadrados, mais da metade do Brasil, com vistas a tomada do poder”.463
Peri Bevilaqua referiu-se à campanha contra a sua chapa ao Clube Militar, quevisava associar o “nacionalismo” com o “comunismo”, como uma espécie de versão do
“marccarthismo sepultado nos Estados Unidos ressuscitada entre nós, na forma sul-
americana do golpismo”.464 Por sua vez, o jornal O Globo o atacou: “O merecido
respeito que nos inspira as virtudes do General Peri Bevilaqua não nos inibe de
estranhar as últimas declarações por ele feitas à imprensa, a propósito do resultado das
eleições para a presidência do Clube Militar.”465
Ao mesmo tempo, jogando na intriga dentro da oficialidade militar, O Globo
produziu um factóide sobre uma suposta censura ao general Osvino Ferreira Alves,Comandante do I Exército, feita pelo Ministro da Guerra, general Segadas Viana. Isso
porque no dia 27 de junho Osvino fez um discurso perante a tropa do Primeiro Grupo de
Canhões Automáticos Antiaéreos, no qual mais uma vez afirmou que, sob o pretexto de
combater o comunismo, forças de direita estavam interessadas no enfraquecimento das
Forças Armadas e do Governo. Em face disto, O Globo buscou passar a impressão de
que Osvino fora repreendido pelo Ministro da Guerra (gen. Segadas Viana), mas esse
factóide só serviu para que o jornal carioca conseguisse arrancar uma entrevista
provocativa com o Comandante do I Exército, cujas primeiras perguntas são
sintomáticas dos compromissos golpistas do periódico:
“O GLOBO – Têm fundamento as informações que correm sobre anecessidade de uma ditadura militar para o Brasil com vistas a conter asituação geral do País?Gen. OSVINO – Não creio, absolutamente, na necessidade daimplantação de ditaduras no Brasil. E creio mesmo que o povo brasileironunca consentirá que tal coisa venha a ocorrer.O GLOBO – A dominação de elementos esquerdistas nos sindicatos estáconduzindo estes órgãos de reivindicações naturais à posição de
entidades revolucionárias. Há mesmo um ambiente pré-revolucionárioque se estaria infiltrando nas classes armadas, especialmente no Exército.Têm fundamento as notícias sobre essas infiltrações?
463 O Globo, 1º de junho de 1962.464 Jornal do Brasil, 30 de maio de 1962, p.3465 Editorial: “Recordem o Banho de Sangue de 1935!” O Globo, 1º de junho de 1962.
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Gen. OSVINO – Posso afirmar que boatos ou notícias de infiltraçãocomunista nas classes armadas não têm fundamento. E é por isso que nãome alarmo com as constantes notícias em contrário.”466
Outros factóides do jornal carioca neste período relacionavam-se às supostas
“técnicas de infiltração” que os comunistas estariam aplicando no Brasil. EntrevistandoHerman Goergen, presidente da Sociedade Teuto-Brasileira e ex-deputado federal da
República Federal Alemã, este enunciou o que seriam os “seis passos” do plano
comunista para a tomada do poder.467 Segundo o ex-parlamentar, o “roteiro” para a
“tomada do poder” seria universalmente aplicado pelos comunistas, tendo sido
apresentado no livro Assalto Geral ao Parlamento, de Jan Kozak, membro do
Secretariado-Geral do Partido Comunista da Tcheco-Eslováquia, e seria a mesma
técnica aplicada na Rússia, Polônia, Romênia, Bulgária, Tcheco-Eslováquia, Hungria e
Cuba. O livro de Kozak, editado pelo IBAD no Brasil468 no primeiro semestre daqueleano, e publicado em fac-símile pelo próprio O Globo,469 é uma das peças da propaganda
anti-soviética mais divulgadas naquele contexto.
Os seis pontos seriam: 1) Pressão do partido por reformas sociais, “geralmente
justas, que contam com o apoio popular”. Através de suas minorias militantes, os
comunistas provocam tumultos e agitações, gerando crises políticas; 2) Os governos
acabam cedendo às pressões levando à formação de governos de “união nacional”,
forçando a presença dos comunistas. O objetivo desta fase é o controle das instituições
encarregadas do interior do país e os aparelhos de comunicação; 3) Dividir a classe
média entre uma “burguesia progressista” e outra formada por “traidores da pátria”,
formando assim um “esquema de pressão”; 4) Expurgo e debilitação da burguesia; 5)
Nacionalização das indústrias e bancos, eliminação da Igreja, da Justiça e das tradições
culturais; 6) Por fim, a instituição do partido único e de um processo eleitoral
fraudulento, que sempre garante a vitória do Governo. Com esse tipo de “reportagem”,
O Globo visava convencer seus leitores de que estava em curso no Brasil tal tipo de
manobra.
466 O Globo, 29 de maio de 1962, p.2.467 O Globo, 4 de junho de 1964.468 KOZAK, Jan. O assalto ao parlamento. Rio de Janeiro: IBAD, 1962. Voltaremos a ele no próximocapítulo.469 Uma interessante discussão sobre a importância desse panfleto está em MOTTA, Rodrigo Patto Sá.Em guarda contra o “Perigo Vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva;FAPESP, 2002, p.248.
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Se é notório que, ao contrário destas fantasias, os comunistas brasileiros não
estavam nenhum pouco dedicados a organizar uma insurreição revolucionária, de fato,
no plano nacional se dava o fortalecimento das posições do PCB na relação de forças
políticas nacionais, em especial no tocante ao reconhecido peso que os comunistas
possuíam nos movimentos sociais e na intelectualidade. E não foi por acaso que o apoiodo PCB ao nome de San Tiago Dantas para o cargo de presidente do Conselho de
Ministros Parlamentarista esteve ligado aos compromissos públicos que este assumiu
com a legalização do Partido.470 Deste modo, claramente, o PCB ligou o nome de San
Tiago Dantas à formação de um “gabinete democrático e nacionalista”, formulação que,
já vimos, vinha pelo menos desde a Declaração de Março de 1958, mesmo ano em que o
PCB fez sua guinada programática reformista e o PTB estabeleceu relações mais ou
menos públicas com os comunistas. A direita soube muito bem aproveitar o ensejo para
ligar mais uma vez Dantas aos comunistas, mas o fato é que não era certamente umesquerdista.471 Todavia, com o acirramento da campanha anticomunista – que em abril
de 1962 expressou-se no atentado terrorista do Movimento Anti-Comunista (MAC) de
Carlos Lacerda à exposição soviética –,472 a campanha para marcar o Chanceler
demissionário como “influenciado pelos comunistas” ganhou a maioria conservadora
dos parlamentares. Mesmo assim Goulart insistiu em indicá-lo, e no dia 28 de junho o
nome de San Tiago Dantas foi recusado por 172 votos contra 111.
De acordo com René Dreifuss, a campanha que levou a que a Câmara dos
Deputados recusasse o nome do trabalhista mineiro foi uma das mais marcantes ações
da ADP na oposição ao bloco nacional-reformista.473 Isto porque, segundo esse autor, o
nome de San Tiago Dantas teria representado a última chance de Goulart compor um
governo “consensual liderado pela burguesia”, de modo que o episódio significou um
470 Na ocasião, pedida por Luís Carlos Prestes ao TSE coincidentemente no mesmo dia da greve geral de julho, após colher mais de 50 mil assinaturas, conforme requeria a legislação eleitoral.471 É de sua lavra a distinção, posteriormente adotada por Thomas Skidmore no livro Brasil, de Getúlio àCastelo, entre a “esquerda positiva” – que englobaria ele próprio e outros setores moderados – e a“esquerda negativa” – que compreenderia figuras como Brizola, Julião e o movimento sindical.472 Em 18 de maio de 1962, durante a Exposição da URSS, no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro,
uma bomba foi deixada no cinema da exposição, mas a mesma não explodiu, tendo o mecanismo falhadoantes que um funcionário da chancelaria russa localizasse o artefato, que estava programado para explodiràs 22hs. Às 21hs o mecanismo emperrou, o que sustou o atentado terrorista que, do contrário, poderia tervitimado milhares de pessoas que lotavam a Exposição. O Globo apoiou e divulgou as explicações dadas
pelas autoridades policiais da Guanabara, mas é sabido que tal atentado fora planejado na Secretaria deSegurança Pública do governo de Carlos Lacerda. Ver as edições de O Globo dos dias 21, 22 e 23 demaio de 1962. Neste ano esse foi o terceiro atentado do MAC: o primeiro foi a sede da missão comercialsoviética, na rua Alice, Rio de Janeiro, e o segundo a sede da UNE, na Praia do Flamengo, na mesmacidade.473 Segundo Dreifuss, o IBAD aclamou a posição da Câmara como uma “grande vitória conduzida pelaADP”. Ação Democrática, julho de 1962, p.6-7, apud DREIFUSS, 1964, op. cit., p.323.
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sinal claro de que a classe dominante rejeitava um composição com o trabalhismo
reformista.474
4.2 A montagem do dispositivo grevista
Ainda no início de junho, diversos líderes sindicais haviam declarado publicamente que estaria sendo preparada uma greve geral para apoiar a indicação de
San Tiago Dantas, que, acreditavam, seria capaz de constituir um “gabinete nacionalista
e democrático” que tivesse como programa a realização das reformas de base.
Percebendo as iniciativas tomadas pela direita no sentido de impor um gabinete
conservador a Jango, a esquerda sindical começou a aprofundar suas articulações com
vistas a construir um dispositivo grevista que funcionasse em apoio ao movimento
nacionalista e em oposição a uma nova tentativa de golpe. No início deste mês,
lançaram um manifesto na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) que colocava a
possibilidade de deflagração de uma greve geral pela formação de um gabinete
nacionalista, com elementos da FPN que tivessem compromisso com as reformas de
base, e medidas imediatas de caráter econômico, como a revisão do salário mínimo e a
aprovação da lei que instituía o abono de Natal.475
Em 4 de junho San Tiago Dantas foi a uma solenidade no Sindicato dos
Metalúrgicos da Guanabara, organizada pelas entidades sindicais do estado e onde
proferiu uma conferência sobre a política externa. Conforme noticiou a imprensa
sindical carioca,476 a massa operária que lotou as dependências da entidade aplaudiu
entusiasticamente o Chanceler, que também pôde ouvir do presidente em exercício da
CNTI, Dante Pelacani, um manifesto em que era exigida a formação de um Conselho de
Ministros “democrático e nacionalista”, capaz de realizar as tais “reformas de base”. E
no mesmo documento em que se denuncia a existência de rumores sobre um golpe
direitista, é anunciada a realização de uma greve geral para pressionar as instituições a
repelirem tal ameaça.
474 San Tiago Dantas continuaria a buscar angariar o apoio da burguesia ao governo Goulart, envolvendo-se posteriormente na elaboração – ao lado de Celso Furtado – do Plano Trienal, até a tentativa deformação de uma “Frente Ampla em apoio às Reformas de Base”, que envolveria desde quadros do PSDaté o PCB. Em todas essas tentativas, fracassou.475 Novos Rumos, Rio de Janeiro, 1 a 7 de junho de 1962, p.1. Consultado no Arquivo da MemóriaOperária do Rio de Janeiro (AMORJ). O Semanário, 21 de junho de 1962, p.2. Consultado na Biblioteca
Nacional (RJ).476 O Bancário, Rio de Janeiro, 13 de junho de 1962, p.4. Biblioteca Aloísio Palhano do Sindicato dosBancários do Rio de Janeiro.
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E num ato público realizado no Palácio dos Metalúrgicos em São Paulo, no dia 5
de junho (em que o Chanceler também conferenciou), Pelacani leu o mesmo manifesto
em que afirmava que, tal como haviam feito na Crise da Legalidade no ano anterior, os
trabalhadores fariam uma “greve geral, com maior experiência, com mais unidade, com
mais firmeza e com mais organização, unidos a todo o povo, às forças patrióticas edemocráticas em nossa pátria”. Acabava conclamando todos os trabalhadores e suas
organizações a se reunirem em assembleias, mesmo nos “locais de trabalho”,
organizando atos públicos, com vistas à preparação de uma greve geral. Conclui assim o
manifesto:
“Assim como fizemos em 25 de agosto de 1961, faremos agora a grevegeral, com maior experiência, com mais unidade, com firmeza e commais organização, unidos a todo o povo, às forças patrióticas edemocráticas de nossa pátria. Estamos alertas e organizandos nos locais
de trabalho e nos sindicatos, as nossas forças. Não seremos colhidos desurpresa. Estamos denunciando os manejos antinacionais eantidemocráticos, para unir num só movimento os que lutam por umgoverno formado pelas forças nacionalistas e democráticas, apoiado nostrabalhadores e no povo, que realize as necessárias e imprescindíveisreformas de base.
Conclamamos a todos os trabalhadores e suas organizações arealizarem assembleias e reuniões nos locais de trabalho; organizarematos públicos, para examinar a situação que atravessa o país e envidarem,desde já, todos os esforços na preparação da greve geral, para serdesencadeada no momento em que ela se torne necessária, sob ocomando de suas organizações.”477
Existem fortes indicações de que o líder sindical trabalhista circulou por outros
estados brasileiros com o mesmo propósito. Em Recife, por exemplo, principal centro
político nordestino, o semanário comunista A Hora de meados daquele junho estampou
a manchete “Greve geral no país contra golpe”, onde são narradas reuniões e
assembleias sindicais, como a ocorrida no Sindicato dos Tecelões de Pernambuco, onde
também Dante Pelacani compareceu para defender a montagem do dispositivo sindical
grevista.478
Segundo Jover Telles, encarregado da área sindical do semanário comunista Novos Rumos, no dia 22 de junho, durante uma manifestação nas escadarias do Palácio
Tiradentes no Centro do Rio, o manifesto lido por Pelacani no início do mês já contava
477 Transcrito em TELLES, Jover. O movimento sindical no Brasil. São Paulo: Livraria Editora CiênciasHumanas, 1981, p.151-152.478 A Hora, Recife, 9 a 15 de junho de 1962, p.1 e 7. Hemeroteca do Arquivo Público Estadual dePernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).
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com a subscrição de mais de 1.300 entidades de todo o país.479 Manifesto similar
apareceu no dia 14 de junho, só que já assinado também pelos representantes da
CONTEC, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Marítimos,
Fluviais e Aéreos (CNTTMFA), além das federações nacionais de estivadores,
portuários, marítimos, arrumadores, ferroviários, os sindicatos nacionais dos aeroviáriose aeronautas, e a União dos Portuários do Brasil e a CPOS da Guanabara. No dia 25 de
junho ocorreu um comício na Praça da Sé (SP) com cerca de 10 mil pessoas, e no dia
seguinte uma passeata na Guanabara. Também por esses dias centenas de sindicalistas
foram a Brasília reclamar no Senado a aprovação do abono de Natal e do salário família
(cujos projetos de lei já haviam passado pelo crivo da Câmara no ano anterior),
aproveitando a ocasião para expressarem sua posição ante a formação do novo
gabinete.480
É certo que elementos ligados a Goulart também fomentaram a “ameaça degreve geral” como forma de pressionar os setores conservadores do Congresso a
aceitarem o nome de Dantas. Mas são muitas as evidências de que Jango não desejava a
greve. Pelegos como Gilberto Crockatt Sá, assessor sindical de Jango, acompanhavam a
movimentação dos líderes operários. Mas os comunistas e os elementos de esquerda do
PTB não tinham grande confiança em figuras como essa.481 Outros também apelariam
479 TELLES, op. cit., p.152.480 Novos Rumos, Rio de Janeiro, 29 de junho a 5 de julho de 1962. A campanha por estes direitos sociais
se estendia desde o ano anterior, quando o movimento operário paulista tentou organizar uma greve geralem dezembro de 1961. O movimento malogrou ante a violenta repressão do governo Carvalho Pinto,apoiado pelos ministros da Justiça (Alfredo Nasser) e do Trabalho (Franco Montoro), e naturalmente pelaFIESP, quando a força pública do estado de São Paulo realizou centenas de prisões de sindicalistas. Mas,como esclarece o historiador Murilo Leal Pereira Neto, o movimento não pareceu “intimidar-se com ofracasso da paralisação”, retomando uma agenda de mobilizações que culminaria com a assinatura da lei
por Goulart em 13 de julho de 1962. O Senado só aprovou a lei no dia 27 de junho. Em nossa opinião, agreve de julho de 1962 foi decisiva para a conquista deste direito. Ver PEREIRA NETO, A reinvenção dotrabalhismo no “vulcão do inferno”, op. cit., p.276-287. CORRÊA, Larissa Rosa. “Abono de Natal:gorjeta, prêmio ou direito? Trabalhadores têxteis e a Justiça do Trabalho.” Esboços, Florianópolis, v.20,n.16, p.12-30, 2006. MELO, Demian Bezerra de. “Greve geral e direitos do trabalho no Brasil: o caso do13º salário.” In. MARCONSIN, Cleier & MARQUES, Maria Celeste Simões (orgs.). Trabalho e Direitos:Conquistas e retrocessos em debate. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2013, p.13-28.481 Isto também é relatado nas memórias de significativos elementos do sindicalismo de esquerda, como
no livro A caixa-preta do golpe de 64, do comandante Paulo de Mello Bastos, onde ele revela como, naverdade, Jango queria que seu assessor na área sindical fosse o Clodsmidt Riani, sindicalista de Juiz deFora e eleito presidente da CNTI no final de 1961. Foi a eleição de Riani que significou o alijamento do
pelego histórico Deocleciano de Holanda Cavalcanti – que se dirigia ao sindicato de Cadillac – e aascensão do sindicalismo de esquerda na entidade, que se tornou um importante apoio institucional amuitas lutas e culminou na criação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) em agosto de 1962. Noano seguinte, Crocaktt de Sá se aliou a Holanda Cavalcanti para combater a influência do CGT no meiosindical. Ver MELLO BASTOS, Paulo de. A caixa-preta do golpe de 64. A república sindicalista que nãohouve. Rio de Janeiro: Família Bastos Editora, 2005. Ver também REZENDE PAULA, Hilda &ARAÚJO CAMPOS, Nilo (orgs.). Clodesmidt Riani: trajetória. Juiz de Fora: Funalfa Edições; EdUFJF,2005.
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para que as lideranças do movimento operário descartassem o recurso à greve política,
como foi o caso do próprio San Tiago Dantas. Segundo uma reportagem do Jornal do
Brasil, ao desembarcar no Aeroporto Santos Dumont no Rio de Janeiro, logo após ter
seu nome recusado pelo Congresso, o ex-titular da Pasta do Exterior “fez um apelo aos
líderes sindicais para que não seja promovida greve alguma por motivo do veto daCâmara à sua indicação para Primeiro-Ministro”.482
Como já dissemos, a ideia original era que a greve ocorresse para forçar o
Congresso a aceitar o nome do ex-Chanceler. Entretanto, exceto na capital baiana, não
houve sinal de greve no momento imediato ao veto ao nome de San Tiago Dantas. Em
Salvador, o que seria uma simples manifestação da esquerda nacionalista em desagravo
a Goulart (e contra a carestia de vida), acabou em mais um ato de truculência desmedida
do governador udenista Juracy Magalhães. Segundo um telegrama enviado da Bahia ao
Sindicato dos Bancários de Pernambuco, “a repressão se deu com o espancamento devários populares e do próprio presidente da Comissão Permanente das Organizações
Sindicais, [o] bancário Raimundo Reis”.483 Em reação, foi decretada greve geral de 24
horas em toda a cidade de Salvador, paralisando principalmente marítimos, portuários,
bancários e operários do petróleo.484
O episódio repercutiu em todo o meio sindical do país.485 Em um Boletim
reservado da Polícia Política da Guanabara,486 encontramos a menção a este caso com a
reprodução de um manifesto assinado pela Comissão Permanente de Organizações
Sindicais (CPOS) da Bahia, o Pacto de Unidade Operário-Estudantil-Camponês, União
dos Estudantes da Bahia e uma série infindável de organizações sindicais baianas,
documento apreendido pelos “meganhas” cariocas.487 O manifesto associa a truculência
482 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de junho de 1962, p.1.483 Última Hora, Recife, 29 de junho de 1962, p.2.484 E de acordo com reportagem do Jornal do Brasil, “O Sindicato dos Bancários do Norte e Nordestetelegrafou ao Governador Juraci Magalhães protestando contra as violências policiais que atingiram olíder bancário Raimundo Reis. Em resposta, o Governador afirmou que “o telegrama falseia a verdade, aoexplicar as causas dos incidentes”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 de junho de 1962, p.3.485 “Greve de bancários na Bahia em defesa das liberdades e por um gabinete nacionalista.” O Bancário,
Rio de Janeiro (GB), 29 de junho de 1962, capa. Biblioteca Aloísio Palhano do Sindicato dos Bancáriosdo Rio de Janeiro.486 Boletim Reservado, n.112, 2 de julho de 1962. Fundo Polícias Políticas. Arquivo Público do Estado doRio de Janeiro (APERJ), Rio de Janeiro (RJ). Voltaremos a um exame mais detalhado destadocumentação policial no próximo capítulo.487 São elas: Federação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas da Bahia; União dos Ferroviários daBahia; Federação dos Empregados do Comércio da Bahia e Sergipe; Sindicato dos Empregados emEstabelecimentos Bancários da Bahia; Sindicato Nacional dos Marinheiros; Associação dos Lavradores eTrabalhadores Agrícolas; Sindicato Nacional dos Foguistas da Marinha Mercante; Sindicatos dosEmpregados na Extração do Petróleo da Bahia; Sindicato dos Operários Portuários da Bahia; SindicatoAssociação Profissional dos Ferroviários da Bahia; Sindicato Nacional dos Taifeiros; Sindicato dos
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da polícia baiana no dia 27 de junho à oposição do governador Juracy Magalhães
(UDN) à “realização das reformas de base”, hipotecando total solidariedade às vitimas
da violência governamental, em particular à sofrida pelo líder bancário e presidente em
exercício da CPOS baiana, Raimundo Ramos Reis, que havia sido brutalmente
espancado. A greve geral de protesto em Salvador ocorreu a partir do meio dia de 28 de junho, seguida por um comício no fim da tarde na Praça Castro Alves, centro da capital
baiana.
Voltando ao cenário carioca, no mesmo dia em que a Câmara rejeitava o nome
de San Tiago Dantas, e na Bahia o governador colocava a Polícia Militar para reprimir
uma manifestação popular, os dirigentes da CNTI, CONTEC, CPOS-Guanabara e o
PUA realizaram uma reunião extraordinária com a participação de todos os dirigentes
sindicais da Guanabara e também de representantes de entidades de São Paulo, Minas
Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Paraíba. Da reunião, o já agora formadoComando Nacional de Greve divulgou um manifesto em que era reafirmada a
disposição de realizar uma greve geral para que fosse formado um Gabinete
“democrático e nacionalista”. 488 Só que o sentido da prometida greve não seria mais o
mesmo.
4.3 Auro Moura Andrade
Alguns dias depois, quando o Comando Geral de Greve se reuniu naquela tarde
de 4 de julho, Goulart já havia feito sua segunda indicação ao Congresso Nacional, o do
senador pessedista por São Paulo, Auro Moura Andrade. O senador havia sido um dos
artífices da posse constitucional de Goulart sob o parlamentarismo, entretanto era
claramente pertencente às hostes mais à direita do PSD, não sendo por acaso que
assumiu posição golpista na crise de março/abril de 1964.489 Segundo Jover Telles, o
nome do senador paulista teria surgido de uma reunião realizada entre as cúpulas da
Metalúrgicos da Bahia; Sindicato dos Comerciários da Bahia; Sindicato dos Oficiais Eletricistas de
Salvador; Sindicatos dos Trabalhadores nas Indústrias de Carnes e Derivados; Sindicato dosTrabalhadores em Óleos Vegetais; Sindicato dos Empregados em Hotéis e Restaurantes; Sindicato dosTrabalhadores na Indústria da Panificação; Sindicato dos Marceneiros; Associação Profissional dosEmpregados da Universidade da Bahia; Associação dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias;Sindicato dos Empregados em Carris Urbanos da Cidade de Salvador; Sociedade Protetora dos Moradoresda Boca do Rio; Associação Profissional dos Empregados em Farmácias; Sindicato dos Motoristas daMarinha Mercante.488 “Trabalhadores reafirmam: Gabinete nacionalista para solução da crise.” O Bancário, Rio de Janeiro(GB), 29 de junho de 1962, p.3. Biblioteca Aloísio Palhano do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro.489 Foi ele que declarou “vaga a Presidência da República” em sessão tumultuada que sacralizou o golpede Estado no Congresso.
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UDN e do PSD com o próprio Goulart, ladeado pelo senador por Goiás e ex-presidente
Juscelino Kubitschek e o governador gaúcho, Leonel Brizola.490 Diante destes
acontecimentos, em todos os meios sindicais surgiram protestos pelo fato das forças
populares não terem sido escutadas na articulação da nova indicação. Que seja
ressaltado que o protesto era dirigido a todos esses personagens, e não só à direita parlamentar. Entretanto, não resta dúvida de que o propósito de Goulart não era o de
empossar Moura Andrade na presidência do Conselho de Ministros, mas, numa
manobra certamente arriscada, desgastar o próprio parlamentarismo (e arrancar do
Congresso Nacional a antecipação da realização do plebiscito sobre o novo sistema de
governo). Vejamos isso mais de perto.
A direita apoiou ostensivamente o nome do presidente do Senado, pois
acreditava ser possível, através dele, impor um gabinete totalmente alheio ao presidente
Goulart. Seria um aprofundamento do “golpe branco” parlamentarista. E de fato, aodiscursar perante a Câmara dos Deputados no dia 2 de julho, apresentando o que seriam
as linhas gerais de seu governo, Moura Andrade deixou claro que não desejava
compartilhar o poder com Jango:
“O Senhor Presidente da República, no cumprimento do Ato Adicionalno4, indicou o Primeiro Ministro e a este cabe, na forma constitucional,escolher os que devem compor o Conselho Governativo da Nação.
Não considerado eu desmerecedora (sic) uma recusa ao meunome por motivo de minhas convicções; mas não aceitaria, em nenhumahipótese, a minha aprovação por mais generosa que ela fosse, paraexercer nominalmente a chefia de um gabinete.
Se aprovado pela Câmara dos Deputados, imediatamenteiniciarei as consultas indispensáveis à formação do Ministério, com amais ampla liberdade, com a mais ampla autoridade, sem o menorconstrangimento, no uso pleno das prerrogativas que o posto meconfere.”491
Além disso, o programa de governo apresentado anunciava que a prioridade número 1
seria o combate à inflação, no que anunciou medidas muito duras:
“Bem sei que as medidas a serem tomadas serão, por certo, impopulares,
mas há momentos na vida de um povo em que o seu governo precisaarrostar todos os riscos de mal querença e de incompreensão, para salvá-lo do naufrágio e merecer o respeito dos homens do futuro.”492
490 Telles caracteriza essa escolha entre as cúpulas políticas como um verdadeiro “cambalacho”. TELLES,op. cit., p.159.491 Diário do Congresso Nacional, Brasília, 3 de julho de 1962, Seção I, (Suplemento), p.27, grifosnossos.492 Idem, ibidem.
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Moura Andrade também descartou qualquer compromisso com uma das pretensões de
João Goulart naquele momento, que era a mais breve possível realização de um
plebiscito sobre a continuidade ou não do parlamentarismo, dispositivo previsto no Ato
Adicional. Surgiram rumores de que Goulart exigiria de Andrade o compromisso com a
antecipação do plebiscito, para que este coincidisse com as eleições de 7 de outubro.Para a imprensa, Andrade desconversou o assunto.493
Em oposição a esta indicação, os parlamentares da Frente Parlamentar
Nacionalista (FPN) denunciaram a manobra para esvaziar os poderes “que ainda
restavam” a Goulart. Antes mesmo da ordem do dia da sessão que elegeu Moura
Andrade, o deputado Lício Hauer (PTB-RS) apresentou uma questão de ordem para
anunciar que havia feito chegar ao conhecimento dos presentes um manifesto assinado
pelas entidades de cúpula do sindicalismo brasileiro, cujo teor era a frontal oposição à
indicação do senador Auro Moura Andrade.494 Por sua vez, a bancada da UDNdenunciou que tal documento era “subversivo”, provocando um bate-boca entre os
parlamentares udenistas e os da FPN. Não obstante a elevação da temperatura em
Brasília, naquele 2 de julho a Câmara dos Deputados aprovou o nome de Moura
Andrade por 223 votos contra apenas 47 (basicamente do PSB e dos setores não
fisiológicos do PTB). Auro Moura Andrade era ostensivamente apoiado por diversos
setores das classes dominantes, como o conjunto das associações comerciais, através da
declaração de seu presidente Rui Gomes de Almeida,495 – que também era elemento
proeminente do IPES no Rio de Janeiro.
Na verdade, em vez de se encaminhar para uma resolução, a nova crise política
só se aprofundava, pois estava claro que a subida de tal gabinete chefiado por Moura
Andrade só poderia significar uma vitória definitiva dos setores que se haviam oposto à
posse de Jango. Para a pasta do Exterior, por exemplo, Moura Andrade havia indicado
Vasco Leitão da Cunha, considerado “entreguista” pelos nacionalistas e contrário à
política externa independente.496 Na área militar, assumiriam os postos de comando
personagens que na crise de agosto se identificaram com posições golpistas. Ao mostrar
a Goulart a composição ministerial de seu gabinete, Moura Andrade recebeu de Jango a
irônica proposta de “nomear para o Ministério do Trabalho o presidente da CNTI,
493 O Globo, Rio de Janeiro, 02 e 03 de julho de 1962.494 Idem, ibidem, p.24.495 O Globo, Rio de Janeiro, 04 de julho de 1962. O título da reportagem foi “As classes produtorasaplaudem a escolha do novo primeiro-ministro”.496 Durante a ditadura, Vasco Leitão da Cunha ocuparia alternadamente a chancelaria e a Embaixada doBrasil em Washington.
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Clodsmidt Riani”. A especulação sobre a possível nomeação de Riani para a pasta
apareceu em um relato do próprio sindicalista mineiro, em depoimento dado a Hilda
Rezende Paula e Nilo de Araújo Campos, quando fala de uma reunião entre este e
Goulart durante essa crise ministerial. Na ocasião, Riani teve de voltar às pressas de
uma conferência internacional da CIOSL, na Alemanha Federal,497
onde era o líder dadelegação da CNTI.498
Segundo outro relato, presente em um Boletim reservado da Polícia Política da
Guanabara, o sindicalista bancário Luiz Viegas da Mota Lima teria presenciado o
presidente da República afirmando que, após o senador paulista apresentar um nome
notoriamente golpista para presidir uma pasta militar (o do Almirante Bardi), Goulart
teria dito que “se me apresentam um nome destes para o Ministério da Marinha, eu
apresento para o Ministério do Trabalho o Sr. Clodsmidt Riani”.499 Moniz Bandeira, que
à época era jornalista do Diário de Notícias e trabalhava como assessor de imprensa dodeputado trabalhista Sérgio Magalhães (PTB-GB),500 não menciona qualquer
especulação sobre o nome de Riani, e narra este episódio em seu já clássico livro O
governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil(1961-1964) como uma bem-sucedida
manobra política de Jango:
“O senador Auro Moura Andrade, do PSD, pretendeu, por sua vez,constituir um gabinete, de acordo com os líderes de partido, e Goulart,
497 Como já vimos no capítulo anterior, a CNTI estabeleceu vínculos orgânicos com a ConfederaçãoInternacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL) já em 1949. Neste Congresso de 1962, adelegação da CNTI compreendia também Benedito Cerqueira e Dante Pelacani, que chegaria a Berlimocidental na semana posterior à greve, e Riani não voltaria mais. Por discordarem da resolução que
pretendia justificar uma intervenção imperialista em Cuba, Cerqueira e Pelacani abandonaram oCongresso, desfiliando a CNTI da CIOSL. Ver MORRIS, A CIA e o movimento operário americano, op.cit. WELCH, “Internacionalismo trabalhista...”, op. cit.498 Conforme um depoimento publicado, só chegando a Brasília no dia em que a greve estava na rua,Riani teve alguma dificuldade junto ao general Amaury Kruel, para conseguir uma audiência com Jango,que após algum impasse acabou lhe recebendo: “Ele estava num divã, muito pálido, porque tinha ficadosem dormir, sem comer direito, nesta situação há vários dias. Quando cheguei, deu um sorriso e falou: ‘ –Pois é, o Ranieri Mazzili está achando que você é um elefante grande para passar na garganta do
Congresso, e o Levi, banqueiro de São Paulo da UDN, nem está falando comigo. Mas está disposto aconversar comigo a esse respeito...’ Para ele falar assim, só se ele estivesse me indicando para oMinistério do Trabalho. Só podia ser. Uma dedução nossa aqui. Mas eu também não dei chance do Dr.Jango falar, não discuti o assunto. Fiz de conta que não escutei.” PAULA, & CAMPOS, Clodesmidt
Riani, op. cit., p.224.499 Boletim Reservado, n.115, 9 de julho de 1962, p.8. Fundo Polícias Políticas, APERJ.500 Além disso, Moniz Bandeira era dirigente da Organização Revolucionária Marxista Política Operária(conhecida como POLOP), tendo produzido brilhantes análises políticas no calor daquelesacontecimentos. Ver BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A renúncia de Jânio Quadros e a crise pré-64.São Paulo: Brasiliense, 1979. Por sua vez, o deputado Sérgio Magalhães era o líder da Frente Parlamentar
Nacionalista no Congresso.
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que obtivera previamente uma carta sua de renúncia, fê-la divulgar, antesmesmo que ele assumisse o cargo de primeiro-ministro.”501
Ou seja, vendo que a constituição de tal Gabinete jogaria por terra todas as suas
pretensões de conseguir a volta do presidencialismo, Goulart jogou a sua “carta na
manga”. Por sua vez, o próprio Moura Andrade, em seu livro de memórias, afirma que,
como a maior parte do PTB havia votado contra sua indicação, estaria obrigado a
“escolher ministros entre as forças políticas que me apoiavam, e isto excluía ou
diminuía excessivamente a participação do Partido governamental”. Assim, alegou que
estava forçado a organizar a oposição a Jango.502
Ainda no dia 3, às 21hs, após Moura Andrade ter apresentado ao presidente da
República algumas de suas indicações, a Rádio Nacional divulgou nota de Goulart sobre
a crise. Jango teria pedido ao Procurador-Geral da República, Evandro Lins e Silva,
para estudar o Ato Adicional, no trecho referente à nomeação do Gabinete, e sua
apresentação ao Congresso (art. 9º). Sua intenção era “não mais transigir”: “Já transigi
duas vezes e não pretendo transigir mais. Perdi a paciência.”503 Enquanto isso, a direita
espalhava a notícia de que Jango queria impor na composição do novo ministério a
presença de Dante Pelacani e Clodsmidt Riani, dois sindicalistas da esquerda do PTB e
aliados dos comunistas no movimento operário, naturalmente apresentados como
“comunistas”.504 Posteriormente, de forma pouco convincente e sem admitir que na
prática fora derrubado, Moura Andrade afirmou em suas memórias que achou “melhor
devolver a indicação ao Sr. Presidente para que enviasse outro nome à Câmara dos
Deputados.” Na realidade, renunciou imediatamente às pressões de Goulart no final da
manhã do dia 4 de julho.
4.4 A direita se movimenta para o aprofundamento do “golpe branco”
Não foram poucos os setores que consideraram a emenda parlamentarista um
“golpe branco”. O eminente jurista baiano João Mangabeira, em uma entrevista
concedida no início de novembro de 1961 ao jornal Diário de Notícias do Rio deJaneiro, afirmou de forma enfática que a Emenda Constitucional No 4 foi um “golpe de
501 BANDEIRA, O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil(1961-1964). 7ª edição revista eampliada, op. cit., p.77.502 ANDRADE, A. M. Um congresso contra o arbítrio. Diários e memórias, 1961-1967. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985, p.119.503 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4 de julho de 1962, p.3.504 Andrade recolhe a informação do diário de seu amigo golpista, gen. Olympio Mourão Filho, o “VacaFardada”. ANDRADE, Um congresso contra o arbítrio, op. cit., p.120.
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Estado” “análogo ao de 10 de novembro de 1937”,505 reverberando opinião emitida na
ocasião pelo líder petebista Almino Afonso.506 Por sua vez, no panfleto Por que votar
contra o parlamentarismo no plebiscito?, produzido pelo Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), de outubro de 1962, a mesma posição é endossada acrescentando
que“Portanto, o que se deve ter em conta não é se o estado de sítio foidecretado, mas se o estado de sítio existiu. Foi, efetivamente, o queaconteceu em agosto de 1961: os detentores do poder não formalizavamo estado de sítio, existindo o estado de convulsão no país, justamente
porque isso lhes retiraria, formalmente, as condições para alterar aconstituição. (...)
“Ora, quem ousará dizer que o Brasil não se encontrava emestado de sítio ao ser votada a emenda parlamentarista?”507
Para além destas interpretações político-jurídicas, na verdade o parlamentarismo
também foi o resultado de um empate, pois também golpistas como o governadorLacerda e general Golbery tiveram que se contentar com a posse de Jango (esse último,
em seguida, foi fundar o IPES). Por outro lado, setores conservadores do Congresso
sentiram-se fortalecidos no parlamentarismo, pois sob essa capa institucional poderiam
tolher as pretensões de Goulart. Assim, diante da anunciada mudança do gabinete, estes
também se movimentariam no sentido de desempatar o jogo ao seu favor, impondo uma
composição ministerial que esvaziasse completamente qualquer possibilidade de
Goulart recuperar seus poderes. E claramente a direita viu na eleição de Auro Moura
Andrade, por uma maioria expressiva no Congresso, a possibilidade desse desempate,
realizando o aprofundamento do “golpe branco”. Como vimos, o próprio Moura
Andrade era uma peça chave nesse esquema golpista, pois o mesmo deixou claro que
em seu virtual gabinete não desejava dividir o poder com Goulart. Em alguns casos,
esse propósito também foi explicitado por frações expressivas das classes dominantes
que já se articulavam em torno do IPES.
Isso pode ser verificado através da Revista das Classes Produtoras, órgão do
CONCLAP,508 onde se pode ler a ata da reunião realizada no mesmo dia 4 de julho de
505 Citado em VICTOR, Mário. 5 anos que abalaram o Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1965, p.430.506 Deputado trabalhista pelo Amazonas, Almino Afonso era também o líder do chamado “grupocompacto” do PTB, que era a ala mais à esquerda e ideológica do partido, em contraste com setorchamado de fisiológico. Opondo-se à emenda parlamentarista, ele a caracterizou na ocasião de “golpe
branco”.507 Porque votar contra o parlamentarismo no plebiscito? Rio de Janeiro: ISEB, 1962, p.24-25.Consultado no Arquivo João Goulart, CPDOC-FGV [JG pr 1961.08.25].
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1962, na sede da Associação Comercial do Rio de Janeiro, também no centro da
cidade.509 Presidida pelo mesmo Rui Gomes de Almeida, outros membros do conselho
diretor do CONCLAP apresentaram a reivindicação de que a Associação Comercial se
posicionasse conforme a seguinte nota emitida no mesmo dia 4 pelo Clube de Diretores
Lojistas do Rio de Janeiro:“O CLUBE DE DIRETORES LOJISTAS DO RIO DE JANEIRO, considerandoa importância do atual momento político, quando são colocadas em risco asinstituições democráticas e a autoridade do Congresso Nacional, vê-se naobrigação, sob pena de cometer grave omissão, de manifestar suas apreensões.
A crise política tem sua origem num erro de apreciação sobre qual overdadeiro poder político numa Nação que se rege pelo sistema democrático.Cabe, dentro do Ato Adicional da Constituição vigente, ao Presidente doConselho de Ministros indicar os demais Ministros de Estado e à Câmara dosDeputados – somente a ela – depois de nomeado o Conselho pelo Presidente daRepública, aprovar, soberanamente, sem pressões inadmissíveis, partam de onde
partirem, a formação deste Conselho. Outra interpretação só poderá ser feita poraqueles que desejam a subversão da ordem e, com ela, a subversão do regime.Bem ou mal, os Deputados representam o povo e desrespeitá-los nesta hora,
pretensamente em nome do povo, seria mistificar a opinião pública. Cabe, portanto, ao Congresso exercer o poder político da Nação e às Forças Armadaso dever indeclinável de manter a vontade do Congresso. À imprensa outro deverincumbe, qual seja o de informar, serena e desapaixonadamente, fazendo sentir àopinião pública de que a sobrevivência do regime democrático só se garante comobservância absoluta das deliberações do Congresso Nacional.
Rio de Janeiro, 4 de julho de 1962”510
Em suma, explicitamente é apresentada uma interpretação da lei para favorecer uma
manobra de esvaziamento dos poderes de Goulart; o poder político, segundo esta nota,
deveria então ser exercido pelo Congresso, sob a guarda das Forças Armadas. Era a
senha para o aprofundamento do “golpe branco”. Mas enquanto acontecia essa reunião
entre os empresários na Casa de Mauá,511 ali perto, em outra reunião política,
508 O Conselho Superior das Classes Produtoras foi criado em 1959 congregando empresáriosempenhados em um projeto modernizante-conservador no Brasil. Segundo Dreifuss, “O CONCLAP doRio englobava a Associação Comercial do Rio de Janeiro e o Centro de Indústrias do Rio de Janeiro (doisórgãos que lhe davam expressivo apoio), o Centro de Seguros e Estudos de Capitalização, a Associação
dos Bancos do Estado da Guanabara, a Associação Brasileira de Relações Públicas, a AssociaçãoBrasileira de Propaganda, o Clube dos Diretores Lojistas do Rio de Janeiro, a Associação dosEmpregados de Comércio e a Associação de Proprietários de Imóveis, entre outros. Os membros doCONCLAP-Rio viam-se intimamente ligados à Escola Superior de Guerra, muitos deles ex-alunos ou
professores dessa instituição militar.” DREIFUSS, op. cit., p.97.509 Revista das Classes Produtoras. Revista da Federação das Associações Comerciais do Brasil e daAssociação Comercial do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ano XXV, Agosto de 1962, n.938, p.68.Biblioteca Nacional (RJ).510 Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, p.2, grifo nosso.511 Localizada na Rua Candelária, 9 – Centro do Rio de Janeiro, a Casa de Mauá, como também éconhecido prédio da Associação Comercial do Rio de Janeiro, está bem próxima da antiga sede da CNTI.
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mencionada no início do capítulo, preparava-se uma ação que mais decisivamente
interviria na crise.
4.5 No meio do caminho havia uma greve...
A reunião na sede da CNTI da tarde de 4 de julho quase foi adiada porinsistência do próprio Pelacani, que desejava ver primeiro o desenrolar dos
acontecimentos. Contudo, por pressão dos outros líderes presentes, por volta das
13:45hs foi instalada a plenária. As novas notas políticas dos generais Osvino Alves
Ferreira e Jair Dantas Ribeiro, comandantes do I e III Exércitos, respectivamente, e do
governador gaúcho Leonel Brizola, divulgadas pela imprensa matutina, acirraram os
ânimos. Além do petebista, dirigiram a reunião o presidente da União Nacional dos
Estudantes (UNE), Aldo Arantes, pertencente aos quadros da recém-fundada Ação
Popular, e Hércules Correia, dirigente sindical do PCB e o primeiro a se pronunciar
sobre a conveniência de iniciar a greve. Sendo aceita a tese da greve pelos presentes,
instalou-se logo uma controvérsia sobre sua duração. Deveria durar 24 horas ou por
tempo indeterminado? A favor da tese da greve de um dia ficou a maioria dos líderes,
entre os quais Osvaldo Pacheco da Silva, líder do PUA e também militante comunista
de Santos.512 Após a polêmica, às 15h30m foi decidida a greve geral de 24 horas, sendo
então foi designada uma comissão para redigir um manifesto à Nação, composta por
Dalton Boechat (Sindicato dos Trabalhadores da Petrobrás), Aldo Arantes (UNE),
Roberto Morena (CPOS da Guanabara),513 Antônio Pereira (Sindicato dos Bancários), e
o próprio Osvaldo Pacheco. Eis o Manifesto:
“Manifesto à NaçãoAos Trabalhadores! Ao Povo em Geral!
512 Sergipano, Pacheco era um quadro histórico do PCB, tendo feito parte da legendária bancada eleita para a Assembleia Constituinte de 1946, cassada no ano seguinte. Estivador de profissão e comunista porconvicção, Pacheco desempenharia um dramático papel na crise final do governo Jango, quando secolocou como “escudo” para impedir que Goulart fosse eventualmente alvejado por um franco atirador,quando o presidente discursou em 13 de março de 1964, no Comício da Central.513 Importante dirigente operário comunista, Roberto Morena é personagem ímpar na história domovimento operário brasileiro. Iniciou sua militância política em 1917, como operário marceneiro, e em1924 ingressou no PCB. Lutou na Guerra Civil Espanhola e emigrou para o URSS, voltando ao Brasil em1943 com a tarefa de ajudar na reorganização do PCB – destroçado pelo aparelho repressivo do Estado
Novo. Em 1946 tornou-se secretário-geral da efêmera Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB),fechada em 1947 pelo governo Dutra, levando a um novo exílio de Morena no México. Em 1950 é eleito
pelo Distrito Federal para a Câmara dos Deputados, pela legenda do Partido Republicano Trabalhista, jáque o PCB estava ilegal desde 1947. Atuou na vanguarda do sindicalismo brasileiro até o golpe de 1964,exilando-se seguidamente no Uruguai, Chile e posteriormente na Tchecoslováquia, onde passou a ser orepresentante do Brasil na Federação Sindical Mundial, principal organização internacional dosindicalismo simpático a Moscou. Faleceu em 1978.
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Como previmos, em nossos pronunciamentos, se trama contra alegalidade constitucional, se pretende implantar uma ditadura reacionária,acobertada com um Conselho de Ministros composto de inimigos jurados donosso progresso, de nossa independência e tranquilidade.
Uma maioria eventual na Câmara dos Deputados rejeitou a primeiraindicação do Presidente da República. Animados com essa votação, querem as
forças golpistas constituir um Conselho de Ministros de entreguistas e obrigar o presidente da República a sancioná-lo. Neste momento, apoiamos as enérgicas declarações do senhor presidente
da República e estamos coesos em torno de que não transija nem compactue comesses inimigos de nossa Pátria e de nosso povo. Estejam certos de que ostrabalhadores e as demais forças patrióticas, civis e militares, não permitirão sejarasgada a Constituição e se entronizem no Poder os que nos querem esmagar eamordaçar.
Em defesa da legalidade constitucional, em favor de um Conselho deMinistros nacionalista e democrático, em defesa das liberdades democráticas esindicais, de acordo com as decisões de nossos congressos e conferências, emdefesa de nossos lares ameaçados pela fome e a miséria, decretamos a GREVE
GERAL, em princípio, por 24 horas, a partir da meia noite de hoje, dia 4, e queunidos e mobilizados em nossos sindicatos e concentrações, aguardaremos a
palavra de ordem do Comando Geral de Greve.A nossa greve, a nossa mobilização e a nossa unidade tornarão vitoriosos
os nossos objetivos que são os de todo o povo brasileiro.Por um governo democrático e nacionalista!Rio de Janeiro, 4 de julho de 1962.”514
Além deste manifesto, o Comando apresentou uma lista com 18 reivindicações
que envolviam desde a luta contra a carestia de vida, direitos sociais até as reformas de
base.“1) Luta concreta e eficaz contra a inflação e a carestia, mobilizandotodos os meios de transporte para condução de gêneros essenciais doscentros produtores para os consumidores, chegando-se, se necessário, atéo confisco dos estoques existentes;2) Reforma agrária radical e, de imediato, reconhecimento dos Sindicatosde Trabalhadores Rurais;3) Reforma urbana como única solução para o problema da casa própria;4) Reforma bancária, com a nacionalização dos depósitos;5) Reforma eleitoral, com direito de voto aos analfabetos, aos cabos esoldados das Forças Armadas e a instituição da cédula única para as
eleições de 7 de outubro;6) Reforma universitária e a participação de 1/3 de estudantes nasCongregações, Conselhos Departamentais e Conselhos Universitários;7) Ampliação da atual política externa do Brasil, pela conquista de novosmercados, em defesa da paz, do desarmamento total e daautodeterminação dos povos;
514 Citado em TELLES, op. cit., p.163-164.
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8) Repúdio e desmascaramento da política financeira do FundoMonetário Internacional;9) Aprovação da lei que assegura o direito de greve, nos termos do
projeto aprovado pela Câmara Federal, com as emendas propostas e jáaprovadas pelos trabalhadores em suas conferências e congressos;10) Encampação, com tombamento, de todas as empresas estrangeiras
que exploram os serviços públicos;11) Controle da inversão de capitais estrangeiros no País e limitação daremessa de lucros para o exterior;12) Participação de trabalhadores nos lucros das empresas;13) Revogação de todo e qualquer acordo lesivo aos interesses nacionais;14) Fortalecimento da Petrobrás com o monopólio estatal da importaçãode óleo bruto, da distribuição de derivados a granel, da indústria
petroquímica e a encampação das refinarias particulares;15) Medidas concretas e eficazes para o funcionamento da Eletrobrás;16) Criação da Aerobrás, instituindo o monopólio estatal na aviaçãocomercial;17) Manutenção das atuais autarquias que exploram o transporte
marítimo, assegurando-lhes o percentual de 50% das cargastransportadas, na importação e exportação, às embarcações mercantisnacionais;18) Aprovação da Lei que institui o pagamento do 13º mês de salário.”515
Tomada a decisão de iniciar o movimento nacional, foi providenciada a
distribuição da “senha da greve” para os outros estados da federação, o que tornou a
decretação da greve nacional irreversível.516 Todavia, tão logo tomou-se a decisão, o
CGG instalado no CNTI começou a ser assediado por emissários de Jango. Pediam que
o movimento fosse sustado, já que, àquela altura, Moura Andrade havia renunciado. Aquestão é que os líderes sindicais só ficaram sabendo da renúncia do virtual Premier às
16:00 hs, e meia hora depois o governador Brizola ainda telefonava para Pelacani
saudando o movimento. Ou seja, até aqui, tinha-se tudo para ter se iniciado um
movimento nacional grevista em apoio e com o apoio do governo. Isso não fosse a
oposição do próprio Goulart à paralisação política, o que fez Brizola mudar de posição,
como veremos. Gilberto Crocraktt de Sá, presente naquela tarde na CNTI, teria
declarado a Brizola também pelo telefone: “O esquema inicial não era esse. A turma
não pode controlar mais e a greve foi mesmo decretada”. Daí em diante o assédio só seintensificou. O próprio San Tiago Dantas telefonou para a CNTI buscando falar com
Osvaldo Pacheco, mas o mesmo não se encontrava no local. Falou então com o
515 Transcrito em MIGLIOLI, Jorge. Como são feitas as greves no Brasil. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1963, p.117-118.516 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, p.3. Última Hora, Rio de Janeiro, 5 de julho de1962, p.2. TELLES, op. cit., p.163.
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secretário do PUA, Felipe Andrade, afirmando que tal movimento era “perigoso
demais”. Todavia o próprio Felipe Andrade teria afirmado que, mesmo que quisessem,
não era mais possível sustar a greve, pois as “senhas” já teriam sido distribuídas.517
Numa reportagem do Correio da Manhã é possível aferir quão foram pressionados os
líderes grevistas:“Não sendo bem sucedido nos entendimentos que manteve,
pessoalmente, com os grevistas, o sr. Gilberto Crockatt de Sá teve suamissão reforçada pelo presidente do Banco Nacional deDesenvolvimento Econômico [BNDE], o sr. Leocádio Antunes. Estechegou a CNTI, por volta das 17hs, mantendo conferências, a portasfechadas, até as 18hs e 45mim. O sr. Leocádio Antunes tentou em vão
persuadir os articuladores da greve. Travou-se, então, o seguinte diálogoentre a autoridade e o sr. Pelacani, coadjuvado pelo sr. Roberto Morena.
L.A.: “Não se justifica o movimento, desde que a situaçãoevoluiu, com a renúncia de Auro.”
P.: “A sustação da greve desmoralizara (sic) os trabalhadores.”M.: “A ordem da greve já está nas ruas e os trabalhadores não poderão compactuar com nova conciliação.”
L.: “Não haverá conciliação pois o Auro já renunciou. Seu gestofoi consequência da nota do general Osvino e, logo, após, pela ratificaçãoda mesma, pelo general Machado Lopes. O Auro tem um gênio violento,mas se curvou à realidade militar.”
P.: “Nós queremos a volta do presidencialismo e esta greve tem,como o governo reconhece, outras finalidades.”518
“Nem Cristo poderá detê-la!” disse Dante Pelacani aos jornalistas presentes na
sede da CNTI no final daquela tarde, quando indagado se atenderia o pedido doPresidente da República. Também o general nacionalista Osvino Alves Ferreira e o
deputado trabalhista da Assembleia Legislativa da Guanabara, Roland Corbisier, 519
compareceram para tentar persuadir os grevistas. Os dois eram vistos com simpatia
pelas lideranças sindicais. O próprio general Osvino, já vimos, que havia alertado para
uma conspiração visando a instalação de uma ditadura de extrema-direita no Brasil,520
enquanto o deputado Corbisier participara ativamente das mobilizações ao lado dos
517 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, p.3. Segundo depoimento prestado por Hércules
Correa aos historiadores Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes (Rio de Janeiro, 2004, 4 horas degravação), Hércules era o dirigente sindical que possuía as tais “senhas”. FERREIRA, João Goulart: umabiografia, op. cit., p.353.518 Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, p.10.519 Roland Corbisier foi um proeminente intelectual nacionalista ligado ao Instituto Superior de EstudosBrasileiros (ISEB), tendo sido seu diretor-executivo desde sua criação (em julho de 1955) até 1960,quando se elegeu para a Assembleia Legislativa do recém-fundado Estado da Guanabara.520 Nos dias 26 e 27 Osvino discursou perante os cinco mil homens do Grupamento de Unidades-Escola(no sábado), e perante a tropa do I Grupo de Canhões Automáticos e Antiaéreos (no domingo). Nasegunda-feira (28) reunira-se com o Ministro da Guerra, Segadas Viana, pronunciando-se no mesmosentido. TELLES, op. cit., p.147. Novos Rumos, 1 a 7 de julho de 1962, p.3 e p.8.
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movimentos sociais na Guanabara, a exemplo do dia 22 de junho, quando discursou ao
lado de outras lideranças sindicais como Clodsmidt Riani, Luis Viegas da Mota Lima
(presidente da Federação dos Bancários do Rio de Janeiro, Guanabara e Espírito Santo),
o próprio Osvaldo Pacheco, Roberto Morena e o líder estudantil Aldo Arantes, nas
escadarias do Palácio Tiradentes. Na ocasião, diversos oradores proclamaram a preparação de uma greve geral contra os “gorilas”, sendo inclusive citados os eventos
ocorridos na Argentina em 29 de março daquele ano, quando um golpe derrubou o
governo de Arturo Frondizi.521 Todavia, nem mesmo essa intimidade e identidade
política em torno do nacionalismo seriam suficientes para que o general e Corbisier
convencessem o Comando de Greve a reverter a decisão. E à medida que o tempo
passava, em diversos pontos do país, assembleias de trabalhadores endossavam a
realização da greve política, tornando o desencadeamento do movimento inevitável.
4.6 “Movimento Inédito na História do País: Brasil em Greve”
Foi assim que o jornal carioca Diário de Notícias apresentou em manchete a
greve geral de 5 de julho: “Movimento inédito na História do País: Brasil em
Greve!”.522 E de fato, seria a primeira vez na história do Brasil que os trabalhadores
realizavam uma greve geral nacional. Digo os trabalhadores enquanto classe social, pois
pelo menos algumas categorias já haviam realizado greves nacionais, como os
bancários, na greve nacional bancária de 1946, e portuários, marítimos e ferroviários na
chamada “Greve da Paridade” em 1960. Nesta última, seria fundado o Pacto de Unidade
e Ação (PUA), a primeira intersindical que ultrapassava as barreiras regionais. E,
acreditamos, justamente por serem estas as categorias com maior experiência histórica
de organização nacional, foram as principais categorias a paralisar o trabalho em todas
as regiões do Brasil em julho de 1962. Todavia, também operários metalúrgicos, do
petróleo, têxteis e construção civil, além de motoristas de ônibus e, no Nordeste, até
garçons e músicos, pararam de trabalhar naquela quinta-feira.
Na Guanabara e no Estado do Rio de Janeiro a greve foi total, tendo sido
acompanhada de ondas de saques na Baixada Fluminense, especialmente em Duque de
521 Última Hora, Rio de Janeiro, 23 de junho de 1962, p.2. Arturo Frondizi governou a Argentina entre1958-1962. Pertencente a uma das alas da União Cívica Radical (UCR), autorizou que os até então
proscritos peronistas disputassem as eleições provinciais daquele ano, que venceram em quase todo país,incluindo Buenos Aires. Para impedir a posse dos eleitos é que foi dado o golpe de Estado de 29 de marçode 1962.522 Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962. Ver Anexo 1, no fim desta tese.
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Caxias, Nova Iguaçu e São João de Meriti, onde o saldo foi de quarenta mortos e
setecentos feridos. A revolta popular repercutiu em todo o Brasil. É que durante esse
período graves problemas de desabastecimento atingiam a região, provocando revoltas
que compreenderam desde saques de armazéns, empórios, mercadinhos, até o
“justiçamento” de comerciantes, acusados pelos populares de estarem sonegandoalimentos.523 Em alguns casos, lideranças sindicais envolveram-se nestes motins. Mas
logo uma comissão do Conselho Sindical do Estado do Rio reuniu-se com o comando
do I Exército para informar que “a greve não tinha nada a ver com essa onda de
saques”.524
Na capital Niterói, ainda no dia 2, populares saquearam estabelecimentos
comerciais em busca de víveres, no que foram repelidos pela Polícia Militar, que
realizou prisões.525 No dia 5 a onda de saques e conflitos entre populares e a polícia se
repetiram, desta vez com vítimas fatais entre os primeiros, que também “justiçaram”alguns comerciantes descobertos sonegando mercadorias, alguns dos quais foram
enforcados. Por sua vez, outros destes reagiram a bala, também fazendo suas mortes,
enquanto outros, em pânico, eletrificaram as portas dos estabelecimentos.526 Na própria
Guanabara, nos bairros de Rocha Miranda, Pavuna, Penha e Brás de Pina ocorreram
distúrbios.
Em relação à Baixada Fluminense, de acordo com o estudo do sociólogo José
Cláudio Souza Alves, quatro dias antes, moradores de Saracuruna, bairro de Caxias,
haviam descoberto um depósito clandestino de feijão em uma casa comercial chamada
“Maracanã”, e obrigaram o gerente a vender o produto à população.527 Ainda segundo
esse autor, a greve geral teve uma ligação direta com os acontecimentos na Baixada
Fluminense no dia 5 de julho, pois milhares de populares que, vindos de bairros
523 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06 de julho de 1962. Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 06 de julhode 1962.524 Idem.525 “Quebra-quebra.” Luta Democrática, Rio de Janeiro, 3 de julho de 1962, capa. Cabe aqui uma notasobre essa fonte, ou melhor dizendo, sobre sua linha editorial. O jornal Luta Democrática era de
propriedade de Tenório Cavalcanti, alagoano que se tornou um influente político da cidade de Caxias(RJ), de perfil violento e populista. Nas eleições de 1960 foi o candidato pelo Partido Social Trabalhista(PST) ao governo da Guanabara, onde perdeu para Lacerda, e em 1962, tendo sido inclusive apoiado
pelos comunistas em sua candidatura ao governo do estado do Rio, perdeu mais uma vez agora paraBadger da Silveira, do PTB. A ditadura militar não o perdoaria por esta aliança (em todos os sentidos)espúria com os comunistas, e teve suas armas apreendidas e cassados seus direitos políticos. Sua históriatornou-se O homem da capa preta, filme de Sérgio Rezende (Brasil, 1986).526 “Povo saqueou o comércio: incendiada a fronteira fluminense” e “Polícia massacrou, negociantesreagiram a bala, multidão enfurecida linchou e enforcou.” Luta Democrática, 6 de julho de 1962, capa.527 ALVES, José Cláudio Souza. Dos Barões ao extermínio: uma história da violência na BaixadaFluminense. Duque de Caxias: APPH-CLIO, 2003, p.93.
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afastados de Caxias, se aglomeraram na área próxima à praça Pacificador, no centro do
município, desejavam chegar aos seus locais de trabalho, mas não havia transportes
públicos em decorrência da greve. Trens, bondes, ônibus, nada funcionava.
Aglutinando-se cerca de 20 mil pessoas, bastou que um dos populares começasse a
gritar que havia feijão em uma das casas comerciais da localidade. O que se seguiu foiuma multidão, numa explosão de fúria, saqueando, primeiro o armazém denunciado, e
depois outros estabelecimentos, tornando-se uma onda de saque e destruição de outros
armazéns, açougues e padarias. Ao meio dia todo o comércio do centro de Caxias havia
sido atingido, e por essa hora a revolta já havia se alastrado para as cidades vizinhas de
São João de Meriti e Nova Iguaçu. Alguns comerciantes que, desesperados, tentaram
defender suas propriedades, foram mortos pela fúria da população, chegando, alguns a
sacar armas e atirar contra os revoltosos, que também tiveram suas baixas.528
Os problemas de abastecimento, parte de uma vasta crise social que se alastrava pelo país no embalo do início da recessão econômica, também produziu ondas de
saques no primeiro semestre daquele ano nas cidades nordestinas, especialmente as do
interior. Uma velha tradição de rebelião popular, quase um costume construido a partir
da experiência concreta das atribulações da vida numa região submetida ao domínio
arcaico do mandonismo e da seca. O saque nordestino, como uma forma de luta de
classes (ainda que sem classes, como ensina E. P. Thompson),529 recriou-se na Baixada
Fluminense. Numa busca desesperada pela sobrevivência, a classe que vive de seu
próprio trabalho enfrentou de forma radical os poderes constituídos da ordem do capital:
a polícia e a propriedade privada. Mas teria essa experiência de classe alguma relação
com a crise política do país? José Cláudio Souza Alves tem uma boa resposta, pois
encontra um vinculo importante: o fato de que estabelecimentos comerciais que haviam
hasteado em suas fachadas a bandeira brasileira e dizeres em apoio à legalidade
528 “O dono de uma casa de material de construção, que, armado, tentou defender os bens de uma padaria
do seu vizinho, foi morto com um paralelepípedo. Na estrada Rio-Petrópolis, na altura do bairro deGramacho, um menor de 14 anos foi ferido e João Balbino, dono da boate Pampanini, que trocava tiroscom os populares, foi apontado como culpado. A boate foi então incendiada, e ele apedrejado pelamultidão, sendo removido em estado grave para o Hospital Getúlio Vargas. Já o comerciante portuguêsJosé Adriano dos Santos, após ter atingido um menor de idade, saiu correndo com a multidão atrás, eatirava a esmo quando a multidão o alcançou na avenida Nilo Peçanha e o trucidou. Na Vila São Luís, odono de uma padaria matou Ivonete Ottoni dos Santos.” Idem, p.94.529 THOMPSON, Edward Palmer. “La sociedad inglesa del siglo XVIII: ¿Lucha de clases sin clases?.”Tradición, revuelta y conciencia de clase. Estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona:Editorial Crítica, 1989, p.13-61. WOOD, Ellen Meiksins. “Classe como processo e como relação.”
Democracia contra capitalismo, op. cit., p.73-98.
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democrática foram poupados.530 Houve, assim, ainda que em meio a uma ação caótica
como uma onda de saques, algum critério político. De qualquer modo, essa revolta
popular acabou compondo um cenário mais radical e agressivo para a greve em meio à
crise política.
Voltemos ao desenrolar da greve propriamente dita, ainda na Guanabara.Os ferroviários da Estrada de Ferro Leopoldina foram a primeira categoria a
entrar em greve, por volta das 19h35m do dia 4 de julho.531 O ramal paralisado envolvia
os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Guanabara e Espírito Santo. Às 23h30m, o
comando de greve dos ferroviários divulgaria um boletim onde eram afirmados os
motivos da greve e a advertência de que esta deveria durar até às 24 horas do dia 5,
“podendo, no entanto, ser prorrogada indefinidamente, caso houvesse qualquer
violência contra qualquer companheiro”.532 As barcas que ligam a cidade do Rio a
Niterói e ilhas próximas tiveram seu serviço suspenso à zero hora do dia 5, e às primeiras horas da manhã do dia deixaram de circular os bondes e os ônibus, estes
últimos também por iniciativa das empresas, temerosas da ação dos piquetes. Segundo o
Jornal do Brasil,
“A greve na Guanabara paralisou os trens da Central e da Leopoldina, o porto, as lanchas Rio-Niterói e todo o transporte marítimo; os aviões,aeroportos e quase toda a frota de transporte rodoviário estadual. Pelafalta de transporte, o comércio, a indústria e quase todos os bancosestiveram fechados. Não houve expediente nas fábricas.”533
Segundo reportagem do jornal do Sindicato dos Bancários da Guanabara, já na
noite do dia 4, centenas de ativistas sindicais compareceram à sede da entidade para
constituir comissões de organização e divulgação, que confeccionaram centenas de
cartazes da greve, os quais depois seriam colados ao longo da madrugada nas portas das
agências.534 Na manhã seguinte, esse muito bem organizado sindicalismo combateu nas
ruas do Centro do Rio pela vitória política da greve. Entretanto, a agressividade destes
combates, como era de se esperar, não partiu deles, e sim da repressão desencadeada
pela Polícia Política e Social do governo da Guanabara, tendo inclusive o próprio Carlos530 Idem, p.95. Ver também TORRES, Rogério; MENEZES, Newton. Sonegação Fome Saque. Duque deCaxias: Consórcio de Administração de Edições, 1987. CATALEJO, Manoel Henrique de Souza. Omunicípio de Duque de Caxias e a ditadura militar: 1964-1985. Dissertação de mestrado em História.Rio de Janeiro, PPGHIS-UFRJ, 2008, p.57-65.531 O Globo, Rio de Janeiro, 05 de julho de 1962.532 O Dia, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, p.2.533 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06 de julho de 1962.534 “Flagrantes da Greve.” O Bancário, Rio de Janeiro (GB), 11 de julho de 1962, p.3. Biblioteca AloísioPalhano do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro.
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Lacerda realizado incursão ao centro do Rio, ladeado por policiais, com o propósito de
dispensar os piquetes de greve, prender ativistas e reabrir agências bancárias. Segundo
reportagem do jornal O Dia, às 8h da manhã o DOPS já começou a realizar detenções
nos piquetes, e Lacerda, armado com uma metralhadora, ia rasgando os cartazes da
greve, ao mesmo tempo em que ameaçava enquadrar os grevistas na Lei de Segurança Nacional. As poucas agências que a tropa de Lacerda conseguiu abrir, logo fecharam
após a sua saída. O governador chegou mesmo a bater-boca com sindicalistas, tendo sua
polícia realizado dezenas de detenções.535 Conforme relato do periódico sindical:
“De repente surgiu o sr. governador no centro da cidade. Saltava de seuluxuoso automóvel acompanhado de um pequeno batalhão fortementearmado com bombas e metralhadoras portáteis. Para arrancar os cartazesmais altos dava os característicos pulinhos, que comprometiamseriamente a postura governamental. Esbravejava impropérios, eraapupado, efetuou prisões. Foi tratado por alguns companheiros como
merece um governador que desce de suas funções para substituir os tirasda Ordem Política e Social.”536
Um dos casos que ganhou certo notoriedade entre os dirigentes sindicais
cariocas que foi o de um personagem de nome Cainã Costa Pereira, funcionário da
Federação dos Bancários do Rio de Janeiro e Espírito Santo, que se enfrentou com o
próprio Lacerda “no braço”, apesar de ser magrinho e o governador carregando uma
metralhadora.537 De acordo com o depoimento de Luiz Viegas da Motta Lima, então
presidente da Federação dos Bancários, alguém, provavelmente próprio o Cainã, teria
“chutado a bunda do [Carlos] Lacerda”, que “ficou furioso”, dirigindo sua fúria para
prender o ativista sindical.538 Além de Cainã, outros bancários presos seriam: João
Mendes Cavalheiro, Américo Veríssimo Castro Gomes, José Olavo de Mesquita Rocha,
Luís Felipe de Melo e Souza, João Lopes da Rocha, Sérgio Luís de Souza, Paulo Heber
Biutânio, Vicente de Paula Ferreira, Giovani Gonçalves Vieira, Jaime Ferreira Pinto,
Antônio da Silva Gomes, Antônio Maia Leite, Gustavo José de Oliveira, Ari Mancebo
de Azevedo, João Jacinto da Silva, Edésio de Souza, Hélio Gomes, Jorge Alberto, Paulo
Herbert, Issac Petrônio, Antonio Maria, Sarmani Gonçalves Vieira e Sérgio Luís deSousa. Embora a repressão mais espetacular tenha sido contra os bancários, ativistas de
outras categorias também seriam aprisionados, como os empregados da Light Geraldo
535 De acordo com os lideres da greve, foram 30 o número de presos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06de julho de 1962, p.4.536 “Flagrantes da Greve”, op. cit.537 Voltaremos a falar nos bancários no capítulo 6.538 Entrevista nossa com Luiz Viegas da Motta Lima. 27 de janeiro de 2012.
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Soares, Opizaro Picanço (que também era tesoureiro do Sindicato dos Trabalhadores em
Carris Urbanos), Severino Marinho da Silva, e um sujeito identificado apenas como
Alexandrino “de tal”, delegado sindical da entidade. Também seriam presos o
presidente da Federação da Indústria da Alimentação, Hugo Costa, e outro personagem
identificado apenas como secretário do Sindicato Nacional dos Aeroviários, que teriasido detido por soldados e cabos da Aeronáutica quando distribuía o manifesto de sua
entidade no Aeroporto Santos Dumont. Os dois últimos seriam logo soltos ao longo do
dia, mas, ao final da greve, ainda havia quase trinta ativistas detidos nos cárceres da
Guanabara.
No setor têxtil da zona industrial do Rio, diversas empresas amanheceram
paralisadas, o mesmo acontecendo com grandes empresas do setor gráfico, metalúrgico,
de material elétrico, de calçados e os estaleiros da construção naval. As refinarias de
Manguinhos e Duque de Caxias também foram atingidas pelo movimento paredista, e agreve geral no sistema de transportes atingiu até o sistema hospitalar carioca, ainda que
o Comando de Greve não tivesse orientado qualquer paralisação no setor. Ao contrário,
haviam procurado orientar a manutenção do funcionamento, mas o problema era o
colapso do sistema de transportes públicos. A chegada dos feridos nos motins,
certamente piorava a situação nesse setor.
O centro comercial carioca foi também totalmente paralisado, tendo a
reportagem do jornal O Dia constatado às 9h20m da manhã que 90% dos
estabelecimentos estavam fechados.539 As entidades associativas de professores e dos
servidores públicos também divulgariam manifestos de adesão à greve geral, tendo o
sindicato do magistério feito questão de destacar que a autoridade política para entidade
decretar a greve da categoria havia sido estabelecida em assembleia geral realizada no
sindicato, em 26 de junho. Por fim, o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Gás e
Energia Elétrica decidiu que caso a greve fosse estendida para além das 24 horas, o
setor iria aderir.
Enquanto a greve se desenrolava no Rio de Janeiro, e em outras unidades da
Federação, uma comissão de líderes do comando nacional de greve se encaminhou para
Brasília, com o objetivo de manter conversações com João Goulart sobre a crise política
nacional e pressionar pelas reivindicações da greve, ocasião em que o presidente
também se comprometeu a assinar a lei do 13º salário, que fora aprovada no Senado
539 O Dia, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, p.2.
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alguns dias antes (em 27 de junho). A lei só aguardava a sanção presidencial,
compromisso que Goulart cumpriria apenas alguns dias depois (em 13 de julho).540
Desta reunião também teriam tomado parte o general Amaury Kruel, Hermes Lima
(PSB-BA) e o Consultor Geral da República, Antônio Balbino (PSD-BA).541 A
comissão do CGG também reivindicava a indicação de um primeiro-ministro quecompusesse um conselho “democrático e nacionalista”, “capaz de realizar as reformas
de base”, unificando as formulações de comunistas e trabalhistas.542 Fizeram parte da
comissão o ex-comunista e então trabalhista Dante Pelacani (vice-presidente em
exercício da CNTI), o líder bancário Luis Viegas Motta e Lima (representando a
CONTEC) e o portuário Osvaldo Pacheco (pelo PUA), esses dois do PCB.
Como os aeronautas e aeroviários também se encontravam em greve, o CGG
teve de enviar um ofício ao Sindicato dos Aeronautas, à Panair do Brasil e ao Ministério
da Aeronáutica pedindo a liberação de um avião, que transportou as lideranças aoDistrito Federal. Como esses líderes demoraram a retornar ao Rio, foi cancelada uma
manifestação pública que iria se realizar na tarde do dia 5, às 15 horas, nas escadarias do
Palácio Tiradentes. Assim, e isso certamente foi uma grande debilidade da greve, não
ocorreu uma grande concentração pública para referendar suas posições e
reivindicações. Por outro lado, talvez fosse muito improvável que com o colapso do
sistema de transportes pudesse ter sido diferente, e o tipo de concentração pública que
acabou ocorrendo assumiu a forma de motim. No capítulo 6 abordaremos como a
documentação da polícia política da Guanabara apresentou as movimentações dos
líderes grevistas cariocas, e entraremos em detalhe de como se processou esse encontro
de Jango com o CGG. Agora nos deteremos no processo público.
Por todo o dia 5, enquanto realizava-se essa reunião em Brasília, o restante do
comando de greve esteve reunido na sede da CNTI, onde teve a oportunidade de
desmentir aos jornalistas algumas notícias que começaram a circular na parte da tarde,
que davam conta de que o apelo do Presidente da República havia sido atendido e os
trabalhadores não havia aderido à paralisação. Certamente Goulart não possuía tal dom,
540 “Goulart sancionou o 13º mês de salário.” Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 de julho de 1962, p.3.541 “Líderes sindicais em reunião com Goulart.” Diário da Borborema, Campina Grande (PB), 6 de julhode 1962, p.4.542 Desde o Manifesto de Março de 1958 o PCB havia definido como estratégia a luta por um governodemocrático e nacionalista, formulação encontrada na documentação produzida pelo movimento sindical,o que indica a conhecida influência política dos comunistas no setor organizado da classe trabalhadora.Por outro lado, também neste período, o PTB apresenta a luta de pelas reformas de base como suaestratégia política, e partindo de formulações diversas, PCB e a ala ideológica do PTB conseguiram forjaruma aliança política importante.
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ainda que a direita o tenha sempre acusado de “mentor da agitação” ou “maior de todos
os pelegos”.
Às 13 horas o CGG distribuiu um comunicado em que afirmava que a greve
seguia com pleno êxito em todo o país e que seus objetivos políticos estavam sendo
atingidos, com a renúncia de Auro de Moura Andrade e a ida dos dirigentes sindicais aBrasília para discutir a composição do novo gabinete. Denunciava ainda a ação
repressora do governador Lacerda e de sua polícia, destacando que “independentemente
dos entendimentos que estão sendo mantidos em Brasília, os trabalhadores
permanecerão em greve até que estejam em liberdade todos os dirigentes sindicais”.543
Ao longo da tarde chegariam notícias sobre a efetividade da greve em todas as
regiões do Brasil, além dos lugares onde a parede não tinha conseguido grande adesão,
como na capital paulista e em Minas Gerais. Já no Sul do país, as senhas para a greve
demoraram a chegar, atrasando os entendimentos entre o comando nacional e osdispositivos grevistas regionais, o que acabou atrasando a eclosão da greve geral em um
dia.544 Por volta das 17 horas deste dia 5 chegou à sede da CNTI o presidente da UNE,
Aldo Arantes, e às 17:45h os líderes grevistas que se avistaram com Goulart em
Brasília. Entrando prontamente em reunião com os demais presentes, fechada à
imprensa e até aos funcionários da própria entidade, o Comando Geral de Greve por
horas avaliou o sucesso da greve nacional. Às 20 horas, Roberto Morena abriu a porta
da sala exclamando: “A greve está plenamente vitoriosa!”545
Logo em seguida, foi iniciada uma assembleia com mais de uma centena de
líderes sindicais que acabaram por decidir a suspensão da greve à zero hora do dia 6,
seguindo o pedido do presidente Goulart. No entanto, ainda havia uma importante
pendência que fazia com que a greve pudesse continuar ou ser retomada no dia seguinte:
os 17 bancários, um estudante, três ferroviários e quatro operários do setor de carris
urbanos presos por participar dos piquetes.
Por volta das 13 horas, quando o CGG emitiu uma nota afirmando que a greve
só cessaria quando todos os grevistas fossem soltos dos cárceres da Guanabara, Lacerda,
após afirmar que “assim a greve não cessaria nunca”, determinou que todos fossem
enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Desde que os primeiros militantes foram
detidos, comissões de grevistas e parlamentares buscaram interceder junto às
543 Reproduzido em O Dia, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, p.2.544 Um pouco mais à frente voltaremos ao Sul.545 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, p.4.
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autoridades do próprio Governo estadual e do Ministério da Guerra, na pessoa do
subsecretário da pasta, general Machado Lopes.546 Para libertar os grevistas, o
governador determinou uma fiança no valor de 25 mil cruzeiros “por cabeça”, além de 4
mil cruzeiros pelos custos operacionais, para que os trabalhadores fossem soltos.
Deste modo, quando se iniciou a assembleia na sede da CNTI, por volta das20:30h, o impasse permanecia. Os detidos da Delegacia de Vigilância haviam sido
autuados na Lei 9.070 de 1946 (a famigerada Lei Anti-Greve baixada por Dutra), e nos
artigos 197 e 201 do Código Penal, continuidades lógicas da visão de mundo
estadonovista.547 Após entendimentos com o general Machado Lopes, Lacerda aceitou
libertar os grevistas pouco antes do fim da noite do dia 5, e por isso a decisão entre os
presentes na assembleia que determinou o fim da greve era de que se os trabalhadores
não fossem libertados, uma nova assembleia marcada para as 14 horas do dia seguinte
poderia reiniciar o movimento.548 Assim, havia de fato a expectativa de que fossemtodos soltos ainda na noite do dia 5, e no dia seguinte a reunião na CNTI foi para
debelar os boatos e as injúrias disparadas pela imprensa de direita, porta-voz do
governador da Guanabara, em sua desqualificação da ação organizada da classe
trabalhadora.
Ao longo do dia 5, líderes sindicais de outras regiões do Brasil, haviam voltado
às suas bases locais para organizar o movimento grevista. Os próprios dispositivos
locais já estavam na expectativa de uma orientação para parar. Vejamos agora como se
processou a greve no restante do país discutindo um pouco a importância destes
dispositivos, destacando a importância decisiva das intersindicais na operacionalização
da greve.
4.7 Como se fez a greve geral no resto do país
Ao longo do mês de junho, tal como em outras regiões do Brasil, foram
inúmeras as reuniões entre entidades sindicais nordestinas, articuladas junto com
associações camponesas e estudantis de modo a que fosse preparado um dispositivo de
resistência a qualquer tentativa de golpe direitista. Vimos que os próprio dirigentes das
546 “Terminou à zero hora a greve geral.” O Dia, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, p.7.547 Idem, ibidem, p.7. O Código Penal em vigor era o criado no Estado Novo pelo decreto-lei n 2.848, de7 de dezembro de 1940. Funcionou perfeitamente ao longo do regime de 1946, denotando os limitesdaquela “democracia realmente existente”. Em seu artigo 197, o Código Penal pronuncia-se sobre o“Atentado contra a Liberdade de Trabalho”, e o 201 da “Paralisação de Trabalho de Interesse Coletivo”.548 Esse senão acabou se transformando em um boato que no dia seguinte fez o comércio do centro dacidade fechar as portas por algumas horas.
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entidades nacionais (como Dante Pelacani) haviam circulado pela região com o
propósito de organizar o dispositivo grevista e mobilizar os trabalhadores.
É preciso lembrar o contexto no qual viviam os movimentos sociais nordestinos,
evidente principalmente com a ascensão das Ligas Camponesas. No contexto político,
em Pernambuco a situação estava mais amadurecida, com a prefeitura de MiguelArraes, pela Frente de Esquerda, líder que seria eleito em outubro daquele ano
governador do estado que era o principal centro político da região Nordeste. Em Recife
circulavam, além dos jornais ligados às oligarquias locais, como o Jornal do Comércio,
um pertencente aos Diários Associados ( Diário de Pernambuco) de Assis
Chateaubriand, também, desde 1961, a folha comunista A Hora, enquanto os nacional-
trabalhistas implantaram a edição nordestina do Última Hora desde 16 de junho de
1962.549 No plano organizativo do movimento operário, neste estado havia o Conselho
Sindical dos Trabalhadores (CONSINTRA), que ao lado das Ligas Camponesas e daUnião dos Estudantes Pernambucanos, formava o tripé do movimento social
pernambucano.550 Apesar do executivo estadual chefiado por Cid Sampaio (UDN) não
estar em sintonia com essa ativação social, a greve geral não foi reprimida, assim como
também não se movimentaram as tropas do IV Exército, sediado no Recife e
comandado pelo general Arthur da Costa e Silva, cujo raio de ação seria toda a região
nordestina.
A ativação dos trabalhadores rurais era também forte em outros estados
nordestinos, como na vizinha Paraíba, onde a Liga Camponesa da cidade de Sapé era a
maior do país, e onde, em 2 de abril daquele ano havia sido assassinado o seu líder João
Pedro Teixeira, como já mencionamos no capítulo anterior. Além disso, muitas eram as
categorias de trabalhadores com experiência na ação sindical e influenciadas pela
militância dos comunistas e também por outros grupos das esquerdas socialista, católica
e trabalhista.
549 O jornal de Samuel Weiner também possuía edições locais em São Paulo, Porto Alegre, BeloHorizonte e Curitiba. O lançamento de Última Hora em Recife foi saudado pelo semanário comunista
local A Hora e pelo órgão do Sindicato dos Bancários do Estado de Pernambuco, Jornal do Bancário, queassim se referiu à cobertura à greve geral de 5 de julho: “Muito importante para os bancários foi acobertura honesta que a imprensa pernambucana deu ao desenrolar do movimento paredista. Os fatosforam divulgados em toda a sua realidade, sem falsificação, como normalmente ocorria em taiscircunstâncias. Isso se deve, em Pernambuco, ao aparecimento do jornal ÚLTIMA HORA, que veio ao
Nordeste interessado em defender o interesse das classes mais humildes e está encontrando ótimareceptividade entre as classes laboriosas.” Jornal do Bancário, Recife, n.12, primeira quinzena de julhode 1962. Biblioteca Nacional (RJ). Cf. A Hora, Recife, 9 a 15 de junho de 1962, p.7. Hemeroteca doArquivo Público de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).550 JACCOUB, Luciana de Barros. Movimentos sociais e crise política em Pernambuco (1955-1968).Recife: Massangana, 1990.
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Em outros estados nordestinos também estavam Executivos que haviam se
solidarizado com a posse constitucional de João Goulart na crise de agosto, como seu
correligionário Parsifal Barroso, do Ceará, e o pessedista Pedro Godim, da Paraíba.
Este, por sinal, não era bem visto pelas esquerdas e principalmente pelas Ligas
Camponesas, que no município de Sapé possuíam sua mais numerosa associação delavradores. Na semana seguinte à greve, em visita ao Rio de Janeiro, a Sr.a Elisabete
Teixeira, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, esteve na sede da CNTI e
denunciou à imprensa e ao Comando que o governador da Paraíba não havia lhe dado
garantias de vida.551 Todavia, na ocasião da greve, Pedro Godim enviou mensagem de
solidariedade a Goulart, respeitando o acordo político em torno do fim do
parlamentarismo que havia sido estabelecido algumas semanas antes na reunião dos
governadores em Araxá (MG).552 Isso não impediu que os dirigentes sindicais lhe
fizessem discursos de censura.Por sua vez, a Bahia era governada pelo udenista Juracy Magalhães, que, como
vimos, efetuava uma repressão recorrente aos movimentos sociais e se opôs à posse de
Jango. O governador baiano a essa altura estava em acordo com o seu colega da
Guanabara, por onde, em outubro, apresentou sua candidatura ao Senado.553 Na Bahia
os sindicalistas de esquerda também se organizaram através de uma intersindical
denominada Comissão Permanente de Organizações Sindicais (CPOS), e existiam ainda
o Pacto de Unidade Operário-Estudantil-Camponês e a União dos Estudantes da Bahia,
enquanto no Ceará havia o Pacto Sindical, desde os fins dos anos cinquenta.
A greve na região Nordeste mostra como funcionou o dispositivo organizado
pelo CGG ao longo do mês de junho. Um dos mais bem organizados, o CONSINTRA
de Pernambuco vinha fazendo agitação em suas bases desde o mês de junho, fazendo
ecoar nos meios sindicais as notas de advertência do general Osvino Alves. Já vimos
que o próprio Dante Pelacani foi à capital pernambucana e proferiu discurso em reunião
pública no Sindicato dos Tecelões, onde convocou os trabalhadores a resistir à ameaça
551 Conforme a reportagem “Comando de greve reitera a sua posição nacionalista.” Jornal do Brasil, 13de julho de 1962, p.4.552 Em nossa dissertação de mestrado, destacamos a importância da reunião dos governadores na cidademineira, realizada no dia 8 de junho, no qual só Lacerda não se comprometeu com a iniciativa deMagalhães Pinto em apoiar Goulart na liquidação do Parlamentarismo. MELO, O plebiscito, op. cit.,
p.109-112.553 Foi derrotado por Aurélio Vianna, que concorreu pela Aliança Socialista e Trabalhista (PSB-PTB),apoiado pelo PCB.
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de golpe com uma greve geral em todo o país.554 Além das notas distribuídas pelos
principais sindicatos, assembleias sindicais foram realizadas na capital e na cidade de
Caruaru, e o próprio CONSINTRA emitiu um comunicado onde apresentava a proposta
de greve geral anti-golpe.555 Após a Câmara rejeitar o nome de San Tiago Dantas, a
folha comunista A Hora interpretou os acontecimentos como uma manobrairresponsável das cúpulas do PSD e da UDN que acabaria levando a que a crise de
governo se tornasse uma crise do regime, e convocou o movimento sindical a assumir o
papel de força decisiva para que fosse instituído um governo “nacionalista e
democrática”.556
Entre as 16h e 17h da tarde do dia 4, da sede da CNTI no Rio de Janeiro, o sr.
Wilson de Barros Leal telefonou aos estados para acionar o dispositivo grevista através
da “senha”.557 O CONSINTRA realizou sua reunião já as 17h do mesmo dia, logo após
ter sido recebida a tal “senha”, na qual foi decidida a decretação da greve geral e aorientação para que os sindicatos aprovassem a medida em suas assembleias já nas
primeiras horas da noite daquele dia. Às 22 horas inúmeras entidades classistas
pernambucanas já haviam distribuído manifestos conclamando a greve geral, desde
bancários até trabalhadores da orla marítima.558
Na manhã do dia 5, o líder ferroviário Cláudio Braga, presidente do
CONSINTRA (e presente no dia anterior na reunião da CNTI no Rio de Janeiro),
chegava ao Aeroporto dos Guararapes, sendo recepcionado por uma comitiva de
sindicalistas que o encaminharam ao comando de greve. Como parte da comitiva,
estavam os presidentes dos sindicatos da orla marítima, como o portuário Cícero
Targino Dantas e o estivador José Osvaldo Gomes, o que denotava o grau de articulação
entre as categorias agrupadas no PUA, e politicamente entre trabalhistas (Braga) e
comunistas (Dantas e Gomes). Ao fazer declarações aos repórteres presentes, o
dirigente do CONSINTRA afirmou estar trazendo um manifesto do governador gaúcho,
Leonel Brizola, em que o mesmo afirmava que o senador Auro Moura Andrade havia
554 “Greve geral no país contra o golpe.” A Hora, Recife, 9 a 15 de junho de 1962, p.7. Hemeroteca doArquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).555 “Trabalhadores realizam assembleias contra o golpe.” A Hora, Recife, 16 a 22 de junho de 1962, p.1.Hemeroteca do Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).556 Editorial: “Resolver a crise do governo com um governo nacionalista e democrático.” A Hora, Recife,30 de junho de 1962, p.1. Hemeroteca do Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano,Recife (PE).557 “Vitória dos trabalhadores na greve de advertência.” A Hora, Recife, 30 de junho a 7 de julho de 1962,
p.2. Hemeroteca do Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).558 Diário de Pernambuco, Recife, 5 de julho de 1962, p.3.
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“traído a confiança do Presidente Goulart, porque, na oportunidade emque foi indicado, comprometeu-se a adotar determinada conduta. De
posse da indicação, entretanto, apresentou-se ao Congresso de mododiferente, caracterizando sua orientação reacionária e antinacional, logoapós seu nome ter sido aceito pela Câmara dos Deputados”559
Em seguida, Braga justificou o porquê dos líderes sindicais terem mantido a greve,
mesmo tendo renunciado o senador paulista à presidência do Conselho de Ministros.
“Contudo, mesmo que ontem à noite já estivessem superadas todas as possibilidades de um golpe na Legalidade democrática, mesmo assim ostrabalhadores não poderiam deixar de paralisar, hoje, por 24h,demonstrando a sua coesão em torno dos princípios democráticos e a suacapacidade de reagir, a qualquer momento, contra qualquer tentativa degolpe”560
A imprensa pernambucana561 assinalou a paralisação total da rede bancária que
compreendia a base sindical da Federação Norte e Nordeste dos Bancários, desde
Alagoas até Manaus. A própria Federação determinou a greve em toda sua jurisdição,
tendo seu presidente, Gilberto Azevedo, ao lado do presidente do Sindicato dos
Bancários de Pernambuco, Fausto Nascimento, tomado a iniciativa de informar aos
gerentes das agências bancárias pernambucanas a decisão dos trabalhadores de realizar
a greve política. Na explicação dada por Gilberto Azevedo:
“A deliberação dos trabalhadores já está tomada: a de ser contra qualquergolpe, considerando que a composição de um gabinete integrado por
elementos reacionários responsáveis pela crise de agosto e mesmo pelacrise diária que domina o país é um golpe branco contra ostrabalhadores.”562
E, pedindo a colaboração dos gerentes bancários, foi enfático em apelar para que eles
próprios determinassem a não abertura das agências, afinal, “de qualquer modo a greve
será mantida”.
Em Pernambuco foi total a paralisação dos trabalhadores da orla marítima e da
Rede Ferroviária do Nordeste, cujo ramal também ultrapassava as fronteiras do estado,
pois compreendia Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Em Recife 8mil trabalhadores da zona portuária cruzaram os braços, deixando 23 navios parados
559 Última Hora, Recife, 5 de julho de 1962, p.2.560 Idem, p.2.561 Diário de Pernambuco, Recife, 6 de julho de 1962, Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962, p.2.562 Última Hora, Recife, 5 de julho de 1962, p.2.
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(treze atracados e dez ao largo).563 Pararam também os moageiros, ao meio dia no
Moinho Recife e na Fábrica de Massas Alimentícias Pilar. Movimento dirigido pelos
respectivos sindicatos, segundo o jornal local do PCB, tal greve acabou prejudicando o
próprio funcionamento das padarias.564 Os rodoviários recifenses começaram a paralisar
seu trabalho às 15 horas, tendo às 20h cessado totalmente o sistema de transportes públicos na capital. Os voos do Rio para o Recife e Fortaleza também foram cancelados,
e os telegrafistas fizeram uma “operação tartaruga”. Estudantes também se juntaram a
trabalhadores e promoveram piquetes em portas de fábricas e estabelecimentos
comerciais, realizando pequenos comícios com o propósito de persuadir os
trabalhadores a aderirem à greve geral. Segundo o jornal Última Hora, em sua edição
nordestina, a greve foi total naquela cidade.565
Às 21 horas do dia 5, uma nova assembleia das lideranças do movimento foi
realizada na sede do Sindicato dos Bancários, a partir dos informes de todo o país. Eante a repercussão da prisão de líderes sindicais na Guanabara, um líder portuário
chegou a sugerir que a greve geral fosse mantida até que eles fossem libertados.
Entretanto, em razão da determinação do Comando Geral de Greve no Rio de Janeiro, a
assembleia resolveu pelo fim do movimento à zero hora do dia 6, anotando o seu
sucesso em um manifesto divulgado pela imprensa.566 No texto, afirma-se que apesar de
se estar convocando o fim da greve, assinalava-se o sucesso do movimento e a
necessidade que as bases se mantivessem mobilizadas ante qualquer nova “ameaça de
golpe”. Em tom firme, concluía:
“Nosso movimento, que se estendeu por todo o Brasil, veio tornar claroque o povo não mais se conformará com uma política que traduza fome eque, fiquem certos os maus brasileiros, os entreguistas, os anti-povo e osanti-Brasil, de que continuaremos a luta até a vitória definitiva.”567
No Jornal do Bancário do Sindicato pernambucano, publicado alguns dias
depois da greve, é possível ver como o movimento se apresentava aos trabalhadores da
região com uma dimensão nacional:
“Visando a formação de um Gabinete de Ministros Nacionalista, que façaas reformas de Base que o país reclama, os bancários de todo o Brasilentraram em greve de 24 horas no dia 5 passado, acompanhando osdemais trabalhadores. Em Pernambuco a greve dos bancários foi total,
563 Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962.564 “Vitória dos trabalhadores na greve de advertência.”, op. cit.565 Idem.566 Diário de Pernambuco, Recife, 06 de julho de 1962, p.3. Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962, p.2.567 Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962, p.2.
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não se registrando, pela primeira vez, nenhum incidente com os banqueiros nem com a polícia.”568
Por sua vez, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Recife distribuiu uma
nota oficial onde congratulava-se com o movimento sindical pernambucano pela greve
de advertência. O documento destaca, particularmente, a atuação das categorias dos
bancários, ferroviários, portuários e marítimos. Conclui deste modo:
“Os jornalistas do Recife, fiéis à vocação democrática que semprenorteou os grandes vultos de sua profissão, no presente, saúdamcalorosamente os companheiros trabalhadores que souberam, no dia deontem, traduzir os sentimentos legalistas do povo brasileiro.”569
No Ceará a greve também foi geral. Bancos, comércio, o Porto de Mucuripe, a
Rede de Viação Cearense, repartições públicas e transportes urbanos pararam. Segundo
o jornal Correio do Ceará, o “comando da greve foi instalado na praça ValdemarFalcão, defronte ao Banco do Brasil”, centro de Fortaleza, e às “11 horas, 95 por cento
dos estabelecimentos do centro da cidade desceram suas portas e despacharam seus
funcionários”, e os escritórios e consultórios também fizeram o mesmo. Ainda de
acordo com esta folha, “garçons e os músicos também paralisaram suas atividades,
tendo as orquestras de clubes e boates encerrado seu trabalho à meia noite de ontem.” 570
Segundo notícia publicada no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, na parte da manhã
do dia 5 comerciantes de Fortaleza tentaram abrir seus estabelecimentos, mas ficaram
surpresos pois “as fechaduras das portas estavam obstruídas e, em muitos casos, havia
cadeados novos, tudo feito pelos grevistas”. Com isso, “tornou-se impraticável o
funcionamento do comércio, que, assim, permaneceu de portas cerradas durante todo o
dia.”571
De acordo com outra folha cearense, o jornal O Povo, às 11 horas do dia 5 se
encontravam paralisadas as fábricas têxteis Santa Cecília e Santa Maria, além das
plantas da São Judas Tadeu, Cidão e Usina Everest. Além disso, a Siqueira Gurgel S.A.
encontrava-se parcialmente paralisada. Contudo, outras cinco importantes empresas
estavam com o funcionamento normal.572 Não se tem notícia sobre o desenrolar da
568 “Greve de 24 horas.” Jornal do Bancário, Recife, Ano III, n.12, 1ª quinzena de julho de 1962.Biblioteca Nacional (RJ).569 “Sindicato dos jornalistas contra ameaças golpistas.” A Hora, 7 a 13 de julho de 1962, p.2. Hemerotecado Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife (PE).570 Correio do Ceará, Fortaleza, 6 de julho de 1962.571 Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 06 de julho de 1962, p.4.572 O Povo, Fortaleza, 5 de julho de 1962, p.2.
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greve no setor industrial no restante do dia, mas é provável que o quadro tenha
permanecido inalterado. Os ferroviários cearenses iniciaram a greve à zero hora do dia
5, tendo paralisado todos os setores da Rede Viação Cearense, exceto o serviço
telegráfico, que ficou funcionando parcialmente e sob o controle do comando grevista.
A greve dos ferroviários contou também com o apoio dos engenheiros da empresa.Já a greve dos bancários contou com a colaboração de alguns gerentes bancários
e também com o apoio explícito do presidente da Caixa Econômica Federal no Ceará,
Luís Campos, que declarou à imprensa estar totalmente solidário com o “movimento
dos trabalhadores pela legalidade”.573 A greve dos trabalhadores do porto também teve
seus momentos de radicalização quando, também na parte da manhã, os grevistas
chegaram a forçar a atracação de um barco que tentou abandonar o ancoradouro. Era o
sinal de que o movimento de greve não aceitaria nenhuma indisciplina. Por sua vez,
temendo a proliferação de quebra-quebras, os donos das frotas de transportes públicosretiraram os ônibus de circulação entre às 9 e 10 horas da manhã, já que por essa hora
manifestantes estavam parando os veículos e obrigando os poucos passageiros a
descer.574
Às 10h30m da manhã, um grupo de centenas de trabalhadores da orla marítima
se deslocou para a praça Valdemar Falcão, onde confraternizou com representantes de
outras categorias de grevistas que faziam agitação através de um sistema de som.
Decidiram sair em passeata através da rua Senador Alencar, tomando a rua 24 de Maio
em direção à praça José de Alencar.575 Neste local se realizou um “comício relâmpago”,
onde oradores furiosos chamavam “com nomes feios” os deputados do PSD e UDN,
como o deputado udenista Martins Rodrigues, qualificado por um orador de “traidor da
pátria”, “fascista” e “golpista”.576 Além deste comício, diversos outros pequenos se
realizaram nas ruas centrais da capital cearense, inclusive um em frente à Assembleia
Legislativa, onde os manifestantes aproveitaram para exigir que fosse sustado um
projeto de lei que visava à implantação do parlamentarismo no estado.577 Em todas
573 Idem, ibidem.574 O Povo, Fortaleza, 6 de julho de 1962, p.8.575 Idem, ibidem.576 Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962, p.2.577 Esse foi um dos imbróglios jurídicos daquela experiência parlamentarista, pois estava prevista ainstalação do sistema de gabinete nas unidades da federação. Isso contribuiu para que fosse praticamenteunânime entre os governadores estaduais a rejeição ao parlamentarismo, levando a que, como jámencionamos, muitos opositores de Jango se aliassem momentaneamente ao presidente na luta pela voltaao presidencialismo. O caso mais emblemático foi o do governador mineiro Magalhães Pinto, que fez doseu sobrinho e banqueiro José Magalhães Pinto, do Banco Nacional de Minas Gerais, o administrador
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essas proclamações públicas, os líderes da greve defenderam a formação de um gabinete
“nacionalista e democrático”, “capaz de realizar as reformas de base”.
Ao mesmo tempo em que ocorria a mobilização popular nas ruas, uma comissão
de representantes das classes dominantes locais realizava audiência com o governador
Parfisal Barroso, do PTB, com o propósito de “pedir providências”. 578
Para desagradoda comissão, o governador não se prontificou a pôr a polícia militar na repressão ao
movimento (embora agentes do DOPS tenham acompanhado a mobilização, como
anotou a reportagem de O Povo),579 e o desenrolar do movimento foi tão pacífico
quanto em Pernambuco.580 Posteriormente, o semanário comunista Novos Rumos
narraria este episódio com fina ironia:
“Na mesma hora do comício, uma comissão das chamadas ‘classes produtoras’ (...) visitava o Governador Parsifal Barroso, solicitando providências ‘contra possíveis saques e depredações’ para que fosse
reaberto o comércio (...) O Governador respondeu que nada poderiaresolver, antes de ouvir o comando central de greve. E imediatamentemandou emissário aos presidentes dos sindicatos operários, pedindo quecomparecessem ao Palácio. Atendido pela direção do movimento, oGovernador expôs as ‘razões’ das classes dominantes, apavoradas com ademonstração de unidade e organização da classe operária. Estavamtemendo a subversão da ordem (...) Então [José de Moura] Beleza, o
presidente do Pacto Sindical, respondeu ao Governador que o susto das‘classes produtoras’ era infundado e que ninguém melhor do que asmassas trabalhadoras para manter a ordem. O sr. Parfisal Barrosoconcordou com os dirigentes sindicais cearenses, acrescentando queapoiava sinceramente a greve política pela constituição de um gabinetenacionalista. Em seguida, s. excia. voltou à presença das ‘classes
produtoras’ informando que o comércio continuaria fechado, por decisão
financeiro da campanha pelo NÃO no plebiscito de 6 de janeiro de 1963. Remetemos mais uma vez anossa dissertação de mestrado. MELO, O plebiscito de 1963, op. cit., capítulos 2 e 3.578 De pregressa carreira política parlamentar no PSD, Parsifal Barroso filiou-se ao PTB, ligando-se aJoão Goulart desde que ocupara a pasta do Trabalho durante o governo Juscelino Kubitschek. Em 1959foi eleito para o governo do Ceará. Na crise de agosto/setembro de 1961 apoiou a posse de João Goulart,mas em 1963 romperia com o governo e com o PTB, passando para o Partido Trabalhista Nacional e,após o golpe de 1964, retirou-se por alguns anos da vida pública para retornar em 1970, como deputado
federal cearense pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de sustentação política do regimeditatorial. Verbete “Parsifal Barroso.” Dicionário Histórico-Biográfico do Brasil. Pós-1930. Rio deJaneiro: Ed.FGV, 2001. CD-Rom.579 O Povo, Fortaleza, 5 de julho de 1962, p.2.580 De acordo com a historiadora Bárbara Cacau dos Santos, em sua dissertação de mestrado, o líder doPacto Sindical, José de Moura Beleza, mencionou em depoimento ao Núcleo de Documentação e Cultura(NUDOC) da Universidade Federal do Ceará que chegou a ser preso pela polícia militar em uma greve
política realizada em 1962, mas como aponta a pesquisadora, Beleza lembrou da greve de setembro, poisem julho o movimento ocorreu com tranquilidade. SANTOS, Bárbara Cacau dos. “Trabalhadorescearenses, uni-vos!” O Pacto de Unidade Sindical em Fortaleza (1957-1964). Dissertação de Mestradoem História Social. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009, p.105.
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por exemplo: a dos ferroviários se estabelecia nas proximidades daEstação (local de concentração da passeata), a dos bancários, localizada àrua Barão do Rio Branco, 686, a dos sapateiros, à rua Meton de Alencar,833, próximo à praça da Bandeira.”583
Acreditamos que essa experiência imediata de uma “passeata monstro” em maio de
1962 contribuiu decisivamente para que, diferentemente de outros pontos do Brasil, a
greve geral de julho tenha se expressado em Fortaleza também numa massiva
manifestação pública. A temperada ação de solidariedade entre as diversas categorias de
trabalhadores cearenses (quando alguma categoria entrava em greve) assumia agora
também a forma de manifestações públicas massivas, em que as delegações das
categorias sociais se encontravam em um ponto no centro da capital, para sair em
seguida em passeata pelas ruas da cidade.584
De passagem pela capital cearense durante a parte da manhã, o presidente doSindicato Nacional dos Aeroviários, Elício Sergio de Melo, declarou aos repórteres que
a greve era total em toda a região Nordeste.585
Na Paraíba, os sindicatos decretaram estado de alerta e a Federação dos
Trabalhadores na Indústria convocou uma assembleia geral permanente. Houve ainda
uma concentração nas ruas centrais da capital paraibana, nas imediações da Praça João
Pessoa, onde os populares aguardavam o desenrolar dos acontecimentos. Por sua vez,
como já assinalamos, o governador Pedro Godim emitiu nota se solidarizando com
Goulart.586
No Maranhão, foi paralisada a linha férrea que ligava São Luís à capital doPiauí, Teresina.587 Já na Bahia a Petrobrás e o porto paralisaram suas atividades no dia 5
de julho, mas não se viu nenhuma outra adesão. É preciso lembrar a dura repressão que
do governo baiano sobre os soteropolitanos no dia 29 de junho, e talvez indagar se não
foi esta a sua própria “greve geral”.
Um ponto que chama atenção tem relação com a ausência de intervenção militar
na greve geral na região Nordeste. Sob a jurisdição do IV Exército, sediado no Recife e
comandado pelo general Arthur da Costa e Silva, este resolveu relaxar o “estado de
prontidão”, logo que ficou claro que a situação era de “calma total”, o mesmo tendo
583 SANTOS, “Trabalhadores cearenses, uni-vos!” op. cit., p.102.584 “A experiência positiva do encontro de passeatas em pontos estratégicos, para então percorrer ruas quese constituíram em redutos tradicionais de luta operária, foi incorporada aos costumes do fazer greves emanifestações públicas dos trabalhadores cearenses.” Idem, p.104.585 O Povo, Fortaleza, 5 de julho de 1962, p.2.586 Última Hora, Recife, 6 de julho de 1962, p.4.587 Idem, ibidem, p.2.
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sido feito pela Marinha.588 De fato, na região nordestina não houve qualquer ato
violento que tenha ganhado notoriedade. Praticamente não houve repressão por parte
das forças públicas estaduais, exceto na Bahia, não havendo também incidentes como
aqueles na Guanabara e no Estado do Rio. E nada comparável a tropas do Exército ao
lado dos grevistas contra a polícia política e o governador. Dificilmente isso poderiaocorrer sem que o comando do IV Exército fosse ocupado por um nacionalista como
Osvino Alves, e não um golpista como Costa e Silva.589
Na região Norte, no Pará, os primeiros a entrar em greve foram os funcionários
da Petrobrás. O seu Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração do Petróleo,
cuja base abrangia os estados do Pará, Amazonas e Maranhão, publicou no jornal A
Província do Pará uma nota conclamando à adesão à parede. Nesta nota, a greve é
apresentada como um movimento contra o imperialismo norte-americano, em defesa da
Petrobrás, por Jango e por um gabinete nacionalista capaz de realizar as reformas de base.590 Nesta categoria, a adesão foi total. O segundo setor a paralisar totalmente foram
os marítimos e os portuários. Já a Federação dos Trabalhadores na Indústria do Pará não
decretou greve, mas ficou de sobreaviso esperando o desenrolar dos acontecimentos.
Diferentemente de outras regiões, os bancários também não paralisaram, embora o seu
Sindicato tenha se colocado em solidariedade a Jango. Também as escolas, os
escritórios e o Instituto de Previdência Social funcionaram com enorme irregularidade.
Por sua vez, as Polícias Civil e Militar paraenses ficaram de prontidão e,
segundo a mesma folha, “a cidade [de Belém], contudo, não apresentou nenhuma
anormalidade em suas atividades de rotina. Os transportes coletivos não sofreram
solução de continuidade, os bancos funcionaram normalmente, bem como o
comércio.”591 Foi certamente uma greve fraca neste ponto do território nacional.
Nos estados de Minas e São Paulo a paralisação também foi muito parcial. Em
Minas houve greve na companhia siderúrgica Mannesmann (em Belo Horizonte) e na
Cidade Industrial (Contagem), com depredações em Além Paraíba. Segundo O Estado
588 Idem, ibidem, p.4.589 É preciso lembrar que já na crise de agosto de 1961 o general Arthur da Costa e Silva se posicionou aolado dos ministros militares golpistas, tendo protagonizado um conhecido diálogo com o entãogovernador Brizola no qual deixou clara sua oposição ao movimento legalista. Daí os problemasdecorrentes da idéia de “dispositivo sindical-militar” dos brasilianistas Kenneth Paul Erickson e TimothyFox Harding, que atribuem à “cobertura militar” o sucesso das greves gerais políticas de 1962. Ou seja,esses autores generalizam uma situação específica da Guanabara. ERICKSON, Kenneth Paul.Sindicalismo no processo político no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979. HARDING, Timoth Fox. The
political history os organized labor in Brazil. Stanford: Stanford University, Ph.D., 1973.590 Província do Pará, Belém, 5 de julho de 1962, p.5.591 Província do Pará, Belém, 6 de julho de 1962, p.2 e p.10.
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de Minas, na Mannesmann “pelotões de paredistas se postaram nos dois portões de
acesso às oficinas da empresa”, impedindo a entrada dos funcionários que
compareceram para trabalhar. O mesmo dispositivo teria sido utilizado pelos grevistas
na Magnesita S.A., localizada também na Cidade Industrial, mas os resultados não
teriam sido muito alvissareiros.592
No resto do estado mineiro parece não ter tidomaiores repercussões o movimento grevista. 593
Já em São Paulo a paralisação foi total em Santos (portos, fábricas, oficinas,
funcionalismo, operários da refinaria de Cubatão), São Vicente e demais cidades da
Baixada santista. Segundo o historiador Fernando Teixeira da Silva,594 a greve de 5 de
julho foi "coroada de êxito” em Santos, diferentemente do que havia ocorrido em agosto
de 1961, quando os sindicalistas ligados a Jânio Quadros conseguiram desorientar o
movimento na cidade. A grande exceção mesmo foi a cidade de São Paulo, onde,
segundo o historiador Murilo Leal Pereira Neto, as diretorias dos sindicatos dosmetalúrgicos e têxteis se reuniram no dia 6 para apenas declarar seu apoio ao
movimento. Conforme o mesmo autor, a greve não foi sequer mencionada no jornal dos
metalúrgicos de São Paulo da semana seguinte.595
A questão em São Paulo certamente se ligava à correlação de forças na capital
em contraste com a Baixada Santista, pois, já na tarde do dia 4, logo que ficaram
sabendo da orientação emanada da CNTI para uma greve geral em todo o país, os mais
importantes industriais paulistas pediram uma audiência com o governador Carvalho
Pinto para que fossem tomadas providências. Liderados pelo empresário José Ermínio
de Moraes Filho, os industriais da FIESP tão somente pediram ao governador que
acionasse o dispositivo da DOPS.596 Como também demonstrou Murilo Leal Pereira
Neto, o governador paulista tinha toda a experiência na repressão ao movimento
sindical, pois em dezembro do ano anterior, ao lado dos ministros da Justiça, Alfredo
Nasser, e do Trabalho, Franco Montoro, coordenou a brutal repressão ao movimento
operário paulista que organizou uma greve geral em 13 de dezembro para pressionar o
592 “Sem extensão a greve na Capital.” O Estado de Minas, Belo Horizonte, 6 de julho de 1962, capa.593 “Suspensão da Greve à zero hora de hoje.” Idem, ibidem, p.5.594 SILVA, Fernando Teixeira da. A carga e a culpa: os operários das Docas de Santos: direitos e culturada solidariedade (1937-1968). São Paulo: Hucitec; Santos: Prefeitura Municipal de Santos, 1995, p.177.595 PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no “vulcão do inferno”..., op. cit., p.301-303.596 “Calma em São Paulo.” Correio Paulistano, 5 de julho de 1962, p.6.
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Senado para que este aprovasse o projeto de lei, já sancionado pela Câmara, que
instituía o 13º salário.597
O encarregado do Serviço de Imprensa, Rui Marcucci, divulgou, logo após o
meio dia, uma nota do Governo paulista onde se afirmava: “A situação é de ordem e
tranquilidade pública no Estado. Os bancos funcionam normalmente. A população toda,desejosa de segurança e respeito aos seus direitos, manteve suas atividades habituais de
trabalho.”598 Mas como o comunicado oficial não mencionava a posição de Carvalho
Pinto frente à crise política entre Goulart e o Congresso, os repórteres no Palácio dos
Campos Elisios questionaram Marcucci, que retrucou com irritação, chamando tais
jornalistas de “arruaceiros”, para em seguida declarar que “o Governo não era obrigado
a dar cobertura a greves políticas”. A questão é que o silêncio de Carvalho Pinto
escondia o fato de que, desde a renúncia de Auro Moura Andrade, a Secretaria de
Segurança Pública entrara em regime de prontidão. De acordo com a reportagem doCorreio Paulistano,
“Desde que irrompeu a crise política originada com a renúnciado senador Moura Andrade, a Secretaria de Segurança Pública entrou emregime de prontidão, mobilizando na madrugada de ontem todos osrecursos disponíveis.
Através do Departamento de Ordem Política e Social, e com acolaboração de todos os órgãos da Segurança Pública, foi montado umdispositivo especial de policiamento, de molde a proteger os setores deatividades fundamentais em São Paulo.
Às primeiras horas de ontem, cerca de 1.000 homens da ForçaPública e da Guarda Civil foram destacados para guarnecer as ferrovias,empresas de transportes coletivos, mantendo-se um policiamento especialnos principais pontos das sedes fornecedoras de água, força, luz etelefone.
Paralelamente, as viaturas da Rádio Patrulha foram localizadasem setores estratégicos, distribuídas por toda a cidade e periferia.
O policiamento se manteve intensivo, ficando de prontidão, emseu gabinete, o secretário Virgílio Lopes, onde recebeu a comunicação deque, apesar da greve ali deflagrada, a cidade de Santos não registravadistúrbios.
597 PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no “vulcão do inferno”..., op. cit., p.282-287. Emuma nota oficial expedida no dia 12 de dezembro de 1961, um dia antes da programada greve geral pelo13º, o ministro da Justiça declarou que “O Congresso Nacional não decide sob coação”. Isso foi escrito
pouco mais de dois meses após, sob coação do golpismo militar, o Congresso ter emendado aConstituição para instituir o parlamentarismo. “Ministro da Justiça declara ilegal a anunciada greve”,Folha de São Paulo, 13 de dezembro de 1961, p.1.598 “Reinou calma total ontem no Palácio dos C. Elísios.” Correio Paulistano, 6 de julho de 1962, p.3.
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fundada em 1956 e que congregava a totalidade dos 56 sindicatos de Santos e de outras
cidades da Baixada Santista, possuía um exemplar trabalho político com suas bases,
tendo já uma experiência de muitas lutas importantes. Todavia, desde a crise de agosto-
setembro de 1961, o FSD vinha passando por problemas entre um grupo identificado
politicamente com Jânio Quadros e a esquerda nacionalista, que era hegemônica nasdireções sindicais. A conjuntura da crise de junho/julho e a greve geral só agudizou essa
cisão.603 Vejamos como se efetivou a greve em Santos.
Em conjunto com outra intersindical que fazia parte de sua base, a União dos
Sindicatos da Orla Marítima de Santos (USOMS) – além de representações da CNTI e
do PUA –, o Fórum Sindical de Debates reuniu-se na sede do Sindicato dos Operários
Portuários já no início da noite do dia 4 de julho, onde foi proclamada a greve geral. 604
Em manifesto essas entidades proclamaram-se em defesa dos mesmos princípios que
orientaram as outras entidades sindicais do país a liderarem a paralisação do trabalho: a) por um gabinete nacionalista e democrático; b) pelas reformas de base; c) em apoio à
posição do presidente João Goulart de decidir “não mais transigir” com as forças
golpistas; d) em apoio às manifestações públicas do general Osvino Ferreira Alves, que
denunciou a existência de uma “conspiração golpista com vistas à implantação de uma
ditadura fascista no Brasil”.605
Em Santos o movimento iniciou-se logo na noite do dia 4 na Refinaria
Presidente Bernardes, seguindo com a paralisação da principal atividade econômica da
cidade, o porto e de toda a orla marítima, já à zero hora do dia 5, tendo a própria
Companhia Docas de Santos deliberado a suspensão oficial dos trabalhos, nas primeiras
horas da manhã. A sede do Sindicato dos Portuários, foi transformada em “quartel-
general” da greve, de onde partiu uma série de piquetes antes da zero hora do dia 5.606
Atendendo ao pedido de uma comissão de representantes sindicais, a Secretaria
Municipal de Transportes Coletivos decidiu tirar os seus bondes e ônibus de circulação,
tendo o mesmo sido feito pelas empresas particulares, e até o serviço de táxis foi
suspenso, já que os piquetes grevistas também molestaram os motoristas que insistiam
em trabalhar. Até as empresas que operavam a linha intermunicipal para a capital do
603 SARTI, Ingrid. Porto Vermelho: os estivadores santistas no sindicato e na política. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1981, p.132-134.604 “Decretada greve geral em toda a Baixada Santista a partir da zero hora de hoje.” A Tribuna de Santos,Santos, 5 de julho de 1962, p.8.605 Comunicado das entidades de cúpula CNTI, PUA, USOMS e FSD, 4-VII/1962, apud SARTI, PortoVermelho, op. cit., p.133.606 “Decretada greve geral em toda a Baixada Santista...”, op. cit., p.8.
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estado suspenderam totalmente suas atividades às 14 horas, tendo funcionado de forma
bastante precária nas horas anteriores.
A única linha da Rede Ferroviária Nacional no estado de São Paulo a entrar em
greve foi a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, onde, às 16 horas, como forma de socorrer
os populares perdidos nas estações ferroviárias, caminhões do Departamento deEstradas de Rodagem e da Estrada de Ferro Sorocabana foram requisitados pela
Secretaria Estadual de Segurança para transportar os populares de volta para seus lares.
Nenhum dos bares e restaurantes do centro comercial de Santos abriu as portas. Além
das fábricas, o comércio cerrou as portas, e nem as escolas funcionaram, pois o ativo
movimento estudantil secundarista puxou a greve junto a uma parte de seus mestres.
Com medo dos piquetes, até as salas de cinema do centro da cidade suspenderam as
tradicionais sessões vespertinas.
Às 20 horas o FSD promoveu uma assembleia que também decidiu suspender agreve à zero hora do dia 6.607 Todavia, embora a decisão estivesse respaldada
politicamente pela opinião da sua base social, as forças do janismo, em aliança com as
correntes políticas ligadas ao sindicalismo pró-EUA da ORIT, aproveitaram o episódio
da greve para promover uma ruptura na direção do FSD. Assim, o presidente do
Sindicato dos Estivadores de Santos, Raimundo Vasconcellos, em atitude unilateral e
em desacordo com a posição de sua base, resolveu desligar seu sindicato do Fórum.
Mas a esquerda não deixou barato, e numa assembleia extraordinária de quase mil
estivadores decidiu posteriormente destitui-lo do cargo.608 De qualquer modo, o que
dava autoridade maior ao FSD era o próprio fato de a greve ter sido um sucesso, a ponto
do Correio Paulistano ter descrito o centro da cidade portuária como “deserto” e
“entregue às moscas” naquele 5 de julho.609 O que não impediu que no dia seguinte, em
sessão noturna a Câmara de Vereadores aprovasse um requerimento de repúdio à greve
política e exortando os
“verdadeiros líderes sindicais, democráticos e independentes aassumirem seus postos no Fórum Sindical de Debates, não permitindo
607 “Santos totalmente parada pela greve geral de ontem.” Correio Paulistano, 6 de julho de 1962, p.3.608 “Os associados do SES [Sindicato dos Estivadores de Santos], em sua maioria partidários da atitudeexpressa pela direção do FSD, rebelam-se contra seu presidente e numa movimentada assembleia geralextraordinária de aproximadamente mil homens, deliberam afastá-lo do cargo. Assustado, Raimundoescondeu-se num hospital, dando ao fato um aspecto caricatural, enquanto assumira o vice-presidente,Florival Alves da Silva, voltando, com ele, a esquerda nacionalista ao poder.” SARTI, Porto Vermelho,op. cit., p.134.609 Correio Paulistano, 6 de julho de 1962, p.3.
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que a minoria a serviço do Partido Comunista Brasileiro tumultue acidade, com uma greve geral injustificável, como a de anteontem”610
Ainda no estado de São Paulo, também houve a paralisação de uma usina de
açúcar em Ribeirão Preto, enquanto outras cinco na mesma cidade estiveram sob
ameaça de paralisação geral ao longo do dia. O movimento foi resultante da ação da
Federação dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação, que foi uma das poucas
entidades paulistas que determinou às suas bases seguirem a orientação do CGG. Em
atitude diversa, a Federação dos Trabalhadores em Transportes de São Paulo não aderiu
ao movimento, alegando que “sozinho” Jango saberia encontrar uma solução para a
crise, denotando uma concepção que no jargão comunista poderia ser definida como
“reboquista” em relação ao papel do movimento sindical na política nacional. 611
No vizinho Paraná, também havia um Fórum Sindical de Debates do Litoral
Paranaense, fundado naquele mesmo ano de 1962, por iniciativa dos trabalhadores que
trabalhavam no Porto de Paranaguá, e que foram o único setor daquele estado que
paralisou suas atividades naquela greve geral. Na conjuntura da crise do gabinete,
organizava-se também o III Congresso Sindical dos Trabalhadores do Paraná, e a sua
Comissão Organizadora entrou em reunião permanente desde que tomou conhecimento
da renúncia de Moura Andrade, de modo a organizar manifestações de solidariedade.
Todavia, não se decidiu pela adesão à greve e tal movimento só foi conhecido na cidade
portuária de Paranaguá. De acordo com a edição paranaense do jornal Última Hora:
“Em Paranaguá, portuários, marítimos, ensacadores e demais categorias profissionais que trabalham na faixa dos cais do porto, após rápidaassembleia geral extraordinária, decretaram uma greve que eclodiu às 13horas de ontem, paralisando totalmente os serviços no porto. Dezoitoentidades sindicais daquela cidade comunicaram a decisão ao órgãocentral da coordenação, em Curitiba, autorizando a inclusão do nome desuas entidades no manifesto lançado às organizações operárias
paranaenses.”612
Certamente com um nível de articulação com o movimento nacional precário,
diversas entidades do movimento sindical paranaense não puderam mais do que aprovar
610 “Profligada na Câmara Municipal a recente greve geral ocorrida em Santos.” A Tribuna de Santos,Santos, 7 de julho de 1962, p.3. De acordo com essa fonte, Foram 14 a favor do requerimento e 7 contra.Em seguida a mesma Câmara votou um outro requerimento de apoio ao presidente João Goulart, por este“ter feito um apelo para que a greve fosse sustada”. 611 Correio Paulistano, 6 de julho de 1962, p.3.612 “Greve em Paranaguá: sindicatos organizam movimento antigolpista e de apoio a Jango!” Última
Hora, Curitiba, 6 de julho de 1962, p.2.
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manifestos de apoio ao CGG, também mencionado como “declaração da CNTI”. Outras
entidade aproveitaram a crise e a própria eclosão da greve para promover assembleias
com suas bases sociais, de modo a poderem discutir os rumos da política nacional,
como foi o caso do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas de Curitiba,
que no dia da greve lançou a seguinte circular para seus associados:“Coerente com o apelo da Confederação Nacional dos Trabalhadores nasIndústrias, que lança a palavra de ordem para os sindicatos de suacorporação, no sentido de os mesmos tomarem posição diante da situação
política nacional, quando os grupos golpistas querem tomar o poder eliquidar com os direitos dos trabalhadores, já adquiridos, convocamos ostrabalhadores em geral, pertencentes à nossa categoria, para tomarem
parte na assembleia geral extraordinária que faremos realizar em nossasede, na Rua José Loureiro, 133 – 17º andar – salas 1.709 e 1.710, às 20horas do dia 6 de julho, para apreciarem a seguinte ordem do dia: 1)discutir e votar, para tomar posição, o documento da CNTI; 2) discussão
de assuntos gerais de interesse da classe.”
613
No Rio Grande do Sul, tal como em outros pontos do país, o movimento sindical
estava bem organizado, sendo importante pontuar que no dia 8 de julho seria iniciado o
VI Congresso Estadual dos Trabalhadores Gaúchos, que reuniu as mais expressivas
representações sindicais na cidade de Pelotas, encontro que acabou por se realizar em
meio à comoção nacional decorrente da crise ministerial. Não obstante esse grau de
articulação do movimento gaúcho, a demora da chegada das senhas na noite do dia 4
acabou por prejudicar a eclosão do movimento grevista de forma simultânea ao que
ocorreu em todo o país no dia 5 de julho. Em face desse atraso, o Comando Sindical
gaúcho (hegemonizado pela militância comunista, diga-se de passagem),614 reunido na
ocasião na sede do Sindicato dos Gráficos, decidiu organizar a paralisação para o dia
6.615 Presentes nesta reunião estavam os representantes sindicais da orla marítima,
portuários, energia elétrica, telefones, metalúrgicos, ferroviários, fiação e tecelagem,
transviários, bancários, além dos gráficos e outras categorias. Em assembleia
permanente, deliberaram também uma reunião para a tarde do dia 5, na sede do IAPI, de
modo a acompanharem os acontecimentos e organizarem sua própria paralisação, mas o
613 Coluna Sindical de Pery de Oliveira, Última Hora, Curitiba, 6 de julho de 1962, p.7.614 Na composição da direção do Conselho estavam três comunistas e um trabalhista: Luis Vieira da Silva
– presidente e militante do PCB; Jorge Alberto Campezatto – vice-presidente e dirigente do PCB; AssisBrasil Albuquerque – secretário Geral e simpatizante do PCB; João Fabrício – tesoureiro, presidente doSindicato dos Bancários e militante do PTB. SANTOS, João Marcelo Pereira dos. Herdeiros de Sísifo.
Ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos 1958 a 1963. Dissertação de Mestrado emHistória. Campinas, Unicamp, 2002.615 “Sindicatos do RGS: só amanhã a greve.” Diário de Notícias, Porto Alegre, 5 de julho de 1962, p.1.
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obteve resposta negativa por parte do Comando, apesar de ter sido acertado que não
seriam paralisados os serviços essenciais.618 Após esse encontro, no início da noite, foi
realizado um comício no Teatro São Pedro, centro da capital gaúcha. Vários líderes
tomaram a palavra no meeting, como os sindicalistas Álvaro Avala (delegado da CNTI),
Luiz Vieira da Silva (presidente do Comando de Greve gaúcho), Gregório Nascimento(Orla Marítima), José de Moraes Netto (delegado da CONTEC), Fabrício Moraes
(Presidente do Sindicato dos Bancários), Leopoldo Machado, além do estudante Bruno
Costa (presidente da FEURGS), Milton Serres Rodrigues (presidente do Movimento dos
Sem Terra – MASTER), o jornalista Sólon Pereira Neto, o vereador Alberto Schroeter,
o deputado Hélio Carlomagno e o Prof. Antônio Pádua, do Movimento Nacionalista.
O governador Brizola continuaria a tentar sustar o movimento na tarde do dia 6,
quando telefonou para o “QG” da greve no Sindicato dos Gráficos e, através de contato
com o presidente do Comando, Luiz Vieira da Silva, tentou persuadir os sindicalistas asuspender a paralisação. Todavia, na rápida reunião que se seguiu ao telefonema,
embora os presentes reconhecessem no governador gaúcho, as qualidades de “amigo
dos operários” (como também no presidente Jango), a greve foi mantida, pois, alegou-
se, se tratava de seguir a orientação emanada da CNTI. Na ocasião, embora ponderadas,
também não faltaram críticas ao governador Brizola e ao próprio Goulart, como a feita
pelo sindicalista gráfico Assis Brasil Albuquerque, que pontuou que os dois líderes
políticos trabalhistas tomavam “muitas atitudes esquecendo-se, ambos, de consultarem
as classes trabalhadoras”, referindo-se claramente ao que havia sido até então as
negociações para a escolha da composição do novo Conselho de Ministros. Disse
também, ironicamente, que o governador gaúcho também só lembrava de conversar
com os trabalhadores, “quando lhe interessa”.619
No dia 6 a cidade de Porto Alegre ficou deserta. O comércio e as agências
bancárias do centro da cidade não funcionaram, nem bares, restaurantes, armazéns e
supermercados, que mantiveram suas portas cerradas por todo o dia. Conforme o Diário
de Notícias, nesse dia não “se encontrava local [aberto] nem para um cafezinho.”620
Além disso, também aderiram à greve os trabalhadores em energia, ferroviários,
618 “Greve no Estado começou quando findou a Nacional.” Diário de Notícias, Porto Alegre, 6 de julho de1962, p.9 e p.13. A tentativa de Brizola de sustar a greve é discutida também em JAKOBY, MarcosAndré. A organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a1964. Dissertação de mestrado em História. UFF, 2008, p.146-147.619 “Greve interrompida ontem à meia-noite: sindicatos vão decidir (Pelotas) se continua.” Diário de
Notícias, Porto Alegre, 7 de julho de 1962, p.9.620 “Greve (ordeira) interrompida à zero hora de hoje: cidade quase ficou deserta”, Diário de Notícias,Porto Alegre, 7 de julho de 1962, p.9.
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Já em Santa Catarina a greve foi, tal como no Rio Grande do Sul, no dia 6,
também em razão do atraso na chegada das “senhas”. Por determinação dos sindicatos e
federações sindicais estaduais, pararam os estivadores e conferentes dos portos de Itajaí
e São Francisco do Sul, além dos rodoviários da capital e trabalhadores da área
industrial, nada muito expressivo.627
* * *
Neste capítulo pudemos apresentar a história da greve geral nacional de 5 de
julho de 1962, sua articulação no plano nacional e o funcionamento dos dispositivos
grevistas em diversas regiões do Brasil. Pôde-se observar a importante capacidade de
mobilização das entidades sindicais dirigidas pela esquerda, que arregimentou não só as
categorias que trabalham nas empresas e serviços públicos em geral, como
consideravam os velhos quadros explicativos baseados na noção de sindicalismo populista.
Se efetivamente os trabalhadores da área pública pararam de forma significativa
naquela greve, é importante lembrar do peso do setor público/estatal na economia do
país; de como, por exemplo, a maior parte do setor de transportes estava sob
administração direta do Estado. Só a paralisação total deste setor já era capaz de impedir
que muitos comparecessem ao trabalho no setor privado, seja no mais tradicional ou
mais moderno setor da economia.
E, embora em muitos casos pudéssemos constatar uma colaboração de algumas
autoridades públicas, destacamos que a posição do governo João Goulart foi no sentido
de que a greve não fosse realizada. Assim, a posição política da direção da greve esteve
relativamente autônoma em relação ao governo. Relativamente, pois a autonomia em
relação ao governo teve seus limites, e nunca é demais lembrar que tal movimento foi
desencadeado para apoiar a posição de Goulart em sua luta contra o parlamento, ou pelo
menos apoiá-lo contra a maioria parlamentar e o próprio parlamentarismo.
Mesmo assim, a greve manteve essencialmente as características destes
movimentos gerais que reforçam a identidade dos trabalhadores como classe em
oposição a outras.628 Ainda que não fosse um movimento contra a burguesia enquanto
627 “5 de julho: o País parou em grandiosa greve política da classe operária.” Novos Rumos, 12 de julho de1962, p.2.628 De acordo com Marino Regini, em seu verbete para o Dicionário de Política de Bobbio, Matteucci ePasquino: “A Greve, de fato, não é somente uma prova de força no confronto com o adversário. Antes detudo, pode ser um fator de identidade, um elemento que permite ao grupo de trabalhadores que participa
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classe (mas contra frações desta classe consideradas mais entreguistas e ligadas ao
capital estrangeiro), tratou-se de uma intervenção dos trabalhadores na cena política.
Foram os dirigentes da esquerda sindical que organizaram e acionaram o dispositivo
grevista, e ainda que para isto tenham contado com os recursos financeiros e políticos
da estrutura sindical oficial, tratou-se de uma decisão política direcionar esses recursos para a montagem e execução da greve.
O estopim da greve, aliás, foi a exclusão das representações dos trabalhadores
nas negociações para a composição do novo Conselho de Ministros. Foi assim uma
intervenção em que, trazendo uma agenda de reivindicações que incluía questões de
ordem econômica e política, os trabalhadores saltaram ao centro do palco das disputas
políticas durante o governo Goulart.
Sobre as motivações da greve, os dirigentes sindicais mobilizaram as bases para
enfrentar o que teria sido uma tentativa de golpe com vistas à implantação de umaditadura reacionária no Brasil. A maior parte das evidências sugere que esta não era
uma percepção descabida, pois como mostramos ser a linha defendida pelo
empresariado carioca na Associação Comercial, seus representantes naquela entidade
pugnavam para que os poderes de João Goulart fossem ainda mais reduzidos,
aprofundando o “golpe parlamentarista”.
De qualquer modo, embora tenha sido uma greve contra o aprofundamento do
“golpe parlamentarista”, o “aprofundamento do golpe branco”, ou a execução de um
golpe de qualquer natureza, parecia não haver ainda consenso entre as forças de
oposição à direita ao governo Goulart para o apelo aos quartéis.
Mas nunca é demais lembrar que, mesmo em 1964, com certo cinismo, o
Congresso Nacional endossou o golpe de Estado operado pelas Forças Armadas, em
episódio dramático onde o ainda presidente do Senado, o mesmo Auro Moura Andrade,
declarou vago o cargo de Presidente da República, alegando que Goulart havia fugido
do país. Em seguida, a Corte Suprema (STF), em sessão secreta, deu posse ao
presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazzili, que alguns dias depois presidiu a
eleição indireta do general Castelo Branco iniciando a ditadura. Recentemente, golpes
de Estado utilizaram-se do casuísmo interpretativo das leis vigentes, como aconteceu
como Manuel Zelaya em Honduras (2009) e contra Fernando Lugo no Paraguai (2012).
da Greve, se reconhecerem como classe em oposição a uma outra.” REGINI, Marino. Verbete “Greve”.In. BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de Política.Vol.1. 12ª edição. Brasília: EdUNB, 2004, p.561.
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É possível assim indagar se, já aquela altura, formaram-se escaramuças nesse
sentido. Talvez seja prudente observar como, no momento seguinte o processo político
seria redimensionado a partir da greve, pois àquela altura ficou demonstrado que João
Goulart dispunha de apoio militante de parte expressiva dos trabalhadores do país, além
de relativo apoio na área militar. Naquelas condições de crise, Goulart certamentefortalecia suas posições, pavimentando o caminho para a conquista dos poderes que o
parlamentarismo híbrido lhe tolhia. Vejamos agora os desdobramentos da greve.
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Capítulo 5 – O êxito da greve e seu impacto no
processo político
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Neste capítulo iremos discutir a importância da greve geral, tanto no contexto
específico da crise do Gabinete, quanto no desenrolar do processo político brasileiro até
o golpe de 1964, quando se encerrou aquele ciclo de lutas políticas. A ideia é buscar
precisar o peso que determinadas ações concretas organizadas pelas classes subalternas
podem possuir num contexto político no qual suas direções políticas e intelectuais aconduzem à colaboração com frações das classes dominantes.
5.1 Desdobramentos imediatos
Pode-se dizer que a maior parte dos objetivos da greve política foram atingidos,
pois não só consolidou-se a derrubada de um gabinete hostil às demandas da classe
trabalhadora e às reformas de base, como o Legislativo acabou por aceitar a terceira
indicação feita por João Goulart. Em 13 de julho a Câmara aprovou – sem grandes
polêmicas – o nome de Francisco Brochado da Rocha para presidir o novo Conselho de
Ministros. Havia o temor de que, com mais uma recusa da Câmara, a prerrogativa da
indicação fosse dada ao Parlamento, situação em que o golpe branco do
parlamentarismo estaria consolidado. Isto estava presente na emenda parlamentarista, o
que permitiria manter a aparência legal da manobra golpista. Todavia, a convulsão
social decorrente da greve geral e dos episódios na Baixada Fluminense, e sem dúvida
alguma a habilidade de Goulart de “surfar” na crise, não permitiram que isso ocorresse,
tendo o poder Legislativo nesse episódio se dobrado aos interesses do presidente da
República. Contaria também a necessidade dos congressistas não aparecerem como
responsáveis pelo prolongamento da crise e, mais ainda, a urgência destes voltarem logo
para suas bases estaduais, fortalecendo suas posições para as eleições de 7 de outubro.
Brochado da Rocha pertencia aos quadros do PSD e era Secretário do Interior e
Justiça do governo do Rio Grande do Sul. Possuía uma atuação discreta na política
gaúcha, até que se destacou no episódio da expropriação da International Telephone and
Telegraph Corporation (ITT) pelo governo do Rio Grande do Sul (ocorrida em 16 de
fevereiro daquele ano), atuando como consultor jurídico da operação. Nesta questão ele
conformou com o Embaixador brasileiro nos EUA, Roberto Campos, e o chanceler San
Thiago Dantas uma comissão brasileira que negociou os termos da indenização aos
antigos donos da ITT.629 No fim de tudo, ficaria ressaltado o teor nacionalista da medida
629 DULLES, John W. F. Unrest in Brazil. Political-Military crises 1955-1964. Austin: University TexasPress, 1970, p.174. PARKER, Phyllis R. 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de Estado de 31 demarço. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p.34.
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do governo gaúcho, já que, em contrapartida, Brizola havia depositado um valor
simbólico pela encampação da empresa.630 Por sua participação naquele processo,
Brochado da Rocha foi recebido positivamente pelas esquerdas e com enorme
desconfiança pelas direitas.
Quanto a Goulart, embora tenha ficado contra o movimento paredista, não é possível esquecer que este foi feito em seu apoio. Deste modo, o resultado do processo
acabou por atender aos intentos de Goulart, pois o gabinete de Brochado da Rocha
esteve plenamente integrado ao conjunto de forças políticas interessadas em liquidar o
Parlamentarismo e permitir que o presidente da República fizesse seu governo. Era
episodicamente o grande vencedor naquela contenda.
Os líderes do CGG também se sentiram privilegiados com a escolha do nome de
Brochado da Rocha ter sido feita em acordo com a opinião deles, que também
aprovaram na pasta do Trabalho o nome do socialista Hermes Lima (PSB-BA), cargoantes ocupado por Franco Montoro (PDC-SP), que, como vimos, tinha posição hostil à
mobilização operária e sindical.631 Todavia, o CGG e as demais forças da esquerda
nacional-reformista decepcionaram-se com as indicações de Renato Costa Lima,
presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), para o Ministério da Agricultura e do
banqueiro Valter Moreira Salles, que continuaria na Fazenda. Já no final do mês de
julho, o PCB se declarou na oposição ao novo gabinete, pois haveria muitos
“entreguistas”.632
O saldo da greve também esteve ligado ao encaminhamento da conquista de
direitos sociais, pois no mesmo dia em que a Câmara aprovava Brochado da Rocha, o
presidente João Goulart sancionava a lei que instituiria o 13º salário, na presença de
uma significativa delegação de sindicalistas. Aprovado pelo Senado no fim do mês de
junho, também em face da importante pressão do movimento sindical que havia feito
caravana à capital da República entre os dias 27 e 28 de junho (quando a Câmara
rejeitava o nome de San Thiago Dantas), a conquista desse direito esteve diretamente
ligada à greve de julho. Após a aprovação do projeto do deputado Aarão Steinbruch
630 Repetindo procedimento que havia adotado quando em 1959 também expropriou a American Foreignand Power (AMFORP), do ramo de energia elétrica.631 Como já foi dito, Montoro, ao lado do ministro da Justiça do primeiro gabinete parlamentarista,Alfredo Nasser, e o governador de São Paulo, Carvalho Pinto, orquestrou a repressão à tentativa de grevegeral em 13 de dezembro de 1961, cujo propósito era pressionar o Senado a aprovar a Lei do 13º Salário.632 Face a estes nomes, no fim do mês de julho o PCB declarou sua oposição ao novo gabinete. Novos
Rumos, Rio de Janeiro, 20 a 26 de julho, p.3.
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(PTB-RJ) no Senado,633 a lei precisava apenas da assinatura de Goulart, mas não havia
nenhuma garantia de que ele fosse tomar tal atitude imediatamente, como denota
comparativamente a sua vacilação em assinar a Lei que disciplinava a remessa de lucros
para o exterior, que aprovada em setembro daquele ano de 1962, só seria sancionada por
ele em janeiro de 1964.É claro que a Lei da Remessa de Lucros, que contrariava diretamente os
interesses do capital estrangeiro, naquele contexto de crise, era muito mais delicada
politicamente do que a do 13º, não obstante o fato de que para esse direito se efetivar o
movimento sindical continuaria a mobilização para que fosse estendido aos servidores
públicos, enquanto na economia privada os patrões fariam de tudo para descumprir a lei.
Velha luta da classe trabalhadora brasileira, cujos primeiros movimentos remetem à
conjuntura da redemocratização do país em 1945-46, o “abono de Natal” esteve
presente na pauta levada a Jango pela comissão do Comando Geral de Greve que viajoua Brasília naquele 5 de julho de 1962. Pelo menos até o golpe de 1964, continuaria a ser
objeto da luta pelo seu cumprimento.
Desse modo, além do sucesso da paralisação, com a greve de julho a esquerda
sindical ampliava também o seu prestígio junto à classe trabalhadora, o que desmente de
forma retumbante as formulações tradicionais sobre o sindicalismo populista, discutidas
acima. Além de ter se mostrado um elemento importante de pressão política, a greve de
julho encaminhou demandas econômicas.
Outro aspecto importante. Parece não haver dúvida de que, ao atenderem ao
chamado de uma greve nacional política, absolutamente em desacordo com as normas
vigentes da legislação sindical, denotava-se também a disposição de expressivos
contingentes da classe trabalhadora organizados nos sindicatos em não levar tais normas
em conta; descartaram-na, demonstrando compreender perfeitamente seu propósito
essencial de controlar seu protesto. Nunca é demais lembrar também que o próprio
direito de greve, embora previsto na Constituição de 1946, por não estar regulamentado,
sofria as restrições do Decreto 9.070 de Dutra e dos artigos 197 e 201 do Código Penal,
como vimos, sempre utilizados pelo aparelho de repressão do Estado para coibir o
exercício deste direito democrático. Assim, foi quase natural que os presos em piquetes
na greve de 5 de julho na Guanabara fossem todos enquadrados nesta legislação
autoritária, o que, aliás, aconteceu com regularidade ao longo do regime da República
633 De autoria do parlamentar fluminense, o projeto de lei do 13º salário tramitava na Câmara desde 1955.
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de 1946 até o seu fim – pois em 1963, mesmo frente à forte campanha que se
desenvolvia nos meios sindicais e políticos pela regulamentação do direito de greve, o
STF, mostrando bem o seu caráter de classe, decidiu pela constitucionalidade do
Decreto 9 070.
Neste ponto, poderemos apenas brevemente pensar na natureza das questões queo estudo desta greve nos trouxe, no sentido da nossa contribuição à crítica a noção de
sindicalismo populista, aliada à crítica ao revisionismo liberal-apologético. Afinal, além
de ter sido um movimento feito em contrariedade à posição do presidente João Goulart,
foi antes de tudo uma greve política. E mesmo nos mais democráticos Estados
capitalistas, as greves políticas são em geral condenadas com o rigor da lei.
Obviamente, isso nunca impediu a existência de protestos desta natureza em qualquer
destas sociedades.
Não obstante inúmeros casos de greves políticas, na letra da lei dos Estadoscapitalistas admitem-se as greves chamadas de econômicas, por aumento de salário, até
por direitos sociais, mas a legislação sempre estabeleceu restrições aos movimentos
organizados por sindicatos com um claro propósito político. Sem querer alongar mais
este comentário, caberia apenas consultar como os órgãos internacionais têm se
pronunciado sobre o tema. Segundo uma resolução da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) de 1987, que apresentou os princípios do Comitê de Liberdade Sindical
(criado em 1951) referentes a greves, “as greves de caráter puramente político não se
enquadram nos princípios da liberdade sindical.” E prossegue:
“O Comitê observou expressamente que ‘só na medida em que asorganizações sindicais evitam que suas reivindicações trabalhistasassumam um aspecto puramente político, podem pretender, comlegitimidade, que não se interfira em suas atividades”, mas também temafirmado que “é difícil fazer uma clara distinção entre o político e orealmente sindical”, pois “ambas as noções têm pontos comuns’.” 634
Todavia, na mesma declaração, afirma-se que o debate avançou para o entendimento de
que o direito de greve deveria ser também contemplado em casos nos quais, para a
defesa dos seus interesses profissionais e econômicos, os trabalhadores teriam também
o direito de apresentar reivindicações para questões de política econômica e social.
Mesmo nisso o documento visa estabelecer restrições em relação a tais protestos, que
634 HODGES-AEBERHARD, Jane & ODERO DE DIOS, Alberto. Princípios do Comitê de LiberdadeSindical referentes a greves. Brasília: Ministério do Trabalho & Organização Internacional do Trabalho,1993, p.9.
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não devem levar à “perturbação da ordem pública”. Tais princípios se estenderiam aos
casos das greves gerais, que por sua própria natureza assumem sempre conotação
política. Além disso, prossegue o documento:
“Nos casos de as reclamações, cuja solução se procura obtercom a greve, incluírem, ao mesmo tempo, reivindicações de carátertrabalhista ou sindical e reivindicações de caráter político, a atitude doComitê consiste em reconhecer a legitimidade da greve quando asreivindicações trabalhistas ou sindicais não parecem ser simples pretexto
para encobrir objetivos puramente políticos que careçam de qualquervínculo com a promoção e a defesa dos interesses dos trabalhadores.”635
É bastante curioso que de acordo com essas diretrizes desse órgão ligado às Nações
Unidas, aos trabalhadores estaria reservado o direito de greve desde que estes, por
ventura, não estejam pretendendo algo mais que trabalhar.
5.2 A greve geral no processo político brasileiro
No mês de junho a campanha contra a indicação de San Thiago Dantas foi
objeto da ação da Ação Democrática Parlamentar (ADP), que posteriormente registrou
em seu órgão Ação Democrática o seu papel no episódio.636 Não são poucos os indícios
de que a ADP queria não somente bloquear as iniciativas de Goulart, mas de certo modo
controlar um possível governo parlamentarista organizado por Moura Andrade.
Enquanto isso, na Frente Parlamentar Nacionalista e nas forças que lhe davam suporte –
principalmente o PSB e o “grupo compacto” do PTB –, além de encampar a defesa daindicação de San Thiago, amadurecia a proposta de que o plebiscito previsto na emenda
parlamentarista deveria ser imediatamente marcado pelo Congresso. A rejeição da
primeira indicação feita por Goulart, e a eleição de Auro Moura Andrade pareciam ter
reaberto as possibilidades para o triunfo da ADP, quando ocorreu a intervenção do
movimento organizado dos trabalhadores na cena política.
No Diário do Congresso Nacional é possível recuperar a repercussão da greve
geral nesta esfera do poder do Estado, ainda que deva ser lembrado que em tal tipo de
documentação não existe a totalidade dos registros das intervenções parlamentares
naqueles conturbados dias. Já em 4 de julho, quando os rumores sobre a demissão de
635 Idem, ibidem, p.9. Na mais recente resolução de 1998 da OIT foram reafirmados os mesmos pontos.GERNIGON, Bernard; ODERO, Alberto; GUIDO, Horacio. ILO Principles concerning the right tostrike. Genova: OIT, 1998. Consultada emhttp://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@ed_norm/@normes/documents/publication/wcms_087987.pdf636 Ação Democrática, julho/1962, p.6-7, apud DREIFUSS, 1964, a conquista do Estado, op. cit., p.323.
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Moura Andrade ainda não eram conhecidos, o então deputado Aurélio Vianna (PSB-
AL)637 assim interveio no plenário da Câmara:
“Sr. Presidente [da Câmara], está aí o resultado do monumento queconstruíram na calada da noite: pirâmides erigidas sobre bases falsas,sobre areia movediça. Criaram um sistema de governo impar no mundo
inteiro, diferente dos outros. Tiraram atribuições ao Presidente daRepública de Chefe de Governo. Luta-se ainda para retirar-lhe o que lhesobra de poder como Chefe de Governo que também é. Chegamos entãoa um impasse. Ninguém se equivoque, ninguém se engane, pois nestaCasa ouviam-se comentários de certos grupos naquelas noites e tardes deagosto, ‘Se Milton Campos tivesse sido eleito Vice-Presidente daRepública, não se teria alterado o sistema.’” 638
O deputado socialista manteve o tom crítico ao denunciar que, na manobra que resultou
na adoção do parlamentarismo, o povo não havia sido ouvido. Exortando os
parlamentares a tomarem coragem para realizar um consulta ao povo sobre o sistema degabinete, Vianna fez um longo comentário sobre o hibridismo do sistema vigente, ao
mesmo tempo em que criticava a própria posição pública assumida pelo senador Moura
Andrade, que, como vimos no capítulo anterior, em seu discurso de apresentação à
Câmara, deixou claro seu propósito de tolher os únicos poderes que haviam restado ao
presidente da República. Conforme está registrado nessa fonte, a certa altura de seu
discurso, disse o parlamentar:
“Ora, Sr. Presidente e Srs. Deputados, estão aqui as atribuições de umChefe de Governo dadas ao Chefe de Estado. São cerca de dezesseisatribuições, inclusive a de prover a administração pública, [mais]numerosas do que as de Chefe de Governo, do Presidente do Conselho deMinistros, isto é, do outro Chefe do Governo, Presidente do Conselho deMinistros. E quando o Presidente da República reivindica o direito deexercer pelo menos aquelas atribuições que lhe deixaram, que lhe deram
por esquecimento, por pressa, por medo – medo físico, não[?] – medo político de perder posição, então vem um candidato à Presidência doConselho de Ministros e reivindica para ele e somente para ele o direitode governar o País. Para que fez declaração da tribuna? Para seraplaudido por aqueles que só têm um objetivo – destruir a pessoa política
– porque não quero dizer física – do Presidente da República.”639
A notícia da renúncia de Moura Andrade deve ter mudado o rumo da prosa
durante aquela tarde nas duas casas legislativas, mas infelizmente não existem registros
disso nessa fonte. Na verdade, ao menos nessa documentação nem mesmo existem
637 E futuro senador pela Guanabara, eleito naquele outubro de 1962.638 Diário do Congresso Nacional, Brasília, 5 de julho de 1962, (Seção I), p.3921.639 Idem, ibidem, p.3921.
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“Sr. Presidente [da Câmara], notícias que nos chegam aoconhecimento revelam que vem eclodindo greves em vários Estados doPaís. Cumpre, assim, a classe trabalhadora as promessas feitas caso estaCasa não tomasse providência positivas e urgentes, no sentido de umasolução à crise de abastecimento, realmente a mais dura que atravessamas classes menos favorecidas.
Esses acontecimentos vêm [se] agravando sempre nos últimosmeses. No Estado do Rio já se verificam depredações e assaltos, comsaques.”642
Em seguida, o deputado buscou ligar o protesto do movimento sindical à reivindicação
por um plebiscito sobre o parlamentarismo, tese da preferência de Goulart, Brizola e
encampada pela FPN. E após (irritantes) intervenções no plenário sobre assuntos
diversos, a greve voltou a ocupar os temas da tribuna através de novo pronunciamento
de Aurélio Vianna, que depois de comentar as graves contradições sociais do país,
disse:“Recebi telefonema de pessoa autorizada, das mais ilustres e dignas destePaís, quando passei a saber que o Rio está paralisado, que a Nação está
paralisada. As classes trabalhadoras, determinadas, cumpriram sua palavra. Querem ser ouvidas.
Quando o Deputado ou Senador se elege, não quebrou o vínculocom o povo, não passou a ser soberano, não passou a ser senhor. Ele temque continuar ouvindo o povo, sua gente, sentindo e expressamente suasreivindicações, suas aspirações. Se ele continua sendo porta-voz do povo,tem que se aproximar do povo. Não deve, de modo nenhum, ter ocomportamento de um soba, de um senhor de escravos, porque neste País
não há escravos.Pois que ouça agora a voz do operário, a voz do trabalhador, avoz do intelectual, a voz da classe média. Que ouça e sinta que este País édiferente.”643
Em seguida a outras considerações, travou-se um embate entre o parlamentar alagoano e
Miguel Bahury (PSD-MA), sobre as razões da renúncia de Auro Moura Andrade.
Aurelio Vianna lembrou da posição “legalista” de Moura Andrade na crise de agosto,644
entretanto ponderou que, como o mesmo tinha buscado organizar um gabinete
conservador de oposição ao próprio Jango, acabou perdendo a confiança dos setores
que, originalmente, acreditavam que esse fosse se comprometer com a realização de um
plebiscito sobre o parlamentarismo. Tal como Breno da Silveira, a linha de Aurélio
642 Diário do Congresso Nacional, Brasília, Seção I, 6 de Julho de 1962, n.3955, p.7.643 Idem, ibidem, p.8.644 O “legalismo” de Moura Andrade consistiu no apoio à posse de Goulart com a adoção do
parlamentarismo. Em suma, como muitos outros parlamentares, o “legalismo” ligou-se a essa manobra, e por isso lhe servem as aspas, pois em 1964 a lei foi golpeada quando este senador declarou “vaga aPresidência da República”, consumando o golpe de Estado.
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Em primeiro lugar é preciso pontuar que a notícia de que a esquerda sindical
planejava uma outra greve política seguiu-se quase que automaticamente ao triunfo do
movimento de julho. Embora no momento seguinte, a interação entre elementos do
governo Goulart e o CGT fosse cada vez mais intensa, esse tipo de articulação política
não era consensual entre as esferas do poder. Não eram poucos aqueles que repeliam aideia de que a mobilização operária poderia ser utilizada como suporte, à maneira do
peronismo. A começar pelo próprio Goulart, como ficou claro no episódio de julho.
O segundo semestre daquele ano estava tomado pela agenda das eleições de
outubro e, passada a euforia da vitória brasileira na Copa do Mundo de Futebol (de 30
de maio a 17 de junho, no Chile), as atenções populares cada vez mais se voltaram para
o processo político e eleitoral (com a crise ministerial, a campanha pela antecipação do
plebiscito sobre o parlamentarismo, os conflitos entre Goulart e Congresso, as eleições
de 7 de outubro). No âmbito governamental, o gabinete Brochado da Rocha buscavaarrancar mais algumas concessões do Congresso, a saber, a delegação de poderes
extraordinários “para realizar reformas e resolver o problema do abastecimento”,
segundo suas alegações. Além disso, pressionou os parlamentares pela aprovação de
uma emenda que marcasse o mais breve possível a realização de um plebiscito sobre o
parlamentarismo, de preferência para se realizar simultaneamente às eleições de
outubro.
Quando o CGT anunciava a realização de mais uma greve de advertência, para
novamente pressionar o Congresso a favor de Goulart, no Senado a greve de julho seria
novamente lembrada. De acordo com registro nos Anais do Senado, o senador
trabalhista Paulo Fender (MTR-PA), simpático ao CGT, interveio no plenário
condenando a intransigência daquela casa em negar apoio à realização do plebiscito
sobre o parlamentarismo. Aparteando o adversário político, e alegando que as entidades
sindicais que propagandeavam a realização desta greve estavam “dirigidas por
comunistas”, o senador udenista Padre Calazans (UDN-SP), também conhecido pela
esquerda como “Lacerda do Senado”, mencionou a greve geral de julho como exemplo
da “pouca influência” dos sindicalistas ligados ao CGT junto à classe trabalhadora. De
acordo com Calazans, “a minoria dirigida pelo Sr. Dante Pelacani que ameaça a greve,
não conseguiu efetivá-la da outra vez, em São Paulo, como também não conseguiu no
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Rio de Janeiro. E se não houve trabalho foi apenas porque os ônibus pararam. Se tivesse
condução teriam trabalhado”.648
Em 11 de setembro, o CGT divulgou novo manifesto onde exigia a realização do
plebiscito para coincidir com as eleições de outubro,649 tese rejeitada pela ADP, o que
incluía parte expressiva da bancada do PSD, quadros do Partido Libertador (PL), doPDC e quase toda a UDN650 que temia ser penalizada por uma associação com o
impopular parlamentarismo nas mesmas eleições.651 Isso pode ser exemplificado no fato
do tema da greve geral ter sido pautado como fonte de preocupações em uma das
últimas reuniões do Conselho de Ministros chefiado por Brochado da Rocha. Nas notas
taquigráficas da reunião de 11 de setembro, o então ministro da Aeronáutica, brigadeiro
Reinaldo de Carvalho, dá a seguinte declaração:
“Queria trazer ao conhecimento do Conselho um fato da maior
gravidade, comunicado do Rio de Janeiro. É que o Sindicato dosAeronautas e Aeroviários comunicou ao Diretor da Aeronáutica Civilque, se não for votado o plebiscito, eles entrarão em greve em 15 desetembro. Como esse fato é grave, e esse Sindicato tem ligações comoutros Sindicatos, estou comunicando, inclusive já tendo tomado diversas
providências preventivas.”652
Em seguida falou o Ministro da Justiça Cândido de Oliveira Neto:
“O Conselho ouviu a comunicação do Ministro da Aeronáutica, e pareceque em matéria de greve devíamos delegar ao Ministro do Trabalho
poderes para as providências indicadas.”653
No que, segundo consta nestas notas, o Ministro do Trabalho, Hermes Lima, apenas
teria respondido: “Tomei conhecimento da comunicação do Ministro da
648 Anais do Senado Federal, Brasília, 12 de setembro de 1962, p.119. Nesta sua “leitura” da greve de julho, Calazans reproduz uma interpretação compartilhada pela direita agrupada na APD e pelo O Globo,assunto a que voltaremos mais à frente.649 Manifesto reproduzido em Bancário, Rio de Janeiro, n.51, 12 de setembro de 1962.650 Quase toda, porque alguns poucos pertenciam à Frente Parlamentar Nacionalista, como o deputadomaranhense José Sarney.651 A essa altura, em pleno calendário eleitoral, o IBAD centralizou recursos conseguidos ilegalmente noexterior, para financiar a campanha dos candidatos da ADP, o que acabou gerando um escândalo quelevou a instauração da CPI do IBAD. Essa acabou fracassando, em razão de muitos de seus componentesterem sido beneficiados pela famosa “caixinha do IBAD”, acabando por levar Goulart a fechar a entidade“na marra” em fins de 1963.652 “Notas taquigráficas da reunião do Conselho de Ministros realizada em 11 de setembro de 1962.”Fundo Conselho de Ministros Parlamentarista 1T-05 (Gabinete Brochado da Rocha), Arquivo Nacional(RJ), p.1.653 Idem.
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Aeronáutica.”654 Na verdade, muitos são os indícios de que nessa nova movimentação
por uma greve política, existiu articulação do CGT com elementos do governo.
Neste mesmo dia 11 a imprensa divulgava a declaração do general Peri Constant
Bevilaqua, que acabava de assumir a chefia do II Exército no estado paulista: “Se a
aspiração popular é pelo Plebiscito, o Congresso Nacional não deve negá-lo!”655
Comocomentamos anteriormente, Bevilaqua foi o candidato derrotado à presidência do Clube
Militar, pela chapa nacionalista nas eleições realizadas no primeiro semestre daquele
ano. Hostilizando desde o início a manobra parlamentar que instituiu o sistema de
gabinete, o general mantinha coerência.656
Nesse mesmo contexto, o líder do chamado “grupo compacto” do PTB, o
deputado federal Almino Afonso também destacaria a necessidade do Congresso “dar
ao povo o direito de decidir se esse caminho [a instituição do parlamentarismo] foi
correto ou não”, aprovando o plebiscito para coincidir com as eleições de 7 deoutubro.657 Essas pressões avolumavam-se sobre um Congresso nacional desgastado,
prestes a ser renovado totalmente na Câmara e parcialmente no Senado e que carregava
no colo os impasses de um parlamentarismo híbrido.
Brochado da Rocha resolveu então colocar a “questão de confiança” perante o
Congresso, focando num pedido de delegação de poderes e exigindo o plebiscito. Como
é sabido, nos sistemas parlamentaristas a “questão de confiança” é uma atitude do
Primeiro ministro face ao parlamento, estando o próprio cargo condicionado à aceitação
ou não de sua demanda. Com a recusa do Congresso à “questão de confiança”,
Brochado da Rocha renunciaria. Na dramática última reunião daquele Conselho de
Ministros, a 13 de setembro, o Premier colocou novamente a questão da ilegitimidade
do sistema parlamentar em termos exemplares de que pretendia ir às últimas
consequências em sua atitude:
“O regime é, sem dúvida, legal, mas é sem dúvida, ilegítimo. Os dias quedecorrem entre a reunião informal do Ministério, realizada em Brasília ea realização do esforço concentrado, dediquei-me ao exame profundo da
654 Idem, p.2.655 Última Hora, Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1962.656 Tendo se pronunciado em apoio à posse de Jango na crise de agosto de 1961 e em apoio à declaraçãodo general Osvino Alves em meados do ano, Peri Bevilacqua evoluiria posteriormente para uma posiçãoanti-CGT e no mínimo displicente com a conspiração golpista que se preparava contra Jango. Sobre essaevolução política do general, ver LEMOS, Renato. “Introdução” à Justiça Fardada – o general PeriBevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Rio de Janeiro: Bomtexto, 2004, p.9-32. DEMIER,Felipe Abranches. Soldados x operários. Monografia de bacharelado em História. Universidade Federaldo Rio de Janeiro, 2005.657 Última Hora, Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1962.
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situação, verificando que não é possível, sem agravo, realizar as eleições para o novo Congresso, sem decidir o plebiscito. Esta é a norma geralque vigora em todos os países em que o povo é soberano, em todos os
países em que o Governo, pela opinião esclarecida de seu povo...”658
Por sua vez, naquela altura o comandante de III Exército, general Jair Dantas
Ribeiro, enviou um telegrama ao ministro da Guerra, Nelson de Mello, afirmando que
não teria condições de manter a ordem pública no Rio Grande do Sul caso o Parlamento
se recusasse a aprovar a realização do plebiscito.
“Face à intransigência do Parlamento... e tendo ainda em vista as primeiras manifestações de desagrado que se pronunciam nos territóriosdos Estados ocupados pelo III Exército, cumpre-me informar a V. exa.,como responsável pela garantia da lei, da ordem... e da propriedade
privada deste território, que me encontro sem condições para assumircom segurança e êxito a responsabilidade do cumprimento de tais
missões, se o povo se insurgir pela circunstância de o Congresso recusaro plebiscito para antes ou no máximo simultaneamente com as eleiçõesde outubro próximo vindouro.”659
Os generais Osvino Alves e Peri Constant Bevilaqua, comandantes do I e II Exércitos,
respectivamente, solidarizaram-se com Dantas Ribeiro. Apenas o general Castelo
Branco, que substituiu Costa e Silva no comando do IV Exército, recusou-se a apoiar a
declaração. O ministro da Guerra, general Nelson de Melo, contrariado, considerou a
declaração do comandante do III Exército uma “manifestação de insubordinação”, já
que, alegou, Dantas Ribeiro tinha o dever constitucional de manter a ordem a qualquercusto. O CGT e a FPN naturalmente se solidarizaram com Dantas Ribeiro.
Em 14 de setembro, Brochado da Rocha renunciou.660 Na edição especial do
semanário comunista Novos Rumos, quando se anunciava a nova greve geral, aparecia a
declaração do general Jair Dantas Ribeiro nos seguintes termos: “O povo é soberano no
regime democrático. Negar-lhe o direito de pronunciamento sobre o sistema de governo
que lhe foi imposto, é abominar o regime ou querer destruí-lo.”661 A greve geral
estourou no mesmo dia.
No estado da Guanabara muitas categorias começaram a paralisação já no dia14, como os ferroviários da Leopoldina e Central do Brasil, que foram novamente a
658 Notas taquigráficas da reunião do Conselho de Ministros realizada em 13 de setembro de 1962.”Fundo Conselho de Ministros Parlamentarista 1T-05 (Gabinete Brochado da Rocha), Arquivo Nacional(RJ), p.5.659 O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 de setembro de 1962.660 Doze dias após sua renúncia, no dia 26 de setembro, Brochado da Rocha faleceu em Porto Alegre.661 Novos Rumos, Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1962, capa.
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primeira categoria a encerrar suas atividades e entraram em greve já ao meio dia e meia,
e na parte da tarde também pararam o porto, os metalúrgicos, os funcionários da
Petrobrás, aeronautas, aeroviários e outros.662 Ficaram paralisadas também as refinarias
de Manguinhos e de Duque de Caxias no estado do Rio de Janeiro. As barcas Rio-
Niterói paralisaram suas atividades às 21:30 do dia 14.663
Em Minas Gerais 15 milmetalúrgicos pararam no dia 14 – sendo os trabalhadores da Mannesman os primeiros –,
combinando o movimento com sua própria campanha salarial, mas muitas outras
categorias só entraram em greve no sábado dia 15,664 dia em que muitas cumprem
jornadas.665 Entretanto, naquele sábado as zonas industriais da Guanabara funcionaram,
não sem contar com forte esquema policial que impediu a formação de piquetes.
Já no dia 14 a polícia política da Guanabara interveio de forma contundente para
desmontar a greve. Em primeiro lugar, cumprindo uma “ordem” judicial do Tribunal
Regional Eleitoral (TRE), buscou-se fechar a Rádio Mayrink Veiga, que tal como nagreve de julho, abriu suas ondas para que o CGT divulgasse seus manifestos e
proclamassem a greve. No entanto, tropas do I Exército cercaram a Rádio e impediram
que a polícia política da Guanabara cumprisse a ordem do TRE. Na mesma noite, a
mesma polícia conseguiu prender praticamente toda a direção do CGT, na sede da
CNTI. Todavia, com a atuação do único líder não preso, o também deputado pela
Guanabara, Hércules Correa, com o apoio do secretário do Ministério do Trabalho, João
Pinheiro Neto e novamente de tropas do I Exército, a direção do CGT foi libertada em
poucas horas, garantindo-se a continuidade da greve.
Além disso, a polícia também interveio na sede do Sindicato dos Metalúrgicos e
na Gráfica e Editora Itambex, onde era editada a folha comunista Novos Rumos.666 Por
fim, temendo ter suas sedes invadidas, nos Sindicatos dos Aeronautas e Aeroviários,
seus membros tiveram o apoio do comandante da 3ª Zona Aérea, Brigadeiro Francisco
Teixeira, que garantiu o envio forças da FAB para proteger suas sedes.667 A greve no
setor aéreo, aliás, foi um dos seus pontos de maior eficiência política, pois, com a
662 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1962, capa.663 Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1962, capa.664 Idem, ibidem, p.5.665 Além de trabalhadores em setores essenciais, como transporte público, que trabalham no fim desemana, muitas categorias cumpriam jornadas aos sábados, como os bancários e expressivas categoriasoperárias.666 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1962, p.10. Voltaremos a esse episódio no
próximo capítulo, quando discutiremos, através da documentação policial, o relato feito pelos própriosagentes da repressão.667 Idem, ibidem, p.10.
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paralisação da aviação comercial, os parlamentares viram-se presos em Brasília,
contribuindo para que os mesmos chegassem ao acordo que afinal marcou a data de
realização do plebiscito para 6 de janeiro do ano seguinte, em sessão ocorrida na
madrugada do dia 15 de setembro.
Do mesmo jeito que na anterior, no caso desta greve geral realidades regionais e paralisações parciais combinaram-se à greve nacional. Foi o caso, por exemplo, dos
trabalhadores em carris urbanos da cidade de Santos, que, desde o dia 11 haviam
entrado em greve por melhores salários. No dia seguinte, quando tudo indicava que a
paralisação chegaria ao fim, os grevistas foram surpreendidos com a fuga do prefeito e a
prisão de doze sindicalistas por policiais que realizavam um cerco na Prefeitura. Isto
levou a que diversas outras categorias entrassem em greve de solidariedade. Assim,
conforme esclareceu o historiador Fernando Teixeira da Silva, quando o CGT decretou
a greve geral, a cidade de Santos já estava quase inteiramente paralisada. 668 Omovimento sindical da cidade de Santos ficou mobilizado até o dia 18, bem depois do
fim oficial da greve – anunciado na segunda-feira (17) pela manhã – quando os
sindicalistas foram soltos. Mas a verdade é que no fim de semana o movimento se
enfraqueceu, e, quando acabou oficialmente, era irrisório.
Novamente a cidade de São Paulo não aderiu à greve.
Os indícios de que havia uma articulação entre o movimento sindical e alguns
elementos do governo são mais evidentes no desenrolar dessa segunda greve geral do
que na de julho. A própria declaração fria do demissionário ministro do Trabalho frente
à denúncia da preparação do movimento naquela última reunião do gabinete Brochado
da Rocha é um sinal evidente de que sua posição sobre o assunto não era do mesmo teor
que a de titulares de outras pastas.669 Mas é razoável supor que, face ao êxito da
primeira greve geral nacional como fator de pressão no processo político, setores da
cúpula do PTB e o próprio Goulart tivessem buscado animar a preparação de um novo
dispositivo grevista para definir a relação de forças ao seu favor.
Por outro lado, a esfera governamental parecia não falar a mesma língua em
muitos assuntos, e sobre a greve de setembro também surgiram rumores de que se
tratava de peça de uma manobra golpista patrocinada por Leonel Brizola, com vistas ao
fechamento do Congresso por um golpe da ala nacionalista das Forças Armadas, e que
só não vingou por que o próprio Goulart na última hora desmantelou o dispositivo.
668 SILVA, A carga e a culpa, op. cit., p.178-179.669 De acordo com as notas taquigráficas supracitadas.
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Paulo Schilling, antigo colaborador de Brizola, defende essa versão em seu livro Como
se coloca a direita no poder ,670 e além dele algumas outras fontes suspeitas de direita
política, como o próprio embaixador Lincoln Gordon, conforme veremos ainda neste
capítulo, mas é preciso ir com prudência. Se é que houve tal articulação com vistas ao
fechamento do Congresso por um “golpe de esquerda”, é preciso lembrar que um dosseus supostos articuladores, como o governador Brizola, caracterizava o próprio
Congresso Nacional como “golpista”, pois, havia “violando a Constituição” na crise de
agosto do ano anterior.671 O crescimento de sua candidatura à Câmara Federal, pela
Guanabara, certamente deve ter dissipado intenções nesse sentido, então não seria
exagerado supor que essa ideia de “golpe de esquerda” não deve receber muito crédito.
Mas mesmo levando isso em consideração, é evidente de Jango não participou desta
suposta aventura. De qualquer modo, mais uma vez este soube surfar na onda de crise
do parlamentarismo e dobrar de novo o Congresso, arrancado o referendo.Com a greve de setembro, o movimento sindical também conseguiu arrancar do
governo um compromisso com o reajuste do salário mínimo, tendo ficado estabelecido
o compromisso com o aumento de 100%. Com a queda do gabinete Brochado da Rocha,
alguns dias depois Goulart indicou o socialista Hermes Lima para chefiar no novo
Conselho de Ministros e fechar a conta do Parlamentarismo. Para o Trabalho foi
designado o então secretário da pasta, João Pinheiro Neto, que pessoalmente colaborara
para que os líderes sindicais presos na greve de setembro – mais de cem – fossem
soltos. Pinheiro Neto seria também o avalista das reivindicações encaminhadas pelo
CGT a Goulart, e este via no novo Ministro do Trabalho um elemento a partir do qual
seria possível envolver a área trabalhista na campanha pelo NÃO no plebiscito do ano
seguinte. Todavia, Goulart o demitiu em 4 de dezembro dois dias depois de Pinheiro
Neto ter feitos duras críticas, em um programa de televisão, ao embaixador norte-
americano Lincoln Gordon, ao embaixador do Brasil em Washington, Roberto Campos,
670 SCHILLING, Paulo. Como se coloca a direita no poder . Vol.1. Os protagonistas. São Paulo: Global,
1979, p.234-238.671 Em depoimento a Moniz Bandeira no final dos anos setenta, Leonel Brizola afirmou precisamente isto:“Considerava e continuei considerando que o Congresso violou a Constituição, ao votar a emenda
parlamentarista. Por esse motivo entendia que o III Exército, juntamente com a Brigada Militar e corposde voluntários que pudéssemos armar, deviam avançar na direção do centro do País e da Capital daRepública. Estava convencido de que não haveria maior resistência, podendo Goulart assumir aPresidência da República sem considerar quaisquer restrições ao seu mandato. A única medidaexcepcional, que eu advogava era a dissolução do Congresso, por ter violado a Constituição, e aconvocação simultânea de uma Assembléia Constituinte para dentro de 30 ou 60 dias no máximo .”BANDEIRA, Moniz. Brizola e o trabalhismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1979, p. 85. Grifomeu.
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e ao diretor da Superintendência de Reforma Agrária (SUPRA), Otávio Gouveia de
Bulhões. Na televisão, Pinheiro Neto acusou os três de serem os responsáveis em
manter o país subordinado ao Fundo Monetário Internacional, o que não era de nenhum
modo implausível, sendo desnecessário lembrar que os três estavam articulados no
esquema IPES (inclusive Gordon). Em desagravo ao ministro demitido, o CGTanunciou que poderia ir novamente à greve geral para reempossá-lo no cargo, mas
acabou recuando depois que Benjamin Eurico, então diretor do Departamento Nacional
do Trabalho, foi indicado para a pasta.672 No entanto, uma declaração deste ainda em
dezembro é indicativa de como são exageradas as imagens de “tolerância” dos
burocratas do PTB em relação ao movimento sindical. Disse Benjamin Eurico que “este
Ministério não pode abrigar a greve política!”
O episódio todo mostrava como Goulart estava disposto a negociar com
Washington, sacrificando seus compromissos internos. Mas em vez da boa vontade, aCasa Branca enviou de surpresa Robert Kennedy ao Brasil, visita marcada pela
arrogância, que alguns alegam ser resultado do agravamento das hostilidades dos EUA
com a URSS por causa de Cuba (a crise dos mísseis foi em outubro), ponto sensível de
desentendimentos entre a administração de John Fitzgerald Kennedy e a política externa
independente praticada pelo Brasil.
De qualquer modo, Goulart também não podia prescindir do apoio da classe
trabalhadora para liquidar o parlamentarismo, e dias antes do plebiscito, majorou o
salário mínimo, não em 100% como queria originalmente o CGT, mas em 75%.673
As ameaças de greve geral foram um dos grandes legados da greve de julho
para todo o período posterior do conturbado governo Goulart. Até a greve geral
decretada em 31 de março de 1964, que atingiu alguns pontos do país, como a
Guanabara e Santos,674 mas que falhou em outras cidades brasileiras, declarações do
CGT de que “os trabalhadores poderão de novo realizar uma greve geral de
672 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1962, p.3. Última Hora, Rio de Janeiro, 5 dedezembro, p.1.673 Pinheiro Neto sugeriu o índice de aumento de 56,25% ao Conselho de Ministros na reunião de 8 denovembro, bem abaixo do que, após algumas gestões, o CGT aceitou negociar, com 80% a 1º dedezembro e o 13º com base no salário de novembro. O Conselho de Ministros já havia aprovado a
proposta de Pinheiro Neto, quando Goulart mostrou quem é que dava as cartas e desconsiderou todosestes índices, numa manobra para conseguir o apoio incontestável dos trabalhadores no plebiscito. Poucoantes de fechar a conta do parlamentarismo no plebiscito, Goulart apresentou seu Plano Trienal, cujofracasso, como já comentamos no capítulo 2, foi decorrente também do rechaço por parte do CGT e dediversos outros grupos da esquerda – mas também de parte da burguesia, que se opunha às restrições aocrédito também constantes no Plano.674 Sobre a greve geral contra o golpe na Guanabara e em Santos, ver, respectivamente, MATTOS, Novose velhos sindicalismos, op. cit.; TEIXEIRA DA SILVA, A carga e a culpa, op. cit.
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advertência” pontuariam a cena da crise política. É por isso que a greve de julho
continuaria a desempenhar um importante lugar simbólico na construção do discurso
político da esquerda sob o governo Goulart, situação que se alterou significativamente
após o golpe, no contexto das autocríticas. Vejamos só mais alguns episódios que
reafirmam isso.Pouco antes da realização do referendum, o plano do futuro governo
presidencialista veio a público. Elaborado por Celso Furtado, ministro especial sem
pasta, e San Tiago Dantas, o Plano Trienal implicava em medidas de contenção dos
aumentos salariais e restrição ao crédito, seguindo o mote da ortodoxia da austeridade,
enquanto prometia, após “arrumar a casa”, a execução paulatina das reformas
estruturais. Não era um problema de ritmo. O início da recessão econômica em 1962
penalizava fortemente a renda da classe trabalhadora, e mesmo o significativo aumento
de 75% no salário, com o aumento do custo de vida, logo deteriorou-se. Não foi poracaso que alguns consideraram o Plano de Dantas-Furtado uma “grande traição”, fato
esquecido pela apologética revisionista.675
Em maio de 1963, frustrado com o conteúdo do Plano Trienal, o CGT planejou
mais uma greve política para pressionar o Congresso a aprovar as reformas de base,
entretanto não conseguiu recursos para efetivá-la. De acordo com Erickson, a recente
conquista do aumento no salário mínimo esvaziou um dos argumentos importantes na
mobilização das bases para as greves gerais de 1962, ao mesmo tempo em que o apoio
na área militar, oriundo de oficiais nacionalistas como Osvino Ferreira Alves, estava
675 Jorge Ferreira, por exemplo, em sua biografia sobre Goulart, alega: “O Plano Trienal, concordamvários analistas, era uma inovação. Pela primeira vez o país enfrentaria um processo inflacionário semapelar, unicamente, para o equilíbrio financeiro, com medidas estritamente monetaristas. Sem deixar derecorrer ao receituário monetarista, Celso Furtado adotou também a estratégia estruturalista parasolucionar os problemas que o país enfrentava. Inicialmente, o plano tinha como meta assegurar uma taxade crescimento da renda nacional, estimada em 7% ao ano, correspondendo a 3,9% de crescimento percapita. Depois, reduzir, por meio de corte nos créditos e contenção salarial, a espiral inflacionária. Aseguir, renegociar os prazos de pagamento da dívida externa. Além dessas medidas iniciais, também
almejava reduzir as disparidades regionais com o incentivo de atividades que se adequassem a cadaregião, assimilação de novas tecnologias etc. Com a inflação controlada e o crescimento assegurado, areforma agrária daria impulso a um ciclo de crescimento. Ao mesmo tempo, o plano procurava valorizar ocapital humano (sic), com investimentos em educação, saúde pública, pesquisa científica e habitação.”FERREIRA, João Goulart , op. cit., p.327-328. Não se sabe sob o argumento de qual “especialista” ohistoriador constrói esse raciocínio recheado dos argumentos tradicionais da “necessidade da austeridadefiscal” – tão comum nos tempos de crise – e de conceitos claramente retirados do vocabulário neoliberal,como “capital humano”. Ao contrário dessa mistificação, um especialista como Francisco de Oliveira, umcrítico das limitações da tal abordagem estruturalista, encontra enorme semelhança entre o Plano Trienal eo Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), implementado pelo primeiro governo da ditadura.OLIVEIRA, Crítica à razão dualista, op. cit., p.93.
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desmantelado.676 No mesmo mês, pressionado, Goulart autorizou o aumento do crédito
e deu um aumento de 70% aos funcionários públicos federais. Como lembraria mais
tarde o ex-dirigente do CGT Hércules Correa, pouco antes de morrer, “de maio a julho
de [19]63, houve praticamente um rompimento entre o CGT e o presidente João
Goulart”.677
Outra ameaça de greve geral política seria anunciada quando da rebelião dos
sargentos em Brasília, pois ao mesmo tempo em que a corte suprema decidia pela
ilegibilidade dos subalternos militares, reafirmava a validade do Decreto 9.070, contra o
qual o CGT movia campanha pela inconstitucionalidade. Goulart intercedeu
pessoalmente junto ao CGT para evitar a eclosão desta greve. Quando a rebelião dos
sargentos veio a lume, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo buscou mobilizar
outros quartéis no estado, e conclamou a direção do CGT, no Rio de Janeiro, a decretar
uma greve geral em apoio ao levante. Em São Paulo os ativistas sindicais acabariam presos, “quando transportavam folhetos que incitavam sargentos e trabalhadores a um
levante conjunto”.678 Mesmo apoiando publicamente o motim dos subalternos militares,
através de um manifesto assinado em conjunto com outras entidades como a UNE e a
Frente de Mobilização Popular, o CGT não chamou a greve, mais uma vez. Suas
declarações, agora, pareciam ser um blefe.
Quando em outubro deste ano desencadeou-se nova crise governamental, com o
pedido de estado de sítio de Goulart ao Congresso, o CGT, percebendo que o conteúdo
da medida poderia penalizar os sindicalistas e até políticos de esquerda, recuou de um
apoio inicial e novamente lançou a palavra de ordem da greve geral em defesa das
liberdades. Ficou só na palavra de ordem. Em situações até mais graves que a vivida
entre junho/julho de 1962, a greve geral não se efetivou; no contexto do golpe, muito
mais do que falhar, a greve geral perdeu sua importância como instrumento de pressão
política, pois onde ocorreu, operou no vazio, posto que o alegado dispositivo militar de
Goulart se denotou um fiasco.
Não pensaram os líderes do CGT, comunistas e trabalhistas, ser simplesmente
uma greve geral capaz de deter um golpe de natureza militar em 1964, mas que uma
676 “A oposição militar também impediu que esta ameaça se transformasse em greve. O generalnacionalista Osvino Ferreira Alves, a apenas alguns meses da aposentadoria compulsória, viu seu poderdissipar-se, quando, por exemplo, 243 majores e capitães lotados no principal quartel sob sua jurisdiçãodesafiaram sua ordem de não fazer pronunciamentos políticos e condenaram o CGT por participar deassuntos puramente militares.” ERICKSON, Sindicalismo no processo político, op. cit., p.168.677 Depoimento publicado em MELLO BASTOS, A caixa preta do golpe de 1964, op. cit., p.154.678 ERICKSON, Sindicalismo no processo político, op. cit., p.177.
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greve geral fizesse parte de um dispositivo mais geral de apoio a Goulart, que envolvia
necessariamente um dispositivo militar. Como afirmou Kenneth Paul Erickson, o
dispositivo sindical-militar, que teria importância nas manobras feitas por Goulart para
dobrar o Congresso Nacional e conseguir os poderes do presidencialismo, desfez-se
após o plebiscito de janeiro de 1963. Sem a existência do apoio na área militar, a grevegeral foi absolutamente ineficiente como instrumento para deter o golpe em 1964.
5.3 Esquerda e direita no espelho da greve de 5 de julho
A forma como a greve geral de 5 de julho de 1962 foi percebida pela produção
intelectual de todo o espectro político é o tema desta seção. A ideia é perceber como,
através das avaliações e de sua repercussão ao longo do tempo, a greve de julho foi
tomada como ponto de referência desde a esquerda até a direita, usando para isso tanto
os editoriais da imprensa, quanto a documentação reservada do serviço de inteligência
dos EUA, passando pela produção militante e acadêmica.
Começaremos comentando como parte da imprensa escrita do país caracterizou
o episódio. A partir da leitura dos editoriais dos principais órgãos é possível verificar
posições que variaram desde uma tentativa de negar a efetividade da paralisação, até
acusações de que se tratava de um dispositivo integrado a um movimento golpista com
vistas a instalação de uma “República sindicalista”.
Esta última opinião, por exemplo, foi veiculada pelo Correio da Manhã , que era
o veículo da imprensa escrita mais importante em circulação no Rio de Janeiro nos anos
sessenta, e dos maiores do Brasil. Já no próprio dia da greve, em editorial, a folha
atacou a greve como um “ato irresponsável” promovido pelo próprio Jango através de
“pelegos”.679 Mais do que “irresponsável”, a greve foi também definida como um ato
criminoso:
“Greve geral, neste país em que o povo se acotovela nas filas semconseguir um pedaço de pão, um grão de arroz, é crime. E aresponsabilidade por esse crime está com os irresponsáveis, com osagitadores. Ou pior: com um astuto que aproveita os males e os
sofrimentos impostos ao povo para atribuir a outrem a culpa.”680
No dia seguinte à greve, o Correio da Manhã elevou o tom e não só acusou
Goulart de ser o responsável pela crise de abastecimento e pela greve, como também de
679 “Irresponsável.” Correio da Manhã , 5 de julho de 1962, p.6.680 Idem, ibidem, p.6.
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planejar um “golpe” com vistas à instalação de uma “ditadura de pelegos” ou uma
“República sindicalista” no Brasil.
“Começa a haver mais do que simples indícios de que se planeja umgolpe, que se trama a instalação de uma “república sindicalista”. Estãoexasperando o povo, para isso. Estamos assistindo e vivendo, nesses
primeiros dias de ditadura dos pelegos, num processo caracterizado de“curra política”.”681
Como “provas” de que a greve estava dentro deste esquema, o jornal carioca mencionou
os telefonemas que personagens do círculo de Goulart teriam feito à CNTI – justamente
para pedir a não deflagração da greve, como já vimos – e a reunião em Brasília entre os
representantes do CGG e Jango. Além disso, a presença, entre os líderes da greve, de
notórios comunistas, como Hércules Correia e Roberto Morena, é inserida como
exemplificação da natureza das forças políticas que estariam por detrás desta suposta
manobra “golpista”. Além disso, o Correio da Manhã também recorreu ao expediente
de desqualificar a greve geral como uma atitude feita “contra a população”,
mencionando o caso de uma (pobre) mulher que não havia conseguido chegar ao velório
de um parente em razão da paralisação do sistema de transportes.682
Em um outro, editorial do dia 7 de julho, intitulado “Ato de acusação”, Goulart é
apontado como “um conspirador convicto, cujas atividades sinistras acabam de
culminar no ato de desenfrear o terrorismo”, um “usurpador”, “embora eleito e
legalmente empossado”. É mais uma vez acusado de ter instigado a greve geral, para
depois se esconder “atrás de conselhos, impunemente desobedecidos, de voltar ao
trabalho”. Por fim, afirma-se, fechando a trama, “mancomunou-se com Luis Carlos
Prestes – com quem, na madrugada de anteontem, confidenciava no Torto – juntando os
pelegos trabalhistas aos pelegos comunistas, numa frente única para a projetada ditadura
sindical.”683
Como o movimento havia sido encerrado com o alerta de que o CGG poderia
convocar os trabalhadores novamente à greve geral, o Correio da Manhã levou a sério a
possibilidade de uma nova paralisação. Contudo, atribuiu sua não eclosão à atitude dosgovernadores da Guanabara, São Paulo e Minas Gerais,684 e já no dia 17 de julho
681 “Inimigo público.” Correio da Manhã , 6 de julho de 1962, p.6.682 “Humilhação”, Idem, ibidem, p.6.683 “Ato de acusação.” Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 07 de julho de 1962, p.6.684 “Resistência à usurpação.” Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 13 de julho de 1962, p.6.
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asseverou em editorial que o governador Carlos Lacerda havia tomado providências que
tornavam “praticamente impossível a repetição da greve geral”.685
Outro importante jornal carioca, O Globo, representou o episódio da greve geral
com outro viés. Na manhã daquele 5 de julho exibiu à manchete: “TENTATIVA DE
GREVE GERAL”.686
Mais do que negar a capacidade de mobilização, buscou dar vozàs lideranças sindicais anticomunistas na condenação ao movimento grevista:
“O presidente da Resistência Democrática dos Trabalhadores Livres[REDTAL], Sr. Floriano da Silveira Maciel, seguiu ontem à tarde paraSão Paulo, a fim de articular com o presidente da Federação dosEmpregados do Comércio de São Paulo, Sr. Antonio Pereira Magaldi, eos dirigentes do Movimento Sindical Democrático [MSD], as
providências necessárias para se opor ao movimento grevista.”687
Consultando essa edição, pode-se observar que o periódico carioca queria esvaziar o
movimento paredista, antecipando o final de semana e divulgando o “roteirogastronômico” da Guanabara – afinal, a paralisação foi numa quinta-feira! E quando foi
obrigado a admitir a efetividade da paralisação, na edição do dia seguinte, O Globo
informou o prejuízo contabilizado em 4 bilhões de cruzeiros.688
Na esquerda, como era de se esperar, a postura de O Globo de tentar, no dia da
greve, negar a sua existência, foi objeto de comentários sarcásticos. Segundo o
semanário comunista Novos Rumos, do dia 5 até a semana posterior, o jornal carioca foi
reconstruindo sua própria narrativa sobre o movimento grevista: depois de ter de admitir
a existência da greve em sua edição do dia 6, no editorial do dia 10 voltou a diminuir o
evento: “A greve não chegou a explodir em São Paulo, o maior centro fabril do País.
Nem quase aqui no Rio e fora dele.”, disse O Globo. Sobre essa “falsificação histórica”
– de teor similar ao pronunciamento do senador Calazans, visto acima –, assim comenta
a reportagem de Novos Rumos:
“O abuso não podia ser maior. Ainda não transcorreu nem uma semana e‘O Globo’ já tem o cinismo de afirmar que a greve fracassou naGuanabara e demais Estados. Só que o movimento foi grande demais, enão há dólar que chegue para fazer os escribas inimigos do povo
conseguirem enganar a opinião pública, engodar, procurar apagar umagreve política que ficará como um marco na história da classe operáriabrasileira.”689
685 “Fim da crise”, Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 17 de julho de 1962, p.6.686 O Globo, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, capa. Ver Anexo 2, no final desta tese.687 Idem, ibidem, p.6.688 O Globo, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, capa.689 Novos Rumos, Rio de Janeiro, n.178, 12 a 19 de julho de 1962, p.6, grifo nosso.
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Na imprensa sindical que esteve na linha de frente do movimento grevista, os
comentários foram no mesmo sentido. No jornal do combativo Sindicato dos Bancários
da Guanabara encontramos o seguinte:
“O jornal do golpe, ‘The Globe’, saiu-se com esta manchete:‘TENTATIVA DE GREVE GERAL’!!! Populares, em torno das bancasde jornais, ridicularizavam a penúria do pasquim de luxo. Tentativa! –gracejavam, olhando as ruas vazias e as portas fechadas. ‘O Globo no Ar’
– que se diz porta-voz ‘do maior jornal do país’, blasfemou: – ‘eatenção, atenção! Rio. Urgente. Contrariando a decretação da greve geral,funcionam normalmente na Guanabara cafés e bares. Também nãoaderiram ao movimento subversivo os restaurantes cariocas. As linhasinternacionais de aviação (aviões estrangeiros, que nada tinham a vercom a greve) também decolam normalmente.’ Diante do ridículo, o
jornal ‘The Globe’ ficou encalhado nas bancas; os possíveis compradoresou leitores exclamavam que o pasquim ‘estava por fora’.”690
Enquanto alguns órgãos optaram por tentar num primeiro momento negar aefetividade da paralisação, outros buscaram caracterizar o movimento como parte de
uma articulação palaciana.
Já o Jornal do Brasil não só anunciou a decretação da greve geral, como também
produziu uma das mais completas reportagens sobre todo o processo. Em editorial do
próprio dia 5, no entanto, embora surpreendentemente reconhecesse a justeza dos
motivos que levaram à eclosão do movimento – uma ameaça à legalidade –, considerou
a oportunidade da greve geral equivocada, depois que ficou conhecida a renúncia de
Moura Andrade.
“No momento em que encerrávamos esta edição, os dirigentes do Pactode Unidade e Ação continuavam rejeitando todos os apelos que asautoridades lhes dirigiam para que não deflagrassem a greve geral deadvertência, de 24 horas. Ainda nos parecia possível, no entanto, que elesvoltassem atrás na sua decisão, com um claro gesto de compreensão dosfatos. Não poderemos deixar de registrar essa esperança que tínhamos deque este comentário se tornasse, graças aos acontecimentos, inteiramentesuperado.
É compreensível que os dirigentes sindicais, por um grandemotivo de natureza política, numa hora em que a legalidade parecia
ameaçada, decretassem a greve. É compreensível que eles tenham, agora,dificuldades para suspender essa mesma greve. É compreensível –humanamente compreensível – que eles queiram experimentar o poderque conseguiram. Não é compreensível, porém, que corram um risco aesta altura desnecessário, que façam o País correr mais um risco, que
690 Bancário, n.39, Rio de Janeiro, 11 de julho de 1962, p.3. Biblioteca Aloísio Palhano do Sindicato dosBancários do Rio de Janeiro.
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ponham em risco, inclusive, a unidade das forças sociais –evidentemente, logicamente heterogêneas – que defendem a legalidade.
À greve falta, neste instante, a motivação necessária. Até à noitede anteontem, ela era uma atitude política, como podia ser uma atitude
profissional. Hoje, entretanto, ela é um cacoete, a mera caricatura de ummovimento que antes podia ser justificável e que agora está vazio de
sentido e de objetivos. E, como se tudo isso não bastasse, ainda há uma pergunta a fazer aos grevistas: - Afinal, para que tanto esforço, se aindase entregam a provocações?”691
Com a greve e suas repercussões, especialmente a revolta popular na Baixada
Fluminense, o Jornal do Brasil assumiu um tom mais alarmista. Em editorial publicado
na primeira página do dia 6 de julho, intitulado “Ordem e Desordem” é feita uma crítica
aos debates dos políticos sobre o regime, debate tomado como “estéril” e irresponsável
frente ao “desespero do povo”, que, sem orientação dos líderes, “acéfalo”, “reage” de
forma instintiva, numa alusão aos distúrbios no estado do Rio e no subúrbio daGuanabara. A situação é descrita como “anárquica”, com um verdadeiro “vácuo de
poder”:
“A cabeça precisa voltar a seu lugar. A autoridade necessita voltar aexercer-se, democrática e cabalmente. Urge que um verdadeiro poderocupe o vácuo que aí está. Abreviem-se as conversas, acabem-se asmanobras. Cessem as explorações da situação. Deixem-se as formas e asfórmulas para depois: trate-se, agora, do conteúdo, do pão, da carne, doleite, da ordem legal e real, da ordem das ruas e da ordem nas mesas.Pois é tão desordem o motim na praça pública como a falta de comida e
de confiança nos lares.O povo quer a ordem, o povo ama a ordem. Só se desespera,como no trágico dia de ontem, quando se sente só. É preciso manter atodo custo, democraticamente, a ordem que ainda existe nas bases, erestaurar a ordem que falta nas cúpulas. O que está em desordem, em
perigosa e vergonhosa desordem, é Bizâncio, são os dirigentes, são asrelações entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, entre os
partidos, entre as classes patronais e as trabalhadoras, entre os líderesde classe e as próprias classes.
Essa é a desordem. A desordem de que se estão aproveitando osaproveitadores de sempre. A desordem que o povo ordeiro repele, de quenão quer ser nem o responsável nem a vítima. A desordem que precisa
acabar, hoje, agora, já.”692
Em outro editorial desta mesma edição, o Jornal do Brasil novamente
caracterizou a greve geral como “inoportuna”, mesmo admitindo de forma explícita que
691 “Greve inútil.” Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962, p.6.692 Editorial “Ordem e desordem.” Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1962, capa.
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setores da UDN já jogavam a cartada do golpismo. Falando mais uma vez da falta de
oportunidade do movimento, conclui o raciocínio com as seguintes palavras:
“Desse modo, a greve política se transformou em aventura política. Nosescalões de comando, havia interesses políticos conflitantes. A resultantedo entrechoque dessas tendências foi uma greve mecânica, que apenas
concorreu para tornar ainda mais grave a situação nacional, quecomprometeu – inclusive – o prestígio do Presidente junto aos sindicatos – isto a partir do momento em que o apelo público feito pelo Sr. JoãoGoulart não foi aceito pelos dirigentes que sentiam medo de parar omovimento, e, também, de continuá-lo. Não há dúvida de que osdirigentes sindicais demonstraram a sua força. Mas também deixaram àmostra as suas fraquezas. E, seguramente, deram provas, com a sua greve
política, de falta de senso político e de senso de responsabilidade.”693
Como vimos no capítulo anterior, o Diário de Notícias estampou a manchete
“Movimento inédito na História do País: Brasil em Greve!”694 e outros órgãos acabaram
caracterizando o evento do mesmo jeito, como “a maior greve já verificada no Brasil”,
como descreveu a revista semanal Fatos e Fotos, que, contudo, também definiu a
paralisação como um “equívoco”.695 Aliás, essa revista concluiu seu comentário
afirmando que “a parede demonstrou – pela 2ª vez desde a crise de agosto do ano
passado – que as greves já funcionam como arma de coerção política”.
Como já havíamos assinalado acima, em meados de 1962, o IPES – sob a
cobertura do IBAD – lançava no Brasil o pequeno livro O Assalto ao Parlamento, no
qual existira uma explicação para uma a suposta “estratégia” utilizada pelos comunistas
para tomarem o poder na Tchecoslováquia, em 1948.696 Ao publicar esse livro, o
IBAD fez-lhe, além de um texto de apresentação, inúmeras notas de rodapé para
“explicar” aos seus leitores o significado de termos, e, principalmente, afiançar a
existência dos mesmos esquemas descritos no livro em operação no Brasil.697
Ainda no dia 18 de junho no jornal O Globo, Glycon de Paiva, eminência parda
do complexo IPES/IBAD, já havia publicado o artigo “A grande conspiração”, no qual
693 Editorial “Falta de senso”, Idem, ibidem, p.6.694 Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1962.695 Fatos e Fotos, n.76, Rio de Janeiro, 14 de julho de 1962, p.16.696 KOZAK, O assalto ao parlamento, op. cit.697 Lançado no ocidente em 1961, e traduzido em inúmeras línguas, o livro de Kozak é até hoje uma das
principais peças de histéricas campanhas anti-comunistas, como a que vem sendo feita atualmente contrao presidente dos EUA, Barak Obama, acusado de ser “comunista” por causa de sua tímida proposta dereforma do sistema de saúde. Em outro trabalho importante, René Dreifuss observou que o livro de Kozakvoltaria a ser impresso no Brasil nos anos 1980, em meio aos trabalhos da Assembleia Constituinte,distribuído nos meios militares. DREIFUSS, René Armand. O jogo da direita. Petrópolis: Vozes, 1989,
p.120. Para o trabalho de divulgação do livro em suas páginas, O Globo teria recebido 714.000 cruzeirosdo IPES. DREIFUSS, 1964, a conquista do Estado, op. cit., p.653.
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afirmava estar em curso no Brasil um sinistro plano para a “tomada do poder” pelos
comunistas, plano este que estaria seguindo os passos da mesma estratégia utilizada na
Tchecoslováquia.698 O artigo “explicaria” uma estratégia de três momentos onde se
realizariam “pressões na cúpula” combinados com outros três momentos simultâneos de
“pressões na base”. Realizando suas campanhas contra o governo Jango, é do interiordesta mitologia política que o IBAD faria sua própria leitura sobre os significados da
crise do gabinete e da greve geral de julho de 1962.
Na edição de agosto de sua revista mensal Ação Democrática, os ibadianos
rechearam as reportagens de considerações em torno à greve, enquadrando-a como parte
do alegado “dispositivo comunista” para a tomada do poder. É reproduzido o
mencionado artigo de Glycon de Paiva, onde é inserida ao final a seguinte nota:
“A 18 de junho, quando o Sr. Glycon Paiva escreveu este artigo, ainda
não tinha ocorrido a crise política pré-fabricada pela cúpula, a fim defazer uma experiência com o funcionamento das pressões de base. Osepisódios que se desenrolaram antes da formação do Gabinete do Sr.Brochado da Rocha mostraram à sociedade que o esquema de Kozak está
plenamente articulado no Brasil. O ponto máximo dessa articulação severificou quando da deflagração da chamada greve geral ordenada pelaConfederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, na mais estreitaarticulação com o Governo que forneceu apoio aos comunistas do“comando de greve”, apoio apregoado pelos próprios “comandantes”,inclusive transporte no avião presidencial.Era o trabalho de cúpula, conjugado com o trabalho de base.”699
Nessa versão, a greve nacional de julho teria sido um movimento articulado a uma
“crise artificial”, provocada pelo próprio Goulart quando das indicações de San Tiago
Dantas e a renúncia de Moura Andrade. Em outra nota à reprodução deste artigo,
quando seu autor fala do “estado de absoluta ausência de liderança governamental”
característico de governos de “união nacional” – com era de fato o primeiro gabinete
parlamentarista – onde o povo seria levado a “aceitar qualquer forma de autoridade”, é
mencionado o editorial do Jornal do Brasil, do dia 6 de julho, já discutido logo acima.
O tom das diversas reportagens sobre os embates entre Goulart e Congresso, em junho/julho daquele ano, caracteriza a situação como parte de uma “crise pré-
fabricada”, que teve o intuito de promover a “subversão” e a escalada de homens
698 PAIVA, Glycon de. “A grande conspiração.” O Globo, Rio de Janeiro, 18 de junho de 1962, p.4.699 PAIVA, G. de. “A grande conspiração.” Ação Democrática: publicação mensal do Instituto Brasileirode Ação Democrática, Ano IV, n.39, agosto de 1962, p.4-5, negritos no original. Arquivo Nacional (RJ).Fundo Paulo Assis Ribeiro, Caixa 133.
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ligados ao governador Brizola aos altos postos do governo, como era o caso do próprio
Brochado da Rocha. Em outro texto desta mesma edição, de título “Breve análise da
crise pré-fabricada”,700 é defendida a ideia de que a greve não teria sido totalmente bem
sucedida:
“Líderes sindicais, colocados em posições-chave pela influência da presidência da República, promoveram a greve geral, que só não paralisou o país, porque houve resistência por parte de outros líderesque ainda não são escravos da União Soviética.”701
Nesse mesmo diapasão, a greve é tomada em outra reportagem como um
“movimento grevista-revolucionário” através do qual o PCB desejava garantir que o
Ministério do Trabalho fosse ocupado por um “dirigente sindical comunista”.702 Teria
sido também um movimento com “cobertura governamental”, sendo a posição contrária
de Goulart uma prova de sua “incompetência”:“Mesmo admitindo-se que o Presidente da República não se interessasse
pelo movimento naquela ocasião, fica claro que a infiltração comunista por ele propiciada em todos os setores da administração pública –especialmente no Palácio da Alvorada, onde pontifica o sr. Raul Ryff,comunista confesso, militante, participante ativo e processado daintentona comunista de 1935 – fica claro que o dispositivo comunista jáse sente forte para desatender mesmo as ordens de interesse eventual doPresidente.”703
Ao mesmo tempo, o artigo busca vincular o desenrolar da greve a uma coordenação em
Brasília, não deixando de buscar envolver o próprio Goulart neste esquema:
“Mas uma coisa é preciso que não fique no esquecimento: no dia 5 de julho, voltando de Brasília, onde se avistaram com o Presidente, osdirigentes comunistas transmitiram aos sindicatos a ordem decontinuação da greve. Ordem oriunda de Brasília. Mas, poucas horasdepois, eram os sindicatos grevistas informados de que a parede seriasuspensa. E isso, porque sentiram os donos da fracassada greve geral quemesmo na Guanabara a posição grevista não aguentaria mais 24 horas.
Na tarde do dia 5, em plena ordem de greve, táxis em abundância, elotações e ônibus, em menor número, começavam a trafegar nas ruascariocas. No dia imediato, a greve seria furada espetacularmente pelo
setor de transportes urbanos.”704
700 “Breve análise da crise pré-fabricada.” Ação Democrática, agosto de 1962, op. cit., p.10-12 e 15.701 Idem, ibidem, p.10, grifos nossos.702 “Como agem os comunistas na pressão de base.” Ação Democrática, agosto de 1962, op. cit., p.16.703 Idem, ibidem.704 Idem, ibidem.
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Ou seja, é como se a decisão de continuar a greve até o fim do dia 5 tivesse sido tomada
por determinação do próprio Presidente da República, ao mesmo tempo em que o
movimento é apresentado como sem efetividade, “artificial” e feito contra a opinião dos
trabalhadores que, se não cumpriram suas jornadas principalmente na cidade do Rio de
Janeiro, “é porque não havia meios de transporte”.705
Por sua vez, no final daquele ano de 1962, o IPES, através do seu programa de
entrevistas na TV Cultura, “Peço a Palavra”, do apresentador Heitor Augusto,
entrevistou o deputado estadual Camilo Ashcar (UDN-SP) – apresentado como
professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie
de São Paulo. O tema do dia era o seguinte: “As greves deixaram de ser uma exceção
para tornarem-se uma perigosa constante no quadro social brasileiro.”706 O propósito do
programa era, obviamente, desqualificar as greves políticas. O entrevistado, apelando
para todas as restrições legais ao direito de greve, buscou pintar um cenário de agitaçãoconspiratória, bem ao gosto da campanha de desestabilização do governo promovida
pelo IPES.
Respondendo a uma pergunta sobre as chamadas “greves políticas”, o deputado
udenista referiu-se à greve de julho nos seguintes termos: “Há pouco tempo, houve
ameaça de greve em todo o País, porque o Congresso Nacional não quis aprovar a
nomeação de um primeiro Ministro.”707 E após longo comentário para afirmar que as
greves eram para favorecer certos líderes políticos, e que “pelegos sindicais” passaram a
ter “poder de comando na vida nacional”, Ashcar conclui: “Estas greves não são
legítimas, não podem ser aceitas pela consciência democrática e constituem um perigo
nacional porque deturpam o sentido normal da greve.”
As greves políticas de 1962 voltariam a ocupar as paginas de Ação Democrática
em março de 1963, em artigo de Fernando Mendes Filho, cujo sugestivo título é “A
greve como instrumento de assalto ao poder”.708 Sempre lembradas pelas constantes
“ameaças de greve geral de advertência” do CGT, o autor buscaria apresentá-las como
parte de um dispositivo formado por Goulart e o movimento sindical, cuja mediação era
705 A matéria ainda apresenta uma foto na qual aparecem populares em cima de um caminhão, enquantoem baixo aparecem personagens de terno e gravata muito parecidos com agentes da polícia política.Existe a legenda: “Onde havia um caminhão, havia gente que queria trabalhar.” Idem, ibidem.706 Notas taquigráficas do programa Peço a Palavra da TV Cultura de São Paulo, entrevistando odeputado Camilo Ashcar. Arquivo Nacional (RJ), Fundo Paulo Assis Ribeiro, Caixa 51, Pasta 3, p.1.707 Idem, ibidem, p.3, grifo meu.708 FILHO, Fernando Mendes. “A greve como instrumento de assalto ao poder.” Ação Democrática:
publicação mensal do Instituto Brasileiro de Ação Democrática. Ano IV, n.46, Rio de Janeiro, março de1963, p.8. Fundo Paulo Assis Ribeiro, Caixa 133.
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feita pelo assessor sindical da Presidência da República, Gilberto Crockat de Sá.709 De
acordo com o artigo, figurando como parte do “esquema-grevista” estava o diretor do
ISEB, Álvaro Vieira Pinto, também chamado de “professor marxista” dos “subversivos
da UNE”. É que em seu pequeno livro Por que os ricos não fazem greve?, o filósofo
isebiano teria defendido que o objetivo maior dos trabalhadores que fazem greve era “aconquista do poder político”, de modo a poder “resolver os problemas aparentemente
apenas de ordem salarial”. Estaria aí, segundo Mendes Filho, a prova do esquema de
“sovietização do Brasil”, do qual as greves políticas constituiriam instrumento.
Com todo aquele alarde que marca esse tipo de produção anti-comunista, o tom
do artigo é de “algo precisava ser feito”. Ele clama por uma atitude das Forças
Armadas, e menciona como “uma luz no fim do túnel” a atitude assumida pelo general
Peri Constant Bevilaqua, comandante do II Exército que, no momento em que era
promovido a general-de-exército em março de 1963, desferiu ataques às organizaçõesinter-sindicais (CGT, Fórum Sindical de Santos e PUA), acusando-as de espúrias e
orientando seus comandados a não estabelecer qualquer tipo de colaboração com os
mesmos.710
“Contra essa bolchevização intensiva começam (um tanto tardiamente) atomar posição autoridades militares ainda não contaminadas pelocomunismo apátrida. E foi exatamente em razão dessa crescente ondagrevista de fins puramente subversivos que o General Peri Bevilaqua,Comandante do II Exército, em nota aos seus comandados, alertou-os nosentido de que ‘não há motivos para escrúpulos de consciência ao tratarcom grevistas e principalmente com os seus incitadores, comocriminosos que são, em flagrante delito’. Mesmo porque, acrescentou,‘isto é ditadura exercida por uma classe sobre as demais e o bolchevismonada mais é do que a ditadura exercida por um grupo em nome do
proletariado’.”711
Para o jornal O Estado de São Paulo, cujo proprietário Júlio de Mesquita Filho
era um dos principais animadores da seção paulista do IPES, a greve de julho fora parte
de um “golpe” contra o parlamentarismo “e a Constituição”. Em editorial publicado já
no dia seguinte à greve, o jornal paulistano acusou uma “minoria” de “comunistas decostas quentes” de estarem por trás do dispositivo grevista que, não obstante só atingira
os serviços essenciais da cidade de Santos, do Rio de Janeiro, Salvador e Recife,
709 Personagem cujo descrédito no meio da esquerda sindical brasileira era enorme, como já comentamosno capítulo anterior.710 LEMOS, “Introdução” à Justiça Fardada, op. cit., p.18.711 FILHO, “A greve como instrumento de assalto ao poder”, op. cit.
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enquanto teria reinado “perfeita calma” no restante dos estados de São Paulo, Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul.712 Ademais, no caso do Rio de Janeiro, o Estadão
afirma ter a população manifestado “repulsa à manobra subversiva da esquerda
revolucionária”, segundo informações que o periódico diz serem seguras.713
Tudo não passaria de uma “técnica”, que consistiria em primeiro lugar em criarum clima na opinião pública de que haveria um “perigo de golpe contra Goulart”, de
modo a propiciar apoio à “agitação” e o “assalto ao poder”. À maneira do coronel Juan
Domingos Perón e de seu “mestre e protetor”, Getúlio Vargas, Goulart lançava mão dos
“pelegos sindicais” para apoiar seu projeto de usurpação do poder. Interessante é que
neste editorial busca-se exemplificar a natureza do “golpe” com o movimento ocorrido
em 11 de novembro de 1955, conhecido como “Novembrada”, quando o general
nacionalista Lott efetuou um contra-golpe que garantiu a posse de Juscelino Kubitschek
na Presidência da República em princípios de 1956. Tal como toda a tradição dogolpismo udenista, O Estado de São Paulo acusou os legalistas de “golpistas”. Vale
transcrever todo o trecho:
“A técnica é elementar e grosseira, mas sem dúvida eficiente: a preocupação preliminar das articulações “golpistas” no Brasil consisteem convencer a opinião pública, avessa a soluções violentas e ilegais
para as questões políticas, de que os adversários preparam um atentadocontra a normalidade do regime. Prescindiríamos desta observação paranos convencermos de que o atual presidente da República vemalimentando, desde a sua posse no Palácio da Alvorada, a ideia de um
golpe que o liberte das restrições legais ao abuso do Poder. O sr. JoãoGoulart formou, de fato, a sua mentalidade política à sombra da ditadurae temos tido demonstrações inumeráveis de que seus pendores para atirania superam os do seu próprio mestre e protetor, por se teremaproximado dos de Perón, com quem aprendeu a utilizar, em benefício deseus planos subversivos, o confusionismo estabelecido entre as massastrabalhadoras por seus prepostos, os “pelegos”, nas organizaçõessindicais. A sua própria persistência em manter o predomínio que desdeditadura Vargas vem exercendo sobre considerável parcela dos sindicatosoperários é prova de que faz parte dos seus planos sustentar-se na políticaindependentemente dos partidos, que representam, pela Constituição, a
base do regime. Mas se não dispuséssemos dessas indicações de suas
irreversíveis tendências, teríamos os mais fortes indícios de seus propositores, no cuidado com que vinha tentando convencer a Nação deque se urdia, nos meios adversos aos seus interesses políticos, um golpecontra as instituições.
712 “Golpe contra a Constituição.” (Editorial). O Estado de São Paulo, 6 de julho de 1962, p.3.713 “No próprio Rio de Janeiro, segundo estamos seguramente informados, toda a população opôsenérgica repulsa à manobra subversiva da esquerda revolucionária. Na ex-capital da República sentia-seontem, por toda a parte, a mais formal reprovação à prepotência com que essa minoria entrara em conflitocom a cidade.” Idem, ibidem, grifos nossos.
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Ora, esse golpe está sendo tentado, ou está sendo desferido – éimpossível definir precisamente a fase em que se encontra neste instantede extrema confusão. Mas não resultou da trama dos adversários do sr.João Goulart, pois é o próprio sr. presidente da República que à sua testase encontra. A opinião pública brasileira dispõe de todos os elementos
para julgar com segurança a situação em que nos encontramos e para
apontar e julgar os culpados por esta grave crise institucional que nosarrasta a perigos ainda mais extremos, de verdadeira convulsão política esocial. Os acontecimentos aí estão a provar que os conspiradores são
precisamente os que se esmeravam em prevenir a Nação contra astendências “golpistas” dos seus contrários. Foi graças ao mesmo processode confusão da opinião pública que de outras feitas as correntesditatoriais lançaram o País em outro golpe de Estado. A quartelada de 11de novembro, por exemplo, foi precedida da mesma preparação
psicológica, tendente a confundir o entendimento popular e a fazeracreditar a Nação de que os legalistas eram os “golpistas” e os“golpistas” os legalistas.”714
O jornal ainda lamenta o fato de que boa parte da opinião pública “se deixou
engodar pela trama”, manobra que possuiria contorno até mais “perigoso” que o da
Novembrada, pois não só o regime teria sido ameaçado, quanto para isso Goulart teria
optado por manobrar com forças “dificilmente controláveis, mobilizadas à margem da
política para a efetivação da aventura”, referindo-se, claramente, à greve geral de 5 de
julho. Assim, de acordo com o jornal, o “latifundiário” presidente da República estaria
fazendo o “jogo dos comunistas” para que estes o apoiassem em seu suposto “propósito
golpista”.715
***
714 Idem, ibidem, grifo nosso.715 “Não houve originalidade, portanto, nas últimas urdiduras golpistas: seus autores trilharam as mesmasveredas do passado, na convicção de que elas os conduziriam ao mesmo venturoso fim. É natural que aindiscriminada repetição dos mesmos processos não surtisse desta vez resultados tão completos como osdas tentativas anteriores, mas é indisfarçável que parte de opinião pública se deixou engodar pela trama. Eé lamentável que isto se dê, porquanto desta vez os propósitos “golpistas” se tornaram duplamente
perigosos, primeiro pelo atentado, em si, projetado contra o regime e, depois, pelas forças, dif icilmente
controláveis, mobilizadas à margem da política para a efetivação da aventura . Este perigo se vemtornando há muito evidente com a ascendência das correntes comunistas sobre parte da cúpulagovernamental. Já muitas vezes acentuamos que o sr. João Goulart, seja pelo colorido do seu extremismo,seja pela natureza dos interesses de quem é um dos maiores latifundiários do País, não se pode confundircom o matiz escarlate dos comunistas. Mas é inegável que vem fazendo o jogo dos moscovitas , seja porserem comuns às extremas da direita e da esquerda as conveniências na perturbação da ordem e nocombate à democracia, seja por supor que os vermelhos estão desta vez dispostos a fazer o seu jogo. Comesta esperança, preparou, com o auxílio indisfarçável do comunistas, não só uma greve geral de sentido
político destinada a paralisar o País no momento propício à deflagração do golpe, mas ainda toda umasérie de perturbações destinadas a serem confundidas com manifestações de insatisfação popular pelaordem legal vigente no Brasil.” Idem, ibidem, grifos nossos.
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Do ponto de vista ideológico, as forças da esquerda nacionalista também
reforçariam suas crenças a partir dos êxitos do movimento paredista de julho de 1962,
(percepção que seria alterada após o golpe).
O jornal do PCB, Novos Rumos, em uma de suas reportagens sobre a greve de 5
de julho, lembrou da “coincidência feliz” do movimento ter se realizado no mesmo diaem que “se comemorava o quadragésimo aniversário do primeiro 5 de julho”, ou seja,
do levante tenentista de 1922, buscando, a partir da autoridade de possuir como seu
secretário-geral o legendário Luís Carlos Prestes, ligar as lutas dos trabalhadores às
tradições reivindicadas pelo “movimento nacionalista”.716 Outra coincidência, não
mencionada na reportagem de Novos Rumos foi a da presença de Prestes em Brasília,
naquele mesmo 5 de julho de 1962, quando levou toda a documentação pertinente para
conseguir a legalização do PCB junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
documentação essa que incluía mais de cinquenta mil assinaturas de um pedido queacabou por ser negado.
Por sua vez, o jornal da Frente Parlamentar Nacionalista também se pronunciaria
alguns dias depois da greve em sentido próximo, mencionando a paralisação como uma
“data histórica na luta da classe operária por sua emancipação”.717 Embora sua
participação no movimento não pareça ser tão efetiva quanto a da imprensa comunista,
pelo menos desde sua edição do dia 21 de junho O Semanário já havia mencionado as
resoluções tomadas em uma das muitas reuniões de articulação política promovida pela
esquerda sindical, onde é dita a decisão tomada pelos trabalhadores de convocar uma
greve geral, “caso o futuro Primeiro Ministro não seja um homem identificado com os
anseios da classe operária e do povo.”718 Em edição do dia 5 de julho, embora O
Semanário não tenha feito nenhuma menção à greve desencadeada naquele dia –
provavelmente pela edição semanal já estar pronta quando os acontecimentos
desenrolaram-se –, é divulgada a posição das lideranças sindicais de convocar a
716 Novos Rumos, Rio de Janeiro, 12 de julho de 1962, p.2. Prestes, na verdade, é fruto do segundo levantetenentista (1924). Todavia, a suposta ligação ente tenentismo e movimento nacionalista, estabelecida pelaimprensa comunista, não deve ser tomada sem reservas como historicamente pertinente. Entretanto, eraassim que os comunistas e muitos outros grupos da esquerda nacionalista compreendiam a relação entreos processos.717 O Semanário, Rio de Janeiro, 12 de julho de 1962, n.289, p.7.718 “Trabalhadores e deputados da FPN exigem um gabinete nacionalista.” O Semanário, Rio de Janeiro,21 de junho de 1962, p.9.
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paralisação de protesto caso não se formasse um “gabinete democrático e
nacionalista”.719 As razões fundamentais da greve estavam esclarecidas.
Voltando aos comunistas, ao final daquele ano 1962, quando realizou a sua
Quarta Conferência Nacional, o PCB aprovou uma resolução com uma avaliação sobre
a situação política do Brasil. A resolução apontava o agravamento das contradições nointerior do bloco governamental, sendo destacado o papel da “burguesia ligada aos
interesses nacionais”, cujo maior representante seria o próprio João Goulart, círculos
dirigentes do PTB e setores de outros partidos favoráveis às reformas de base e
interessados no “desenvolvimento econômico capitalista” e por isso mesmo interessados
em medidas tais como a regulamentação da remessas de lucros para o exterior e uma
reforma agrária limitada. No que nos interessa imediatamente, nota-se o destaque do
documento à “unidade e organização das lutas das massas populares”, a exemplo do que
teria ocorrido nas greves gerais de julho e setembro, onde teria ficado constatado que “omovimento operário exerce uma influência dia a dia mais importante na vida política do
país e no conjunto de forças que se opõem ao imperialismo e ao latifúndio”.720 Sendo o
PCB a mais influente organização política a atuar no seio do movimento operário,
evidencia-se, no tocante a esta participação do movimento no processo político, a sua
importância como uma das forças sociais na qual Goulart teria se apoiado para
“fortalecer suas posições tanto no Poder Executivo como nas Forças Armadas”.721
Em alguns trabalhos escritos por militantes de esquerda no período anterior ao
golpe, e que tratavam de analisar o contexto de emergência das lutas sociais, a greve de
julho seria bastante destacada. Isso pode ser visto no livro O movimento sindical no
Brasil – já bastante mencionado nesta tese –, escrito pelo responsável pela área sindical
em Novos Rumos, Jover Telles, publicado ainda em 1962 pela editora Vitória, ligada ao
PCB, na oportunidade da criação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). O livro
de Telles é também uma compilação de suas reportagens em Novos Rumos desde o final
dos anos cinquenta. Na obra, que termina com o capítulo “O movimento operário na
primeira metade de 1962”, o autor dedica boa parte ao relato do processo de montagem
do dispositivo grevista e à própria greve geral.
719 “Trabalhadores exigem governo democrático e nacionalista.” O Semanário, Rio de Janeiro, 5 de julhode 1962, p.6.720 Resolução política dos comunistas (dezembro de 1962). Cadernos Novos Rumos. Rio deJaneiro/Guanabara: Editoria Aliança do Brasil Ltda, 1962, p.4-5. Fundo Roberto Morena, Arquivo deMemória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ), Rio de Janeiro, IFCS-UFRJ.721 Idem, ibidem, p.8.
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Constituindo uma importante fonte para o estudo deste processo (Telles
reproduz os mais importantes manifestos redigidos pelo Comando Nacional de Greve),
o autor entende que a crise política era atravessada pelo “aguçamento da luta de classes”
cujo auge foi a realização, em suas palavras, da “maior greve política da história do
movimento operário no Brasil”.722
De acordo com o autor, a crise política vivida emmeados de 1962 era nada mais do que o acirramento do choque entre as mesmas forças
políticas que haviam se enfrentado em 24 de agosto de 1954, 11 de novembro de 1955 e
na crise de agosto/setembro de 1961.723 Entretanto, diferentemente destas mencionadas
crises, Telles vê como particularidade do processo político em junho/julho de 1962 a
maior participação da massa dos trabalhadores na luta política, destacando-se a atuação
“mais independente” da classe operária.
Tal como figura na documentação oriunda dos sindicatos sob influência da
esquerda sindical, os pronunciamentos do general Osvino são tomados como um dosimpulsionadores da movimentação dos sindicalistas nestes meses. E a ideia de que o
movimento de greve foi feito em razão de impedir o triunfo de um golpe de Estado –
que poderia ter aprofundado o esvaziamento dos poderes de Goulart – constitui o cerne
de sua explicação, assim como pudemos observar em toda a produção oriunda da
esquerda nacionalista. Entretanto, mesmo nesta são explícitas as importantes diferenças
havidas no interior das forças que apoiavam o governo, pois, por exemplo, a articulação
da candidatura de Auro Moura Andrade é atribuída a um “cambalacho” resultante de
um acordo entre Jango, representantes oficiais da UDN e do PSD, além do senador
Juscelino Kubitschek e o governador gaúcho Leonel Brizola.724 Assim, a eleição de
Moura Andrade pela Câmara é tomada como “verdadeiro golpe branco”, posto que,
como já comentamos, além da composição do Conselho de Ministros sugerida pelo
senador paulista buscar eliminar os traços da política externa independente, na área
militar ameaçou-se a restauração completa do dispositivo golpista.
Telles apresenta ainda dados sobre a amplitude da greve, dando conta de sua
efetividade nas seguintes cidades: Fortaleza, Belém, Recife, Salvador, Campina Grande,
Vitória, Santos, Cubatão, Belo Horizonte (cidade industrial), Paranaguá, Itajaí e
722 TELLES, O movimento sindical no Brasil, op. cit., p.145.723 É realmente sintomático do processo de reconstrução da memória dos comunistas a inclusão da crisede agosto de 1954 neste rol, pois, como se sabe, naquela altura, o PCB encontrava-se também na oposiçãoao governo Vargas, embora não estivesse, tal como a direita golpista (UDN, oficiais da CruzadaDemocrática etc.), empreendendo ações para consecução de um golpe de Estado.724 Idem, ibidem, p.159-160. Essa crítica de um militante comunista a elementos importantes do bloconacional-reformista como Goulart e Brizola denota-se como forma de demonstrar a justeza da linhaseguida pelo PCB face às outras forças e lideranças políticas, sempre tachadas de inconsequentes.
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Crisciúma.725 Além de destacar o sucesso do movimento também no estado do Rio de
Janeiro e na Guanabara, anota o fato da greve no Rio Grande do Sul ter sido feita contra
o pedido do governador Brizola. Sobre a greve na Guanabara, sem dúvida uma das mais
fortes e emblemáticas – já que se enfrentou com a repressão e triunfou – Telles nos
bridou com uma bela (embora impressionista) imagem:“A partir da meia-noite do dia 4, conforme ordenara o Comando
Nacional, as ruas ficaram desertas de ônibus e lotações, os trilhostornaram-se inúteis, o aeroporto vazio e as fábricas em silêncio. E umagrande alegria iluminava os lares humildes dos operários. Tinhamconseguido paralisar toda a atividade do Estado numa demonstração deque a classe operária fortalece sua unidade e afirma na posição devanguardeira das lutas de nosso povo contra os imperialistas elatifundiários.”726
Na apresentação de O movimento sindical no Brasil, escrita por Astrojildo
Pereira,727 o autor destaca a politização havida nos meios operários brasileiros naquele
contexto, sendo a própria greve de julho tomada como “uma significativa demonstração
deste fato”. De acordo com o legendário intelectual comunista:
“Foi a primeira grande greve política de âmbito nacional já deflagrada noBrasil, assinalando a presença na arena política do País de uma forçaindependente, cujo poder de decisão tem de ser levado em conta – aclasse operária organizada e consciente de seus objetivos. Ora, seu êxitose deve não apenas à capacidade organizativa e combativa dos sindicatosoperários, mas sobretudo ao grau de amadurecimento político já atingido
pelos trabalhadores brasileiros.”728
Como continua Astrogildo Pereira, intervindo no processo político, a classe
operária dava uma lição aos porta-vozes dos “círculos reacionários” que advogavam a
ideia de que os sindicatos não deveria “imiscuir-se”729 no processo político.
725 Como já comentamos no capítulo anterior, nossa pesquisa concluiu que em algumas localidadesarroladas por Telles, a greve, embora tenha ocorrido, foi bastante fraca, como em Belém e BeloHorizonte.726 Idem, ibidem, p.165.727 Anarquista em sua juventude, tendo participado da tentativa de insurreição de 1918 no Rio de Janeiro,Astrojildo Pereira foi uma das principais lideranças do PCB nos primeiros anos de sua existência. Amudança para o marxismo lhe valeria duras críticas por parte de anarquistas como José Oiticica, antigocamarada que passou a atacá-lo na imprensa operária como um verdadeiro “traidor”. Em 1930 aorientação obreirista advinda da Internacional Comunista deslocou Astrojildo Pereira da direção do
partido, levando-o ao afastamento. Voltaria às hostes pecebistas em 1945, quando passou a colaborar comsuas revistas (Problemas da Paz e do Socialismo e Estudos Sociais) e imprensa ( Imprensa Popular e
Novos Rumos). Após o golpe de 1964, já com a saúde precária, foi preso em outubro daquele ano, ficandoencarcerado por três meses. Morreu no início de 1965.728 PEREIRA, Astrojildo. “Prefácio” a TELLES, O movimento sindical, op. cit., p.XI, grifos nossos.729 As aspas, irônicas, são de Pereira.
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“A propósito da greve geral de 5 de julho, cabe aqui um comentário acertas opiniões que sobre ela emitiram conhecidos porta-vozes doscírculos reacionários. Segundo tais opiniões, cheias de ódio e também demedo, não compete aos sindicatos operários ‘imiscuir-se’ nas questões
políticas que agitam o País. Isso equivale a afirmar-se que a política é um privilégio das classes dominantes, matéria privativa das cúpulas
partidárias e dos grupos econômicos, da chamada grande imprensa e daalta hierarquia eclesiástica, dos espertos cavalheiros da indústriaanticomunista e dos vigaristas do terrorismo ideológico. Para essa gente,os sindicatos, os operários, os trabalhadores, os camponeses nada têm aver com a política. Os estudantes também não. A função do sindicato écolaborar com os patrões, e do operário e do empregado é trabalhar, a docamponês é cavar a terra do latifundiário. A do estudante é cavar canudode doutor para vir a servir à ordem reinante, ocidental e cristã,supervisionada pelo bom homem da Casa Branca. Tal o pensamentocorrente nos círculos reacionários.”730
Ou seja, de acordo com essas representações produzidas pelos dirigentescomunistas, a ação da classe operária aquela altura já se mostrava como independente, a
própria greve geral é apontada como prova disto, embora tenha sido realizada em meio
ao choque entre os grupos dominantes (e em favor de um deles).
Outro trabalho importante a tratar da greve de julho é Como são feitas as greves
no Brasil?, de Jorge Miglioli.731 Como parte de uma coleção de panfletos escritos pela
intelectualidade nacionalista do ISEB, intitulada Cadernos do Povo Brasileiro, o livreto
de Miglioli, concluído em dezembro de 1962 e publicado em 1963, deu lugar destacado
à primeira greve geral da classe trabalhadora brasileira.Logo no início do livro o autor esclarece que seu propósito não era o de tecer
maiores considerações teóricas sobre as greves, remetendo o leitor para outro título da
coleção, o já mencionado Por que os ricos não fazem greve? , do filósofo Álvaro Vieira
Pinto, então presidente do ISEB.732 Em Como são feitas as greves no Brasil?, Miglioli
parte de algumas considerações de ordem sociológica, segunda a qual as greves são
tomadas como um fato social das sociedades industriais capitalistas, como uma forma
típica em que operam os conflitos dentro das relações de trabalho.
Traçando um painel da ocorrência de greves nos países pioneiros daindustrialização na Europa, adentra a história do Brasil na greve dos tipógrafos de 1858
no Rio de Janeiro – durante muito tempo considerada a primeira de nossa história –,
730 Idem, ibidem, p.XI-XII.731 MIGLIOLI, Jorge. Como são feitas as greves no Brasil? Coleção Cadernos do Povo Brasileiro.Vol.13. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.732 PINTO, Álvaro Vieira. Por que os ricos não fazem greve? Coleção Cadernos do Povo Brasileiro.Vol.4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
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passando por julho de 1917 em São Paulo – talvez a mais lembrada – chega-se ao ciclo
ascendente de greves que compreendeu o período entre o final dos anos 1950 até o ano
de 1962, foco dos exemplos históricos arrolados ao longo do livro. São as greves do
início dos anos sessenta as que merecem maior destaque nesse painel, sendo frequentes
as menções às greves gerais nacionais de julho e setembro de 1962.O destaque à greve de julho é feito em função do ciclo de mobilização e da
capacidade de organização do operariado brasileiro, segundo a avaliação presente no
texto. Assim, conclui-se que “enquanto as greves de agosto de 1961 foram apenas
reações espontâneas contra uma situação confusa, de início, e contra uma clara tentativa
de golpe político-militar, depois, as greves gerais de julho e setembro de 1962 foram
deflagradas com objetivos precisos, organizadamente”.733 Enfatizando o caráter
histórico desta parede, o autor conjura – como muitos outros – a mística do 5 de julho,
enfatizando também o caráter pioneiro da mesma:“A Classe Trabalhadora alcançou grandiosa vitória ao realizar pela
primeira vez na história do movimento sindical brasileiro, uma grevegeral em todo o território nacional. O dia 5 de julho, data da afirmaçãoda luta libertadora, já agora se tornará, também, uma data histórica do
proletariado brasileiro, que reúne em torno de sua ação as forças progressistas de nosso povo.”734
Ao final do livro, Jorge Miglioli discorre sobre as condições que tornaram
possível a realização das greves políticas de julho e setembro de 1962. Elenca primeiro
as dificuldades em executá-las. Na primeira: a extensão territorial do país, a dispersão
dos centros industriais, e por sua vez a inexistência de grandes concentrações operárias,
prejudicando a comunicação; também o “domínio do espírito sindicalista (apolítico)
entre certos grupos de trabalhadores, como aconteceu em São Paulo, principalmente por
ocasião da primeira greve geral”;735 perseguição policial em certos estados. Em seguida
fala das condições favoráveis, que preponderaram e permitiram o êxito do movimento
que compreendem os seguintes itens: a) situação econômica, política e social do país; b)
inflação desenfreada; c) aumento do pauperismo e intensificação da carestia de vida; d)
em vários estados, falta de gêneros alimentícios, como feijão, arroz e açúcar; e) crises
governamentais desde a renúncia de Jânio; f) conflito Executivo x Legislativo; g)
radicalização dos Partidos; h) conjunto de reivindicações realistas ao movimento
733 MIGLIOLI, Como são feitas as greves..., op. cit., p.116-117.734 Idem, ibidem, p.120.735 Idem, ibidem, p.124.
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operário; i) reivindicações que também interessavam a elementos do Governo e das
Forças Armadas, o que contribuiu para a não-intervenção federal e não repressão por
parte destes setores; j) as próprias crises políticas contribuíram para o forte
desenvolvimento da consciência política da classe operária; k) unificação dos comandos
operários no CGT.736
Constituindo-se num dos muitos textos de “conscientização” das camadas
letradas da população (intelectualidade tradicional, professores universitários,
estudantes, camadas cultas do operariado etc.) que marcaram parte da produção
intelectual nacionalista difundida no período, o texto de Miglioli é também parte do
esforço de legitimação do CGT como entidade representativa do movimento sindical
brasileiro, e nesse sentido é possível entender quão destacada foi a greve que afinal deu
ensejo à conformação da entidade. Não é por acaso que na nota inicial de
agradecimentos do livro, o nome do eminente líder operário comunista, RobertoMorena, seja lembrado. A mesma característica pode ser encontrada no já mencionado
livro de Telles.
Entre os setores mais à esquerda do PCB a greve de julho também seria tomada
como um momento impar na história do movimento operário. Embora com quase nula
influência no sindicalismo operário, os membros da Organização Marxista-
Revolucionária Política Operária (mais conhecida como POLOP) também valorizaram
aquele episódio.737 O então dirigente da organização, também jornalista e assessor
político do deputado Sérgio Magalhães (do PTB-GB e líder da FPN), Moniz Bandeira,
em texto sobre a estratégia da “Revolução Brasileira”, localizaria a greve geral de julho
como momento que confirmaria sua análise da crise brasileira. Inspirado nos textos de
Trotsky sobre a Alemanha no início dos anos 1930,738 Bandeira apresentou um
profundo estudo das condições do capitalismo brasileiro e das contradições de classe
originadas pelo desenvolvimentismo, caracterizando a situação política do Brasil no
início dos anos 1960 como pré-revolucionária.
736 Idem, ibidem, p.126-126.737 Fundada em princípios de 1961, a partir da fusão de várias organizações de cunho marxistainfluenciadas pela Revolução Cubana, o grupo editava o jornal Política Operária, de onde se originou o“apelido” de POLOP. Nela militaram nomes como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, MichealLöwy, os irmãos Eder e Emir Sader, Vânia Bambirra, Luiz Alberto Moniz Bandeira, entre outros. Cf.MATTOS, Marcelo Badaró. “Em busca da revolução socialista: a trajetória da POLOP (1961-1967).” In.RIDENTI, Marcelo & REIS FILHO, Daniel Aarão (org,). História do Marxismo no Brasil. Campinas:Ed.Unicamp, 2002, v.V, p.185-212.738 Reunidos na compilação Revolução e contra-revolução na Alemanha, e re-editada recentemente noBrasil em TROTSKY, Leon. Revolução e contra-revolução na Alemanha. São Paulo: Sundermann, 2011.
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Segundo informa em suas linhas iniciais, seu trabalho já se encontrava pronto
quando a classe trabalhadora saltou ao centro da cena política, paralisando o trabalho
em várias cidades do país num movimento político. Cito:
“Os acontecimentos que se precipitam, no Brasil, confirmam o quadroesboçado no correr deste livro. Os seus originais já estavam prontos,quando, a 5 de julho de 1962, as massas saíram às ruas, em várias cidadesdo Estado do Rio. Lincharam comerciantes, expropriaram osexpropriadores. As massas estavam dispostas a intervir, diretamente, nacrise, no processo político do país.” 739
E prossegue:“As facções das classes dominantes, que disputavam a hegemonia doGoverno, trataram, assustadas, de conciliar-se, como, aliás, sempreacontece. Procuraram ocultar, reduzir as proporções do episódio, paraque não servisse de estímulo, de exemplo, e não se repetisse no resto do
país. A imprensa, praticamente, não se referiu aos casos do comerciante
enforcado e do que teve a cabeça esmagada a golpe de pedra, porqueatirou contra o povo.A greve geral, a primeira grande greve política, paralisava,
naquele mesmo dia, quase todo o país. Mas, faltou ao proletariadodireção revolucionária, que lhe desse perspectiva própria, independente,de classe. Da greve, embora todos os seus aspectos positivos, ainda seaproveitaram João Goulart e a facção reformista da burguesia. E essemesmo fator permitiu que os pelegos e burocratas esvaziassem eentregassem ao fracasso a greve geral de agosto, ainda com as mesmaslimitações, que colocavam a classe operária a reboque da burguesia.”740
Após o golpe de 1964, os balanços imediatos da derrota feito pelos comunistas e
outras esquerdas igualmente derrotadas parecem ter contribuído para um relativo
esquecimento da importância das lutas operárias ocorridas nos anos imediatamente
anteriores ao golpe, entre elas a greve aqui estudada. Em seu O combate nas trevas,
Jacob Gorender chama atenção para este fato, atribuindo a responsabilidade ao balanço
feito pela direção do PCB (Prestes e Giocondo Dias), que, entre outras coisas, condenou
a “radicalização” por parte da esquerda. Segundo a posição oficial do “Partidão”, tal
“radicalização” havia tornado a situação insustentável para Goulart.741 Deste modo,
739 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. “O caminho da Revolução Brasileira.” In. A renúncia de JânioQuadros e a crise pré-64. São Paulo: Brasiliense, 1979, p.66.740 Idem, ibidem, p.66.741 Enquanto no documento “Esquema para discussão”, assinado por Mário Alves, Jover Telles, JacobGorender, Giocondo Dias, Orlando Bonfim e Carlos Marighella, de maio de 1964, se afirmava que acausa da derrota havia sido um grave “desvio de direita” – a ilusão da aliança com a burguesia nacionaletc. – na primeira reunião do Comitê Central, de maio de 1965, a posição que prevaleceu foi a de que o
problema havia residido em um “desvio de esquerda”, que teria acabado por abandonar a “bandeira dalegalidade” nas “mãos dos inimigos” (da direita). VINHAS, Moisés. O partidão. A luta por um partido demassas (1922-1974). São Paulo: Hucitec, 1982, p.236-237. É possível verificar enorme semelhança entre
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numa memória construída pelos comunistas que se mantiveram fieis a esta direção,
ganhou força a desqualificação daquilo que Gorender com razão definiu como um dos
períodos altos das lutas da classe trabalhadora brasileira no século XX. Sobre a greve de
julho, suas palavras são essas:
“Diante da derrota da indicação de San Tiago Dantas e da aprovação dosenador pessedista Auro Moura Andrade para Primeiro-Ministro, oComando Geral de Greve proclamou uma greve nacional a fim de
pressionar o Congresso. Realizada no dia 5 de julho, a greve foi praticamente completa nos serviços públicos, nas empresas estatais, nosetor bancário, mas parcial, embora com elevados percentuais, em outrossetores da empresa privada. Durante o seu transcurso, estabelecimentoscomerciais no Rio e na Baixada Fluminense sofreram saques, dandolugar a conflitos com mortos e feridos. O Congresso cedeu e aprovou aindicação de Brochado da Rocha, político trabalhista do Rio Grande doSul desconhecido no cenário nacional.”742
Interessante é que neste mesmo o autor também contribua para, em certa
medida, desqualificar as greves políticas de 1962 como parte do processo de ascenso
operário, ao afirmar que na já comentada Quarta Conferência Nacional do PCB, a
maioria dos seus delegados havia questionado a orientação do Comitê Central de
colocar o movimento operário a reboque da burguesia, “principalmente nos episódios
das greves nacionais”.743 Ora, por mais que fosse correta a percepção de que a
orientação dada pela direção do PCB levasse o movimento operário para a estratégia da
colaboração de classes, a greve de julho parece até certo ponto questionar o
“reboquismo” nessa aliança de classe. Afinal, a paralisação do trabalho foi feita contra o
desejo de Goulart, San Tiago Dantas, Brizola e do próprio general Osvino, ainda que em
proveito do presidente da República.
Não obstante Gorender afirmar que naquelas greves nacionais de 1962 tenha
havido “coordenação direta e operacional entre Jango e as lideranças dos
trabalhadores”, reconhece que o sindicalismo de esquerda avançou “além do limite
desejável pelo Presidente”, que por isso mesmo teve de fazer concessões: a lei do 13º
as teses do grupo dirigente do PCB e o atual revisionismo historiográfico sobre o golpe de 1964, jádiscutido no primeiro capítulo desta tese.742 GORENDER, O combate nas trevas, op. cit., p.48.743 Idem, ibidem, p.50. De acordo com o autor, apesar dos dirigentes comunistas Prestes e Giocondo Diasterem ficado surpresos quanto ao teor das críticas, a minoria mais à esquerda da direção – formada porMarighella, Mário Alves e Jover Telles –, que encampou tais críticas, ganharia maior peso na ComissãoExecutiva do PCB. Idem, ibidem, p.51.
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salário quando da primeira greve nacional, e a criação da Superintendência para a
Reforma Agrária (SUPRA), quando da segunda.744
Nas alas mais à esquerda da intelectualidade marxista, a greve de julho
continuaria a ser referida com a mesma dubiedade. Em trabalhos como o de Rui Mauro
Marini, que nos anos do governo Goulart foi um dos mais importante intelectuais edirigentes políticos da POLOP, as imagens sobre a greve de julho permaneceriam muito
próximas ao que escrevera Moniz Bandeira em 1962. Em um estudo publicado em
1969, Rui Mauro Marini faz uma profunda análise histórico-social da crise brasileira,
discutindo as alianças e contradições entre os grupos dominantes, até a cisão entre elas
nos anos antecedentes ao golpe de Estado.745 Neste roteiro, a luta política desencadeada
no país a partir da crise de agosto/setembro de 1961 operou uma cisão entre as classes
dominantes, situação que no léxico gramsciano aqui adotado constitui a crise orgânica.
Para Marini, a greve de julho de 1962 constitui um momento impar deste processo, poisnaquelas jornadas observou-se que Goulart viu-se sem o controle da situação, ainda que
ao longo de todo o processo o mesmo tenha conseguido manobrar com base no apoio
deste movimento sindical e do nacionalismo militar para dobrar a resistência do
Congresso e arrancar-lhe o plebiscito sobre o parlamentarismo. Segundo autor:
“Se se considerar, com efeito, o modelo das crises políticas pelas quais passou o país, se verá claramente que, desde 1961, as forças popularesganhavam autonomia de ação e as crises se resolviam cada vez menosfacilmente por acordos de cúpula. No ‘movimento pró-legalidade’, que se
desatou depois da renúncia de Jânio Quadros, foi ainda possível aosgrupos dominantes encontrar uma forma de transição, o regime parlamentar. Mas, nas lutas subsequentes pelo restabelecimento do presidencialismo, se o mando esteve sempre nas mãos de João Goulart,houve um momento – na greve geral de julho de 1962 – em que quaselhe escapou. Foi o pânico provocado pela amplitude da greve geral desetembro e a memória dos distúrbios sangrentos que se haviam verificadoem julho, no Rio de Janeiro, que, aliados ao temor de uma intervençãomilitar a favor de João Goulart, dobraram a resistência do Congresso.”746
Como se vê, para Marini o grau de autonomia alcançado pelo movimento operário nos
episódios daquelas greves gerais de 1962 foi muito maior do que costuma se admitir,inclusive se comparada à posição de Bandeira.
744 GORENDER, O combate nas trevas, op. cit., p.48. Além disso, como vimos, da segunda grevenacional resultou o acordo para revisão do salário mínimo.745 MARINI, Rui Mauro. “Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil.” In. SADER, Emir (org.).
Dialética da dependência. Antologia de Rui Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 1996, p.11-103.746 Idem, p.45, grifo nosso.
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Em seu clássico O colapso do populismo, Otávio Ianni destaca a greve de julho
no capítulo VII, “A Esquerdas e as Massas” de um modo bem diferente.
Apresentando/formulando a noção de sindicalismo populista, Ianni discute as limitações
da mobilização operária no período anterior ao golpe, apresentando o quadro tradicional
da concentração da mobilização grevista no serviço público e nas empresas estatais,etc., afirmando que as próprias greves por razões econômicas possuíam participação
limitada.
De acordo com esse quadro, Ianni atribui a eclosão da greve de julho de 1962 à
decisão de entidades de cúpula do sindicalismo brasileiro, que reuniram um conjunto de
reivindicações que constituíam os “objetivos correntes da política populista e aqueles
específicos da esquerda”. Após apresentar a pauta de reivindicações da greve geral de
julho, conclui,
“A esquerda presente na formulação dessas reivindicações precisouconformar-se às exigências reformistas inerentes ao funcionamento dademocracia populista. Aliás, ela percebe a situação e define o programatendo em vista as ambiguidades das condições de luta. Entretanto, nofinal, ela própria não escapa às ambiguidades desse jogo. Revertem-seuma e muitas vezes os meios e os fins, no âmbito do populismo.” 747
É importante lembrar que a perspectiva interpretativa de Ianni teria larga
influencia entre os setores críticos à esquerda da política do PCB, que, segundo esses
grupos, teria levado a classe operária ao beco-sem-saída da aliança com a burguesia
nacional, pavimentando a derrota de 1964. A leitura sobre o colapso do populismo feita
por Ianni, como, aliás, por toda intelectualidade de esquerda ligada à Universidade de
São Paulo (Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort,
Roberto Schwarz), apontava a inconsequência do projeto pecebista de “revolução por
etapas”, avaliação também encontrada em alguns grupos que romperam com o PCB e
aderiram à luta armada.748 Constituídas por muitos jovens frustrados com a derrota de
1964, oriundos do movimento estudantil, muitas organizações revolucionárias armadas
não cultuariam a mobilização operária do período anterior ao golpe, ligando-a aos
747 IANNI, O colapso do populismo no Brasil, op. cit., p.108.748 A hegemonia intelectual do PCB por outro lado não pode desconsiderar a existência de pensamentomarxista alternativo no início dos anos sessenta, oriundo tanto da intelectualidade da USP, quanto degrupos mais à esquerda do PCB, como a própria POLOP e a pequena organização política trotsquista,POR-T. Quanto às Ligas Camponesas, Brizola, PCdoB e AP, esses grupos não parecem ter sidoresponsáveis pela elaboração de uma interpretação estratégica alternativa daquilo que predominava naesquerda nacionalista, de que o PCB e o ISEB constituíram-se como os principais centros elaboradores.
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muitos impasses provocados pela fragilidade da orientação estratégica das esquerdas,
em especial do “Partidão”.
Aliás, a experiência que mais despertou esperanças, logo frustradas, das
organizações mais radicais da esquerda, foram as greves de Contagem e Osasco em
1968, logo tomadas pela análise acadêmica da esquerda como episódios queinaugurariam uma nova forma de sindicalismo no Brasil, como aparece em outro
clássico texto de Weffort.749
Entre os destaques feitos pelo cientista político uspiano, Weffort destacou a
importância da “estrutural dual” do sindicalismo vigente até o golpe de 1964 como um
entrave à conformação de um movimento operário autônomo no Brasil, e as
organizações por local de trabalho surgidas nas greves de 1968 como uma “novidade”
capaz de superar os problemas que levaram à derrota de 1964. Sobre a greve geral de
julho de 1962, Weffort, aponta que o movimento só foi expressivo nos serviços públicose empresas estatais, posição reabilitada por um crítico de Weffort e do conceito de
populismo como Daniel Aarão Reis, como já havíamos mencionado no capítulo 2.750
5.4 CIA, Departamento de Estado e a greve geral de julho
Como já é bastante conhecido, no início dos anos 1960 o processo político
brasileiro era acompanhado de perto pelo governo dos EUA.751 É plenamente plausível
a percepção dos revolucionários cubanos de que a Aliança para o Progresso era uma
nova roupagem para a intervenções do imperialismo americano no sub-continente latino
americano. Afinal de contas, pouco depois de propô-la, o governo John F. Kennedy
(1961-1963) protagonizou a fracassada tentativa de invasão à Cuba, manobra que
acabou por fortalecer a simpatia latino-americana pela Revolução que neste momento
declarava-se abertamente socialista. Seu propósito era o de chantagear as frágeis
economias latino-americanas no sentido de estabelecerem uma posição de “lealdade
hemisférica” se quisessem receber seus recursos. Em alguns casos, os aportes
destinaram-se a conspirações golpistas, como aconteceu no Brasil.
749 WEFFORT, Participação e conflito industrial, op. cit.750 WEFFORT, Sindicato e política, op. cit, capítulo IV, p.34. REIS, “O colapso do colapso do populismoou a propósito de uma herança maldita” op. cit., p.336-337.751 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil: dois séculos de História.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. PARKER, 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe deEstado de 31 de março, op. cit. AYERBE, Luiz Fernando. Estados Unidos e América Latina. Aconstrução da hegemonia. São Paulo: Ed.UNESP, 2002, p.135-143. FICO, Carlos. O Grande Irmão: daoperação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
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Na reunião da OEA, em Punta del Este (Uruguai) em janeiro de 1962, o
secretário de Estado americano, Dean Rusk, e o chanceler brasileiro San Tiago Dantas
divergiram quanto à política a ser adotada em relação à Cuba. E já em 16 de fevereiro
do mesmo ano, o governador Leonel Brizola encampava a ITT, levando o ex-presidente
da companhia a enviar um telegrama para Kennedy no qual denunciava o processo deexpropriação assemelhando-a ao que fora utilizado em Cuba.752 Para evitar uma
deterioração das relações entre o Brasil e os EUA – quando estava prevista ainda
naquele primeiro semestre uma visita de Goulart aos EUA – conformou-se uma
negociação entre os dois governos para estabelecer a indenização, sendo os
representantes brasileiros nestas tratativas o embaixador do Brasil em Washington,
Roberto Campos, o chanceler San Tiago Dantas e, como vimos, o Secretário do Interior
e Justiça do Rio Grande do Sul, Brochado da Rocha. Não é possível deixar passar em
branco, e deve-se sublinhar, a presença de um ativo quadro do IPES (Roberto Campos)nestas negociações.
A visita feita por Jango aos EUA em abril de 1962, quando também discursou no
plenário das Nações Unidas e explicou parte de suas ideias sobre reformas de estrutura,
além das encampações de empresas estrangeiras e do projeto de limitação da remessa de
lucros para o exterior, foi também um momento do Brasil buscar a ajuda financeira
junto ao governo Kennedy. Goulart e sua comitiva buscaram entrar em entendimentos
para renegociar a dívida externa e conseguir novos emprestimos capazes de reverter à
tendência à recessão econômica que já se manifestava. Da visita aos EUA ficaria o
compromisso do presidente Kennedy de visitar o Brasil, algo que, na verdade, nunca
aconteceria. A esperada “ajuda” econômica norte-americana também nunca viria, e na
verdade, como já é conhecido, através da Aliança para o Progresso o governo dos EUA
preferiu deslocar recursos para os estados cujos governadores eram hostis a Goulart,
como a Guanabara, São Paulo e Minas Gerais.
O nome indicado por Goulart para presidir o Conselho de Ministros
naturalmente chamou atenção da representação diplomática e o setor de inteligência dos
EUA no Brasil, mas os documentos desclassificados disponíveis não nos oferecem
pistas de uma provável pressão ianque nos bastidores da ação patrocinada pela ADP na
Câmara. Como estavam interessados nas articulações entre o governo Goulart e os
movimentos sociais, é provavel que informações mais abundantes tenham sido
752 O nome do presidente da ITT era Harold S. Geneen, e o telegrama é citado em PARKER, 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de Estado de 31 de março, op. cit., p.34.
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produzidas também nesse sentido. Com o que dispomos, pudemos constatar que o
episódio da greve chamou a atenção desses agentes.
Já em 6 de julho de 1962, o embaixador Lincoln Gordon enviou um telegrama
ao Departamento de Estado onde reconhecia que “O Congresso [estava] completamente
desmoralizado pela demonstração [da] habilidade de João Goulart [de] organizar ostrabalhadores em seu apoio [na] forma [de] greve geral.”753 Alguns dias depois, num
relatório da CIA, classificado como ultra-secreto (“Top Secret”) e datado de 13 de julho
de 1962, a greve de julho é apresentada como um movimento que atingiu “proporções
inéditas na história do Brasil”.754 Caracteriza ainda a importância da greve por ter
contribuído decisivamente para que o desfecho da crise acabasse sendo favorável a
Goulart. Diz o relatório:
“Organizações trabalhistas sob a considerável influência comunista
convocaram uma greve de 24 horas nas principais cidades em todo oBrasil, em apoio de Goulart. As greves foram difusas, masimpressionantes para os padrões brasileiros e, portanto, politicamenteeficazes.”
Um pouco mais tarde, em telegrama enviado para o Departamento de Estado em
11 de setembro daquele ano, Lincoln Gordon voltaria a comentar o episódio da crise do
gabinete, caracterizando-a como “artificial”, provocado pelo próprio Goulart, o qual
estaria manobrando para conseguir poderes presidenciais.755 Apesar de ser uma opinião
muito parecida com a propagandeada pelo IBAD – como vimos acima, o embaixador
estadunidense parecia ter uma visão aguda sobre o processo quando escreveu que:
“A última crise na instável situação política brasileira começou no finalde junho quando o primeiro-ministro e seu gabinete renunciaram paraestabelecer sua elegibilidade e concorrer nas eleições de 7 de outubro. Arenúncia resultou em uma renovação da luta, iniciada na crise de agostode 1961, entre forças esquerdistas que apoiam o presidente Goulart e osmoderados e conservadores que controlam o Congresso. O presidenteGoulart viu a oportunidade para criar uma crise artificial para atender seudesejo de retomar os poderes plenos da presidência. Conquanto ele não
753 Telegrama do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, Lincoln Gordon, 06 de julho de 1962, NSF,no Arquivos JFK, apud DREIFUSS, op. cit., p.260.754 “Organized labor under considerable Communist influence called 24-hour strikes in major citiesthroughout Brazil in support of Goulart. The strikes were scattered but impressive by Brazilian standardsand hence politically effective.” Central Intelligence Agency. Office of Current Intelligence. Current
Intelligence Weekly Review. 13 de julho de 1962, p.25. Disponível em<http://www.foia.cia.gov/sites/default/files/document_conversions/89801/DOC_0000585281.pdf>. VerAnexo 4.755 GORDON, Lincoln. Background on Current Situation in Brazil. (Telegrama enviado ao Departamentode Estado em 11 de setembro de 1962, classificado como “Secreto”, desclassificado em 1976). In.
Documenti Riguardanti Il Brasile, vol.II. Fundo ASMOB, CEDEM/UNESP, São Paulo.
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tenha atingido esse objetivo maior, ele foi bem sucedido em instalar um primeiro-ministro e gabinete de sua própria escolha, incluindo suasescolhas de ministros militares.”756
É significativo que a greve de julho não apareça neste relato de Gordon, mas os
rumores do avizinhar-se de uma outra greve geral estavam presentes. A forma com queesta outra greve aparece em tal telegrama merece o nosso comentário, pois Gordon
relata a suspeita de que Goulart estaria tramando um “golpe para ocorrer nos dias 15 e
16 de setembro, em conjungação com uma greve geral”.757 Anuncia ainda a disposição
do Ministro da Guerra, general Nelson de Melo, de agir para prevenir a greve,
“prendendo seus líderes se necessário”.758
Ao contrário do que predomina na documentação proveniente da direita política
discutida acima, a CIA e o embaixador Lincoln Gordon não buscaram diminuir a
importância política do movimento grevista de julho. Contudo, é necessário lembrar atendência do embaixador e do serviço secreto estadunidense a apresentar o quadro
político brasileiro como caótico, justificando seus soldos e levando seu governo a
participar ativamente da conspiração organizada pelo IPES. Entretanto, o que se percebe
em 1962 é um tom mais brando e um pouco menos alarmista.
5.5 A greve no IPM 709
Entre os mais conhecidos documentos oriundos da devassa sobre as
organizações de esquerda feitas pelo regime ditatorial, está o famoso Inquérito Policial-Militar No 709, cujo título é O comunismo no Brasil. Publicado entre 1966 e 1967 como
parte da campanha para justificar perante a opinião pública a justeza da intervenção
“salvacionista” das Forças Armadas, tal fonte foi produzida entre o golpe de 1964 e
756 “The latest crisis in the unstable Brazilian political situation began in late June when the PrimeMinister and Cabinet resigned in order to establish their eligibility to run for Office in the October 7thelections. The resignation resulted in a renewal of the struggler, initiated in the August 1961 crisis,
between the Leftist forces supporting President Goulart and the Moderates and Conservatives who controlCongress. President Goulart seized the opportunity to create an artificial crisis to further his desire toregain the full powers of the Presidency. While he did not attain this major objective, he did succeed in
installing a Prime Minister and Cabinet of his own choosing, including his choice of military ministers.” Idem, ibidem.757 Ele relata uma conversa havida entre o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto (UDN), e oCônsul americano naquele estado, a partir de informações oriundas do comando do IV Exército.758 “In conversation with Consul this afternoon, Governor Magalhães gave his opinion that resignation ofBrochado Rocha this time would be designed prepare way illegal seizure power by Goulart. Has heardfrom Fourth Army that coup is planned for period September 15-16, in conjunction with general strike.Goulart would be supported by Commander First Army, Commandant Marine Corps, Air Force. Othermilitary and political leaders would oppose him. Commander First Army does not have support hisDivision Commanders. (…) Nelson de Mello said he would act to prevent general strike, arresting leadersif necessary.” Idem, ibidem.
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1966, expressando naturalmente a visão dos vencedores em 1964. É, antes de tudo, uma
narrativa oficial da ditadura sobre o golpe de Estado.
Nessa narrativa sobre as razões da intervenção “salvacionista”, segundo a qual
antes da intervenção militar o país estaria vivendo um processo de intensa agitação
social resultante da “infiltração comunista” – desde a esfera política à sindical, passando pelas próprias Forças Armadas –, a greve de julho encontrou um lugar importante. No
seu capítulo II, destinado ao estudo da “infiltração dos comunistas” nos sindicatos, a
greve é denunciada como verdadeiro crime. Os pronunciamentos públicos de Dante
Pelacani no mês de junho – quando percorreu o país – são apresentados como uma
“ameaça à Nação”. A partir de uma tosca compilação do conteúdo do manifesto do
Comando Nacional de Greve, o inquérito policial-militar nos diz:
“A 5 de junho, Dante Pelacani, presidente da CNTI e membro dirigente
do Comando Nacional da Greve, baixou um manifesto no qual ameaça a Nação com a greve geral e conclamava a todos os trabalhadores e suasorganizações a realizarem assembleias e reuniões nos locais de trabalho,organizarem atos públicos para examinar a situação que atravessa o Paíse envidarem, desse já, todos os esforços na preparação da greve para serdesencadeada no momento em que ela se torne necessária, sob ocomando de suas organizações.”759
Disso, é concluído que havia-se estabelecido um novo poder no Brasil, o CGT, “capaz
de paralisar, a qualquer momento, toda a vida nacional, colocando o País em uma crise
de consequências econômicas, sociais e políticas imprevisíveis”.760 Na trama descrita, a
montagem do dispositivo preparatório da greve geral nos estados, com a criação de
comandos locais, estando os sindicatos em assembleias permanentes, a paralisação é
apresentada como “um instrumento de coação” (...), “dentro de uma esquematização
puramente comunista”.761 São destacados também os incidentes no estado do Rio, os
saques e depredações de estabelecimentos comerciais principalmente na Baixada
Fluminense, concluindo que aquele havia sido um verdadeiro “crime político”.
“Eis aí a história de um dos maiores crimes políticos impetrados contra a Nação pelo comunismo e pelo oportunismo inconsequente de um
governo inepto. A greve geral, instrumento subversivo de coação política, ocasionou um incalculável prejuízo ao País.”762
759 Inquérito Policial Militar N o 709. O comunismo no Brasil. Vol.2. I – A construção. II – A infiltração.Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1966, p.184.760 Idem, ibidem, p.184.761 Idem, ibidem, p.186.762 Idem, ibidem, p.192.
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Num anexo dedicado ao Fórum Sindical de Debates de Santos, a greve geral de
5 de julho recebe uma nota em que são destacados o caráter “irresponsável” do
movimento – que teria prejudicado uma campanha de vacinação infantil –, além do
“envolvimento” de autoridades públicas como o presidente Goulart, o general Osvino
Alves e o próprio prefeito de Santos, no “esquema comunista”:“5.7.62 – À 0 hora inicia a GREVE GERAL (nesta data dava-se aaplicação da Vacina Sabin às crianças de Santos e, em face da falta detransportes, grandes foram as dificuldades encontradas pelas famílias),merecendo destacar que o pessoal da Refinaria Presidente Bernardestomou a dianteira nesse movimento grevista, com exceção do pessoal damanutenção (serviço de operação), que cientes da importância de seusetor (não havia comunistas na secção), continuaram trabalhando. Umacomissão do F.S.D. dirigiu-se ao Prefeito a fim de solicitar a paralisaçãodo S.M.T.C.[Sistema Municipal de Transportes Coletivos] no que foi
prontamente atendida. Foram distribuídos manifestos do F.S.D., da
USOMS, e da (sic) PUA, solidarizando-se com a CNTI e, em todos elesaparecia o apoio irrestrito ao Presidente da República e ao Comandantedo 1º Exército, Gen. Osvino Alves.”763
Termina por reafirmar o compromisso entre Goulart e o esquema grevista:
“Terminada a GREVE GERAL, que teve duração de 24 de horas, reuniu-se o FSD, sob a presidência de RAYMUNDO SOARES DEVASCONCELOS e secretariada por OSWALDO LOURENÇO eHENRIQUE MARTINS DOS SANTOS, contando com a presença deDANTE LEONELLI, SÉRGIO MARTINS e outros notórios comunistas,e resolvem, ao encerramento do movimento grevista, enviar telegramasao Presidente da República, na qualidade de representante de 56sindicatos de trabalhadores, afirmando que continuam vigilantes e sevangloriando do êxito obtido.”764
No capítulo IV do IPM, em seção “Movimento de massas”, no item “Greves”,
seus autores enquadrariam a greve de julho entre as principais do período:
“Entre os principais movimentos grevistas do início de 1962 situam-se agreve dos ferroviários da Soracabana em janeiro, a greve geral dosestivadores, ferroviários, marítimos e portuários, a dos operários daFábrica Nacional de Vagões, dos motoristas de ônibus de Salvador, emfevereiro, a greve de advertência de todos os transportes, em março, a dos
servidores da Prefeitura de Niterói em abril, a dos trabalhadores daBaixada Santista, em maio, a greve geral de 5 de julho já sob o controledo Comando Geral dos Trabalhadores.”765
763 Idem, ibidem, p.363.764 Idem, ibidem, p.363.765 Inquérito Policial-Militar N o 709. O comunismo no Brasil. Vol.3. III – A agitação e a propaganda. IV –A movimentação de massas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1967, p.296, grifo nosso.
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Neste trecho são transcritos os principais manifestos escritos pelo Comando Nacional da
Greve (ou CGG) entre junho até a greve, além de declarações tecidas por influentes
lideranças sindicais comunistas. Nessa construção ideológica, a ditadura reservaria à
greve de 5 de julho o lugar de momento de inflexão:
“A greve de 5 de julho abriu o ciclo de generalização e violência que seimplantaria no País até março de 1964. Desde então a ação comunista nasatividades grevistas passaram a realizar-se ostensivamente como declaraRoberto Morena no artigo publicado em Novos Rumos (número 229 de12-18 Jul.63), ao comentar elogiosamente a publicação do livro: “Comosão feitas as greves no Brasil”, de Jorge Miglioli (edição Cadernos doPovo).”766
Além deste livro de Miglioli, também o livro de Telles e as reportagens de Novos
Rumos são amplamente citadas nesse IPM 709, não obstante os autores do inquérito
tenham pretendido dar a ideia de que embasavam sua tese – segundo a qual, o Brasilvivia a iminência de um “golpe comunista” ao longo do governo Jango – tal coisa é
sequer sugerida em qualquer trecho da documentação produzida pelos comunistas e
arrolada naquele dossiê.
766 Idem, ibidem, p.303.
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Capítulo 6 – A greve como “caso de polícia”
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“A classe operária consciente compreende hámuito o ridículo desta teoria policial, segundo aqual todo o movimento operário moderno seria oresultado artificial e arbitrário de um punhado de‘agitadores e mentores’ sem escrúpulos.” RosaLuxemburgo (1906)767
“Ainda por muitos anos, e eu vos falo para ominuto de um quatriênio, entre nós, em São Paulo,
pelo menos, a agitação operária é uma questãoque interessa mais à ordem pública que à ordemsocial; representa ela o estado de espírito dealguns operários, mas não de uma sociedade.” Washington Luis (1920) 768
Por vezes a conjuração da famosa frase atribuída ao ex-presidente Washington
Luís na República Velha, “A questão social é caso de polícia”, parece levar a uma ideia
enganosa de que, após a subida de Vargas ao poder em 1930, a repressão sobre o
movimento operário tenha cessado, ou pelo menos abrandado. É como se, com a
fundação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, a Lei de Sindicalização
(1931) e a promulgação das leis sociais naquela década, as lutas operárias tivessem
deixado de ser matéria obrigatória para o aparelho de repressão do Estado, tornando-se
simplesmente assunto para as áreas sociais dos governos. Nada mais equivocado, pois,
afinal, o que se operou foi, ao lado da subordinação dos sindicatos ao Estado através da
estrutura corporativista, uma combinação da nova legislação social com a modernização
das estruturas das polícias políticas.769 Muito menos, após o fim do Estado Novo e o
início daquela que pode ser considerada a primeira experiência de regime democrático
no Brasil, isso mudou.770 Vejamos alguns aspectos importantes.
Órgãos com a função de polícia política existiram desde 1907 no antigo Distrito
Federal, como o Corpo de Investigações e Segurança Pública da Polícia Civil. Em fins
de 1922 foi criada a 4ª Delegacia Auxiliar, e com ela a Seção de Ordem Política e
767 LUXEMBURGO, Rosa. Greve de massas, partido e sindicatos. São Paulo: Kairós, 1979, p.18.768 Trecho da plataforma do então candidato à presidência de São Paulo, Washington Luís, em 25 de
janeiro de 1920. Citado por RODRIGUES, Conciliação e reforma no Brasil, op. cit., p.90.769 MORAES FILHO, O problema do sindicato único no Brasil, op. cit., p.259-260.770 Por outro lado, essa constatação não se coaduna com outro aspecto do revisionismo historiográfico,que tem se notabilizado por construir uma leitura apologética daquele regime, a tal ponto de condenartodos os que sob a República de 1946 criticaram a natureza limitada do mesmo, principalmente aesquerda, agora co-responsável pelo colapso daquele regime. Para uma leitura mais sóbria sobre anatureza daquela democracia, que não obstante incorpora parte do espírito revisionista, CARVALHO,Cidadania no Brasil, op. cit., p.126-153. E para uma visão apologética, ver a apresentação do dossiê“1946-1964: a experiência democrática no Brasil.” FERREIRA, Jorge. “Apresentação”, Tempo, Niterói,n.28, p.11-18, junho de 2010.
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Social, com o desígnio de reprimir a atuação das correntes revolucionárias (anarquistas
e comunistas) no meio operário, sendo desta época a criação do Departamento de
Ordem Política e Social (DOPS) (1924) e de alguns DOPS estaduais, como o de São
Paulo. Em 1933, Vargas substituiu a 4ª Delegacia Auxiliar pela Delegacia Especial de
Segurança Política e Social (DESP), subordinada à Chefia de Polícia e dividida em trêsseções: segurança, segurança social, armas e explosivos.771 Com a federalização da
polícia do Distrito Federal e a criação do Departamento Federal de Segurança Pública,
em 1944, a Divisão de Polícia Política e Social (doravante DPS) permaneceu como
órgão subordinado, até que em 1960 suas atribuições fossem transferidas para o recém-
criado estado da Guanabara, tornando-se um pouco depois (em 1962) o Departamento
de Ordem Política e Social (DOPS). Até 1955, por exemplo, ficou a cargo do Setor de
Fiscalização Trabalhista (e, após essa data, simplesmente Seção Trabalhista) a
“vigilância” sobre a vida sindical do país.Ao lado disso, a legislação anti-greve baixada pelo governo, especialmente a Lei
de Segurança Nacional, de 4 de abril de 1935 – chamada “Lei Monstro” –, que
enquadrou a greve do funcionalismo público e nos “serviços essenciais” como delito,
reforçou os atributos do aparelho de repressão para o controle do protesto operário.772 O
mesmo espírito manteve-se no Código Penal de 1940, que continuou a restringir esse
direito como um “atentado à liberdade de trabalho” (Art.197 e 198), vetando as greves
em serviços considerados “de interesse coletivo” (Art.201), e especialmente aquelas que
por ventura levassem à “perturbação da ordem” (Art.200). Nem mesmo sob o ciclo
grevista no período final do Estado Novo e da redemocratização, esses expedientes
foram abandonados.
Devido à natureza das atividades desempenhadas pela polícia política, ao longo
da história da República seus agentes produziram um volume considerável de registros
sobre a atuação do movimento operário e sindical, em especial da ação dos sindicalistas
de esquerda, material onde é possível encontrar informações não disponíveis em outras
fontes sobre a história do trabalho no Brasil. Desde o final dos anos 1990 os arquivos
das Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS) – extintas em 1983 – têm sido
771 MENDONÇA, Eliana Rezende Furtado de. “Documentação da Polícia Política do Rio de Janeiro.”Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.12, n.22, p.379-388, 1998l. MATTOS, Marcelo Badaró. “Greves,sindicatos e repressão policial no Rio de Janeiro (1954-1964).” Revista Brasileira de História, vol.24,n.47, p.241-270, 2004, p.257. As informações que seguem foram retiradas destas fontes.772 O que motivou a publicação da Lei de Segurança Nacional foi, além de uma espiral grevista que sedesenvolvia desde 1934, a ampliação do movimento antifascista que desembocou na criação da Aliança
Nacional Libertadora (ANL) em 1935. Cf. PRESTES, Anita Leocádia. “70 anos da Aliança NacionalLibertadora (ANL).” Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v.31, n.1, p.101-120, junho de 2005.
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abertos para a consulta dos pesquisadores em vários estados. No Rio de Janeiro, o
Arquivo Público (APERJ), que desde 1992 passou a ter a guarda da documentação
acumulada pelos órgãos que exerceram a função de polícia política na antiga capital
federal e no extinto estado da Guanabara, depois de um processo de tratamento
arquivístico, possibilitou a transformação deste acervo em fonte para a pesquisahistórica, abrindo muitas possibilidades aos profissionais da área.773
Alguns dos resultados do trabalho com estas fontes podem ser aferido nos livros
Greves e repressão ao sindicalismo carioca (1945-1964)774 e Trabalhadores em greve,
polícia em guarda: greves e repressão policial na formação da classe trabalhadora
carioca775 obras coletivas coordenadas por Marcelo Badaró Mattos, onde os
pesquisadores lançaram mão desta documentação para estudar algumas das greves mais
emblemáticas da história do sindicalismo carioca.776 Baseados em documentação
depositada no APERJ, no fundo das Polícias Políticas, pôde-se também realizar umlevantamento mais completo sobre o volume de paralisações trabalhistas ocorridas sob a
República de 1946, desfazendo alguns lugares comuns presentes na noção de
sindicalismo populista, especialmente aquela que diz haver, no início dos anos sessenta,
uma concentração da agitação sindical nas empresas públicas ou de atividade pública,
em detrimento dos setores mais modernos da indústria brasileira.777
Além deste livro, investigadores deste campo como Luciana Lombardo Costa
Pereira que utilizou esse mesmo fundo do APERJ em sua dissertação de mestrado, 778
Antonio Luigi Negro e Murilo Leal Pereira Neto que valeram-se do acervo do
Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS) do Arquivo Público do Estado de
São Paulo (APESP) em suas respectivas teses de doutorado,779 produziram pesquisas
acadêmicas inovadoras sobre o movimento operário no período 1945-1964. No caso de
773 SOUZA, Jessie Jane Vieira de. “Apresentação” a A Contradita – Polícia Política e Comunismo no Brasil (1945-1964). Rio de Janeiro, APERJ, 2000, mimeo.774 MATTOS, Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca, op. cit.775 MATTOS, Marcelo Badaró (coord.). Trabalhadores em greve, política em guarda: greves e repressão
policial na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004.776 São elas: a greve geral bancária de 1946, dos ferroviários da Leopoldina Railway também de 1946, agreve dos sapateiros de 1952, dos tecelões em 1953, a greve da paridade em 1960 e as greves pelaLegalidade em 1961.777 Ver os dados em MATTOS, Greves e repressão policial, op. cit., p.52-53.778 PEREIRA, Luciana Lombardo Costa. Caça às bruxas nos sindicatos: polícia política e trabalhadoresentre 1945-1964. Dissertação de mestrado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu Nacional daUFRJ, 2004._______“Polícia política e caça aos comunistas: repressões sobre o movimento operário noRio de Janeiro (1945-1964).” In. MATTOS, Trabalhadores em greve, polícia em guarda, op. cit., p.161-199.779 NEGRO, Linhas de montagem, op. cit. PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no ‘vulcão doinferno’, op. cit.
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Negro, cuja pesquisa se estende até o ciclo grevista do fim dos anos 1970, o historiador
levantou a existência de uma bem articulada aliança entre o empresariado do ramo
automotivo na região do ABCD paulista e a polícia política (a “aliança empresarial-
policial”), elemento até então relativamente negligenciado por aqueles que haviam
discutido os limites da ação operária nos setores de ponta da indústria na etapa final do“populismo”.780
Sobre a importância da documentação do DOPS, Luciana Pereira é precisa em
lembrar que o tipo de atividade desempenhada pelos agentes da repressão compreendia
uma “contínua classificação, catalogação e organização de dados e documentos”.781 E
em razão disto,
“(...) por uma dessas inexplicáveis ironias da história, [essadocumentação policial é] uma valiosa fonte de informações a respeitodos mesmos movimentos que [este agentes] se encarregavam de reprimir.
Através da inscrição em seus fichários, eternizam-se nomes e eventos quenão são encontrados em qualquer outra parte. Entrevemos a ação desujeitos, sem outro registro a não ser o de sua passagem pela polícia
política. E se há uma tarefa que parece encerrar a razão de ser dessaespecialização da polícia é a incessante atividade de produção eacumulação de registros escritos.”782
Esta mesma autora, trabalhando com os aportes foucaultianos, e inspirada nos
estudos sobre a feitiçaria do antropólogo Evans-Pritchard, observou que, como o
processo acusatório a partir do qual os agentes policiais relatavam as atividades do
movimento sindical estavam altamente inseridos na paranoia anticomunista da Guerra
Fria, seus relatos se assemelham às acusações de bruxaria.783 Certamente, como
veremos neste capítulo, tal visão de mundo destes agentes da repressão constitui um
filtro a partir do qual devem ser entendidas suas narrativas. Deste modo, como qualquer
registro do passado, tal documentação deve ser trabalhada de forma cuidadosa,
evitando-se posturas ingênuas que desconsiderem as intenções manifestas ou implícitas
nas suas representações sobre o processo político e o movimento operário em particular.
780 Conceito, aliás, rejeitado por Antonio Luigi Negro.781 PEREIRA, “Polícia política e caça aos comunistas...”, op. cit., p.162.782 Idem, ibidem, p.162.783 Idem, ibidem, p.166. A relação entre a paranoia anticomunista da guerra fria e as perseguições à bruxas
já havia motivado Arthur Miller a escrever a peça de teatro The Crucible em 1953, cujo enredo narra osepisódios passados de um caso de perseguição e execução de mulheres acusadas de bruxaria em umaaldeia puritana no final do século XVII, obra cujo propósito era criticar o macarthismo. O texto foiadaptado para o cinema e exibido no Brasil com o título de As Bruxas de Salem (EUA, 1996), dirigido por
Nicholas Hytner.
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Pois como lembra Pereira Neto, em comentário metodológico sobre o lugar destas
fontes em sua tese de doutorado:
“Como já foi observado, parte do que se registrou sobre as classes populares no passado foi com o objetivo de controlá-las – não restando àsvezes ao pesquisador outra alternativa senão trabalhar com esses
documentos, empreendendo sua crítica como documentos-monumentosque são. Cabe, portanto, aqui, o mesmo cuidado a ser observado naanálise de quaisquer documentos produzidos por determinadasinstituições: revelam mais sobre a instituição que os produziu e de comoa mesma entendeu e agiu sobre outros espaços e personagens do que ‘darealidade’.”784
Por outro lado, nas condições da crise orgânica dos anos sessenta, o espectro de
uma “Revolução socialista” no Brasil, embora fosse mais um espectro que uma ameaça
real – afinal, a esquerda que liderava a agitação social estava interessada em tão
somente modernizar o “débil” capitalismo brasileiro, além de ampliar o espaço dacidadania da certamente débil democracia realmente existente –,785 é possível verificar
como o pânico ante sua possibilidade contaminou a escrita dos agentes da repressão. E
se a greve geral aqui estudada constituiu apenas um episódio na trama conflituosa do
processo político brasileiro no início dos anos 1960, é possível observar nesta
documentação uma visão da própria greve geral de 5 de julho de 1962 como parte de
uma “trama” com vistas à implantação do “comunismo no Brasil”, bem próximo ao teor
do IPM 709, discutido no capítulo anterior.
Como já asseveramos, sem dúvida alguma, num estudo sobre o papel políticodesempenhado pelo sindicalismo de esquerda no Brasil naqueles anos, foi possível
encontrar muito mais nestas fontes do que naquilo que o próprio movimento escreveu
sobre si. E nesse sentido, e também por outros, a documentação produzida pelos órgãos
de repressão pôde contribuir para o estudo da dinâmica da crise. Mas antes são
necessárias mais algumas palavras sobre a natureza desta documentação.
6.1 Sobre a documentação policial
Carlo Ginzburg, em seu instigante prefácio à edição italiana de O queijo e os
vermes, mostrou como arquivos da repressão (como os da Inquisição, utilizados pelo
autor), tanto quanto, aliás, uma boa parte da produção textual sobre as classes
784 PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no ‘vulcão do inferno’, op. cit., p.8.785 TOLEDO, Caio Navarro de. “1964: O golpe contra as reformas e a democracia.” Revista Brasileira de
História, São Paulo, v.24, n.47, p.13-28, 2004.
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subalternas, foi e é feita pelas classes dominantes e seus agentes. Têm, assim, caráter de
uma produção hostil e “duplamente indireta” sobre a história dos grupos subalternos:
afinal são “escritas e, em geral, de autoria de indivíduos, uns mais outros menos,
abertamente ligados à cultura dominante”. Nesse sentido, ainda segundo Ginzburg, “os
pensamentos, crenças, esperanças dos camponeses e artesãos do passado chegam aténós através de filtros e intermediários que os deformam”.786
O mesmo pode ser dito da documentação policial sobre o movimento
operário/sindical, embora as conclusões de Ginzburg não sejam totalmente aplicáveis.
Afinal é considerável a produção proveniente dos próprios intelectuais orgânicos do
movimento operário, presente em livros, jornais, panfletos, representações imagéticas
etc., em contraposição com a capacidade de produzir as suas próprias representações das
comunidades camponesas na época moderna trabalhadas pelo historiador italiano. Ainda
assim, em períodos históricos cujo desfecho foi terrível para o movimentooperário/sindical, como no contexto do golpe de 1964, as marcas da repressão e da
clandestinidade produziram uma relativa escassez de fontes para o estudo deste objeto
naquele período anterior. Além do empastelamento de centenas de sindicatos pelas
forças da repressão, muitos militantes de esquerda em fuga levaram consigo ou
destruíram parte dos vestígios que poderíamos ter hoje para o estudo de suas lutas
naqueles anos de crise.
Em nosso levantamento no Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), da Unicamp, que
abriga o maior volume de documentação referente à história da esquerda no Brasil, é
possível verificar a existência maior de fundos referentes ao período da Primeira
República e ao período da luta contra a ditadura pós-64, do que no período anterior ao
golpe, excetuando materiais como jornal do PCB, Novos Rumos, encontrado em outras
instituições, como a Biblioteca Nacional (RJ). O quadro repete-se em outros centros de
memória e documentação do movimento operário e da esquerda, como o Centro de
Documentação e Memória (CEDEM) da Unesp e o Arquivo da Memória Operária do
Rio de Janeiro (AMORJ) da UFRJ. O quadro é também comum nos arquivos de
sindicatos cuja trajetória se ligou àquele contexto, sendo comum a notícia de que, face à
repressão desencadeada com o golpe de Estado de 1964, muito materiais seriam
destruídos pelos próprios militantes em fuga.
786 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pelaInquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.13, grifo do autor.
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Mais frustrante foi constatar a existência no Arquivo Nacional (RJ) de uma
coleção de documentos sindicais, apreendidos pela Divisão de Segurança e Informações
do Ministério da Justiça durante o governo de João Goulart. Embora descritos no Banco
de Dados do SIAN (Sistema de Informação do Arquivo Nacional – disponível em
http://www.an.gov.br/sian/inicial.asp), os documentos encontram-se indisponíveis, emrazão de terem sido retirados para um processo de digitalização que não tem qualquer
prazo para acontecer. De acordo com as informações do Bando de Dados, existiriam
séries da imprensa sindical de entidades ligadas principalmente aos bancários
(sindicatos e federações de todo o país), mas também metalúrgicos paulistas,
documentos relativos ao CGT, CNTI, CONTEC, CPOS da Guanabara, de sindicatos
nacionais (como dos aeroviários) entre outras, todas devidamente colhidas pelos
aparelhos de repressão da esfera federal, mesmo estado a administração federal em
mãos de um presidente trabalhista.Um problema burocrático nos impossibilitou de explorar essa documentação
para essa tese, havendo ainda o risco de que esteja deteriorada a ponto de não poder ser
consultada nem futuramente, conforme informaram os funcionários daquela instituição.
Isso ter ocorrido em período sob o qual (finalmente) existe uma iniciativa por parte do
Estado brasileiro de melhorar o acesso à documentação oficial, especialmente daquele
período, nos permite torcer para que o mais breve possível seja disponibilizada.
6.2 As estratégias da repressãoApós o golpe de 1964, quando as forças da contra-revolução operavam uma caça
às bruxas na estrutura sindical brasileira, os aparelhos de repressão puderam contar com
a colaboração de antigos desafetos do movimento sindical. Além, obviamente, daqueles
líderes sindicais de direita, que voltariam à frente das entidades sindicais após o golpe,
as bases sociais desses elementos também promoveriam ação coordenada na
perseguição aos “comunistas” através de delações. Um desses dedos-duros, em 3 de
fevereiro de 1965, de nome José Maria Gaspar de Souza, denunciou à polícia Jayme
Souza Magalhães, bancário e ativista sindical carioca, conforme pode ser lido em um
Dossiê pertencente ao fundo das Polícias Políticas do APERJ. De acordo com o
alcaguete Gaspar de Souza:
“À guisa informações, relato-lhe que uma noite, já vai longe, telefonei para o sr. Dr. Cecil Borer, participando-lhe que os comunistas doSindicato pretendiam deflagrar uma greve – demonstração de força do
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famigerado CGT – e iriam, dessa noite para o outro dia, construir piquetes de greve em frente ao prédio para que a polícia ficasseimpotente de os conter, e além do mais, provocar uma reação por partedo povo em prol dos bancários, caso houvesse uma reação por parte dasautoridades. Recordo-me ainda, que a pessoa com quem falava dizia ser o
próprio Sr. Borer, e em resposta agradecia-me a lembrança, mas que já
tinha pensado como desbaratar tal trama.”787
Como é evidente, para os opositores do movimento sindical combativo que marcaram a
cena política brasileira no período anterior ao golpe de 1964, as greves políticas eram
uma evidência de uma processo de “subversão” e de “ameaça de comunização” do
Brasil.
Cecil de Macedo Borer, personagem mencionado acima, foi um dos mais
importantes quadros da repressão policial desde o período do Estado Novo, passando
pela República de 1946 e durante a própria Ditadura empresarial-militar de 1964, tendosido, entre outras coisas, chefe do Setor de Fiscalização Trabalhista, da Divisão de
Polícia Política e Social (DPS) do Distrito Federal, encarregado da vigilância ao
movimento operário, principalmente na repressão ao PCB no período 1945-1964. Por
sua participação no movimento golpista contrário à posse de Juscelino Kubitschek na
Presidência da República em 1955, Borer foi afastado do cargo no início deste governo.
Todavia, com a formação do estado da Guanabara em 1960, o governador Carlos
Lacerda o designou para a chefia da Delegacia de Vigilância, tendo sido transferido para
o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em 1962. Como uma de suas primeiras atividades nesse último posto, Borer foi um dos elementos mais ativos na
repressão às greves gerais políticas de julho e setembro daquele ano.
Em um depoimento dado a pesquisadores do APERJ nos anos noventa, Borer
buscou esclarecer a forma como estabelecia seus contatos nas bases de modo a manter o
DOPS informado das movimentações do sindicalismo, exemplificado acima.
Respondendo ao entrevistador quanto à forma como elementos como Gaspar de Souza
colaboravam com o serviço de inteligência, Borer afirmou
“Bem, existem várias maneiras da informação chegar a você. Dependedos meios de que você dispõe e também dos artifícios de ordem pessoal.Um processo de inteligência usado no mundo inteiro é a infiltração. Nainfiltração, ou você procede com a técnica inglesa ou de acordo com atécnica americana. O inglês produz o agente, eu fiz muito disso. Eu
pegava um indivíduo qualquer, que não tinha formação ideológica
787 Dossiê 2, p.36-37, Pasta 42, Caixa 833, Setor DOPS, Fundo Polícias Políticas. Arquivo Público doEstado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ).
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absolutamente nenhuma, e alertava, preparava mais ou menos politicamente, arranjava um emprego para ele trabalhar exatamente ondeeu queria. Então, ele chegava e se apresentava como esquerdista,começava a frequentar o sindicato. Dentro de pouco tempo ele eraabsorvido pela célula. Aí, ele começava a produzir informações. Bem,essa é uma das maneiras de que você prepara o agente, é a maneira que o
inglês faz. A outra é a maneira do americano. O americano compra oagente. Você está num ponto que lhe interessa, ele cerca você por váriasmaneiras, lhe oferecendo alguns favores, relação de amizade e, dentro de
pouco tempo, através do dólar, coloca você como elemento deinformação. Eu tinha poucos agentes comprados. Porque havia recursosquase insignificantes.”788
Seria uma falha metodológica grave simplesmente “comprar” o depoimento do antigo
chefe da Delegacia de Vigilância da Guanabara, que, nesta mesma entrevista, sugere
que tais “infiltrados” se posicionavam em posições de mando nas diretorias sindicais da
esquerda, ou mesmo no PCB.789 Nunca é demais lembrar que, como regra, os agentes darepressão sempre buscaram superestimar a sua própria capacidade de investigar as
organizações de esquerda. Caso suas ações fossem tão eficientes, não teríamos a eclosão
de tão expressivo número de movimentos grevistas nos primeiros anos da década de
1960, por exemplo. Todavia, através de seu depoimento, é certamente possível
encontrar algumas chaves para o entendimento de como funcionava o serviço de
inteligência, pois, como veremos a seguir, os “meganhas” estavam relativamente bem
informados das movimentações da esquerda sindical durante o governo Goulart.
6.3 A greve de julho no Boletim Reservado
Como já vimos, nos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, o nível de
conflitualidade social foi alto na greve geral de julho de 1962. É preciso atentar para a
importância das fontes da polícia política da Guanabara quanto à abrangência de suas
informações, pois transcendem o interesse apenas regional por uma série de razões,
entre elas o fato de que todas as instituições de cúpula do sindicalismo nacional
possuíam suas sedes centrais no Rio de Janeiro, cidade que havia deixado recentemente
de ser capital da República. Como já assinalamos, com a transferência da capital federal
788 Entrevista com Cecil Borer por Leila Menezes Duarte e Paulo Roberto de Araújo, em A Contradita,op. cit, p.24-25.789 “Esses agentes especializados eram agentes de primeira infiltração: secretário do partido, dirigente deorganismo estadual, dirigente de organismo de fábrica, aquela coisa toda, para quem você carreava o
pouquinho de recurso que tinha e orientava para que eles tomassem do partido o que pudessem.” Idem,ibidem, p.30.
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para Brasília, o Departamento Federal de Segurança Pública e sua DPS foram
transferidos, mas as estruturas montadas na antiga capital acabaram por ser incorporada
ao jovem estado da Guanabara.790 E, a partir dessa experiência acumulada, os “tiras”
cariocas continuaram o seu acompanhamento diário ao movimento sindical, o que torna
a documentação produzida por esse órgão especialmente interessante para o estudo dagreve nacional de julho de 1962.791
Os Boletins Reservados da DPPS da Guanabara são uma das séries documentais
mais interessantes disponíveis para os estudos das greves e da agitação operária da
esquerda durante o governo de João Goulart.792 Tais Boletins foram originalmente
produzidos para a consulta da comunidade de informações e da Presidência da
República desde o Estado Novo, estando posteriormente disponíveis para a consulta do
governo da Guanabara, chefiado por Carlos Lacerda no período de nosso estudo. Esses
Boletins consistiam num acompanhamento quase diário das reuniões de diretoriassindicais e dos organismos de cúpula (CNTI, CGT, PUA etc.), feitos a partir de
informações de agentes infiltrados nesses espaços e também dos elementos
característico dos órgãos de repressão – o alarmismo, a paranóia, a fantasia etc. –, que
serviam também para justificar a dotação de recursos públicos. Nossas considerações a
seguir discutem as informações contidas nestas fontes.
A partir desta série podemos constatar que a polícia política não levou muito a
sério as articulações e reuniões públicas ocorridas ao longo do mês de junho e que
anunciavam a possibilidade de realização de uma greve geral de protesto. Embora já
tenhamos visto que a proposta de uma greve geral em favor de um “gabinete
nacionalista e democrático” tinha sido publicizada pela CNTI no início de junho, foi só
no final daquele mês que os rumores sobre a possibilidade de tal greve aparecem no
Boletim Reservado.
790 “Com a mudança da capital federal para Brasília em 1960, a função de polícia política exercida pelaDPS foi transferida para o recém-criado Estado da Guanabara. A Lei que ditou as normas para aconvocação da Assembleia Constituinte do Estado na Guanabara também fixou a transferência dosserviços da Polícia Civil do antigo Distrito Federal subordinado, inclusive a função de polícia política, aoGovernador da Guanabara.” DUARTE, Leila Menezes; ARAÚJO, Paulo Roberto Pinto de.“Redemocratização, polícia política e anticomunismo.” Introdução A Contradita, op. cit., p.20.791 Aliás, é preciso fugir do formalismo para entender que, para além do fato de muitas das estruturasfederais ainda estarem sediadas no Rio de Janeiro sob o governo Jango, a cidade ainda era um dos maisimportantes centros políticos do Brasil. Afinal, não é possível esquecer que, em 1964, os golpistas sedirigiram de Juiz de Fora para o Rio, e não para a nova capital no Planalto Central.792 Ver o fac-simile da capa de um desses Boletins no Anexo 3, no fim desta tese.
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Vejamos pela ordem cronológica como a greve foi retratada nesses Boletins, de
modo a ter pelo menos uma ideia de como a DPS moveu-se em função desta greve. No
dia 29 de junho, aparece a primeira menção com estas linhas:
“Em face das notícias de que a Divisão de Polícia Política e Social estariadisposta a prender os líderes sindicais da Guanabara, visando abortarqualquer movimento grevista em favor da formação de um Gabinetenacionalista e democrático, apuramos junto às entidades sindicais que aameaça policialesca não atemorizará qualquer dirigente, pois o Comando
Nacional de Greve é constituído pelos operários em geral, e principalmente pelos delegados sindicais que atuam nas fábricas, alémdos líderes que se encontram à frente das confederações, federações esindicatos.”793
Já vimos que, apesar de terem sido efetuadas dezenas de prisões no dia da greve, a DPS
da Guanabara não conseguiu prender os líderes do movimento; decapitando-o, poderia
tê-lo desmantelado. Todavia é importante verificar através deste trecho acima que jáexistia essa orientação por parte do aparelho de repressão, mesmo quando a DPS parecia
não acreditar na capacidade dos sindicalistas em promover a greve.
Parece que é só no início do mês de julho de 1962 a ameaça da greve política
acendeu o “sinal vermelho” na polícia política da Guanabara. Nessa mesma fonte do dia
2 de julho é possível ler logo em suas primeiras linhas o seguinte:
“Conforme já tivemos oportunidade de anunciar, o mês de julhoentretanto trará para o país um grande período de agitação, se as forçasdemocráticas existentes não permanecerem firmes na defesa do regimeconstituído no Brasil.
Sob o pretexto do alto custo de vida e pela constituição de umConselho de Ministros “nacionalista e democrático” pretendem os gruposcomunistas que militam no meio sindical testar a força de suaorganização, para uma futura revolução, através de uma greve geral deâmbito nacional, tarefa há muito ensaiada e nunca realizada.
Presentemente, porém, com o incremento que tiveram no país asforças “nacionalistas” que nada mais são do que as forças comunistas
fantasiadas, cremos que, se não houver uma reação séria do blocodemocrático propriamente dito, conseguirão os comunistas levar acontento a sua grande tarefa.”794
Do conteúdo geral do trecho, com destaque para os termos grifados, é possível discutir
um pouco sobre a forma como os autores deste documento representavam a ação
793 “Líderes sindicais.” Boletim Reservado, n.111, 29 de junho de 1962, p.1. Fundo Polícias Políticas.APERJ.794 “Greve geral de âmbito nacional.” Boletim Reservado, n.112, 2 de julho de 1962, p.1, grifos nossos.Fundo Polícias Políticas. APERJ.
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“subversiva” do sindicalismo. Nesse ponto é importante considerar que conceitos
políticos como “democracia”, “revolução”, “reformas de base”, “nacionalismo” etc.,
estavam em disputa entre os atores políticos na conflituosa cena política do início dos
anos sessenta. Deste modo, boa parte da celeuma provocada pelo atual revisionismo
historiográfico sobre o golpe de 1964, calcado na ideia de que “a esquerda também eragolpista”, está baseada, entre outras coisas, em uma leitura unilateral do significado
destas noções naquele contexto histórico. Afinal, até as forças golpistas que
conspiravam no IPES também organizaram seu próprio Congresso Pelas Reformas de
Base.795 E o que dizer da noção de “revolução”? Tamanho era o prestígio do termo que
os próprios golpistas atribuíram ao seu ato histórico o nome de “Revolução.”796
A partir deste entendimento, acreditamos ser facilmente percebido no trecho
supracitado do Boletim que as tais “forças democráticas” às quais o texto se refere são
justamente os grupos anti-comunistas de direita, os efetivamente golpistas capitaneados por elementos como o próprio Carlos Lacerda, “o Corvo”, como o apelidaram as
esquerdas da época. Ao mesmo tempo, a noção de que o “nacionalismo” era um
“disfarce dos comunistas” também só pode ser entendido naquele contexto em que as
forças que tradicionalmente tramavam sedições contra o poder constituído eram ligadas
aos interesses do capital estrangeiro, como era o caso de boa parte dos grupos de
conspiradores da direita.797 Além do mais, como as opções estratégicas dos grupos da
direita estavam baseadas no alinhamento automático ao bloco liderado pelos EUA e,
mais que isso, a vanguarda de tais forças representava os interesses do processo de
internacionalização da economia brasileira, a bandeira do nacionalismo foi levantada
pelas esquerdas para denunciar o “entreguismo” e a intromissão da Embaixada dos EUA
no Rio de Janeiro na política interna do Brasil.
795 DREIFUSS, 1964, op. cit., p.243.796 “É um anacronismo analisar aquele passado com base numa ideia de democracia estabelecida
posteriormente e consolidada no presente (cujos limites os futuros historiadores também apontarão).
Outro anacronismo é ressaltar a discussão da democracia em detrimento do tema que mais mobilizava asociedade no início dos anos 1960, a ‘revolução brasileira’, hoje tão esquecida, mas que na época tinha tallegitimidade que os golpistas logo apelidaram seu movimento de ‘revolução de 1964’.” RIDENTI,Marcelo. “Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura: armadilhas para os
pesquisadores.” Anais do Seminário 40 anos do golpe: ditadura e resistência no Brasil. Rio de Janeiro:7Letras; Faperj, 2004, p.147.797 Uma das críticas mais frágeis que é feita ao trabalho de René Dreifuss é a de que ele teria visto uma“centralização inexistente” na conspiração contra Goulart, quando “na verdade”, dizem tais críticos, “hojese sabe que eram várias conspirações”. Ora, essa não é um questão que tenha passado desapercebida porDreifuss, que pontuou a existência de pelo menos três grupos de conspiradores: o grupo IPES/ESG, osextremistas de direita e os tradicionalistas. Cf. DREIFUSS, 1964, op. cit., p. 368-372.
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Entretanto, o que salta mais aos olhos neste documento policial é a associação
fantasiosa feita entre a “ameaça de greve” com uma suposta “ameaça de revolução”,
tema recorrente em toda a documentação policial sobre a agitação sindical no período.
Em se tratando de um texto destinado à circulação interna da comunidade de
informação, é significativo que seus produtores recorram aos termos da paranoiaanticomunista, o que nos leva ao entendimento de que esse compartilhamento de sentido
servia para orientar a ação deste aparelho de repressão como se, “realmente”, o Brasil
estivesse prestes a assistir a uma “revolução socialista”. Desse modo, tal tipo de
narrativa certamente servia para arregimentação dos prováveis leitores do texto, os
próprios agentes da repressão, o governador e a Secretaria de Segurança Pública da
Guanabara, que, inculcados desses temores irreais, agiam como se estivessem
combatendo a própria “revolução social”, o que explica, em parte, a violência de suas
ações na repressão à greve na Guanabara.O documento liga toda a articulação dos sindicalistas em torno da greve ao
presidente Goulart, ideia sugerida no trecho em que se lê que o presidente da República
estava tão somente atendendo a “solicitações feitas pelos líderes sindicais comunistas”,
mencionando um manifesto da CPOS da Guanabara, em que os dirigentes sindicais
notoriamente comunistas reconheciam essa “tendência” do presidente trabalhista.798 A
indicação do nome de San Tiago Dantas para o cargo de chefe do Conselho de
Ministros, o convite para Afonso Arinos – é ocioso lembrar, senador pela UDN – para
ocupar de novo a pasta do Exterior e o suposto papel do General Osvino Ferreira na
escolha dos titular do Ministério da Guerra são elementos tratados como evidência desta
articulação entre comunistas e o governo federal. Também é dito que, com a recusa do
Parlamento ao nome de San Tiago, no dia 28 de junho, as mais importantes entidades
nacionais do sindicalismo brasileiro, o próprio CPOS, a CNTI, a CONTEC e o PUA,
estavam reunidas em “sessão permanente” na sede da CNTI, articulando a greve de
protesto em todo o território nacional:
“Em face da recusa, pelo Parlamento, do nome do Sr. SAN
TIAGO DANTAS, no mesmo dia 28, ficou resolvido na aludida sessão permanente, o envio de uma carta aberta ao Sr. Presidente da República,exigindo firmeza na luta para a constituição de um Conselho de
Ministros nos moldes apresentados pelos comunistas, sendo que cópiasde referido documento, acompanhado de cópias de uma Manifestoelaborado à Nação, no dia 27 de junho último, em reunião no Sindicato
798 Afinal o dirigente da intersindical CPOS era Hércules Correa, um operário têxtil que também eradeputado comunista pela legenda do velho PTB da Guanabara.
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dos Rodoviários da Guanabara, foram enviados para todos os Estados daFederação.
O Manifesto foi inclusive, enviado a todas as entidades sindicais para, nos moldes comunistas, serem seus textos debatidos e discutidosem todas as assembleias da espécie.”799
No trecho grifado, revela-se novamente o propósito dos autores de passar a imagem de
que o presidente da República era manipulado pelos comunistas, afinal, o tal Conselho
de Ministros deveria ser constituído “nos moldes apresentados pelos comunistas”.
No mesmo Boletim existem informações sobre a greve geral baiana do dia 28 de
junho. Como vimos, esta foi realizada em razão da dura repressão que se abateu sobre o
movimento popular que se reunira pacificamente no dia anterior para manifestar seu
apoio a San Tiago Dantas e ao presidente Jango. É reproduzido o manifesto assinado
pela Comissão Permanente de Organizações Sindicais (CPOS) da Bahia, o Pacto de
Unidade Operário-Estudantil-Camponês, União dos Estudantes da Bahia e uma série
infindável de organizações sindicais baianas e nacionais,800 cujo teor é o seguinte:
“As entidades sindicais da Bahia, infra-firmadas, a União dosEstudantes da Bahia e o Pacto de Unidade Operário-Estudantil-Camponês, reunidos em assembleia geral convocada pela ComissãoPermanente de Organizações Sindicais da Bahia (C.P.O.S.B) paraapreciar e deliberar sobre as arbitrariedades e violências policiais
praticadas na noite de ontem, na Praça Municipal, ocasião em que foram brutalmente massacrados líderes estudantis, sindicais, camponeses e pessoas do povo e, [interrompida a redação]
Considerando que estas inomináveis violências foramconsequência da intolerância do Governo estadual, cuja prepotência seexternou pelo fato do comício dissolvido reivindicar, em termos
pacíficos, a constituição de um gabinete ministerial nacionalista-democrático.
Considerando que o objetivo de garrotear e violentar as liberdadesdemocráticas não se deteve nem ante outras autoridades constituídas,como bem demonstra a invasão do edifício da Prefeitura, onde popularesse refugiaram da sanha policial, dando assim a medida exata dodespotismo do governo estadual.”801
Em seguida, o Manifesto sindical associa a truculência da polícia baiana à oposição dogovernador Juracy Magalhães (UDN) à “realização das reformas de base”, hipotecando
total solidariedade às vítimas da violência governamental, em particular à sofrida pelo
líder bancário e presidente em exercício da CPOS baiana, Raimundo Ramos Reis, que,
799 “Greve geral de âmbito nacional”, op. cit., p.3.800 Cf. capítulo 4 desta tese, p.165-166.801 “Greve geral de âmbito nacional”, op. cit., p.7-8.
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como já vimos, havia sido brutalmente espancado. Por fim, o manifesto convocou a
greve geral de protesto que atingiu toda a cidade de Salvador a partir do meio dia de 28
de junho, movimento que culminou com um comício no fim da tarde na Praça da Sé,
centro da capital baiana. A repressão e a comoção em torno ao movimento sindical-
reformista na Bahia certamente debilitou de tal modo os ativistas que, como jádiscutimos anteriormente, a greve de 5 de julho de 1962 praticamente não aconteceu na
capital baiana, restringindo-se aos petroleiros, portuários e marítimos, diferentemente de
outros estados do Nordeste.
Ao final deste boletim é reproduzido o artigo “Intensificar a luta”, escrito pelo
dirigente comunista Orlando Bonfim Jr. e publicado no semanário Novos Rumos do
PCB. Esse artigo é apresentado pelos agentes policiais como uma forma de Bonfim
levantar a moral dos ativistas sindicais comunistas abatidas pela repressão do
governador Juracy Magalhães, lembre-se, correligionário do governador CarlosLacerda.802
Já o Boletim Reservado do dia 3 do mesmo mês de julho relatou uma reunião do
Conselho Sindical de Niterói, onde os presidentes dos Sindicatos dos Têxteis e dos
Rodoviários de Niterói e São Gonçalo, Almir Reis Netto e Pedro Mairink Filho,
respectivamente, teriam discutido sua participação nas revoltas populares contra o
desabastecimento no Rio de Janeiro, ocorridas alguns dias antes da greve, quando, como
já foi mecionado, moradores do bairro de Saracuruna, no município de Duque de
Caxias, haviam descoberto um depósito clandestino de feijão e iniciado um motim
popular que tão somente forçou o dono do estoque escondido vender o produto aos
populares. Essa revolta popular é retratada no documento como “ante-sala de uma
revolução”, sendo conectadas ao dispositivo grevista que então se articulava na
Guanabara. Segundo esse mesmo Boletim:
“Encerrando a reunião falou o Sr. Almir Reis Netto, presidente doSindicato dos Têxteis de Niterói e São Gonçalo, dizendo que ‘nós doConselho devemos dar todo o apoio ao povo contra os tubarões eexploradores do povo. Esta demonstração de hoje é apenas o começo
porque estamos trabalhando para explodir de modo geral, não somente noEst. do Rio, mas, por todos os quadrantes do Brasil, a fim de que
possamos tomar o poder e levar os lacerdistas, os reacionários e ostrustes ao paredon.’
Endossando as palavras do companheiro Almir, falou o lídercomunista Pedro Mairink Filho, que disse: ‘a minha classe já era paraentrar em greve hoje, dia 2, mas, em virtude do levante do povo, que
802 Idem, ibidem, p.11-14.
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precisa de nossa orientação neste momento, transferir para zero hora dodia 3 corrente, não haverá transporte a fim de que povo possa fazer deuma vez a revolução, para que possamos tirar proveito da situação, quemsabe? Se amanhã já estamos em revolução’.”803
Além disso, esse Boletim dá conta da mobilização levada a cabo pelo Sindicato
dos Bancários da Guanabara, tendo sua sede, localizada em um prédio da Avenida
Presidente Vargas, centro do Rio, se tornado um dos centros da “agitação”, isto é, da
preparação da então almejada greve política. É dito que os sindicalistas bancários
haviam feito panfletagem de uma carta aberta a Goulart, na Central do Brasil, a mais
importante estação ferroviária da cidade no centro do Rio de Janeiro. Segundo essa
fonte, o documento distribuído pelos sindicalistas cariocas havia sido também mandado
para Brasília, “a fim de ser distribuído no meio bancário e ao povo”,804 o que indica que
provavelmente foi distribuído em todo o país.
805
Entretanto, o mais curioso deste relato é o total erro da avaliação dos agentes
policiais quanto ao prestígio e à capacidade de arregimentação destes sindicalistas,
explicitado no trecho a seguir:
“A greve do setor bancário da Guanabara existe somente na boca e navontade dos líderes, pois a classe em sua absoluta maioria não temtomando conhecimento das atividades políticas do Sindicato e também oseu pensamento é: para “greve” com fins políticos, NÃO. Os líderessabem perfeitamente que somente podem contar com restrito número de
bancários, mas... não estão tomando conhecimento do fato.”806
Completando os equívocos da polícia política, afirma-se que os bancários não estavam
prevendo nenhum piquete para paralisar as agências bancárias, quando sabemos que
entre esta categoria tais piquetes eram operados pelos próprios elementos de ligação
entre os funcionários dos bancos e o Sindicato, através das Comissões Sindicais
803 “Alerta Geral contra os Agentes do Golpe.” Boletim Reservado, n.113, 3 de julho de 1962, p.2, grifosnossos. Fundo Polícias Políticas. APERJ.804 Idem, ibidem, p.1-3.805 O que também denota como o sindicalismo bancário utilizou-se da estrutura da sua confederação, aCONTEC, para mobilizar a categoria em todo o país para efetivar o movimento grevista. E nisso éimportante lembrar que, ao contrário da CNTI, resultado de uma manobra dos pelegos sindicais paracombater a influência do PCB na categoria, a CONTEC foi resultante de uma opção do sindicalismo
bancário para criar uma entidade de cúpula no interior da estrutura sindical corporativista. Foi do ascensogrevista, do fortalecimento da representatividade do sindicatos e da consolidação da hegemonia daesquerda comunista neste meio que surgiu a Confederação.806 Idem, ibidem, p.1.
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espalhadas pelas agências da cidade. Ao contrário do que pensava a polícia, a atuação
dos piquetes nesta greve (como em outras) foi deveras eficiente.807
Os agentes ainda relatam uma reunião ocorrida neste mesmo dia 3, entre dois
sindicalistas bancários chamados de “comunistas”, Antônio Bacellar de Couto e Írio
Lima, e o deputado Hércules Correa. Reunidos para a elaboração de um manifesto, édito que entre os três não havia acordo quanto ao dia de realização da planejada greve
geral, pois enquanto Írio Lima previa a realização da paralisação para o dia das eleições
gerais (7 de outubro), os demais teriam afirmado que não era possível esperar tanto. Não
obstante essa controvérsia, segundo a fonte policial, na reunião entre esses líderes
também se definiu uma operação de agitação nas portas de fábrica, agências bancárias,
nos canteiros de obras, áreas de concentração popular (como a Central do Brasil) etc.,
de modo a orientarem os trabalhadores quando a ordem da greve fosse dada. Do mesmo
modo que em relação aos bancários, é clara a subestimação desta operação demobilização generalizada de todas as principais categorias de trabalhadores por parte
dos agentes da repressão.
Todavia, nada se compara à forma como foi relatada a reunião da tarde de 4 de
julho, na sede da CNTI, que deflagrou a greve em todo o país. Como já vimos, a partir
das notícias relatadas na imprensa sabemos que houve uma controvérsia no Comando
Geral de Greve quanto à duração do movimento. Segundo o Boletim de 4 de julho,808
que supostamente reproduz as declarações de todos os oradores, a polêmica sobre a
duração do movimento (24 horas ou por tempo indeterminado?) desembocou numa
improvável reunião onde se discutiu um “plano revolucionário” para a “tomada do
poder” pelos comunistas no Brasil. Isso mesmo, de acordo com o relato deste boletim o
que se planejava naquela tarde de quarta-feira era uma “Revolução igual à de Fidel
Castro”.
807 Indiscutivelmente o sindicalismo bancário carioca era um dos mais bem organizados naquele período,
com um trabalho cotidiano em suas bases sociais que dava enorme representatividade à sua entidade,evidenciada pela surpreendente taxa de sindicalização de 75% da categoria. MATTOS, Trabalhadores esindicatos no Brasil, op. cit., p.92. Além do mais, como mostra Marcelo Badaró Mattos em Novos evelhos sindicalismos, entre os bancários (como em outras categorias) a existência destes piquetes não
poderia ser entendida como indício de uma suposta debilidade da organização sindical bancária. Aocontrário, a chegada de piquetes, formados sempre por bancários de outras agências, era uma garantia desegurança para os trabalhadores que eventualmente enfrentavam-se com gerentes reacionários. Essesgerentes, via de regra, cediam à pressão de uma numerosa aglomeração de trabalhadores na porta dos
bancos. Cf. MATTOS, Novos e velhos sindicalismos, op. cit., p.184-186.808 “Reunião na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria.” Boletim Reservado, n.114, 4 de
julho de 1962, p.1-15. Fundo Polícias Políticas. APERJ.
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Pelo menos em suas primeiras linhas o relato policial parece relativamente
factível. De acordo com ele, o comunista Hércules Correa, presidindo a reunião, teria
imediatamente sugerido a realização da greve: “caso não venha um Gabinete
Nacionalista, deveremos fazer uma greve geral por 24 horas, começando à Zero Hora do
dia 5 do corrente, até o dia 6, pois não queremos Gabinete reacionário e de gorilas”.809
Essa proposta teria sido logo posta em dúvida pelo líder marítimo do PUA, Waldir
Gomes dos Santos, que propôs que a greve fosse “por tempo indeterminado”, para
poder impedir a instalação de um gabinete reacionário, “nem que seja preciso agirmos
pegando em armas para defender os nossos direitos de nacionalistas”. Apoiando
Hércules Correa, o presidente em exercício da CNTI, Dante Pelacani, teria afirmado ser
factível a realização de uma greve de 24 horas, inclusive afirmando haver possibilidade
de participação dos trabalhadores paulistas no movimento nacional. Teria ainda
convocado os trabalhadores a apoiar as posições do presidente da República, deixandoclaro o objetivo político da greve:
“Nós devemos dar todo o apoio ao Presidente João Goulart, para que oPoder não caia nas mãos dos golpistas, que desejam através das baionetassufocar a voz dos trabalhadores, e, por isso nós temos que agir o maisrápido possível. DIRIGENTES! devemos decretar a greve geral, para que
possamos lutar ombro a ombro para salvar a Nação dos trustesinternacionais e do imperialismo norte-americano e do golpista CORVOLACERDA.”810
Segundo a narrativa desta fonte, o líder comunista Roberto Morena teria sido o primeiro a mencionar que a luta por um “gabinete nacionalista e democrático”, bandeira
da greve geral, estaria relacionada à realização de uma “revolução igual à de Fidel
Castro”. Em primeiro lugar, dando apoio à proposta de Waldir Gomes dos Santos, teria
afirmado:
“Analisando os fatos, dou inteiro apoio ao camarada Waldir, pois a grevedeverá ser por tempo indeterminado e não somente de 24 horas, porquedentro de 24 horas, não se poderá escolher de modo nenhum o Gabinete
Nacionalista. É preciso aproveitar a situação para que tenhamos êxito.
Nós, comunistas, verdadeiros brasileiros, que lutamos pela legalidade na posse do Sr. Jango Goulart, queremos agora, conforme nos prometeu, umGabinete Nacionalista, não permitindo a escolha de nenhum reacionáriogolpista.”811
809 Idem, ibidem, p.3.810 Idem, ibidem, p.4.811 Idem, ibidem, p.4.
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Ainda num terreno factível, Morena teria afirmado que a trama que estava se armando
no Congresso era a de favorecer os golpistas como Carlos Lacerda, enquanto que os
sindicalistas de direita ligado à ORIT eram nada mais que esteios deste grupo golpista,
se tratando, na verdade, de
“falsos líderes operários que estão à frente dos Sindicatos que se dizemdemocráticos mas... que eu tive a honra de desmascarar em Brasília,quando da escolha do nome do Chanceler San Tiago Dantas, presencieiesse grupo reacionário de pelegos, com faixas e cartazes financiados pelaORIT, pelo Governador desse Estado, comparecendo em frente aoCongresso Nacional, para que não fosse aceito o nome desse grande
Nacionalista que é o insigne San Thiago Dantas, que tanto fez por nós,em Punta Del Este”812
E criticando a escolha de Auro de Moura Andrade e do gabinete que este estava
propondo formar, teria concluído com as seguintes palavras:
“Nós não aceitamos de forma alguma esta manobra que os golpistasquerem nos infligir. Aproveitando a oportunidade para podermos, enfim,lutar nas ruas por um Gabinete Nacionalista com o mesmo ideal de Cuba.Façamos uma revolução igual à de Fidel Castro, encostemos camaradas,os golpistas em ‘El Paredon’.”813
Seguindo a mesma linha, Osvaldo Pacheco teria dado apoio à proposta de
Waldir Santos, pois, de acordo com esse relato, o comunista sergipano teria concluído
que “24 horas é muito pouco tempo para que nós possamos fazer a revolução nos
moldes da de Fidel Castro”.814 A partir daí o relato vai por um caminho insólito de uma
“grande conspiração esquerdista” que envolveria o governador gaúcho Leonel Brizola,
Francisco Julião e suas Ligas Camponesas, agentes cubanos e russos, Luiz Carlos
Prestes e naturalmente o próprio João Goulart, além, é claro, do movimento
operário/sindical. Pacheco aparece no relato afirmando que o governador gaúcho estaria
“dando todo o apoio financeiro e armamento” para a tal “conspiração esquerdista”. Em
alguns trechos do relato observam-se como seus autores não tiveram limites em sua
imaginação, como este sobre o que teria sido a intervenção do eletricitário Orlando
Maurício Scancetti, o sétimo orador:“Já sabemos como fabricar bombas infalíveis, conforme orientação deum nosso companheiro que se encontra em Moscou, fornecendo toda aorientação para que possamos ter uma revolução no Brasil, nos moldesda de Cuba. Ai então, perguntaremos ao CORVO LACERDA e a sua
812 Idem, ibidem, p.5.813 Idem, ibidem, p.5, grifo nosso.814 Idem, ibidem, p.5.
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polícia de pelegos, pelas suas invernadas de Olaria e em outros lugares,massacrando operários e matando-os de fome e de pancada.Perguntaremos, ainda, se nós comunistas, com o apoio do povo
brasileiro, teremos ou não um dia glorioso como o da Tomada daBastilha?”815
Em síntese, segundo os agentes policiais que produziram esse documento, teria
havido no início de julho de 1962, em pleno centro do Rio de Janeiro, uma reunião
subversiva pública na sede da CNTI, onde foi discutida abertamente a “tomada do
poder” e a “revolução comunista”, reunião esta realizada na frente de jornalistas dos
insuspeitos órgãos da conservadora imprensa carioca. É ocioso dizer que os jornalistas
do Jornal do Brasil e do Correio da Manhã , que em suas reportagens relataram em
detalhes a reunião do Comando Geral de Greve, não teriam qualquer motivo para omitir
de seus leitores esta suposta “conspiração revolucionária”. Nem mesmo O Globo foi
capaz de reproduzir tamanha insanidade. Além do mais, personagens importantes que
participaram daquela reunião do dia 4, como o presidente da UNE, Aldo Arantes, que
presidiu a plenária ao lado de Dante Pelacani e Hércules Correa, não é sequer
mencionado. Assim como uma série de fantasias criadas pelo anticomunismo militante
durante os anos Goulart,816 nesta fonte policial, em conclusão, aquela reunião combinou
um planejamento revolucionário.
Não obstante o notório desdém com o qual os agentes relataram o potencial do
que se estava decidindo naquela reunião, esse mesmo boletim nos traz preciosas
informações sobre o funcionamento do dispositivo sindical. É que após a decisão de
parar o país à zero hora do dia 5, os dirigentes sindicais realizaram reuniões em suas
entidades com as bases, tendo os agentes anotado o andamento deste processo neste
mesmo Boletim. Segundo essa fonte, às 18 horas a Federação Nacional dos Marítimos
815 Idem, ibidem, p.8.816 Como, por exemplo, o mito em torno a uma suposta articulação entre a URSS e o governo Goulart em1964, como aparece no já mencionado artigo “A Nação que se salvou a si mesma”, quando comenta osepisódios em torno ao golpe: “Pelo meio da tarde de quarta-feira, 1º de abril, tudo estava terminado, e os
líderes da classe média do Brasil estavam nos microfones saudando o colapso do comunismo. Em todasas janelas do Rio esvoaçavam lençóis e toalhas saudando a vitória, e as ruas de todas as grandes cidadesdo Brasil se encheram de gente alegre e dançando num espírito carnavalesco.
Do Rio Grande do Sul chegou a notícia de que Jango Goulart fugira para o Uruguai.Também escaparam às pressas Brizola, o Embaixador de Cuba e chefes graduados dos vermelhos, quedispararam para as fronteiras dos países vizinhos, pularam depressa dentre de aviões rumo a Cuba ou seesconderam em embaixadas amigas de países da Cortina de Ferro.
Navios procedentes da Tchecoslováquia, cheio de armas para os revolucionáriosvermelhos, foram assinalados virando rumo a Havana. E, no Rio, densas nuvens de fumaça subiam dosincineradores da Embaixada Russa, onde grandes quantidades de documentos e papéis foram queimadosàs pressas.” HALL; WHITE, “A Nação que se salvou a si mesma.”, op. cit., p.113, grifo nosso.
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foi palco de uma reunião da qual participaram o presidente do Sindicato dos
Carpinteiros, identificado apenas como Juscelino, juntamente com o “comunista”
Waldir Gomes dos Santos. Esses sindicalistas chegaram à reunião com a notícia de que
o Sindicato dos Taifeiros havia decidido aderir à orientação emanada da reunião da
CNTI. Ainda de acordo com esse relato, o que se seguiu foi a informação de que emtodo o setor marítimo o dispositivo grevista estava em pleno funcionamento, inclusive
“todos os Sindicatos já haviam retirado o dinheiro dos Bancos para fazer face ao
movimento”.
Em seguida, o “comunista” Nelson Pereira de Mendonça teria proposto a
interrupção do tráfego das barcas entre o Rio de Janeiro e Niterói e ilhas, tendo um
elemento identificado como Antônio Carneiro, do Sindicato dos Motoristas, afirmado
que o pessoal da rendição que iria entrar no serviço às 22 horas já estava trabalhando
nesse sentido. Apenas os sindicatos dos Oficiais de Náutica e Maquinistas não haviamexpedido ordem para a paralisação do trabalho.
O relato ainda dá conta de que os piquetes estariam sendo organizados pelo
Sindicato Nacional dos Taifeiros, e que estava sendo articulado um Comando-Geral de
Greve nacional, “distribuído em todo o país, sob a orientação da CNTI, da CONTEC e
do Comitê Nacional, para assuntos sindicais do PCB”.817 Além disso, é dito que
cumprindo “às mesmas determinações comunistas”, o Sindicato dos Bancários marcou
o operativo dos piquetes para se reunirem na manhã do dia 5, às 6 horas.
Ainda sobre a reunião na CNTI, os agentes também relataram as visitas feitas
pelos agentes do governo Goulart, que foram à entidade sindical levar a mensagem de
desaprovação de Goulart ao movimento paredista, confirmando a versão que está em
todas as fontes já discutidas no capítulo anterior.
O documento ainda nos diz sobre o andamento da paralisação em vários setores,
como no Instituto do Açúcar, que paralisou as Usinas às 21 horas do próprio dia 4, e, no
mesmo dia também, os ferroviários da Estrada de Ferro Leopoldina, às 19h45m, e a 1ª
Secção (Ponte dos Marinheiros) da Cia. Carris Urbanos às 21h22m. O Sindicato dos
Rodoviários da Guanabara também resolveu aderir à greve, paralisando os ônibus a
partir da zero hora do dia 5. Por sua vez, é dito que o Comando de Greve dos
Ferroviários havia se instalado na região da Baixada Fluminense, mais particularmente
na cidade de Caxias, “na Estrada Rio-Petrópolis, 1.700”. A Estrada de Ferro Central do
817 Idem, ibidem, p.3.
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Brasil iniciou à 00h35m sua adesão ao movimento e o Sindicato da Energia Elétrica
decidiu às 22h55m que iria aderir ao movimento às primeiras horas do dia seguinte.
Também à zero hora do dia 5 partiu a última barca que realizava o trajeto entre a Praça
15 e Niterói, o mesmo ocorrendo com a última embarcação que realizava a viagem no
sentido contrário.Enquanto a UNE enviava telegramas para todos os estados da Federação
orientando as entidades estudantis a colaborarem com os trabalhadores na paralisação,
uma comissão de sindicalistas dirigiu-se à Rádio Mayrink Veiga, de propriedade de
Brizola, às 23 horas da noite do dia 4 para convocar a greve geral. Desta comissão,
segundo a narrativa dos meganhas, fizeram parte Hércules Correa dos Reis, Dante
Pelacani, Waldir Gomes dos Santos, entre outros, que havia utilizado esse que era o
mais importante meio de comunicação de massas daqueles tempos, para, segundo os
policiais, pregar a “subversão da Ordem Pública”. Ao mesmo tempo em que o locutorsolicitava aos pais que não enviassem seus filhos à escola no dia seguinte, os líderes
grevistas liam o Manifesto do Comando Geral de Greve, explicando as razões da
paralisação.
O Boletim também reproduz o manifesto do Sindicato dos Trabalhadores nas
Indústrias Metalúrgicas do Estado da Guanabara, onde o movimento é apresentado
como resultado também do desejo do presidente João Goulart, o que certamente tem
relação com o prestígio que a figura de Jango tinha entre tal categoria. Afinal, sabiam
estes sindicalistas que o presidente da República estava se opondo à decretação da
greve.818 São reproduzidos também os manifestos dos sindicatos de aeroviários e
aeronautas, bancários, dos trabalhadores em carris urbanos e dos ferroviários da
Leopoldina. Na carta assinada pelos aeronautas e aeroviários podemos destacar dois
pontos. Em primeiro lugar, tendo como base uma crítica nacionalista à postura do
Congresso de recusar o nome indicado por Jango para presidir o Conselho de Ministros,
afirma-se:
“Nossa greve não é contra nossos empregadores, a quem
apelamos neste momento a se unirem conosco na defesa daindependência da democracia e do progresso da nação.
Nossa greve, ao nos irmanar aos trabalhadores de todo o Brasil,que nesta hora junto conosco enfrentam já não apenas a mais terrívelcarestia, como também a sonegação dos gêneros alimentícios organizada
pelos que tramam a implantação de um regime de exceção no país, nos põe lado a lado com todas as forças patriotas, com os estudantes, com a
818 Idem, ibidem, p.6.
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intelectualidade progressista, com a maioria democrática de nossasForças Armadas.”819
Como se vê, nada mais longe do que uma proposta de “revolução à maneira de Fidel
Castro” do que estes princípios de “colaboração de classes” entre o sindicato e os donos
das empresas aéreas. Ao contrário, o que se revela em tal manifesto destes sindicalistas
é mais o limite do seu programa, que uma postura supostamente “subversiva”. Para
somar-se ao bloco de forças nacionalista, a entidade queria simplesmente contar com a
colaboração do empresariado do setor, que deveria entender que, naquele dia 5 de julho,
“os aviões da aviação comercial brasileira, nas próximas 24 horas, ficamà disposição do Sr. Presidente da República, dos Chefes Militares fiéis àlegalidade democrática, dos parlamentares e outras autoridades civis quedignificam o mandato popular, para servirem em tudo que seja necessárioà formação de um governo nacionalista e democrático.”820
Como já discutimos no capítulo anterior, essa ação dos sindicatos dos aeronautas e
aeroviários definiu a dinâmica das articulações políticas que se processaram no próprio
dia 5, quando uma comissão de sindicalistas representando o Comando-Geral de Greve,
partiu pela manhã do Rio de Janeiro para se encontrar com Goulart em Brasília.
Enquanto isso, nos outros manifestos sindicais reproduzidos no Boletim a
ideologia nacionalista aparecia segundo a formulação adotada pelo PCB desde o
Manifesto de Março de 1958: o “governo nacionalista e democrático”. O Sindicato dos
Trabalhadores em Carris Urbanos, através de uma nota de seu secretário-geral, MaxTorres Pimentel, buscou relacionar o tipo de manobra política perpetrada pelas forças
conservadoras (que no Congresso Nacional visavam bloquear todas as iniciativas de
Goulart) ao golpe contra o governo de Arturo Frondrizzi na Argentina, em 29 de março
daquele mesmo ano.
“Solidários com toda a classe operária de nosso país e as demaiscorrentes progressistas civis e militares, no sentido de defender osinteresses nacionais, pela constituição de um Gabinete nacionalista, ostrabalhadores em carris, no exato momento em que as franquias e as
liberdades sindicais estão ameaçadas, sente-se no dever de conclamar aclasse, para que esta se mantenha unida e vigilante, para que nãosejamos amordaçados conforme nossos irmãos argentinos, e para tantoeste sindicato, cumprindo o que foi deliberado pela CNTI, DECRETAGREVE GERAL NOS SERVIÇOS DE BONDES, dentro do esquema jáacordado para à zero horas do dia 5 de julho de 1962.”821
819 Idem, ibidem, p.8.820 Idem, ibidem, p.9.821 Idem, ibidem, p.9-10, grifos nossos.
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Enquanto o Comando de Greve dos ferroviários da Leopoldina fez divulgar um
manifesto assinado por seu presidente Demisthóclides Batista, o “Batistinha”, em que
este explicitamente afirmava que o objetivo da greve era
“fortalecer a posição legalista e democrática manifestada publicamente pela S. Excia. o Senhor Presidente da República, no sentido de formaçãode um Gabinete progressista, nacionalista e democrático, capaz de porfim as vergonhosas filas a que estão obrigadas as donas de casa e oscompanheiros operários, à procura de gêneros de primeiranecessidade.”822
Segundo a formulação destes protagonistas do movimento, tratou-se de uma greve para
apoiar Jango em sua luta contra o Congresso e o “golpe branco” parlamentarista.
No dia 5 de julho não há nenhum registro de um desses Boletins, certamente
porque os meganhas estiveram muito ocupados em prender grevistas, conter a explosão popular e rever suas próprias noções sobre a capacidade da esquerda sindical de realizar
a greve. Já no Boletim Reservado de 9 de julho relata-se uma importante reunião
realizada no dia 6, na sede do Sindicato dos Bancários, ocasião em que, de acordo com
essa fonte, afluíram à entidade sindical por volta de 100 bancários. 823 O propósito da
reunião era prestar à categoria “informações sobre os acontecimentos do dia 5 em
Brasília”, ou seja, de como se procederam às negociações entre a comissão do
Comando-Geral de Greve e o presidente João Goulart.
Presidindo os trabalhos estavam o presidente do Sindicato, Antônio Pereira, o
tesoureiro Montezuma Góes, o secretário Fernando Rodrigues, o presidente licenciado,
Aloízio Palhano Pedreira Ferreira e o presidente da Federação dos Bancários da
Guanabara, Rio de Janeiro e Espírito Santo, Luiz Viegas da Mota Lima, sendo que
apenas Pereira, Palhano e Luiz Viegas são descritos como “comunistas”.824 Como não
poderia ser diferente, o balanço da paralisação política é tomado positivamente por
todos os oradores, sendo evidenciado que, não obstante o encerramento da parede, os
822 Idem, ibidem, p.14.823 Boletim Reservado, n.115, 9 de julho de 1962, p.1-15. Fundo Polícias Políticas, APERJ.824 E realmente, com a exceção de Palhano, tais personagens eram pertencentes aos quadros do PCB e,reconhecidamente, o sindicalismo bancário era hegemonizado pelos comunistas. Em relação a AloízioPalhano, na verdade um companheiro de viagem dos comunistas antes do golpe, no exílio em Cubadecide aderir às propostas guerrilheiras, tornando-se o delegado brasileiro no encontro da OrganizaçãoLatino Americana de Solidariedade (OLAS), realizado em Havana, em 1967. Posteriormente, se juntaria àVanguarda Popular Revolucionária (VPR), sendo tragado pela violência da ditadura militar, assassinadono DOI-CODI de São Paulo, em 21 de maio de 1971. Tamanha foi a importância desse dirigente nahistoria do Sindicato dos Bancários, que a Biblioteca da entidade leva o seu nome.
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bancários deveriam continuar mobilizados, pois, segundo os “meganhas”, Antonio
Pereira havia deixado claro que “a luta não parou nem com a greve, nem tão pouco com
a vitória da mencionada greve”.825 E intervindo no debate que tomaria a agenda política
do país neste segundo semestre de 1962, Pereira enfatizou que “aos trabalhadores não
interessava se o Brasil ficará no Parlamentarismo ou Presidencialismo. O que interessa éum Governo Democrata-Nacionalista”, posição adotada na ocasião pelo PCB.826
Os confrontos travados entre os ativistas sindicais e a polícia política, são um
dos principais temas tocados nas falas dos oradores, assim como as já mencionadas
distorções do jornal O Globo. Aloízio Palhano abordou a repressão policial em diversos
momentos de sua fala, quando, por exemplo, narrou o já referido episódio envolvendo
Cainã Costa Pereira, funcionário da Federação dos Bancários, que, descrito como
“magrinho”, teria enfrentado o Governador “no peito”.827 Falando da “interpretação”
dos jornais conservadores sobre os eventos relacionados à greve, e do própriogovernador da Guanabara, que acusavam os sindicalistas de terem aprendido o
“processo do terror” com os “russos” e “cubanos”, o sindicalista teria respondido:
“Nós bancários não precisamos aprender com ninguém como fazer grevee outras coisas mais, não precisamos porque já somos mestres no assuntoe vejam como nós somos também de coragem, vejam o exemplo doCanaan (sic), da Federação dos Bancários, magrinho como é, enfrentou oGovernador no peito.”828
Concluindo o comentário, afirmou: “Para outra greve nós todos devemos ser Cainã,
para enfrentarmos de fato o Governador, que só é valente com os capangas e tiras de
meia tigela.”829
Ainda conforme essa fonte, o sindicalista teria feito críticas também ao caráter
seletivo das leis existentes no Brasil, que “existem para uns e outros não”, referindo-se
ao fato do próprio governador Lacerda cometer arbitrariedades, ficando livre de sanções
penais. De acordo com o relato policial, Palhano teria dito que
“Era preciso acabar com tais leis; os trabalhadores devem lutar para queas leis beneficiem a todos; Leis que punam a todos; Leis para acabar com
os multi-milionários; Leis para a divisão das terras para os camponeses.Disse que não estava pregando a mudança de Governo, que não estava
pregando o socialismo, o que desejava é que os trabalhadores no dia 7 deoutubro vindouro soubessem votar , votando principalmente nos
825 Idem, ibidem, p.1-2.826 Discutimos isso no terceiro capítulo de nossa dissertação, MELO, O plebiscito de 1963, op. cit.827 Boletim Reservado, n.115, op. cit., p.3-4.828 Idem, ibidem, p.4.829 Idem, ibidem, p.4.
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nacionalistas; que saibam constituir uma Câmara Popular, pois somentedesta forma o Brasil se libertará, definitivamente, do imperialismoamericano e de um Congresso podre que nada mais irá fazer em
benefício do povo.”830
Por fim, teria afirmado que a data daquela greve geral iria ficar “marcada na vida dos
bancários, pois pela primeira vez, participaram de uma greve política”, denotando que a
classe estava mais politizada e que poderia dar outros passos no mesmo sentido.831
De especial interesse é o que teria sido o relato do líder Luiz Viegas da Motta
Lima sobre o encontro da comissão do CGG com Goulart em Brasília, naquele dia 5. De
acordo com essa fonte, ante a insistência dos emissários de Jango para que a greve geral
fosse sustada, o CGG propôs o encontro entre estes e o presidente Goulart para que
fosse discutido o porquê da impossibilidade de interromper o movimento. Teria ficado
acertado que seria disponibilizado um avião para transportar essa comitiva à capitalfederal, já às 7 horas da manhã do dia 5, o que certamente indica que, a certa altura dos
acontecimentos, os próprios emissários de Jango já haviam se convencido da
inevitabilidade da paralisação nacional.
Como vimos, a própria aviação comercial brasileira encontrava-se em greve, e
quando os sindicalistas chegaram no Aeroporto do Galeão encontrava-se disponível
uma aeronave em cujo interior já estavam presentes alguns assessores do presidente
Goulart, a esposa do deputado Antônio Balbino (PSD-BA), um jornalista não
identificado e o radialista César de Alencar. O Comando de greve dos própriosaeronautas teria decidido que o avião só decolaria com a ordem do CGG. Por sua vez,
este não permitiu que César de Alencar e o jornalista viajassem para Brasília, enquanto
aos outros, por serem “pessoas ligadas a um Presidente que tinha o espírito
nacionalista”, foi permitido continuar na aeronave.832
Ao chegar em Brasília, a comissão sindical deparou-se com muitos deputados e
senadores que estavam ávidos para deixar a capital da República, e alguns deles teriam
pedido para pegar “carona” na aeronave utilizada pelo CGG para regressarem a seus
estados. Luiz Viegas da Mota Lima teria afirmado que a comissão sindical tinhasinalizado que só decidiria sobre essa “carona” após a reunião com Goulart. Ainda
segundo essa narrativa, no aeroporto de Brasília alguns destes parlamentares estavam
exaltados, como o senador Padre Calazans (UDN-SP) – como já referido, apelidado pela
830 Idem, ibidem, p.3, grifos nossos.831 Idem, ibidem, p.3.832 Idem, ibidem, p.5-6.
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esquerda de “Lacerda do Senado”. Este teria afirmado que havia chegado a Brasília em
um avião que havia furado a greve em São Paulo – e de fato, como vimos, em São
Paulo a greve foi um fiasco – e que iria retornar para a capital paulista, passando pela
Guanabara, no que foi aparteado pela comissão sindical que determinou que nenhuma
aeronave deveria levantar voo naquele dia, e que só levariam os parlamentares quehaviam apoiado San Thiago Dantas e se posicionado favoravelmente aos projetos de
interesses dos trabalhadores.833
Tratando do encontro entre Goulart e o CGG, este relato informa que em
primeiro lugar o presidente da República parabenizou os sindicalistas pelo “êxito da
greve”, enquanto estes teriam afirmado: “Presidente, pode contar muito mais com a
classe trabalhadora que estará unida em torno de V. Excia. e não admitirá um Ministério
que não seja democrático-nacionalista.” Goulart teria afirmado que este também era o
seu ponto de vista, e em seguida teria se estabelecido um diálogo menos protocolarentre os presentes.
As dificuldades em compor o novo gabinete teriam sido os pontos tratados
inicialmente pelo presidente Jango, que teria esclarecido como o senador Auro Moura
Andrade tinha manobrado para esvaziar totalmente seus poderes, tornando-o refém de
um Conselho de Ministros conservador e que bloquearia todas as suas iniciativas de
caráter reformista. Além do mais, a própria composição das pastas militares apresentada
por Moura Andrade apontava no sentido de aprofundamento do “golpe
parlamentarista”, como era o caso do Almirante Bardi, que havia assumido
posicionamento golpista na crise de agosto do ano anterior, e era sugerido para ocupar a
pasta da Marinha. De uma forma um tanto quanto irônica, o presidente da República
teria afirmado ao senador paulista que “se me apresentam um nome destes para o
Ministério da Marinha, eu apresento para o Ministério do Trabalho o Sr. Clodsmith
Riani”.834 Goulart teria dito que na composição do novo ministério não abria mão das
pastas da Viação, Relações Exteriores, Minas e Energias, e as pastas militares (Guerra,
Marinha e Aeronáutica), ao mesmo tempo em que se comprometia em dar continuidade
à política externa independente.
Interrompendo a conferência, Leonel Brizola teria ligado para o Palácio do
Planalto e falado ao telefone com o líder geral do PUA, o portuário de Santos, Oswaldo
Pacheco. Na conversa, o governador gaúcho teria pedido o apoio dos sindicalistas ao
833 Idem, ibidem, p.6-7.834 Idem, ibidem, p.7-8.
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movimento de retorno ao sistema presidencialista, no que Pacheco teria afirmado que
levaria tal mensagem às entidades sindicais, porém o momento era de apoiar as ações de
Jango. Brizola também teria mencionado que o Rio Grande do Sul não havia entrado em
greve porque as senhas não chegaram a tempo, embora saibamos, como já foi referido,
que o próprio governador buscou persuadir os sindicalistas gaúchos a não realizarem agreve no dia seguinte.
Após esses entendimentos com Goulart, a comissão do CGG teria se
comprometido em retornar à Guanabara para determinar a suspensão da greve. Em
seguida ao informe de Luiz Viegas, o plenário demonstrou satisfação com os resultados
alcançados, ao mesmo tempo em que estavam revoltados com as atitudes de Carlos
Lacerda durante a greve, no que alguns teriam sugerido uma intervenção na Guanabara,
exigindo que o general Osvino Alves tomasse atitudes nesse sentido.
Sobre esse tema, o Boletim Reservado reproduz um manifesto divulgado peloSindicato dos Bancários no próprio dia 5, cuja razão era a crítica ao “deplorável
comportamento do Governador, com relação aos bancários grevistas”.835
“Desce o Governador da Guanabara a provocações de rua! Tomados damaior indignação, levamos ao conhecimento dos trabalhadores e do povocarioca o deplorável comportamento do Governador, com relação aos
bancários grevistas.Desde às 8 hs. da manhã de hoje, o Sr. Governador,
acompanhado de policiais armados de metralhadoras de mão e deelementos da DPPS, disfarçados em populares, começou a percorrer os
diversos bancos do centro da cidade, arrancando, ele mesmo, cartazesexplicativos da já vitoriosa greve geral dos trabalhadores brasileiros. Não se contentando com a primeira “blitz”, desceu o Sr.
Governador da indispensável dignidade do seu cargo e passou a efetuar, pessoalmente, prisões arbitrárias e ilegais, com objetivo nítido de provocar os bancários e desvirtuar o legítimo sentido patriótico de nossagreve.”836
No manifesto, as atitudes de Lacerda são explicadas em razão dos vínculos
mantidos pelo governador e dos interesses dos banqueiros, exportadores de café (que
regularmente tinham suas dívidas públicas perdoadas por ele) e os sonegadores de
gêneros de primeira necessidade, sendo este último ponto relacionado à crise de
abastecimento já comentada. Além disso, os sindicalistas convocaram os bancários a
manterem-se tranquilos e mobilizados, não só para efetivarem a greve, mas também
para prepararem-se para a campanha salarial daquele ano (que deveria ocorrer em
835 Idem, ibidem, p.14.836 Idem, ibidem, p.14-15.
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setembro), ocasião em que, novamente, deveriam enfrentar-se com as manobras
repressivas de Lacerda e de sua polícia política.
Por fim, este Boletim também reproduz um manifesto do Comando Geral de
Greve lançado após o fim da paralisação, onde a greve geral é afirmada como a primeira
da história do movimento sindical brasileiro. A análise desse documento mostra como o próprio movimento pensou sua ação e como esteve empenhado em, imediatamente,
construir uma memória do episódio, ponto que discutimos no capítulo anterior. Nesse
sentido, outro ponto importante ressaltado tem a ver com a própria coincidência
histórica do movimento ter se realizado num dia, 5 de julho, que carregava o
simbolismo do movimento tenentista, interpretado como um legado eminentemente
nacionalista. Afinal, como vimos a partir do destaque dado à data pelos jornais da
esquerda, esse era o dia em que se comemoravam os levantes tenentistas de 1922 e
1924, além de ter sido também a data do histórico comício da Aliança NacionalLibertadora no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, quando Luís Carlos Prestes foi
aclamado como presidente de honra da organização.837 O 5 de julho, nessa leitura,
parecia associar-se às tradições nacionalistas e da própria esquerda, particularmente em
sua principal expressão presente naquela quadra histórica, o comunismo.
Se isso certamente foi importante para a construção desta autoimagem das
esquerdas, ao mesmo tempo era relembrado como munição para as direitas, todas em
pânico com essa cada vez mais intensa participação dos trabalhadores na cena política
brasileira. Ao mesmo tempo, pelo próprio caráter da ação, o manifesto busca também
representar a própria classe trabalhadora brasileira como “uma força organizada e
independente”,
“disposta a lutar com todas as camadas sociais do nosso povo para tornarefetivas as reformas de base, consolidar e ampliar as liberdadesdemocráticas e sindicais, defender e ampliar a política externa que vemsendo executada.”838
Além disso, o documento também denota a posição que a cúpula do sindicalismo
de esquerda possuía sobre o Parlamentarismo naquela ocasião, afirmando o que seria a posição de que, mais importante que a forma de governo, interessava “um governo que
seja capaz de realizar as reformas”. Deveria esse governo tomar medidas imediatas para
combater a sonegação de gêneros alimentícios. O Comando ainda orientava as
837 Aclamado pelo então jovem militante comunista Carlos Lacerda, como é bem conhecido.838 Idem, ibidem, p.14-15.
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organizações sindicais a realizarem reuniões de balanço com suas diretorias e bases, de
modo a poderem examinar sua atuação na greve, visando corrigir as falhas e continuar a
mobilização para as batalhas que se aproximavam, “de forma a podermos, com presteza
e eficiência, voltar a cumprir o patriótico papel que nos está destinado, caso as
condições assim o determinem”.839
Por fim, no Boletim de 11 de julho, são apresentadas informações sobre o
desenvolvimento e os problemas da greve geral no estado de São Paulo. 840 Através de
uma série de notas, lê-se um apanhado das principais questões que estiveram por trás da
“calma” situação em São Paulo, com exceção da Baixada Santista, “sacudida pela onda
de greves ilegais resultantes da crise política”.841 Interessantes são as alegações para a
atitude tomada pelo governador Carvalho Pinto, que ao contrário de outros colegas, não
emitiria nenhuma declaração de apoio ao presidente Goulart. De acordo com a anotação
policial, face ao clima de relativa tranqüilidade registrada naquela unidade da federação,o governador paulista, em discurso na cidade de Mogi Mirim, quando fazia campanha
eleitoral, assim se pronunciou:
“Neste momento em que o povo paulista acaba de dar este edificanteexemplo de ordem e compreensão da gravidade do momento políticonacional, é chegado o momento de se planificar e construir, segundo osanseios da grande pátria que já assiste ao derramamento de sangue denossos coirmãos. O povo já pagou demais aos demagogos. Não quer maisfalas aéreas e discursos vazios: a nação exige que se planifique e se façao que o povo reclama”.842
Todavia, a despeito de toda essa confiança no “espírito do povo paulista”, diante da
crise que culminou na renúncia do senador paulista Moura Andrade do cargo de
Presidente do Conselho de Ministros, é dito que
“todas as Unidades militares subordinadas ao II Exército, e bem assim aForça Pública, a Guarda Civil e os órgãos da Secretaria de SegurançaPública de São Paulo se encontra[vam] em rigorosa prontidão, a despeitode reinar calma e ordem na capital do Estado e na área do TriânguloIndustrial do ‘ABC’.”843
839 Idem, ibidem, p.15.840 “Notas diversas de São Paulo.” Boletim Reservado, n.117, de 11 de julho de 1962, p.1-10. FundoPolícias Políticas, APERJ.841 Idem, ibidem, p.1.842 Idem, ibidem, p.1-2.843 Idem, ibidem, p.4.
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Entre os elementos explicativos para o flagrante fracasso da greve geral na área da
moderna indústria automobilística paulista, é certamente prudente arrolar o dispositivo
da “aliança empresarial-policial” assinalada pela historiografia.844
Todavia, nem sempre tal dispositivo seria eficiente em impedir o
desencadeamento de um movimento como aquele, como é possível aferir no mesmodocumento quando trata também da efetividade daquela greve na Baixada Santista.
Menciona-se que a Associação Comercial, Industrial e Agrícola de São Vicente havia
enviado ofício ao governador Carvalho Pinto, no qual a entidade empresarial
denunciava a “acintosa e solerte participação de elementos comunistas, que açulavam os
populares contra a propriedade particular, deixando em pânico o comércio local, sem
qualquer garantia”. Ainda de acordo com este Boletim, esse ofício também fazia a
seguinte reclamação: “Procuramos, em vão, uma autoridade, um soldado ao menos, para
garantir nossa integridade física e moral”, denotando como o esquema repressivomobilizado pelo governo paulista não havia sido eficiente naquela região.845 Em outra
nota reproduzida neste mesmo Boletim Reservado, é dito que a greve geral em Santos
levou à paralisação os 65 mil trabalhadores filiados aos 56 sindicatos da Baixada
Santista (precisamente o número de sindicatos e filiados do Fórum Sindical de Debates).
6.4 A Polícia Política depois da greve
Aquela quase ingênua subestimação da capacidade do sindicalismo bancário em
paralisar seu ramo de atividade na Guanabara, tal como a subestimação dos sindicatos
dirigidos pela esquerda de uma forma geral, seria agora substituída por uma
preocupação cada vez maior por parte das polícias políticas. Isso fica patente através da
leitura da documentação produzida pelo órgão posteriormente à greve de julho, como é
possível perceber nas supracitadas notas sobre São Paulo. Nestas, também se assinalou
a grande capacidade do líder Dante Pelacani em produzir a “agitação”, apresentado
como possuidor de grande prestígio nos meios sindicais de São Paulo e de Santos,
“tendo tido marcante atuação na preparação e desenrolar das grandes greves levadas a
efeito nos meios obreiros de São Paulo”.846 Além disso, é mencionada uma reportagem
do jornal O Estado de São Paulo onde foi destacada a ida do sindicalista à Alemanha
Federal para participar do congresso internacional da CIOSL e disputar a direção da
844 NEGRO, Linhas de montagem, op. cit., p.44 e 107. PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no‘vulcão do inferno’, op. cit., p.147 e 244.845 “Notas diversas de São Paulo.”, op. cit., p.2.846 Idem, ibidem, p.3.
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direção latino-americana da entidade, ocasião em que teria feito uma exposição sobre a
greve geral de 5 de julho.847
A partir de então, era necessário “levar a sério” as ameaças de greve política, e
agora a retórica anticomunista se somava à certeza de que tais “elementos vermelhos”
possuíam capacidade de paralisar diversas cidades do país ao mesmo tempo.Além dos já mencionados Boletins, na documentação avulsa disponível no
APERJ é possível acompanhar essa importante “tomada de consciência”. Um exemplo
significativo pode ser encontrado em documento classificado como “Confidencial”,
datado de 27 de julho de 1962.848 O autor do texto informa à cúpula da Segurança
Pública da Guanabara que diversas reuniões entre líderes do Comando Geral de Greve
estavam sendo realizadas no Rio e em São Paulo. O propósito de tais encontros seria a
montagem de um novo dispositivo grevista para funcionar assim que os “líderes
comunistas” desejassem.Obviamente, em tais reuniões os balanços da greve de julho serviriam para
acumular as experiências da greve nas cidades onde essa triunfou, como também
discutir as razões do fracasso em São Paulo e Minas Gerais. E segundo o autor deste
relato policial, os líderes haviam chegado à conclusão de que
“não se pode confiar no “espírito de luta” das massas trabalhadoras,tornando-se necessário organizar dispositivos capazes de coagir ostrabalhadores a abandonar o trabalho ou, simplesmente, de não permitirque eles cheguem às fábricas, escritórios etc.”849
Naturalmente a ideia de que os líderes grevistas não confiavam no “espírito de luta dos
trabalhadores” era uma forma dos autores destas linhas desqualificar o trabalho político
dos sindicatos ligados ao Comando Geral Sindical850 junto às suas bases. Ainda de
acordo com o relato policial, a experiência do sucesso da greve no Rio, e do fracasso na
cidade de São Paulo, permitiu aos líderes sindicais concluir que o mais importante
deveria ser assegurar a “paralisação forçada dos transportes”, para “forçar a greve
geral”. Assim, teriam decidido que a iniciativa para garantir a greve era a organização
dos piquetes, inclusive com a presença de elementos de categorias diversas, cuja tarefacentral seria a “paralisação dos transportes”.
847 Como já vimos, a delegação brasileira acabou abandonando o Congresso da CIOSL em razão daquestão cubana.848 “Assunto: GREVE GERAL”. Fundo Polícia Política, setor Geral, Caixa 1065, dossiê n.4, notação 88.APERJ.849 Idem, ibidem, p.1, sublinhado no original.850 Como, segundo esse documento, àquela altura o Comando era denominado.
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A forma como é apresentado o novo plano grevista do Comando era mais
uma vez o de uma “grande conspiração vermelha” à maneira d’ O Assalto ao
Parlamento, onde se afirma que a participação de estudantes ligados à UNE no tal
dispositivo dos piquetes incluía também a tarefa destes estudantes de “criar um clima de
coação e terror, capaz de alarmar a população e, assim, afastá-la dos locais detrabalho”.851 Nesse esquema conspiratório teria destaque também a ação do
sindicalismo bancário, através da “guerra psicológica”, “campanha de boatos”:
“Aqui se dá um lugar de destaque à campanha de boatos, visando a forçaro fechamento dos bancos não só pela ação dos piquetes, mas
principalmente pela psicológica, capaz de fazer pairar sobre eles aameaça irresistível da corrida [aos bancos]. Sabe-se que essa questão foilongamente discutida numa reunião de dirigentes sindicais realizada emSão Paulo, na semana passada. Nessa reunião concluiu-se que, lançandoum clima de intranquilidade e ameaças sobre a rede bancária, isso é
suficiente para provocar uma reação de pânico em todos os setores da produção, obrigando-os a parar e desorganizando-se. Trata-se de umesquema infernal para minar a confiança pública, colocando o povo, comisso, à mercê dos grupos de ação.”852
Deste modo, ficavam os ativistas bancários com a tarefa de organizar esse esquema de
modo que o pânico provocasse a própria “paralisação da indústria”. À paralisação dos
transportes e ao “esquema terrorista” de estudantes e bancários se somaria uma
campanha de “boatos” em relação a problemas de abastecimento de gêneros, de forma a
que o movimento para estocar levasse a uma crise de abastecimento. E nisso a própria
paralisação dos transportes contribuiria para impedir a renovação dos estoques. Por fim,
elementos em posições chave seriam responsáveis pela interrupção dos abastecimentos
de combustíveis e de energia elétrica.
O relato ainda dá conta de que nessas sucessivas reuniões no Rio e em São Paulo
existia a participação de sindicalistas de diversos outros estados da federação, como Rio
Grande do Sul, Minas, Pernambuco e Bahia. Além do que, a informação de que o
planejamento final e a execução do esquema grevista havia ficado sob a
responsabilidade do Comando Geral Sindical, que era resultante da “ampliação” doCGG, e que contava como “última peça” da engrenagem da “maquina grevista”, a UNE,
descrita como “controlada pelo Partido Comunista Brasileiro”.
Como já tivemos oportunidade de expor, o grau de fantasia dos autores deste
tipo de documentação policial não tem limites. E embora algumas das informações
851 Idem, ibidem, p.2, sublinhado no original.852 Idem, ibidem, p.3-4, sublinhado no original.
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contidas neste relato das reuniões de balanço do Comando tenham traços de
verossimilhança, é necessário apontar alguns detalhes que nos parecem contaminados
pela visão ideológica destes agentes. Afinal, os setores nos quais está baseado o
esquema grevista descrito pelos “meganhas” são justamente aqueles que efetivamente se
destacaram na greve geral do início de julho: ferroviários, portuários, marítimos e bancários. O movimento estudantil, por sua vez, estava altamente politizado, tendo
realizado a famosa greve do 1/3 em junho e tendo atuado, através da UNE (cujo setor
majoritário na direção era da recém-fundada Ação Popular, e não o PCB), na direção da
paralisação de 5 de julho.
Por outro lado, como já apontamos, o que talvez seja mais significativo seja a
mudança de atitude no comportamento do aparelho de repressão, pois embora o teor
deste relato seja permeado pelos preconceitos anti-esquerdistas e sua fantasia sediciosa,
seu propósito fundamentalmente são as autoridades superiores do estado da Guanabara,obviamente o próprio governador Carlos Lacerda. Tratava-se agora de organizar um
dispositivo policial anti-sindical, que impedisse o desencadeamento de uma nova greve
geral política. Até que ponto esse novo esquema seria eficiente, foi o que mostrou a
greve geral de setembro daquele ano, como veremos a seguir.
6.5 A greve geral de setembro e o dispositivo sindical-militar
Os eventos relacionados à greve geral decretada na crise de 14-15 de setembro de
1962 revelam o funcionamento de alguns dos esquemas pelos quais o movimento
sindical estava articulado. Certamente escapou à percepção dos policiais cariocas que
um dos fatores que havia mobilizado os trabalhadores para a greve foi simpatia
despertada pelas declarações do general Osvino Alves, quando denunciou em fins de
maio um esquema golpista para implantar uma “ditadura de extrema direita” no Brasil.
Mesmo tendo ido pedir ao Comando Geral de Greve que sustasse a paralisação, foi o
general nacionalista e Machado Lopes (interino da pasta da Guerra) que negociaram
com as autoridades do governo da Guanabara a libertação dos sindicalistas presos na
ocasião daquela greve. E mesmo em alguns outros pontos do país, subalternos militares
colaboraram com comandos locais de greve. No capítulo anterior, já vimos que na greve
de setembro ficaria mais explícito o funcionamento daquilo que o brasilianista Erickson
denominou de “dispositivo sindical-militar”, conformado entre o CGT e a oficialidade
militar nacionalista.
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Em uma etapa preliminar desta pesquisa nos pareceu exagerada a idéia desse
dispositivo como elemento determinante para o sucesso daquelas greves políticas. 853
Afinal, embora o general Osvino realmente fosse tratado como um aliado pelo CGT,
outros importantes comando militares estavam em mãos de generais reacionários, como
Arthur da Costa e Silva à frente do IV Exército (sediado no Recife), e logicamente nãoapoiariam qualquer greve. As razões para o êxito do movimento deveriam ser buscadas
na própria capacidade organizativa do movimento da esquerda sindical (ponto que
reafirmamos), mas acabamos por negligenciar o fato daquele ter se configurado como
um movimento feito para, fundamentalmente, apoiar Goulart. Através dessa
documentação policial, no que tange pelo menos à greve de setembro, esse dispositivo
sindical-militar teve certamente um papel central naquela greve. Em uma comunicação
de nove páginas endereçada ao Chefe de Polícia, escrita pelo diretor da Divisão de
Polícia Política e Social, o já mencionado delegado Cecil Macedo Borer, há um relatoimpressionante sobre o choque com as tropas do I Exército em favor do CGT em
setembro de 1962.854
De acordo com este documento, após ter decretado greve a partir do meio deste
dia, a direção do CGT reuniu-se na noite daquele dia 14 na sede da CNTI, centro do
Rio. Por volta das 22 horas, patrulhas chefiadas por um sujeito identificado como
Detetive Simas detiveram todo o comando de greve presente na sede da confederação.
Entre os presos estavam os “cabeças do movimento”, conforme descreve o documento,
dos quais destacam-se os trabalhistas Benedito Cerqueira e Dante Pelacani, e os
comunistas Osvaldo Pacheco, Roberto Morena, Felipe Ramos Rodrigues e Rafael
Martinelli, apenas para citar os mais expressivos. Além destes, também foram presas
diversas outras lideranças importantes, desmantelando temporariamente a direção
nacional da greve.855 A única exceção foi o líder operário comunista Hércules Correia,
853 Aproveitamos para retificar essas impressões preliminares presentes em MELO, Demian Bezerra de.“A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa.” Revista
História & Luta de Classes, Marechal Rondon (PR), v.10, p.36-43, 2010.854 Documento sem título, Fundo Polícia Política, setor Guanabara, Dossiê 4, Caixa 1082. APERJ.855 Conforme o documento, os outros presos foram: Zacarias Fernandes da Silva, Bibliotecário da CNTI;Fausto Reis, Assistente Social do Sindicato dos Foguistas da Marinha Mercante; Manuel de Azevedo,Secretário do Sindicato dos Condutores de Veículos Rodoviários e Anexos do Rio de Janeiro; NiltonEduardo de Oliveira, Presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias Gráficas; JúlioMarques da Silva, 2º Secretário da CNTI; Augusto Ferreira da Silva, Suplente do Sindicato dosTrabalhadores nas Indústrias de Trigo, Milho, Mandioca e Massas Alimentícias e Biscoitos naGuanabara; Nelson Pereira Mendonça, membro do Conselho Fiscal da Federação Nacional dosTrabalhadores em Transportes Marítimos e Fluviais; Valdemar Monteiro da Silva, do Sindicato dosConferentes Navais; Geraldo Rodrigues da Silva Jr., membro da Comissão Permanente de OrganizaçõesSindicais, da qual era presidente o Deputado Hércules Correia; Sebastião Pereira Leite, do Sindicato dos
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que era Deputado pelo PTB na Assembleia da Guanabara e possuía imunidade
parlamentar.856 Conforme avaliou um ressentido Borer,
“A prisão desses elementos constituiria passo decisivo para reduzir agreve a proporções mínimas, pois sem eles, responsáveis que eram pelacoordenação da parede do Estado e do País, ficariam os grevistas
desarvorados, incapazes de tomar qualquer decisão de profundidade.”857
Todavia, conforme narra o autor, tão logo os sindicalistas haviam sido
acomodados nos carros da patrulha policial naquela fatídica noite de sexta-feira, eis que
surgiria um capitão da Polícia do I Exército, acompanhado de um cabo e de um soldado.
De acordo com esse relato, seguiu-se então uma sucessão de acontecimentos que trazem
à tona a profundidade das contradições daquele regime no início dos anos sessenta:
“Já estavam todos recolhidos às viaturas da Polícia para serem trazidos àD.P.S., quando surgiu o Capitão Hermes da Fonseca, da Polícia do I
Exército, que se fazia acompanhar de um cabo e um soldado. Essesmilitares assestaram suas armas automáticas contra as patrulhas,impedindo seu deslocamento e exigindo a libertação dos detidos. O
policial a isso se recusou, argumentando que só cumpriria ordememanada da autoridade competente, no caso a Chefia de Polícia ou D.P.S.Logo depois chegava ao local um choque armado da Polícia do Exército,sob o comando do mesmo Te[enente] C[oron]el Donato Machado, e o
próprio Secretário do Trabalho, Sr. Pinheiro Neto, que insistiram nalibertação dos grevistas. Mediante ordem da D.P.S., após entendimentoshavidos com a Chefia de Polícia, foi autorizado o relaxamento dadetenção. Nesse momento, a patrulha do I Exército, sob aclamação dosgrevistas, assestou suas armas contra os policiais e ordenou que os
próprios grevistas abrissem as portas das viaturas e dessem liberdade aseus companheiros.”858
Ou seja, não só tropas militares enfrentaram-se diretamente com o aparelho policial da
Guanabara, como acabaram por humilhar os agentes da polícia política carioca, ao
determinar que os próprios grevistas libertassem seus companheiros.
Mestres e Contra Mestres na Indústria da Fiação e Tecelagem da Guanabara; Jorge de Castro, do mesmo
Sindicato; Ernesto Costa Fonseca, do Sindicato Nacional dos Aeronautas; José Pereira de Santana,Secretário Geral do Sindicato dos Mestres e Contra Mestres na Indústria da Fiação e Tecelagem daGuanabara; João Elias Barbosa, Secretário do Sindicato Nacional dos Contra-Mestres, Moços Remadoresem Transportes Marítimos; Carlos Sá Pereira, Presidente do Sindicato do Petróleo do Pará, Amazonas eMaranhão; Valdemar Monteiro da Silva, Presidente do Sindicato Nacional dos Carpinteiros Navais daMarinha Mercante; e José Alves Campos, conselheiro do Sindicato Nacional dos Trabalhadores nasIndústrias Gráficas. Idem, ibidem, p.3-4.856 Presumidamente comunicou-se com outras lideranças políticas e se dirigiu ao Comando do I Exército,localizado no bairro de São Cristóvão.857 Idem, ibidem, p.4.858 Idem, ibidem, p.4.
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Não obstante o imprevisto descrito acima, Borer assegurou aos seus superiores
hierárquicos que esses “atos ilegais” e “de violência” do I Exército não impediram a
repressão à greve geral. Segundo o mesmo, foram feitas ainda duzentas detenções de
outros líderes sindicais, “ativistas e agitadores” que promoviam reuniões com as bases
operárias nos sindicatos de alfaiates, marceneiros, taifeiros, eletricistas e dos frios. Os“elementos de menor expressão foram logo soltos”, e sabe-se que mesmo alguns
daqueles libertados pelas tropas do I Exército, como Rafael Martinelli, acabariam presos
de novo, ficando alguns dias no xilindró, ao lado do também ferroviário comunista
Demisthóclides Batista, o “Batistinha”.
Além do mais, patrulhas da polícia estavam nas ruas para conter a ação dos
piquetes desde o meio dia do dia 14, quando se iniciou oficialmente a greve geral. As
áreas a receber maior atenção foram o setor industrial, do Centro à Zona Norte,
especialmente o subúrbio. Regiões de grande concentração popular como a Muda (naTijuca), Praça da Bandeira, Central do Brasil, Estação Barão de Mauá, Cinelândia,
Vigário Geral, Penha, Madureira, Rua Leandro Martins, Rua da Proclamação, Ana
Nery, Avenida das Bandeiras, Largo do Machado e Praia de Botafogo, ficaram sob a
guarda das viaturas.
A greve geral foi decretada a partir do meio dia de 14 de setembro, uma sexta-
feira, mas o movimento foi estendido ao sábado, quando, ao contrário do que se pode
pensar, havia muitas categorias que cumpriam jornadas, como os bancários,
industriários e trabalhadores no transporte público. Um exemplo do que significou essa
greve no sábado pode ser apreendida nesse mesmo relato de Cecil Borer, que conta que
a partir das 5 horas da manhã do dia 15 foi providenciado policiamento para
salvaguardar os estabelecimentos fabris e garantir o “trabalho livre”, conforme se
referiu à “escravidão assalariada” aos sábados. Deste modo, de acordo com essa fonte,
as plantas da Standar Eletric, White Martins, Elevadores Schindler, General Eletric,
Companhia de Cigarros Souza Cruz, Fábrica Corcovado e Moinho Fluminense tiveram
a cobertura policial para que o mais-valor fosse produzido “livremente” no dia em que
até o “Criador” descansou. Explicitava-se, como bem caracterizou Antonio Luigi
Negro, a natureza da “aliança empresarial-policial”.859
859 NEGRO, Linhas de montagem, op. cit., p.44 e 107. PEREIRA NETO, A reinvenção do trabalhismo no‘vulcão do inferno’, op. cit., p.147 e 244.
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6.6 Em 1964, as greves gerais de 1962
A história dessas greves gerais de 1962, conforme já tivemos a oportunidade de
observar no capítulo anterior, foi sendo apropriada por diferentes forças do espectro
político ao longo desses anos críticos, numa disputa pela memória. No contexto
imediatamente anterior ao golpe de 1964, como vimos, estas greves voltariam aaparecer, quando em uma das muitas vezes onde o CGT buscou agitar as massas
trabalhadoras com a palavra de ordem da “greve geral contra o golpe”. Também
voltariam a ocupar novamente as páginas dos Boletins Reservados.
Ao contrário do que alguns teimam em defender, as esquerdas tinham plena
consciência das conspirações levadas a cabo por governadores como Carlos Lacerda,
jornais como O Globo e O Estado de São Paulo, órgãos como o IBAD etc., com vistas a
derrubar o governo Goulart. É claro que isso não é considerado na historiografia
revisionista, como na biografia de Goulart escrita por Jorge Ferreira, que nos diz o
seguinte: “As esquerdas pareciam não ouvir as ameaças feitas de maneira ostensiva
pelos conspiradores. Decididamente, elas não acreditavam na possibilidade de um golpe
de direita, mas, sim, do seu maior aliado, o presidente da República.”860 No que nossa
tese visa modestamente contribuir para o debate historiográfico, acreditamos estar claro
que isso não é exato e que essa parte importante das esquerdas, o movimento operário e
sindical, desde junho de 1962 chamou a palavra de ordem da “greve geral” contra “o
golpe da direita”. A questão mesmo é que talvez a confiança da esquerda em que
Goulart fosse capaz de deter o golpe é que fosse exagerada.
Enquanto isso, os golpistas do complexo IPES-IBAD – de acordo com larga
tradição latino-americana – divulgavam pela mídia que era o próprio Jango que
planejava “um golpe de Estado”; ou que estava sendo “manipulado pelos comunistas”,
tornando-se mero “jogete” nas mãos de “vermelhos” que visavam “submeter um país ao
jugo soviético”, conforme “denunciou” o histérico chefe nacional da UDN, Bilac Pinto,
em janeiro de 1964.861
É inegável que dentro da própria esquerda existiam aqueles que desconfiavam de
intenções chamadas “continuístas” de Jango, um possível “golpe” consumado através da
reforma da Constituição para permitir sua reeleição etc., mas nunca se provou nada
860 FERREIRA, João Goulart , op. cit., p.440.861 “Declarações de Bilac Pinto sobre o perigo de guerra revolucionária.” In. FICO, Carlos. Além dogolpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.280-281.
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nesse sentido em relação ao ex-presidente trabalhista.862 São conhecidas as declarações
de Prestes quando Darci Ribeiro o informou sobre o golpe, mas o fato concreto é que
Goulart não possuía nem mesmo um esquema militar capaz de sustentar o seu governo,
quanto mais um alegado “dispositivo golpista”.
Integrado a um dos esquemas golpistas “realmente existente”, capitaneado pelogovernador Carlos Lacerda, o DOPS da Guanabara registrou as seguintes linhas em um
de seus Boletins Reservados de março de 1964:
“GOLPE DO SR. JOÃO GOULART
O deputado federal da bancada do PTB, Rio G. do Sul, OmarGrafulha, telefonou dia 24.1.64, de Brasília para sua esposa, cunhada deoficial da FAB (QG 5), informando ser ideia fixa do sr. João Goulart daro golpe nas instituições democráticas com o fechamento do Congresso,mas que a bancada do PTB era contra. Esse informe cruza com omanifesto da bancada do PTB dado à publicidade nos jornais do dia 26
de janeiro. Informes de outras fontes, indicam que a época será na primeira quinzena de abril. “O plano” prevê desencadeamento de greves políticas tipo 1962 para a obtenção do plebiscito, com pressão da massacontra o Congresso. O esquema militar do golpe tem como base de apoioo III Exército. Está sendo montado pelo General Assis Brasil, o qual dizter nesse Exército 60 oficiais em postos chaves. Continuamdesenvolvendo-se no III Exército os esquemas de montagem de apoio.Todas as transferências e classificações de oficiais nesse Exército sãofeitas por ordem direta do Gal. Assis Brasil. Não acreditamos no númerode 60 oficiais, acima citado. Foram identificados até o presente, mais oumenos 25, sendo a maioria das unidades de Porto Alegre e SãoLeopoldo.”863
Como se lê, ao apresentar o que seria a “prova” de que Goulart planejava um “golpe”, o
autor, que diz está baseando suas “informações” em uma intercepção de um telefonema
de um correligionário de Jango, conjurou a memória das greves gerais de 1962 como
parte deste “esquema”.
862 Ainda assim, há alguns anos tornou-se lugar comum entre os historiadores profissionais encapar taltese, como pode ser lido em trecho do mesmo livro citado na nota anterior,. “Na verdade, [no início de1964] o presidente dava sinais dúbios de suas verdadeiras intenções, havendo forte suspeita de que eleestaria urdindo um golpe que lhe permitiria um segundo mandato, proibido pela Constituição.” FICO,
Além do golpe, op. cit., p.17, grifo nosso. Em trabalho posterior, o mesmo autor buscou se afastar desterevisionismo histórico, quando escreveu: “A identificação de suas atitudes como causas do golpe de 64seria a base da tese do ‘contragolpe preventivo’, isto é, a suposição de que Goulart pretendia perpetuar-seno poder para além do prazo constitucional e que, por isso, precavidamente, foi deposto antes que elemesmo desse um golpe (a tese também é utilizada em relação aos comunistas). Trata-se de especulaçãoinconsistente não apenas porque é anacrônica: embora alguns episódios indiquem a radicalização das
posições (especialmente o pedido malogrado de decretação do estado de sítio e o episódio do ‘ultimato’de Leonel Brizola ao Congresso Nacional), não há nenhuma evidência empírica de que Goulart planejasseum golpe e todos sabemos que um golpe era planejado contra ele.” FICO, O Grande Irmão, op. cit., p.73.863 Boletim Reservado, n.40, 3 de março de 1964, grifos nossos. Fundo Polícias Políticas. Caixa 481.APERJ.
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Conclusão
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Fazer greves de caráter político não constituía uma grande novidade na trajetória
da classe trabalhadora, e muitas com esse sentido haviam pipocado no país na crise de
agosto de 1961. Além daquelas, ainda fortes na memória da classe trabalhadora de
então, grandes e massivas greves acabaram sempre por assumir conotação política na
história republicana brasileira, mesmo quando calcadas numa pauta “econômica”. Aantológica Greve Geral de 1917 também não representou um desafio político à
República oligárquica então vigente no Brasil? Todavia, em 5 de julho de 1962 se tratou
de um movimento organizado nacionalmente, com um comando unificado, uma pauta
nacional única, ainda que as diversas categorias possuíssem suas próprias demandas.
Em perspectiva, foi um movimento inédito.
Seria essa capacidade política tão somente o resultado das boas relações com o
poder da República? Certamente, quando comparado ao padrão histórico, nunca a classe
trabalhadora havia visto seus representantes frequentando com tanta desenvoltura salõese palácios como durante o governo Goulart. Entretanto, as lideranças da esquerda
sindical não foram ungidas a posições de comando das entidades sindicais pelo Estado,
ao contrário dos pelegos. As “amaldiçoadas” entidades sindicais horizontais, chamadas
“paralelas”, burlando justamente o espírito corporativista da legislação vigente, foram
fundamentais para que aquela “operação greve” fosse desencadeada. Como essa tese
discutiu, as intersindicais estaduais, assim como aquelas já com caráter nacional – como
foi o caso do PUA – estruturaram fóruns e assembleias permanentes que, mantendo as
bases mobilizadas, puderam fazer chegar a ordem da greve pelo país. Porém, não é
recomendável, por outro lado, idealizá-las – pois ao mesmo tempo, acabavam, por um
motivo ou por outro (por exemplo, o acesso aos recursos financeiros advindos do
imposto sindical), acomodando-se à estrutura sindical oficial.
Nas tendências historiográficas discutidas nos dois primeiros capítulos desta
tese, objetivamos demonstrar que, sem distanciar-se da apologética em torno a Era
Vargas, o trabalhismo e seus herdeiros, não é possível compreender a posição assumida
por Goulart e seus próceres políticos diante do desencadeamento da greve política.
Mesmo recorrendo a seu apoio, o movimento, como demonstramos, recebeu oposição
de Goulart, ainda que esta oposição – ao contrário do já mencionado padrão histórico –
não tivesse desembocado em atitudes repressivas. Ao contrário do que afirmam as
visões que retratam Goulart como um ingênuo, o presidente da República sabia que a
greve poderia beneficiá-lo – como de fato ocorreu. Optou por convocar o comando
sindical para Brasília, em operação até então inédita na história do país.
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Por que então se perdeu no tempo a história dessa primeira greve geral nacional
da classe trabalhadora brasileira? Afinal, quem lembra nesses termos daquele 5 de
julho? É claro que nunca um evento como este pode disputar o mesmo lugar no
“Panteón das grandes crises nacionais”, como o são o suicídio de Vargas, ou o próprio
Golpe de 1964. Embora decretada para apoiar as posições políticas do presidente JoãoGoulart em sua tenaz luta contra o Congresso (e pelo poder), a direção política do
movimento sindical brasileiro mostrou-se relativamente autônoma ao decretar aquela
greve geral, o que certamente expressava a posição política assumida pelo PCB e o resto
do movimento nacional-reformista, mas não só. Sem a radicalização da espiral grevista
que se afirmava desde o fim da década anterior, uma grande politização da sociedade
em torno à campanha pelas reformas estruturais, e certo “espírito do tempo” que marcou
aquela década, um movimento nacional de greve para pressionar os poderes da
República seria implausível.864 Nos anos 1960 a visibilidade da luta operária nos grandes centros urbanos
nacionais, em palcos da luta política como eram (e são) as cidades do Rio de Janeiro,
São Paulo, Recife e Porto Alegre, aproximava seus protestos do cotidiano e,
principalmente, do processo político nacional. Havia, antes de mais nada, no contexto
internacional, um certo “espírito de época”, marcado pelas lutas de libertação nacional,
pela Revolução Cubana, pela crença rara de que as pessoas comuns podem mudar o
rumo das coisas; em suma, podem “fazer a História”, para usar uma imagem comum
daquela época.
Ao mesmo tempo, a própria forma da política na “época do populismo” em certo
sentido se dividia por um lado entre aqueles que apoiavam, e/ou queriam
instrumentalizar essas lutas, e por outro, os que imputavam-lhe a condição de um
“delito criminal”, tendência, aliás, de longa duração em nossa história nacional. 1964
veio pra acabar com essa forma da política, ou pelo menos impôs a última alternativa,
com todos os poderes de que dispunha o Estado brasileiro. No fim das contas, o protesto
operário voltou a eclodir nos anos finais da ditadura e na transição para a democracia
nos anos 1980. Mas quando o protesto operário voltou à cena, essas histórias das lutas
no pré-1964, como nas greves discutidas aqui na tese, haviam ficado para trás.
864 Nestes tempos que correm, inúmeras greves gerais sacodem os governos no Sul da Europa,assinalando o início do novo século – deixando constrangidas muitas respeitáveis vozes acadêmicas dovelho continente, que ainda ontem haviam decretado o fim destes movimentos baseados nessas “ideias doséculo XIX”.
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Nesse intervalo, como já é um truísmo, a emergência do protesto operário
afirmou sua identidade como Novo Sindicalismo. Na ideia de “Novo” carregava-se uma
representação social calcada na noção de uma cisão, que não era só com a pelegada
imposta pela ditadura na máquina sindical, mas também em oposição “a tudo que havia
antes de 1964”, como definiu o então sindicalista Luis Inácio Lula da Silva emconhecida entrevista.865 Nessa dialética entre memória e esquecimento, alguns
depoimentos de velhos dirigentes sindicais nos indicam algumas explicações do porquê
destas greves terem se perdido no tempo.
Em conversa conosco, o ex-líder ferroviário Rafael Martinelli se recordou das
greves políticas de 1962, mas não de muitos detalhes, nem mesmo de sua prisão por
alguns dias durante a greve de setembro. Foi possível perceber que frente a uma intensa
atividade militante que conheceu diversas fases, os episódios por nós destacados nesta
tese não mereciam um destacado lugar em sua memória. Tendo iniciado suas atividadescomo líder de sua categoria desde os anos 1940, se tornou o mais importante líder
ferroviário do país, capaz de paralisar o sistema ferroviário nacional, como aconteceu na
“Greve da Paridade” em 1960, e na aqui estudada greve geral de julho de 1962. Após o
golpe de 1964, Martinelli se encontraria com a alternativa da luta armada ao lado de
Carlos Marighella e sua ALN, tornando-se fundador e dirigente da organização até
1970, fundador do PT em 1980, e hoje, numa intensa militância como coordenador do
Fórum dos ex-Presos Políticos e Perseguidos de São Paulo.
O mesmo fenômeno encontramos no rico depoimento do comandante Paulo de
Mello Bastos, que embora em sua belíssima obra memorialística A caixa preta do golpe
de 64 anote a “primeira greve política do país”,866 em entrevista realizada por nós em
janeiro de 2011 não assinalou qualquer informação extraordinária sobre sua participação
naquelas greves nacionais. A paralisação da aviação comercial foi qualquer coisa de
significativo para o êxito político daquelas greves gerais de julho e setembro de 1962,
destacada em todos os relatos colhidos na imprensa. Mello Bastos tem uma razão para
deixar aqueles episódios um pouco de lado em suas recordações: é que em meados de
1963, o CGT ameaçaria mais uma vez decretar greve geral em razão da sua demissão da
VARIG, no dia do seu aniversário (25 de maio).
865 Lula: entrevistas e discursos. São Paulo: NÚCLEO AMPLIADO DE PROFESSORES DO PT (SÃOPAULO), 1981. Para uma crítica a essa mitologia histórica, MATTOS, Novos e velhos sindicalismos, op.cit.866 MELLO BASTOS, A caixa preta do golpe de 64, op. cit., p.126.
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O comandante, como presidente da Federação dos Trabalhadores em
Transportes Aéreos e membro da direção da correspondente Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Transportes Marítimos, Fluviais e Aéreos, não poderia ser demitido,
em virtude da sua imunidade sindical, o que, após negociações entre o próprio governo
federal e o presidente da empresa, Ruben Martin Berta, contribuiu para suareadmissão.867 A greve política, marcada para o dia 5 de junho de 1963, acabaria sendo
suspensa, tendo o CGT desta vez atendido o apelo do presidente Goulart.868 Mello
Bastos esteve no centro dos acontecimentos políticos no início de 1964, tendo feito
parte do restrito núcleo de sindicalistas do CGT – ao lado dos chamados secretários
políticos: Hércules Correa, Osvaldo Pacheco, Clodsmidt Riani, Dante Pelacani – que
articulavam diretamente a frente política com Goulart, situação que Weffort denominou
de “intimidade palaciana”.
“Houve realmente essa greve, mas não foi assim... Foi apenas um gesto,decretado, publicado..., era uma coisa política. Praticamente foi umagreve burocrática! Quer dizer, foi decretada, todo mundo concordou, acoisa funcionou mais ou menos na direção que nós queríamos, mas agreve ficou só no papel.”869
Esse intrigante depoimento, em flagrante contraste com alguns dos resultados
desta tese, serve para colocar certo limite à saudável revalorização das lutas dos
trabalhadores no período pré-1964. Afinal, de que vale esse resgate se acabássemos por
produzir uma outra apologética? Não reconhecer também as limitações daquela
experiência histórica da classe trabalhadora não faria mais do que criar uma visão
mistificadora cujo resultado seria debilitar a compreensão do próprio golpe de 1964.
De forma bem diferente, contudo, o ex-líder bancário Luiz Viegas da Motta
Lima, também parte da direção do CGT, lembrou detalhes daquelas greves políticas, em
especial a de julho de 1962.870 Referiu-se às condições políticas que permitiram ao
movimento sindical de esquerda realizar aquela greve geral, como a intensa politização
da sociedade, a representatividade dos sindicatos e a espiral grevista. Enfatizou que só
com a pauta política, San Tiago Dantas, Presidencialismo etc., os sindicalistas nãoteriam conseguido êxito naqueles movimentos; era necessário apresentar pautas que
tocassem as condições objetivas da vida da classe trabalhadora para que esta
867 Apesar de readmitido, nunca mais pilotaria uma aeronave da VARIG.868 Idem, ibidem, p.146-152.869 Entrevista nossa com Paulo de Mello Bastos, em 18 de janeiro de 2011.870 Entrevista nossa com Luiz Viegas da Motta Lima em 27 de janeiro de 2012.
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encampasse movimentos políticos como foram aquelas greves. Além de pautas
específicas das categorias, a demanda pela Lei do 13º Salário unificava o interesse da
classe.
Lembrou ainda aquele detalhe pitoresco da greve de julho, que era o poder do
seu comando em determinar qual aeronave poderia levantar vôo no dia da greve, poisvivenciou pessoalmente os acontecimentos, como parte da comissão que se dirigiu a
Brasília. Aliás, indicou que o comandante Mello-Bastos havia feito parte desta mesma
comitiva, informação que não pudemos confirmar em nenhuma fonte, nem no
depoimento do ex-líder sindical, como já vimos.
“Era uma tripulação escolhida a dedo, pelo Comando Geral deGreve. Nós fomos num avião daqueles turbo hélice, naquela época um
baita avião, com apenas quatro pessoas dentro e a tripulação. Chegamoslá e o avião ficou esperando. Nós fomos atendidos pelo Jango.
Conversamos com ele. Detalhes dessa conversa..., o que é que se tratou láetc., foram os seguintes: a preocupação maior do Jango era que a grevenão fosse estendida e não houvesse uma radicalização, em função doêxito da greve. Por que ele tinha receio, ainda haveria a eleição para onovo primeiro-ministro.”871
Com muita descontração, lembrou de como os membros do piquete de greve
enfrentaram o governador Lacerda, dentre os quais destacou o memorável episódio
envolvendo Cainã, como discutimos no capítulo sexto.
Quanto à nossa contribuição no debate historiográfico, a já bastante debilitada
noção de sindicalismo populista recebeu neste trabalho mais uma crítica. Afinal, caso
aqueles sindicalistas de esquerda fossem apenas burocratas pouco capazes de mobilizar
suas bases para uma ação eminentemente política, aquela greve geral de julho de 1962
teria sido um enorme fracasso.
Em relação à historiografia sobre o Governo João Goulart e o Golpe de 1964,
acreditamos que nossa contribuição tenha sido jogar luz sobre um momento
fundamental, quando Jango se lançava na luta contra o parlamentarismo, no primeiro
ano de seu governo. Ao contrário de uma “oportunidade perdida”, como teima em
afirmar a historiografia revisionista discutida no primeiro capítulo desta tese, a
instauração do sistema de gabinete foi não só um “golpe branco” (como se alegou
àquela altura), mas também um celeiro para a perpetração de outros “golpes
parlamentares”, como se viu na crise ministerial de junho/julho de 1962 – quando
871 Idem.
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setores, que em 1964 seriam vitoriosos, já se movimentavam para consumar a
esterilização do bloco nacional-reformista liderado pelo Presidente da República,
impondo-lhe um gabinete reacionário. Em 1962, a atuação do movimento operário
sindical foi decisiva para que Goulart bloqueasse tal iniciativa e empreendesse um passo
decisivo na liquidação do parlamentarismo. Como tentamos demonstrar, na ocasiãodaquela crise ministerial, portanto, já se esboçava um golpe, que, contudo, não foi
efetivado em função da relação de forças sociais favoráveis a Goulart, expressa tanto no
posicionamento de militares nacionalistas, quanto na greve geral em tela.
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Anexos
7/26/2019 Crise orgânica e ação política da classe trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de 1962)
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Anexo 1
Divisão de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ.
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Anexo 2
Divisão de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ.
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Anexo 3
Fundo Polícias Políticas (APERJ).
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Anexo 4