Crônica

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Crnica A triste histria de uma galinha pretaMOACYR SCLIAR Folha de S.Paulo- Cotidiano -18/08/03 Era uma galinha preta, e era uma galinha triste. Triste porque galinha, claro --estamos falando de aves nervosas cujo cacarejo traduz uma instabilidade emocional desconhecida na espcie humana--, mas triste sobretudo porque preta. Se vivesse s entre galinceos, a galinha no se importaria com sua cor, ainda que esta contrastasse com as multicoloridas penas de suas colegas; mas, criada no meio de humanos, a pobre sabia do estigma que carregava. Preta, tinha seu destino traado: mais cedo ou mais tarde seria sacrificada naquele ritual conhecido como despacho. A certeza dessa morte perturbava profundamente a pobre criatura. Diferente de suas colegas, recusava-se a botar ovos; e quando lhe perguntavam por que rejeitava a maternidade, respondia que no queria deixar pintinhos rfos no mundo. Pela mesma razo, fugia dos galos; um deles mostrava-se at apaixonado e fazia-lhe propostas, mas a galinha as recusava: quem est condenada, dizia, no pode entregar-se ao amor. A galinha preta no sabia o que o futuro lhe reservava. Um dia, mos vigorosas agarraram-na. Pronto, pensou, chegou minha hora. Achou que ia ser levada a uma encruzilhada qualquer, para o to temido sacrifcio; em vez disso, transportaram-na at um recinto que estava cheio de jovens. Uma senhora discursava ali e a galinha, aturdida, j se perguntava o que iria acontecer quando, de sbito, jogaram-na contra a oradora. Foi um momento de glria, de inesperada glria. Por um instante, dezenas de olhos acompanharam sua trajetria; no curto trajeto entre a mo contestadora e a figura feminina que, para muitos ali, encarnava o poder, a galinha era o foco de todas as atenes. Outras bateriam as asas, outras cacarejariam de susto; no a galinha preta. Inesperadamente transformada em projtil, ela s esperava estar altura do papel que a histria lhe designara. O alvo no foi atingido, a galinha caiu no cho, estabeleceu-se a maior confuso, com gente correndo de um lado para outro. Ela refugiou-se em um canto e ali ficou, at que caiu a noite. Tudo calmo, tudo quieto, saiu do esconderijo e dirigiu-se para a rua. Era outra galinha: orgulhosa, impvida, avanava sem temor, gozando a glria recm-adquirida. Pela calada vinham caminhando dois homens, pobres, esfarrapados. A galinha mirou-os, altaneira. Esperava que se afastassem, que lhe abrissem respeitosamente caminho. No foi isso que aconteceu. Os dois se olharam e, como que agindo de comum acordo, jogaram-se sobre a galinha. E a, como diria Clarice Lispector, mataram-na, comeram-na, e passaram-se anos.Moacyr Scliar escreve um texto de fico baseado em matrias publicadas no jornal.

conto

Uma Histria de Tanto AmorClarice LispectorEra uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios ntimos. A galinha ansiosa, enquanto o galo tem angstia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harm, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para no perder a primeira das mais longquas claridades e cantar o mais sonoro possvel. o seu dever e a sua arte. Voltando s galinhas, a menina possua duas s dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha. Quando a menina achava que uma delas estava doente do fgado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma mximo de doenas, pois o cheiro de galinha viva no de se brincar. Ento pedia um remdio a uma tia. E a tia : "Voc no tem coisa nenhuma no fgado". Ento, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remdio. A menina achou de bom alvitre d-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contgios misteriosos. Era quase intil dar o remdio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o cho e comendo porcarias que faziam mal ao fgado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. No lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia no eram usados assim como no se usavam roupas ntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remdio, um lquido escuro que a menina desconfiava ser gua com uns pingos de caf - e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda no tinha entendido que os homens no podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha tm misrias e grandeza (a da galinha a de pr um ovo branco de forma perfeita) inerentes prpria espcie. A menina morava no campo e no havia farmcia perto para ela consultar. Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina no entendera que engord-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeava o trabalho mais difcil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gria o termo galinha tinha outra acepo. Sem notar a seriedade cmica que a coisa toda tomava: - Mas o galo, que um nervoso, quem quer! Elas no fazem nada demais! e to rpido que mal se v! O galo quem fica procurando amar uma e no consegue! Um dia a famlia resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, j no existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:

- Ns comemos Petronilha. A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha no corresponde ao amor que se lhe d e no entanto a menina continuava a am-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua me que no gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, ento, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua me percebeu tudo e explicou-lhe: - Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de ns. Daqui de casa s ns duas que no temos Petronilha dentro de ns. uma pena. Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frgil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes foges de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e ps mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manh do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de to morta, a menina s ento, entre lgrimas interminveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido. Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina. O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e no romntico; era o amor de quem j sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina no apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pr-cincia do prprio destino e no aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha sozinha no mundo. Mas a menina no esquecera o que sua me dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da famlia, comeu sem fome, mas com um prazer quase fsico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pago que lhe foi transmitido de corpo a corpo atravs dos sculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeio tinha cimes de quem tambm comia Eponina. A menina era um ser feito para amar at que se tornou moa e havia os homens.

Noticia

Estudantes jogam galinha preta contra Marta SuplicyFolha de S.Paulo, 12.ago.2003

A prefeita Marta Suplicy (PT) foi surpreendida por uma galinha preta durante evento de comemorao dos 100 anos do Centro Acadmico XI de Agosto, na Faculdade de Direito do Largo So Francisco, centro de So Paulo. Durante o evento, um estudante jogou a galinha viva contra Marta. A ave no chegou a atingi-la, mas a prefeita mostrou-se irritada. No final do evento, Marta --candidata reeleio-- disse que a manifestao foi organizada pelo PSDB. Os estudantes tambm chamaram a prefeita de "Martaxa", uma referncia criao de diversas taxas municipais, como a do lixo. Notas de dinheiro foram exibidas pelos manifestantes. Marta afirmou, em seu discurso, estar surpresa com as vaias. " a primeira vez que levo vaia aqui. Diretor a gente geralmente contra, mas prefeito nem sempre", disse. Marta chamou o estudante que atirou a galinha para conversar com ela. "Aqui o centro da democracia, vem me falar por que voc est bravo", disse, ao estudante identificado como Ernesto, do primeiro ano do curso de direito. O universitrio, no entanto, foi interrompido por uma diretora do Centro Acadmico que pediu desculpas prefeita. Ao deixar o local, Marta responsabilizou o PSDB pelo protesto feito com a galinha preta.