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CRÔNICAS DE SCIELLE Volume 1: CRISE DE FÉ Raramente aquela parte de Sinnaton era acometida por tanta agitação. O barulho de passos, cada vez mais ruidosos, o burburinho, o galope de cavalos, tudo isso era pouco característico a esta região um pouco mais afastada da cidade, ao sul. O palácio, onde o Rei Androd realizava seus banquetes e celebrações, ficava mais ao leste. No entanto, o barulho que vinha foi o suficiente para acordar Cassius, que dormia em uma viela próxima à melhor estalagem. Resolveu se levantar para ver do que se tratava. Não se importava em perguntar a alguém; como estava dormindo na rua, coberto de trapos que mal lhe aqueciam à noite, duvidou que alguém fosse se dignar a responder algo de qualquer forma. O burburinho, que antes parecia com zumbido, começou a ficar mais claro. Eram palavras e tons de assombro misturados com reverência. O galope de cavalos também começava a aumentar a intensidade com a proximidade. Cassius, ainda pouco desperto, enxergou quatro pessoas, todas vestindo trajes negros, montados a cavalo. Um deles era calvo, de brinco e estava mais à frente, não escondendo que embainhava duas facas. Parecia ser o líder do bando. Outro, um pouco mais atrás, com uma barba preta grossa, um capuz cobrindo sua cabeça, e constituição física um pouco mais avantajada, exibia um semblante de desprezo a todos os passantes, estava armado com uma lança. O seguinte possuía longos cabelos castanhos-claro e tinha traços mais finos, mas era masculino, dotado de duas machadinhas amarradas nas costas. E por fim, um de pele negra, muito forte e torso nu, que segurava uma clava e parecia zelar pela segurança da retaguarda dos demais. Era rara a presença de viajantes em Sinnaton; em todos os anos que esteve nas ruas, Cassius nunca percebeu nenhum forasteiro chegando. No entanto, Sinnaton não possuía tradição guerreira, era uma cidade fácil de ser tomada, inclusive era admirável que ainda não havia sido. A única manifestação bélica da região se dava pelos guardas do palácio. De resto, apenas um povo que sobrevivia de agricultura e serviços manuais (ferraria, tecelagem, manufatura).

Cronicas de scielle crise de fé

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Primeiro conto da princesa guerreira secreta Scielle de Sinnaton, e as tribulações e desafios que ela passa.

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CRÔNICAS DE SCIELLEVolume 1: CRISE DE FÉ

Raramente aquela parte de Sinnaton era acometida por tanta agitação. O barulho de passos, cada vez mais ruidosos, o burburinho, o galope de cavalos, tudo isso era pouco característico a esta região um pouco mais afastada da cidade, ao sul. O palácio, onde o Rei Androd realizava seus banquetes e celebrações, ficava mais ao leste. No entanto, o barulho que vinha foi o suficiente para acordar Cassius, que dormia em uma viela próxima à melhor estalagem. Resolveu se levantar para ver do que se tratava. Não se importava em perguntar a alguém; como estava dormindo na rua, coberto de trapos que mal lhe aqueciam à noite, duvidou que alguém fosse se dignar a responder algo de qualquer forma.

O burburinho, que antes parecia com zumbido, começou a ficar mais claro. Eram palavras e tons de assombro misturados com reverência. O galope de cavalos também começava a aumentar a intensidade com a proximidade.

Cassius, ainda pouco desperto, enxergou quatro pessoas, todas vestindo trajes negros, montados a cavalo. Um deles era calvo, de brinco e estava mais à frente, não escondendo que embainhava duas facas. Parecia ser o líder do bando. Outro, um pouco mais atrás, com uma barba preta grossa, um capuz cobrindo sua cabeça, e constituição física um pouco mais avantajada, exibia um semblante de desprezo a todos os passantes, estava armado com uma lança. O seguinte possuía longos cabelos castanhos-claro e tinha traços mais finos, mas era masculino, dotado de duas machadinhas amarradas nas costas. E por fim, um de pele negra, muito forte e torso nu, que segurava uma clava e parecia zelar pela segurança da retaguarda dos demais.

Era rara a presença de viajantes em Sinnaton; em todos os anos que esteve nas ruas, Cassius nunca percebeu nenhum forasteiro chegando. No entanto, Sinnaton não possuía tradição guerreira, era uma cidade fácil de ser tomada, inclusive era admirável que ainda não havia sido. A única manifestação bélica da região se dava pelos guardas do palácio. De resto, apenas um povo que sobrevivia de agricultura e serviços manuais (ferraria, tecelagem, manufatura).

O homem que vinha á frente fez um sinal e todos os cavalos param. Ele desceu do cavalo e questionou um dos cidadãos, um ancião que acompanhava a chegada. “Com sua permissão, senhor, meu nome é Chaz, meu grupo e eu nos denominamos Quatro Elementos. Viemos da longínqua cidade de Celeris para uma cruzada e devemos ter nos perdido. Poderia nos informar onde estamos?”.

“Aqui é Sinnaton, milorde Chaz. Lar do rei Androd e da princesa Scielle.” “Sinnaton? Oh não. Acabamos nos desviando mais da rota do que pensávamos. Agradeço pela sua ajuda, senhor. Visto que nossa jornada foi longa e exaustiva, creio que eu e meus homens precisamos de um lugar para que possamos repousar e nos alimentar. Sabe nos indicar tal lugar?”

“Claro, milorde. Siga sempre reto mais uns minutos, há uma boa estalagem que lhe fornecerá alimento, aposentos e banho quente, se necessário. Perdoe nosso povo, não estamos acostumados com gente de fora.”

“Não há incômodo algum. Venham, Elementos. Vamos aproveitar da gentil acolhida deste povo.”

“Não sei dizer bem o que”, pensou Cassius enquanto os eventos se desdobravam ao seu redor. “Mas esses quatro sujeitos não são do tipo que eu simpatizaria. Tamanho o interesse do povo nestes sujeitos, o rei Androd logo estará sabendo da existência desses quatro, e tentará manipulá-los para ganhar confiança. E “Elementos”? Quem em sã consciência denominaria um grupo assim? Melhor eu acompanhá-los e ver o que eles planejam”.

A estalagem a que o ancião falou de fato não era muito distante. Por isso, ao seguir os Elementos, Cassius conseguiu alcançá-los mesmo com os pés sem calçados. Apoiou-se na janela e espiou o que ocorria dentro da estalagem, no momento em que os quatro homens foram recebidos por Keira, dona da estalagem.

“Saudações, senhora”, disse Chaz, de forma pomposa, como se quisesse que todos na estalagem soubessem que ele estava entrando-a. Um esforço desnecessário, pois apenas Keira se encontrava à beira do balcão. “Meu nome é Chaz, lorde da cidade de Celeris, e esses são meus soldados, Thonar, Dideron e Zandus. Foi-nos dito que esta estalagem serviria como aposento, correto?”“Lhe disseram corretamente, moço”,Keira respondeu aos homens, com um olhar desconfiado. Já havia recebido bandoleiros e saqueadores antes, e esses homens possuíam os mesmos trejeitos desse tipo de gente, apesar do líder clamar ser um lorde. “São 15 moedas de prata por noite, por pessoa. Direito a uma cama, banho e desjejum.” Chaz sorriu, olhou para seus homens com cumplicidade, que sorriram de volta. Em seguida retirou um pingente por debaixo de sua túnica. O pingente consistia de uma joia vermelha com um círculo amarelo ilustrado.

“Oh, senhora,” Chaz falou de forma suave, enquanto exibia o pingente para que Keira o fitasse, balançando-o. “Com toda certeza, uma mulher de bom gosto como a senhora abriria uma exceção para o Lorde de Celeris e seus comandados e nos deixar ficar sem custo algum.”Dideron, o de pele negra, olhava em volta, se certificando de que não havia testemunhas do que estava para acontecer. Cassius estava escondido na janela, de uma forma que não conseguissem vê-lo. Chaz continuava balançando a joia para que Keira a encarasse. Ela continuava olhando com incredulidade, franzindo o cenho.

“Exceção? Tem a petulância de pedir por sustento grátis? Nem mesmo o rei e a princesa possuem tal privilégio aqui, que dirá um forasteiro de lugar nenhum e seu bando de cães traiçoeiros.”, gritou Keira. Chaz não titubeou e seguiu mostrando o pingente para Keira. Um brilho amarelado saiu do pingente e a expressão de Keira mudou aos poucos. Ela parecia mais calma, menos exaltada. “Então, senhora, peço que reconsidere nossa oferta e nos deixe ficar pelo módico preço de nada. E então veremos o que podemos fazer por esta cidadezinha abandonada pelos Sephiroths”, Chaz sorriu.

“Claro, rapazes. Podem ficar à vontade. Tudo que precisarem estará a seu dispor”, Keira falou, agora com um tom de voz mais amigável e ameno, até mesmo sorrindo. Ela soava bem

diferente de alguns minutos atrás. Os Elementos riam, dado o sucesso de sua tramoia.“E a Gema de Anrais faz mais uma vítima!”, exclamou Zandus. Chaz fez sinal positivo com a cabeça.

“Foi destino termos dado ouvidos àquele mercador que nos disse onde encontrar essa joia. Nada pode nos deter agora.”

Cassius arregalou os olhos, não acreditando no que havia visto. Retirou-se de onde estava, pois não queria que eles investigassem demais e acabassem o encontrando. Não conhecia a Gema de Anrais, mas acabou de presenciar seus efeitos. Precisava dar um jeito de avisar alguém, talvez o Rei.

No outro dia, a história dos quatro forasteiros de Celeris se espalhou. Suas vestimentas e costumes eram muito diferentes do que se tinha aparecendo normalmente em Sinnaton. Ao acordar, Cassius percebeu que os seus vizinhos – ou pelo menos as pessoas que moravam próximas de onde ele dormia – estavam discutindo incessantemente sobre eles. Haviam dominado todas as conversas e suscitado a curiosidade de todos.

“Viu o Dideron? Que homem vistoso”, falava uma moça para a mãe dela. “O que é isso menina? Dê-se ao respeito. Além do mais, todos sabem que Chaz é uma divindade em forma terrena”, replicou a mãe da moça, com um ar encantado nos olhos.

“Imagino que eles devam ter enfrentado todo o tipo de monstros e feiticeiros durante a viagem. Devem ser poderosíssimos!”, falou um velho na taberna próxima à estalagem, para mais dois sentados numa mesa. “Cada um deles é individualmente forte. Juntos podem vencer exércitos, possivelmente. Nem mesmo os Seis Sephiroths devem ter poder pra detê-los!”, respondeu um dos dois.

Cassius sacudiu a cabeça. Não havia caído na conversa deles, ainda mais que os viu usando de magia para subornar Keira. Sabia que eles não eram boa gente, mas o que poderia fazer? Toda a cidade estava encantada com eles.

Nisso, um marchar inicialmente de longa distância se aproximava da estalagem. “Eu conheço esse barulho.”, falou um dos cidadãos próximos a Cassius. “Eu também. É a cavalaria do Rei Androd!”, disse o outro que o acompanhava.“Será que ele veio conhecer os guerreiros de Celeris?”“Com certeza. Ele pode querer aproveitar um pouco da lenda que eles criaram aqui aliando-se a eles.”Como em resposta aos cidadãos, a cavalaria do Rei é revelada por trás da marcha. O Rei estava dentro de uma carruagem, não podendo ser visto. Em volta dele, seis cavaleiros de armadura. A carruagem então cessa sua viagem, parando em frente à estalagem. Os rumores estavam corretos; o rei queria conhecer os viajantes.

A porta da carruagem se abre e dela sai inicialmente a Princesa Scielle. Seus cabelos negros longos e olhos verde-claro serenos chamaram a atenção de todo o povo que estava em volta. “É a princesa Scielle”, exclamou uma mulher que olhava a comitiva.

“ Ela é tão linda”, replicou um homem próximo a ela. “Será que vão prometer a mão dela para Lorde Chaz?” “Bobagem. Ela deve estar de casamento marcado com outro homem, mais rico e poderoso.”

Cassius olhou para a figura majestosa da princesa e um misto de melancolia e raiva apossou-se de seu corpo. Afastou tais pensamentos, pois era a primeira vez que a princesa vinha para esses lados; raramente ela deixava o castelo. Não tinha como ambos se conhecerem.

Logo atrás dela, um homem mais velho, com a coroa na cabeça, torso nu, mas uma capa cobrindo o corpo, rosto calmo e amigável, sorridente. O Rei. Desta feita, Cassius não quis saber, pois tinha sua própria opinião a respeito.Para saber do que se tratava tamanha comoção, Chaz e os seus guerreiros logo se posicionaram na porta da estalagem. O líder do bando esboçou um largo sorriso, não se importando com a multidão que a presença do rei havia atraído.

“Saudações, Majestade”, disse Chaz, se curvando ante a presença do monarca. Os demais Elementos também estavam ajoelhados, embora Dideron encarasse a princesa, que notou a atenção indevida e se sentiu nitidamente desconfortável .“Estamos todos encantados em conhecer o governante dessa terra tão acolhedora.”

“Saudações, milorde Chaz.”, falou o rei. “Sua chegada e a de seus companheiros, os autodenominados Quatro Elementos, foi narrada em toda Sinnaton. Fui obrigado a conhecer tão falados visitantes. Esta é minha filha Scielle.”

Chaz tomou a mão de Scielle e a beijou. “Dona de uma beleza tão lendária quanto a nobreza do rei.”, adicionou. Scielle, ainda visivelmente constrangida, tratou de retirar a mão assim que possível.

“Encantada. Qual o motivo da visita dos senhores?”,perguntou Scielle, sem olhar nos olhos dos guerreiros.“Nada de mais. Basicamente estávamos indo para a cruzada em Simaria. No entanto, somos melhores guerreiros do que navegadores e acabamos caindo aqui. Logo estaremos partindo.”

Chaz então retirou novamente o pingente de sua túnica e começou a balançar a Gema de Anrais na face do rei.

“Majestade, gostaríamos de antes de partir visitar o seu castelo e conhecer suas riquezas. Temos certeza que Vossa Majestade deve ter muita coisa para nos mostrar e nos oferecer.” “Do que ele está falando?”, Scielle questionou, enquanto observava os homens de Chaz sorrirem, como se tivessem ciência do que ia acontecer. Scielle, desconfiada, observava o ritual que se desenredava à sua frente, mas estava no escuro. O único que tinha uma noção era Cassius, que de longe acompanhou tudo assombrado; os bandoleiros de Celeris estavam prestes a usar a assim denominada Gema de Anrais no rei e dominá-lo. “Parem esse homem!”, gritou Cassius, sem êxito, do meio da multidão; a Gema emitiu o mesmo brilho amarelado e a expressão do rei mudara. “Ora, mas claro, Milorde Chaz. O senhor e seus homens podem ir junto comigo em minha carruagem. Eu peço a Scielle que vá a cavalo”, disse o rei, com uma expressão tranquila.

“Pai, está louco? Vai deixar esses desconhecidos entrarem em nosso castelo?”, perguntou Scielle, incrédula das palavras de seu pai. “Não seja boba Scielle. Com certeza, esses nobres senhores de Celeris têm muito a nos dizer e uma aliança será de benesse para ambos os lados.” “Isso é ultrajante”, Scielle levou as mãos ao rosto. “Não está vendo quão inoportuno isso é, pai? Não posso tomar parte nisso”. “Vossa Majestade é um homem de sabedoria. Aceito de bom grado seu convite sobre o castelo. Irei dentro da carruagem com o senhor e meus homens nos seguirão a cavalo”, Chaz disse.

“Parem-no!”, tornou a gritar Cassius. Sua súplica havia sido em vão. Embora muitos se viraram para saber de onde o grito vinha, inclusive a princesa, Cassius foi rendido pelos guardas do rei e silenciado. Scielle franziu o cenho ao observar a cena. “Vamos, milorde, entre em minha carruagem”, deu de ombros o rei sobre toda a comoção que acabava de acontecer. “Não...”, Cassius ainda tentava argumentar infrutiferamente. “É tarde demais.”

Cassius é liberado pelos guardas, mas permanece no chão, melancólico. Com um aceno, Scielle pediu ao guarda que ajudasse o mendigo a se erguer.

“Está certo, pai. Pode ir à frente com o tal milorde na carruagem. Um guarda fica aqui comigo e me leva de volta ao castelo em breve. Os últimos acontecimentos me deixaram abalada.” “Que assim seja. Vamos, guardas. Mostraremos ao Milorde Chaz nosso palácio”, replicou o rei, para surpresa da princesa. A surpresa se deve mais ao fato dela ter concordado com ela ter permanecido pra trás. Seu pai nunca havia permitido que ela ficasse à própria sorte na cidade. Sinnaton não era lugar para uma moça como ela, ele costumava dizer. O rei sempre foi amedrontado, embora ela soubesse se cuidar melhor do que ele pensava. No entanto cá estava ela, agora apenas acompanhada de um guarda.

Com a partida do rei e os Elementos, uma parte da multidão se dispersou. O restante ficou para ver a princesa. Ela se dirigiu ao mendigo, que tentava retirar a poeira de seu corpo, e tentava se recompor.

“Está bem, cidadão? Sinto pela brutalidade de meus guardas, mas não podemos arriscar. Muita gente pode querer assassinar o rei ou a princesa.” “Estou bem, madame. Um pouco chacoalhado, mas nada quebrado. Grato pela preocupação, mas não achei que a princesa falasse com cidadãos das ruas.”“Eu tenho sangue real, vocês são minha responsabilidade. Você havia gritado para que o ‘milorde’ fosse impedido... sabe de algo que eu não sei? E sabe por quê meu pai foi tão caridoso com os forasteiros, sendo até conivente em me deixar aqui?”

“Sim, madame, eu sei.”, continuou Cassius, já recomposto. A multidão pouco a pouco se dissipava, alguns vislumbravam a princesa e tentavam chegar perto, mas o guarda grunhia e os afastava. Isso permitiu aos dois conversarem sem interrupção. “Seu pai foi vítima do controle mental de uma joia em posse desses farsantes. Eles entraram na cidade como heróis, mas estão manipulando a todos para seus propósitos. Inclusive Keira, a mulher que manda na

estalagem, foi induzida a dar abrigo e refeições a eles de graça. Eles disseram o nome da joia, até... Gema de alguma coisa...”.

“Seria a Gema de Anrais?”“Isso. A senhora conhece?”“Não precisa me chamar de senhora. E sim, eu a conheço, era uma história que ouvi muito tempo atrás.”“Bem, é inútil, seu pai também foi dominado e não há nada que possa ser feito. Quem sabe ele até vai prometer a mão da senhora pro líder deles.”“Não mesmo”, exclamou Scielle enojada. “Se eu bem lembro da história da joia, algo pode sim ser feito, mas não conseguirei fazer isso sozinha. Você me ajudaria a desmascarar esses falsos ídolos? Sua inteligência seria útil.” “Pode contar comigo, madame. Eu me chamo Cassius.”“Prazer em conhecer, Cassius. Posso lhe pedir que volte comigo para os arredores do castelo? Eu preciso voltar, já que meu pai deve estar em perigo. Até chegarmos lá, já será noite. Não posso lhe dar abrigo como meu pai fez com os tais Quatro Elementos...”“Não se incomode,madame. Eu conheço a área em volta do castelo, não me oferecia perigo.”“Ótimo. Partamos então.”

A fogueira montada por Cassius não era a ideal, montada exclusivamente para passar a noite fria. Mas serviria a seu propósito básico. Scielle ficava admirada como aquele homem simplesmente subsistia do que os arredores da região lhe proporcionava. As vielas e becos eram seus aposentos. Ela estava próxima do palácio do seu pai, e era vigiada pelos guardas, então sabia que nada de mal lhe aconteceria. Mas ela não conseguia parar de pensar que ela tem uma cama quente, comida farta e um lugar pra voltar. Ele vai ter que ficar aqui sozinho e rezar para sobreviver mais um dia. Ao menos ela lhe conseguiu provimentos e um cobertor quente e não o deixaria à própria sorte.

O semblante de melancolia da princesa não havia passado despercebido pelo mendigo. “Algo errado, madame?”

“Não, não, estava apenas perdida em pensamentos”, disse Scielle, despertando do seu torpor. Ela tentou mudar de assunto. “Diga-me, Cassius, você não tem família? Amigos? Alguém que se preocupe com você? Não acredito que tenha passado a vida aqui nas ruas sozinho por tanto tempo.”

Cassius parou o que estava fazendo e olhou para o horizonte, como se forçasse a memória. Cabisbaixo, deu um sorriso meio de canto, como se o que fosse dizer era engraçado. “Uma vez... uns vinte anos atrás, creio eu, tive uma namorada. Divertíamos-nos juntos, mas então perdi meus rendimentos, e com eles ela se foi junto. Amor não se sustenta por falta de dinheiro, madame. É duro mas é a vida.”Novamente as palavras de Cassius calaram fundo em Scielle. Ela sabia que como estava na idade de casar, seu pai tentaria lhe arranjar pretendentes. E todos eles seriam ricos e poderosos. Príncipes, lordes, barões. Talvez alguns bonitos e interessantes... Mas não seria uma escolha primordial dela. E talvez no fundo isso seja o que mais lhe incomode, pois conveniência nem sempre é o melhor modo de se apaixonar.

“E você, madame? Por quê perde tempo com isso, quando a sua vida está ali a um passo? Gente que cuida de você, que lhe alimenta, que lhe escuta, que satisfaz suas vontades?” Cassius interrompe novamente os pensamentos de Scielle.

“Não sei lhe dizer exatamente, Cassius”, ela respondeu. “Você foi o único que ficou do meu lado a respeito desses tais Quatro Elementos e da farsa que eles perpetuam. Apesar de eu ser a filha do governante geral, não tenho voz. Fui treinada desde criança pra ser boa filha e boa esposa, mas tive que aprender a manejar arco e flecha, lanças e machadinhas por minha conta. Nunca empunhei uma espada ou empunhei um escudo. Questões de papel na sociedade, coisa que estou tentando ir contra. Então vejo algo de errado – como esses biltres na cidade, usufruindo de coisas e recursos que deviam ser usados para o bem do povo de Sinnaton – e não consigo me calar, embora ninguém se importe. Ou quase ninguém. Você foi o único que se ergueu contra eles.”

Cassius sorriu. “Você me lembra da minha ex-namorada, madame. Ela possuía esse mesmo fogo no olhar quando a conheci, mas infelizmente este se extinguiu com o passar do tempo até que ela se resignou e decidiu partir em busca de estabilidade na vida. E desde então, eu também me resignei. Tanto que desisti de amigos, moradia, trabalho, pois via que não ia conseguir mudar isso.E agora há pouco, você foi a única que não foi ludibriada pela lábia dos falsos ídolos, e ainda foi gentil comigo. A sua luta é a minha luta, a senhora não vai se arrepender.”“Não precisa me chamar de senhora.” Scielle sorriu. “Só tenho dezenove anos. Bom, preciso ir. Estou preocupada com o meu pai. Vamos ver o que conseguimos fazer amanhã. De acordo, parceiro?” “De acordo, parceira. Boa noite.E obrigado pelos provimentos. ”“Não tem de quê.Boa noite.”E Scielle partiu em direção ao palácio. Mas em seguida parou e virou.“Cassius, só uma dúvida.”“Diga.”“Qual o nome da sua ex-namorada?”“Vanja.”“Hum. Mesmo nome da minha mãe. Coincidência incrível. Obrigada. Boa noite.”

Quando Scielle adentrou o palácio, teve uma visão horrenda. Lá estavam os tais Quatro Elementos, comendo as melhores refeições, bebendo o vinho preferido de seu pai, e seu pai em volta deles, rindo e salivando, com um olhar distante e vazio.

“O que significa isso?”, a princesa gritou. Sua raiva era evidente, o que chamou a atenção dos convidados indesejados.

“Ah, a filha querida retorna” disse Dideron enquanto a analisava, com cobiça no olhar. “Veio nos divertir, Alteza?”

“Cães imundos”, resmungou a princesa, enojada pelo que havia ouvido. Eles realmente haviam hipnotizado seu pai, que não esboçava reação alguma. Ela deu de costas a eles, em direção à porta. “Vocês não são lordes coisa nenhuma, são apenas reles mercenários! Não ficarei aqui...”

Uma das machadinhas voou em direção a ela, arremessada por Zandus, e interrompe a fala. O intento da machadinha seria atingir a parede apenas para deter a partida da princesa, mas Scielle não teve escolha a não ser interceptar a machadinha em pleno ar e com um giro de seu corpo, lançar a machadinha ao chão. Os Elementos recuaram frente ao que acabaram de ver.

“Não precisa ser assim, Alteza.”, sorriu Thonar, demonstrando mais cautela. “Vamos cuidar de você muito bem quando Chaz for coroado como rei de Sinnaton e nós ganharmos titularidade real. Isso aqui é um pulgueiro, mas temos que começar de algum lugar, não acha?”

“Coroado novo rei?”, disparou a princesa. “Que perfídia é esta? Vocês acham que eu permitirei isso? Pai, por que não diz nada? O que eles fizeram com você?” “Seu pai agora é nosso mascote. Velho tolo, foi muito fácil controlá-lo.” Chaz apanhou o pingente com a gema e começou a acariciá-la. O rei Androd estava imóvel, feito um cão medroso. “O poder desta gema é fabuloso. Quando a encontramos nas longínquas montanhas de Grinadyr, após sermos informados da existência dela por um mercador ganancioso – que tivemos que matar logo após - não pensávamos que conseguiríamos em tão pouco tempo adquirir o que queríamos. De reles mercenários sem destino nos tornamos barões e lordes... e agora nos tornaremos reis.”

“E o que queremos agora”, disse Zandus, levantando-se em direção à princesa para apanhar a machadinha arremessada, “é saber se você está conosco.” “Veja bem, Alteza”, Chaz continuou, enquanto sorvia mais um gole de vinho. “Discutimos entre nós sobre o que fazer com você. Não podemos matá-la. Sabemos de contos lá na estalagem que você, embora seja apenas uma linda peça decorativa sem força política, é tremendamente popular entre os cidadãos. E por pura tentativa, sabemos que a Gema não nos permite controlar mais de uma pessoa, por isso caso tentássemos usá-la em você, seu pai se libertaria e nos jogaria no calabouço. Só nos sobrou tentar dialogar e negociar com você. Dideron teve ideias bem lascivas a seu respeito. Thonar já estava querendo descartá-la. Já vimos que você é mais habilidosa do que pensávamos. Mas eu não creio que tenhamos que nos preocupar com isso agora. Dou-lhe essa pequena trégua; vá para seus aposentos, terá minha palavra que não será importunada. Pode pegar um guarda e colocá-lo na porta de seu quarto, se não confiar em minha palavra. No entanto, por bem ou por mal, nos auxiliará em nossa tentativa.”

“Você é deveras audacioso, homem”, a princesa replicou em fúria, “Usurpa meu castelo, come minha comida, domina meu pai e ainda quer ‘negociar’? Negocie com a mesa. Eu não fico aqui nem mais um segundo”, Scielle se retirou da sala e subiu as escadarias para se dirigir ao seu quarto. Um dos súditos a acompanha.

Ao entrar no quarto, a princesa apanhou uma aljava, bem como o arco, um cobertor felpudo, roupas diversas e enrolou tudo em uma bolsa. Depois começou a fazer nós com os lençóis de cetim que adornavam sua cama. “Em que está pensando, Alteza?”, perguntou o guarda.

“Sinceramente não acha que eu vou ficar aqui dividindo o palácio com esses biltres, não é? Acha que vou acreditar na palavra deles de que não irão fazer nada comigo? No entanto, eles não sairão impunes desta. Eis o que faremos...”

Enquanto isso, no saguão do castelo, os Quatro Elementos discursavam. Haviam mandado um mensageiro anunciar a coroação de Chaz para o início da manhã. No entanto, Dideron seguia inquieto.

“Chaz, não consigo acreditar no que acabou de acontecer”, o mercenário de pele negra agonizava. “Por que quis ‘negociar’ com a princesa? Devíamos ter acabado com ela. Ela é bem mais do que transparece. Viu como interceptou a machadinha de Zandus? E porque não me deixa acabar com ela, está se tornando Zandus, que não aprecia mulheres?”

“Meça suas palavras, Dideron”, Chaz não esboçava reação. “Tudo a seu tempo. Scielle está em desvantagem. Ela vai ceder, mas seria de bom tom não a subestimarmos. No momento precisamos dela para apoiar a coroação. Depois você está livre para fazer o que quiser com ela.”

“Só isso que eu precisava escutar”, disse Dideron, sorrindo largamente.

Scielle criou um cipó com os lençóis de cetim e jogou-o pela janela; usava muito isso quando criança quando queria escapulir da vista dos seus pais. Nunca havia pensado que seria útil para uma missão de guerra. A princesa se esgueirou entre os muros do castelo; como já fazia isso sem toda a guarda e das pessoas que trabalham no palácio saberem, não teve dificuldade em sair e caminhar em direção ao local em que havia deixado Cassius, o único aliado na ocasião.

“Cassius! Cassius, acorde!”, gritou Scielle ao chegar onde Cassius estava alojado. Começou a sacudi-lo para que ele despertasse. Sobressaltado, Cassius abriu os olhos.

“Senhora? Porque está aqui?”

“Você estava certo sobre os tais Elementos. Eles tomaram o palácio e renderam meu pai. Eu consegui escapar. Eles me queriam viva e inteira para que eu cooperasse com o plano deles de tomarem a coroa. Mas agora eles vão provar do próprio veneno. E melhor eu ficar aqui com o antigo namorado de minha mãe...”

“Então você percebeu”, Cassius suspirou.

“...que pode inclusive ser meu pai.”

“Acho que não é bem assim, Scielle.”, Cassius balbuciava. O ‘madame’ e ‘senhora’ haviam sido deixados de lado, o que denotava que algo havia mudado no relacionamento de ambos.

“As evidências conferem, Cassius,” respondeu Scielle enquanto arrumava o cobertor felpudo próximo à fogueira. “Sua antiga namorada é a minha mãe. Ela lhe deixou na mesma época que se casou com meu pai. Ou com o homem que me criou, não tenho mais certeza de nada. Não pense que na hora que você citou o nome dela, que tudo ficou mais claro. Eu conferi sua história antes de voltar para cá, antes de me encontrar com os usurpadores, e procedia. Como os demais, você me subestima.”

“É, creio ser culpado disso”, respondeu o mendigo, olhando para a aljava da moça. Não havia dúvida que Scielle planejava algo mais do que escapar.

“E o que você fazia antes que acabou perdendo tudo o que tinha?”, a princesa perguntou, ainda fitando o espaço em que preparava sua cama. “Eu era mercador. Vendia, trocava e comprava especiarias. Mas esse tipo de trabalho facilita muito que pessoas nos passem para trás. Acabei não tendo mais dinheiro, me atolei em dívidas, perdi mulher, trabalho, inclusive moradia que foi uma solução de permuta para escapar das dívidas. Desde então, tendo sobrevivido anos nas ruas”.

“Por que não me procurou? Eu entendo não ter ido procurar meu pai... quis dizer, o rei, imagino que a mágoa o corroia. Mas eu teria ajudado.”

“Não sou seu pai, Scielle. Minha amada Vanja , sua mãe, a concebeu dois anos após ela ter me deixado. Você é definitivamente a filha de Androd. Mas se eu tivesse um filho ou filha, eu teria muito orgulho se ele ou ela fossem como você.”

A princesa sorriu. Logo em seguida se acomodou por debaixo do cobertor.

A aurora era tímida. Mas os Quatro Elementos despertaram assim que os primeiros raios de sol se manifestavam. Tinham pressa. A coroação deveria ser o mais breve possível.

“Dideron, vá buscar a princesa. Vamos ver se conseguimos fazê-la nos auxiliar por bem mais uma vez”, falou Chaz, ainda tentando despertar.

“Sem problema”, decretou o soldado. “Essa mulher depois que cair em minhas mãos não irá querer outra coisa.” Dideron se dirigiu ao quarto de Scielle, que estava com a porta fechada e um guarda sonolento na frente, sentado. O guarda então foi empurrado violentamente pelo Elemento. “É hora de acordar, princesa. Pronta ou não aqui vou eu”, declarou Dideron, nommoemento em que abrira a porta do quarto com um solavanco. Observou que havia uma corda passando por vários locais e em direção à porta, uma lança surgiu e perfurou o peito do guerreiro, sem chance para ele revidar.

Dideron foi lançado para trás com o impacto e bufava até que a vida se extinguiu do seu corpo.Chaz, Zandus e Thonar foram ver o que havia acontecido e se depararam com a macabra imagem de seu companheiro empalado.

“Essa mulher é realmente mais ardilosa do que pensávamos. Ela vai ser um problema”, concluiu Chaz, pouco impactado com o que estava vendo. “Thonar, é sua vez. Encontre-a e traga-a para cá. Quero eu mesmo ter o direito de acabar com a vida dela. Se quiser leve a clava de Dideron em adição à sua lança”.

“Neste momento, Chaz.”, acenou Thonar em sinal positivo com a cabeça enquanto se retirava do local, carregando a clava. “Venha, Zandus, me ajude a levarmos o cadáver daqui”, disse Chaz enquanto se ajeitava para levantar o corpo inerte de seu colega.

Thonar saiu a cavalo, o galope vigoroso indicava não só pressa, mas ânsia. A princesa podia estar em qualquer lugar. Mas não descansaria enquanto não a encontrasse.Embora não precisou ir muito longe; próximo a uma casa dentro da cidade, reconheceu o cobertor felpudo; estava belo e limpo demais para um mendigo usar. Só podia ser a princesa escondida.

Ao descer do cavalo e encilhá-lo, Thonar apanhou a clava e se preparou. Os dois cobertores, o mais esfarrapado e o felpudo limpo, possuíam certo volume; estaria a princesa envolvida com um dos mendigos da cidade?“Acorde, Vossa Alteza, seu papai e seu novo governante lhe esperam!”, Thonar gritou, enquanto desferiu um chute contra o que havia debaixo do cobertor. Em seguida urrou de dor; estava duro como pedra. O cobertor caiu com o golpe, desvendando uma rocha sólida. Não era a princesa.Mal teve tempo de se recobrar do golpe que dera, foi atingido por duas flechas; uma atravessou a perna e a outra disparada logo em seguida, a mão que segurava a clava.Quando olhou para o lado esquerdo, Scielle e Cassius se revelaram, ela na frente dele empunhando o arco e segurando outra flecha.

“Se gritar, a próxima flecha vai parar na sua boca”, sussurrou a princesa enquanto o mendigo rendia o mercenário. “Madame, isso foi formidável!”, sorriu Cassius. “Não sabia que você era tão habilidosa!”“Ora Cassius, quem você acha que tem mantido ladrões e conquistadores longe da cidade nesse último ano?”

“Argh... cadela imunda, você não perde por esperar...”, grunhia Thonar. Os grunhidos foram substituídos por gritos de dor. Cassius havia segurado a flecha que atravessava a perna de Thonar e girado-a em círculos, aumentando a ferida.

“Mais respeito, mercenário, é com a princesa que você está tratando”, sorriu Cassius enquanto tinha Thonar à sua mercê. “Agora nos diga, Elemento, quando será a coroação? A princesa vai impedi-la.”

“Vocês não vão conseguir... impedir a coroação, ela logo começará”, entre gotas de saliva e bufadas de ar para conter a dor, as palavras saíam da boca de Thonar com dificuldade. “Chaz queria a.. princesa para que ela desse a... benção, logo após ela morreria... ou pior. Mas ela matou de forma... traiçoeira o nosso amigo, e fui... designado pra trazê-la, nem que seja à força.”

“Matei?”, questionou Scielle. “Eu nunca havia matado um homem antes. Mas ao menos eu não terei que lidar com todos.” Os gritos de Thonar e a comoção nas ruas atraíram espectadores. A princesa estava envolta em um manto com capuz, assim não foi reconhecida. Mas ela estava segurando o arco tenso e a flecha pronta para ser disparada. Ainda mais a visão de Thonar atingido por duas flechas e Cassius o contendo para que não escapasse, levava a um entendimento bem diferente do real evento que ocorria.“Ei, deixem Thonar em paz! Saqueadores estão em combate com um de nossos heróis!”, uma menina de pouco mais de onze anos avançou junto com sua mãe para impedir Cassius, que

afrouxara o cerco ao mercenário. Este caiu no chão e tentava alcançar sua clava. Outra flecha cortou o ar e impediu o mercenário, atingindo o espaço entre seus dedos.“Parem todos, a sua princesa ordena!”, clamava Scielle, removendo seu capuz. “Estes quatro homens que vocês ardorosamente defendem nada mais são do que bandoleiros tirando vantagem de nosso povo.”

“A princesa? Aqui?”“Segurando um arco?”“Foi ela que flechou Thonar?”A cacofonia de questionamentos estava ruidosa.

“Tirando vantagem das suas riquezas e seu palácio, você quis dizer!”, uma voz ao fundo da pequena multidão soou além das demais e interrompeu a sinfonia. “O seu pai, o Rei, está sempre em grandes banquetes e festas enquanto nós mal suprimos nossas necessidades. A chegada desses homens e a coroação iminente pode ser o que Sinnaton precisa. Voltarmos a acreditar em alguém.”

Os olhos de Scielle marejaram. Não tinha realmente contato com a maior parte do povo, então não sabia como eles se sentiam. Não fazia ideia de que seu pai havia abandonado-os à própria sorte, esperando que os Seis Sephiroths tivessem piedade e compaixão. Por isso esses mercenários usurpadores do trono, mesmo tendo usado de táticas ilícitas, possuíam a aprovação das massas. A própria situação de Cassius, um homem que vivia nas ruas, e que por algum tempo ela considerava seu pai, deveria servir de alerta que algo não ia bem no reino. A princesa, enquanto crescia, aprendeu sobre poder e responsabilidade. E ninguém, fora as divindades ilusórias desse mundo, tem mais poder do que o rei.“Eu sinto pela sua crise de fé, cidadão. Sinto por todos. Não deveria ser assim. As coisas serão diferentes daqui por diante, você tem minha palavra”, Scielle, cabisbaixa, distensionou o arco, e olhou para Cassius, fazendo um sinal para que saíssem dali e lidassem com Thonar em outro lugar.

Scielle, indo à frente, sendo seguida por Cassius, que por sua vez arrastava Thonar, que mal conseguia caminhar por causa da flecha, se aproximaram do palácio. Os portões estavam abertos para que as pessoas fossem entrando e se instalassem no pátio real. Era a deixa.Scielle chamou Cassius para conversar, enquanto deixavam Thonar preso pra que não fugisse. “Façamos assim: você entra com ele pelo portão principal. Com toda certeza ele vai se debater, tentar escapar e avisar Chaz. Leve a lança dele junto, para que não a use; abandonamos a clava lá perto do seu abrigo, não podemos contar com ela. Eu conheço outro acesso, irei observar a tudo de longe e serei sua cobertura caso algo aconteça. Fechado?”, Scielle sussurrou.“Mas eles esperam por você. Porque não entra pela frente e sobe no palco que estão montando?”“Não vou conseguir chegar perto de Chaz e lhe arrancar a gema; preciso atingi-lo de longe. Eu não me vejo engalfinhando em combate físico com Chaz ou o outro da machadinha e saindo vitoriosa. Portanto, deixe eu me preocupar em como resolver, está bem?”, a princesa sorriu.

Cassius acenou com a cabeça em sinal positivo. Scielle partiu para o lado oposto, onde sabia que tinha uma passagem que apenas ela conhecia, que foi como escapou na noite anterior.

Ela afastou as folhagens e se esgueirou por dentro do buraco. Em seguida tomou as escadas e subiu até a maior torre do castelo; o ambiente perfeito. De lá conseguia vislumbrar tudo que aconteceria e não seria surpreendida.

De cima, avistou o pátio, e no centro um pequeno palco montado, com apenas um trono. Acima do palco, seu pai estava vestindo com o traje real formal, e Chaz, coberto com um longo manto vermelho, se aproximava para subir. As pessoas não eram muitas; cerca de vinte ou trinta. Algumas ainda entrando no castelo e se posicionando. Scielle cuidou a mira e a direção do vento. Qualquer erro seria fatal.

Cassius empurrava Thonar para perto do palco.“Vamos, mercenário. Seu líder vai pagar por tudo que fez, e depois será a sua vez.”“Quem vai pagar é você, insolente, com a vida”, sussurrou o mercenário enquanto se desvencilhava das amarras que haviam lhe colocado; quebrou a flecha alojada na perna e a usou para tentar empalar o mendigo. Vários anos de subnutrição não permitiram a Cassius se desviar plenamente para se posicionar para o embate, mas conseguiu evitar um golpe que o deixaria incapaz de revidar.

Thonar era bem mais forte que Cassius, no entanto, e este se aproveitou disso, usando sua estatura maciça para se lançar sobre o mendigo, o desequilibrando. A flecha quebrada o auxiliou a cortar as cordas que prendiam suas mãos e se propôs a matar Cassius.

Não teve tempo de chegar mais perto; havia sido flechado no rosto por Scielle, que conseguiu acertá-lo de forma que a flecha atravessou o olho e atravessou até a ponta sair pela nuca. Thonar falece boquiaberto, sem emitir um som, e tomba. Cassius olha para o alto da torre, onde Scielle se localizava, se recolhendo após o tiro. Conseguia observar o semblante triste da princesa. Estava evidente que o remorso a tomava.

Scielle deixou derramar uma lágrima pela morte que havia causado. Desde quando começara a praticar arqueria, nunca havia usado suas flechas para causar mal a um animal que dirá um ser humano. E agora dois homens estavam mortos. Por piores que fossem não havia necessidade de morte. Ou talvez houvesse... se não o fizesse, Cassius, ela e talvez seu pai não estariam vivos. A princesa enxugou a lágrima e tentou afastar o remorso e a culpa. Precisava ser certeira ou todos pagariam.

Cassius correu até o pátio, tanto quanto sua constituição fraca permitia, e balançou as mãos, esperando que o pretenso rei (ou o verdadeiro) atentasse para ele. Como não obteve sucesso, decidiu subir ao palco. Percebeu que a lança de Thonar estava perdida próxima ao corpo falecido, mas não havia tempo de retornara para buscá-la. Continha ao menos a clava.

“Você está louco, homenzinho?”, declarou o pretenso monarca. “Querer roubar meu momento de glória? Guardas, apanhem-no!”

Os dois guardas que lá estavam, atrás do placo, nada fizeram. Ainda eram leais a Androd e a Scielle.

“Está certo, traidores! Cuidarei de vocês depois!”, Chaz retirou seu manto e puxou uma faca de seu coldre. Nesse meio tempo, Zandus apareceu, correndo.

“Chaz!”, gritou Zandus. “Encontrei Thonar, está com uma flecha sobre a cabeça e jaz morto tal qual Dideron!”“Foi você quem fez isso, ser insignificante? Depois que eu acabar com você, vou enforcar aquela vadia asquerosa que chamam de princesa e transformar a carne dela em alimento de lobos. Ninguém vai me impedir de ser rei deste pulgueiro!”As palavras de Chaz ecoaram no castelo. A população havia escutado as perfídias. A cena dos quatro elementos estava terminada.“Isso mesmo, seres horrendos”, replicou Chaz. “Iremos tomar conta dessa cidadezinha nojenta e vocês irão nos obedecer!” A multidão, enfurecida, se dirigiu ao palco, mas Zandus se posicionou frente aos dissidentes e matou duas pessoas com um golpe de machadinha, o que fez o restante da turba recuar. Os guardas que haviam ficado parados antes se voltaram contra o mercenário e este os golpeou, banhando o chão de sangue.

“Não! Isso termina agora, Chaz!”, Cassius avançou em Chaz e roubou uma das facas de seu coldre, lançando-a contra Zandus, que desviou sem problema – o arremesso havia sido pobre em velocidade e precisão, mas o deteve para que parasse de matar.

Scielle observava a tudo do alto, horrorizada. Estava considerando disparar uma flecha em Zandus para que o detivesse, mas tinha poucas; não contava em ter que usar tantas em Thonar.

Chaz não titubeou e empurrou Cassius, enquanto tentava cortá-lo com a faca. Novamente Cassius se desequilibrou. Em cima do palco, o rei Androd observava, dando sinais de que o controle sobre ele enfraquecia.

“Quais suas últimas palavras, infame? Suas ações estão enfraquecendo meu domínio sobre o futuro ex-monarca”, rosnou Chaz enquanto a outra mão que não estava com a faca apontando para Cassius retirou o pingente com a Gema de Anrais e a deixou exposta. Era a chance que Scielle tinha. “Queime.” O silvo quase inaudível da penúltima flecha que partiu do arco de Scielle cortou o ar após a frase desferida por Cassius. O impacto havia destroçado a Gema direto das mãos de Chaz. A energia resultante da destruição da joia fez o mercenário ser envolto em chamas. Com as labaredas que permeavam seu corpo, Chaz soltou a faca que segurava apontando para Cassius, o que permitiu a este se dirigir a Androd e sacudi-lo para que voltasse a si. Nesse meio tempo, Scielle abandonava a torre; a última flecha a permitiu lançar uma corda em direção ao chão e descer por ela o que lhe garantiu acesso rápido ao pátio.

“Acorde, Androd! Sua filha salvou a todos nós!”, falou Cassius, até que o rei saiu de seu transe.“Cassius...? Você ainda está vivo?”“Não temos tempo para isso. Vamos embora daqui!”

O povo era espectador assombrado da agonia de Chaz enquanto queimava, criando pânico generalizado. Zandus estava aturdido sem saber o que fazer, tudo havia ocorrido de maneira rápida demais, mas notou que Androd havia sido libertado por Cassius e tentou arremessar uma machadinha neles, mirando o coração do mendigo.

O corpo de Chaz já jazia inerte no palco, gerando muita fumaça embora continuassem as labaredas. Cassius olhou para trás e viu a machadinha, mas não havia tempo de fazer nada. Quando achava que ia morrer, tentou proteger o rei com seu corpo, mas nada aconteceu. Virou-se para ver o que ocorrera e a machadinha estava pregada no trono por uma lança – a mesma lança de Thonar que havia ficado junto ao corpo dele. Observou quem podia ter lançado-a e viu a princesa Scielle correndo em direção ao palco, com a aljava vazia.

A princesa saltou sobre o palco sem ser vista pelo mercenário remanescente – a multidão estava em pânico e a fumaça era um ótimo subterfúgio.Zandus correu para detrás da fumaça querendo ver se sua arma havia atingido o alvo, mas antes de atravessar a fumaça, a sua própria machadinha acertou seu ombro, o que o fez cair de joelhos. Ele foi capaz de ver Scielle suportando seu pai de um flanco do corpo, e com a lança na outra mão, ambos sendo protegidos por Cassius, logo deduzindo o que havia ocorrido. A princesa então arremessou a lança, cravando-a no lado esquerdo do peito do mercenário, que não teve tempo de reagir.Os poucos que conseguiram ver algo, viram Cassius saltar por detrás da fumaça e das chamas para retirar a lança do cadáver de Zandus. O confronto havia terminado e o rei ainda era o rei. Mas pela perspectiva do povo, Cassius era o herói. A fumaça se dissipava, mostrando Scielle segurando o Rei Androd que aos poucos se recompunha. A pouca multidão que ainda se encontrava tentava ligar os pontos.

“Cassius matou os vis mercenários!” “Ele apenas gritou ‘queime’ e a joia de Chaz pegou fogo!”“E derrotou Zandus!”“Impediu mais mortes!”“ Cassius possui poderes sobrenaturais! Será ele um dos Sephiroths?”

“SALVE NOSSO SENHOR CASSIUS”, o povo todo no palácio gritava em uníssono. Cassius olhou, de forma incomodada para a parca plateia, pois só ele, o Rei Androd e Scielle tinham noção do que realmente havia acontecido. “Não sou o seu senhor. Sou só um homem. Como esses falsos ídolos que aqui estavam. A força e fé que vocês procuram já tem endereço certo, mas direção errada” disse Cassius, olhando para Scielle. E então se dirigiu a Androd, o pegou pelo braço e o aproximou de si.

“Dê a ela a vida que ela merece. Deixe Scielle ser quem ela quiser. Ela em breve lhe sucederá e irá moldar a sociedade. Nesse dia, nem Sinnaton nem nada nesse mundo vasto precisará temer falsos profetas, bandoleiros ou falsos moralistas. Eles se propagam porque VOCÊ permite. O povo atravessa uma crise de fé. O povo sofre por falta de uma liderança decente. Coisa que em todo esse tempo como rei você não pôde lhes dar. Então ajude Scielle a se tornar não a melhor esposa de um conde, príncipe, ou conquistador, mas a melhor rainha que esse povo deve ter. Ela já faz muito mais do que você imagina. Você deve isso ao povo, e mais ainda, a ela”, sussurrou o mendigo para o rei, o soltando em seguida. O rei, já assustado, acenava com a cabeça assustadamente. Cassius então desceu o palco, abrindo caminho entre a multidão.

“Cassius! Espere!”

A voz era de Scielle. Eles já estavam nas portas da saída do palácio quando ela o alcançou.“Para onde vai?”“Embora. Talvez eu torne a ser mercador novamente. Graças a você minha vida se enche de otimismo, Alteza.”“Não precisa ser assim. Podemos lhe dar abrigo e subsídios. Pode voltar a trabalhar por aqui. Pode ficar aqui comigo.”“Grato pela oferta, Alteza. Mas seu reino tem muito a fazer e eles precisam de sua liderança e coragem. Tudo que você demonstrou aqui comprova que você será uma ótima líder para o povo. Por isso sempre estivemos seguros, pois você está aqui. E aí, quando for a sua vez de assumir o trono, estaremos todos bem. E aí nesse dia nos reencontraremos.”Cassius então se encaminhou em direção à porta do palácio, cuja luz do sol o cegava. Essa experiência não mudara seu jeito simples de ser, mas lhe deu a esperança e vontade de viver que lhe faltava antes. A luz emanando do pôr do sol era a garantia que ele precisava de que, de fato, todos estariam bem, pois o povo de Sinnaton podia contar com a habilidade e coragem da Princesa Scielle.