CRÔNICAS DE VERÍSSIMO - Sequência Didática

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Sequncia Didtica

Literatura na escola - 7 ano: Crnicas de Lus Fernando VerssimoEnvie por email Imprima Introduo Esta a quinta de uma srie de 16 sequncias didticas que formam um programa de leitura literria para o Ensino Fundamental II. Veja, ao lado, o contedo completo. Objetivos Estimular o gosto pela leitura; Desenvolver a competncia leitora; Desenvolver a sensibilidade esttica, a imaginao, a criatividade e o senso crtico; Estabelecer relaes entre o lido/vivido ou conhecido (conhecimento de mundo); Revelar o dilogo entre literatura e tradio cultural; Perceber as particularidades do gnero Crnica. Contedos Forma literria; Parfrase, anlise e interpretao; Alienao, Personificao e Coisificao; Ditadura Militar no Brasil. Tempo estimado Cinco aulas. Ano 7 ano Material necessrio - Livro O Nariz e Outras Crnicas. Lus Fernando Verssimo, 112 pgs, Editora tica, Coleo Para Gostar de Ler, tel (11) 3990-1612, preo 26,90 - Se possvel, um computador ligado Internet. Desenvolvimento 1 etapa: Sondagem oral Pergunte se os alunos j ouviram falar do cronista Lus Fernando Verssimo. Conhecem alguma obra que ele publicou? E sobre Crnica, j ouviram falar? A partir desta primeira sondagem, inicie sua aula, apresentando turma o escritor, bem como o gnero crnica. Se julgar necessrio, entregue aos alunos o texto do boxe abaixo. Lus Fernando Verssimo e o gnero Crnica

Lus Fernando Verssimo se firmou como escritor por meio da profisso de jornalista. A partir de 1970, comeou a escrever crnicas para o jornal Folha da Manh e logo se consagrou como escritor. A definio do gnero Crnica at hoje uma questo polmica. Segundo o autor Jorge de S, no livro A Crnica, a aparncia de simplicidade "decorre do fato de que a crnica surge primeiro no jornal, herdando a sua precariedade, esse seu lado efmero de quem nasce no comeo de uma leitura e morre antes que se acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as pginas em papel de embrulho, ou guarda os recortes que mais lhe interessam no arquivo pessoal. O jornal, portanto, nasce, envelhece e morre a cada 24 horas. Nesse contexto, a crnica tambm assume sua transitoriedade, dirigindo-se inicialmente a leitores apressados, que leem nos pequenos intervalos da luta diria, no transporte ou no raro momento de trgua que a televiso lhes permite. Sua elaborao tambm se prende a essa urgncia: o cronista dispe de pouco tempo para datilografar o seu texto, criando-o, muitas vezes, na sala enfumaada de uma redao. Mesmo quando trabalha no conforto e no silncio de sua casa, ele premiado pela correria com que se faz um jornal, o que acontece mesmo com suplementos semanais, sempre diagramados com certa antecedncia. pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos so extremamente rpidos, e o cronista precisa de um ritmo gil para poder acompanh-los. Por isso a sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais prxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito. Dessa forma, h uma proximidade maior entre as normas da lngua escrita e da oralidade, sem que o narrador caia no equvoco de compor frases frouxas, sem a magicidade da elaborao, pois ele no perde de vista o fato de que o real no meramente copiado, mas recriado. O coloquialismo, portanto, deixa de ser a transcriao exata de uma frase ouvida na rua, para ser a elaborao de um dilogo entre o cronista e o leitor, a partir do qual a aparncia simplria ganha sua dimenso exata. No livro "O Nariz", de Luis Fernando Verssimo, h uma crnica intitulada "Ela". Pea que os alunos anotem individualmente suas ideias a respeito deste ttulo. O que ele deve significar? 2 etapa: leitura compartilhada do conto "Ela" e contextualizao da obra: a dcada de 70 no Brasil Leia com a turma o conto "Ela" e pea que os alunos comentem suas impresses gerais. Em seguida pergunte se, aps a leitura, as ideias que tinham a respeito do significado do ttulo "Ela" se mantiveram ou foram alteradas? Justifique. Pea para a moada elencar todas as referncias a fatos histricos e os ttulos de programaes de televiso que aparecem na crnica. Pergunte aos estudantes se entenderam essas referncias, se sabem, por exemplo, o que era o Sheik de Agadir ttulo de uma novela da dcada de 1960 - citado na crnica. A turma certamente ter dificuldade em entender alguns fatos. Faa, ento, a contextualizao para a classe e apresente as questes poltico/histricas do Brasil na dcada de 1970 (saiba mais no texto abaixo). Se possvel, convide o professor de Histria para ajudar nessa segunda etapa. Lembre-se que, conforme os alunos se

aproximam do Ensino Mdio, a tendncia a escola trabalhar mais com aqueles livros que o adolescente no conseguiria ler por conta prpria, seja por uma linguagem mais elaborada do ponto de vista esttico, seja porque o livro pertence a uma poca cujas referncias o estudante desconhece. Cabe ao professor fornecer o repertrio e os esclarecimentos necessrios para que a leitura se torne acessvel ao aluno. "O Nariz", por ser uma coletnea de crnicas, no apresenta grandes desafios do ponto de vista da linguagem, mas muitas narrativas fazem referncias a questes polticas e sociais do Brasil que devem ser explicadas. Dcada de 1970

antesdachuva.zip.net Na dcada de 1970, o Brasil ainda vivia sob o peso da ditadura militar e do Ato Institucional No 5. No havia liberdade de imprensa e os opositores ao regime eram perseguidos e torturados. Sob interesse dos governos militares e aproveitando o milagre econmico e a vitria da seleo brasileira em 1970, surgiam slogans e canes ufanistas como "Brasil, ame-o ou deixe-o" e "pra frente Brasil"

Foi tambm um tempo de expanso da indstria televisiva, da publicidade e dos meios de comunicao de massa. Toda criao artstica que escapasse censura era submetida a um forte esquema comercial. Em 1978, a novela Dancin`Days fazia sucesso com uma trilha sonora e figurinos baseados na Disco Music norte americana. 3 etapa: anlise da crnica "Ela" Em aulas expositivas dialogadas, analise a crnica "Ela" com a turma, obedecendo aos procedimentos de anlise literria organizados abaixo: 1) Parfrase: A parfrase a primeira parte da anlise. Ela um resumo do enredo, um "contar a histria com as suas prprias palavras", por isso deve ser curta e objetiva, deve resumirse apenas ao essencial. Finalizada a leitura compartilhada, pergunte aos alunos do que fala o texto? Exemplo: A crnica "Ela" conta a histria da influncia crescente da televiso na vida de uma famlia brasileira, entre as dcadas de 1960 e 1970. Confirme se a sala est de posse dessa compreenso mnima. Caso no esteja, retome a leitura compartilhada. 2) Anlise: Analisar "desmontar" o texto, verificar quais so as partes que o compe e como elas se articulam. Cada obra literria tem inmeros elementos que, articulados, a constituem. A ideia no investigar todos - nem seria possvel - mas apenas alguns. Quais? A anlise deve construir argumentos que sustentem a interpretao. ela que vai conduzir o leitor atravs do seu raciocnio. No podemos nos esquecer tambm que, em arte, forma contedo. Por isso, preciso ressaltar a contribuio que alguns aspectos formais possam vir a ter na economia da crnica. O que so aspectos formais? So elementos que se referem menos diretamente

a o que est sendo dito e mais ao como est sendo dito. O tipo de narrador, a caracterizao de algum personagem, o tempo, o espao e o tipo de discurso so alguns dos elementos formais que podem ser fundamentais para desvendar mistrios. Ao observar a crnica escolhida, fcil perceber algo que, em sua forma, lhe chame a ateno. Por exemplo, o fato de a crnica "Ela" possuir inmeras referncias histricas no pode passar despercebido. Partindo do princpio que o escritor Lus Fernando Verssimo domina plenamente a sua arte, devemos acreditar que tais referncias contribuem para o sentido do texto. Outro elemento formal que chama ateno o fato de o pronome pessoal "ela" sugerir, desde o ttulo, uma personificao do objeto televisor. Tal personificao, que se intensifica ao longo do texto, tambm produtora de sentido. Existem inmeros elementos passveis de anlise em uma boa obra literria. Se tivermos um olhar atento no que se refere forma, ento j ser possvel traar um caminho seguro pelo qual nossa anlise pode seguir. Retomemos o tema depois. Exemplo de anlise O ttulo da crnica "Ela", por ser um pronome pessoal, sugere que a narrativa vai falar de uma pessoa do sexo feminino. Tal sugesto intensificada nas primeiras frases: "Ainda me lembro do dia em que ela chegou l em casa. To pequenininha! Foi uma festa." Em seguida, temos a impresso de que "Ela" , na verdade, um animalzinho de estimao: "Botamos ela num quartinho dos fundos. Nosso filho - naquele tempo s tnhamos o mais velho - ficou maravilhado com ela. Era um custo tir-lo da frente dela para ir dormir." Note que foram usadas citaes de trechos da crnica. Isso no s possvel como geralmente muito til. Quanto mais sua anlise der voz ao texto, melhor. Ento a crnica realiza uma primeira quebra de expectativa com efeito de humor: percebemos que se trata de um aparelho de TV. "- Eu no ligava muito pra ela. S pra ver um futebol, ou poltica. Naquele tempo tinha poltica. Minha mulher tambm no via muito. Um programa humorstico, de vez em quando. Noites Cariocas... Lembra de Noites Cariocas?- Lembro. Vagamente. O senhor vai querer mais alguma coisa." A partir do trecho acima, a crnica de Lus Fernando Verssimo diz a que veio: temos a percepo de que o narrador-personagem narra sua histria em dilogo com um interlocutor que, provavelmente, um garom que no parece muito disposto a escutlo. Temos uma referncia ao golpe militar de 1964 ("Naquele tempo tinha poltica.") e podemos deduzir que os acontecimentos narrados tm incio antes do Golpe e o

narrador fala ao garom ainda durante a represso. Temos tambm, completando a referncia temporal, a aluso a um programa televisivo de 1961: "Noites Cariocas". 3) Comentrio: O comentrio se faz necessrio no momento em que a anlise solicita informaes externas obra literria para elucidar seu sentido profundo. Isso porque a Literatura, apesar de sua relativa autonomia, faz parte do tecido social em que est inserida. Como explica Antonio Candido no livro Na sala de aula: caderno de anlise literria, as "circunstncias de sua composio, o momento histrico, a vida do autor, o gnero literrio, as tendncias estticas de seu tempo, etc. S encarando-a assim teremos elementos para avaliar o significado da maneira mais completa possvel (que sempre incompleta, apesar de tudo)". Nessa crnica as referncias histria do Brasil so de fundamental importncia para a compreenso do leitor. 4) Continuao da anlise: A partir de ento o narrador conta que a famlia comprou um aparelho maior e o mudou para a copa, interferindo nos hbitos da famlia. Note que ele jamais deixa de personificar a televiso: "A ela j estava mais crescidinha. Jantvamos com ela ligada, porque tinha um programa que o garoto no queria perder. (...) A empregada tambm gostava de dar uma espiada. Jos Roberto Kelly." Aqui vale recorrer novamente ao comentrio: Na entrada dos anos 60, a popularizao dos desfiles de carnaval marcou o incio da ascenso do samba-enredo e o declnio da marchinha e dos blocos. Jos Roberto Kelly foi um dos ltimos compositores que brilharam no gnero, com Cabeleira do Zez e Mulata I-I-I., antes do Ato Institucional no 5, de 1968. A narrativa continua contando como a televiso muda os hbitos da casa do narrador, assim como os da famlia brasileira: sua mulher comea a seguir apaixonadamente as telenovelas. "Foi ento que surgiu um personagem novo nas nossas vidas que iria mudar tudo. Sabe quem foi? - Quem? - O Sheik de Agadir. Eu, se quisesse, poderia processar o Sheik de Agadir. Ele arruinou meu lar." Conforme o tempo passa e as novelas despertam interesse da famlia, a TV avana da copa para a sala de visitas, interferindo na vida social do casal. O narrador passa a marcar o tempo em funo das telenovelas: "- Nosso filho menor, o que nasceu depois do Sheik de Agadir, no saa da frente dela. Foi praticamente criado por ela." Note que, medida em que aumenta a influncia do televisor, o recurso personificao o torna cada vez mais humano e imperativo, enquanto a famlia, por sua vez, vai se tornando cada vez mais objetificada:

"Minha mulher sucumbiu s novelas. No queria mais sair de casa." "Ningum conversava dentro de casa." "Agora todos jantam na sala para acompanh-la." A situao chega ao limite com a novela DancinDays, de 1978, quando a esposa muda a decorao da sala para combinar com a maquiagem de Jlia -a atriz Snia Braga. O narrador/personagem pede famlia que escolha entre ele e a TV, mas a famlia responde com um terrvel silncio. Quanto mais ele deseja contar sua histria, menos seu interlocutor deseja escut-lo, com pressa de fechar o bar: "_ Est bem. Mas agora v para casa que precisamos fechar. J est quase clareando o dia..." Ento a crnica entra no registro da fantasia, com o pai de famlia tentando desligar a televiso como quem comete um assassinato. "Se tocar em mim, voc morre". Uma voz feminina, mas autoritria, dura. Tremi. Ela podia estar blefando, mas podia no estar." Finalmente a crnica termina com a narrativa do fracasso do homem em se livrar do terrvel aparelho. "- Muito bem. Mas preciso fechar. V para casa. - No posso. - Por qu? - Ela me proibiu de voltar l." 6) Interpretao: A interpretao corresponde questo "do que fala o texto?". Ela a exposio do sentido profundo da obra literria. ele que estamos buscando desde o incio. Quando analisamos, queremos saber o que est dito por meio dos silncios, nas entrelinhas; o que se origina da relao ntima entre forma e contedo. Se na anlise desmontamos o texto em partes, na interpretao temos de reorganiz-lo como um todo, um todo de sentido capaz de reunir forma e contedo. Afinal, do que fala a crnica de Lus Fernando Verssimo? Exemplo de interpretao "Ela" narra a influncia desagregadora da televiso na vida de uma famlia entre as dcadas de 60 e 80. Mais que isso, as inmeras referncias histricas presentes na crnica permitem traar um paralelo entre a famlia do narrador e a famlia brasileira. O humor crtico de L. F. Verssimo mostra como a populao brasileira se aliena diante da cultura de massa televisiva, tornando-se coisa, enquanto a televiso, personificada, torna-se gente. Avaliao Pea aos alunos que busquem as referncias de alienao e cultura de massas no conto "Auto-Entrevista". Pode ser um trabalho para casa. Quer saber mais?

Bibliografia Na sala de aula: caderno de anlise literria. Antonio Candido, Editora tica, 1993, p. 33. A Crnica. Jorge de S . So Paulo, tica, srie Princpios, 2001 Internet Objetificao, Coisificao ou Reificao Personificao ou Prosopopia Narrao e tempo do narrado, ver sequncia do 6 ano: "Os cavalinhos de Platiplanto". Anos 1960 e 1970 A abertura da novela Dancin`Days e a maquiagem cor de tijolo de Jlia Novela de 1966-67

Consultoria Helena Weisz Mestre em Teoria Literria e Literatura Comparada pela Universidade de So Paulo (USP) Regiane Magalhes Boainain Mestre em Literatura e Crtica Literria pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC- SP) Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/literaturaescola-7o-ano-cronicas-luis-fernando-verissimo-556378.shtml

LUIZ FERNANDO DO CARNAVALPublicado: 08/08/2009 Tags:contos, luiz fernando verssimo, piada, rir

VERSSIMOem

ECOSHumor

0 As mentiras que os homens contam ~ 81 Ecos do Carnaval Com o tempo, o casal desenvolvera um cdigo pra se comunicar de longe nas reunies sociais. Quando ele esfregava o nariz queria dizer Vamos embora. Quando ela puxava o lbulo da orelha esquerda queria dizer Cuidado, geralmente um aviso para ele mudar de assunto. Puxar o lbulo da orelha direita significava Pare de beber. Se ele entao girasse a aliana no dedo, era para dizer No chateia. Se depois ela coasse o queixo, era Voc me paga. Naquela noite houve confuso nos sinais. Mais tarde, em casa ela gritava: Voc no me viu quase arrancar a orelha esquerda, no? Era para ele mudar de assunto, mas ele tinha bebido tanto que confundira a orelha esquerda dela com a direita e pensara que a mensagem era par no beber mais. E, enquanto girava a aliana acintosamente no dedo intinuara a contar o caso que tinha ouvido, s gargalhadas. O caso das vassouradas. Acontecera durante o carnaval. A mulher voltara da praia de surpresa, na quinta de noite, e cruzara na porta de casa com o marido que saa de sarongue. Se no estivesse de sarongue ele teria inventado uma histria para justificar a sada quela hora. Uma sbita vontade de comer pastel, um amigo doente, qualquer coisa. O sarongue inviabilizara qualquer desculpa. Um sarongue no se disfara, no se explica, no se nega. O sarongue o limite da tolerancia e do dilogo civilizado. E como o dilogo era impossvel, a mulher partira para a agresso. Buscara uma vassoura dentro de casa. E correra com o homem para dentro da casa a vassouradas. A vassouradas!

- Voc no sabia que foi com eles que isso aconteceu? Com os donos da casa? gritava agora a mulher. E completava: Seu pamonha! - Como que eu ia saber? Me contaram a histria, mas no deram os nomes! - E eu puxando a orelha feito uma doida! Mais tarde, j na cama, ele racionalizou: - Bem feito. - O qu? - Pra ela. No se bate num homem com uma vassoura. - Ah, ? E o sarongue? - No interessa. Nada justifica a vassoura. - Sei no - Podia bater. Mas no com vassoura. E indignado, como se estabelecesse um dogma: - Vassoura, no! A a mulher disse que o mal j estava feito e o melhor que eles tinham a fazer era repassar o cdigo para que coisas como aquela nao acontecessem mais.

*** O Verdadeiro Jos Jos morreu, com justeza potica, num avio da Ponte Area, a meio caminho entre So Paulo e Rio. Corao. Morreu de terno cinza e gravata escura, segurando a mesma pasta preta com que desembarcava no Santos Dumont todas as segundas-feiras, durante anos. S que desta vez a pasta preta desembarcou sobre o seu peito, na maca, como uma l pide provisria. - O velho Paulista disseram seus colegas de trabalho, no velrio, lamentando a perda do companheiro to srio, to eficiente, to trabalhador. Seu apelido no Rio era Paulista. A mulher e o filho de 18 anos mantiveram uma linha de sbria resignao durante todo o velrio. Aquele era o estilo de Jos. Nada de arrooubos ou demonstraes de sentimento. Sobriedade. Foi idia do filho que o enterrassem de colete. - A verdade cochichou um dos scios de Jos na empresa que ele nunca se adaptou aos hbitos cariocas - Sempre foi um paulista desterrado concordou algum. - Desterrado?- estranhou um terceiro. Mas vivia l e c Foi nesse ponto que entraram no velrio, aos prantos, uma senhora e uma moa, ambas vestindo jeans iguais e carregando as grandes bolsas de couro com que tinham viajado de So Paulo.

- Carioca! gritou a mais velha, precipitando-se na direo do caixo. - voc, Carioca? - Papai! gritou a mais moa, debruando-se sobre o solene defunto. Consternao geral. Dr. Luprcio, o advogado da famlia, conseguiu que as duas mulheres de Jos se reunissem em algum lugar afastado da camara ardente. O mais difcil foi arrancar a segunda mulher na ordem de chegada ao velrio de cima do caixo. Em pouco tempo confirmou-se o bvio. Jos tinha outra famlia em So Paulo. A filha tinha 15 anos. A mulher do Rio foi seca: - A legtima sou eu. - Meu bem comeou a dizer a outra. - No me chame de seu bem. Ns nem nos conhecemos. - Calma, calma pediu o Dr. Luprcio. - Agora eu sei por que o Carioca nunca quis me trazer ao Rio disse a outra. - O nome dele Jos. Ou era, at acontecer isto disse a primeira, no se sabendo se falava da morte ou da descoberta da segunda famlia. - L em So Paulo toda a turma chama ele de Carioca. - Turma? estranhou a primeira. No Rio eles no tinham turma. Raramente saam de casa. Um ou outro jantar em grupo pequeno. Concertos, s vezes. Geralmente estavam na cama antes das dez. Na camara ardente, o filho de Jos evitava o olhar da sua meia-irm. Os dois eram parecidos. Tinham os traos do pai. A moa, com os olhos ainda cheios de lgrimas, comentara que aquela era a primeira vez que via o pai de gravata. O filho ia dizer que no se lembrava de jamais ter visto o pai sem gravata, mas achou melhor no dizer nada. Era uma situao constrangedora. - Pobre do papai disse a moa, soluando. Sempre to brincalho O filho entendia cada vez menos. O apelido dele, em So Paulo, era Carioca. Descia em Congonhas todas as quintas-feiras de camiseta esporte. No mximo com um pulver sobre os ombros. Uma vez chegara at de bermudas e chinelos de dedo. Gostava de encher o apartamento de amigos, ou sair com a turma para um restaurante ou uma boate. E se algum ameaasse ir embora, dizendo que Amanh dia de trabalho, ele berrava que paulista no sabia viver, que paulista s pensava em dinheiro, que s carioca sabia gozar a vida. Com sua alegre informalidade, fazia sucesso entre os paulistas. Inclusive nos negcios, apesar do mal-estar que causava sua camisa aberta at o umbigo, em certas salas de reunies. Todas as segundas-feiras voava para o Rio. Dizia que precisava pegar uma praia, respirar um pouco. - Voc no estranhava quando ele voltava do Rio branco daquele jeito? perguntou a legtima. - Ele dizia que no adiantava pegar cor na praia, ficava branco assim que pisava em Congonhas disse a outra. As duas sorriram. Mais tarde, em casa, o Dr. Luprcio refletiu sobre o caso. - Um heri de dois mundos sentenciou. A mulher, como sempre, no estava ouvindo. O Dr. Luprcio continuou:

- No Rio, era o paulista tpico. Uma caricatura. Sim, isto! O Dr. Luprcio sempre se agitava quando pegava uma tese no ar com seus dedos compridos. Era isso. No Rio, ele era uma caricatura paulista. A imagem carioca do paulista. Em So Paulo, era o contrrio. - E mais. Quando fazia o papel do paulista proverbial, no Rio, era gozao. Quando fazia o carioca em So Paulo, era estratgia de venda. O advogado, no seu entusiasmo, apertou com fora o brao da mulher, que disse Ai, Luprcio!. - Voc no v? Ele estava sendo cariocamente malandro quando fazia o paulista, e paulistamente utilitrio quando fazia o carioca. Um gigol do esteretipo! Uma sntese brasileira! Mas qual dos dois era o verdadeiro Jos? Duas vivas dormiam sozinhas. A do Rio sem o seu Jos, aquela rocha de critrios e responsabilidades em meio inconseqncia carioca. A de So Paulo sem o seu Carioca, aquele sopro de ar marinho no cinza paulista. As duas suspiraram.

Fonte: http://homemartifice.wordpress.com/2009/08/08/luiz-fernando-verissimo-ecosdo-carnaval/

Um conto de Lus Fernando VerssimoLiteratura A Arte do Conto (conto comentado) Conto de vero n 2: Bandeira Branca Lus Fernando Verissimo Ele: tirols. Ela: odalisca (1). Eram de culturas muito diferentes, no podia dar certo. Mas tinham s quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de danarem, pularem e entrarem no cordo, resistiram a todos os apelos desesperados das mes e ficaram sentados no cho, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, at serem arrastados para casa, sob ameaas de jamais serem levados a outro baile de Carnaval. Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirols, agora apertado nos fundilhos, ela de egpcia. Tentaram recomear o montinho, mas dessa vez as mes reagiram e os dois foram obrigados a danar, pular e entrar no cordo, sob ameaa de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mos dadas. S no terceiro Carnaval se falaram. Como teu nome? Janice. E o teu? Pndaro. O qu?! Pndaro. Que nome! Ele de legionrio romano, ela de ndia americana. S no stimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistrio de s se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia que era scia. Ah. Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a me, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo brao, e os dois foram para o meio do salo, abraados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse At o Carnaval que vem e saiu correndo.

No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mes no estavam olhando. At na boca (2). Na hora da despedida, ele pediu: Me d alguma coisa. O qu? Qualquer coisa. O leque. O leque da bailarina. Ela diria para a me que o tinha perdido no salo. *** No ano seguinte, ela no apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo procura, um havaiano desconsolado. No sabia nem como perguntar por ela. No conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, s vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheir-lo, antegozando o momento de encontr-la outra vez no baile. E ela no apareceu. Marcelo, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaran. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lenol, que estava sendo lavado. O que acontecera? Voc vomitou a alma disse a me. Era exatamente como se sentia. Como algum que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela. Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube e l estava ela! Quinze anos. Uma moa. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida. Sei l. Bvara tropical disse ela, rindo. Estava diferente. No era s o corpo. Menos tmida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a av morrera, logo no Carnaval. E aquela bailarina espanhola? Nem me fala. E o toureiro? Aposentado. A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bvaros. Quando ela o apresentou ao grupo, algum disse Pndaro?! e todos caram na risada. Ele viu que ela estava rindo tambm. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelo. O Marcelo anunciara que levaria vrias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calas da fantasia de sulto. O Marcelo tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e j estou perdendo todas as iluses da

vida, comeando pelo Carnaval. No devo chegar aos 30, pelo menos no inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaran clandestino do Marcelo, vendo ela passar abraada com uma sucesso de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez at criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calas curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas s o que lhe ocorreu dizer foi pelo menos o meu tirols era autntico e desistiu. Mas, quando a banda comeou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a sada, tonto e amargurado, sentiu que algum o pegava pela mo, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salo. Ela enlaando-o com os dois braos para danarem assim, ela dizendo no vale, voc cresceu mais do que eu e encostando a cabea no seu ombro. Ela encostando a cabea no seu ombro. *** Encontraram-se de novo 15 anos depois. Alis, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a me. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse quase no reconheci voc sem fantasias. Ele custou a reconhec-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola (3). A ltima coisa que ele lhe dissera fora preciso te dizer uma coisa, e ela dissera no Carnaval que vem, no Carnaval que vem e no Carnaval seguinte ela no aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como , Banco do Brasil, e como ela no tinha o endereo dele, como no sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, no teria onde tomar nota na fantasia de falsa bvara O que voc ia me dizer, no outro Carnaval? perguntou ela. Esqueci mentiu ele. Trocaram informaes. Os dois casaram, mas ele j se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a me. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido tambm do Banco do Brasil E a todas essas ele pensando: digo ou no digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabea dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida ser apenas o resto da minha vida? (4) E ela pensando: como mesmo o nome dele? Pricles. Ser Pricles? Ele: digo ou no digo que no cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pncio. Ptolomeu Conto de Vero n. 2: Bandeira Branca 1999 de Lus Fernando Verssimo Sinopse: Um garotinho e uma garota se encontram em bailes de carnaval durante anos seguidos. Comentrios: Os textos de Verssimo transitam no limite entre crnica e conto. So breves relatos de fico. A linguagem telegrfica. objetivo, direto, conciso, sinttico (1).Conto de Vero uma narrativa romntica, mas sem perder o tom irnico e bem humorado, caracterstico do autor. Verssimo pinta um quadro simples e significativo da infncia e da adolescncia (2), e mostra como fatos aparentemente sem importncia, ocorridos nesses anos, acabam tendo uma grande importncia na vida do adulto. O momento se amplia por quase toda uma vida, destacando a importncia dos momentos

de ternura de carnavais da infncia (4). na vida adulta que surgem as frustraes, contadas com um toque de melancolia, disfarada com humor (3). Em apenas trs pginas o autor conta tudo sobre a vida dos personagens. Divide o conto em trs partes. Conto de Vero um flagrante da vida humana e pode ter acontecido a qualquer pessoa. Uma histria bonita e comovente, ainda que bem humorada. Fonte: Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Sculo Diversos Autores Seleo: talo Morriconi editora Objetiva 618 pgs. 2000. Nota: A reproduo deste texto tem fins exclusivamente didticos. Fonte: http://webwritersbrasil.wordpress.com/literatura-na-web/a-arte-do-conto/umconto-de-luis-fernando-verissimo/

A televiso Chico Buarque

O homem da rua Fica s por teimosia No encontra companhia Mas pra casa no vai no Em casa a roda J mudou, que a moda muda A roda triste, a roda muda Em volta l da televiso No cu a lua Surge grande e muito prosa D uma volta graciosa Pra chamar as atenes O homem da rua Que da lua est distante Por ser nego bem falante Fala s com seus botes O homem da rua Com seu tamborim calado J pode esperar sentado Sua escola no vem no A sua gente Est aprendendo humildemente Um batuque diferente Que vem l da televiso No cu a lua Que no estava no programa Cheia e nua, chega e chama Pra mostrar evolues O homem da rua No percebe o seu chamego E por falta doutro nego Samba s com seus botes Os namorados J dispensam seu namoro Quem quer riso, quem quer choro

No faz mais esforo no E a prpria vida Ainda vai sentar sentida Vendo a vida mais vivida Que vem l da televiso O homem da rua Por ser nego conformado Deixa a lua ali de lado E vai ligar os seus botes No cu a lua Encabulada e j minguando Numa nuvem se ocultando Vai de volta pros sertes ELA Lus Fernando Verssimo

Ainda me lembro do dia em que ela chegou l em casa. To pequenininha! Foi uma festa. Botamos ela num quartinho dos fundos. Nosso Filho Naquele tempo s tinha o mais velho ficou maravilhado com ela. Era um custo tir-lo da frente dela para ir dormir. Combinamos que ele s poderia ir para o quarto dos fundos depois de fazer todas as lies. Certo, certo. - Eu no ligava muito para ela. S para ver um futebol ou poltica. Naquele tempo, tinha poltica. Minha mulher tambm no via muito. Um programa humorstico, de vez em quando. Noites Cariocas Lembra de Noites Cariocas? - Lembro vagamente. O senhor vai querer mais alguma coisa? E me serve mais um destes. Depois decidimos que ela podia ficar na copa. A ela j estava mais crescidinha. Jantvamos com ela ligada, porque tinha um programa que o garoto no queria perder. Capito Qualquer Coisa. A empregada tambm gostava de dar uma espiada. Jos Roberto Kely. No tinha um Jos Roberto Kely? - No me lembro bem. O senhor no me leva a mal, mas no posso servir mais nada depois deste. Vamos fechar. - Minha mulher nem sonhava em botar ela na sala. Arruinaria toda a decorao. Nesa poca j tinha nascido o nosso segundo filho e ele s ficava quieto, para comer, com ela ligada. Quer dizer, aos pouco ela foi afetando os hbitos da casa. E ento surgiu surgiu um personagem novo nas nossas casas que iria mudar tudo. Sabe quem foi? Quem? - O Sheik de Agadir. Eu, se quizesse, poderia processar o Sheik de Agadir. Ele arruinou o meu lar. Certo. Vai querer a conta? - Minha mulher se apaixonou pelo Sheik de Agadir. Por causa dele, decidimos que ela poderia ir para a sala de visitas. Desde que ficasse num canto, escondida, e s aparecesse quando estivesse ligada. Ns tinhamos uma vida social intensa. Sempre iam visitas l em casa. Tambm saamos muito. Cinema, Teatro, jantar fora. Eu continuava s vendo futebol e notcia. Mas minha mulher estava sucumbindo depois do Sheik de Agadir, nao queria perder nenhuma novela. - Certo. Aqui est a sua conta. Infelizmente temos que fechar o bar.

- Eu no quero a conta. Quero outra bebida. S mais uma. Est bem S mais uma. - Nosso filho menor, o que nesceu depois do Sheik de Agadir, no saa de frente dela. Foi praticamente criado por ela. mais apegado ela do que a prpria me. Quando a me briga com ele, ele corre pra perto dela pra se proteger. Mas onde que eu estava? Nas novelas. Minha mulher sucumbiu s novelas. No queria mais sair de casa. Quando chegava visita, ela fazia cara feia. E as crianas, claro s faltavam bater em visita que chegasse em horrio nobre. Ningum mais conversava dentro de casa. Todo mundo de olho grudado nela. E ento aconteceu outra coisa fatal. Se arrependimento matasse Termine a sua bebida, por favor. Temos que fechar. - Foi a copa do mundo. A de 74. Decidi que para as transmisses da copa do mundo ela deveria ser bem maior. E colorida. Foi a minha runa. Perdemos a copa, mas ela continua l, no meio da sala. Gigantesca. o mvel mais importante da casa. Minha mulher mudou a decorao da casa para combinar com ela. Antigamente ela ficava na copa para acompanhar o jantar. Agora todos jantam na sala para acompanh-la. Aqui est a conta. - E, ento, acontecu o pior. Foi ontem, hora do DancinDays e bateram na porta. Visitas. Ningum se mexeu. Falei para a empregada abrir a porta, mas ela fez Shhh! sem tirar os olhos da novela. Mandei os filhos, um por um, abrirem a a porta, mas eles nem me responderam. Comecei a me levantar. E ento todos pularam em cima de mim. Sentaram no meu peito. Quando comecei a protestar, abafaram o meu rosto com a almofada cor de tijolo que minha mulher comprou para combinar com a maquiagem da Jlia. S na hora do comercial, consegui recuperar o ar e a sentenciei, apontando para ela ali, impvida no meio da sala: Ou ela, ou eu!. O silncio foi terrvel. - Est bem mas agora v para casa que precisamos fechar. J est quase clereando o dia - Mais tarde, depois da Sesso Coruja, quando todos estava dormindo, entrei na sala, p ante p. Com a chave de parafuso na mo. Meu plano era atac-la por trs, abri-l e retirar uma vlvula qualquer. No iria adiantar muita coisa, eu sei. Eles chamariam um tcnico s pressas. Mas era um gesto simblico. Ela precisava saber quem que mandava dentro de casa. Precisava sabe que algum no se entregava completamente a ela, que algum resistia. E ento, quando me preparava para soltar o primeiro parafuso, ouvi a sua voz. Se tocar em mim voc morre. Assim com toda a clareza. Se tocar em mim voc morre. Uma voz feminina, mas autoritria, dura. Tremi. Ela podia estar blefando, mas podia no estar. Agi depressa. Dei um chute no fio, desligando-a da tomada e pulei para longe antes que ela revidasse. Durante alguns minutos, nada aconteceu. Ento ela falou outra vez. Se no me ligar outra vez em um minuto, voc vai se arrepender. Eu no tinha alternativa. Conhecia o seu poder. Ela chegara l em casa pequenininha e aos poucos foi crescendo e tomando conta. Passiva, humilde, obediente. E vencera. Agora chegara a hora da conquista definitiva. Eu era o nico empecilho sua dominao completa. S esperava om pretexto para me eliminar com um raio cattico. Ainda tentei parlamentar. Pedi que ela poupasse a minha vida. Perguntei o que ela queria, afinal. Nada. S o que ela disse foi Voc tem 30 segundos. Muito bem. Mas preciso fechar. V para casa. No posso. -Por qu? - Ela me proibiu de voltar l. (Lus Fernando Verssimo). Fonte: http://mardepoesia.wordpress.com/2011/03/22/a-televisao-chico-buarque/