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7/27/2019 Cultura Popular Educacao Lazer
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CULTURA POPULAR, EDUCAO E LAZER
Pedro Rodolpho Jungers Abib
Prof. da Faculdade de Educao da UFBA
Doutor em Cincias Sociais aplicadas Educao pela UNICAMP
Introduo
A educao formal de nosso pas atravessa uma profunda crise e, sem entrar no mrito
dos equvocos produzidos por polticas educacionais implementadas ao longo de vrias dcadasneste pas, possvel afirmar que ela no consegue dar conta de garantir uma formao crtica,
integral, qualificada e universalizada ao conjunto de milhes de brasileiros, cuja maior parte est
alijada desse direito fundamental, garantido em inmeros tratados, estatutos, declaraes e leis,
funcionando porm, apenas como letra fria sobre o papel (Abib et al., 2000).
Talvez uma das razes desses fracassos em termos quantitativos e qualitativos,
acumulados durante tantas dcadas por diversas experincias envolvendo a educao formal no
Brasil, seja devido a uma tendncia histrica desse campo, de tomar como referncia principal,
uma grande quantidade de mtodos e modelos educacionais originrios de outros pases, e que
foram transplantados mecanicamente para a nossa realidade, sem uma maior preocupao que
fosse manifestada atravs de uma reflexo mais aprofundada sobre a adequao desses mtodos,
s caractersticas histricas e culturais de nossa sociedade.
A globalizao tambm influencia esse contexto, pois segundo Maria da Glria Gohn
(2001), enquanto um efeito inevitvel do capitalismo expancionista internacional, ela desintegra a
sociedade ao desmontar o modelo assentado sobre um projeto poltico, com instituies e agncias
de socializao locais. Torna-se segundo ela, uma sociedade de risco onde imperam as incertezas.
Ignoram-se a diversidade das culturas e a realidade das comunidades, que passam a se fechar ao
redor delas mesmas, como forma de se protegerem da invaso da cultura homogeneizadora que
se apresenta. Com a globalizao da economia, a cultura se transformou no mais importante
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espao de resistncia e luta social. O conflito social central da sociedade moderna ocorre na rea
da cultura. (p.9)
A autora ainda afirma que ...o que foi institudo no passado objetivando justia social,
como o sistema de sade e a escola pblica, hoje fonte de injustia social (p.10), ou seja, as
polticas sociais perdem o carter universalizante e passam a ser formuladas de forma
particularista, ...visando clientelas especficas, e neste processo tanto podem contemplar os
interesses das minorias demandatrias, como vir a ser segregativas/excludentes. (p.12). So
esses, os efeitos mais perversos de um capitalismo que, ao ver esgotadas as possibilidades de
manter suas formas de acumulao originais, se transmuta e adquire outras caractersticas que se
adaptam s novas realidades, sem no entanto, abandonar seu cunho excludente e marginalizante
das populaes enfraquecidas poltica e socialmente.
Os cdigos de valores presentes nos processos educativos envolvendo a culturapopular, se diferenciam substancialmente daqueles privilegiados num processo formal de
educao, mas so fundamentais para garantir a sobrevivncia desses sujeitos numa realidade e
num contexto ainda muito distante da escola formal, que no consegue apreend-lo nem
compreend-lo de forma mais profunda. O aprendizado scio-cultural proporcionado, por
exemplo, pela capoeira e pelo samba, fruto da vivncia comunitria de crianas e jovens,
ainda est muito longe de ser validado pela educao formal, o que causa para esses sujeitos,
um estranhamento e at mesmo certa rejeio, em relao aos processos de aprendizagem
desenvolvidos nessas instncias.
Capoeira e Samba: o jogo dos saberes na roda
Existe um esforo hoje em dia, muito vlido, diga-se de passagem, de enaltecer as
caractersticas educativas da capoeira, fato que vem ocorrendo tambm com o samba.
Destacamos, por exemplo, a capacidade dessas manifestaes de trabalharem com os valores
morais e permitirem a insero social de jovens excludos e marginalizados.
Ao priorizar uma interveno pedaggica com base na educao no-formal e na
cultura popular junto s camadas menos favorecidas da populao, prioriza-se tambm o
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carter humanizante, enfatizando a abordagem do ldico, da corporeidade, da sensibilidade, da
criatividade e da expresso como elementos fundamentais dessa interveno.
Nessa abordagem portanto, esto tambm presentes os valores do lazer, que segundo
Nelson Marcellino (1987), deve ser compreendido como cultura - no seu sentido mais amplo -
vivenciada (praticada ou fruda) no tempo disponvel, j que as atividades, conhecimentos e
informao tratadas nesses espaos, acabam por contribuir para que esses jovens ampliem suas
referncias sobre o mundo a partir desse mergulho na cultura, onde comeam a perceber seu
prprio potencial criador, sua capacidade de expresso, de reflexo crtica, de interpretao
sobre as mais variadas formas e expresses artsticas, a reconstruo de sua identidade a partir
desses novos referenciais e valores, e sobretudo pela nfase na valorizao dos elementos
multiculturais, onde se destaca a cultura afro-brasileira, j que a grande maioria dos alunos
atendidos, bem como quase toda a comunidade a qual pertencem, so oriundos desse grupotnico.
Entendemos ser fundamental, essa abordagem que valoriza a cultura (e o lazer) como
meio de educao e tambm como forma de resistncia, pois Giroux e Simon (1994) afirmam
que uma pedagogia que tome a cultura popular como objeto de estudo, deve reconhecer que
todo trabalho educacional essencialmente contextual e condicional e que essa pedagogia
somente pode ser discutida a partir de um tempo, um espao e um tema especficos. Os autores
oferecem uma noo ampliada e politizada de pedagogia, uma pedagogia, segundo eles, que:
...reconhece seu lugar em mltiplas formas de produo cultural, e no simplesmente naqueles
espaos que vieram a ser rotulados de escolas. Qualquer prtica que intencionalmente busque
influir na produo de significados uma prtica pedaggica .(p.115).
Antes de prosseguirmos, para efeito de melhor compreenso dos conceitos aqui
utilizados, cabe definirmos educao formal, informal e no-formal, entre os autores que se
dispem a discutir o assunto, tal qual Almerindo Afonso (2001), que afirma que:
Por educao formal, entende-se o tipo de educao organizada com uma determinada sequncia eproporcionada pelas escolas, enquanto que a designao educao informal abrange todas aspossibilidades educativas no decurso da vida do indivduo, constituindo um processo permanente eno organizado. Por ltimo, a educao no-formal, embora obedea tambm a uma estrutura e auma organizao (distintas, porm, das escolas) e possa levar a uma certificao (mesmo que noseja essa a finalidade), diverge ainda da educao formal no que respeita no fixao de tempos elocais e flexibilidade na adaptao dos contedos de aprendizagem a cada grupo concreto (p.09)
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Em grande parte dos projetos de educao no-formal desenvolvidos pelos mais
diversos tipos de instituies em nosso pas, voltados para as populaes de baixa renda, a
capoeira aparece como uma das atividades que encontra maior receptividade por parte desse
pblico de crianas e jovens marginalizados. Os resultados obtidos por essas atividadeseducacionais envolvendo a capoeira, bem como outras manifestaes da cultura popular, nas
quais o samba tambm aparece com muita freqncia, so considerados excelentes na opinio
da maioria de pedagogos e arte-educadores envolvidos nesses processos, pois permitem que
sejam trabalhados valores como a auto-estima, o respeito pelo outro, a solidariedade e a auto-
superao entre outros benefcios. Essa sem dvida, uma possibilidade muito importante de
utilizao da capoeira e do samba enquanto processos educativos voltados s camadas menos
favorecidas da sociedade.
Porm no podemos esquecer, como bem nos lembra Frederico Abreu (2001), que a
capoeira s consegue esse efeito positivo num universo de marginalizados, porque ela feita
desse veneno. Ou seja, esses elementos da barra pesada, da desordem e da
malandragem constituem historicamente o ethos da capoeira e tambm do samba, em
funo da perseguio levadas a cabo pelas autoridades constitudas, em que foram vtimas
essas manifestaes durante um longo perodo no nosso pas. O sambista e o capoeirista
sempre foram sujeitos sociais discriminados e marginalizados, refletindo o histrico
preconceito manifestado pela sociedade em relao a essas manifestaes.
Portanto, esses elementos no podem ser desconsiderados porque so essenciais na
conduo de um processo educativo envolvendo sujeitos pertencentes s camadas excludas da
populao, que tm a possibilidade de uma maior identificao com a abordagem educativa
desenvolvida por essas manifestaes. A capoeira e o samba, entre outras manifestaes
oriundas da cultura popular, so excelentes instrumentos de educao pois compartilham,
historicamente, esse universo de excluso, de marginalidade e de discriminao a que
pertencem esses sujeitos .So justamente esses elementos que permitem a seduo pedaggica e a
sensibilizao desses jovens, pois so elementos que fazem parte do seu universo cultural e
simblico, do seu cotidiano. O preconceito e a perseguio de outrora, de certa forma, ainda
afetam essas populaes nos dias de hoje.
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Porm, isso no significa dizer que a educao no-formal referenciada na cultura
popular, no possa ser tambm utilizada para alm das camadas excludas da populao, ou
seja, ela deve tambm ser voltada para segmentos da populao com indicadores sociais mais
elevados, pois esses segmentos podem ser tambm beneficiados por programas educacionais
que visem uma maior conscientizao sobre a necessidade de valorizao dos saberes presentes
na cultura popular, no sentido da busca por transformao social. Mas de qualquer forma, o
pblico-alvo preferencial desses programas, encontram-se mesmo entre as populaes
excludas das grandes e mdias cidades.
Basta visitar uma comunidade nalgum morro qualquer do Rio de Janeiro, ou mesmo na
periferia de So Paulo, ou da maioria dos grandes centros do pas, para percebermos o quanto o
samba, por exemplo, faz parte do cotidiano dessas pessoas, e o quanto os processos de
aprendizagem scio-cultural dele provenientes, se fazem presentes nesses espaos. E no nosreferimos aqui, somente ao fato de que alguns sambas so facilmente aprendidos e acabam se
tornando sucessos cantarolados por esses sujeitos, pois o fenmeno da mdia, acaba sendo
responsvel pela proliferao de um tipo de samba comercial, simplificado meldica e
poeticamente, e romantizado ao excesso, voltado ao consumo de grandes massas. Para efeito
de nossa anlise, no estamos considerando esse tipo de samba, que poderia ser definido mais
como um artigo de consumo, do que propriamente um gnero musical.
Referimo-nos ao fato de que nessas comunidades, principalmente aquelas que abrigam
escolas de samba ou outras agremiaes carnavalescas, o que se v um nmero grande de
pessoas, incluindo jovens e crianas, que dominam facilmente a arte do samba no p assim
como fazia Pato Ngua na escola de samba Vai-Vai, ou como faz at hoje seu Delegado na
Mangueira; ou a arte de compor letras e melodias com o lirismo e a dolncia herdadas de
grandes mestres como Cartola, Nelson Cavaquinho ou Adoniram Barbosa; a arte de tocar com
maestria instrumentos relacionados ao samba como faziam mestre Maral com seu surdo,
Argemiro do Pandeiro, ou como faz ainda seu Jair do Cavaquinho; um domnio na
interpretao vocal desse gnero musical - muito caracterstica e quase espontnea -,como os
grandes mestres Joo Nogueira, Clementina de Jesus ou Paulinho da Viola; alm de um talento
na criao e confeco de fantasias, adereos e alegorias, embora esse processo relacionado
mais diretamente aos grandes desfiles carnavalescos, vem se profissionalizando cada vez mais,
principalmente no Rio de Janeiro e em So Paulo. Mas de qualquer forma, um saber histrico
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originrio desses sujeitos. As fantasias, adornos, vestimentas coloridas, etc..., so uma das mais
marcantes caractersticas que se apresentam na maior parte das manifestaes tradicionais da
nossa cultura popular.
A capoeira, constituda por elementos ldicos e agressivos, dana e batalha, vida e
morte, medo e alegria, sagacidade, msica, brincadeira, ancestralidade e ritualidade,
caracteriza-se como uma manifestao cultural difcil de ser definida num nico conceito.
Essa riqueza de significaes, quando devidamente contextualizada e historicizada, d
capoeira uma identidade muito forte e profunda, construda atravs de todo um passado de
luta por libertao, e sobretudo pela afirmao de uma cultura que se recusa a ser subjugada,
embora muito se tenha feito em nosso pas para que isso se concretizasse (Abib et allii, 2000).
Tendo a sua gnese no perodo da escravido, num contexto extremamente violento,
onde a luta pela liberdade e pela vida se fazia necessria, a capoeira traz na sua essncia essecarter de revolta contra todo um sistema desumano e opressor. a autntica manifestao de
um grito por libertao que vem da alma de um povo subjugado, que se apega s suas razes
e ao seu passado para encontrar foras e continuar resistindo contra uma situao to
adversa. A rebeldia da capoeira reside no fato de que ela sempre foi uma contestao ao
estabelecido. Ao inverter a lgica das coisas, quando fica de "pernas para o ar" subvertendo
assim esse olhar para o mundo, o capoeirista exprime o sentido maior da dialtica humana.
Esse passado to presente numa roda de capoeira, vigora e denuncia, medida que
traz tona tantos conflitos, permitindo dessa forma, uma melhor compreenso do presente,
enquanto se traduz como indignao e inconformismo Nesse vigorar, abre as possibilidades
para projeo de um futuro que j se faz germinado a partir da tomada de uma conscincia
coletiva sobre a historicidade dos processos das relaes sociais, das quais esses sujeitos so
protagonistas. Falamos de um processo de conscientiz-ao coletiva, pois se trata de uma
conscincia que abre concretas possibilidades de ao, enquanto construo de um futuro.
Caracteriza-se dessa forma, um rico processo de educao no-formal baseado nos saberes e
nas tradies populares.
E tantos so os guardies desses saberes referentes capoeira, como os mestres
Pastinha e Bimba, Valdemar, Aberr, Canjiquinha, Trara, Noronha, Cobrinha Verde,
Besouro Mangang e tantos outros, figuras ainda presentes no imaginrio de todos os
capoeiristas, cantados e lembrados nas rodas de capoeira, ou ainda como os mestres Joo
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Pequeno, Joo Grande e Curi, trs dos mais importantes representantes da tradio da
capoeira angola, ainda vivos e ativos, levando seus ensinamentos para o mundo afora.
Ento perguntamo-nos: onde se aprende tudo isso ? quem so os professores ? como
esse processo se d ? Certamente no no interior de uma escola formal, pois ningum
aprende samba no colgio como sugeria Noel Rosa em sua cano Feitio de Orao.
Comunidade: um conceito chave
O conceito de comunidade fundamental para que possamos compreender os processos
de transmisso de saberes presentes no universo da cultura popular. Ferdinand Tnnies (1991),
j no incio do sculo passado, fazia a crtica passagem de um modelo tradicional acomunidade, para um modelo complexo a sociedade. Para ele, a sociedade caracteriza-se pela
racionalizao e pela complexidade de suas relaes. A sociedade ou a metrpole , o local
da mobilidade e do anonimato. Diferente portanto, da vida em comunidade, concebida como
uma vida real e orgnica, mais forte e viva entre os homens, como forma de vida comum,
verdadeira e duradoura, e onde o espao e o tempo adquirem outra dimenso; enquanto a vida
em sociedade tida por ele, como uma estrutura mecnica e imaginria.
Segundo o autor, na sociedade, cada um est por si e isolado, e em estado de tenso
perante todos os outros. As esferas particulares de atividade e poder so nitidamente limitadas
pela relao com os demais, de tal forma que cada um se defende do contato com os outros, e
limita ou probe a incluso destes em suas esferas privadas, sendo tais intruses consideradas
atos hostis. Quando algum possui e desfruta alguma coisa, o faz com a excluso dos demais.
No existe, ressalta o autor, na realidade, o bem comum.
Na vida em comunidade, pelo contrrio, as relaes sociais so caracterizadas por uma
proximidade muito maior entre as pessoas e onde o culto ocupa espao privilegiado. Em
princpio, ressalta Tnnies, o lar e o trabalho eram um s, o mesmo culto. O culto, ele prprio
era uma arte. Arte e ofcios perpetuavam-se, transmitidos como uma f, como mistrio e
dogma, pelo estudo e pelo exemplo. A arte e a religio impregnavam de contedo a vida
cotidiana como medida e regras dos deveres e direitos, ativas e vlidas no pensamento e na
ao.
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Enquanto na comunidade, os homens permanecem essencialmente unidos, a despeito de
tudo que os separa, diz Tnnies, na sociedade eles esto essencialmente separados a despeito
de tudo que os une. Os sentimentos recprocos comuns e associados, enquanto vontade prpria
de uma comunidade, que o autor denomina como consenso, representa a fora e a solidariedade
social particular que associa os homens enquanto membros de um todo.
Comunidade um conceito que tem uma profunda e histrica ligao com o samba. Em
extensa pesquisa que realizou sobre o carnaval de So Paulo, Olga von Simson (1991), destaca
que os desfiles de rua representavam o auge das folganas do carnaval negro, pois
representavam uma forma eficiente para esse grupo se afirmar scio-culturalmente na vida
urbana de uma cidade como So Paulo, caracteristicamente reconhecida como branca,
imigrante e discriminadora. Segundo a autora, s foi possvel a organizao do carnaval negro,
e a sua articulao atravs de uma rede de filiais dos cordes e escolas de samba, peloprofundo sentido comunitrio desse grupo social, que tinha como ncleos fundamentais, as
casas de membros mais influentes das agremiaes (geralmente as costureiras), situadas em
bairros perifricos, geralmente na zona leste e norte da cidade, onde era realizado um
importante trabalho preliminar de organizao e ensaio dos folguedos, que s buscavam a sede,
situada em bairros centrais tradicionais de forte presena negra, para os ensaios finais.
Simson afirma que o significado maior que o carnaval assume para a populao negra
paulistana, se d justamente pela oportunidade de ela se expressar scio-culturalmente para
uma sociedade, a princpio escravocrata e posteriormente altamente discriminadora. O espao
do carnaval, ressalta a autora, foi sempre utilizado pelos grupos negros para o exerccio do que
pode ser tido como resistncia inteligente, ou seja, aquela resistncia que se exerce no
cotidiano, ao nvel da cultura, aproveitando as brechas que a religio, o lazer e a poltica
possam apresentar, e que o negro paulistano sempre soube alargar (p.55).
O forte sentido comunitrio que permitiu que o carnaval negro paulistano conquistasse
seu espao, a duras penas bem verdade, numa cidade onde o reconhecimento e a valorizao
da comunidade afro-brasileira era bem menor que no Rio de Janeiro, por exemplo, foi uma
conquista da capacidade de organizao desses sujeitos, que se refletem at hoje, nos bairros
mais representativos do carnaval paulistano, que se constituem em comunidades fortes e
atuantes, que se aglutinam em torno de suas escolas de samba, como a Vila Matilde, o Peruche,
a Casa Verde, sem falar no Bixiga, considerado o reduto do samba na cidade.
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O mundo do samba nos traz inmeros exemplos de comunidades fortes e organizadas,
com um profundo sentimento de identidade, que se manifesta tambm atravs de um senso de
solidariedade e responsabilidade social entre seus membros, aliado a um profundo respeito ao
seu passado e aos seus ancestrais.
Essas comunidades que tm justamente no samba, seu ponto maior de convergncia, se
mobilizam durante todo o ano em funo de se organizarem para o desfile de carnaval. Porm,
na maioria delas, essa mobilizao tambm canalizada para projetos sociais, onde a educao
no-formal e o lazer que abrangem reas como a arte-educao, cursos profissionalizantes e
esportivos, atende uma grande quantidade de crianas, jovens e adultos. E o enfoque central de
grande parte desses cursos , diferentemente da maioria das escolas formais, a realidade scio-
cultural-econmica da comunidade. O sentido de pertencimento comunitrio e solidariedade
social se fazem presentes de forma marcante nesses espaos educativos.Na capoeira, tambm percebemos o forte sentido que tem o termo comunidade, embora
esse termo no se refira a um espao geogrfico localizado, o sentido de pertencimento a um
grupo de capoeira, rene todos os elementos que constituem as caractersticas de uma
comunidade, tal qual aqui analisada. A solidariedade entre seus membros, a cooperao em
atividades de mobilizao do grupo, que vai de mutires para construo da sede at realizao
de eventos envolvendo outros grupos, alm de uma relao de irmandade desenvolvida pelos
capoeiras de um mesmo grupo, so exemplos de como o sentido de comunidade est presente
nesses espaos, embora muitos grupos na atualidade, se organizem em ncleos espalhados por
diversas regies do pas e mesmo em diversos pases do mundo, e ainda assim mantm-se o
sentimento de pertencimento comunitrio com muita expressividade, entre os membros desses
grupos.
Obviamente, as transformaes pelas quais passa o mundo globalizado tm dado muito
mais nfase s relaes sociais inseridas no modelo de sociedade, do que no de comunidade,
conforme definio de Tnnies. Porm, esse processo, por ser extremamente contraditrio e
conflituoso, como dizia Ianni em captulo anterior, tambm provoca reaes. A necessidade
dos sujeitos da era globalizada, em buscar um retorno s formas mais comunitrias de vida,
tambm uma caracterstica que j vem sendo notada em muitos grupamentos sociais, processo
esse j analisado por ns no primeiro captulo.
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A comunidade um fator essencial para que as tradies presentes no universo da
cultura popular sejam preservadas, assim como vimos em relao capoeira e ao samba. Essas
tradies s resistem s transformaes impostas pela modernidade, justamente por
preservarem, ainda que de forma ambgua pois a globalizao causa mudanas em todas as
esferas das relaes humanas , as formas e modos pelos quais as relaes sociais se
estabelecem no seio daquilo que mais se aproxima da definio de comunidade utilizada por
Tnnies.
Portanto, os processos de transmisso de saberes presentes no universo da cultura
popular, tm como base para sua efetivao, a vivncia em comunidade, pois s essa
caracterstica permite que os princpios aqui j discutidos como a memria, a oralidade, a
ancestralidade e a ritualidade, possam ser enfatizados de maneira a garantir que os processos de
aprendizagem social dos sujeitos se realizem com base na cultura e nas tradies daquele gruposocial.
Essa vivncia em comunidade, porm, no significa uma volta a um passado longnquo
e nostlgico, pois as condies atuais das sociedades modernas no o permitiriam. Trata-se de
uma reconstruo criativa das possibilidades de se viver e se relacionar com o mundo, com
base em outros princpios e valores, pautados por uma dimenso mais solidria e humanizante.
Esse processo est diretamente ligado maneira como as tradies da cultura popular se fazem
presentes em nossa sociedade, j que os sujeitos que delas participam s tem condies de
articularem-se e organizarem-se, a partir das condies que s uma vivncia comunitria muito
coesa e atuante poderia permitir.
Talvez seja esse, o maior ensinamento que a cultura popular possa estar nos
disponibilizando nesse momento atual, em que vem se revitalizando em vrias partes do
mundo, e com isso, revitalizando tambm as possibilidades de se pensar e agir sobre os
processos de educao vigentes em nossa sociedade, a partir de outros ngulos e outras
possibilidades. A experincia, os saberes e conhecimentos da cultura popular, representam esse
manancial no qual a educao formal precisa se ensopar, como diria o mestre Paulo Freire.
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Uma outra perspectiva de se pensar a educao
Temos clareza, portanto, que essas experincias envolvendo a educao no-formal e a
cultura popular se inserem numa proposta pedaggica que aproxima educao e lazer, como
elementos fundamentais de uma formao crtica e humanizante, pois segundo Nelson
Marcellino(1987) trata-se de um posicionamento baseado em duas constataes: a primeira,
que o lazer um veculo privilegiado de educao; a segunda, que para a prtica positiva das
atividades de lazer necessrio o aprendizado, o estmulo, a iniciao, que possibilitem a
passagem de nveis menos elaborados, simples, para nveis mais elaborados, complexos, com o
enriquecimento do esprito crtico, na prtica ou na observao(p.58).
Podemos verificar ento, a partir dessa anlise, um duplo processo educativo - o lazer
como veculo e como objeto da educao, como faz questo de ressaltar o autor. Por sua vez,Requixa(1980) contribui com essa discusso quando considera que se pode educar pela prtica
do lazer, como tambm reconhece a importncia de se educar para o lazer. S que, nesse
ltimo caso, preconiza que o melhor estmulo educativo para o lazer seja o prprio exerccio do
lazer.
Para Marcellino (1983): a educao para o lazer pode ser entendida tambm como
instrumento de defesa contra a homogeneizao e internacionalizao dos contedos
veiculados pelos meios de comunicao de massa, atenuando seus efeitos, atravs do
desenvolvimento do esprito crtico(p.71).
Nesse sentido o autor ainda ressalta que em relao ao acesso produo cultural, nossa
histria muito recente, citando que somente nas primeiras dcadas do sculo XX, que se
inicia um maior desenvolvimento cultural entre ns, com o princpio da consolidao de uma
criao nacional. Assim, entramos na fase de produo, de consumo, sem praticamente
nenhuma tradio cultural. Por isso, concordamos com ele quando afirma que essa situao
favorece as influncias da indstria cultural, que tende a gerar necessidades padronizadas, para
maior facilidade no consumo, fato que torna ainda mais necessrio um processo educativo de
incentivo imaginao criadora, ao esprito crtico, ou seja, uma educao para o lazer, que
procure no criar necessidades, mas satisfazer necessidades individuais e sociais, o que
permite, nas palavras de Jofre Dumazedier (1974): ...que cada um saia das rotinas e dos
esteretipos impostos pelo funcionamento dos organismos de base, abrindo o caminho para
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uma livre superao de si mesmo e de uma liberao do poder criador, em contradio ou em
harmonia com os valores dominantes da civilizao.(p.97).
Para Raul Iturra (1990), quem ensina, tem j adquirida uma viso de existncia que o
coloca racionalmente fora das particularidades da aprendizagem cultural. O liberalismo e a
interpretao positivista da histria e dos fenmenos, acabou com uma explicao local dos
fatos que provm da prtica do trabalho e do saber acumulado na memria oral, para salientar o
saber textual que reproduz pela autoridade da escrita. A escola, segundo o autor, representa um
saber positivista perante um saber cultural, pois se caracteriza como ...um lugar sagrado do
silncio onde se dizem coisas longnquas do real, trazendo o divrcio entre cotidiano e escola
(p.59).
A cultura popular, historicamente, nunca foi tida enquanto um conhecimento legtimo no
mbito dos currculos da educao formal. A forma folclorizada como ainda hoje soretratadas as manifestaes da nossa cultura popular, nos programas educacionais da maior parte
das escolas, sejam elas particulares ou pblicas, um exemplo claro sobre os preconceitos que
persistem nesse mbito, herana de uma racionalidade eurocntrica, que influencia ainda, a
maioria dos programas formais de educao, apesar de algumas iniciativas recentes envolvendo
alguns municpios e estados da federao, terem proporcionado a implantao de programas
educacionais que avanam em relao a esse paradigma.
Na maioria dos casos, a cultura popular s entra nos programas educacionais por via de
atividades relativas a datas especiais como o ms do folclore, o dia da conscincia negra, as
festas juninas, etc...se limitando a uma abordagem superficial e caricaturada de seus elementos,
no se constituindo enquanto um saber legitimado e valorizado pela cultura escolar. Essa
realidade tem se modificado nos ltimos anos, mas os avanos ainda so restritos, pois antes de
mais nada preciso que haja uma mudana na mentalidade de educadores e gestores
educacionais, ainda pautada por uma racionalidade objetivista, tal qual analisada e criticada por
ns, nos captulos anteriores.
Os prprios educadores, em sua maioria, tm dificuldade em estabelecer vnculos entre
os saberes universais, provenientes da racionalidade acadmico-cientfica, com os saberes
populares provenientes das culturas tradicionais, que ao nosso ver, seria o caminho ideal a ser
seguido pela educao formal. A formao desses educadores deveria garantir que houvesse um
tratamento privilegiado s questes referentes aos saberes tradicionais populares, enquanto
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forma e contedo dos programas pedaggicos, para que o processo de troca e dilogo com os
saberes cientficos se desse de forma mais equilibrada e no hierarquizada. Portanto, alm das
polticas pblicas no campo da educao, a formao continuada dos educadores, tambm deve
estar voltada para as experincias produzidas no campo do saber tradicional popular, pois s
dessa forma, ser possvel o alargamento da racionalidade e dos paradigmas que predominam
nessas instncias.
Feitas algumas consideraes sobre as dificuldades encontradas pela educao formal em
considerar e valorizar os saberes provenientes do universo da cultura popular, aps termos
analisado as vrias formas de aprendizagem presentes nesse universo, acreditamos estar
contribuindo com a abertura de um possvel caminho capaz de permitir a ampliao das
referncias existentes no mbito da educao formal, afim de que possam ser estabelecidos
canais de comunicao e dilogo entre o saber acadmico-cientfico e o saber popular,proporcionando a possibilidade de construo de propostas educacionais concretas que sejam
capazes de incluir e validar os saberes e as experincias advindas da cultura popular.
O universo da cultura popular, enquanto um campo extremamente rico e diversificado,
em que a oralidade e a ritualidade abrigam saberes dos mais significativos, remete a toda uma
ancestralidade onde residem aspectos importantssimos relacionados histria no contada
dos derrotados, aos processos identitrios das camadas subalternas da nossa sociedade, ao ethos
do povo oprimido, enfim, cultura dos excludos do nosso pas.
Infelizmente, esse universo permanece ainda praticamente inexplorado, como uma mata
virgem que guarda riquezas, segredos e enigmas, que se mostram vivos e dinmicos, mas ainda
invisveis aos olhos dos responsveis por grande parte dos programas envolvendo a educao
formal desse pas. vital, como diz Gohn (2001), que se coloque a diversidade histrica e
cultural e o reconhecimento do outro, como metas na formao dos indivduos enquanto
cidados.
Defende a autora, a necessidade de se desenvolver uma nova cultura escolar que fornea
aos alunos, instrumentos para que saibam interpretar o mundo. Trata-se de um acervo de
conhecimentos que no tm sido desenvolvidos nas escolas, gerador de um saber interpretativo,
to importante quanto um saber cientfico (p.14). A cultura popular pode ser considerada, a
partir dessa anlise, um importante plo gerador desse saber interpretativo, que a cultura escolar
ainda no soube aproveitar.
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A cultura popular representa para Roger Simon e Henry Giroux (1994), no s um
contraditrio terreno de luta, mas tambm um importante espao pedaggico onde so
levantadas relevantes questes sobre os elementos que organizam a base da subjetividade e da
experincia do aluno. Situada no terreno do cotidiano, a cultura popular quando valorizada e
legitimada no currculo escolar , em conseqncia disso, apropriada pelos alunos e ajuda a
validar suas vozes e experincias. (p.96).
Na viso dos autores, o discurso dominante ainda define a cultura popular como o que
sobra aps a subtrao da alta cultura, da totalidade das prticas culturais. Ela vista como o
banal e o insignificante da vida cotidiana, e geralmente uma forma de gosto popular
considerada indigna de legitimao acadmica ou alto prestgio social.
Afirmam Simon e Giroux que precisamente quando pedagogia e cultura popular se
relacionam, que surge a importante compreenso de tornar o pedaggico mais poltico e opoltico mais pedaggico. A cultura popular e a pedagogia representam importantes terrenos de
luta cultural que oferece no apenas discursos subversivos, mas tambm relevantes elementos
tericos que possibilitam repensar a escolarizao como uma vivel e valiosa forma de poltica
cultural. (p.97).
A partir dessa aproximao entre cultura e popular,educao, e lazer que buscamos
nesse texto, entendemos que s tem sentido se falar em aspectos educativos do lazer, se esse
for considerado como um dos possveis canais de atuao no plano cultural, tendo em vista
contribuir para uma nova ordem moral e intelectual, favorecedora de mudanas no plano
social, ou seja, consider-lo como um dos campos possveis da contra-hegemonia, e os
educadores envolvidos nesse processo, assumirem claramente o papel defendido por Antonio
Gramsci (1979), de intelectuais orgnicos com compromisso de classe social.
Talvez seja esse o caminho fundamental a ser seguido, se quisermos pensar num projeto
de sociedade e de educao que seja libertador, e que possa trazer consigo, alm do
conhecimento cientfico, a fora e a sabedoria das pessoas simples do nosso pas, como um
grande manancial de experincia e humanidade.
7/27/2019 Cultura Popular Educacao Lazer
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