11
CUNHA, E. L. . A emergência da cultura e da crítica cultural. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS, v. 1, p. 73-82, 2009. A EMERGÊNCIA DA CULTURA E DA CRÍTICA CULTURAL * Eneida Leal Cunha UFBA/PUC-RIO 1 Como estratégia para pautar algumas questões sobre a crítica cultural ou os estudos da cultura no âmbito das Letras no Brasil, vale a pena recuperar, preliminarmente, significações dicionarizadas da palavra “emergência”, posta em destaque no título desta reflexão: ato de emergir, de vir à tona; situação grave, momento crítico, contingência; dispositivo de segurança que deve ser acionado em situações difíceis; combinação inesperada de circunstâncias imprevistas (ou que delas resulta) e que exigem ação imediata; o que se torna claro e compreensível, o que aparece, se expressa ou se manifesta em determinado momento 1 . Estas significações podem ser adensadas se articularmos uma delas (“o que se torna claro e compreensível, o que aparece, se expressa ou se manifesta em determinado momento”) ao uso do termo “emergência” que Michel Foucault criteriosamente recupera ao mapear, na Genealogia dos Valores e em outros trabalhos de Nietzsche 2 , as palavras às quais o filósofo recorre para recusar a noção de origem (Ursprung), enquanto lugar da verdade e da pureza, da essência exata de alguma coisa, sua forma imóvel e anterior a tudo que é externo ou acidental, sua identidade primeira ou seu fundamento. Como um bom discípulo do mestre que se declarava mais filólogo do que filósofo, Foucault coleciona e interpreta os termos utilizados por Nietzsche para desconstruir a idéia de origem. Proliferam, na Genealogia da Moral e em outros trabalhos, palavras como “começo” (Geburt), “proveniência” (Herkunft), “emergência” (Entestehung), cuja significação não é equivalente entre si, no sentido de que não são permutáveis nem são sinônimos de origem. * CUNHA, E. L. . A emergência da cultura e da crítica cultural. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS , v. 1, p. 73-82, 2009. 1 Cf. Dicionário Houaiss para a Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 2 Cf. FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: A Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.11-37.

CUNHA, Eneida Leal. A EMERGENCIA DA CULTURA.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • CUNHA, E. L. . A emergncia da cultura e da crtica cultural. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS, v. 1, p. 73-82, 2009.

    A EMERGNCIA DA CULTURA E DA CRTICA CULTURAL*

    Eneida Leal Cunha UFBA/PUC-RIO

    1

    Como estratgia para pautar algumas questes sobre a crtica cultural ou os estudos da cultura

    no mbito das Letras no Brasil, vale a pena recuperar, preliminarmente, significaes

    dicionarizadas da palavra emergncia, posta em destaque no ttulo desta reflexo: ato de

    emergir, de vir tona; situao grave, momento crtico, contingncia; dispositivo de

    segurana que deve ser acionado em situaes difceis; combinao inesperada de

    circunstncias imprevistas (ou que delas resulta) e que exigem ao imediata; o que se torna

    claro e compreensvel, o que aparece, se expressa ou se manifesta em determinado momento1.

    Estas significaes podem ser adensadas se articularmos uma delas (o que se torna claro e

    compreensvel, o que aparece, se expressa ou se manifesta em determinado momento) ao uso

    do termo emergncia que Michel Foucault criteriosamente recupera ao mapear, na

    Genealogia dos Valores e em outros trabalhos de Nietzsche2, as palavras s quais o filsofo

    recorre para recusar a noo de origem (Ursprung), enquanto lugar da verdade e da pureza, da

    essncia exata de alguma coisa, sua forma imvel e anterior a tudo que externo ou acidental,

    sua identidade primeira ou seu fundamento.

    Como um bom discpulo do mestre que se declarava mais fillogo do que filsofo, Foucault

    coleciona e interpreta os termos utilizados por Nietzsche para desconstruir a idia de origem.

    Proliferam, na Genealogia da Moral e em outros trabalhos, palavras como comeo

    (Geburt), provenincia (Herkunft), emergncia (Entestehung), cuja significao no

    equivalente entre si, no sentido de que no so permutveis nem so sinnimos de origem.

    * CUNHA, E. L. . A emergncia da cultura e da crtica cultural. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS ,

    v. 1, p. 73-82, 2009. 1 Cf. Dicionrio Houaiss para a Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 2 Cf. FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a histria. In: A Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal,

    1979. p.11-37.

  • 2

    2

    Constata assim que o termo emergncia aparece quando Nietzsche se refere ao ponto de

    surgimento de um valor ou de um conceito, que se produz em um determinado estado de

    foras; ou entrada em cena de foras recalcadas, confinadas no silncio dos bastidores.

    Nesta perspectiva, a emergncia sempre um lugar de enfrentamento e de afrontamento, de

    embate entre foras dominantes e foras e dominadas, e, portanto, no pode ser compreendida

    como o ponto inaugural de alguma coisa nem como uma continuidade, mas como efeito de

    deslocamentos, reposicionamentos ou inverses. Para Nietzsche, a cada momento da histria,

    o que dominante fixa um ritual, ou seja, um conjunto de obrigaes, direitos, marcas e

    regras, destinado a assegurar uma atribuio de sentido e de valor. Por isto, conclui Foucault,

    a histria de uma palavra ou de uma coisa a histria das foras que delas se apoderaram, a

    histria de suas significaes ou de suas interpretaes:

    O grande jogo da histria ser de quem se apoderar das regras, de quem

    tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarar para pervert-las,

    utiliz-las ao inverso e volt-las contra aqueles que as tinham imposto; de

    quem, se introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo

    que os dominadores encontrar-se-o dominados por suas prprias regras.3

    2

    Esta breve definio de termos parece aqui indispensvel para atenuar o que primeira

    vista poderia ser considerado como uma incongruncia no ttulo: em que sentido se pode

    tratar como uma emergncia a avassaladora presena da cultura (ou da palavra cultura) em

    nossos dias?

    A cultura nos soa hoje como uma palavra de ordem tanto para os nossos investimentos

    intelectuais como para os programas polticos de resistncia ou de contestao, quanto, ainda,

    para a agenda dos investimentos econmicos, quando a indstria cultural constitui uma das

    atividades mais rentveis no mundo globalizado. Menos do que essa espcie de onipresena, a

    idia ou o desafio da emergncia da cultura est no fato de que dificilmente se consegue dizer

    3 FOUCAULT, M. Op.Cit. p.25-6.

  • 3

    3

    com preciso o que ela recobre, pois j no somos capazes de enunciar um conceito de cultura

    que d conta de todas as suas dimenses.

    Por um lado, encontra-se com freqncia, tanto nos manuais quanto nas postulaes mais

    complexas acerca dos estudos da cultura, a advertncia reiterada, como uma espcie de alerta,

    sobre a necessidade de uma compreenso clara de cultura; por outro, no nos sentimos muito

    vontade para defini-la ou para escolher e aderir a uma definio proposta. provvel que

    isto ocorra porque, como sugere Eagleton4, estamos encurralados entre noes

    demasiadamente amplas a exemplo de cultura como todo um modo de vida, que vem do

    campo antropolgico , ou noes demasiado e at desconfortavelmente estreitas,

    excludentes, como o melhor que foi pensado e dito pela humanidade, conforme postulava

    Matthew Arnold (em Culture and Anarchy, 1869), que compreendia e preconizava a

    distribuio democrtica da alta cultura como antdoto para as tenses sociais.

    O problema ou a nossa demanda atual, entretanto, talvez j no seja providenciar um conceito

    plausvel, aceitvel, de cultura. At porque j aprendemos que definir ou conceituar alguma

    coisa corresponde sempre a um ato de restrio, a um gesto (intelectual, interpretativo) de

    separ-la daquilo (que julgamos) que ela no .

    Como alternativa delimitao da cultura em uma definio, pode-se usar uma estratgia

    inversa, a partir de um deslocamento da questo, ou seja, pode-se reconhecer que o nosso

    problema principal no dizer o que a cultura ou o que cultura, mas buscar identificar e

    compreender as significaes, os sentidos e os valores que historicamente foram atribudos

    palavra cultura as suas diferentes emergncias em circunstncias histricas especficas e,

    aps isto, avaliar quais dessas significaes ainda vigoram em nossos dias, para quem

    vigoram e como se d o embate entre essas diferentes apropriaes da palavra (e da prpria

    cultura).

    Para dar conta desta empreitada com brevidade, valiosa a contribuio de Terry Eagleton5

    ao retomar um dos mais argutos pensadores da cultura no sculo XX, o britnico Raymond

    Williams6, que elencou os trs principais sentidos modernos que foram atribudos palavra,

    4 EAGLETON, Terry. A cultura em crise. In: A idia de cultura. Lisboa: Temas e Debates, 2002. p. 49. 5 Cf. EAGLETON, Op. Cit. p. 20-47. 6 WILLIAMS, Raymond, Keywords, Londres 1976, p. 76-82. (1953).

  • 4

    4

    expondo as foras que, em cada contexto histrico-social (e cultural, poderamos acrescentar),

    dela se apropriaram para impor diferentes significaes, valores e, conseqentemente,

    prescries e regras.

    A primeira emergncia moderna da palavra se d no Iluminismo do sculo XVIII, quando a

    noo de cultura praticamente equivale de civilizao e de civilidade, designando o processo

    geral de progresso intelectual, espiritual, material da Humanidade. Neste contexto de

    profundas transformaes sociais que d incio vida moderna, a cultura diz respeito vida

    urbana, s polticas cvicas, mas tambm tecnologia e ao progresso e s boas maneiras,

    sempre com o sentido de avano em relao a algo que antecedeu. Ultrapassa, portanto, a

    dimenso individual, requer condies sociais, tem dimenso poltica e envolve o Estado. A

    cultura (ou a civilizao) nesse momento, portanto, corresponde vida tal como socialmente

    vivida pelos europeus, especialmente na Frana. a partir dessa compreenso de cultura

    como civilizao, que tambm se firma a noo de barbrie, relativa aos outros, aos no

    europeus, que devero alcan-la ou, melhor, devero ser conduzidos at ela: devero ser

    colonizados7.

    Caracterizada desta forma breve, a compreenso iluminista pode parecer muito distante de

    ns, mas o fato que ela persiste em vrias dimenses da vida social at o presente, como em

    grande parte dos valores que organizam o nosso sistema de educao, ou na idia de

    formao (Bildung), como aperfeioamento espiritual, atravs do compartilhamento de um

    estoque de conhecimentos, experincias e valores consagrados como o pice da condio

    humana ou o que de melhor a humanidade teria produzido. E dessa concepo de cultura

    derivam inmeras expresses do senso comum, a exemplo da que designa um indivduo ou

    um grupo social como inculto .

    Quase em simultneo ao Iluminismo, emerge a partir da Alemanha uma compreenso diversa

    de cultura, que.privilegiar no a universalidade dos valores civilizacionais, mas aquilo que

    pode constituir a singularidade de um povo. Fundada no idealismo alemo e fortemente

    articulada ao processo de unificao dos estados nacionais modernos, cultura significa ento o

    modo de vida caracterstico de um povo, sua singularidade expressa concretamente no

    cotidiano, em formas especficas como os costumes, os valores e, especialmente, uma lngua,

    7 A propsito da familiaridade que no apenas etimolgica entre cultura e colonizao, conferir o livro de Alfredo Bosi, Dialtica da colonizao (Companhia das Letras, 1992)

  • 5

    5

    ou projetada no passado, atravs de um acervo de memrias compartilhadas e da narrativa

    mtica de uma origem comum. Esta noo romntica e, a seu modo, popular de cultura far

    fortuna ao longo do sculo XIX, como expresso do esprito de um povo e de alguma

    forma tambm chega ao nosso presente, seja enquanto cultura nacional ou nacionalidade seja,

    em tempos mais recentes, enquanto especificidade da memria cultural e das demandas de

    segmentos internos ao prprio estado nacional, e ainda nas reivindicaes de diversidade e

    pluralismo culturais. Pois dela, desta segunda significao histrica que deriva a

    possibilidade de declinar a palavra e conceber a cultura no plural: culturas.

    A terceira variante da significao de cultura emerge no sculo XIX por sua reduo gradual,

    mas gravemente exitosa, ao domnio das artes. Como conseqncia, a cultura confinada a

    uma pequena e privilegiada frao da sociedade s pessoas cultivadas ou cultas e se

    transforma, como demonstrou Bourdieu, em fator de distino social8. Nesta perspectiva, a

    idia de cultura simultaneamente intensificada (pelo prestgio, quase uma sacralizao das

    artes ou da dimenso esttica), e de certa forma empobrecida (por seu carter

    irrevogavelmente excludente e antidemocrtico). Nesta noo de cultura, que prevalece no

    que se convencionou designar como alta modernidade e se articula intransigente

    reivindicao da autonomia esttica, pode-se perceber o crescente distanciamento entre a

    Cultura (aqui com C maisculo) e a hermenutica leiga ou a experincia cotidiana comum

    maioria, como tambm o afastamento da Cultura em relao dimenso poltica e s disputas

    sociais.

    Embora a apresentao dos trs principais eixos de significao da palavra cultura que

    prevaleceram na modernidade ocidental termine por estabelecer uma certa cronologia ou

    sequenciamento, no difcil reconhecer nossa volta a persistncia e co-existncia alargada

    de todos eles at os dias atuais, s vezes como simples continuidade, outras como ruptura,

    diferena e tenso.

    3

    8 BOURDIEU, Pierre. A Distino: crtica social do julgamento, Porto Alegre, Editora Zouk, 2007.

  • 6

    6

    Contemporaneamente, a noo de cultura j no se encontra provida da segurana e da

    legitimidade que lhes atriburam igualmente, embora em circunstncias histricas e

    correlao de foras diversas o empreendimento civilizacional iluminista, o Estado nacional

    moderno e, no ltimo caso, as elites letradas. Por esta razo a cultura, em nosso tempo,

    tornou-se especialmente o territrio da instabilidade, do conflito e da disputa.

    Retornando s ponderaes iniciais sobre a emergncia, preciso identificar as foras que

    saram dos bastidores e passaram a disputar a significao cultural. Para efeito de exposio,

    pode-se abordar esta disputa privilegiando duas vertentes de significao da cultura que

    atravessam a nossa rea de Letras, com uma histria de longa durao.

    A primeira delas - a ligao mutuamente legitimadora entre literatura e nacionalidade est

    relacionada ao processo de unificao ou de constituio dos estados modernos, sustentados

    pela idia de cultura como singularidade e patrimnio de um povo. Para compreender a

    articulao resistente que se estabeleceu entre cultura e nacionalidade vale a pena relembrar

    algumas postulaes de autores que respondem mais recentemente questo posta por Ernest

    Renan em 1882: O que uma nao?9

    Nao e cultura no so entidades independentes e paralelas, assim como no a Nao que

    produz a cultura, mas o inverso. Para Benedict Anderson10

    , a prpria Nao um artefato,

    uma construo cultural, que se faz atravs de uma formulao narrativa capaz de articular

    passado, presente e futuro num todo percebido como estvel e homogneo, que possibilita a

    experincia de pertencimento comum necessria constituio de uma uma comunidade

    imaginada. A contribuio de Anderson desloca a "nao e a conscincia nacional" do

    campo das ideologias e das cincias polticas, onde por um bom tempo estiveram confinadas,

    para aproxim-las dos grandes sistemas culturais anteriores modernidade, como as

    comunidades religiosas e os reinos dinsticos, a partir dos quais e contra os quais a Nao

    moderna pde existir.

    9 A pergunta ttulo de conferncia proferida pelo historiador Ernest Renan em 1882 e se tornou um texto

    referencial. (RENAN, Ernest. O que uma nao? In: ROUANET, Maria Helena (org.) Nacionalidade em

    questo - Cadernos da Ps/Letras (19). Rio de Janeiro: UERJ, 1997). 10 ANDERSON, Benedict, Comunidades imaginadas. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.

  • 7

    7

    Para tienne Balibar11

    , a construo de uma nao ou a nacionalizao de uma sociedade

    exige a produo do povo, ou seja a produo do efeito de unidade que permitir

    populao de um territrio delimitado perceber-se como um povo, legitimando-a como base

    e origem do poder poltico no Estado Nacional; como exige tambm a fabricao de uma

    etnicidade fictcia, uma vez que nenhuma nao tem originalmente uma base tnica nica,

    mas,

    medida que as formaes sociais se nacionalizam, as populaes

    que elas incluem (...) so etnicizadas, ou seja representadas no

    passado e no futuro como se formassem uma comunidade natural,

    dotada de uma identidade de origem, de cultura, de interesse, que

    transcende os indivduos e as condies sociais12.

    A duradoura articulao, quase uma equivalncia, entre cultura e Nao se firma a partir de

    um processo paradoxal, que teve o poder de naturalizar o que estritamente uma construo

    cultural. Neste sentido, expressivo o uso freqente de referenciais biolgicos a infncia, a

    juventude, a maturidade para dar conta dos caminhos da nacionalidade, como podemos ler,

    em relao Nao brasileira, j em Jos de Alencar, que demonstra no seu prefcio Beno

    paterna13 uma surpreendente lucidez acerca da necessidade cultural e literria de

    fabricao do povo brasileiro e da comunidade imaginada.

    A partir dos Estados Nacionais modernos, portanto, a idia de cultura passa a equivaler

    identidade nacional, ou seja, a significao de cultura se firma como, ao mesmo tempo,

    aquilo que unifica um povo (e que o singulariza) e aquilo que ele produz, a nvel simblico,

    constituindo uma espcie de circulo ou de circulao incessante entre os dois termos cultura

    e nacionalidade.

    4

    11 BALIBAR, tienne. La forme nation: historie et idologie. In BALIBAR, tienne; WALLERSTEIN,

    Immanuel. Race, nation et classe: les identits ambigus. Paris: La Dcouverte, 1988. 12

    Aucune nation ne possde naturellement une base ethnique, mais mesure que les formations sociales se nationalisent, les populations quelles incluent (...) sont ethnicises, cest--dire representes dans le pass ou dans lavenir comme si elles formaient une communaut naturelle, possedant par elle-mme une identit dorigine, de culture, dintrts, qui transcende les individus et les conditions sociales. BALIBAR, Op. Cit. p. 130-1. 13 Prefcio ao romance Sonhos douro (1872).

  • 8

    8

    O que est na pauta dos debates e das disputas contemporneas sobre a cultura justamente a

    idia de uma identidade estvel e homognea, sob os auspcios do Estado Nacional, e isto

    ocorre em dois planos. No primeiro deles, no plano das subjetividades, pela crise e pela

    crtica noo de sujeito que emergiu com o cristianismo e atravessa toda a modernidade

    como essncia, interioridade estvel, pr-existente, conscincia de si e a conseqente

    percepo da identidade ou da subjetividade como uma produo socialmente sancionada. Em

    segundo lugar, no plano social, pela percepo do poder de coero, de apagamento, de

    homogeneizao dos discursos da nacionalidade ou das culturas nacionais, enquanto

    construes hegemnicas que recalcam as perspectivas identitrias e as demandas culturais

    dos que esto em condio subalterna.

    As demandas do presente em torno da cultura emergem principalmente no interior da prpria

    comunidade nacional enquanto expresso de vivncias minoritrias com a ressalva,

    indispensvel, de que o uso da noo de minoria aqui no tem significao quantitativa,

    pois so minoritrios os segmentos da populao alijados das estruturas e nas relaes de

    poder, especialmente do poder legitimao de suas referncias culturais ou a sua memria

    cultural , e do poder de produzir auto-representaes que conflitem a comunidade nacional

    imaginada. Muito embora e talvez este seja o grande filo do que hoje se denomina crtica

    cultural sejam sempre ambguos ou ambivalentes, nas suas estratgias de incluso e de

    excluso, os discursos da nacionalidade cultural.

    Contra a pedagogia da homognea comunidade imaginada e principalmente, se consideramos

    especificamente o caso brasileiro, contra a propalada convivncia harmoniosa da diversidade

    que seria peculiar ao Brasil e cultura brasileira, insurgem-se, por exemplo, as vozes afro-

    descendentes e as releituras da histria e da cultura nacional empreendidas pelas mulheres,

    como avaliaes contemporneas desconstrutoras e interpeladoras de uma idia de cultura que

    originalmente, quando se contrapunha ao universalismo da Civilizao, teve considervel

    potencial revolucionrio.

    Um outro foco de conturbao de significaes histricas e assentes da palavra cultura

    tambm familiar ao campo dos estudos literrios, pois ocorre no mbito da segunda vertente

    de significao da cultura que atravessa a rea de Letras. Trata-se da contestao

    contempornea ao confinamento da cultura ou do valor cultural esfera letrada ou erudita, da

    equivalncia entre cultura e artes cannicas, como a literatura, e da paralela separao entre

  • 9

    9

    cultura e o que Edward Said e Stuart Hall designaram como a mundanidade14. Ou o que o

    crtico Silviano Santiago denomina, de forma provocante, como o embate entre a cultura da

    minoria e a cultura da maioria, popular, massiva, industrializada15

    .

    Temos que reconhecer que a propalada diluio das fronteiras entre a alta cultura (da

    minoria) e a baixa cultura (da maioria) muito relativa, e efetivamente s ocorreu no plano

    do diagnstico intelectual dos trnsitos e das contaminaes que entre elas se processam. Do

    ponto de vista do valor, do valor cultural, a hierarquia prevalece e se manifesta em diversos

    planos da vida social, em que pese a dimenso da influncia contempornea dos meios

    massivos.

    Sabemos que o filme e mais ainda a novela de televiso no equivalem ao romance; que a

    fotografia no tem o mesmo prestgio ou valor social (nem o mesmo valor mercadolgico)

    que a pintura; que um recital de Beethoven ainda considerado muito mais cultural do que

    uma roda de samba ou um show de rock. Mas existem hierarquizaes mais sutis (e mais

    perversas) que atuam sobre ns com grande eficcia: no cogitamos, por exemplo, que um

    leitor de O Cortio, de Alusio de Azevedo, corra o risco de se tornar racista, mas nos

    preocupamos sria e honestamente com o poder alienante que a televiso pode ter sobre o seu

    pblico. Isto sinaliza que, alm da hierarquia das linguagens ou das formas de expresso

    culturais, introjetamos tambm uma hierarquizao dos diferentes pblicos ou esferas de

    recepo.

    A emergncia do campo que hoje se denomina crtica cultural, estudos da cultura ou, com

    mais freqncia, estudos culturais d-se justamente no contexto da convivncia e do embate

    entre essas diversas e diferenciadas dimenses ou significaes da cultura. Ou, dito de outro

    modo e quase como um desafio que se impe: a emergncia da cultura como objeto de

    inquietao e de reflexo, em todos os territrios do conhecimento no s nas Letras

    emerge em consonncia, em absoluta sincronia, com a nossa dificuldade presente em enunciar

    com segurana e de maneira satisfatria o que entendemos por cultura.

    14 HALL, Stuart. Estudos culturais e seu legado terico. In SOVIK, Liv (Org). HALL, Stuart. Da dispora:

    identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p. 202. 15 SANTIAGO, Silviano: Democratizao no Brasil- 1979-1981(Cultura versus Arte) In ANTELO et alii.

    Declnio da Arte e Ascenso da Cultura. Florianpolis: ABRALIC/Letras Contemporneas, 1998. p.11-23.

    Posteriormente publicado em O Cosmopolitismo do pobre (Ed. UFMG, 2004).

  • 10

    10

    Mas a emergncia e a importncia que vm conquistando os estudos da cultura so tambm

    sincrnicas percepo de que nesta dimenso da vida social que se organizam as

    significaes e os valores, que se exerce a hegemonia e que se estruturam, legitimam e

    disseminam as excluses. Como simultaneamente esto tambm nos domnios da cultura as

    reivindicaes mais contundentes que se fazem atualmente sobre direitos, reconhecimento e

    cidadania.

    Por estas razes, vozes autorizadas do campo da crtica da cultura ou dos estudos culturais a

    exemplo de Stuart Hall, Fredric Jameson, Homi Bhabha convergentemente vm apontando,

    como o diferencial mais relevante e indispensvel neste empreendimento intelectual e

    acadmico contemporneo, a articulao entre rigor terico, para dar conta do que ainda no

    sabemos mas igualmente para deslocar os saberes sedimentados que se interpem, como

    dificuldade ou mesmo obstculo, compreenso ampla das expresses da vida

    contempornea; e responsabilidade poltica, uma vez que clara a implicao entre os

    embates atuais em torno de ou a propsito da cultura e a emergncia, na cena principal, de

    segmentos, valores e objetos preteridos, recalcados, relegados ao silncio ou ao anonimato.

    Em muitos ngulos expem-se perspectivas marcantes do saber produzido na

    contemporaneidade no mbito desse campo emergente, institucionalmente difuso e

    politicamente disputado, que a crtica cultural: a relao entre cultura e poder, o escrutnio

    das polticas do valor, a potncia instituinte das construes discursivas, a articulao entre

    continuidades e descontinuidades, o jogo entre repetio e diferenas, a no hierarquizao

    dos discursos ou dos produtos culturais e, em especial, uma perspectiva terico-crtica sobre

    as identidades, sejam elas locais, nacionais ou minoritrias, que se recusa conceb-las como

    estveis, ntegras ou unvocas.

    5

    No campo dos estudos literrios, nas duas ltimas dcadas do sculo XX, a emergncia da

    crtica cultural introduziu um nmero imprevisto de novos problemas e perspectivas de

    reflexo, os quais podem ser arrolados em duas grandes ordens de confronto com a tradio,

    em especial com a tradio firmada pela alta modernidade esttica. Em primeiro lugar, os

    embates em torno da compreenso do que seria a prpria literatura e das implicaes da

  • 11

    11

    proeminncia do valor esttico; neste mbito, talvez seja ainda de Silviano Santiago o

    diagnstico mais sucinto e mais cabal, ao apontar, no que denomina a passagem do sculo

    XX para o seu fim, o enfraquecimento da especificidade e a perda do valor de

    intransitividade conquistado pelo literrio16.

    Em segundo lugar, e como inescapvel conseqncia, o debate acerca dos limites da

    competncia dos estudiosos da literatura ou de um territrio disciplinar institudo. Na feio

    inicial desse abalo, verificou-se uma significativa expanso do domnio de objetos para alm

    das fronteiras do estritamente literrio, dos cnones literrios ou mesmo do objeto literatura, e

    a proliferao das abordagens transdisciplinares, nos estudos produzidos na rea de Letras.

    Como saldos mais expressivos tem-se, alm da contextualizao criteriosa das anlises, o

    interesse crescente pela msica popular, enquanto expresso mais candente da cultura da

    maioria no Brasil, e por outras linguagens massivas, ao lado da exploso das abordagens que

    privilegiam e problematizam as perspectivas e construes identitrias.

    Passadas trs dcadas, entretanto, pode-se reconhecer no campo das Letras uma espcie de

    retorno em diferena literatura, o que est longe de significar uma neutralizao dos

    efeitos disruptores da crtica cultural, o que teria, indubitavelmente, um carter conservador.

    A emergncia da cultura e da crtica cultural, enquanto fora temporal, poltico-social e

    acadmico-intelectual, afeta indelevelmente o campo das Letras, afeco esta cujo melhor

    sentido aquele detectado por Nietzsche e Foucault, de instaurao de novos sistemas de

    significao e de valor, que podem revigorar tanto o literrio quanto as suas abordagens, ao

    relig-los a outras dimenses da sensibilidade, da vida social e da produo discursiva.

    16 SANTIAGO, S. Op.Cit.