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CURRÍCULOS, DIFERENÇAS E PRÁTICAS DE ENFRENTAMENTO E
RESISTÊNCIA NO ESPAÇO/TEMPO ESCOLAR
Este painel tem como objetivo discutir as diferenças na escola com ênfase, nas
implicações curriculares, nos processos de discriminação e preconceito e, nas práticas
de enfrentamento e resistência que professores/as colocam em ação neste contexto. As
três pesquisas foram realizadas em escolas públicas tendo como participantes
professores/as e alunos/as dos anos finais do ensino fundamental e ensino médio e
receberam financiamento do OBEDUC/CAPES/INEP. Tais pesquisas buscam
referência no campo teórico que discute a interculturalidade crítica e a pluralidade
cultural e nas teorizações pós-estruturalistas. Os instrumentos utilizados para a produção
de informações foram pesquisa-ação e entrevistas semi-estruturadas. As análises
mostram como as práticas escolares/curriculares têm cumprido, em certa medida, uma
função social de reproduzir um conhecimento hegemônico. Também mostram a
presença de práticas racistas e discriminatórias, assim como, destacam diversos
dispositivos de controle e normalização das subjetividades que ainda persistem na
escola, com o intuito de reduzir a diferença à identidade. Por outro lado, estas pesquisas
também fazem ver que quando os/as professores/as adotam práticas pedagógicas que
discute a diferença, seja de raça, gênero, os/as alunos ampliam suas reflexões sobre as
práticas discriminatórias que subalternizam e invisibilizam a diferença e, ao mesmo
tempo, vão construindo estratégias de combate. Do mesmo modo, os/as professores/as,
através de microações, de micromovimentos, que se dão à margem de uma educação
institucionalizada, desenvolvem práticas de resistência às tentativas de homogeneização
das subjetividades. Deste modo, entendemos o contexto escolar para além dos
dispositivos de controle e normalização, ou seja, a escola constitui-se também como
espaço privilegiado de práticas de enfrentamento e resistência.
Palavras-chave: Currículo. Diferença. Práticas de resistência.
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DIALOGANDO COM A DIFERENÇA NA ESCOLA: O LUGAR INVISÍVEL DO
PRECONCEITO E DO RACISMO
Maria Ivone Silva1.
Este artigo é resultado de uma pesquisa financiada pelo OBEDUC/CAPES/INEP.
Refere–se à discussão sobre preconceitos e discriminações presentes no cotidiano da
escola caracterizado pela pluralidade cultural que constitui o currículo escolar, com
destaque para as relações étnico-raciais. O trabalho resulta da análise de um projeto de
pesquisa-ação fundamentado no campo teórico dos estudos que discutem a
interculturalidade numa abordagem crítica, um campo que questiona e tensiona as
relações de subalternização de determinados grupos. Neste trabalho o recorte é o grupo
afrodescendente, com vistas a construir e analisar as estratégias de superação das
atitudes preconceituosas e racistas. A pesquisa buscou fundamentar-se nos pressupostos
da pesquisa-ação sendo operacionalizada por meio de projeto desenvolvido com duas
turmas de oitavo ano, sendo uma no ano de 2014 e outra no ano de 2015, na disciplina
de História, com o objetivo de desenvolver uma proposta de ensino/aprendizagem que
favoreça aos alunos no decorrer dos estudos reconhecerem e questionarem os processos
de subalternização e inferiorização das diferenças culturais no ambiente escolar.
Apontamos como resultados a participação dos alunos e alunas na elaboração do
projeto, na realização das atividades, na escolha dos dispositivos didáticos (música,
entrevistas, diálogo, mural, vídeos e oficinas) e na identificação de práticas racistas,
preconceituosas e discriminatórias existentes nos espaços da escola e da sociedade,
assim como na construção de estratégias de superação dessas atitudes. Pela pesquisa-
ação realizada podemos concluir que trabalhar as questões de subalternização,
inferiorização e racismo com os alunos por meio de vários dispositivos didáticos é
fundamental para que os alunos visibilizem essas questões ao mesmo tempo que vão
construindo coletivamente estratégias de combatê-los.
Palavras chaves: Interculturalidade. Currículo. Racismo.
Considerações iniciais
As manifestações de atitudes preconceituosas, ainda hoje, fazem parte do
cotidiano de nossa sociedade e de nossas escolas. São atitudes que buscam inferiorizar,
subalternizar “o outro” a partir de suas características físicas, aspectos culturais
percebidos pela aparência, como vestimentas, ornamentos corporais, estatura, cor da
pele, cabelos e olhos, orientação sexual e língua, que significam as singularidades mais
perceptíveis, de cada povo, de cada grupo étnico-racial. As relações entre essas
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diferenças singulares sempre foram motivos de renomadas discussões, tensões e de
muitos conflitos nas sociedades plurais. Nesse sentido Skliar (2003, P. 152) afirma
Pois há um outro, em meio a nossas temporalidades e a nossas
espacialidades, que foi e ainda é inventado, produzido, fabricado,
(re)conhecido, olhado, representado e institucionalmente governado em
termos daquilo que se poderia chamar um outro deficiente, uma alteridade
deficiente, ou então, ainda que seja o mesmo, um outro anormal, uma
alteridade anormal.
A escola, espaço de encontros com esse outro conforme afirma Skliar na
citação acima, é também espaço de confrontos, cruzamento de culturas e de tensões no
qual os alunos aprendem os conteúdos escolares, interagem socialmente criando
vínculos afetivos, tecendo as teias com as quais constroem valores e também aprendem
a ser/estar no mundo, é um lugar vivo, dinâmico, de interações, relações e conflitos, de
construção, desconstrução e reconstrução de conhecimentos, comportamentos e valores.
Assim atravessado por essas relações a escolas nos desafia a enfrentar essa realidade
tensionando o currículo, práticas, métodos e técnicas com o propósito de superar
atitudes de subordinação e exclusão no sentido de construir uma escola mais
democrática e comprometida com a justiça social. Nesse sentido Candau (2013, p.16)
afirma que “no momento atual, as questões culturais não podem ser ignoradas pelos
educadores, sob o risco de que a escola cada vez se distancie mais dos universos
simbólicos, das mentalidades e das inquietudes das crianças e jovens de hoje”.
Foi com o objetivo de desenvolver uma proposta de ensino/aprendizagem que
favoreça aos alunos no decorrer dos estudos a se reconhecerem e reconhecerem as
diferenças culturais no ambiente escolar que desenvolvemos esta pesquisa-ação,
propondo construir, com ele, os alunos, estratégias de desnaturalização das práticas
preconceituosas e racistas na escola e por extensão na sociedade. A pesquisa foi
desenvolvida por meio de um projeto de inovação pensado com os alunos. Como
espaço/tempo foram utilizados as aulas de história, em duas turmas de 8º ano, uma no
ano de 2014 e outra no ano de 2015, visando tensionar, questionar e desnaturalizar os
conhecimentos que permeiam o currículo escolar. Para isso nos apoiamos em Akkari e
Santiago (2015, p. 35) que afirmam.
Uma proposta de educação que considere a pluralidade de valores, de tempos
e ritmos não se limita em introduzir, na prática educativa, novos conteúdos e
novos materiais didáticos. Mas compreende que tratamento igual não
significa tratamento homogeneizante, que apaga as diferenças. A promoção
da igualdade significa dialogar com a diferença. Enquanto a diferença for um
obstáculo para o êxito escolar, não haverá reconhecimento às diferenças, mas
produção e reprodução das desigualdades.
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Para questionar a naturalização com que atitudes preconceituosas e
discriminatórias são tratadas na escola nos ancoramos na abordagem metodológica da
interculturalidade crítica, um campo que propõe discutir e desnaturalizar os processos
de subordinação e inferiorização das diferenças, propondo a construção de uma
educação que conceba diferença e igualdade não com significados opostos, mais como
igualdade na diferença, isto é, respeitando a igualdade de direitos e oportunidades de
sucesso para os diferentes grupos rompendo com os currículos e práticas
homogeneizadoras ainda presentes na escola, conforme afirma Candau (2012, p. 129)
Nesse sentido, é importante que as práticas educativas partam do
reconhecimento das diferenças presentes na escola e na sala de aula, o que
exige romper com os processos de homogeneização, que invisibilizam e
ocultam as diferenças, reforçando o caráter monocultural das culturas
escolares.
A interculturalidade propõe reconhecer as diferenças questionando o currículo
hegemônico (branco, heterossexual, masculino, eurocêntrico, cristão) visando o
desenvolvimento de um currículo que reconheça e valorize as diferenças conforme
afirma Serpa (2011, p. 156) “como possibilidade dos sujeitos aprenderem uns com os
outros”.
Dialogando e tensionado as diferenças na escola
É muito comum ouvirmos nas reuniões com professores que o grande desafio
de ensinar hoje está em conseguir motivar os alunos para a aprendizagem, somado a
isso são comuns as reclamações sobre diferentes formas de indisciplina na escola, que
vão desde a indiferença para com a aula propriamente dita, quando os alunos navegam
livremente nos seus celulares, dormem, ou ainda procuram desviar a atenção dos
colegas com suas histórias particulares, até a violência verbal ou física propriamente
dita, o que faz com que muitos professores se sintam desestimulados e muitos até
desistem de ser professores. Por que isso ocorre ainda hoje nas escolas? Acreditamos
que esse mal estar, entre tantos outros motivos, decorre também pelo fato de a escola ser
pensada para o aluno, para o professor e não com os mesmos. Se a escola é pensada
para o aluno, ela é pensada de forma padronizada, homogeneizadora para um aluno
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“considerado padrão” i desconsiderando toda a diversidade e singularidade cultural que
povoa o universo e o cotidiano das escolas.
A esse conhecimento padronizado que desconsidera o universo da sala de aula
e a realidade do aluno se contrapõe a educação que visa propostas inovadoras, projetos
para discutir essas diferenças, medidas que muitas vezes não encontram eco nas escolas
por se confrontar com professores que não foram e não estão preparados para tais
propostas, assim como exigem que eles “façam” sem oferecer-lhes conhecimentos e
formação continuada para esse fim, assim eles optam por fazer adaptações que caibam
em suas formações, pensando e elaborando atividades, segundo os conteúdos
programáticos – currículo prescritivo - inserindo neles a discussão, mesmo que
superficial e aligeirada das temáticas que tensionam no cotidiano o currículo da escola.
Cortesão (2011), nesse sentido, afirma que o professor precisa conhecer seus
alunos, estudar, observar e dialogar com eles para perceber suas características
socioculturais, individuais e mesmo grupais e assim repensar sua prática
Os professores terão de usar esse conhecimento para repensar formas (e até
conteúdos) de trabalho que possam ir ao encontro dos interesses, que
valorizem os saberes, que não desrespeitem os valores, que aproveitam as
competências que os alunos sempre têm, seja qual for a sua origem sócia e
étnica, mas que a sociedade e a escola atuais nem aproveitam nem valorizam,
e nem aceitam. (p. 56).
Foi visando valorizar os saberes dos alunos, suas diferenças individuais e
grupais que apresentamos o propósito de desenvolver uma pesquisa-ação por meio de
um projeto com os alunos dos anos finais de uma escola da rede estadual de ensino
localizada numa cidade do interior do estado de Mato Grosso do Sul. A cidade
apresenta como característica uma grande pluralidade cultural tendo sido colonizada por
pessoas oriundas dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Rio Grande do Sul e
que a partir do ano de 2008 começa a receber um grande grupo de migrantes
nordestinos. Migração provocada pela inserção da cultura canavieira na região. Nesse
contexto a escola se depara com a dificuldade para gerir os conflitos e as tensões
produzidas nas relações com o outro e no desenvolvimento do processo ensino
aprendizagem que quase sempre parte do pressuposto homogeneizador que consideram
os alunos como “iguais” desconhecendo as particularidades de seus saberes e de suas
culturas.
Com base na interculturalidade crítica que defende a interação e o diálogo
entre os diferentes grupos culturais e os diferentes sujeitos é que propomos com
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Moreira (2012) a necessidade e a possibilidade de buscar pensar a partir de outras
lógicas, buscar o novo, inovar, paras construir uma escola mais democrática e mais
sensível às diferenças culturais e sociais.
A educação intercultural nos desafia para a construção de uma educação que
reconheça a centralidade cultural na construção discursiva dos sujeitos e princípios que
norteiam o processo educacional. As diferenças culturais, ao ser visibilizadas na escola
como constituintes do ser humano, abrem espaços para que os alunos possam aprender
uns com os outros superando estereótipos e preconceitos. Assim defendemos com
Candau (2008) a necessidade de repensar, reinventar a escola quanto a sua função,
reconhecendo e incluindo diferentes saberes cores, sons, vozes, silêncios que são
constituídos de significados e que esperam da escola um espaço de construção, de
diálogo, de possibilidades, desafios, enfim uma escola intercultural.
A escola, os alunos e as diferenças – Fios e teias de um diálogo intercultural.
Considerando a abordagem intercultural crítica como fio condutor desta
pesquisa que buscou introduzir no cotidiano das aulas de História um diálogo orientado
para o reconhecimento do direito à diferença e motivador para a luta contra todas as
formas de preconceitos, racismos e injustiças sociais, construímos o projeto dessa
pesquisa com os alunos, os sujeitos da pesquisa. Nos apoiamos em Candau (2014, p. 39)
quando esta afirma que
Convém ter presente também que as práticas interculturais são construídas
em uma sociedade concreta e o diálogo com seus diferentes atores,
particularmente com os movimentos sociais de caráter identitário, suas
inquietudes, lutas e reinvindicações, é um componente fundamental dessas
práticas. Supõe também ter presente o contexto escolar onde se realizam as
práticas educativas, os constrangimentos e as possibilidades que lhe são
inerentes, e desenvolver um diálogo crítico e propositivo orientado a
fortalecer perspectivas educativas orientadas a radicalizar os processos
democráticos e articular igualdade e diferença, em todos os níveis e âmbitos,
do macrossocial à sala de aula.
Como proposta de inovação, que compreende não eliminar os conteúdos da
sala de aula, mas procura tornar esses conteúdos mais próximos possível da realidade
dos alunos, do seu universo juvenil, contextualizando-os para torna-los significativos. A
pesquisa foi desenvolvida numa escola da rede estadual de ensino de Mato Grosso do
Sul, com alunos do 8º ano nos anos de 2014 e 2015, ambas com 40 alunos. Embora a
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escola se localize na região central da cidade atende moradores de bairros pertencentes a
famílias de trabalhadores não qualificados ou com qualificação de nível médio.
Por ser um trabalho proposto para ser pensado e desenvolvido com os alunos e
não para os alunos apresentamos inicialmente a proposta de articular e discutir os
preconceitos e racismos presentes na sala de aula, na escola e na sociedade com
músicas, filmes, vídeos e pesquisas. Muitos logo se propuseram a participar, entretanto
outros, principalmente os negros e nordestinos, ficaram em silêncio, sem se manifestar.
Nesse sentido nos apoiamos em Akkari e Santiago (2015, p. 31) quando estes afirmam
“o grande desafio educacional é reconhecer os diferentes contextos de nossos
estudantes”, o que exige da escola, do professor estar atento ao comportamento e ao
silêncio dos alunos, pois o estranhamento, a indiferença pode ser resultado da atribuição
de valores e inferiorização das diferenças. Para motivar a participação do maior número
possível de alunos lançamos como desafio uma questão norteadora que deveria ser
respondida pelos alunos após conversar com colegas, vizinhos e pais: Você já percebeu
alguma forma de preconceito ou manifestação de racismo na sociedade?
Por estarmos acostumados com a escola monocultural, o silêncio, a inquietude
e até mesmo a indiferença ou indisciplina dos alunos são ocultadas por nosso
daltonismo cultural que nos permite ver apenas o que nos mostram os programas
elaborados por pessoas estranhas ao ambiente escolar. Destaco que o silêncio está
embrenhado de significados o que amplia a importância de aprender a ouvir também as
vozes internas, de perceber os diferentes sons, os silêncios, as inquietudes que
permeiam o espaço escolar e olhá-las a partir de suas significações. Moreira (2013, p.
45) destaca a importância do currículo escolar para a (des) contrução das atitudes
preconceituosas e de discriminação,
[...] Que princípios têm sido empregados para estabelecer as divisões? Que
efeitos essa separação têm provocado na aprendizagem e na socialização de
nossos estudantes? Temos procurado, em nossas aulas, desafiar os limites
entre os diferentes territórios e mostrado a arbitrariedade dessa diferenciação?
Como organizar trabalhos coletivos em que processos discriminatórios sejam
questionados?
Motivados pelo desafio de questionar os limites entre os diferentes, e
questionar a presença de preconceitos e discriminação na escola, na sociedade
percebemos que os alunos negros e nordestinos foram os que mais participaram
apresentando fatos discriminatórios ocorridos consigo ou assistidos por eles, facilitando
a compreensão dos colegas e incentivando a adesão de um grupo cada vez maior para o
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projeto uma vez que no nosso cotidiano nos deparamos com atitudes preconceituosas
com muita frequência, aparecendo na maioria das vezes de forma dissimulada, como
afirma Silva (2008, p. 73)
Muitas vezes as ideias preconceituosas e racistas estão tão arraigadas que
acabam por ser interiorizadas e se tornam imperceptíveis não para quem é
vítima, mas para quem as pratica. As manifestações, no entanto, estão
presentes na fala da maioria dos professores.
A proposta intercultural defendida por nós apoiadas em Moreira (2013, p. 23)
quer promover uma educação que reconheça o outro, pautada no diálogo e na
negociação entre os diferentes grupos socioculturais, e que favoreça a construção de um
espaço de aprendizagens democrático e fundado na justiça social. Nesse sentido
defendemos com Ramos (2011) a compreensão da escola como espaço de cruzamento
de sujeitos e de construção de novos conhecimentos.
Foram ouvidas as músicas selecionadas pelos alunos com a apresentação dos
clipes musicais: música “Diversidade” – letra e música do cantor e compositor Lenine –
Osvaldo Lenine Macedo Pimentel, com essa música dialogamos com os alunos sobre as
diferenças étnico-raciais, sociais e culturais que permeia a população brasileira
enfatizando as diferenças, a pluralidade cultural como espaço propício para aprender
com o outro. Destacando aqui que a cultura é dinâmica e não pode ser hierarquizada,
existem culturas diferentes e não culturas superiores ou inferiores. Quando da
abordagem das diferenças culturais os alunos começaram a falar das comidas típicas das
diferentes regiões do Brasil, com destaque para as comidas nordestinas, sul-mato-
grossense, goiana e paulista. Os alunos nordestinos destacaram a capoeira como uma
expressão cultural desenvolvida pelos africanos escravizados na região nordeste e que
hoje se alastrou pelo Brasil. Dois deles afirmaram praticar em casa com os pais e se
propuseram em apresentar com os pais na escola. Todas as atividades e práticas
educativas eram tensionadas no sentido de desconstruir atitudes preconceituosas e
racistas conforme afirma Fleuri (2003, p. 19)
[...] O objetivo da educação antirracista é o de promover atividades
educativas para aprofundar a consciência de cada um, de modo a saber
identificar e desmontar práticas racistas, implícitas ou explícitas, pessoais ou
institucionais.
Foram também apresentados vídeos ancorados nos conteúdos curriculares
prescritivos e tensionados para o rompimento com as práticas preconceituosas. Segundo
Akkari e Santiago (2015, p.) “o preconceito é uma produção cultural, que naturaliza
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certos atributos como positivos e outros como indesejáveis”. Para desconstruir a ideia
de que certos atributos, como cor da pele, cabelo, etc, são indesejáveis os alunos
realizaram murais, oficinas e elaboraram paródias e vídeos nos quais questionaram a
inferiorização das diferenças construídas com o objetivo de dominar e controlar os
grupos historicamente marginalizados.
A aluna A, (2016) afirmou em entrevista que o estudo sobre as diferenças
culturais permitiu a ela se perceber como preconceituosa e racista e a rever seu
comportamento em relação às diferenças culturais. Nesse sentido Munanga (2005)
afirma que o primeiro passo para a desconstrução de preconceitos e racismos, é assumir-
se preconceituoso e racista. Percebemos na fala da aluna (A) que é possível pensar
numa sociedade democrática, plural que dialoga com as diferenças.
Considerações Finais
Estudar com os alunos nos permite e aos alunos posicionar como autores e
sujeitos do processo, não tendo dificuldade de motivá-los para o desenvolvimento das
atividades, pois as mesmas foram pensadas com eles. Com o desenvolvimento da
presente proposta de inovação consideramos que a escola tem que ser repensada
considerando os alunos como sujeitos do processo ensino-aprendizagem e não meros
expectadores.
Destacamos a importância da escola no sentido de construir uma educação
plural, democrática e fundada na justiça social e na construção da identidade das
crianças e adolescentes que são acolhidas por cada uma das instituições, mas, que para
alcançar seus objetivos precisa reconhecer a diversidade como elemento positivo.
Para deslegitimar as práticas excludentes e romper com a discriminação nas
salas de aula, na escola e na sociedade faz-se necessário pensar práticas inovadoras ou
seja reinventar a escola com os alunos considerando como ponto de partida a realidade e
os interesses culturais dos alunos. É necessário aproximar os conteúdos do seu contexto
e incorporando recursos com os quais os alunos estão familiarizados para potencializar
sua aprendizagem.
REFERÊNCIAS
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preconceito ao reconhecimento. In. Revista Teias, v.16, n. 40. p. 28 - 41
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10553ISSN 2177-336X
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FLEURI, Reinaldo Matias. Intercultura e educação. In. Revista Brasileira de
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Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
__________________________________________________
1Acadêmica do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu – Doutorado em Educação Linha II – Práticas
Pedagógicas e suas Relações com a Formação Docente – UCDB/Campo Grande-MS. E-mail:
1 Skliar (2003) defende “e o outro é um outro cuidadosamente pronunciado, um outro gramaticalmente
correto. O outro está bem anunciado, mas capturado em uma mesmidade que mascara em maneiras ligeiras de dizer, de nomear e de olhar. Um outro anunciado, mas a distância, isento de toda relação, ignorado em seu olhar, em seu dizer, em seu respirar”.
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A DIFERENÇA NA ESCOLA: IMPLICAÇÕES CURRICULARES
Cladair Cândida Gomes
Universidade Católica Dom Bosco
Resumo: Este artigo é fruto de uma pesquisa, vinculada ao Observatório de Educação,
financiada pela CAPES/INEP. Tem como objetivo apresentar, num primeiro momento,
uma análise da história do currículo, com destaque para sua história no Brasil e de suas
(não)relações com as discussões das diferenças. Com base nesta compreensão, analisa,
num segundo momento, um projeto de pesquisa-intervenção desenvolvido na sala de
aula de uma escola pública – mais especificamente nas aulas de Língua Portuguesa –
durante os anos de 2014 e 2015. Buscamos referência para esta análise em teóricos que
discutem a pluralidade cultural no espaço escolar, que concebem as questões ligadas às
identidades e às diferenças como construções históricas, culturais e sociais,
problematizando as relações de poder hegemônicas que tendem a subalternizar e a
invisibilizar determinados grupos sociais. Entre esses teóricos destacamos Candau
(2006), Moreira e Tadeu (2011), Silva (1999), Esteban (2015), Santomé (2013). Como
resultado desta pesquisa, podemos dizer que os alunos e alunas são receptivos e ativos
nas discussões dos diferentes processos discriminatórios, ao mesmo tempo em que
apresentam resistências, pois estão marcados por um currículo que apresenta um
conteúdo historicamente não problematizado, e do ponto de vista escolar não
problemático. Assim, há distanciamento de uma prática que aborde, minimamente, a
diferença, afastando diferentes alunos do que poderia significar uma prática mais
emancipatória. Nesse sentido, as práticas escolares/curriculares têm cumprido, em certa
medida, uma função social de reproduzir um conhecimento clássico, inferiorizando as
diferenças, ao levar, a grupos sociais, um modelo curricular único como necessário à
formação de qualquer indivíduo.
Palavras-chave: Escola, Currículo, Diferença.
1 – As diferenças no currículo escolar: das abordagens psicologizantes às
abordagens culturais.
Para um trabalho pedagógico que enxergue a diferença, é necessária a percepção
da relação entre currículo escolar e cultura, bem como o envolvimento do professor.
Essa mudança, tão requerida quando do desenvolvimento de meu projeto, pode ser,
claramente, associada a minha passagem, nos anos de magistério, por dois currículos
diferentes, ou melhor, duas abordagens, uma psicologizante e uma cultural.
Aparentemente, elas sempre estiveram no currículo brasileiro, sem, por exemplo, uma
história que explicasse como caracterizaram este ou aquele momento histórico. Por isso,
uma investigação dos momentos que concretizaram tais abordagens e, principalmente,
do olhar para a diferença é imprescindível.
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Nas décadas de 1960-70, uma abordagem sociológica e crítica do currículo nos
Estados Unidos e na Inglaterra trouxe, hoje, um currículo como foco central da
sociologia da educação. No agora, ele apresenta-se como um artefato social e cultural
implicado em relações de poder. Mas, para chegar a esse momento, o de uma teoria
crítica do currículo, britânicos e principalmente americanos, estes mais marcantes na
constituição de um currículo brasileiro, passaram por etapas caracterizadas
principalmente pela racionalidade técnica.
Segundo Moreira e Silva (2011), o início dos estudos curriculares deu-se
aproximadamente nas décadas de 1920-30, a racionalização, a sistematização e o
controle permitiam cuidar dos desvios do currículo da escola. Havia a promoção de um
projeto nacional comum, quer seja, um currículo ordenado, racional e eficiente, por isso
este já nasce, entre os americanos, como um currículo caracterizado pela uniformização.
Mesmo os autores mostrando diferentes nuances que evidenciam um campo
curricular não monolítico, por haver, por exemplo, valorização dos interesses do aluno
(escolanovismo de Dewey), e construção científica para aspectos desejáveis da
personalidade adulta (tecnicismo de Bobbit), a função curricular primordial era adaptar-
se à ordem capitalista. E, neste sentido, a diferença é invisibilizada. No entanto, a crise
instalada nos anos 50, principalmente pela derrota espacial – União Soviética, com seu
Sputnik, chegou primeiro à corrida espacial – levou a responsabilização de uma
educação falha aos progressivistas, calcados principalmente nas ideias de Dewey. Como
resultado, houve investimentos para reforma dos currículos, ou melhor, estudo de
conteúdos. Portanto a ênfase, mais uma vez, era na estrutura/técnica.
A diferença, década de 1960, mesmo fora da discussão no campo curricular,
começa a gritar nos Estados Unidos. Exemplos característicos são a explosão do
racismo e da violência, ou ainda, a guerra do Vietnã, colocando em xeque, mais uma
vez, a supremacia americana. No campo curricular reflete forte rejeição às perspectivas
behaviorista e empirista, teorias psicológicas, que davam sustentação ao currículo
estabelecido na época.
Os “diferentes” sujeitos americanos, naquele momento, enxergam uma educação
formal que já não suportam: uma modelagem do indivíduo pela disciplina, visando a
comportamentos sociais específicos em sala de aula ou no convívio em sociedade, como
se não houvesse implicado uma cultura de cada indivíduo a ser escolarizado e, ainda,
havia centralização do trabalho escolar no professor – um transmissor daquilo que
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alunos devem saber – como se estes fossem um depósito de conhecimento. Critica-se,
então, a forma de uma educação bancária, “figurando” a passividade pressuposta em
relação ao sujeito implicado nesse modelo de educação.
O resultado dessa insatisfação, apontado em Moreira e Silva (2011), foi o
surgimento de duas correntes a partir de então: neomarxismo/teoria crítica e
humanista/hermenêutica. Os autores definem isso como uma possibilidade de não haver
mais tanta preocupação com planejamento, implementação e controle de currículos
“cientificizados” na avaliação, quantitativamente. Silva (1999), assim, apresenta o
reconceptualismo marcando definitivamente a ruptura com a concepção técnica do final
dos anos 60, afina os reconceptualistas, questionaram, criticaram o currículo existente.
Segundo Silva (1999), o mais importante era que ambas desafiavam os modelos
técnicos dominantes.
Na crítica neomarxista, a dinâmica da sociedade capitalista é a da dominação de
classe. Isso afeta outras esferas sociais como a educação e a cultura. Há um vínculo
entre reprodução cultural e social, e não é uma ligação de determinação simples e direta.
Um vínculo mediado por processos que ocorrem no campo da educação e do currículo.
Desse modo, os neomarxistas identificam-se com uma sociologia do currículo, porque
consideram elementos como cultura, estrutura social, poder e a contribuição desses na
produção de desigualdades. Entretanto, veem também contradições e resistências nesse
processo, por isso, grupos dominantes são obrigados a recorrer a um esforço
permanente de convencimento ideológico para manter sua dominação.
O currículo, para os neomarxistas, é um conhecimento particular resultado de
um processo que reflete os interesses específicos das classes e grupos dominantes.
Todavia, esse currículo, como processo de reprodução cultural, não apresenta mais uma
única vertente, que seria a do currículo oficial, caracterizado, entre outros, por um rol de
conteúdos, há também, como aponta Silva (1999) o chamado currículo oculto, ou seja,
aquilo que não está sistematizado, mas que aparece quando das práticas escolares.
Para a perspectiva crítica, o que se aprende no currículo oculto são
fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações que
permitem que crianças e jovens se ajustem da forma mais conveniente às
estruturas e às pautas de funcionamento, consideradas injustas e
antidemocráticas e, portanto, indesejáveis, da sociedade capitalista. (SILVA,
1999, p. 79).
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Desse modo, o currículo oculto também é elemento indispensável nessa nova
perspectiva, que começa a enxergar a diferença. Silva (1999) atesta esse novo olhar que,
mesmo dantes, enfatizava relações sociais de classe, mas também já admitia a
importância das relações de gênero e raça, ou seja, percebia a diferença no processo de
reprodução social e cultural exercido pelo currículo.
Já da corrente humanista/hermenêutica, Silva (1999) mostra que haverá um
dissolvimento do rótulo de “reconceptualização” com perspectivas que não reconhecem,
por exemplo, a estrutura tradicional do currículo, porque pouco sentido fazem as formas
de compreensão técnica e científica. Para eles, a própria experiência dos estudantes é
que se torna objeto de investigação.
Moreira e Silva (2011) apontam que na Inglaterra, também nas décadas de 1960
e 1970, a partir dos escritos de Michael Young, inaugura-se a Nova Sociologia da
Educação. Com o desenvolvimento da sociologia da educação voltada ao estudo do
currículo, evidencia-se a relação entre os processos de seleção, distribuição, organização
e ensino dos conteúdos curriculares e a estrutura de poder do contexto social.
A Nova Sociologia da Educação decorre do abandono britânico ao
funcionalismo estrutural. Esses novos rumos na Inglaterra contaram ainda com
movimentos sociais, a partir do início da década de 1960 – mulheres, negros,
homossexuais. Algumas bandeiras levantadas eram a urgente relação entre
conhecimento e ação, bem como a eliminação de aspectos patriarcais e sexistas do
trabalho sociológico. Essa concepção sociológica interferiu em definitivo nos estudos
do currículo, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, mas foi pouco divulgada no
Brasil. Dentre as possibilidades de análise, há a observação da transmissão da ideologia
pelas disciplinas escolares. Para Moreira e Silva (2011), independentemente de ter
influenciado diretamente esta ou aquela localidade, a Nova Sociologia da Educação
tornou-se uma “referência indispensável para todos que se vêm esforçando por
compreender as relações entre os processos de seleção, distribuição, organização e
ensino dos conteúdos curriculares e a estrutura de poder no contexto social inclusivo”
(MOREIRA; SILVA, 2011, p. 27).
A associação entre teoria crítica e sociologia do currículo resulta em um
currículo como constituição social e crítica. Portanto, não é mais só organização do
conhecimento escolar, porque trazem questões e temas centrais para a percepção da
diferença em qualquer tempo. Desse modo, é possível concluir que uma abordagem
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crítica aparecerá nas décadas de 1960-70, produzindo alguns rompimentos com as
abordagens psicologizantes que, até então, reforçaram a individualidade e,
consequentemente, contribuíram com divisões sociais e, principalmente, marginalização
de tudo que diferia de um modelo homogeneizante/universal.
2 – O currículo no Brasil: genuinidade, cópia ou hibridização?
Moreira (2010) nos traz a história de um campo curricular brasileiro
apresentando, inicialmente, grande preocupação com a “metáfora da cópia”, devido à
grande influência americana em um modelo curricular brasileiro. Prefere, ele,
considerar que houve uma hibridização, pois a recepção dada a elementos do currículo
americano implicou interações e resistências. No entanto, Candau (2006), debruçando-
se sobre o currículo atual e revisitando os momentos históricos constituintes de um
currículo brasileiro, chama a atenção para a necessidade, ainda hoje, da centralidade da
questão da diferença na educação escolar, bastante ausente das concepções curriculares
americanas que antecederam o reconceptualismo. A autora apresenta uma evidência do
discurso pedagógico atual, há afirmação de que a diferença já é trabalhada, entretanto,
verifica ela, em uma perspectiva de décadas atrás, ou seja, a psicologizante.
O referencial psicológico, conforme nos aponta Candau (2006), associa didática
e pedagogia do século XIX, Locke e Rousseau, cuja tônica era “conhecer o caráter, as
etapas do desenvolvimento e o respeito à individualidade”. É sabido que a base teórica
desses autores, liberdade individual e racionalidade iluminista, é fundante do
liberalismo – um homem livre que por si só supera quaisquer dificuldades, bem como
dispensa as intervenções divinas. Assim, a individualidade/a propriedade prevalece,
mesmo nas relações sociais.
O resultado para a educação, ou melhor, para um currículo é a diferenciação
tipológica, traduzida por Candau (2006) em agrupamento em classes homogêneas e de
acordo com a capacidade. Afirma ainda a autora que, mesmo com a Escola Nova,
século XX, com tantas pluralidades de tendências, a diferença continua em uma mesma
visão, a psicologizante. A escola de massa em suas diferentes trajetórias, romântica de
Rousseau, psicologia evolutiva de Montessori/Dewey, engajamento sociopolítico de
Freinet, sustentaram essa mesma abordagem.
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Candau (2006) retoma as diferentes abordagens que deixaram marcas por aqui.
Entre elas estão a experimentação e desenvolvimento de práticas e valores necessários à
vida democrática, de Dewey, e o ensino programado com adequação dos processos
pedagógicos ao ritmo de cada aluno, behaviorismo de Skinner. Entretanto, segundo a
autora, todas são psicologizantes, porque há priorização e respeito à individualidade e a
ausência da dimensão sociocultural.
Em termos gerais, os aportes da psicologia favoreceram, portanto, uma
importante produção sobre a diversificação dos processos de ensino-
aprendizagem do ponto de vista do indivíduo, reconhecendo os diferentes
modos e ritmos de aprender. Salta aos olhos, contudo, a ausência da
dimensão sócio-cultural nessas abordagens. (CANDAU, 2006, p. 126).
Além do desdobramento das discussões sobre a desigualdade de oportunidades
promovidas pela Nova Sociologia da Educação, Inglaterra, vistos em Moreira, Candau
(2006) aponta para os estudos do cotidiano escolar promovidos, paralelamente, pela
sociologia britânica, que se opunha à teoria do déficit linguístico e cultural denominada
“linguagem e background cultural deficientes”.
No Brasil, as influências dessa corrente começam a chegar bem mais tarde, já
final da década de 70. Mas, tanto Moreira (2010) como Candau (2006) verificam uma
abordagem sociológica/cultural anterior, na década de 50, a de Paulo Freire. A autora
aponta alguns elementos da teoria freiriana como as palavras geradoras e os círculos de
cultura. O levantamento do universo vocabular, o aspecto pragmático da palavra, bem
como as salas de aula sem hierarquização, para a autora, aproximam Freire, inclusive,
de uma perspectiva intercultural. Esta, para Candau (2006), é para além da diferença, da
psique individual e da identidade cultural de classe.
Candau (2006) enxerga que a escola tem tido importante papel nos processos,
diferenciações incluindo/excluindo, classificando e normalizando, logo a escola carece
de um compromisso dialógico, além da esfera da tolerância, favorecendo, por exemplo,
trocas. A postura dialógica abre para construção de práticas e reflexões pedagógicas, por
isso distinção entre diversidade e diferença e o olhar para esta.
Portanto, como aponta Candau (2006), é necessário um olhar que reconheça as
culturas no espaço escolar, o ambiente plural da escola. A promoção de discussões
possibilita a problematização das representações construídas em diferentes espaços, ou
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seja, a configuração de padrões que desconsideram o que comumente chamam de
minorias, e no micro espaço escolar, como se vê a seguir, é possível olhar a diferença.
3 – O encontro com alunos e alunas: colocando a hegemonia curricular em questão
Inicio este item destacando que o relato a seguir trata de uma pesquisa-
intervenção em uma escola pública. Neste sentido, compreendemos que é importante
explicitarmos o que denominamos de pesquisa-intervenção.
O processo de formulação da pesquisa-intervenção aprofunda a ruptura com
os enfoques tradicionais de pesquisa e amplia as bases teórico-metodológicas
das pesquisas participativas, enquanto proposta de atuação transformadora da
realidade sócio-política, já que propõe uma intervenção de ordem
micropolítica na experiência social (ROCHA; AGUIAR, 2003, p.67).
O projeto de pesquisa-intervenção foi desenvolvido na escola durante os anos de
2014 e 2015 e, conforme já dissemos, trata-se de um trabalho vinculado ao Observatório
de Educação, financiado pela CAPES/INEP. Relato aqui, as tentativas de acertos e erros
em um projeto educativo que buscou discutir as diferenças, com destaque para as
diferenças de gênero. Não são explicitadas as muitas atividades desenvolvidas, apenas
há uma reflexão sobre o trabalho com o projeto, no sentido de observar que há
mudanças significativas nos alunos, portanto o resultado é profícuo.
O projeto articulou, na disciplina de Língua Portuguesa, os conteúdos que
deveriam ser apresentados/trabalhados, no decorrer do ano, com o “olhar” para a
diferença. Em Língua Portuguesa, tal articulação resultou em uma forte argumentação e
consequente criticidade, isto é, os alunos ampliaram suas reflexões, principalmente em
relação aos discursos produzidos na mídia, questionando de forma mais efetiva as
verdades colocadas. Desse modo, passaram a perceber uma sociedade que até aceita a
diferença, mas desde que “ela” não incomode/ameace a hegemonia.
Os avanços foram expressivos, no sentido de que possibilitaram a desenvoltura
dos alunos nos eixos prescritos para Língua Portuguesa (leitura, oralidade e escrita) nos
Parâmetros Curriculares Nacionais, como também passaram a produzir reflexões mais
consistentes a cerca de uma sociedade que, pela estereotipia, promove/contribui com
contextos, inclusive o escolar, cada vez mais caracterizados pela segregação.
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Em sala de aula, as discussões que perpassaram pela alteridade/diferença
conseguiram dinamizar as aulas e encurtar o tempo que o aluno precisaria para adquirir
uma força argumentativa e consequente criticidade. A partir de temáticas sociais tão
presentes na sociedade, afinal todos eles conheciam uma história de discriminação,
instala-se um interesse generalizado, o que não aconteceria se houvesse escolha de
temas e textos presentes em livros didáticos. Estes não se tornam atrativos, não prendem
a atenção de jovens inseridos em uma realidade caracterizada por conflitos
socioculturais. Tais discussões em sala possibilitaram evidenciar estereotipias tão
presentes em seus mundos, sociedade/escola, e uma reflexão de como tratavam disso,
isto é, a identificação do preconceito para uma tomada de atitude diante dos novos
desafios.
O começo desse trabalho pedagógico, via projeto, foi marcado, principalmente,
pela insegurança em discutir a diferença em sala de aula. Santomé (2013) fala disso,
quando menciona “alguns obstáculos para uma educação antidiscriminatória”, diz ele
que há “um conjunto de tradições ou culturas docentes que dificultam a transformação e
implantação de modelos de inovação didática com possibilidades de pôr em prática uma
educação mais libertadora” (SANTOMÉ, 2013, p. 286).
Dentre esses empecilhos, o autor indica nove, aqui brevemente apresentados: a
escassa cultura do trabalho integrado; a obsessão em cumprir o currículo obrigatório; a
ausência de temas controversos na literatura utilizada; o medo de tratar de temas
controversos; a carência de uma cultura e tradição de debates nas salas de aula; uma
falta de formação e de habilidade por parte dos professores para tratar temas
controversos; a existência de políticas de avaliação externa, e isso obrigando a uma
dedicação exclusiva do trabalho pedagógico; uma escassez de recursos de informação
dirigidos aos alunos em idade escolar sobre temas polêmicos da atualidade; a falta de
familiaridade de um setor importante do corpo docente com esse tipo de núcleo de
conteúdo.
Todos os meus empecilhos, chamo de principais, constam na relação de Santomé
(2013). Tinha medo das reações. E se pais procurassem a escola para reclamar; e se não
desse conta dos conteúdos prescritos, estes ficando de lado, não só me condenariam
(pais e escola), como poderia prejudicar os alunos em alguma avaliação externa; temia
que as minhas escolhas/ações fossem também discriminatórias, ou seja, se eu, enquanto
professora, não trazia/nutria discursos que estabeleciam diferença. O último era o que
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mais me preocupava, mas este “cuidado” em se perceber ou não preconceituoso já
caracterizava um olhar para a diferença, um bom começo para abrir, junto aos alunos,
questionamentos/reflexões.
Enfim, a questão da diferença foi trazida para a sala de aula, nas “minhas” aulas
de Língua Portuguesa. Quando se faz esse mergulho, isto é, quando você se preocupa
em enxergar além dos conteúdos planejados para o bimestre/ano, passa a observar as
tantas posturas discriminatórias, inclusive dos colegas, que, por exemplo, rotulam para
justificar o fracasso deste ou daquele aluno. Entretanto, é nesse espaço-escola, que, ao
falar (seja pela oralidade ou escrita) sobre a diferença e a necessidade de afirmação das
minorias – o negro, o indígena, o homossexual, o idoso, a mulher – cria-se um espaço
para o confronto, possibilitando, assim, quebrar a disseminação da inferiorização por
parte daqueles que são “xenofóbicos”, isto é, saber que outros se posicionam contrários
às ações discriminatórias, incomodam e até podam a disseminação de tantos
preconceitos.
O afetamento para esse olhar proposto no projeto permite a legitimação não dos
grupos/minorias discriminadas, mas de alunos e alunas naquele espaço que ainda não se
afirmaram enquanto diferentes, ou seja, há dificuldade em se identificar como
constituinte de uma minoria. A partir das discussões, revelando uma história
colonizadora “real”, percebe-se um enfrentamento. Exemplo disso foram as discussões
geradas a partir do conteúdo “influências indígenas e africanas no léxico português”.
Nesse contexto, um aluno negro, de uma docilidade ímpar, era sempre tolerante com os
apelidos, a ponto de nos dizer, ele próprio, que era “só brincadeira”. Em dado momento,
reagiu/enfrentou um colega, não permitindo que o chamasse mais por apelidos. A partir
daquele momento, houve um reconhecimento de que ele era diferente, mas não inferior.
Assim, o encontro, aparentemente de contrários, os que discriminam e os que
não discriminam, pode levar ao convívio com a diferença na escola, não mais com a
tolerância, que subjuga o outro e concede/permite ao “inferior” um suposto espaço. Isso
permite uma escola heterogênea, plural, de diferentes olhares e contra-hegemônica. A
partir das discussões, o espaço-escola será aquele onde não se tolera preconceitos, mas
os combate, permitindo uma escola problematizadora da diferença, não excludente, e
isso, cada vez mais, ratificará a necessidade de mudança, inclusive, na sociedade.
Talvez, para o professor, não trazer para o espaço escolar discussões acerca da
diferença, signifique uma postura tradicional, talvez uma evitação de confrontos, quem
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sabe considere que gastará mais do pouco tempo que considera ter. Mas o silêncio, ao
presenciar atitudes discriminatórias, permite a continuidade/cumplicidade em sustentar
preconceitos. O trabalho com a diferença é possível, bem como organizar temas e textos
de acordo com os conteúdos exigidos para cada disciplina e ano. Isso quer dizer que não
haverá mais trabalho e sim ganho, porque é uma forma muito mais prazerosa de
ministrar os conteúdos e, ao mesmo tempo, provocar discussões/reflexões a partir do
real, do vivido pelos “diferentes” alunos. Desse modo, o professor, por meio de temas,
textos, atividades, permite o confronto, para que, a partir de então, estereótipos sejam
identificados e rejeitados, colaborando para a autoafirmação das minorias e,
principalmente, a compreensão de que a diferença não pode ser resumida em tolerância.
O princípio central de uma escola comprometida com a diferença deve ser o
respeito ao outro como Outro, como aquilo que não pode ser pensado a
priori, definido de antemão. Nessa escola, as pessoas não se tornam, porque a
completude do processo de tornar-se só seria possível se eliminássemos para
sempre a diferença. (MACEDO, 2014, p. 36).
Olhar a diferença no espaço escolar não significará, automaticamente, em
mudanças de postura, mas o estímulo, por menor que seja, possibilita um “voz”, uma
representatividade das minorias, construindo uma escola/arena contra hegemônica,.
Enfim, é necessário chamar a atenção da escola, a fim de que passe a promover novas
práticas, que consista num olhar sobre a realidade que a circunda. Ao promover
discussões em torno da diferença por um viés crítico, a escola oportuniza o encontro
com o “outro”, via currículo, cumprindo seu papel, fundamentalmente democrático.
Algumas Considerações
As práticas escolares/curriculares têm cumprido, de certo modo, uma função
social de reproduzir um conhecimento clássico, inferiorizando as diferenças, ao levar, a
grupos sociais, só um padrão curricular como necessário à formação de qualquer
indivíduo. Todavia, diferentes homens e mulheres são trazidos à escola, já
caracterizados, desenhados em determinados contextos, isto é, todos refletindo
vivências distintas, o que, inevitavelmente, toma forma no espaço escolar, e vai de
encontro às prescrições, aos modelos prontos para a aprendizagem.
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A promoção de discussões no currículo escolar voltada à diferença, de como é
ser mulher, ser negro, ser homossexual, ser índio, entre outros, a partir das práticas
sociais que atingem cotidianamente grupos variados na/da escola, possibilita
“considerar” que um aluno no espaço-escola, traz consigo as experiências que foram
construídas fora, antes dessa escolarização. Essa prática escolar permitirá, no mínimo, o
“respeito” às diferenças.
A escola está atravessada por representações e é inegável que normas são
produzidas culturalmente e que há formas/estratégias de enfrentamento para reconhecer
e problematizar no espaço escolar o estabelecimento dessas diferenças. Como visto,
uma possibilidade é a abordagem dessas questões em sala de aula e pelo professor,
adequando as discussões aos conteúdos trabalhados, sem que isso signifique mais
atribuições ou tempo gasto.
Referências Bibliográficas
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In: CANDAU, Vera Maria (Org.). Educação intercultural e cotidiano escolar. Rio de
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externa e o aprisionamento curricular. Educar em revista sem Fronteiras, Curitiba,
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ROCHA, Marisa Lopes da; AGUIAR, Katia Faria de. Pesquisa-intervenção e a
produção de novas análises. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 23, n. 4, p. 64-73, dez.
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SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
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SANTOMÉ, Jurjo Torres. Currículo escolar e justiça social: O cavalo de Troia da
educação. Porto Alegre: Penso, 2013.
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A LÓGICA HEGEMÔNICA NA ESCOLA SOB SUSPEITA: UMA ANÁLISE DE
PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA DE PROFESSORES
Sirley Lizott Tedeschi - UCDB
Ruth Pavan – UCDB
Resumo: O presente artigo é fruto da pesquisa financiada pelo Observatório da
Educação (OBEDUC/CAPES/INEP). Tem como objetivo analisar práticas de
resistência de professores/as contra os efeitos das relações de poder hegemônicas
vigentes em uma escola pública com alto IDEB. A referência para essa análise é a
perspectiva pós-estruturalista e entende com Foucault que onde há relações de poder,
em contra partida, há movimentos de resistência. Nesse jogo de forças, tanto as relações
de poder quanto as práticas de resistência são produtivas, possuem um potencial de
criação e transformação. Assim, na medida em que as relações de poder estão presentes
na escola, as resistências figuram como possibilidades de fazer surgir espaços de
tensões, de lutas, de transformação nas relações de poder instituídas. Através da análise
de entrevistas com professores/as dos anos finais do ensino fundamental a pesquisa
mostra que estes/as professores/as desenvolvem práticas de resistência contra as
tentativas de homogeneização das subjetividades. A disciplina rigorosa imposta aos/as
alunos/as, como uma forma de normalizar comportamentos e condutas, as práticas
pedagógicas instituídas e, de certa forma, naturalizadas, o culto a valores que se
pretendem universais e que se colocam como hegemônicos, assim como, as tentativas
de inferiorizar a alteridade recorrendo a estereótipos, são alvo de práticas de resistência
dos/as professores/as. Essas ações/resistências que os/as professores/as colocam em
movimento na escola abrem espaços para experiências de ações para além daquelas
instituídas. Deste modo, entendemos o contexto escolar para além dos dispositivos de
controle e normalização, ou seja, a escola se constitui num espaço privilegiado de
práticas de resistência.
Palavras-chave: Escola, Relações de Poder, Práticas de Resistência.
1-Introdução
O presente artigo é fruto da pesquisa financiada pelo Observatório da Educação
(OBEDUC/CAPES/INEP). Tem como objetivo analisar práticas de resistência de
professores/as contra os efeitos das relações de poder hegemônicas vigentes em uma
escola pública com alto IDEB. Através da análise de entrevistas com professores/as dos
anos finais do ensino fundamental mostramos que estes/as professores/as desenvolvem
práticas de resistência contra as tentativas de homogeneização das subjetividades.
A disciplina rigorosa imposta aos/as alunos/as, como uma forma de normalizar
comportamentos e condutas, as práticas pedagógicas instituídas e, de certa forma,
naturalizadas, o culto a valores que se pretendem universais e que se colocam como
hegemônicos, assim como, as tentativas de inferiorizar a alteridade recorrendo a
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estereótipos, são alvo de práticas de resistência dos/as professores/as. Essas
ações/resistências que os/as professores colocam em movimento na escola abrem
espaços para experiências de ações para além daquelas instituídas.
Para esta análise buscamos referência nas teorizações pós-estruturalistas e
entendemos com Foucault (2000) que onde há relações de poder, em contra partida, há
movimentos de resistência. Nesse jogo de forças, tanto as relações de poder quanto as
práticas de resistência são produtivas, possuem um potencial de criação e
transformação. Assim, na medida em que as relações de poder estão presentes na escola,
as resistências figuram como possibilidades de fazer surgir espaços de tensão, de luta,
de transformação nas relações de poder instituídas. Esse jogo constante de forças entre
relações de poder e práticas de resistência faz do espaço da escola “uma arena de lutas
cotidianas, de jogos de forças corriqueiras – forças de sujeição; mas, antes, forças de
resistências, de práticas de liberdade” (DINALI; FERRARI, 2011, p. 230).
É desta perspectiva que analisamos no que segue práticas de resistência de
professores/as contra as relações de poder hegemônicas na escola que tendem a
homogeneizar as identidades dos sujeitos que participam dos processos educacionais.
Salientamos que para a realização desta pesquisa foram entrevistados nove
professores/as dos anos finais do Ensino Fundamental. Para manter o anonimato dos
professores/as utilizamos nomes fictícios sempre que nos referimos a eles.
2- Sobre práticas de resistência na escola: potencialidade criativa e
transformadora em educação
Para além de uma educação oficializada nos documentos, como nos planos de
educação, nos projetos pedagógicos – que segundo Gallo (2006) está sempre marcada
por uma heteronomia e por práticas de assujeitamento – as práticas de resistência que
os/as professores/as desenvolvem produzem acontecimentos que desestabilizam as
relações de poder hegemônicas vigentes na escola. Essas ações dos/as professores/as,
que podemos chamar de menores, de desviantes produzem espaços de liberdade,
inventando e reinventando outras práticas que tomam com principio a singularidade da
diferença em vez da mesmidade da identidade.
É no dia-a-dia da escola, na sala de aula, nas conversas informais, na discussão
de procedimentos avaliativos com seus/as alunos/as, que essas ações acontecem. Esses
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espaços, mesmo que menores e com ações frágeis, fazem surgir o acontecimento
transgressivo e criador. Nesses espaços, de fragilidade concreta, os/as professores/as se
movimentam “nas e para as margens dos saberes constituídos e dos poderes
estabelecidos, tentando chegar à forja de novos lugares perpassados por novos saberes e
relações de força” (CARVALHO, 2011, p. 13).
Nesse sentido, diante das normas disciplinares instituídas na escola, o professor
Pedro gostaria de “mudar muita coisa”, entre elas, desenvolver aulas com seus alunos/as
“andando na mata”.
Agora, se eu pudesse eu mudava muita coisa, primeiro que eu trabalhei em
uma escola agrícola e a sala de aula não era um atrás do outro, era um circulo.
[...] eu gosto de aula assim como a gente está (se referindo ao momento da
entrevista), assim, ao ar livre. Eu dei aula nessa escola do campo que a gente
andava na mata, a gente sai andando e falando. Então, eu acho assim, que às
vezes você fica muito dentro de uma coisa que você não pode mudar (professor
Pedro).
O que move o professor Pedro é uma vontade se subverter o espaço disciplinado
da sala de aula - em vez de “um/a aluno/a atrás do outro”, deseja desenvolver as aulas
“andando na mata”, ou no jardim da escola – referindo-se ao espaço onde nos concedeu
a entrevista. Isso representa uma forma de resistência às relações de poder disciplinares
ainda hegemônicas na escola. A tentativa parece ser de construir um discurso que
desconstrua a ideia instituída nesta escola de que a aprendizagem dos/as alunos/as
depende de uma padronização dos comportamentos. E a professora Maria reforça essa
ideia ao dizer que a melhor experiência que lhe aconteceu como professora foi fora da
escola regular, uma experiência de ensino em que os/as alunos/as não estavam sob as
normas disciplinares da escola. Descreve essa experiência como “maravilhosa,
descontraída, [...] e no final fazendo uma avaliação junto com eles, eles expressaram
coisas magníficas” (professora Maria).
Ainda a respeito dessa vontade de subverter a ordem das coisas, o professor
Pedro destaca que a formação continuada que é oferecida pelo Estado para os/as
professores/as não tem contribuído muito na formação, pois ainda tem priorizado o
binômio disciplina/indisciplina como foco de discussão. Para este professor “não muda
nada ficar fazendo este tipo de discussão que você ouve já há tanto tempo. [...] hoje eu
acho que tem que lidar com isso de outra forma, tem outras coisas que a gente precisa
discutir” (professor Pedro). Entre essas “outras coisas” que a formação continuada
poderia priorizar, o professor Pedro destaca cursos que envolvam o uso de tecnologias
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na sala de aula, pois segundo ele “a gente está lidando agora com a época da tecnologia
e tem professor que não sabe lidar com isso” (professor Pedro). Também o Professor
João faz referência ao potencial do aparato tecnológico nas práticas pedagógicas e
afirma que “se pudesse, tivesse condições e tivesse tempo, eu conseguiria aliar o
conhecimento da informática junto com o celular. Por exemplo: todos tragam o celular,
vamos fazer um aplicativo e vamos olhar a geografia – só que as coisas imperam aí”
(professor João).
Os enunciados desses professores mostram uma vontade de pensar outras
práticas pedagógicas, ou seja, mostram a ação criativa do pensamento e o desejo de
fazer do ato pedagógico um acontecimento singular. Apontam a possibilidade de
aprendizagens significativa através de práticas pedagógicas que envolvam o uso do
celular e das redes sociais na sala de aula – mesmo sabendo que, nesta escola, o uso
desse instrumento tecnológico não é permitido no espaço da sala. Em vez de utilizar o
tempo da sala de aula para chamar a atenção dos/as alunos/os pelo uso do celular, o
professor João argumenta como seria interessante “se tivesse um aplicativo em uma
rede social que falasse sobre o aquecimento global no mundo, os alunos iriam ler e
interpretar” (professor João). Vemos nisso um conjunto de enunciados que fende com o
sentido comum das coisas; que faz irromper uma multiplicidade de forças singulares;
que faz do espaço escolar um espaço de instabilidade. Aí reside, diz Vilela (2006),
“aquilo que Foucault designou o ruído surdo sob a história, o murmúrio das palavras
ditas, o murmúrio obstinado de uma linguagem que falaria sozinha” (VILELA, 2006, p.
113).
Embora nosso intuito, neste momento, não seja desenvolver uma análise sobre a
formação continuada de professores, assim como, da potencialidade pedagógica das
tecnologias - temas de fundamental importância na contemporaneidade - queremos dizer
que os enunciados desses/as professores/as mostram, por um lado, que a padronização
dos comportamentos, um dos principais objetivos do poder disciplinar, se relaciona
menos com a aprendizagem dos/as alunos/as e mais “com as demandas relacionadas à
utilização da disciplina com fins morais, visando à obrigatoriedade e a universalidade de
certos comportamentos estabelecidos como [...] necessários dentro do ambiente escolar”
(RATTO, 2007, p. 228). Por outro lado, esses enunciados também mostram que a
preocupação excessiva com a disciplina, tanto no contexto da escola, quanto na
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formação continuada que o Estado oferece para os/as professores/as, tem dificultado ver
a necessidade de pensar práticas pedagógicas considerando o contexto dos/as alunos/as.
Concordamos com o professor João da necessidade de estarmos sempre abertos
para outras práticas pedagógicas – neste caso, o professor João argumenta que se “a
grande maioria dos/as alunos/as possuem celular e gostam de fazer uso desse
instrumento” (professor João), então poderíamos pensar práticas pedagógicas
considerando esta tecnologia. Por isso, o que esses professores dizem, instiga a escola e
os sujeitos que dela participam a repensar as posturas disciplinadoras e as práticas
pedagógicas que foram se naturalizando neste espaço, ao mesmo tempo, que é um
convite para a produção de outros movimentos que possibilitam fazer do ato pedagógico
um acontecimento singular.
Foucault (2002), em A verdade e as Formas Jurídicas, diz que no sistema
escolar “a todo o momento se pune e se recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem
é o melhor, quem é o pior” (FOUCAULT, 2002, p. 120), o que vai ao encontro das
inquietações desses/as professores/as, pois nos levam a pensar sobre uma questão já
posta por esse autor, “ por que, para ensinar alguma coisa a alguém, se deve punir e
recompensar?” (FOUCAULT, 2002,p. 121). A professora Maria põe em suspeita esses
procedimentos do poder disciplinar, pois como dissemos acima, para esta professora
os/as alunos/as aprenderam “coisas magníficas” quando não estavam sob as normas do
poder disciplinar da escola regular. Ainda destaca que a disciplina rigorosa normatizada
na escola se constitui num inibidor das diferenças, e obriga que todos os/as alunos/as
tenham os mesmos interesses e comportamentos.
Eu acho que isso vem da estrutura, essa estrutura, como se nós nos
acomodássemos dentro de um espaço e obrigássemos que eles tivessem todos
os mesmos comportamentos, e eles são diferentes, todos somos diferentes, eu
acho muito complexo o trabalho como a gente desenvolve. Mas eu, não sei,
porque os outros professores trabalham sem problema, acham legal,
desenvolvem seu trabalho, mas eu sinto essa dificuldade (professora Maria).
Vemos surgir nos enunciados do professor Pedro, do professor João e da
professora Maria, uma força, uma vontade que os move em direção à criação de
formações discursivas capazes de provocar descontinuidades no discurso hegemônico.
Esses movimentos tem a força de desestabilizar os poderes/saberes hegemônicos, ao
mesmo tempo, que possibilitam desenvolver processos de subjetivação para além do
dispositivo disciplinar. Ou ainda, como diz Carvalho (2011), a intensidade desses
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movimentos pode produzir “rupturas nas redes e circuitos de saberes-poderes
hegemônicos, a fim de atuar na composição de novas áreas de subjetivação humana”
(CARVALHO, 2011, p.14).
Suspeitar dos dispositivos disciplinares em ação na escola e de sua “eficiência”
nos processos de aprendizagem, assim como, buscar possibilidades de outras práticas
pedagógicas - como em alguns momentos, fazem estes/as professores/as - vem dizer
sobre outras perspectivas instituintes da ação pedagógica; vem dizer das ações
cotidianas destes/as professores/as consideradas, muitas vezes, neste espaço/tempo
como menos importantes ou menores, mas que entendemos como férteis nas
possibilidades de mudanças extraordinárias.
Assim como, o rigor disciplinar em que os/as alunos/as são submetidos e as
práticas pedagógicas „naturalizadas‟, são alvo de resistência destes/as professores/as,
também o é o culto a valores morais hegemônicos. Quando determinados valores são
universalizados e naturalizados no contexto da escola passam a influenciar diretamente
nas práticas pedagógicas e nos processos de subjetivação. As práticas pedagógicas são
aqui entendidas como parte de “dispositivos orientados à produção dos sujeitos
mediante certas tecnologias de classificação e divisão” (LARROSA, 2011, p.52) - e os
valores morais que orientam essas práticas fazem parte deste dispositivo.
Um dispositivo pedagógico conforme Larrosa (2011) é qualquer lugar em que se
aprende e/ou se modifica as relações que o sujeito estabelece consigo mesmo, como por
exemplo, “uma prática pedagógica de educação moral, uma assembleia em um colégio,
uma sessão de um grupo de terapia, o que ocorre em um confessionário, em um grupo
político, ou em uma comunidade religiosa” (LARROSA, 2011, p. 56). Nesse sentido,
pensamos com Larrosa (2011) que um dos dispositivos pedagógicos - enquanto pratica
pedagógica de educação moral - que acontece nesta escola, são as “acolhidas”. De
acordo com a professora Verônica, as “acolhidas” são um momento em que todos os
alunos são reunidos na escola, “aí tem dias que eles vão para a capela, que tem uma
palavra, cantam, normalmente no começo do ano [...] quando é lançada a campanha da
fraternidade” (professora Verônica). O objetivo dessas “acolhidas”, explica a professora
Verônica, é falar sobre os valores para os/as alunos/as.
Nesse sentido, podemos pensar as “acolhidas” nesta escola como um momento
de formação moral para os/as alunos/as. Ou, como diz o professor Pedro “eu trabalho
uma formação com eles aqui, [...] às vezes eu passo uma tarde toda com uma sala só, é o
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que a gente chama de momento de formação para todas as turmas” (professor Pedro).
Ainda a esse respeito, em diálogo com a coordenação pedagógica, fomos informados
que os/as alunos/as são reunidos, pelo menos, três vezes na semana para as “acolhidas”
para ouvir a “palavra” e cantar. O fato de esta escola estar ligada a um grupo religioso
católico reflete diretamente neste espaço de formação moral, assim como, na proposta
pedagógica como um todo. Os valores morais cristãos, neste caso, passam ser a
referência que “orienta a constituição ou a transformação da maneira pela qual as
pessoas se descrevem, se narram, se julgam, ou se controlam a si mesmas” (LARROSA,
2011, p. 56).
Trata-se de uma prática pedagógica, no interior de um dispositivo, que
desenvolve processos de subjetivação tendo em vista a universalização e naturalização
de valores morais cristãos que ainda se colocam como hegemônicos no contexto desta
escola – assim como na sociedade em geral. Como efeito, temos processos pedagógicos
voltados para a homogeneização das identidades e diferenças, ideia reforçada pela
professora Verônica, ao dizer que os valores são colocados “em evidência para que não
haja essas diferenças” (professora Verônica). Assumir outra moralidade, valores,
comportamentos, neste contexto, pode ser visto como uma ameaça à estabilidade da
identidade pretendida.
Mas mesmo diante de dispositivos pedagógicos que tendem a homogeneização
dos processos de subjetivação – como são as “acolhidas” - queremos ressaltar, que nesta
escola, os processos de subjetivação são irredutíveis à moral e aos códigos morais.
Todas as tentativas de invisibilizar a diferença através de “um conjunto de regras
coercitivas que prescrevem os modos como devemos ser e nos comportar em relação a
um conjunto de valores transcendentais como o bem, o mal, o certo ou o errado”
(GARCIA, 2001, p. 37) são constantemente subvertidas, sofrem constantemente
práticas de resistência.
Destacamos como o professor José está envolvido na constituição de formações
discursivas que subvertem as relações de poder da moralidade hegemônica. Em relação
à moralidade vigente na escola, esse professor diz “que esses resquícios ditatoriais
acabam prejudicando tanto os alunos quanto os professores, tanto ditatoriais quanto
jesuíticos - os batina preta - aqui tem muito batina preta, [...] eu acho uma judiação”
(professor José). Este professor diz já ter sido “reprimido” pela coordenação pedagógica
por ter utilizado a palavra “pênis” na sala de aula para explicar um conteúdo de História.
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Não, não, e aí foi até uma coisa que eu vou confessar, que eu estava ensinando
sobre a Grécia, que esse bimestre eu estava ensinando que os gregos são
provenientes da península balcânica e aí eu falei que a península era uma parte
do continente que se projetava ao mar como alguma coisa que saísse do corpo e
aí um menino da sala disse: é igual pênis professor? Eu falei: é isso a palavra
península deriva de pênis, o garoto entendeu isso, incrível, olha que louco, saiu
de alguém da sala para eles entenderem, pênis! Na outra aula a coordenação
veio – nossa aconteceu uma coisa horrível, uma mãe veio falar que você esta
usando termos de genitália, que ela não usa isso na sala dela e não quer que
você use isso com a filha dela – veja, a própria coordenação acabou afanando
isso [...], eu não fiz alusão ao sexo. [...] Mas aí em função do patriarcalismo, do
machismo, é muito difícil, só que eu tenho certeza que os alunos da sala nunca
vão esquecer o que é península. Então na verdade o que acontece é que muitas
vezes você é visto como o inimigo da moral e dos bons costumes [...] pra você
ver como não há discussão sobre isso (professor José).
Mesmo tendo sido “reprimido” pela coordenação pedagógica e ser visto por pais
e professores/as “como inimigo da moral e dos bons costumes”, o professor José parece
se sentir orgulhoso da prática pedagógica adotada, pois ressalta “eu tenho certeza que os
alunos da sala nunca vão esquecer o que é península” (professor José). A prática
pedagógica do professor José é vista, no contexto desta escola, como subversiva, pois
pode colocar em discussão questões relativas à sexualidade – questões que, segundo ele,
são silenciadas, ignoradas, em nome da moralidade cristã vigente. Reforça ainda, que “o
patriarcalismo, o machismo, a heteronormatividade” que ainda marcam a sociedade
contemporânea, reflete diretamente no espaço desta escola. Mostra a presença desses
valores na escola relatando uma experiência que teve em sala de aula. Esta experiência
tem a ver com o fato de este professor ter sido criticado por seus/as alunos/as por adotar
comportamentos que não seriam adequados para um homem, como colocar a mão na
cintura e cruzar a perna – para os/as alunos/as do professor José este comportamento
não é adequado para homens e sim para mulheres.
A experiência relatada pelo professor José nos faz pensar que, no contexto desta
escola, ainda se parte de uma identidade essencial, fixa e natural para homens,
mulheres, meninos e meninas. A heteronormatividade naturalizada e reforçada, de certo
modo, pela hegemonia da moralidade cristã, faz ver a diferença como desvio – cruzar a
perna e colocar a mão na cintura não é comportamento de homem, e sim de mulher,
assim como, “andar rebolando” não é comportamento para meninos, e sim para
meninas. É esse discurso que naturaliza, essencializa e universaliza as identidades e
diferenças, que o professor José subverte - seja através de práticas pedagógicas que
adota com seus alunos/as, seja através do comportamento que assume.
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Ao abrir esse discurso e as certezas que o constitui, este professor possibilita
mostrar o que ele esconde, invisibiliza e subalterniza, possibilita a construção de
espaços para o acontecimento e a imprevisibilidade em educação. Para dizer de outra
forma, os movimentos produzidos pelo professor José “faz girar experiências mais reais,
menores, nem sempre vistas e valorizadas, mas que estão lá, aqui, além de aqui: em
todos os recantos” (CARVALHO, 2011, p. 20) e que produz subjetividades para além
de toda ordem subjetivante.
O que estamos dizendo é que estes/as professores/as estão criando desde as
margens das políticas educacionais instituídas ações e práticas que não são
necessariamente as esperadas. Suspeitar das práticas disciplinares em ação na escola, de
práticas pedagógicas naturalizadas, da hegemonia da moralidade cristã, representam
tentativas de construção de outros discursos entorno do poder disciplinar, da formação
moral e das práticas pedagógicas no contexto desta escola. Significa que esses/as
professores/as estão instaurando uma discursividade que procura dar visibilidade as
heterogeneidades que circulam na escola. Nesse sentido, pensamos com Carvalho
(2011), que se, por um lado, a identidade imobiliza o gesto do pensamento, por outro
lado, o que esses/as professores/as fazem está sob o ângulo da criação de
descontinuidades que torna “possível empreender nos campos da educação toda a sorte
de acontecimentalização, fazendo ecoar toda a sorte de microcriação” (CARVALHO,
2011, p. 14).
Ainda queremos dizer que as práticas de resistência desses/as professores/as
atingem também as formações discursivas que nomeiam a diferença a partir de
estereótipos. De acordo com Bhabha (1998) o estereótipo é uma estratégia discursiva do
poder colonial, uma forma de conhecimento, que tende a caracterizar a diferença por
traços simplificados, exagerados, instáveis e ambivalentes, mas por serem atribuídos à
natureza dos sujeitos, passam a configurar como fixos e estáveis.
Nesse sentido, o discurso da modernidade tem subalternizado e inferiorizado a
alteridade e tem produzido efeitos ainda hoje nas sociedades. Sobre estes efeitos, a
professora Maria chama atenção, para certos vocabulários, certos saberes ou formas de
narrar que ainda são utilizados na educação escolar, que desqualifica determinadas
culturas por serem formas estereotipadas de narrar a alteridade. Referindo-se a práticas
pedagógicas que alguns/as professores/as adotam para ensinar a cultura indígena, diz
que:
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[...] nas datas comemorativas, chamadas datas culturais, então, dia do índio,
trabalhava assim, as crianças pintavam o indinho, um termo inadequado. Ah!
Porque indinho? Um termo inadequado a gente diminuir, porque não tem o
índio, são povos indígenas, então fica no estereótipo, isso que eu percebi, a
gente usa estereótipos porque é aquilo que a gente tem acesso, de mais fácil
acesso, então é complexo (professora Maria)
A professora Maria tem percebido que no contexto desta escola ainda persistem
práticas pedagógicas em que a diferença é nomeada a partir do discurso da
modernidade. Para essa professora, o termo “indinho” carrega a força desse discurso e
tende a inferiorizar os povos indígenas. Se junta a isso, de acordo com a professora
Maria, o fato de muitos materiais didáticos que chegam à escola ainda reforçarem esses
estereótipos. Ao se referir aos materiais didáticos que a Secretaria do Estado de
Educação (SED) disponibiliza para os/as professores/as, diz conhecer “uma parte, mas
especificamente dos povos indígenas aqui no nosso Estado, é outra história. Eu acho
fundamental para a gente poder falar na sala de aula, desfazer mitos, preconceitos”
(professora Maria).
A convicção com que a professora Maria afirma a necessidade de “desfazer
mitos e preconceitos”, antes de se pensar os materiais didáticos ou as práticas
pedagógicas, mostra a construção de formações discursivas a partir de outras relações
de poder no contexto desta escola. Essas relações de poder que estão sendo construídas
podem produzir uma descontinuidade no discurso hegemônico que, conforme Skliar
(2003) provoque o “pensamento, que retire do espaço e do tempo todo o saber já
disponível; [...] que faça da mesmidade um pensamento insuficiente para dizer, sentir
compreender o que aconteceu” (SKLIAR, 2003, p. 200). Para dizer de outra forma, os
movimentos que os/as professores/as suscitam através de práticas de resistência estão
fazendo da pedagogia escolar, de algum modo, um acontecimento, uma singularidade,
uma multiplicidade, estão fazendo da escola um lugar da diferença.
3- Algumas Considerações
Propomos-nos nesse artigo pensar/problematizar as resistências nesta escola
como práticas de liberdade e não como uma total libertação das relações de poder, pois
as resistências são constitutivas das relações de poder. Pensamos com Foucault (1988),
que são as próprias relações de poder que possibilitam espaços para que as resistências
aconteçam, então não é contra o poder que essas resistências são travadas e sim contra
os seus efeitos e nisso consiste seu potencial de criação e transformação. Nesse sentido,
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o espaço desta escola pode ser entendido como um espaço de tensão entre forças, como
um jogo de forças entre relações de poder e práticas de resistência. Isso mostra a riqueza
e criatividade desse espaço e as possibilidades de mudança que ele proporciona.
Neste contexto escolar, as práticas de resistência em ação mostram que estes/as
professores/as não se deixam envolver facilmente nos grandes discursos das
macropolíticas de uma educação institucionalizada. Pensamos com Deleuze (1992), que
estes/as professores/as através de microações, de micromovimentos, que se dão a
margem de uma educação institucionalizada, fazem suscitar acontecimentos, “mesmo
pequenos, que escapam ao controle, e engendram novos espaços-tempos mesmo de
superfície ou volume reduzidos” (DELEUZE, 1992, p. 218). Os acontecimentos que
estes movimentos suscitam produzem linhas de fuga aos mecanismos de controle e
normalização que possibilitam, conforme diz Johnny Alf na letra da música Eu e a
brisa, que “o inesperado faça uma surpresa e traga alguém que queira te escutar”. Ou
ainda, as práticas de resistência desses/as professores/as às tentativas de
homogeneização das subjetividades fazem desta escola vida, vida que irrompe, resiste,
conquista a educação com sua criatividade, imanência, vontade de potência.
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