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CURSO DE BACHARELADO EM FÍSICA
Ingrid Silva Chanca
CERRITOS NA LAGOA DOS PATOS: MODELO CRONOLÓGICO E INFLUÊNCIA DE
ÁGUA DOCE PARA O CÁLCULO DO EFEITO DE RESERVATÓRIO LOCAL DE
CARBONO 14
Niterói, RJ
2017
2
Ingrid Silva Chanca
CERRITOS NA LAGOA DOS PATOS: MODELO CRONOLÓGICO E INFLUÊNCIA DE
ÁGUA DOCE PARA O CÁLCULO DO EFEITO DE RESERVATÓRIO LOCAL DE
CARBONO 14
Monografia submetida ao curso de graduação
em Física – Bacharelado da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do título de Bacharel em
Física.
Orientadora:
Professora Doutora Kita Chaves Damasio Macario.
Niterói, RJ
2017
3
Ingrid Silva Chanca
CERRITOS NA LAGOA DOS PATOS: MODELO CRONOLÓGICO E INFLUÊNCIA DE
ÁGUA DOCE PARA O CÁLCULO DO EFEITO DE RESERVATÓRIO LOCAL DE
CARBONO 14
Monografia submetida ao curso de graduação
em Física – Bacharelado da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do título de Bacharel em
Física.
Aprovada em 22 de fevereiro de 2017.
BANCA EXAMINADORA
Professora Doutora Kita Chaves Damasio Macario
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________________________________________
Professor Doutor Wallace de Castro Nunes
Universidade Federal Fluminense
________________________________________________________________________
Mestre Marcelo Costa Muniz
Universidade Federal Fluminense
_________________________________________________________________________
4
À Sasha, ao Paulo e à Zetti.
Pela importância que tiveram
na minha vida e pela falta que
fazem por aqui.
5
Agradecimentos
Agradeço à minha mãe todo o seu esforço para que eu pudesse continuar estudando. Sem seu
suporte não teria conquistado nada do que conquistei. Um dia espero retribuir todo o seu
carinho, atenção e preocupação. Mesmo você ainda se enganando e achando que eu estudo
Química, te amo.
Ao meu pai o carinho. Apesar das desavenças que tivemos durante os anos, amo-te e sempre
lutarei pelo seu bem.
À Teté a paciência e o companheirismo. Apesar do meu “gênio”, por diversas vezes, difícil de
lidar, você esteve do meu lado nos melhores e piores momentos.
Aos meus sobrinhos: Júlia, Geovanna, João Pedro, Pedro Lucas, Gabriel e Gabrielly. Apesar
das bagunças, ajudaram muito a titia com risadas, lições e pedindo para escrever continhas ou
copiando os desenhos dos livros de física.
À Nanane, Dona Vera, Afonso, Seu Zé e meus irmãozinhos de coração, Alycia e Augusto.
Amo essa segunda família que sempre viu potencial em mim e acredita no meu futuro.
Ao Amor o suporte, a paciência e o carinho. Obrigada pelas aventuras e por olhar comigo o
mundo. Gosto mais do mundo quando posso olhar pra ele com você. Ich liebe dich.
Aos meus professores, que sempre acreditaram em mim e me deram força para seguir. Em
especial ao professor Janilson – sem você não teria nem feito a prova do CPII -, ao professor
Serra-Freire, professora Marinete e professor Gazeta do LIRN/IOC – seus conselhos, histórias
e ensinamentos foram essenciais para eu ser a cientista que sou agora.
A todos do LAC e LARA. Especialmente ao Marcelo, ao Dudis, à Fafá e à Renata Jou. À
Bruna Brandão sou grata por todos os ensinamentos diários de amor, paciência e respeito.
Aos amigos da Física ao longo de todos esses anos. Em especial aos “novinhos” Braian e
Mariana, agora também amigos de sala no 1P. Obrigada pela comida, pelos conselhos, pelo
carinho e pelas risadas. Ao amigo de Ensino Médio e de intercâmbio, Diogo Lisboa. Grata
pelas risadas, pelas conversas de madrugada e pelos perrengues. Aos amigos que fiz no
intercâmbio, em especial à Daphne, ao Henrique (companheiro de não entender Teoria
Eletromagnética em inglês com sotaque alemão), ao Victor, ao Leandro, à Peste do Junior e
todos que não se cansaram de me chamar de vó. Deus os abençõe.
6
Às equipes do Instituto Max Planck de Biogeoquímica e do Instituto Max Planck para
Antropologia Evolucionária. Especialmente a Sarah, a Lysann e ao Axel.
Aos professores e funcionários da Universidade de Leipzig. Especialmente ao Dr. Spemann, à
Kristin do Studienbüro e à Felicitas Hanke.
À Kita tudo. Sou grata por ser minha amiga, orientadora, conselheira e, por engano no
whatsapp, mãe. Agradeço por me acalmar, aguentar minhas lágrimas, oferecer abrigo e,
principalmente, por acreditar em mim. Conte comigo hoje e sempre.
7
“Non è bene cercare di fermare il progresso della conoscenza. L’ignoranza non è mai meglio
della conoscenza.”
Enrico Fermi
8
Sumário
Resumo .................................................................................................................................... 10
Abstract ................................................................................................................................... 11
Lista de figuras ....................................................................................................................... 12
Lista de tabelas ....................................................................................................................... 13
Capítulo 1 - Introdução .......................................................................................................... 14
Capítulo 2 – 14
C: distribuição no ambiente .......................................................................... 16
2.1 Datação radioativa .......................................................................................................... 16
2.2 Produção do radiocarbono .............................................................................................. 17
2.2.1 Variação na concentração de carbono ...................................................................... 18
2.3 Datação de radiocarbono ................................................................................................. 19
2.4 Ajustes no modelo ........................................................................................................... 20
2.4.1 Fracionamento isotópico .......................................................................................... 20
2.4.2 Efeitos de reservatório.............................................................................................. 22
2.4.2.1. Efeito de reservatório marinho (MRE) ........................................................... 22
2.4.2.2. Efeito de reservatório de água doce (FRE) ..................................................... 23
2.5 Calibração ....................................................................................................................... 23
Capítulo 3 – Cerritos: interação humana com o ambiente lagunar ................................... 27
3.1 A ocupação dos ecossistemas marinhos ......................................................................... 27
3.2 Cerritos ........................................................................................................................... 28
Capítulo 4 – Materiais e Métodos ......................................................................................... 31
4.1 Geomorfologia e Geologia da área de estudo ................................................................. 31
4.2 A escavação do sítio arqueológico .................................................................................. 36
4.3 A cronologia do sítio ....................................................................................................... 40
4.3.1 Preparação de amostras ............................................................................................ 42
4.3.2 Medição no sistema acelerador ................................................................................ 45
4.3.2.1. Fonte de íons ................................................................................................... 46
4.3.2.2. Ímã de injeção ................................................................................................. 47
4.3.2.3. Stripper ........................................................................................................... 49
4.3.2.4. Detector ............................................................................................................ 50
4.3.3 Calibração dos resultados e modelo cronológico .................................................... 51
9
Capítulo 5 – Resultados e Discussão ..................................................................................... 53
5.1 Resultados ....................................................................................................................... 53
5.2 Discussão ........................................................................................................................ 56
Capítulo 6 – Conclusão .......................................................................................................... 60
Capítulo 7 – Referências Bibliográficas................................................................................ 62
10
Resumo
O advento da datação de radiocarbono foi, sem dúvida, um grande marco na ciência
aplicada. Diversos estudos cronológicos puderam ser iniciados, corroborados e repensados a
partir da datação absoluta de materiais compostos por carbono. Um avanço ainda mais feraz
veio com o surgimento da técnica de espectrometria de massa com aceleradores (AMS –
Accelerator Mass Spectrometry). Assim, surgiu a datação de radiocarbono por AMS, o
método de análise empregado no Laboratório de Radiocarbono da Universidade Federal
Fluminense (LAC-UFF). Porém, como em qualquer ciência que trate de sistemas fora dos
limites ideais, o modelo suposto para a datação de radiocarbono precisa incorporar alguns
efeitos. Neste trabalho serão estudados dois efeitos importantes quando a amostra que se
desejar datar tem origem aquática ou pode ter incorporado o sinal do ambiente aquático
através da cadeia alimentar. Esses efeitos são: o efeito de reservatório marinho (MRE –
Marine Reservoir Effect) e o efeito de reservatório de água doce (FRE – Freshwater
Reservoir Effect). A correção para esses efeitos se dá no momento da calibração das idades de
radiocarbono, quando leva-se em conta a natureza das amostras e a origem do carbono nelas
contido. O objetivo desta monografia foi entender a origem do carbono 14 no ambiente da
Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, Brasil, e, com isso, contribuir para a acurácia dos
estudos cronológicos que sustentam a interpretação arqueológica da ocupação desta região.
Para tal foi empregada a metodologia de pareamento de amostras marinha/terrestre
contemporâneas, o que foi definido a partir de seus contextos arqueológicos nos cerritos –
sítios arqueológicos próximos a Lagoa dos Patos.
Palavras-chave: AMS, MRE, FRE, cerrito, Lagoa dos Patos, ∆R, datação, 14
C
11
Abstract
The discovery of the radiocarbon dating was, certainly, a big deal in the applied
science. Various chronological studies could be initiated, confirmed and rethough out the
coming of absolute dating on carbon materials. An even major advance came with the
development of the Accelerator Mass Spectrometry (AMS) technique. Therefore, it emerged
the radiocarbon dating by AMS, the method of analysis employed at the Radiocarbon
Laboratory at UFF (LAC-UFF). However, as in any science which works with systems out
the ideal boundaries, the supposed model to radiocarbon dating should incorporate some
effects. In this work, two main effects when one aims the radiocarbon dating of aquatic
samples or samples which might have incorporated through the food web the aquatic carbon
signal will be studied. The effects are: Marine Reservoir Effect (MRE) and Freshwater
Reservoir Effect (FRE). These effects are corrected in the process of calibration of
radiocarbon, when it is taken into account the nature of the samples and the origin of the
carbon contained in them. The objective of this work was to understand the origin of carbon
14 in the environment of Lagoa dos Patos, in Rio Grande do Sul, Brasil, and, with this,
contribute to the accuracy of the chronological studies that support the archaeological
interpretation of human occupation in this region. For this it was used terrestrial/marine paired
samples. They should be contemporaneous and this condition was verified under
archaeological observations in the cerritos – archaeological sites near the Lagoa dos Patos.
Keywords: AMS, MRE, FRE, cerrito, Lagoa dos Patos, ∆R, 14
C dating
12
Lista de Figuras
FIGURA 2. 1 SEÇÃO DA CURVA DE CALIBRAÇÃO ATMOSFÉRICA INTCAL13. ............................................................................. 24
FIGURA 2. 2 SEÇÃO DAS CURVAS INTCAL13, MARINE13 E SHCAL13. .................................................................................... 25
FIGURA 2. 3 EXEMPLO DE CALIBRAÇÃO DE AMOSTRA MARINHA. .......................................................................................... 25
FIGURA 3. 1 ESQUEMA CRONOLÓGICO PARA SUL DO BRASIL E URUGUAI. .............................................................................. 29
FIGURA 3. 2 CERRITO DA ZONA DE SAN LUIS (URUGUAI). ................................................................................................... 30
FIGURA 4. 1 DESTAQUE PARA OS CANAIS QUE LIGAM A LAGOA DOS PATOS AO OCEANO ATLÂNTICO E À LAGOA MIRIM. ................. 32
FIGURA 4. 2 CURVA ISOTÓPICA DO Δ18
O, COM ASSOCIAÇÕES AOS DIFERENTES SISTEMAS DEPOSICIONAIS .................................... 34
FIGURA 4. 3 GEOMORFOLOGIA DA REGIÃO DE ESTUDO. ..................................................................................................... 35
FIGURA 4. 4 DISTRIBUIÇÃO DOS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS CITADOS. ....................................................................................... 37
FIGURA 4. 5 IMAGEM DE SATÉLITE – SÍTIOS PONTAL DA BARRA. .......................................................................................... 37
FIGURA 4. 6 VISTA AÉREA DO CANAL SÃO GONÇALO ......................................................................................................... 38
FIGURA 4. 7 SÉRIE DE FOTOS DOS SÍTIOS. ........................................................................................................................ 41
FIGURA 4. 8 ESQUEMA DA LINHA DE PURIFICAÇÃO ............................................................................................................ 44
FIGURA 4. 9 ESQUEMA DO SSAMS 250 KV DA NEC ........................................................................................................ 46
FIGURA 4. 10 40 MC-SNICS DO SSAMS DA UFF .......................................................................................................... 47
FIGURA 4. 11 ESQUEMA FONTE DE ÍONS ......................................................................................................................... 47
FIGURA 4. 12 ÍMÃ DE INJEÇÃO DO SSAMS DO LAC-UFF .................................................................................................. 49
FIGURA 4. 13 ESPECTRO PARA CARBONO-14 EM DETECTOR DE BARREIRA DE SUPERFÍCIE .......................................................... 50
FIGURA 5. 1 IDADES MODELADAS DE RADIOCARBONO ........................................................................................................ 56
FIGURA 5. 2 DISTRIBUIÇÃO DE PROBABILIDADE PARA O EFEITO DE RESERVATÓRIO R ................................................................ 56
FIGURA 5. 3 MAPA COM LOCALIZAÇÃO DE SÃO JOSÉ DO NORTE E A LAGOA DOS PATOS ........................................................... 57
13
Lista de Tabelas
TABELA 1 - RESULTADOS ............................................................................................................................................. 53
14
Capítulo 1
Introdução
Apesar da técnica de espectrometria de massa com aceleradores (sigla em inglês AMS
– Accelerator Mass Spectrometry) ser difundida em diversos laboratórios pelo mundo desde a
década de 1980, somente a partir de 2012 amostras puderam ser medidas por essa técnica em
um laboratório no Brasil.
O Laboratório de Radiocarbono da Universidade Federal Fluminense (LAC-UFF),
sendo o único da América do Sul e o primeiro de dois da América Latina a analisar o carbono
14 pela técnica de AMS, conta com diversos projetos multidisciplinares de colaboração
nacional e internacional.
Neste laboratório, a idade convencional de radiocarbono é obtida a partir da medição
das concentrações isotópicas de carbonos 12, 13 e 14 em um espectrômetro de massa
associado a um sistema acelerador. Essa idade convencional já leva em conta correções para o
fracionamento isotópico, porém correções quanto às variações temporais e espaciais de
carbono nos reservatórios terrestres são considerados somente após essa medição, em um
processo de tratamento de dados nomeado calibração.
A calibração das idades é feita com base em dois tipos de curvas: a curva atmosférica
– que se divide em curva para o hemisfério sul e curva para o hemisfério norte – e a curva
marinha. Como o reservatório marinho é empobrecido em 14
C quando comparado à
atmosfera, as idades de radiocarbono para amostras marinhas costumam ter uma diferença de
cerca de 400 anos em relação às amostras terrestres. Essa diferença é equivalente à idade
estimada para a superfície das águas oceânicas. Essa idade mais antiga que as amostras
marinhas apresentam é chamada de idade aparente de radiocarbono.
A curva marinha, em uma visão simplista, é a curva atmosférica modelada para as
supostas taxas de inserção de CO2 no reservatório marinho, o oceano global. Dessa forma, não
é difícil imaginar que muitas peculiaridades quanto à variabilidade espacial proveniente das
(às vezes complicadas) correntes marinhas, fenômeno da ressurgência, inserção de detritos
continentais e etc. possam causar desvios nas idades de radiocarbono. Por conta disso, em
15
muitos contextos se faz necessário considerar um efeito de reservatório de radiocarbono (RRE
– Radiocarbon Reservoir Effect) específico para o contexto estudado.
Neste trabalho será realizado o cálculo do efeito de reservatório para a região da Lagoa
dos Patos, no Rio Grande do Sul, sendo esse valor válido para o período equivalente à
construção e último período de ocupação dos cerritos do Pontal da Barra, o que equivale a um
espaço de tempo entre cerca 2.200 anos AP1 e cerca de 800 anos AP.
O embasamento científico e toda descrição inerente à datação de radiocarbono são
apresentados no capítulo 2.
O capítulo 3 é dedicado à descrição geral dos sítios arqueológicos do tipo cerrito, tão
bem quanto a uma introdução sobre a relação dos povos antigos com as fontes de subsistência
marinhas.
Todas as amostras utilizadas e a metodologia empregada estão esmiuçadas no capítulo
4. Esse capítulo também conta com uma descrição dos principais componentes do acelerador
de partículas da UFF.
Nos capítulos 5 e 6, ver-se-ão os resultados e a modelagem efetuada para o cálculo do
efeito de reservatório, assim como uma discussão dos resultados obtidos e as principais
conclusões.
1 AP: Antes do Presente. O “presente” corresponde ao ano de 1950 Anno Domini.
16
Capítulo 2
14C: distribuição no ambiente
O sucesso do uso das análises de radiocarbono em diversos estudos aplicados,
inclusive em estudos cronológicos arqueológicos2 se deve a diversos fatores. O principal deles
é a composição de todos os materiais orgânicos ser baseada em carbono.
2.1 Datação radioativa
A descoberta do decaimento radioativo natural do Urânio por Becquerel em 1896,
dentre diversificadas utilidades e aplicações, foi importante para que, hoje, consiga-se realizar
datação absoluta de diversos materiais. O decaimento radioativo é independente de fatores
ambientais como temperatura e de estados físico ou químico do composto que contém o
elemento radioativo. Por isso, sabiamente Lorde Rutherford em 1905 fez a primeira sugestão
do uso da radioatividade como ferramenta para a medida de tempo geológico.
A datação radioativa se baseia em princípios do decaimento radioativo de um
elemento nuclearmente instável. Com o objetivo de alcançar estabilidade, um núcleo instável
pode se desintegrar através da liberação de energia na forma de partículas ou radiação. Isso é
o que chamamos de decaimento radioativo. Todo elemento radioativo tem, por definição, um
tempo de meia-vida ( ⁄). Esse é o tempo que uma amostra leva para ter metade dos núcleos
instáveis que tinha inicialmente. A atividade radioativa de uma amostra, definida como o
número de desintegrações de uma amostra radioativa por unidade de tempo, é medida em
Becquerel (Bq) ou Curie (Ci) [1Ci = 3,7 x 1010
Bq], no qual 1 Bq representa 1 desintegração
por segundo. A atividade A(t) se relaciona com o tempo de meia-vida a partir da seguinte
fórmula:
( ) (2.1)
, onde
⁄
(2.2)
é a constante de decaimento.
2 De fato, o trabalho que designou o prêmio Nobel a Willard Libby em 1960 (Libby, 1960) foi justamente o
desenvolvimento da datação de radiocarbono e a primeira atestação desse método se deu sob a análise de uma
amostra arqueológica.
17
Equivalentemente se pode escrever a dependência da concentração C(t) de uma
amostra radioativa com o seu tempo de meia-vida (ou explicitamente, com a sua constante de
decaimento), obtendo-se:
( ) . (2.3)
O princípio da datação radioativa se dá através da inversão de qualquer uma dessas equações.
(2.4)
, onde τ é a vida média de uma amostra radioativa. Logo
⁄
. (2.5)
Assim, a partir da atividade inicial e final de uma amostra radioativa ou da
concentração inicial e final de uma amostra, pode-se inferir o tempo transcorrido entre
eventos cuja razão (da atividade ou concentração) é mensurável.
Em qualquer técnica de datação radioativa a correta medição dos eventos final e inicial
garantirá a exatidão do tempo t obtido a partir das equações fundamentais da radioatividade.
Todavia, nem sempre é possível medir diretamente a atividade ou concentração inicial de uma
amostra. Quando a datação radioativa se baseia em séries de decaimento3, a tarefa se torna
mais fácil, afinal as relações entre o elemento-filho e o elemento-pai são bem estabelecidas.
Ao lidar com elementos que não seguem uma cadeia de decaimento radioativo,
desintegrando-se diretamente a elementos estáveis (decaimento simples), é necessário
considerar modelos de forma a se obter a quantidade radioativa inicial da amostra
considerada.
2.2 Produção do radiocarbono
O carbono, ametal da família 4A, é encontrado na Natureza na forma de três isótopos
com abundâncias bastante distintas. O isótopo mais abundante do carbono é o de massa 12
(12
C), representando 98,9% do carbono presente na atmosfera terrestre. Com 1,1% de
abundância, temos o isótopo de massa 13 (13
C). Essas são as formas estáveis do carbono.
Numa proporção ínfima de apenas uma parte em 1010
%, temos o isótopo radioativo do
carbono, com massa 14 (14
C) e tempo de meia-vida de aproximadamente 5.730 anos (Walker,
2005).
3 Decaimentos radioativos que ocorrem em sequência, pois um elemento instável decai para outro elemento
também instável antes de se converter, no final da série, a um elemento nuclearmente estável.
18
Da Física Nuclear conhecemos diferentes rotas para a obtenção de radiocarbono,
sempre baseadas na absorção de um nêutron por um átomo de carbono, nitrogênio ou
oxigênio (Davis, 1977).
A produção natural de 14
C na Terra é dominada pela seguinte reação nuclear:
14
N(n,p)14
C. (2.6) 4
Essa reação acontece principalmente na estratosfera (O’Brien, 1979; Aitken, 1990). Os
nêutrons absorvidos pelos átomos de nitrogênio na atmosfera são nêutrons termais, cuja
origem é a interação da radiação cósmica de alta energia (provenientes de fora do Sistema
Solar) com partículas da atmosfera superior terrestre (Walker, 2005).
2.2.1 Variação na concentração de carbono
Alguns são os fatores que podem alterar a concentração de radiocarbono na atmosfera
ao longo do tempo. Visto que esse é um elemento cosmogênico, variações no campo
geomagnético da Terra e ventos solares (modificados pela variação cíclica da atividade solar)
exercem influência na produção de 14
C (Korff e Mendell, 1980). Fatores antropogênicos
também alteram a razão isotópica de carbono ao longo do tempo. Dentre eles, os mais
proeminentes são: efeito Suess e testes nucleares.
O efeito Suess trata-se de uma diluição da concentração de carbono 14 na atmosfera
terrestre e essa diluição teve sua magnitude aproximada documentada pela primeira vez por
Hans Suess (Suess, 1955). Essa diluição adveio da Revolução Industrial, no final do século
XIX, na qual a queima de combustíveis fósseis como óleos e gás natural liberou desprezíveis
quantidades de dióxido de carbono 14, ao passo que o mesmo nas formas 12
CO2 e 13
CO2 foi
liberado em grande quantidade. Devido à antiquíssima idade dos compostos fósseis, a
atividade do 14
C em tais compostos é referida como “morta”. Isso quer dizer que neles não há
valores mensuráveis de 14
C, pois a quase totalidade do isótopo instável já decaiu para 14
N.
Outro fator de cunho antropogênico foram as explosões de bombas nucleares que
ocorreram entre 1945 e 1980 para ataque por motivo de guerra e testes de armamento nuclear.
Essas foram responsáveis por uma liberação de 14
C artificial que chegou a valores quase duas
vezes maiores que os da atmosfera contemporânea (Taylor, 1987). Vale salientar que o
4 De forma equivalente
14N + n →
14C + p, com n sendo nêutron e p sendo próton.
19
reprocessamento de combustíveis de reatores nucleares também libera radiocarbono artificial
na atmosfera terrestre (Davis, 1977).
2.3 Datação de radiocarbono
Na datação radiocarbônica, o evento inicial do tempo transcorrido citado na equação
(2.4) – a esse tempo me referirei como idade de radiocarbono - é o momento em que o
organismo a ser datado morreu, isto é, cessou suas trocas de carbono com o ambiente,
tornando-se um reservatório fechado. A partir de então a razão entre o radiocarbono e seus
isótopos estáveis – 14
C/13
C e 14
C/12
C – só é alterada devido ao decaimento radioativo. A
validade dessa escolha de marco zero está submissa à premissa de que a concentração de
radiocarbono é constante no tempo e de que o organismo vivo, pertencente ao conhecido ciclo
do carbono (para detalhes, consultar Prentice et al., 2001), tem suas concentrações de carbono
em equilíbrio isotópico não apenas com o ambiente em que vive, mas com a atmosfera
terrestre. Para comparar idades de organismos originários de diferentes reservatórios (terrestre
e lacustre, por exemplo), é necessário assumir adicionalmente que a concentração de
radiocarbono é constante no espaço. A concentração de radiocarbono ser constante no tempo
significa que, no reservatório global de carbono, a quantidade que decai é “reposta” pela
quantidade de carbono que o organismo incorpora através do ciclo do carbono (Walker,
2005). O equilíbrio isotópico significa que a razão isotópica no interior do organismo é
idêntica à razão isotópica no ambiente.
No LAC-UFF a técnica empregada nos estudos cronológicos tem por base a
espectrometria de massa com aceleradores, cujo objetivo é a medição da razão das
concentrações do carbono 14 e de seus isótopos estáveis, a chamada concentração ou razão
isotópica. Nessa técnica a concentração é inferida a partir da contagem direta dos
radionuclídeos, enquanto que a concentração dos isótopos estáveis do carbono é inferida
através da medida da corrente elétrica do feixe por eles gerado (a explicação detalhada
encontra-se na seção 4.3.2 – medição no sistema acelerador). Porém essa técnica surgiu
apenas na década de 1970, com a adaptação de espectrômetros de massa a aceleradores de
partículas primeiramente desenvolvidos para estudos de reações nucleares. A chamada técnica
convencional é a espectroscopia β, já que a desintegração do 14
C para 14
N se faz por meio da
emissão de uma partícula β- com energia 156 keV. Existem duas desvantagens principais em
relação a essa última técnica: tempo de contagem e massa de amostra. Como a detecção é das
partículas emitidas pelo radionuclídeo, o tempo de contagem estará diretamente associado à
20
meia-vida do elemento em questão. Pelo mesmo motivo, é necessário aumentar o tamanho da
amostra. Com isso, alcança-se precisão de 1% nas medidas da idade de radiocarbono a partir
da técnica convencional com um tempo de contagem de cerca de 30 horas, o que representa
cerca de 100 vezes mais do que o empregado com a técnica de AMS, e massa de amostra da
ordem de gramas, o que equivale a 104 vezes a massa necessária para uma medida em AMS.
2.4 Ajustes no modelo
Devido à natureza do radiocarbono, inferir a concentração ou atividade inicial desse
radionuclídeo depende da assunção de um modelo que considere a concentração de
radiocarbono constante no tempo e no espaço e que a concentração isotópica no organismo
esteja em equilíbrio com a da atmosfera moderna. Todavia, como descrito anteriormente, há
fatores que alteraram e alteram a concentração de 14
C no tempo. Tais variáveis devem ser
apreciadas quando se almeja a obtenção de uma idade acurada. Além disso, é possível que
organismos contemporâneos estejam em equilíbrio com o ambiente sem que ambos tenham a
mesma concentração isotópica, fator que é conhecido como fracionamento isotópico e que
também deve ser considerado no cálculo das idades, pois altera a razão isotópica da amostra.
As devidas correções para as variações espaciais na concentração de carbono, que se
denominam efeito de reservatório, são igualmente essenciais para se ter como resultado uma
idade acurada.
2.4.1 Fracionamento isotópico
Devido ao mesmo número de elétrons, as propriedades químicas dos carbono 12, 13 e
14 são as mesmas. No entanto, a pequena diferença entre as massas de cada um desses
isótopos pode determinar que um processo físico ou químico tenha preferência por moléculas
constituídas por um isótopo de menor massa ou um de maior massa. Esse enriquecimento de
um isótopo em detrimento do outro num processo físico ou químico é conhecido como
fracionamento isotópico (Craig, 1953). Isso significa que as concentrações relativas entre os
isótopos podem variar de um organismo para outro. Por exemplo, certa classe de plantas pode
preferir mecanismos de fotossíntese que incorporem preferencialmente o 12
C em vez do 14
C
(Harkness, 1979). Além do fracionamento envolvido em processos naturais, outro exemplo de
fracionamento isotópico é o que pode ocorrer no laboratório pelo processo de redução do gás
carbônico a grafite numa reação incompleta (Macario et al. 2015a; Macario et al. 2015b;
Macario et al. 2016; Rinyu et al. 2013).
21
A medida da razão entre os isótopos estáveis (13
C/12
C) é suficiente para que se observe
o efeito total do fracionamento isotópico e se efetue a devida correção. A idade de
radiocarbono corrigida para o fracionamento isotópico será dada em termos de uma grandeza
denominada fração moderna. Porém é necessário citar antes uma notação que foi introduzida
para facilitar as comparações dessas razões.
( )
[ (
⁄ )
(
⁄ )
]
(2.7)
Por convenção, a medida dessa razão foi feita originalmente em relação a um padrão de
referência PDB, que se tratava de uma amostra de carbonato de cálcio de Belemnitella
america proveniente de uma formação na Carolina do Sul (EUA) e que era usada porque os
valores de δ13
C para carbonatos marinhos são próximos de zero (Macario, 2003; Oliveira,
2012). Devido a escassez do PDB se passou a usar o VPDB (NBS19) (Long, 1995; Castro,
2015).
A idade de radiocarbono é obtida em termos da fração moderna, que é a relação entre
as razões, dessa vez, do carbono 14 e carbono 13 da amostra de idade desconhecida e de um
padrão chamado ácido oxálico que se trata de um padrão para a atmosfera de 1950 AD. As
razões são normalizadas a δ13
C = -25‰, equivalente a um valor médio para a madeira
terrestre (Stuiver e Polach, 1977).
(
⁄ )
(
⁄ )
(2.8)
Portanto,
. (2.9)
Apesar do valor aceito atualmente para a meia-vida do 14
C ser cerca de 5.730 anos,
ainda se usa no cálculo da idade (convencional) de radiocarbono a meia-vida de Libby para o
14C de 5.568 anos. A vida média τ calculada a partir da meia-vida de Libby é igual a 8.033
anos. Isso é feito para que as datas calculadas após a revisão que trouxe uma série de
22
convenções (Godwin, 1962a), dentre as quais algumas descritas anteriormente, possam ainda
ser facilmente comparadas com aquelas de antes da revisão.
2.4.2 Efeitos de reservatório
Após sua produção no topo da atmosfera terrestre, o carbono em todas as suas formas
rapidamente oxida, formando o dióxido de carbono, e é absorvido e estocado nos diversos
reservatórios globais. Esses são basicamente a atmosfera, a biosfera e a hidrosfera. (Lowe e
Walker, 2015). Podemos ainda incluir um reservatório de carbono “inativo” que contém em
sua grande parte carbonatos antigos, por exemplo, em pedras calcárias. Esse reservatório é o
reservatório sedimentar, todavia tal não costuma entrar nos cálculos de reservatório (Taylor,
1987).
A cada um dos reservatórios está associado um tempo de residência. O tempo de
residência nada mais é do que o tempo médio que um nuclídeo permanece num reservatório
antes de ser transferido para outro (Alves, 2015). O tempo de permanência do carbono no
sistema solo + plantas – parte da biosfera - varia de 4 a 8 anos (Gaudinski et al., 2000) e o seu
câmbio com a atmosfera é feito de forma rápida. Porém, ao comparar a troca de carbono da
atmosfera com a hidrosfera, a situação é mais delicada. Nos oceanos o intercâmbio de
carbono com a atmosfera se dá através da superfície oceânica. A troca através da superfície é
relativamente rápida, mas à medida que a profundidade aumenta o tempo de residência do
carbono também aumenta, uma vez que a troca de carbono com estas colunas inferiores de
água é feita de forma bem mais lenta. Nas profundezas oceânicas, portanto, o radiocarbono irá
decair e demorará a ser reposto devido às lentas transições. Isso irá caracterizar o chamado
efeito de reservatório. Logo, toda vez que um reservatório é reduzido quanto a sua quantidade
de carbono pelo decaimento radioativo sem que haja reposição através da incorporação
atmosférica, há um efeito de reservatório e esse pode, no geral, ser estimado.
2.4.2.1 Efeito de reservatório marinho (MRE)
Dentre os reservatórios globais de carbono discutidos, o reservatório marinho – parte
da hidrosfera – é o mais heterogêneo. A distribuição espacial do carbono na atmosfera é
facilitada pelos ventos e correntes eólicas. Já na biosfera, a homogeneidade pode ser
facilmente considerada, uma vez que se podem corrigir com confiança os efeitos do
fracionamento isotópico na concentração de carbono. No reservatório marinho a
heterogeneidade é elevada por conta de fatores referentes à dissolução de CO2 atmosférico nas
23
águas oceânicas e variações por razão da dinâmica oceânica (Stuiver e Braziunas, 1993). A
diferença de concentrações de carbono entre a atmosfera e o reservatório marinho é conhecida
como efeito de reservatório marinho (sigla em inglês MRE – Marine Reservoir Effect).
A correlação da taxa de dissolução do gás carbônico na água com a temperatura e
agitação das águas associada à mistura de corpos d’água com concentrações variadas de 14
C –
e, portanto, idades diferentes – é determinante para a alta heterogeneidade do carbono nos
mares (Alves, 2015). Adicionalmente a esses fatores, condições climáticas e geográficas
conduzem a um offset – chamado de ( ) (Stuiver et al., 1986) - na idade de radiocarbono
entre a superfície, global, das águas marinhas e a atmosfera de 405 ± 22 anos 14
C no
hemisfério Norte (Hughen et al., 2004). Desvios locais em relação a uma curva que será
descrita na seção 2.5 (curva de calibração marinha) são chamados de ΔR e representam uma
correção relacionada à variabilidade geográfica da concentração de carbono no ambiente
marinho.
2.4.2.2 Efeito de reservatório de água doce (FRE)
Quando o reservatório considerado em relação à atmosfera é um sistema lacustre, um
estuário ou ainda um rio, a diferença entre as concentrações de carbono dará origem ao efeito
de reservatório de água doce (sigla em inglês FRE – Freshwater Reservoir Effect).
Carbonatos de origem moderna ou antiga podem introduzir carbono em lagos, lagoas e
estuários através de rios e o efeito é a mudança dos valores de R (Keith et al., 1964; Schell,
1983; Fry e Sherr, 1984; Krantz et al., 1987; Tanaka et al., 1986; Olsen et al., 2010; Schulting
et al., 2015; Milheira et al., 2016).
2.5 Calibração
A calibração dos resultados tem por objetivo minimizar os desvios na exatidão das
idades provocados por todos os fatores já listados que alteram a concentração de radiocarbono
no tempo. A calibração também lida com as correções devido à heterogeneidade da
distribuição do carbono no espaço.
O processo é simples e consiste na plotagem do resultado obtido a partir da medida no
acelerador (idade convencional de radiocarbono), que se trata de uma distribuição Gaussiana,
em uma curva de calibração construída experimentalmente, gerando como resultado final uma
distribuição Bayesiana de idades calibradas de radiocarbono em Anno Domini (calAD).
24
Figura 2. 1 Seção da curva de calibração atmosférica IntCal13 (OxCal versão 4.2.4). Reimer et al. (2013).
A curva acima é a curva de calibração atmosférica e trata da variação temporal da
concentração de radiocarbono na atmosfera decorrente dos efeitos listados na seção 2.2. Essa
curva foi construída a partir do pareamento de dados dendrocronológicos – contagem de anéis
de árvore com crescimento de banda anual – com idades de radiocarbono.
Outra curva de calibração muito importante e já citada é a curva de calibração
marinha. Sua construção foi feita com base em um modelo de caixa sobre dados atmosféricos
para a difusão do carbono entre o oceano e a atmosfera (Oeschger et al., 1975; Stuiver e
Braziunas, 1993). Devido à difusão lenta entre esses dois reservatórios, a curva modelada em
cima da estimação da resposta do reservatório oceânico às variações do reservatório
atmosférico é suavizada em seus traços (Alves, 2015).
25
Figura 2. 2 Seção das curvas de calibração atmosférica IntCal13 e marinha Marine13 (Reimer et al., 2013) e da
curva atmosférica para o hemisfério sul (Hogg et al., 2013) vistas no OxCal (Bronk Ramsey, 2009).
Figura 2. 3 Exemplo de calibração de amostra marinha usando o programa OxCal com uma curva marinha
(Stuiver et al., 1998).
De forma a obter resultados precisos e acurados, além destas correções e ajustes
“padrão” às amostras medidas no Laboratório de Radiocarbono, é indispensável o cálculo do
efeito de reservatório. Para amostras marinhas, o desvio em relação à curva marinha é
26
denominado ΔR. Para regiões com contextos arqueológicos próximos a ambientes marinhos
ou de água doce, afinal todas as amostras provenientes de tais ambientes - como conchas,
otólitos de peixe - e ossos humanos (devido à incorporação do efeito através da cadeia
alimentar) apresentarão um desvio da idade correta se esse valor for desprezado. O cálculo do
ΔR pode ser feito através do pareamento de amostras terrestres e marinhas cuja
contemporaneidade pode ser garantida, geralmente mediante conclusões lógicas aprendidas
dos estudos arqueológicos, ou através da datação de amostras marinhas pertencentes a
coleções de museu, que, na maioria das vezes, possuem um registro confiável quanto à data
de coleta do referido material, permitindo, portanto, a comparação com a idade de
radiocarbono analogamente ao que foi feito usando a dendrocronologia para a construção da
curva de calibração atmosférica. Para reservatórios continentais como lagos ou estuários
sujeitos a uma forte influência terrestre, pode-se utilizar a curva atmosférica e então
determinar o efeito de reservatório R.
27
Capítulo 3
Cerritos – interação humana com o ambiente lagunar
No território brasileiro existem diversos tipos de sítios arqueológicos. Vários desses
foram importantes para a formação de sociedades, tribos ou grupos que eram originários
destas terras que viriam a ser chamada de Brasil com a chegada dos portugueses em 1500.
Devido à geomorfologia das diferentes regiões do Brasil, abastecidas por inúmeros rios, lagos,
lagunas e conexões com o mar através de canais ou através das longas faixas litorâneas,
diversos tipos de sítios arqueológicos no Brasil se encontram próximos a ambientes aquáticos.
Essa proximidade tem grande influência sobre a economia e alimentação desses povos
antigos, por vezes referidos como pré-colombianos ou pré-hispânicos. Alguns exemplos são
os sambaquis e os cerritos.
Principalmente no litoral sul e sudeste brasileiro há sambaquis, que são estruturas
reconhecidas pelo acúmulo intencional de conchas, onde povos pré-históricos faziam ali não
somente residência como também local para sepultamentos, prática de rituais, acampamento
para pesca e etc.. Até 80% do sedimento que constitui o sambaqui pode ser composto por
conchas de moluscos bivalves (Garcia, 1972).
3.1 A ocupação dos ecossistemas marinhos
Apesar de os mais antigos acampamentos à beira-mar datarem de cerca de 300.000
anos atrás, o uso dos recursos aquáticos para subsistência pelos povos antigos só começou
com o início do Holoceno (Figuti, 1993).
No modelo proposto por Yesner (1987) há quatro fatores que teriam favorecido a
instalação do Homem nos ambientes litorâneos e o uso de recursos costeiros por parte dele há
cerca de 10.000 anos (Figuti, 1993). Esses fatores englobam mudanças climáticas, aumento da
densidade demográfica humana, extinção da megafauna e redução das manadas e elevação do
nível do mar e assentamento das planícies costeiras. Os três primeiros particularmente
influenciaram o Homem a explorar novos habitats e buscar novas estratégias de subsistência e
o último contribui para que essa necessidade de mobilidade se fizesse em direção à costa
(Figuti, 1993).
28
Como visto no embasamento da datação de radiocarbono, existem efeitos de
reservatório atrelados a ambientes aquáticos cuja correção para as amostras provenientes de
tais ambientes é essencial para a obtenção de resultados confiáveis e acurados. A grande
influência de alimentos de origem marinha na dieta desses povos antigos faz com que o sinal
empobrecido devido aos efeitos de reservatório marinho ou de água doce chegue também aos
ossos humanos através da cadeia alimentar. Assim, é crucial calcular o desvio em relação à
curva de calibração (marinha ou terrestre) do sistema aquático englobado pela região do sítio
arqueológico, de forma a calibrar corretamente os resultados das amostras de origem marinha
e os dos sujeitos que consumiam quaisquer uns desses organismos.
3.2 Cerritos
Os cerritos (em espanhol), ou aterros (em português), são um tipo de sítio
arqueológico presente na região do bioma Pampa e Bacia de La Plata, no sul da América do
Sul. Tais estruturas estão distribuídas pela região que engloba as porções leste e norte do
Uruguai, a porção sul do Rio Grande do Sul (Brasil) e um trecho ao nordeste da Argentina, no
Delta do Rio Paraná (Villagran e Gianotti, 2013; Bonomo et al., 2011). Essas construções
foram formadas por povos indígenas a partir do acúmulo de terra e materiais líticos,
arqueofaunísticos e cerâmicos (Milheira et al., 2016). Esses sítios também são interpretados
como construções feitas por sociedades antigas complexas, com uma economia mista que
incluía a caça, a pesca e o manuseio de algumas plantas e ervas para alimentação, tratamento
medicinal e uso como narcóticos (Iriarte, 2006; Bracco et al., 2008; López Mazz e Bracco,
2010; Bonomo et al., 2011; Milheira et al., 2016).
A cultura “cerriteira” no leste do Uruguai e no sul do Brasil data tão antiga quanto
5.000 anos AP (Villagran e Gianotti, 2013). O primeiro Cerrito no Uruguai apareceu ao
sudeste no banhado5 daquela região em 5.000 – 4.800 anos AP (Iriarte, 2006). No Brasil, o
sítio deste tipo mais antigo data de 2.500 anos AP (Milheira, 2011). Na porção ao sul do
Brasil, a cultura desses povos pré-colombianos se divide em duas tradições: a tradição Umbu
(pré-ceramista) e a tradição Vieira (ceramista) (Iriarte, 2006).
5 Ecossistema caracterizado como uma região alagada e/ou alagável com fauna e flora bem características e
adaptadas a esse sistema (Irgang e Gastal Jr., 1996).
29
Figura 3. 1 Esquema cronológico para sul do Brasil e Uruguai. Modificado de Iriarte (2006).
O modelo clássico (Schmitz, 1976) descrevia os cerritos como estruturas sobre as
quais os povos pré-hispânicos passavam os períodos quentes, durante a temporada de pesca,
acima dos pântanos ao redor da Lagoa dos Patos, como uma forma de adaptação aos
ambientes aquáticos. A partir da década de 1990 essa visão mudou principalmente devido aos
achados arqueológicos quanto a práticas funerárias, como também para residência, agricultura
e descarte de lixo (Iriarte, 2006; Bracco et al., 2008).
Nas Terras Baixas da Bacia de La Plata, nas adjacências dos cerritos, encontram-se
outros tipos de trabalho antrópicos usando terra como matéria-prima, tais como microrrelevos
(montículos com menos de 1 m de altura [Villagran e Gianotti 2013]), plataformas, elevações
alongadas, “áreas de empréstimo” (Femenías et al., 1990; López Mazz and Gianotti, 1998;
Bracco et al., 2000; López Mazz, 2001; Iriarte, 2006), lagoas e canais antrópicos (Gianotti et
al., 2009).
31
Capítulo 4
Materiais e Métodos
Como descrito no capítulo 2, os valores dos desvios locais em relação à curva marinha
apresentam grande variabilidade geográfica, tornando-se, assim, importante não apenas
conhecer o reservatório cuja correção se tem a intenção de calcular, como também a geologia,
geomorfologia e geografia da paisagem na qual tal reservatório se encontra.
4.1 Geomorfologia e Geologia da área de estudo
A área de estudo abordada localiza-se ao sul da Lagoa dos Patos, essa considerada a
maior laguna costeira do mundo, com uma área de mais de 10.000 km². É um estuário ligado
ao oceano Atlântico pelo canal Rio Grande, que possui um comprimento de 22 km, largura de
2 km e 12 metros de profundidade (Zaviolov et al., 2003) e ligado à Lagoa Mirim através do
canal São Gonçalo, que possui 75 km de comprimento, aproximadamente 200 metros de
largura e profundidade máxima de 6 metros (Simon e Silva, 2015). Esse sistema constitui o
chamado complexo lagunar Patos-Mirim ou sistema lagunar Patos-Mirim, o maior complexo
lagunar da América do Sul. O complexo abrange um trecho do extremo sul do Brasil e parte
do leste do Uruguai.
32
Figura 4. 1 Destaque para os canais que ligam a Lagoa dos Patos ao oceano Atlântico e à Lagoa Mirim.
A geomorfologia das regiões costeiras é condicionada pelas dinâmicas global e
costeira. Os principais parâmetros da dinâmica global a serem considerados, são: tectônica de
placas, clima e variação do nível do mar. Já em relação à dinâmica costeira, devemos levar em
conta, como uma consequência uns dos outros, ventos, ondas e correntes litorâneas e
adicionalmente, quando ocorrerem, marés e ressacas produzidas por tempestades.
O sistema lagunar Patos-Mirim pertence à hoje conhecida Planície Costeira do Rio
Grande do Sul, que é uma fração das Terras Baixas da Província Costeira do Rio Grande do
Sul. Sedimentos clásticos6 terrígenos
7 provenientes da dissecação das Terras Altas
(Embasamento) e que chegam às Terras Baixas, sob a ação dos processos costeiros, ventos,
ondas, correntes, e variação do nível do mar, acumulam-se numa ampla variedade de
ambientes deposicionais transicionais e marinhos (Villwock e Tomazelli, 2007). A variação
do nível do mar nesse caso é de caráter estrito à dinâmica costeira, devido, basicamente, às
marés meteorológicas, uma vez que na costa oceânica gaúcha o nível devido às marés
astronômicas descritas a partir dos ciclos astronômicos, os ciclos de Milankovitch, detalhados
em Lowen & Walker (1984), alcança uma amplitude média anual inferior a 50 cm (Hartmann
6 Constituído por fragmentos de outras rochas.
7 Depósito formado por material de destruição, erosão, etc., da superfície e sedimentado tanto no continente
como no fundo dos mares.
33
e Schettini, 1991; Toldo et al., 2006). Tratam-se, portanto, de micromarés e têm, assim, pouca
influência no desenvolvimento sedimentar da Província Costeira do Rio Grande do Sul.
As curvas de variação de paleotemperatura mostram que no último milhão de anos os
ciclos alternados de períodos frios e quentes, produzindo estágios glaciais e interglaciais, têm
se repetido a intervalos, mais ou menos regulares, de 100.000 anos. Essas curvas são
determinadas através da variação do conteúdo isotópico de oxigênio em carapaças de
foraminíferos obtidas em testemunhos de sedimentos coletados no fundo oceânico (Williams
et al., 1988).
A descrição do processo de sedimentação ocorrido na Província Costeira do Rio
Grande do Sul pode ser feita a partir do conceito de sistemas deposicionais, dos quais temos
dois tipos prevalentes: o Sistema de Leques Aluviais e o Sistema tipo Laguna-Barreira
(Villwock et al., 1986). A evolução da província ocorreu para leste através da coalescência de
quatro sistemas deposicionais do tipo Laguna-Barreira. Cada um desses sistemas registra um
pico de uma transgressão, seguida de um evento regressivo e são nomeados como Sistema
Laguna-Barreira I, II, III e IV (figura 4.3); a idade relativa desses sistemas é clara em sua
disposição espacial. O sistema I é o mais antigo (e espacialmente mais interiorizado),
enquanto o IV é o mais novo. Todos os quatro sistemas têm sua deposição ocorrida durante o
Quaternário, todavia, devido à escassez ou inexistência de materiais apropriados para a
datação geocronológica, é difícil determinar a idade absoluta especialmente dos sistemas mais
antigos (I e II). No entanto, tudo indica que os eventos transgressivo-regressivos responsáveis
pela geração destes diversos sistemas tenham sido controlados pela glacioeustasia. Com isso,
aplicando-se a curva isotópica de oxigênio de Williams et al. (1988), é mais provável que
esses quatro sistemas deposicionais tenham se formado nos últimos 400.000 anos. Os picos
apontados na figura 4.2 mostram o que seria a época de instalação de cada um dos sistemas.
34
Figura 4. 2 Curva isotópica do δ18
O, com associações aos diferentes sistemas deposicionais tipo "laguna-
barreira" ( I, II, III e IV). Curva primeiramente publicada em Williams et al. (1988). Retirada versão modificada
de Villwock & Tomazelli (2007).
Tendo como foco o Sistema Lagunar Patos-Mirim nos basta caracterizar o
desenvolvimento da Barreira III, visto que esta é responsável pela implantação final do
sistema lagunar III, precursor do sistema ao qual pertence à região de estudo. A sedimentação
do sistema deposicional Laguna-Barreira III está associado à chamada "Penúltima
Transgressão" ou "Transgressão Cananeia" (Suguio e Martin, 1978; Bitterncourt et al., 1979),
que é o último pico interglacial pleistocênico. Baseadas em datações radiométricas da série de
Urânio em amostras de corais (Martin et al., 1982) e da datação de areias eólicas por
Termoluminescência (Poupeau et al., 1985), atribui-se a idade de cerca de 120.000 anos a
esse evento transgressivo. A consolidação do Sistema Lagunar Patos-Mirim ocorreu durante o
Holoceno, como consequência da última grande transgressão pós-glacial, datada de 5.500 AP.
35
Figura 4. 3 Mapas com ênfase na geomorfologia da região de estudo. Retirado de Villwock e Tomazelli (2007).
O estuário da Lagoa dos Patos apresenta uma salinidade que varia de 0 a 35 ppm. A
intensidade do gradiente vertical da salinidade e o limite da penetração da água salgada
dependem do escoamento fluvial e da ação dos ventos. A baixa descarga fluvial no verão e
outono e os ventos do SE e SW contribuem para o escoamento de água salgada no estuário,
principalmente em janeiro, fevereiro e março, podendo esta penetrar cerca de 150 km na
laguna. Por outro lado, ventos vindos do NE e alta descarga fluvial reduzem a salinidade do
estuário, o que mantém as águas da laguna caracteristicamente doces por dias, semanas e até
meses (Hartmann e Schettini, 1991; Nogueira, 2006).
A ampla variabilidade geomorfológica é responsável por um mosaico complexo de
vegetação que inclui plantas herbáceas, arbóreas e arbustivas, classificando tal sistema como
Restinga (Rizzini, 1997). As Matas de Restinga localizam-se na orla da Lagoa dos Patos e
lagos adjacentes, tendo sido mais abundantes no passado. São florestas de pequeno porte,
contendo espécies arbóreas adaptadas à forte ação dos ventos litorâneos, conhecidas como
36
matas paludosas8 e matas psamófilas
9, caracterizadas por ocuparem antigas linhas de praias
fixadas pela associação com a vegetação, de onde resulta sua formação de capões alongados,
mais ou menos paralelos com a costa litorânea (Mauhs e Marchioretto, 2006; Venzke et al.,
2012).
4.2 A escavação do sítio arqueológico
Nos arredores da Lagoa dos Patos, foram estudadas, a partir de um ponto de vista
sistemático, três diferentes áreas com Cerritos. O objetivo foi entender o processo de
ocupação regional por populações indígenas. Essas áreas englobam os assentamentos: Cerrito
da Soteia, datado de 1360 ± 40 AP (BETA 234206) e 1400 ± 40 AP (BETA 234207), ambas
provenientes da datação de amostras de otólitos de peixe (Loureiro, 2008); Lagoa do Fragata,
com 13 aterros ainda não datados; e o Pontal da Barra, localizado a cerca de 2 metros acima
do nível do mar, ao sul da Lagoa dos Patos. O complexo arqueológico Pontal da Barra foi
assim nomeado após a intersecção da Lagoa dos Patos com o canal São Gonçalo (Barra).
Trata-se de um complexo que abrange 18 aterros, cada um com cerca de um metro de altura e
em planos elípticos distribuídos ao longo do pântano. Esse sítio arqueológico foi registrado
em 2006. Entre 2010 e 2013 foram realizados três trabalhos de campo na região objetivando a
descrição de traços arquiteturais e o entendimento de processos de formação, além da coleta
de amostras para a obtenção de uma cronologia radiocarbônica completa (Milheira et al.,
2016). O trabalho de campo realizado em 2012 fez parte do presente trabalho, quando foram
coletadas as amostras estudadas.
8 Matas que vivem em ambiente pantanoso.
9 Diz-se da planta ou comunidade vegetal que requer solo arenoso.
37
Figura 4. 4 Distribuição dos sítios arqueológicos citados. Modificada de Milheira et al. (2016).
Figura 4. 5 Imagem de satélite com indicação dos aterros pertencentes ao complexo arqueológico Pontal da
Barra. Milheira et al. (2016), adaptado de Google Earth, 2016.
38
Figura 4. 6 Vista aérea do canal São Gonçalo. A seta aponta para a localização de Pontal da Barra, à margem da
Lagoa dos Patos. Milheira et al. (2016).
A retificação de perfis arqueológicos revelou componentes estratigráficos dos
montículos, suas feições arqueológicas e cultura material. Dos 18 aterros do complexo do
Pontal da Barra, cinco foram estudados para este trabalho: PSG-01, PSG-02, PSG-03, PSG-06
e PSG-07. A escolha dos aterros foi baseada, principalmente, na facilidade de seu acesso.
Todavia dentre esses sítios é importante salientar problemas que culminaram, em alguns
deles, na limitação das atividades arqueológicas de investigação. Os sítios PSG-01, PSG-02 e
PSG-03 foram ilegalmente explorados pela comunidade moderna local por conta do solo que
os formam, que é essencialmente uma terra escura, muito rica em matéria orgânica, sendo
valiosa tanto para uso pessoal no plantio quanto para comercialização. Tal atividade de
exploração do solo destruiu, por exemplo, partes da porção leste do PSG-02 (Milheira et al.,
2016). Outro problema quanto à preservação dos cerritos é o avanço urbano na região,
represando a água em alguns pontos do terreno e afetando a integridade dos sítios
arqueológicos através da drenagem urbana do banhado (Hansmann, 2013). Por conta desses
distúrbios da estratigrafia causados pela atividade moderna, as intervenções arqueológicas se
restringiram à retificação de perfis (exceto para PSG-02), a fim de prevenir impactos
39
adicionais aos sítios arqueológicos, uma vez que as intervenções arqueológicas são até certo
ponto também destrutivas.
Os sítios PSG-02, PSG-05 (ainda não escavado), PSG-06 e PSG-07 formam um
pequeno complexo de aterros alinhados na direção norte-sul.
As escavações executadas nos cerritos do Pontal da Barra englobaram uma área de
15,5 m² de quadrículas ("grades" quadradas) divididas em camadas artificiais com cinco cm
de espessura e 14,55 m de perfis retificados.
O cerrito PSG-01 tem 22 metros no eixo norte-sul, 28 metros no eixo leste-oeste e 60
cm de altura e foi feito um perfil de 3,35 metros na zona norte do montículo. O material
recuperado consiste de 231 fragmentos de cerâmica, 31 peças de material lítico, 38 ossos
humanos e 2,5 kg de restos arqueofaunísticos.
O cerrito PSG-02 já se encontrava deformado, porém estima-se que a matriz original
tivesse 46 metros no eixo norte-sul, 29 metros no eixo leste-oeste e 1,15 metros de altura. No
topo deste cerrito foi escavada uma trincheira de 3 m². A oeste do sítio foi escavada uma área
de 2 m² em formato de "T". Também foram realizadas sondagens através de quadrados com
50 cm de lado no leste e norte do sítio. Além disso, foi feita a retificação de um perfil com 6,5
m x 1,2 m de profundidade na zona leste do montículo. O material recuperado consiste de
1.220 fragmentos de cerâmica, 112 peças de material lítico, 44 ossos humanos e 26,7 kg de
restos arqueofaunísticos.
Como apontado anteriormente, o cerrito PSG-03 também foi fortemente afetado pela
extração ilegal de sedimento e sua delimitação é, portanto, imprecisa. Presume-se que o
formato do montículo tenha sido elíptico com aproximadamente 75 metros de extensão ao
longo do eixo norte-sul, 41 metros no eixo leste-oeste e um metro de altura. Na parte sul do
sítio foram retificados dois perfis com extensões de 2,4 e 2,3 metros. O material recuperado
de tal assentamento foram 132 fragmentos de cerâmica, seis peças líticas e 6,5 kg de material
arqueofaunístico.
O cerrito PSG-06 é o mais proeminente dentre os aterros abordados, formando uma
plataforma alongada que se estende até a zona sul do sítio, a qual foi interpretada como
microrrelevo. O montículo tem 47 metros no eixo norte-sul, 30 metros no eixo leste-oeste e
um metro de altura. No topo do sítio foram escavadas três quadras com 1 m² cada. Numa área
adjacente ao sul foram escavadas uma trincheira com 3 m² e mais uma quadrícula com 1 m².
A coleção arqueológica obtida compõe-se de 801 fragmentos cerâmicos, 91 peças de material
lítico, três ossos humanos e 15,3 kg de restos arqueofaunísticos.
40
O cerrito PSG-07 tem uma forma quase circular, com aproximadamente 36 metros no
eixo norte-sul, 30 metros no eixo leste-oeste e 1,15 metros de altura. A escavação foi
realizada a partir de uma trincheira aberta no topo do sítio com 3 m² de área. O material
recuperado tratou-se de 864 fragmentos de cerâmica, 47 peças de material lítico, quatro ossos
humanos e 0,3 kg de restos arqueofaunísticos.
Todos aqueles aterros possuem fogueiras com formato convexo em suas bases,
verificado por contraste entre a terra escura antropogênica que compõe os montículos e o solo
natural do banhado, este numa coloração cinza clara. Fogueiras são compostas por carvão,
cinzas de fogo, e estão correlacionadas a vários restos animais, que se encontram comumente
carbonizados ou calcinados. Essas fogueiras podem, eventualmente, aparecer em camadas
superiores, contendo predominantemente cinzas de fogo.
4.3 A cronologia do sítio
A cronologia do assentamento foi baseada na datação de radiocarbono de otólitos de
peixe – estruturas compostas por carbonato de cálcio que se desenvolvem na orelha interna de
peixes teleósteos10
(Lenaz et al., 2006) -, carvões de fogueiras, um osso humano (proveniente,
provavelmente, de um enterramento secundário) e um osso animal (associado a uma
fogueira). Dessa forma, em relação às amostras aquáticas, devem ser consideradas não apenas
correções inerentes ao reservatório às quais as mesmas pertenciam, como também os hábitos
das espécies em questão. Os otólitos coletados provêm de duas espécies distintas de peixe:
Pogonias cromis (popularmente conhecida como Miraguaia) e Micropogonias furnieri
(popularmente conhecida como Corvina). É importante salientar que os otólitos são estruturas
de aragonita bastante resistentes, não susceptíveis a processos diagenéticos como os que
ocorrem com os ossos de peixe (Aguilera et al., 2016; Carvalho et al., 2017). Diferentemente
de ossos calcinados, os otólitos de peixe tendem a refletir a concentração de 14
C no ambiente
aquático de quando os animais estavam vivos.
A corvina é um peixe teleósteo demersal11
migratório, encontrado no Oceano
Atlântico desde o Golfo San Matías (41ºS), Argentina, até o norte da Venezuela (20ºN)
(Gonçalves e Passos 2010; Ferreira et al., 2013), enquanto a miraguaia é uma espécie
demersal costeira distribuída ao longo do oeste do Oceano Atlântico, desde Massachussetts,
EUA, até o sul da Província de Buenos Aires, Argentina (Nieland e Wilson, 1993). Ambas as
10
Classificação que se refere a peixes que possuem esqueleto ósseo. 11
Refere-se a espécies marinhas que vivem no ou próximo ao fundo oceânico.
41
espécies são eurialinas12
e têm uma ampla distribuição em águas salgadas e costeiras com até
100 metros de profundidade (Mianzan et al., 2001). Esses peixes sazonais desovam
principalmente na região interna do estuário, onde encontram menores valores de salinidade
(Militelli, 2007). No estuário da Lagoa dos Patos, eles são encontrados de forma habitual
durante o verão, quando migram para procriação e desova. Essas espécies são estuarino-
dependentes e vivem em fundos arenosos ou lamacentos. Ambos são carnívoros com
preferência por organismos bentônicos, alimentando-se de crustáceos, sifões de bivalves e
poliquetas (Denadai et al., 2015; Patillo et al., 1997).
Pogonias cromis e Micropogonias furnieri foram, dentre outras espécies de peixes,
muito importantes para a economia dos construtores de cerritos da Lagoa dos Patos,
representando em torno de 90% da dieta desses grupos indígenas (Milheira et al., 2016;
Ulguim, 2010). No entanto, mais ao sul, a frequência de ambas as espécies diminui, dando
espaço a outros animais continentais, como Ozotoceros besoarticus, Blastocerus dichotomus,
Myocastor coipus, Cavia sp., Rhea Americana e Hydrochoeris hydrachaeris (Moreno, 2014).
Figura 4. 7 A) perfil retificado do sítio PSG-01; B) perfil retificado do sítio PSG-02; C) perfil retificado do
PSG-03 e coleta de amostras de solo em colunas; D) perfil retificado no PSG-06 e coleta de amostras de solo em
colunas; E) perfil leste do sítio PSG-07 apresentando contraste entre o solo antropogênico (preto) e o solo natural
12
diz-se de organismos que suportam grande variação de salinidade.
42
do banhado (cinza claro); F) visão panorâmica da escavação arqueológica no PSG-06; G) fragmento de calota
craniana próxima à base do cerrito PSG-02; H) fragmentos cerâmicos coletados no PSG-07; I) parte de
mandíbula humana associada a fragmentos cerâmicos e um pingente em dente de golfinho. Retirado de Milheira
et al. (2016).
4.3.1 Preparação das amostras
No laboratório, as amostras foram secas por, no mínimo, uma semana antes da análise
de Radiocarbono. Do total de 24 amostras datadas, 17 amostras foram preparadas e medidas
no Laboratório de Radiocarbono, na Universidade Federal Fluminense (LACUFF), como
parte do presente trabalho. De modo a complementar o modelo cronológico, foram incluídas 7
datas de amostras analisadas em outros laboratórios: três no Center for Applied Isotope
Studies na Universidade da Geórgia, EUA (UGAMS), e quatro no Beta Analytic labs (BETA).
Independentemente da técnica de datação de Radiocarbono utilizada (radiométrica ou
por AMS), uma das etapas mais importantes é o pré-tratamento das amostras. O objetivo
desse, na verdade, conjunto de etapas físicas e químicas é o isolamento do carbono de
interesse, isto é, a eliminação de qualquer carbono contaminante da amostra (Macario et al.,
2013). Por carbono contaminante, entende-se qualquer átomo de carbono exógeno que tenha
aderido à amostra através de diversificados processos durante o tempo em que o material
esteve exposto ao ambiente após ter se tornado um reservatório fechado.
Cada laboratório segue protocolos sutilmente diferentes para a preparação e medição
das amostras. Para as amostras de osso, o colágeno foi extraído e utilizado para datação.
Outros detalhes sobre a preparação de amostras nos laboratórios UGAMS e BETA podem ser
encontradas em Cherkinsky et al. (2010) e no site radiocarbon.com, respectivamente. Serão
descritos aqui os processos utilizados no LAC-UFF no preparo de amostras de carvão e
otólito deste trabalho.
Para as amostras de carvão foi adotado um tratamento ABA (Ácido – Base – Ácido),
que se constitui de um primeiro tratamento com ácido clorídrico (HCl) na concentração molar
1,0M em ciclos de duas horas à temperatura de 90 ºC, um tratamento com hidróxido de sódio
(NaOH), também na concentração 1,0M, porém em ciclos de uma hora a temperatura de
90 ºC, e, finalmente, mais um tratamento com HCl 1,0M seguindo os mesmos parâmetros de
tempo e temperatura do primeiro tratamento ácido. O primeiro tratamento com ácido tem por
objetivo retirar os compostos inorgânicos que possam estar presentes na amostra de carvão,
uma amostra orgânica. O tratamento com hidróxido de sódio visa à remoção de ácidos
fúlvicos e húmicos, provenientes de processos de decomposição de matéria orgânica. Uma
43
vez que o NaOH tende a absorver CO2 do ar, o último tratamento com ácido se mostra
essencial para a retirada de carbono exógeno que possa ter aderido à amostra durante o
tratamento com base.
As amostras de otólito foram tratadas com ácido clorídrico na concentração 0,5M para
a remoção de toda a camada mais externa do material, que pode estar contaminada.
Para que haja a garantia de resultados acurados para amostras de idade desconhecida, é
necessário tratar, concomitantemente, amostras de controle. Dentre as amostras de controle
podemos categorizar amostras de fundo, amostras de referência e amostras padrão. As
amostras de fundo tratam-se de materiais tão antigos que, dentro da sensibilidade do nosso
aparelho de medição, é como se não tivesse mais radiocarbono algum. As amostras de
referência são amostras cuja razão isotópica tem um valor bem definido e estas costumam
passar por todos os pré-tratamentos aos quais as amostras de idade desconhecida são
submetidas. As amostras padrão são amostras com um valor consensual que é responsável
pela normalização dos resultados. O material utilizado como padrão no Laboratório de
Radiocarbono da UFF é o ácido oxálico OX-II com razão isotópica certificada pelo NIST
(Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos Estados Unidos), denominado SRM 4990c.
As amostras de controle utilizadas foram calcita ótica e grafite reator como fundo, C2
(um carbonato proveniente da Agência Internacional de Energia Atômica - IAEA) e N4 (uma
amostra de carvão com razão isotópica conhecida) como referência.
Como no LAC-UFF a técnica empregada é a espectrometria de massa com
aceleradores, as próximas etapas guiam nossas amostras ao grafite como produto final, uma
vez que nosso acelerador extrai o feixe de íons para medição a partir dos alvos na forma de
grafite.
Por ser tratar de um material orgânico, a conversão do carvão a dióxido de carbono
(CO2) se faz através da combustão. As amostras recém-tratadas e secas foram inseridas em
tubos de quartzo pré-assados contendo óxido cúprico (CuO) e prata (Ag), este último
responsável pela remoção de compostos sulfúricos durante a reação de combustão da amostra.
Depois de evacuados e selados, estes tubos foram, então, assados durante três horas a
temperatura de 900 ºC num forno mufla.
Já para as amostras de otólito, por meio de uma seringa de vidro, cerca de 1 mL de
ácido fosfórico (H3PO4) foi inserido nos vials recém-evacuados, convertendo a amostra
inorgânica a gás carbônico através da hidrólise ácida.
44
O gás carbônico é, então, purificado na linha de vácuo (figura 4.9) mediante
armadilhas criogênicas (Macario et al., 2013). A primeira armadilha é uma mistura de gelo
seco e álcool etílico, atingindo a temperatura de cerca de -78 ºC e congelando a água. A
segunda armadilha é nitrogênio líquido, com a temperatura de -196 ºC, congelando o CO2 e
liberando quaisquer outros eventuais gases presentes.
Ao processo de conversão do dióxido de carbono a grafite damos o nome de
grafitização. A grafitização no LAC-UFF é feita usando o método Zinco (Zn)/Hidreto de
Titânio (TiH2) com ferro (Fe) como catalisador da reação de redução por Zn (Xu et al., 2007).
Os tubos contendo o CO2 e estes reagentes são selados individualmente e aquecidos a 550 ºC
por 7 horas no forno mufla (Macario et al., 2015a; Macario et al., 2016).
Figura 4. 8 Esquema da linha de purificação. Retirado de Oliveira (2012). Esquema original em Anjos et al.
(2013).
TiH2 + aquecimento (440C) →2H2 + Ti (4.1)
CO2 + H2 →CO + H2O (4.2)
CO2 + Zn →CO + ZnO (4.3)
CO + H2 + catalisador (Fe) + aquecimento (500 – 550C) →Cgrafite +H2O (4.4)
2CO →Cgrafite + CO2 (4.5)
Zn + H2O →ZnO + H2 (4.6)
45
CO + H2 →Cgrafite + H2O (4.7)
As amostras na forma de grafite são pressionadas em catodos de alumínio e
posicionadas na roda da fonte de íons, que possui 40 posições. Pouco mais de 60% das
posições disponíveis na roda de catodos são preenchidas por amostras de idade desconhecida.
O restante é ocupado pelas amostras de controle.
4.3.2. Medição no sistema acelerador
As medidas das concentrações de carbono para as amostras preparadas no Laboratório
de Radiocarbono da UFF são feitas no SSAMS (Single Stage Accelerator Mass
Spectrometry), um sistema acelerador de estágio único de aceleração com voltagem máxima
de 250 kV acoplado a um espectrômetro de massas, fabricado pela NEC (National
Electrostatics Corporation). Esse sistema foi instalado no Instituto de Física da UFF em 2012
e, apesar do mesmo já ser encontrado em diversos laboratórios pelo mundo desde a década de
1980, o sistema AMS da UFF foi o primeiro da América Latina e continua sendo o único na
América do Sul.
Os componentes relevantes do SSAMS a serem esmiuçados neste trabalho são: fonte
de íons, ímãs, stripper e detector. O esquema completo do SSAMS está logo abaixo.
46
Figura 4. 9 Esquema do SSAMS 250 kV da NEC. Retirado de Oliveira (2012).
4.3.2.1 Fonte de íons
A fonte de íons desse sistema SSAMS é do tipo SNICS (Source of Negative Ions by
Cesium Sputtering). Os alvos no acelerador são nossas amostras na forma de grafite,
prensadas nos cadinhos de alumínio que estão dispostos na roda de catodos com 40 posições.
Através de um processo conhecido como sputtering, no qual um elemento é usado para
pulverizar um alvo sólido, é extraído um feixe de íons negativos de carbono. O Césio-133 é
ideal para a extração do feixe por se tratar de um elemento alcalino com alta
eletropositividade, produzindo facilmente cátions, e bastante pesado, propiciando alta seção
de choque de sputtering (Macario, 2003). O Césio é aquecido de forma a gerar um vapor de
Césio que, depois de atingir um eletrodo metálico ionizador, perde um elétron, ficando
positivo. Esse elemento ionizado e acelerado em direção ao catodo pulveriza parte da amostra
e, então, são ejetados íons negativos de carbono (Castro, 2015).
É importante salientar que em AMS a estabilidade do feixe é crucial para a obtenção
de resultados confiáveis. Dessa forma, a fonte de íons utilizada conta com um dispositivo
conveniente de troca automática de posição. Depois que o feixe de um catodo é extraído e
47
medido, automaticamente passa-se para outro catodo e realiza-se o mesmo procedimento de
análise, sem que haja necessidade de interrupção do funcionamento da fonte de íons e do
acelerador.
Figura 4. 10 40 MC-SNICS (Multi-cathode – Source of Negative Ions by Cesium Sputtering) do SSAMS da
UFF. Retirado de Oliveira (2012).
Figura 4. 11 Esquema fonte de íons. (Figura do site da NEC http://www.pelletron.com/negion.htm).
4.3.2.2 Ímã de injeção
O feixe então encontra o ímã de injeção, também conhecido como ímã analisador de
massa, que se trata de um analisador magnético de baixa energia. Partículas carregadas
48
sujeitas a campos magnéticos são defletidas por ação da força magnética. Nos parâmetros
com os quais lidamos podemos desconsiderar quaisquer efeitos relativísticos e, portanto,
aplicar a segunda Lei de Newton (já na forma escalar) chegando a uma relação entre o raio de
curvatura da partícula e sua massa:
(4.8)
(4.9)
= 2
(4.10)
nos quais
é o módulo da força magnética sofrida pela partícula carregada;
é o módulo da força centrípeta;
é a velocidade da partícula;
, o raio de curvatura;
, a carga;
é o valor do campo magnético, que é constante nos ímãs;
e é a energia cinética da partícula (no regime não-relativístico).
Dessa maneira, os isótopos são defletidos cada um com um raio específico e referente
à sua massa, afinal os outros parâmetros são todos mais ou menos constantes. A energia
cinética das partículas é a mesma, já que essa é definida pelo potencial estabelecido antes do
ímã. O campo magnético é mantido a um valor fixo. A carga é a mesma para todas as
partículas (e eventuais moléculas) e estabelecida na fonte.
49
Figura 4. 12 Ímã de injeção do SSAMS do LAC-UFF.
4.3.2.3 Stripper
Depois de defletido pelo ímã, o feixe atravessa o tubo acelerador, sofrendo o estágio
de aceleração necessário para que entre com alta energia no stripper. A função do stripper é
eliminar quaisquer compostos moleculares isóbaros ao 14
C que possam ter avançado junto ao
feixe. Por esse motivo o stripper também é conhecido como dissociador molecular. Trata-se
de um tubo preenchido com um gás inerte (no SSAMS do LAC-UFF esse gás é o Argônio)
que será responsável por arrancar elétrons e quebrar as moléculas no feixe. Alguns exemplos
de moléculas que podem estar presentes na fonte de íons e, portanto, podem chegar na forma
de íons moleculares ao stripper, são: 13
CH, 12
CH2 e 7Li2. Ao sair do dissociador, há uma
seleção de carga que permitirá que somente o 14
C – agora com carga positiva – avance e seja
medido no detector.
Logo após o stripper há um analisador magnético de alta energia, onde o estado de
carga pode ser selecionado a fim de obter máxima eficiência e eliminar isóbaros e isótopos
que tenham resistido até aqui.
50
O estado de carga utilizado no acelerador da UFF é o +1. Esse estado de carga é
aquele com maior eficiência para a energia utilizada em nosso sistema e dá conta de eliminar
o lítio - que depois da dissociação sai com razão carga-massa semelhante àquela do carbono
14 com estado de carga +2. Os hidrocarbonetos de massa 14 são quebrados ou não resistem à
ionização, sendo deixados para trás na passagem pelo ímã de alta energia. O isóbaro do
radiocarbono mais problemático que se poderia ter é o nitrogênio. Todavia o nitrogênio 14
não produz íons negativos estáveis. Com isso, o possível problema é resolvido já na fonte de
íons, que se trata de uma SNICS (fonte de íons negativos) e, assim sendo, não permite que um
feixe de nitrogênio seja formado.
Os carbonos 12 e 13 têm a intensidade de suas correntes medidas em copos de
Faraday. O carbono 14 avança até o detector.
4.3.2.4 Detector
No sistema acelerador da UFF o detector utilizado é um detector de barreira de
superfície, ou também chamado de detector de estado sólido. Esse tipo de detector mede a
energia das partículas que sobre ele incidem. Os “contaminantes” do radiocarbono são, então,
facilmente eliminados pela seleção de uma janela de energia.
Figura 4. 13 Espectro obtido no detector de barreira de superfície para um feixe de carbono 14. A altura do
pulso é proporcional à energia do feixe. Jull (2007).
51
4.3.3 Calibração dos resultados e modelo cronológico
Para todas as amostras foi aplicada a curva de calibração atmosférica SHCal13 (Hogg
et al., 2013) através do software OxCal v4.2.4 (Bronk Ramsey, 2009).
Para as amostras de otólito considerou-se um desvio indeterminado com variação de
-100 a 400 anos de 14
C a partir da curva atmosférica. Essas amostras deveriam refletir a
concentração isotópica superficial para o efeito de reservatório marinho dessa região, porém,
a região de estudo está inserida em um sistema lagunar, o que pode acarretar a inserção de
sinais isotópicos da água doce continental. Por isso se adotou um modelo de fase no OxCal.
Esse desvio R foi definido como a diferença entre a idade local do reservatório marinho e a
atmosfera contemporânea.
Devido ao desconhecimento dos efeitos de reservatório no tecido ósseo por conta da
dieta dos indivíduos, afinal não havia dados dos isótopos estáveis para as fontes de alimento
(Fernandes et al., 2013), aplicou-se um comando Termini post quos “After” às amostras de
osso de cão e osso humano.
O programa OxCal efetua uma análise Bayesiana dos resultados, não somente
sujeitando os valores às flutuações das curvas de calibração e produzindo distribuições de
probabilidade individuais para cada idade calibrada, como também permitindo a construção
de um modelo estatístico no qual os grupos de idades podem ser relacionados de diversas
maneiras e, especialmente, na ausência de amostras terrestres/marinhas rigidamente pareadas,
o efeito de reservatório pode ser considerado para todo o conjunto de amostras (Alves et al.,
2015b; Bronk Ramsey e Lee, 2013; Carvalho et al., 2015; Macario et al., 2015b; Macario et
al., 2016). Com isso, no modelo cronológico foi considerado um grupo de fases
independentes com um desvio, comum e indeterminado, a partir da curva atmosférica
(Delta_R(“psg”,U(-100,400))) de forma a levar-se em conta as correções locais para as
amostras carbonáticas (Bronk Ramsey e Lee, 2013). É importante salientar que esse comando
para o desvio R é um comando geral e, portanto, não está diretamente relacionado ao ∆R.
Uma vez que poderia haver uma mistura de materiais de diferentes contextos arqueológicos,
foi considerada uma fase simples para cada um dos montículos contendo todas as respectivas
datas e sem a consideração de qualquer sequência interna (Macario et al., 2015a; Milheira et
al., 2016). Além disso, foram aplicados limites para o período ocupacional do complexo
arqueológico. O valor médio e o desvio padrão foram calculados por meio da função de
probabilidade resultante da distribuição Delta_R obtida pelo OxCal.
52
O código para uma das fases é apresentado como exemplo:
Sequence()
{
Boundary("Start 4");
Phase("PSG-06")
{
Curve("=ShCal13");
Delta_R("=psg");
R_Date("LACUFF-13054", 1652, 33)
{
color="blue";
Outlier(0.05);
};
Curve("=ShCal13");
Delta_R("=psg");
R_Date("LACUFF-13055", 1548, 59)
{
color="blue";
Outlier(0.05);
};
Curve("=ShCal13");
Delta_R("=psg");
R_Date("LACUFF-140392", 1355, 37).
53
Capítulo 5
Resultados e Discussão
5.1 Resultados
A tabela 1 mostra as idades convencionais de radiocarbono obtidas para as 24
amostras dos cinco cerritos estudados (PSG-01, PSG-02, PSG-03, PSG-06 e PSG-07). A
mesma tabela contém também o intervalo das datas modeladas.
Tabela 1. Profundidade das amostras nos cerritos correspondentes, idades convencional e
modelada de radiocarbono para cada amostra medida, resultados IRMS disponíveis. Valores
médios (µ) e desvios padrão (σ) para as distribuições de probabilidade são também
apresentados.
ID da
amostra
Profundidade
(cm)
Idade convencional de
14C (AP)
IRMS 13C (‰)
Material da
amostra Modelado (cal AP)
(2de (2até
início
contorno 2177
PSG1
LACUFF-13058
7,5 1697±32 - otólito 1700 1365 1503 78
LACUFF-13057
35 1930±180 - otólito 1790 1346 1550 110
LACUFF-13059
50 1860±100 - otólito 1777 1367 1550 100
PSG2
UGAMS-12060
2,5 1390±20 -12,2 osso
humano 1307 1191 1280 23
UGAMS-
12061 2,5 1590±20 -2,9 otólito 1518 1295 1369 59
LACUFF-
13056 15 1859±29 - otólito 1816 1303 1590 120
LACUFF-
13049 22,5 1604±32 - carvão 1531 1372 1453 47
LACUFF-
13050 35 1680±30 - carvão 1592 1423 1521 51
LACUFF-
13051 50 1493±31 - carvão 1404 1298 1341 31
LACUFF-
140391 75 1724±40 - otólito 1698 1368 1505 81
UGAMS-
12062 77,5 1280±20 -2,8 otólito 1600 1013 1300 150
PSG3 BETA-
389011 85 1490±30 -1,7 otólito 1403 1186 1295 53
PSG6 LACUFF-
13053 2,5 1480±130 - otólito 1528 1135 1320 94
54
LACUFF-
140392 12,5 1355±37 - otólito 1415 1084 1250 76
LACUFF-
13055 32,5 1548±59 - otólito 1520 1190 1348 68
LACUFF-
13054 60 1652±33 - otólito 1575 1302 1409 74
PSG7
BETA-415598
2,5 1720±30 -11,4 osso de cão 1701 1525 1597 63
LACUFF-
140396 5 1696±28 - otólito 1686 1365 1492 67
LACUFF-
13052 22,5 2340±150 - otólito 2027 1283 1520 150
LACUFF-
140393 42,5 1214±22 - otólito 1660 1016 1440 140
LACUFF-
140394 57,5 1660±190 - carvão 1685 1315 1490 87
LACUFF-
140395 57,5 1756±28 - otólito 1702 1407 1522 73
BETA 389013
67,5 1670±30 -1,6 otólito 1606 1353 1478 64
BETA 389014
82,5 1630±30 -27,4 carvão 1556 1407 1479 39
fim contorno
754
56
Figura 5. 1 Idades modeladas de radiocarbono. Distribuições de probabilidade para otólitos (azul), ossos
(marrom) e carvões (vermelho). Também constam na figura os contornos para cada fase (preto). As linhas
indicam o intervalo de confiança 2σ e os pontos são os valores médios de cada distribuição. Modificada de
Milheira et al. (2016).
A partir dessas assunções e da modelagem, foi obtido um valor do efeito de
reservatório R igual a 63 ± 53 anos 14
C (µ ± σ) (Figura 5.2).
Figura 5. 2 Distribuição de probabilidade para o efeito de reservatório R. Modificado de Milheira et al. (2016).
5.2 Discussão
O valor encontrado nesse trabalho para o R – que gera um valor negativo de ∆R,
entendendo-se esse como a correção local para o efeito de reservatório marinho - discorda dos
dados disponíveis para ambientes marinhos da mesma região (Alves et al., 2015a; Angulo et
al., 2005; Eastoe et al., 2002; Nadal de Masi, 2001). O sistema aquático mais próximo da
Lagoa dos Patos é o da região de São José do Norte que, de acordo com Alves e co-autores
(2015a), possui ∆R igual a 17 ± 56 anos de 14
C. Todavia todos os estudos em MRE citados
para essas regiões adjacentes usaram amostras coletadas em ambiente de localização
puramente marinha, sujeitas, portanto, a uma menor influência da água doce continental. Tal
observação é crucial para se entender essa aparente inconsistência.
Den
sid
ade
de
pro
bab
ilid
ade
57
Figura 5. 3 Mapa com localização de São José do Norte (uma das regiões de estudo de Alves et al. [2015a]) e a
Lagoa dos Patos, mostrando a proximidade das duas áreas. Google Maps, 2017.
Em reservatórios aquáticos o carbono está estocado em três diferentes “formas”:
carbono inorgânico dissolvido (DIC – dissolved inorganic carbon), carbono orgânico
dissolvido (DOC – dissolved organic carbon) e carbono orgânico particulado (POC –
particulate organic carbon). DIC é constituído por íons como e
, ácido
carbônico (H2CO3) e ainda CO2 dissolvido (Hope et al., 1994; Fernandes et al., 2013).
Carbonatos antigos dissolvidos na água (DIC) podem dar origem a efeitos de reservatório da
ordem de milhares de anos (e.g. Lanting e van der Plicht, 1998; Hall e Henderson, 2001;
Ascough et al., 2010). Já a inserção de material de origem terrestre através dos rios irá
contribuir para um enriquecimento do sinal de reservatório no ambiente estuarino.
Considerando os hábitos alimentares das duas espécies de peixe das quais os otólitos
desse trabalho provêm, ambos carnívoros e com preferência por fauna bentônica, conclui-se
que o valor de R obtido para a Lagoa dos Patos reflete a mistura de sinais de carbono marinho
e atmosférico. A fonte alimentar dos seres estudados é caracterizada como da cadeia alimentar
de detritos, que é rica, principalmente, em matéria orgânica “morta” (Attayde e Ripa, 2008).
Dessa forma, variações sazonais na inserção de material do continente devido, por exemplo, à
ação de ventos e chuva, poderia gerar flutuações no efeito de reservatório para esse sistema.
Tal variabilidade poderia ser constatada e estudada a partir da análise dos anéis de
crescimento de otólitos. Tais anéis são compostos por uma zona de acréscimo (na qual o
carbonato de cálcio predomina) e zonas de matriz orgânica descontínuas (Watabe et al.,
1982).
58
Como dito anteriormente, para as amostras de tecido ósseo é importante conhecer o MRE e o
FRE quando esses ossos são provenientes de animais que se alimentam de seres marinhos. Tal
preocupação surge da necessidade de correção para o efeito de reservatório, uma vez que o
sinal empobrecido é transmitido através da cadeia alimentar. No entanto, não basta aplicar o
valor calculado de R para as amostras de tecido ósseo. É necessário antes definir a
contribuição dos alimentos marinhos na dieta do animal cuja idade se deseja calcular. Isso é
feito com base nas razões isotópicas dos isótopos estáveis, essencialmente o δ13
C e o δ15
N.
Com os resultados desse trabalho também foram formuladas importantes
interpretações arqueológicas. As idades calibradas de radiocarbono (2σ) para as amostras
coletadas no complexo do Pontal da Barra variam de 2.177 a 754 anos AP. Esse intervalo
revela uma longa ocupação dos sítios estudados por grupos indígenas. Todavia, vale salientar
que isso não significa que tais grupos tenham, de fato, ocupado a região dos cerritos do Pontal
da Barra por pouco mais de 1.400 anos. Essa variação apenas compreende a probabilidade de
ocorrência dos vestígios datados. No entanto, há um indício de que o período de mais intensa
atividade tenha ocorrido entre 1.800 e 1.200 anos AP (datas calibradas), pois a maior parte
das idades medidas se encontra nesse entremeio.
Fogueiras em contextos arqueológicos são, geralmente, associadas a atividades
efêmeras tais como reconhecimento, uso temporário e exploração limitada de recursos,
atividades essas que costumam anteceder um assentamento em determinada região (Iriarte,
2006). As fogueiras encontradas na base do sítio permitem um modelo interpretativo no qual a
ocupação humana de Pontal da Barra teria se iniciado a partir de eventos esporádicos. Nesse
modelo, os montículos foram usados como acampamento durante as atividades de pesca e
caça no entorno da Lagoa dos Patos.
A estabilização dos “construtores de cerritos” no complexo do Pontal da Barra em
termos de ocupação e como sociedade corresponde ao período compreendido por aquelas
idades que indiciaram o período de maior atividade nos cerritos. Um padrão similar foi
descrito em dois complexos arqueológicos no Uruguai: Los Anjos (Iriarte, 2006) e Pago
Lindo (Villagran e Gianotti, 2013). Acredita-se, assim, que Pontal da Barra tenha se tornado
um vilarejo de uso prolongado e com uma complexa arquitetura, evidenciada pelas suas
instalações de função ritual (sepultamentos secundários), áreas de descarte (fossas culinárias),
assentamentos permanentes ou semipermanentes e, provavelmente, recursos agrícolas
(Milheira et al., 2016).
59
Em torno de 1.500 anos AP, há uma possível ocupação simultânea de montículos. Isso
denota a importância e complexidade alcançada pela sociedade formada pelos grupos
“cerriteiros”. De acampamentos transitórios, provavelmente associados aos períodos do ano
mais propícios à pesca, os cerritos do Pontal da Barra ganharam significado cultural e social,
tornando-se assentamentos sedentários e permanentes até cerca de 800 anos AP. É natural que
durante o longo período de ocupação da região englobada pelo complexo do Pontal da Barra
tenham ocorrido diversos episódios de “abandono” dos assentamentos. Porém, as datações
dos vestígios apontam para o efetivo abandono da região em cerca de 800 anos AP. As razões
não são claras, mas a hipótese inclui que isso tenha ocorrido por decisões culturais
relacionadas à mobilidade territorial e ao agrupamento em outras regiões dos Pampas.
60
Capítulo 6
Conclusão
Existem duas situações nas quais a comparação entre idades convencionais de
radiocarbono deve ser feita cautelosamente. A primeira é quando compara-se amostras de
períodos muito distintos. Como as curvas de calibração não são lineares (apresentando,
inclusive, algumas regiões de plateau), diferentes períodos geram variados alcances e
distribuições de probabilidades das idades calibradas. A segunda é quando compara-se datas
de materiais distintos. As amostras podem variar de origem – terrestre ou marinha/lacustre – e
também podem sofrer com processos que alteram sua estrutura – por exemplo, ossos podem
sofrer diagênese, conchas podem sofrer recristalização. Tudo isso deve ser levado em conta,
seja na escolha da metodologia mais apropriada para o pré-tratamento das amostras, seja na
hora de comparar as idades obtidas. A comparação de idades de amostras que distinguem na
origem do seu material deve ser feita somente após à aplicação das curvas de calibração
apropriadas e das correções que considerem os efeitos de reservatório relevantes.
Nesse trabalho, o modelo cronológico permitiu que a influência de água doce nas
amostras aquáticas fosse inferida e essa influência pôde ser estimada como um desvio de 63 ±
53 anos de 14
C. A partir das análises e discussões, conclui-se que tal valor deve ser usado
sempre que desejar-se calibrar idades convencionais de radiocarbono obtidas para amostras
originárias da Lagoa dos Patos para o período de tempo ao qual esse trabalho se aplicou. Esse
valor não deve ser extrapolado para outras regiões ou períodos.
A alta influência da água doce na correção calculada nesse trabalho enfatiza a
importância de uma calibração específica e exata, principalmente quando lida-se com
amostras aquáticas de regiões estuárias. A continuidade desse trabalho, sobretudo com a
análise adicional dos isótopos estáveis, será significativa para o entedimento da influência da
água doce nessa localidade.
Os cerritos localizados à beira da Lagoa dos Patos foram construídos para diversas
funções ao longo do tempo. Essas funções incluem moradia, áreas de descarte de lixo, lugares
para prática de rituais e, talvez até mesmo, agricultura. O estudo dos sítios do Pontal da Barra
foi, portanto, importante para o melhor entendimento de três estágios da atividade humana:
exploração, colonização e assentamento.
61
A datação das fogueiras na base dos sítios sugere o início da ocupação em torno de
2.200 cal AP, em uma ocupação transiente. Entre 1.800 e 1.200 cal AP é evidente um
processo de complexidade arquitetônica, que incluiu transformações topográficas. De acordo
com as datações de radiocarbono há um período terminal de ocupação dos sítios do Pontal da
Barra em torno de 800 cal AP.
62
Capítulo 7
Referências Bibliográficas
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