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Da Melanésia à antropologia: reflexões sobre as contribuições antropológicas de Roy Wagner e Marylin Strathern e suas mútuas influências e aproximações
Bruna Triana – PPGAS/USP1
Resumo: Neste artigo, procuramos analisar as principais ideias dos antropólogos Roy Wagner
e Marylin Strathern. Ambos trouxeram grandes contribuições para a antropologia, posto que
provocaram as definições consagradas da disciplina, isto é, buscaram novas conceitualizações,
alcances teóricos e pressupostos metodológicos para o trabalho de campo. Assim, num
primeiro momento apresentamos os trabalhos de cada antropólogo, e, num segundo momento
buscamos observar as influências e aproximações entre suas obras, especialmente a influência
do trabalho de Wagner na obra O Gênero da Dádiva, de Strathern.
Palavras-chave: Teoria antropológica, Roy Wagner, Marylin Strathern, invenção,
socialidade.
From Melanesia to anthropology: reflections on the anthropological contributions of Roy Wagner and Marylin Strathern, and their mutual influences and approaches
Abstract: In this paper we seek analyze the main ideas of the anthropologists Roy Wagner
and Marilyn Strathern. Both anthropologists have brought significant contributions to
anthropology, since they led the major definitions of the discipline, that is, they search for
new conceptualizations, and a wider scope for theoretical and methodological assumptions to
the fieldwork. So, first we present the work of each anthropologists, and at a second moment
we observe the influences and similarities between their works, especially the influence of
Wagner in the work The Gender of the Gift, by Strathern.
Key words: Anthropological theory, Roy Wagner, Marilyn Strathern, invention, sociality.
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP). E-mail: [email protected].
Wagner: primeiros trabalhos, principais ideias
O antropólogo norte-americano Roy Wagner, em sua etnografia Habu, de 1972, lança
as ideias de metáfora e ideologia, que estão carregados de associações em nossa cultura
acadêmica ocidental2. Em Wagner, esses conceitos são tomados com outros sentidos, ainda
que, observando com cuidado, sejam sentidos condizentes com alguns dos seus significados
possíveis, embora não os dominantes. Metáfora, em suma, passa a ideia de extensão e
deslocamento de significados para novos contextos, ou seja, procura dar o sentido de inovação
sobre os significados da cultura, e, com efeito, denota uma relação nova entre o elemento
significado e o sistema de significados de uma cultura. Os conjuntos de metáforas que já não
remetem à sua associação ou deslocamento de contexto, por já serem de uso habitual, formam
uma ideologia.
Since ideologies are made up of metaphors, any metaphoric innovations made upon them in effect metaphorize what is already a metaphor. And yet, since ideologies express the central propositions or tenets of a culture, the most significant innovations in the culture will take the form of metaphors involving them. When a metaphor is used in the formation of another metaphor in this way, the relation signified by the former is employed as a context for the latter. This use of a relation to produce another relation brings about a dialectical interaction between the meanings involved. […]
The ordinary process by which metaphors “decay” into lexical signifiers is contained and turned inward upon itself in a dialectic of this sort; the innovative emphasis of one metaphor in such a situation occurs at the expense of the relation signified by the other. As a result, the opposed metaphors or ideologies that make up the dialectic form stable axis across which the change necessary to the formation of meaning takes place, and the consequent meanings stand in a relationship of serial contradiction to each other (Wagner, 1972: 7).
Essas ideias foram mais trabalhadas epistemologicamente em A invenção da cultura
(2010a), de 1975, estendendo o alcance teórico dessas noções ao optar, neste livro, pelos
termos invenção e convenção. Com esses conceitos, Wagner (2010a) se propõe a repensar
nosso entendimento de cultura, alteridade e antropologia. A noção de invenção se refere a um
componente positivo e esperado da vida social: afirmar que algo é uma invenção significa
afirmar seu caráter constitutivo, relacional e, metodologicamente, envolve as maneiras como
pensamos e construímos a antropologia, a cultura e o outro. Dessa forma, para Wagner
(2010a: 23): “realidades são o que fazemos dela, não o que elas fazem de nós ou o que nos
fazem fazer”.
2 O conceito de metáfora vem da linguística. Roman Jakobson (s.d.) conceitua metáfora como o deslocamento de contexto de um signo. Em Wagner, a metáfora mantém uma relação forte com seu uso mais geral, próximo à definição de Jakobson. Já o termo ideologia carrega muitas acepções. Basta remontarmos à tradição teórica de Karl Marx. Sobre a noção de ideologia, ver: Chauí (2001) e Eagleton (1997). Em Wagner, esse conceito refere-se a outro sentido, à ideia grega propriamente dita; sendo, portanto, um conceito utilizado de maneira diferente e afastado do marco teórico marxiano.
Wagner está preocupado, em A invenção da cultura, com o contexto de trabalho de
campo e de produção do conhecimento antropológico – uma preocupação já apregoada em
Habu –, bem como em compreender os processos de simbolização que envolvem a produção
da cultura. Nessa medida, Wagner compreende que “cultura” é o termo que os antropólogos
inventaram para dar conta do choque com a alteridade. Ele conclui que é a diferença que
precipita a cultura, e que fazer antropologia é comparar antropologias3. Ao argumentar que os
antropólogos inventam a cultura que vão estudar, o antropólogo norte-americano está
afirmando que eles devem dar inteligibilidade à diferença que encontraram em campo a partir
dos termos de sua própria cultura. O conceito de invenção implica, nessa medida, uma
“dialética sem síntese” entre convenção e invenção, sendo esta última um aspecto inerente a
todo ato humano.
Dessa forma, o argumento que o antropólogo “inventa” a cultura que estuda significa
que ele generaliza suas experiências, vivências e impressões em termos que façam sentido em
sua própria cultura (Wagner, 2010a: 61). O importante é ressaltar e elucidar os termos da
invenção: rejeitar a arrogância antropológica, descrever a criatividade nativa – mas sem torná-
la um sistema fixo –, deixando clara a mediação de nossos termos, ou seja, que essa invenção
da cultura do outro é controlada pelas convenções que embasam as pesquisas acadêmicas
ocidentais, tais como premissas, métodos, dados etc. A convenção é um controle e um apoio
para que a invenção faça sentido e seja compreensível. Isso, porque, para serem comunicados,
os símbolos devem ser primeiro compartilhados, o que gera a necessidade de
convencionalizar as invenções, metáforas, inovações, para dar inteligibilidade ao mundo.
Contudo, essa convencionalização do mundo não engessa a invenção; ao contrário, a instiga e
a estimula ainda mais.
A necessidade da invenção é dada pela convenção cultural e a necessidade da convenção cultural é dada pela invenção. Inventamos para sustentar e restaurar nossa orientação convencional; aderimos a essa orientação para efetivar o poder e os ganhos que a invenção nos traz (Wagner, 2010a: 96).
Dentro dessa perspectiva, compreendemos melhor o intuito de Wagner ao afirmar e
dispor tal necessidade nos termos de uma dialética sem síntese entre os dois polos: convenção
e invenção4. A noção de dialética é fundamental aqui, pois dá a ideia de solidariedade: esses
3 Wagner (1972) se refere à “arrogância” antropológica, que se atribui a tarefa de descrever a criatividade de uma cultura, utilizando para tanto os recursos criativos de sua ciência, e descrevendo um sistema fixo, imutável. Uma das implicações metodológicas do conceito de invenção, tal como discutido por Wagner (2010a), é justamente esse reconhecimento: colocar nativo e antropólogo no mesmo plano epistemológico. 4 Apesar de também ser um conceito carregado, especialmente por sua formulação hegeliana e marxiana, Wagner (2010a: 96) observa que seu emprego de dialética é mais próximo da ideia grega, referindo-se a “uma tensão ou alternância, ao modo de um diálogo, entre duas concepções ou pontos de vista simultaneamente
polos não se excluem mutuamente, mas complementam-se. Dessa maneira, as metáforas,
invenções e significados contrastantes só assumem a forma de um paradoxo se pensarmos a
cultura como um sistema, ignorando a dialética que a opera (Wagner, 1972: 10). Seguindo
essa linha de argumentação, um antropólogo deve tornar plausível a invenção da cultura
nativa segundo as convenções acadêmicas da qual faz parte.
Para Wagner (1972), a inovação é um deslocamento de significados de um contexto já
habitual para outro. Porém, para o antropólogo norte-americano (2010a: 40), o caráter
inventivo das ações não é consciente, isto é, o indivíduo que está criando “não pode estar
consciente dessa intenção simbólica ao perfazer os detalhes de sua invenção, pois isso
anularia o efeito norteador de seu ‘controle’ e tornaria sua invenção autoconsciente”. Segundo
Wagner (2010a: 40), as invenções orientam-se por uma imagem de realidade. Nessa medida,
uma etnografia ou uma pintura não meramente descrevem o objeto ou aquilo que figuram.
Nesses casos, há uma simbolização que está conectada com a intenção do antropólogo ou do
pintor.
O “controle”, seja o modelo do artista ou a cultura estudada, força o representador a corresponder às impressões que tem sobre ele, e no entanto essas impressões se alteram à medida que ele se vê mais e mais absorto em sua tarefa. Um bom artista ou cientista se torna uma parte separada de sua cultura, que se desenvolve de modos inusitados, levando adiante suas ideias mediante transformações que outros talvez jamais experimentem. [...] E é por isso que vale a pena estudar outros povos, porque toda compreensão de uma outra cultura é um experimento com nossa própria cultura (Wagner, 2010a: 41).
O “controle” da invenção é estendido por meio de analogias, aproximações e
metaforizações que vão incorporando novas articulações cada vez mais abrangentes, “de
modo que um conjunto de impressões é recriado como um conjunto de significados”
(Wagner, 2010a: 41). Nesse sentido, o antropólogo norte-americano (2010a: 40) explica que
[...] nosso entendimento tem necessidade do que lhe é externo, objetivo, seja este a própria técnica, como na arte “não objetiva”, ou objetos de pesquisa palpáveis. Ao forçar a imaginação do cientista ou do artista a seguir por analogia as conformações detalhadas de um objeto externo e imprevisível, sua invenção adquire uma convicção que de outra forma não se imporia. A invenção é “controlada” pela imagem da realidade e pela falta de consciência do criador sobre o fato de estar criando. Sua imaginação – e muitas vezes todo o seu autogerenciamento – é compelida a enfrentar uma nova situação; assim, como no choque cultural, ela é frustrada em sua intenção inicial e levada a inventar uma solução.
Na introdução de Habu, Wagner (1972) apresenta uma parábola sobre o dia do
julgamento final, no qual Deus convocaria todos os artistas que tentaram representar as
criaturas do mundo e os desafiaria a dar vida às suas criações. O ponto em que Wagner, e
contraditórios e solidários entre si”.
também nossa análise, quer enfocar não é tanto o da representação, mas sim o da criação.
Wagner utiliza essa parábola para observar a arrogância presente nos trabalhos de artistas,
cientistas, pintores e antropólogos que buscam criar algo exterior e/ou estranho mediante sua
própria criatividade. O antropólogo norte-americano quer atentar para a questão da invenção
criativa de outra cultura, trabalho do antropólogo, em relação à necessidade de se respeitar,
também, a criatividade nativa. Logo, não é uma questão acerca de uma possível concepção
“dêitica” de criação que está sendo colocada, tampouco de comparação realista entre
representação e representado. O que está em pauta nessa discussão, na verdade,
[...] é como as pessoas criam suas próprias realidades e como criam a si mesmas e suas sociedades por meio destas, mais do que a questão de saber o que são essas realidades, como se originaram ou como se relacionam com aquilo que “realmente” está ali (Wagner, 2010a: 195).
Se, primeiramente, Wagner enfrenta, pelo menos em A invenção da cultura, a
invenção cultural explorando a criação dialética do significado, nos capítulos finais do livro,
ele coloca o problema do funcionamento da dialética quando ela é mediada. Assim, nossa
tradição cultural ocidental medeia a dialética por meio de relações e expressões coletivizantes
e, dessa maneira, cria e compreende o mundo – que, conforme explica o antropólogo, é
fundamentalmente dialético – em termos lineares e racionais. Isto é, o mundo no ocidente é
construído a partir de conexões causais, negando e mascarando os aspectos contraditórios e
paradoxais do pensamento e da cultura. Nessa medida, “a diferenciação e a contradição são
racionalizadas e ‘inseridas no sistema’ como ‘meios’ para um ‘fim’ único, monolítico – uma
vida melhor, um governo mais democrático, uma espécie humana mais forte e assim por
diante” (Wagner, 2010a: 194).
Destarte, os controles convencionais da cultura ocidental são relativizados, e isso
porque nos agarramos à nossa Cultura, acima de todas as tentativas de reinventá-la: “não
remodelamos nossa Cultura de tempos em tempos e caímos num limbo de recriação porque a
amamos” (Wagner, 2010a: 106). Para o antropólogo norte-americano, por cultuarmos nossa
própria Cultura, não há nada que detenha a progressiva relativização dos controles, e os
esforços, nesse sentido, tomam a forma de uma inversão dos controles culturais, que, segundo
Wagner, podem ser vistas nos grandes eventos históricos, como as Cruzadas, na ascensão da
ciência empírica, nas Revoluções Francesa e Americana, nas guerras mundiais, entre outros.
Segundo Wagner (2010a), os eventos históricos, as descobertas científicas, os ideais
de racionalidade e liberdade foram menos acréscimos ao que chamamos conhecimento, e
muito mais precedentes e precursores de um tipo de invenção do eu em relação ao mundo.
Sendo assim, Wagner (2010a: 192) afirma que, em nossa moderna cultura ocidental, “as
tarefas e os papéis da vida ‘cotidiana’ se tornam cada vez mais coletivizados (facilitando o
uso do dinheiro nas trocas e sendo facilitados por tal uso) e assimilados a uma ‘Cultura’
comum”. Isso ocorre porque os controles convencionalizados utilizados em nossa invenção de
mundo se tornam cada vez mais diferenciados, forçando-nos a esforços cada vez mais
enérgicos em busca de controlar nossa orientação coletivizante em direção a um “fundo
cultural comum”.
Essa autocriação e automotivação da Cultura ocidental moderna é inerentemente
instável. As soluções coletivizantes são construídas por um senso de urgência cada vez maior,
e servem para criar o mundo do dado e do incidente individuais sob formas sempre mais
exigentes. Ou seja, a sociedade é desafiada por suas próprias criações: os fatos da história e da
ciência, as necessidades das minorias, a integração de espaços, etc. Assim, “cada fracasso
motiva um esforço coletivizante mais amplo” (Wagner, 2010a: 201).
Por outro lado, o processo de gradual relativização dos controles de nossa Cultura,
pelo fato de mediarmos a dialética de forma coletivizante, racional e linear, leva ao também
progressivo processo de esgotamento de nossos símbolos, que entram em colapso em seu
contínuo uso. Portanto, precisamos sempre forjar novas articulações simbólicas para
conseguir reter a orientação convencional que nos possibilita o próprio significado. É essa
necessidade que impulsiona a “cultura interpretativa”, bem como os diversos esforços
políticos e econômicos para controlar a crescente relativização do eu e da sociedade:
movimentos de contracultura, guerras intermitentes pelo mundo, movimentos sociais, blocos
econômicos, etc. Tanto na propaganda quanto na política, os produtos e ideias (leis, medidas
econômicas e de segurança) são vendidos ao serem objetificados por meio de certos estilos de
vida, ou seja, esses produtos e discursos são investidos com poder e excitação, de modo a
passar esse poder para o cotidiano, renovando e recriando seus significados. E é dessa
reinterpretação constante que vive nossa cultura.
[...] uma Cultura “naturalizada” e particularizada e uma natureza organizada e sistematizada fazem parte de um mundo altamente relativizado, cuja distinção crucial entre “o que fazemos” e “o que somos” vem sendo substancialmente erodida e desmantelada pela troca de características. [...] A frustração engendrada por tal mundo, que não pode nem realizar nem criar seus próprios significados de forma efetiva, rapidamente se resolve numa apatia motivacional quanto à Cultura e à sua percepção tradicional do “eu” e numa profunda reação de antipatia diante de soluções tradicionais, numa necessidade de “fazer algo a respeito das coisas” (Wagner, 2010a: 115).
Strathern: críticas, conceitos e métodos de O Gênero da Dádiva
A obra The Gender of the Gift ([1988] 2006), da antropóloga inglesa Marilyn
Strathern, é, sem dúvida, um dos textos mais fundamentais da antropologia contemporânea, e,
mais especificamente, vale ressaltar, da antropologia contemporânea inspirada pelo
feminismo. Baseando-se numa ampla bibliografia, tanto do feminismo como da antropologia
– que dão suporte ao seu “experimento narrativo” –, Strathern alcança outra resposta à crise
da representação na antropologia, que não aquela encontrada por Marcus, Clifford, entre
outros da geração “pós-moderna”, posto que a antropóloga aposta nas generalizações e nas
comparações, assumindo, assim, os riscos embutidos nessa postura. Esse embasamento
teórico permite a autora articular as abordagens feministas e antropológicas, arriscando uma
“etnografia das práticas ocidentais de conhecimento” nos primeiros capítulos; e expondo, ao
longo do livro, o que ela acredita ser “as práticas de conhecimento melanésias”, de modo a
reconsiderar, a partir disso, questões feministas – a dominação masculina – e antropológicas –
a comparação (Strathern, 2006: 21).
Contrapondo o conhecimento antropológico, o pensamento feminista e o material
melanésio, o livro propõe uma discussão de temas clássicos da antropologia, submetendo à
crítica os pressupostos e os conceitos que informam muitos dos debates das ciências sociais
ocidentais. Essa estratégia, que podemos chamar de triangulação, consiste em cruzar esses
três campos de conhecimento e visa demonstrar que o tema do gênero possibilita o
questionamento dos pressupostos e metáforas mais básicas da antropologia, bem como do
próprio feminismo. O núcleo dessa “experiência de pensamento”, que é o que melhor define
O Gênero da Dádiva, está na crítica da autora sobre as “análises antropológicas
convencionais” acerca do tema da dádiva que, indiretamente, atingem o tema do gênero. Seu
objetivo, com isso, é apreciar os dados (sociais e culturais) por meio dos quais a antropologia
e o feminismo se estabelecem; e, para tanto, é necessário contextualizar, primeiro, os supostos
das questões priorizadas pelos dois campos.
Ora, ao colocar esses campos em confronto, a autora busca não apenas questionar a
dicotomia, tão naturalizada, de dádiva/mercadoria, mas também ir atrás de uma ainda anterior
e mais fundante das ciências sociais: a dicotomia indivíduo/sociedade. O questionamento dos
pressupostos mais básicos das ciências sociais tem o escopo de mostrar como esses supostos
são tomados como autoevidentes. Strathern procura explorar essas dicotomias, ou metáforas,
essenciais e tomadas como dadas no pensamento científico: indivíduo/sociedade;
dádiva/mercadoria; nós/eles. Nesse sentido, a antropóloga propõe um “diálogo interno à
linguagem de análise”: admite as premissas dos escritos anteriores sobre a Melanésia como
provenientes de um modo de conhecimento particular – e sabendo-se dentro desse modo, pois
Strathern não pretende excluir-se, quer dizer, olhar “de fora” o material. Ou seja, a autora
almeja tornar visível o próprio funcionamento de sua narrativa, e, com efeito, explorar seu
“próprio potencial reflexivo”. “Assim, minha narrativa opera através de várias relações ou
oposições; ao eixo nós/eles, acrescento dádiva/mercadoria e os pontos de vista
antropológico/feminista” (Strathern, 2006: 33). Demonstrar o funcionamento e explorar
reflexivamente esses polos permite analisar e contextualizar cada prática de conhecimento.
Desse modo, observamos que a antropóloga assume o projeto feminista de questionar
o modo pelo qual o imaginário de gênero estrutura conceitos, categorias analíticas, assim
como deslocar preconceitos e pressupostos já amplamente estabelecidos. Porém, Strathern vai
além desse projeto e coloca o feminismo sob a mira da contextualização, pois, tendo em vista
que o feminismo tem suas raízes na sociedade ocidental, é indispensável contextualizar
também os pressupostos desse pensamento. Nessa medida, o questionamento dos
pressupostos e categorias analíticas por meio das quais o gênero, a dádiva e a sociedade na
Melanésia têm sido interpretadas é embasado, antes, no próprio questionamento dos
pressupostos e categorias analíticas da antropologia e do feminismo. Isso, porque, para
descrever as práticas de conhecimento melanésias, Strathern considera necessário, primeiro,
analisar nossas próprias práticas de conhecimento.
Compreendemos, então, a insistência em interrogar pressupostos que nos são tão
básicos e autoevidentes – como o conceito de sociedade, que, para a antropóloga inglesa, é
uma ficção sociológica tomada como realidade nativa. “A idéia de ‘sociedade’ parece um
bom ponto de partida, simplesmente porque ela própria, como uma metáfora para
organização, organiza muito da maneira pela qual os antropólogos pensam” (Strathern, 2006:
37). Mas, só porque esse conceito fundamenta nossa forma de pensar não significa que ele
organize todas as formas de pensar, lembra Strathern – alerta este sinalizado, antes, por
Wagner ([1974] 2010b). Strathern (2006: 39) salienta, nesse sentido, que “nossas próprias
metáforas refletem uma metafísica profundamente enraizada, com manifestações que
emergem em todas as espécies de análises”, o que, em certa medida, explica nossa fixação em
encontrar nos outros nossas dualidades explicativas do mundo: natureza/cultura;
indivíduo/sociedade; parte/todo.
Logo, o esforço comparativo lançado no livro busca torcer o sentido de ambos os
termos colocados em comparação, visando não necessariamente chegar a universais, mas,
mais fundamentalmente, mostrar as diferenças. Ou seja, não se trata tão e somente de partir de
uma base comum, mas sim de comparar, justamente para perceber as diferenças e equívocos.
No entanto, a estratégia antropológica da comparação não escapa da crítica de Strathern; a
autora retoma a utilização desse método na antropologia para demonstrar como a comparação
é ainda possível na disciplina, e, além disso, para revelar sua intenção ao se apropriar dessa
metodologia: estabelecer conexões parciais entre antropologia e feminismo, entre dom e
mercadoria. Tal exercício de pensamento assume ainda outros riscos. Conforme já dissemos, a
autora rejeita de imediato a saída pós-moderna e aposta na possibilidade em falar do outro,
ainda que isso acarrete a necessidade de depurar os conceitos ocidentais que são utilizados na
descrição e na análise, e admitir, assim, que seu texto é uma ficção, contudo, uma ficção
controlada (Strathern, 2006: 31).
A inovação que Strathern traz ao tratar do tema da dádiva na Nova Guiné é pensar essa
questão como uma ação distinguida pelo gênero. Se a dádiva é um tema clássico na disciplina,
antes mesmo de Mauss e seu célebre ensaio, a antropóloga demonstra como essa troca é
tomada, na antropologia, como dada: circulam-se artigos de diversos tipos entre os agentes
que a realizam; e o poder envolvido nessa troca está no controle do evento e dos bens. Nessa
perspectiva convencional, o comportamento da troca é visto como neutro. Strathern vai,
então, introduzir o elemento de gênero nesta ação: a troca de dádivas na Melanésia não é um
comportamento neutro, mas, ao contrário, marcado pelo gênero.
É preciso ter cuidado nas análises antropológicas, sobretudo quando lidam com
imaginários que também dão grande importância ao gênero, pois existem, nessas análises,
possibilidades de imprecisões e confusões na interpretação das relações entre homens e
mulheres. Portanto, para a antropóloga, é essencial a discussão das premissas nas quais se
baseiam os escritos sobre a Melanésia, pois estes são, sabidamente, pertencentes a um modo
particular de conhecimento e explicação (a saber, o ocidental). Esse cuidado é importante,
visto que um dos objetivos de Strathern é perceber e demonstrar como as ciências sociais
ocidentais beneficiam e favorecem certos interesses na vida social; e o empenho do livro é,
deste modo, entender os interesses presentes em nossa cultura científica ocidental para, de
maneira análoga, imaginar os tipos de interesses presentes em outras culturas.
Nesse sentido, a intenção de Strathern é demonstrar que gênero não é uma identidade
global unitária. “A individualidade da identidade sexual é uma questão cultural nas sociedades
ocidentais. As preocupações com a performance sexual, hetero ou homo, fazem com que o
comportamento erótico seja uma fonte significativa de autodefinição” (Strathern, 2006: 103).
Ou seja, para o ocidente, a identidade de gênero é permanente, inscrita no sexo. Nesse
sentido, é importante salientar que, “o interesse pela identidade como um atributo da pessoa
individual é um fenômeno ocidental [...]. O modelo de papéis sexuais deriva, por sua vez, de
certas suposições culturais a respeito da natureza da ‘sociedade’” (Strathern, 2006: 104). Por
isso, continua a autora, é importante ser claro acerca de quanto queremos ou não tornar nossas
as preocupações dos melanésios quanto a essas questões, pois não é certo que entenderemos
suas suposições de gênero só por compreender a orientação das pessoas em ser homem ou
mulher. Na Melanésia, o gênero é um operador categórico, que distingue situações, corpos e
partes de corpos. O gênero é, portanto, uma estética que está, inclusive, por trás da ação – a
ação da troca, por exemplo, envolve sempre gênero. Dessa forma, o gênero é mais que a
relação homem e mulher, ele é analógico. As pessoas são compreendidas numa forma
marcada pelo gênero, todavia esse é um estado, e não uma identidade.
Detenhamo-nos nesse ponto. Segundo Strathern (2006: 275), “o gênero se evidencia
através do que os melanésios percebem como as aptidões dos corpos e mentes das pessoas, o
que estes contêm dentro de si e os seus efeitos sobre os outros”. Assim, cada melanésio possui
capacidades que podem ser acionadas na interação, “o ser ‘masculino’ ou o ser ‘feminino’
emerge como um estado unitário holístico sob circunstâncias particulares” (Strathern 2006:
43). São essas capacidades de fluidez, e seus efeitos sobre os outros, que são evidenciadas por
meio do gênero. A manifestação das identidades depende das circunstâncias, da forma
assumida por aquele com quem se está interagindo. Essa mutabilidade resulta de um
pensamento que justapõe, e não que classifica. Nesse sentido, as relações de gênero na
Melanésia não são aquelas entre homens e mulheres, mas entre as próprias relações: as
formas transformáveis de pessoas, que podem aparecer como singulares ou múltiplas
(Piscitelli, 1994: 216-217).
Vale ainda ressaltar alguns conceitos fundamentais que Strathern mobiliza na
evocação da vida social melanésia. Isso, porque, dos poucos conceitos com os quais estamos
familiarizados, a antropóloga os articula de maneira que eles possam adquirir outro alcance
analítico. A autora, para apresentar o modo de conhecimento e a vida social melanésias, torce,
por exemplo, nossa significação de pessoa e agente:
A pessoa, ele ou ela, é construída da perspectiva das relações que a constituem; ela as objetifica, sendo assim revelada por essas relações. O agente é construído como aquele, ou aquela, que age em virtude dessas relações, sendo revelado ou revelada por suas ações. Se uma pessoa, encarada do ponto de vista de suas relações com os outros, é um agente, o agente é a pessoa que empreendeu a ação tendo em consideração aquelas relações (Strathern, 2006: 400).
Outros conceitos fundamentais apresentados são o de ação – entendida como efeito,
como performance; gênero – as conceitualizações que as pessoas fazem embasadas nas
diferenças do imaginário sexual, categorização essa que marca as mais variadas ações da vida
social; e o conceito de socialidade, presente na obra do antropólogo Roy Wagner, e proposto
como uma alternativa ao conceito de sociedade. Socialidade estaria atento à criação e
manutenção de relações sociais, que organizam diversas formas de interação individuais e
coletivas, mas não pressupõe unificação. Com efeito, o conceito de socialidade é mais geral
que o de sociedade, dando ênfase na matriz relacional que constitui a vida das pessoas, pois
estas não estão prontas, mas são constituídas por relações. Tendo em consideração essas
afirmações acerca do conceito de socialidade – e sabendo de sua utilização também por
Wagner –, podemos observar que ambos os antropólogos têm interesse na relação.
Strathern e Wagner: apontamentos sobre as influências e aproximações
Após essas considerações sobre os dois autores melanesistas, passamos agora a
levantar alguns pontos de contato e de influência entre Roy Wagner e Marilyn Strathern
dentro d’O Gênero da Dádiva. Como Wagner, e profundamente influenciada por ele,
Strathern também trata de diferentes modos de pensamento e reflexividade, sem cair, no
entanto, na armadilha “pós-moderna” de falar só sobre si mesmo. Atentos às críticas pós-
coloniais – e Strathern, também, às críticas feministas –, esses autores propõem-se a falar,
descrever e analisar o outro, e, mais precisamente, as maneiras pelas quais esses outros
descrevem e concebem o mundo. Além disso, os dois antropólogos, cujo campo etnográfico é
a Melanésia, arriscam generalizações e comparações, ainda que com particularidades
metodológicas. Em meu entender, uma das diferenças é que Wagner é mais ousado ao propor
uma teoria geral da simbolização, n’A invenção da cultura ([1975] 2010a), ainda que a
proposta de Strathern não seja menos ambiciosa e complexa.
Tanto em Habu (1972) como n’A invenção da cultura, notamos que Wagner concentra
sua atenção na dialética cultural entre invenção e convenção, mostrando e descrevendo o
funcionamento dessa dialética nos dois tipos de simbolização daí decorrentes (diferenciante e
coletivizante). Já Strathern, orientada pelas ideias de Wagner, procura entender a estética do
gênero e a metáfora da dádiva como práticas de conhecimento dos melanésios; essas ideias
quanto à troca também caem em duas formas de ação (personificação e reificação), que são
aproximadas, pela própria autora, às tipificações sobre a simbolização de Wagner. Notamos,
por exemplo, as diferenças e aproximações de ordem metodológica: Strathern deixa claro o
funcionamento de sua estratégia analítica, expõe os eixos de sua interpretação, seu método de
triangulação e seu esforço comparativo na intenção de questionar os pressupostos ocidentais
enraizados e lançados aos melanésios nas ciências sociais. Wagner, mormente n‘A invenção
da cultura, anterior à obra da antropóloga inglesa, inova também na metodologia: seu método
e suas proposições são também novos, no sentido de redefinir a própria noção de cultura e
ampliar a de invenção, abrangendo, assim, os entendimentos da própria prática etnográfica e
antropológica. Nesse sentido, Wagner afirma que
[...] o estudo da cultura é cultura, e uma antropologia que almeje ser consciente e desenvolver seu senso de objetividade relativa precisa se avir com esse fato. O estudo da cultura é na verdade nossa cultura: opera por meio de nossas formas, cria em nossos termos, toma emprestado nossas palavras e conceitos para elaborar significados e nos recria mediante nossos esforços. Todo empreendimento antropológico situa-se portanto numa encruzilhada: pode escolher entre uma experiência aberta e de criatividade mútua, na qual a “cultura” em geral é criada por meio das “culturas” que criamos com o uso desse conceito, e uma imposição de nossas próprias preconcepções a outros povos (Wagner, 2010a: 46).
A crítica de Strathern à antropologia convencional, que ela exemplifica e analisa em
relação ao tema da dádiva, está calcada nesse mesmo argumento epistemológico do qual fala
Wagner – só que a antropóloga inglesa busca, também, outra fonte para embasar sua crítica: o
feminismo. É essa argumentação, presente na citação de Roy Wagner, que perpassa as
formulações de Strathern acerca da antropologia que não questiona seus pressupostos, que os
toma como dados e os procura em outros povos, sem se preocupar em saber, primeiro, se
esses pressupostos realmente são encontrados ou são problemas para essas populações.
A questão primordial nessa problematização dos pressupostos mais básicos das
ciências sociais, como o de sociedade, passa não apenas por essa crítica, mas também pelo
reconhecimento da “criatividade humana”, o que envolve um passo crucial, ético e teórico, e
que
[...] consiste em permanecer fiel às implicações de nossa presunção da cultura. Se nossa cultura é criativa, então as “culturas” que estudamos, assim como os outros casos desse fenômeno, também têm de sê-lo. Pois toda vez que fazemos com que outros se tornem parte de uma “realidade” que inventamos sozinhos, negando-lhes sua criatividade ao usurpar seu direito de criar, usamos essas pessoas e seu modo de vida e as tornamos subservientes a nós (Wagner, 2010a: 46).
Fundamentada em Wagner, Strathern (2006: 68-69) explica e continua a crítica à disciplina
antropológica:
Wagner (1975) observou que os ocidentais estão prontos a reconhecer a criatividade e inventividade na maneira pela qual outras culturas elaboram sua vida social, mas imaginam que elas assim o fazem em referência aos mesmos fatos da natureza nos quais se baseia a inventividade ocidental. Infelizmente, os antropólogos muitas vezes vão ainda além disso e, na interpretação dos sistemas simbólicos de outros povos, supõem que as referências desses mesmos construtos ideacionais são também as que informam as suas próprias invenções. Entretanto, com base nessa dupla recomendação, parece que a busca do exótico deve ser seguida em virtude das mesmas razões pelas quais ela é usualmente desdenhada. Por abandonar o terreno em que se situa a noção de “sociedade”, a saber, que as convenções sociais deveriam ser entendidas em primeiro lugar como maneiras de solucionar problemas universais da existência humana.
Pensando em vários de seus textos, como Habu (1972), “Analogic Kinship” (1977),
“Existem grupos sociais na Nova Guiné?” ([1974] 2010b), mas fundamentalmente em A
invenção da cultura (2010a), observamos que Wagner inova e provoca a antropologia
ocidental realizada até então em suas proposições e também no nível metodológico, no
sentido de que procura redefinir a própria noção de cultura e ampliar a de invenção,
abrangendo, assim, os entendimentos da própria prática etnográfica e antropológica. A crítica
de Wagner à antropologia convencional perpassa as formulações da antropologia que não
questiona seus próprios pressupostos, que os toma como dados e os procura em outros povos,
sem se preocupar em saber, primeiro, se esses pressupostos realmente são encontrados ou são
problemas para essas populações.
Logicamente, a crítica de ambos não se refere unicamente às ciências sociais, e em
particular à antropologia. Essa crítica é endereçada às ciências ocidentais em geral, que, com
vistas a completar seu projeto, considerado – paradoxalmente – intrinsecamente inacabado,
geram uma necessidade de inovação totalizadora, e também incompleta. Conforme sintetiza
Wagner (2010a: 98), o funcionamento da ciência ocidental em sua necessidade de invenção
gera um problema motivacional, uma compulsão, uma “obsessão coletivizadora”, completa
Strathern (2006: 50), e, portanto, suscita uma cultura de contínua frustração.
Aplicamos as ordens convencionais e as regularidades da nossa ciência ao mundo dos fenômenos (“natureza”) para poder racionalizá-lo e compreendê-lo, e no processo a nossa ciência se torna mais especializada e irracional. Simplificando a natureza nós assumimos sua complexidade, e essa complexidade aparece como uma resistência interna à nossa intenção. A invenção inevitavelmente confunde as distinções da convenção ao relativizá-las (Wagner, 2010a, p.98).
Dando voz às constatações de Wagner, aparentes no trecho supracitado, Strathern
observa que a análise antropológica, isto é, seu modo sistemático de trabalhar com os dados
que recolhe em campo, é sua própria inimiga. Por isso a preocupação dos dois autores em
tornar visíveis suas argumentações e procedimentos, o que Strathern denominará de trabalhar
“no limite da linguagem”:
A linguagem analítica parece criar-se a si própria como cada vez mais complexa e mais distante das “realidades” dos mundos que ela procura retratar, e não menos das linguagens nas quais os próprios povos as descrevem. A compreensão do quão diversos e complexos são esses mundos parece ser um artifício da análise, a criação de mais dados para torná-la mais trabalhosa. Há, portanto, uma inerente sensação de artificialidade no conjunto do exercício antropológico – a qual induz à aparente solução de que o que se deveria fazer é visar à simplicidade, restaurar a clareza da compreensão direta (Strathern, 2006: 32).
A frustração, a “necessidade de fazer algo a respeito”, o “progresso em nome do qual
vivemos, um progresso que precisa constantemente inflar, exagerar e criar ‘o velho’ como
parte da apresentação ‘do novo’” (Wagner, 2010a: 116), gera essa “obsessão coletivizadora”.
Assim, tendo em vista essas críticas e argumentações, podemos compreender o ensejo da
adoção do princípio do “como se” em ambos os autores aqui discutidos. Wagner utiliza esse
procedimento já em Habu (1972), mas o pensa mais elaboradamente como princípio
metodológico n’A invenção da cultura (1975), expondo a definição da antropologia como “o
estudo do homem ‘como se’ houvesse cultura” (Wagner, 2010a: 38). Esse procedimento
aparece antes em Leach, na etnografia Sistemas políticos da Alta Birmânia (1996); mas
Wagner o retoma e redefine:
Se a cultura fosse uma “coisa” absoluta, objetiva, “aprender” uma cultura se daria da mesma forma para todas as pessoas [...]. Mas as pessoas têm todo tipo de predisposições e inclinações, e a noção de cultura como uma entidade objetiva, inflexível, só pode ser útil como uma espécie de “muleta” para auxiliar o antropólogo em sua invenção e entendimento. Para isso, e para muitos outros propósitos em antropologia é necessário proceder como se a cultura existisse na qualidade de uma “coisa” monolítica, mas para o propósito de demonstrar de que modo um antropólogo obtém sua compreensão de um outro povo, é necessário perceber que a cultura é uma “muleta” (Wagner, 2010a: 36).
Ou seja, é preciso ter consciência dos pressupostos e de suas utilizações ao longo da
invenção e compreensão de outros povos. Como explicamos anteriormente, para Wagner, a
antropologia denomina seu choque com a alteridade de cultura, um termo que lhe é familiar e
que auxilia o pesquisador em campo a compreender e, dessa maneira, a controlar sua
experiência com o outro. A antropologia, então, é essa invenção de cultura, tanto no sentido
amplo como no restrito.
O efeito dessa invenção é tão profundo quanto inconsciente; cria-se o objeto no ato de tentar representá-lo mais objetivamente e ao mesmo tempo se criam (por meio de extensão analógica) as idéias e formas por meio das quais ele é inventado. O “controle”, seja o modelo do artista ou a cultura estudada, força o representador a corresponder às impressões que tem sobre ele, e no entanto essas impressões se alteram à medida que ele se vê mais absorto em sua tarefa (Wagner, 2010a: 41).
Para considerar os princípios aos quais se balizam as categorizações e as relações de
gênero, Strathern não abre mão desse procedimento, pensando, como Wagner, na necessidade
de, na síntese buscada por intermédio da análise, esclarecer as técnicas e estratégias utilizadas
na argumentação.
A idéia de “análise” faz parte do argumento. Grande parte do material deste livro apóia-se na exegese simbólica, isto é, na elucidação daquilo que uma antropologia mais antiga chamaria de representação das pessoas sobre si próprias, em seus valores e expectativas e nos significados que elas dão a artefatos e eventos. O procedimento analítico aparece, pois, como de tipo decodificador. Não se está levando a cabo um procedimento decodificador que os melanésios também seguiriam se desejassem trazer a tona um mapa total de sua construção de sentidos. [...] A decodificação nativa, assume, por assim dizer, a forma de transformação ou inovação simbólica (Strathern, 2006: 46).
Dessa forma, se os melanesistas pecaram pelo holismo e hoje se voltam para a história,
conforme demonstra a antropóloga; ela, Strathern, prefere deliberadamente se lançar num
exercício de pensamento que mantenha a análise como uma espécie de ficção controlada, se
valendo de metáforas e de um diálogo interno à linguagem, a fim de conservar a
complexidade dos fenômenos.
Nessa perspectiva, Strathern procura pensar o simbolismo sexual como metáfora –
ressaltando que este conceito foi usado como intercambiável com o conceito de signo, e não
em contraste com o signo mesmo, como demonstrará Wagner (1978); nesses termos, a
estratégia epistemológica era assim formulada para concordar “com um esforço que via a
construção do masculino e do feminino como concebida com referência ao que os homens e
as mulheres faziam/eram” (Strathern, 2006: 121). Esse modelo constrói os conceitos
articulados à dominação como um benefício; logo, não consegue explicar os imperativos que
caracterizam a diferença e nem os exemplos das associações positivas das mulheres com a
vida ritual (Strathern, 2006: 152). Por isso, a antropóloga inglesa prefere a formulação que
compreende o gênero como demarcando diferentes tipos de atuação. Embasada em Wagner
(2010b), ela afirma: “As pessoas impactam [impinge] umas às outras de maneira diferenciada,
e imaginar âmbitos de eficácia ‘masculinos’ e ‘femininos’ torna-se uma maneira de trazer à
tona esses diversos tipos” (Strathern, 2006: 152).
Ao questionar a “sociedade” como um conceito que soluciona problemas universais da
existência humana, e ao abandonar o terreno em que se situa essa noção, Strathern atenta que
este conceito é também um mecanismo de criação de problemas.
Esta é a outra face do modelo que vê as pessoas individuais como tendo que resolver os problemas apresentados por seu envolvimento num contexto particular. Nos termos desse modelo, a sociedade pode superar as diferenças naturais entre indivíduos, mas, ao fazê-lo presenteia-os com problemas peculiares aos contextos em que estão envolvidos e com os quais têm de lutar, como têm de fazer com respeito a tantas óbvias diferenças na condição humana. Nesse sentido, as sociedades colocam problemas igualmente para os homens e para as mulheres. No mínimo, portanto, deveríamos abandonar a metáfora tecnológica que imagina a sociedade como um mecanismo que “produz” coisas a partir dos recursos naturais com vistas a ampliar o potencial humano e deixar aberta a questão relativa a todos os problemas humanos serem ou não os mesmos (Strathern, 2006: 69).
Desde 1950, a antropologia melanesista, formada pelos cânones africanistas, descobriu
nas terras altas da Nova Guiné grupos locais e de descendência, diretamente influenciados por
modelos africanistas. A crítica de Strathern a essa antropologia está fortemente calcada no
artigo de Wagner ([1974] 2010b): “Existem grupos sociais nas terras altas da Nova Guiné?”.
Segundo o antropólogo (2010b), o debate melanesista centrou-se em torno da questão da
solidariedade grupal entre os membros de entidades políticas organizadas, reconhecidas pelos
antropólogos segundo seus modelos; e as atividades consideradas como “processos” (rituais e
relações) compunham essa questão. Strathern (2006: 93), então, retoma o alerta de Wagner:
“Como observa Wagner (1974), os antropólogos começaram, por conseguinte, a tornar seus
os problemas dos habitantes das Terras Altas”. Por isso a crítica veemente dos dois
antropólogos ao conceito de sociedade imputado aos outros.
Em que espécie de contextos culturais as autodescrições das pessoas incluem uma representação delas próprias como uma sociedade? Mas a questão é absurda se supomos que o objeto de estudo é “tudo o que está inscrito na relação de familiaridade com o meio conhecido, a apreensão sem questionamento do mundo social que, por definição, não reflete sobre si próprio” (Bourdieu, 1977, p.3, grifo removido). [...] O que se torna notável, por conseguinte, é
que isso seja admitido como verdadeiro em grande parte da pesquisa antropológica sobre formas simbólicas, a facilidade com que se argumenta que as pessoas possuem uma representação da “sociedade”. Essa suposição em nome dos outros é, certamente, uma presunção por conta dos observadores que “sabem” que pertencem a uma sociedade (Strathern, 2006: 35).
Dessa presunção antropológica, já nos falava Wagner. De acordo com nossos
pressupostos, a sociedade pode ser entendida como “aquilo que conecta os indivíduos entre si,
as relações entre eles. Assim, concebemos a sociedade como uma força ordenadora e
classificadora e, nesse sentido, como uma força unificadora que reúne pessoas que, de outra
forma, se apresentariam como irredutivelmente singulares” (Strathern, 2006: 40). Nesse
sentido, podemos compreender a adoção do conceito de socialidade por ambos os autores aqui
discutidos, tendo em vista sua maior abrangência e sua ênfase na relação.
Como, então, os povos das terras altas da Nova Guiné criam sua socialidade? Quais são os “fatos”, tais como os nativos os fazem? Eles têm a “sociedade como problema” e uma solução sistêmica para ela, ou seus problemas são concebidos de forma totalmente diferente, relacionando-se apenas indiretamente ao agrupamento social? (Wagner, 2010b: 245).
E segue:
Termos como “clã” e “comunidade” podem ser formas úteis de se referir a esses agrupamentos associativos, contanto que tenhamos em mente que esses termos geralmente denotam associações bastante “não intencionais” e não tentemos transformá-los em representações de nossas próprias corporações e organismos conscientemente sócio-políticos. Eles são a socialidade e a relação humana sem distinções inerentes, e é por isso que as pessoas precisam elas mesmas estabelecer distinções, embora, é claro, também eliciem a socialidade no ato de estabelecê-las. Nesse aspecto, são o oposto de nossas formas ocidentais, em que as pessoas formam grupos por meio da participação deliberada e, assim, eliciam distinções de “classe” e “nacionalidade” (Wagner, 2010b: 249).
Desses apontamentos, Strathern (2006: 153) sintetiza: “a socialidade é vista como
baseadas nas relações entre indivíduos, nas construções sociais e culturais dos indivíduos ou
das pessoas sexuadas (homens e mulheres) cuja individualidade ou caráter sexual se encontra
além da construção”. Pelo exposto, notamos a preferência e a influência sobre Strathern das
formulações, conceitos, argumentações e estratégias de Roy Wagner. O antropólogo se
propõe a analisar a motivação humana num nível radical. Nesse intento, que começou em
Habu (1972) e foi potencializado epistemologicamente n’A invenção da cultura, Wagner
(2010a: 17) compreende que
[...] todas as simbolizações dotadas de significado mobilizam a força inovadora e expressiva dos tropos ou metáforas, já que mesmo símbolos convencionais (referenciais), os quais não costumamos pensar como metáforas, têm o efeito de “inovar sobre” (isto é, “ser reflexivamente motivados em contraste com”) as extensões de suas significações para outras áreas.
Strathern elege Wagner como autor fundamental em seu exercício de pensamento
porque, como ela mesma observa, a posição teórica de Wagner “envolve simultaneamente as
tendências ocidental e melanésia, com a idéia de que um símbolo é tanto uma expressão
convencional, artificial, de algo já (inventado) existente por si próprio, como o desejo
inventivo de extrair das relações e das pessoas as capacidades inatas (convencionadas) que
nelas se encontram” (Strathern, 2006: 265).
Strathern está embasada na dialética entre convenção e invenção, nos modos de
simbolização coletivizante e diferenciante, que envolvem a simultaneidade, ou seja, o que
existe é a predominância de um dos modos à custa da ocultação do outro, também presente na
ação. Segundo as ficções da antropóloga britânica, a relação convenção/invenção assemelha-
se às relações pessoa/coisa, mercadoria/dádiva, no sentido de que uma contextualiza a outra,
pois derivam de práticas simbólicas.
O contraste é, por certo, uma técnica que elaboramos para fazer com que as suposições de outros “apareçam” com alguma autonomia em nossos relatos. Os capítulos que se seguem apóiam-se em algumas das técnicas de Wagner, aludindo também à sua etnografia sobre as Terras Altas. Pois continua presente a necessidade de tais artifícios, assim como de críticas desse tipo, em virtude da tenecidade da intervenção de nossas próprias metáforas (Strathern, 2006: 266).
Notamos, nesse trecho, a identificação de Roy Wagner como arcabouço teórico-
metodológico da obra, especialmente da segunda parte d’O gênero da dádiva. Se, como a
própria autora esclarece, a primeira parte pode ser entendida como uma etnografia das
práticas de conhecimento ocidentais, na busca de exorcizar nossas metáforas e pressupostos,
demonstrá-las e torcê-las, visando, ao trabalhar nesse limite, deslocá-las; a segunda parte se
preocupa “com uma diferença antropologicamente concebida entre as culturas melanésia e
ocidental, dando voltas à linguagem de uma para apresentar a outra” (Strathern, 2006: 447). A
segunda parte descreve, portanto, técnicas na conceituação das relações sociais comuns a
algumas culturas das terras altas; ou seja, trata-se de uma etnografia das práticas de
conhecimento melanésias. Strathern (2006: 332) inicia essa discussão aprofundando as
potencialidades da improvisação e invenção, fundamentada em Wagner, e continua os
próximos capítulos atenta aos níveis e consequências epistemológicas dessa posição. Com
isso, argumenta que as coisas, na Melanésia, não aparecem por si mesmas, mas precisam ser
constrangidas à existência pela ação das pessoas, e esse encadeamento trabalha criando
indivíduos como agentes e relações como causas de eventos.
Considerações Finais
Deste modo, tendo em conta o que discutimos até aqui, observamos que Wagner não
opera com dicotomias, mas com coexistência. Logo, Strathern busca neste antropólogo a
inspiração necessária para demonstrar que o pensamento melanésio opera com justaposição, e
não com classificações. Se Wagner trabalha com as categorias de diferenciação e
coletivização, Marilyn Strathern os transforma em personificação e reificação.
Onde os objetos assumem a forma de pessoas, as ações e atividades revelam necessariamente a pessoa como, por sua vez, um microcosmo de relações sociais. O que se torna oculto são as técnicas de reificação, os pressupostos convencionais através dos quais a revelação funciona. No entanto, tais convenções têm amplas conseqüências para a condução da vida das pessoas. [...] Entendo por objetificação a maneira pela qual as pessoas e as coisas são construídas como algo que tem valor, ou seja, são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação (Strathern, 2006: 267).
Ora, o próprio conceito de objetificação aparece, antes, em Wagner (2010a: 85-86):
“Invenção”, o “signo” da diferenciação, é o obviador [obviator] dos contextos e contrastes convencionais; de fato, seu efeito total de fundir o “sujeito” e o “objeto” convencionais, transformando um com base no outro, pode ser rotulado “obviação” [obviation]. Conferir ou receber associações de um contexto para o outro é uma conseqüência desse efeito, a qual proponho chamar de objetificação. [...] Uma simbolização convencional objetifica seu contexto díspar ao conferir-lhe ordem e integração racional; uma simbolização diferenciante especifica e concretiza o mundo convencional ao traçar distinções radicais e delinear suas individualidades. Mas como a objetificação é simplesmente o efeito da fusão ou obviação dos contextos sobre cada um deles [...], os dois “tipos” de objetificação são necessariamente simultâneos e recíprocos: o coletivo é diferenciado ao mesmo passo que o individual é coletivizado.
Strathern apropria-se, nesse sentido, da definição de simbolização diferenciante,
própria ao modelo de ação e de simbolização melanésia para Wagner, e aplica-a às suas
argumentações. Na interação, a necessidade de diferenciar é premente, mas ela só se tornará
visível de fato se ocorrer “dentro” das convenções corretas. Assim sendo, continua a
antropóloga (2006: 273), “a objetificação de relações como pessoas transforma-as
simultaneamente em coisas, na medida em que as relações só são reconhecidas se assumem
uma forma específica”. Como tais formas de objetificação são convencionalmente limitadas,
elas podem ser lidas como formas reificadas: contém em si a evidência do resultado
produtivo. Prossegue, então, Strathern (2006: 273) comparando as formas ocidentais e
melanésias, no estilo wagneriano:
[...] há um número muito pequeno de formas (convencionais) que servirão como evidência de que as relações foram assim ativadas. Elas precisam apresentar certos atributos. Estabelecer atributos, a natureza das coisas não é o foco explícito dessas operações simbólicas, mas está presente como uma técnica operatória implícita. Portanto, de nosso ponto de vista, a operação oculta sua base convencional. A objetificação requer necessariamente o assumir uma forma; o conhecimento precisa ser tornado conhecido numa maneira específica. Os ocidentais apreendem como simbólica a relação entre um item e aquilo que ele “expressa” [...]. Já os melanésios personificam relações [...] e, ao invés, precisam fazer aparecer a forma. Pois um corpo ou uma mente, para estar em posição de extrair um efeito de outrem, de evidenciar poder ou capacidade, precisa manifestar-se numa maneira concreta específica, que se torna, então, o gatilho indutor. Isso só pode ser feito por meio da estética apropriada.
Ora, o argumento de Strathern procurou, ao longo do livro, e, mais especificamente,
em sua segunda parte, explicitar a natureza das relações de gênero na Melanésia e as
consequências delas para homens e mulheres. Para tanto, a autora utilizou-se do contraste
entre o que denominou de personificação das relações manifestas e as técnicas de ocultação
(reificação) que determinam as formas mais adequadas por meio das quais essas relações
serão reconhecidas. Nesse raciocínio, a hipótese de Strathern (2006: 285) é que o “gênero
funciona como um instrumento de reificação, apresentando as ‘coisas’ (efeitos e eventos), por
assim dizer, como as pessoas supõem que elas devam afigurar-se”. A replicação (um dos
modos de reificação) é uma forma estética através da qual aparecem os dois modos de
personificação (troca mediada e não-mediada). Em última instância, a natureza das relações
são convenções estéticas, e o que as pessoas fazem é tornar visíveis as distinções.
“A troca transforma as relações das pessoas umas com as outras em objetos (pessoas),
de tal modo que a capacidade de criar ou ampliar certas relações representa a capacidade de
ativar quaisquer delas” (Strathern, 2006: 327). Embasada fortemente em Wagner (1977; 1972)
– usando, inclusive, o exemplo Daribi para falar da replicação –, a antropóloga inglesa atenta
que são as relações que diferenciam; a troca, nesse sentido, é essencial, pois, é no processo de
personificação que as pessoas são separadas pelas relações sociais entre elas.
Outro foco de influência fortemente marcado é a utilização do texto Analogic Kinship
(1977), de Wagner. Ao discutir eventos, atos, performances que se apresentam no singular,
Strathern (2006: 404) entende o agente como um cotovelo: “as causas são pontos de
referência para o agente que se constitui num pivô, num cotovelo que combina dentro de si
múltiplas perspectivas”. Esse cotovelo de relações é singular, cada evento transforma as
múltiplas causas de sua ocorrência numa ocasião particular. Ou seja, as relações aparecem
como causa do evento, e estão presentes, tornando o evento singular. Em suma, o evento
subsume o agente em sua capacidade como pessoa ao julgamento de outrem, um julgamento
que é estético. Essa argumentação deriva do processo que Wagner chama de “parentesco
analógico”:
As relações (as pessoas) são análogas umas às outras [...]. Mas as ações das pessoas transformam-nas em eventos únicos, de modo que uma relação pode também deslocar outra. Elas se tornam particularizadas. [...] A ativação de relações específicas em cada ocasião significa que a capacidade do agente é, desse modo, particularizada. Nesse sentido, não é replicada, mas vem à tona apenas com respeito a um outro específico, e a relação decorrente assume uma forma dual ou de sexo cruzado. Uso um exemplo de parentesco, pois são as relações desse tipo que eu definiria como baseadas em parentesco. O agente age no sentido de diferenciar essas relações e fazê-las “aparecer”, mas a forma assumida pela diferenciação é uma forma já dada. Enquanto esposa, uma mulher só pode agir como esposa; caso contrário deixa de “sê-lo”. Há, nesse sentido, uma priorização das relações que o agente pode apenas reencenar. Não é preciso dizer que tal diferenciação prévia não é inata, mas é vista sempre como resultado de atos diferenciadores específicos anteriores [...] (Strathern, 2006: 406-407).
Como a própria autora assume, somos confrontados, n’O gênero da dádiva, com uma
verdadeira pletora de termos. Utilizando termos seus (replicação, substituição), de Wagner
(objetificação, diferenciação, invenção e convenção, analogia), e outros com significados
fortemente carregados no pensamento ocidental de outra forma e em outro contexto analítico
(como seu uso de reificação, gênero, ação, agente e pessoa), Strathern os considera, todos,
como pontos privilegiados por meio dos quais se podem pensar os demais. Troca mediada e
não mediada, convenção e invenção, replicação e substituição, personificação e reificação,
socialidade, pessoas: cada um desses termos possibilita refletir sobre o outro termo; ele é um
ponto de partida para expansões, contrastes e contrações um dos outros (Strathern, 2006:
282).
As metáforas de desconstituição ocorreram com freqüência ao longo de minha exposição: destacamento, eliminação, divisão. Eles se verificaram em resposta à ficção de convenção/invenção, introduzida no capítulo 7, e às proposições de Wagner (1978) sobre as práticas de conhecimento melanésias. O conhecimento não é “construído” numa forma: as formas são desmontadas para revelar sua composição. A análise melanésia, se é que assim se pode chamá-la, conduz os indivíduos a testar seus efeitos sobre os outros, a experimentar suas capacidades, improvisando e inovando, pois as capacidades só podem ser conhecidas segundo a maneira pela qual são reveladas. Mas o que os agentes revelam com isso é a sua constituição como pessoas. Tais processos de desconstituição não resultam, como se poderia supor, numa coleção de fragmentos; resultam numa singularidade concebida como uma unidade interna (Strathern, 2006: 419-420).
Enfim, se o livro parece ser repleto de hesitações, de “como se”, “por assim dizer”,
“talvez”, essas oscilações foram propositais, ou melhor, parte fundamental da estratégia
analítica adotada pela autora, que é, como vimos, embasada nos escritos de Roy Wagner. A
autora busca, nessa medida, ressaltar, mostrar a diferença que é, essa sim, base para seu
método comparativo. Por conseguinte, a análise apresentada n’O gênero da dádiva não
procura situar-se como a apresentação das “ideias melanésias”, tampouco se apoia numa
descrição supostamente “fenomenológica” dos fatos e das coisas “tal como aparecem aos
atores”. Ao contrário, a obra de Marilyn Strathern assume seu ponto de vista e suas
preocupações antropológicas e feministas, logo, ocidentais, do que poderiam ser as ideias
melanésias caso elas se aparecessem nesses termos. Ela mesma resume seu intento:
[...] tentei comunicar as práticas de conhecimento melanésias como se elas fossem uma série de análises que possibilitam explanações sobre a maneira segundo a qual as coisas poderiam ser. [...] Procurei mais propriamente expandir as possibilidade metafóricas de nossa própria linguagem de análise. Isso significou analisar as metáforas elas mesmas, nesse caso derivadas da ciência social ocidental, como se elas pudessem ser decompostas, desmontando-as para reutilizar seus componentes. Significou também conjugar uma narrativa da vida melanésia que, sendo sintética, é também, nesse sentido, uma ficção (Strathern, 2006: 445-446).
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