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A IDEOLOGIA DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO CONTEXTO DO
NEOLIBERALISMO E DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL
BATISTA, Roberto Leme (Prof. do Departamento de História da FAFIPA/Paranavaí, doutorando em Ciências Sociais)
ALVES, Giovanni (Dr. em Ciências Sociais, prof. Livre Docente na UNESP-Marília)
Resumo
Este trabalho apresenta o resultado parcial da pesquisa sobre a ideologia da educação
profissional que se configurou na nova institucionalidade decorrente da reforma neoliberal
empreendida nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Contexto histórico
em que se impôs uma afirmação ideológica, segundo a qual, haveria uma importância da
educação básica para a formação profissional dos indivíduos. Nesse sentido, ganha posição
uma visão segundo a qual haveria uma centralidade da educação, sobretudo porque a esta
caberia a formação da força de trabalho, desenvolvendo as "competências" para atender as
necessidades do mercado. Nas três últimas décadas verifica-se a ocorrência de profundas
transformações de natureza política, econômica e social. Contexto da mundialização do
capital, e é no lastro de seu metabolismo, que se funda a reestruturação produtiva, processo de
extrema complexidade e desdobramentos heterogêneos. Impõe-se a ideologia da nova
educação profissional que tem na noção de competências e na empregabilidade sua retórica
principal. O mundo do trabalho passa por profundas transformações capazes de mudar o perfil
da classe trabalhadora, pois o capital ao responder à crise de acumulação e valorização
desenvolve novas formas de gestão e organização da produção, gerando um processo de
acumulação flexível. Essa ideologia uniformiza as mudanças no sistema produtivo, fazendo
crer na universalização do caráter sistêmico da reestruturação produtiva.
Palavras-Chave: Educação Profissional; Reestruturação produtiva; Neoliberalismo; Reforma.
Introdução
Nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, verifica-se a ocorrência de
profundas transformações de natureza política, econômica e social. Este é o contexto da
mundialização do capital, e é no lastro de seu metabolismo, que se funda a reestruturação
2
produtiva, processo de extrema complexidade e desdobramentos heterogêneos. Nesse contexto
se impõe a ideologia da nova educação profissional que tem na noção de competências e na
empregabilidade sua retórica principal.
A mundialização do capital é o processo de desenvolvimento do sistema do capital nas
últimas décadas, com a predominância do capital financeiro. Segundo Chesnais (2005, p. 21)
esse processo firmou e consolidou a mundialização como um “regime institucional
internacional do capital concentrado conduziu a um novo salto na polarização da riqueza”,
acentuando “a evolução dos sistemas políticos rumo à dominação das oligarquias obcecadas
pelo enriquecimento e voltadas completamente para a reprodução da sua dominação”. Nesse
sentido, a acumulação financeira, corresponde à “centralização em instituições especializadas
de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não consumidas, que têm por encargo
valorizá-los sob a forma de aplicação em ativos financeiros – divisas, obrigações e ações –
mantendo-os fora da produção de bens e serviços” (IDEM, p. 37).
Nesse contexto o mundo do trabalho passa por profundas transformações capazes de
mudar o perfil da classe trabalhadora, verifica-se que o capital ao responder à crise de
acumulação e valorização desenvolve novas formas de gestão e organização da produção,
gerando um processo de acumulação flexível1.
Esse processo acarreta uma drástica heterogeneização, complexificação e precarização
do trabalho, aumentando a exploração sobre o contingente feminino e a subproletarização, que
se expressa “na expansão do trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado,
„terceirizado‟” (ANTUNES, 1995, p. 41). Isto confirmaria a tendência do capital em degradar
e desfigurar o trabalho concreto que Marx já apontava nos “Grundrisse” ao afirmar que o
capital ao revolucionar a base técnica tendia a tornar supérfluo o trabalho e, no limite, destruí-
lo.
1 Para Harvey a acumulação flexível constitui-se em um confronto com a rigidez do fordismo, a acumulação
flexível é um fenômeno que: “... se apóia na flexiblidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos
produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos,
novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente
intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (...) O trabalho organizado foi solapado pela
reconstrução de focos de acumulação flexível em regiões que careciam de tradições industriais anteriores e pela
reimportação para os centros mais antigos das normas e práticas regressivas estabelecidas nessas novas áreas. A
acumulação flexível parece implicar níveis relativamente altos de desemprego “estrutural” (em oposição a
“friccional”), rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o
retrocesso do poder sindical - uma das colunas políticas do regime fordista” (HARVEY, op cit, p. 140-41).
3
A partir da década de 1970 disseminaram-se várias formas de organização da produção
e do trabalho no Ocidente. Contudo, foram as experiências do trabalho flexível desenvolvidas
no Japão, que se disseminaram com maior amplitude em oposição aos antigos dilemas
taylorista/fordista. Nos anos 80, o ohnismo ou toyotismo2 tornou-se referência no ocidente
capitalista à medida que concebia e estruturava a organização da produção e seu fluxo,
eliminando os estoques de linha, racionalizando o uso de materiais e equipamentos e
promovendo o enxugamento de pessoal. Enfim, este novo sistema centrado no aumento da
produtividade, busca ofertar uma maior variedade de produtos com alto padrão de qualidade a
partir da fábrica mínima ou fábrica enxuta (CORIAT, 1994).
Portanto, nesse contexto o capital impõe a reestruturação produtiva e com ela a
afirmação ideológica, segundo a qual, haveria uma importância da educação básica para a
formação profissional dos indivíduos. Nesse sentido, ganha posição uma visão segundo a qual
haveria uma centralidade da educação, sobretudo porque a esta caberia a formação da força de
trabalho, desenvolvendo as “competências” para atender as necessidades do mercado.
O complexo de reestruturação produtiva é um processo que tem gerado emaranhado de
confusão acerca dos chamados “atributos pessoais” requeridos pelas empresas. Não há
consenso, muito menos clareza sobre o novo perfil de trabalhador exigido no contexto da
reestruturação produtiva. Muitas análises apresentam os “modelos” de formação profissional,
ditos capazes de gerar os assim chamados “novos atributos”, como passaporte para a
construção, desenvolvimento e consolidação da cidadania, não questionam a visão “segundo a
qual a sociabilidade é travestida em conjuntos de atitudes e comportamentos sociais que
passam a constituir, junto com atributos técnicos e cognitivos, o novo rol de „qualificações
profissionais‟ demandados pela empresa „moderna‟” (SILVA JÚNIOR, FERRETTI E
GONZÁLEZ, 2001, p. 26).
Na verdade, há uma concepção ideológica preconceituosa que se dissemina na
sociedade, pressupondo que as atitudes e habilidades – ou os novos atributos – que enfatizam
o “aprender a aprender”, “aprender a pensar”, “aprender a ser”, dentro dos limites
colocados pelo capital no contexto da mundialização, representa uma revolução na história do
conhecimento. É como se antes – da pedagogia do “aprender a aprender” - os trabalhadores
não soubessem aprender, pensar e ser. Essa ideologia explicita a idéia segundo a qual somente
2 “Modelo” que, desenvolvido na Toyota a partir de 1953, constitui-se enquanto paradigma no processo de
4
“a educação funcionalista, subordinada aos interesses do capital, oferece ao trabalhador as
condições cognitivas para estar apto a pensar, a ser crítico, a resolver problemas, a situar-se,
enfim, de forma inteligente, ativa e participativa no moderno mundo do trabalho”
(RUMMERT, 1998, p.29).
As exigências de novas qualificações postas pelas complexas e heterogêneas inovações
tecnológicas e organizacionais, no contexto da reestruturação produtiva, estão diretamente
relacionadas com o contexto histórico, tecnológico e social em que se inserem. Numa tentativa
de apreender essas exigências, Ana Teixeira afirma que apesar dos múltiplos aspectos e da
complexidade envolvidos nesta questão, é inquestionável a existência das mudanças nas
qualificações requeridas para o trabalho industrial. Nesse sentido, afirma:
Essa mudança poderia ser sintetizada como perda de importância das habilidades manuais em
favor das habilidades cognitivas (leitura e interpretação de dados formalizados; lógica funcional e
sistêmica; abstração; dedução estatística; expressão oral, escrita e visual) e comportamentais
(responsabilidade, lealdade e comprometimento; capacidade de argumentação; capacidade para o trabalho em equipe; capacidade de iniciativa e autonomia; habilidade para negociação. Essas novas
qualificações poderiam ser organizadas em três grandes grupos: novos conhecimentos práticos e
teóricos, capacidade de abstração, decisão e comunicação, e qualidades relativas à
responsabilidade, atenção e interesse pelo trabalho (TEIXEIRA, 1998, p. 177-8).
Segundo Machado (1996, p. 45) o processo em curso provoca um esforço sinergético
que fomenta a capacidade de cada trabalhador exercer atividades diferentes, de aceitar
mudança contínua nos processos produtivos, de se adaptarem às exigências de garantia do
permanente estado de alerta. Nesse sentido, a autora afirma que a nova pedagogia do capital
pretende realizar simultaneamente no cotidiano fabril três objetivos fundamentais:
o aumento da produtividade, a formação técnica e a conformação normativa de comportamentos,
atitudes e valores. Sua lógica se orienta pela busca da maximização da intensificação do trabalho,
da eliminação da porosidade entre o aprender e o fazer, da flexibilização do sistema de ensino-
aprendizagem, visando alcançar ganhos significativos com a redução de custos, com o feedback de
retroalimentação, fundamental ao desenvolvimento de ações corretivas (Ibid., p. 49).
O processo de “modernização” decorrente da reestruturação produtiva é contraditório,
pois, ao promover as mudanças no processo de trabalho, tornando-o mais complexo e menos
repetitivo do que o trabalho especializado, de conteúdos simples e demasiadamente repetitivos
na realização das tarefas, dos antigos postos de trabalho fixos, da forma de organização
taylorista-fordista, para uma organização flexível do trabalho com rotatividade nas funções,
passa a demandar maior participação e envolvimento do trabalhador no interior da empresa,
pois, haveria maior interesse deste na realização do trabalho com menos monotonia e
reestruturação produtiva verificado no Ocidente a partir da década de 1980.
5
repetição, assim como com menor riscos de acidente de trabalho. Entretanto, esse processo
pode resultar “em novas doenças profissionais, maior intensificação do trabalhador e desilusão
operária com a crescente concorrência entre os grupos de trabalho” (POCHMANN, 1998, p.
9).
Além disso, é necessário considerar que a denominada autonomia do trabalhador nesse
processo é extremamente relativa, pois, a participação e engajamento do trabalhador são
estimulados apenas em torno dos interesses da empresa. Portanto, sua participação é
estimulada, manipulada e controlada. O capital através dos Círculos de Controle de Qualidade
absorve e incorpora apenas as sugestões que forem do interesse da empresa. Que autonomia
fantasiosa é essa que impõe ao trabalho a jornada, o salário, o quê e como fazer?
Nesse processo há uma frustração do trabalhador, pois, à medida que se exige dele
maior escolaridade, maior qualificação etc., gera-se a expectativa de uma certa satisfação no
trabalho. Entretanto, o que se observa é o pânico em torno do desemprego, da possibilidade
concreta da demissão a qualquer momento, do salário baixo, etc. Há ainda a angústia diante
das disputas que os trabalhadores travam entre si para manterem-se no emprego e para serem
promovidos na empresa, já que a solidariedade de classe anda em baixa, o que vale é a
exacerbação do individualismo.
Essa ideologia uniformiza as mudanças no sistema produtivo, fazendo crer na
universalização do caráter sistêmico da reestruturação produtiva. Documentos das agências
multilaterais, como o Banco Mundial, UNESCO, CEPAL, OIT/CINTERFOR recomendam,
financiam e supervisionam as políticas educacionais dos países da periferia, que procuram
adaptar-se de forma subalterna à mundialização do capital.
Essas agências exercem um papel hegemônico, pois suas políticas e ações são
endossadas nos âmbitos internos desses países por amplos setores da sociedade. Ou seja, não
só os Estados encampam as “recomendações”, mas importantes organizações da sociedade,
sobretudo as do capital, como é o caso da Confederação Nacional da Indústria, no Brasil,
encampam e reproduzem em seus documentos as referidas “recomendações”.
Desenvolve-se diante de um acirrado debate sobre as novas exigências de qualificação
da força de trabalho geradas pelas mudanças profundas que atingiram o mundo do trabalho3. O
3 Remeto os interessados em aprofundar o debate sobre as transformações do mundo do trabalho aos seguintes
autores: Alves (2000), Antunes (1995 e 1999), Gounet (1999), Coriat (1994) e Harvey (1994).
6
debate atual no âmbito da sociologia do trabalho e da educação retoma antigas questões sobre
o problema da qualificação, ao mesmo tempo, em que novas questões devem ser investigadas.
A problemática das novas qualificações profissionais: Crise do trabalho ou crise do
emprego?
Podemos dizer que a chamada crise do trabalho se constitui na verdade em uma crise
do emprego assalariado. O desemprego e a precarização são as expressões mais visíveis do
capitalismo financeirizado.
a chave para o entendimento da especificidade do novo modelo continua sendo a transformação das relações sociais de produção, caracterizadas pela transição da expansão material para a expansão
financeira e do comando industrial nacional para o comando financeiro global sobre os processos
de valorização e de acumulação do capital. E isso envolve mudanças na base tecnológica, na
estrutura organizacional das empresas, na organização do processo de trabalho e no sistema salarial
(CASTRO, 2001, p. 2).
Peña Castro parte da premissa de que no contexto da mundialização financeirizada há
duas hipóteses extremas sobre as perspectivas do emprego, quais sejam: “fim do trabalho” ou
“pleno emprego”. São extremas porque não encontram guarida e sustentação nos fatos e muito
menos “nas propostas das forças sociais organizadas” (PEÑA CASTRO, 2001, p. 3). Razão
pela qual o autor volta sua atenção para três aspectos da dinâmica capitalista no atual contexto
histórico:
i. o tipo de tecnologias e de organização do processo de trabalho adotado para elevar a produtividade e obter maiores volumes de produção com menor número de trabalhadores; ii. a estratégia empresarial de
flexibilização ou precarização das relações de trabalho, que sustenta a carreira pela redução dos custos, atingindo níveis extremos nos países dependentes; iii. o regime econômico e político que dá sustentação ao novo modelo de inserção do país no capitalismo mundial, o qual impõe às periferias uma divisão do trabalho que oferece poucas ou nulas perspectivas de ampliação das produções mais empregadoras (IBID.).
Peña Castro afirma ser necessário deixar de lado as especulações em torno das
hipóteses extremas, pois, neste contexto, o que parece decisivo para a evolução do emprego é
a vontade política das classes que vivem do seu trabalho. “A posição concreta destas últimas
flutua entre a passividade e o pessimismo resignado e a oposição mais ou menos ativa, ainda
minoritária, devido ao déficit de organização e consciência política do que está em jogo”
(IBID., p. 4).
7
O complexo de reestruturação produtiva instaura uma sociabilidade que difere da
sociabilidade taylorista-fordista, por meio da desconstrução e desconcentração das classes
trabalhadoras. Desenvolve-se uma nova subsunção real do trabalho ao capital, um processo de
controle, disciplina e vigilância de novo tipo. A ideologia do toyotismo convoca os
trabalhadores a serem parceiros, a associarem-se ao capital, a “vestir a camisa” da empresa, a
ser um “cidadão produtivo” e também um “consumidor consciente e exigente”, afinal, como
afirma uma das ideólogas do PLANFOR “cidadão consciente, consumidor exigente,
trabalhador reivindicativo são facetas praticamente impossíveis de se dissociar no indivíduo”
(LEITE, 1997, p. 162). O capital exige disciplina, vontade, envolvimento e participação do
trabalhador. Nesse sentido, “o trabalhador de que o capital necessita é aquele que é capaz de
dar resposta, pronta e adequada, às situações que possam ocorrer no ato produtivo. Requer-se,
portanto, o trabalhador polivalente” (DIAS, 1999, p. 125). Razão pela qual, Dias acrescenta:
Ganhar corações e mentes dos trabalhadores significa, portanto, desestruturar-lhes a identidade de
classe. A perspectiva do „desaparecimento‟ das classes, a proposta implícita de um pacto social
automático no cotidiano e, portanto, despolitizado e despolitizante, requer não a mera reafirmação
de dogmas, mas a construção da identidade das classes trabalhadoras, respeitada a sua diversidade,
conhecidas as suas lutas, linguagens e tradições (IBID).
Em suma, esse contexto é capaz de provocar mudanças que atingem o universo
político, econômico e cultural articulando mudanças nas bases técnico-científicas – ou seja, na
base física - com novas formas de organização e gestão da produção. Esse fenômeno acarreta
mudança na forma de ser dos trabalhadores, constituindo-se num processo real de captura e
manipulação da subjetividade da classe-que-vive-do-seu-trabalho, alterando sua forma de ser
“no nível da produção, ou, mesmo no plano administrativo, baseado numa „temporalidade
social‟ - em um contexto de uma nova constelação de relações sociais e uma nova cultura
institucional da empresa -, mas que se embasa num „tempo real‟ e em um „conhecimento por
simulação‟” (SILVA JÚNIOR, 2001, p. 259).
A reorganização do processo produtivo constitui-se numa articulação de ações das
classes dominantes, contra o trabalho, com repercussões em todas as esferas do ser social. As
mudanças não se operam apenas no âmbito do processo de trabalho, é necessário vasculhar as
relações existentes entre reestruturação produtiva, neoliberalismo, reforma do Estado e outras
ações do capital.
8
O complexo de reestruturação produtiva, fundado no toyotismo como momento
predominante, implica em alterações radicais no mundo da produção à medida que impõe um
novo paradigma organizativo da própria empresa, “tais como o just-in-time/kanban, o controle
de qualidade total e o engajamento estimulado, levado a efeito pelas corporações japonesas,
[que] assumiram nova significação para o capital, não mais se vinculando às suas
particularidades concretas originárias” (ALVES, 2000, p. 31-2).
As mudanças na base física são decorrentes da incorporação dos avanços científicos
que resultam em plantas industriais com equipamentos complexos e sofisticados, de base
microeletrônica. Essa realidade exige trabalhadores que possuam não apenas habilidade
específica para sua operação, pois é necessário saber prever eventuais falhas, fazer reparos de
emergência e tomar decisões relativas à produção, para evitar que as atividades produtivas
sejam interrompidas, provocando prejuízos ao capital.
Esse contexto gera um processo em que do ponto de vista econômico, há uma perfeita
sintonia entre o discurso governamental e empresarial no que diz respeito à relação entre
educação, produtividade, competitividade e globalização.
Há neste sentido, uma reincorporação da teoria do capital humano, agora uma
neoteoria, pois, para o pensamento hegemônico a relação entre educação, produtividade e
competitividade é inquestionável. A retórica dominante no âmbito do Estado e das instituições
dos empresários e também dos trabalhadores aponta para o fenômeno do déficit educacional
como fator de estrangulamento do crescimento econômico.
Nesse contexto o que importa é adaptar-se e integrar-se ao mercado global.
Documentos produzidos em nível de governo e de instituições dos empresários e também dos
trabalhadores dão conta da necessidade de elevar a escolaridade e o nível de qualificação dos
trabalhadores, para que estes possam operar os equipamentos modernos, de base
microeletrônica, capazes de melhorar a competitividade dos produtos do país. O saber e o
conhecimento exigido dos trabalhadores são apontados como o saber escolar, que, segundo o
discurso governamental, empresarial e sindical são fundamentais para a competitividade e a
produtividade.
Nesse contexto atribui-se uma centralidade à educação básica, que passa a ser tratada
como prioridade, pois sem ela não se produz o saber necessário exigido pela produção. Ao
tratar o problema da educação básica, o pensamento hegemônico estabelece também qual a
9
qualificação profissional que requisitam, que perfil de homem e de trabalhador o mercado
exige.
O fato é que a realidade, construída pela reestruturação produtiva, está exigindo um
trabalhador de novo tipo. Segundo a literatura hegemônica, a nova base técnica e as novas
formas de gestão exigem que o trabalhador seja capaz de aliar qualificação (saber-fazer) a um
conjunto de atributos pessoais (saber ser). A lógica que impera é o pressuposto ideológico da
pedagogia do “aprender a aprender”, fundado na pedagogia e/ou ideologia do modelo de
competência.
Teixeira (1998) e também Ramos (2001) mostra-nos que o debate sobre formação
profissional é marcado por indefinições, pois não existe consenso em relação a critérios para a
definição do que seja qualificação. O debate sobre este tema, após a década de 1950 e,
sobretudo no contexto atual, produziu uma ampla literatura, que nos foi impossível abordar
nos limites desse trabalho.
Toda essa panacéia que atinge o mundo do trabalho e da educação não pode deixar de
estabelecer seu vínculo com o complexo de reestruturação produtiva, que tem no toyotismo
seu momento predominante. Pois, a ideologia das competências aproxima-se da qualidade
total, já que ambas exigem um novo perfil de trabalhador que deve ser polivalente e
multifuncional, possuidor de comportamentos e atitudes – coquetel individual – capazes de
levá-lo a agir com “autonomia” diante da realidade em geral.
Portanto, é no contexto da globalização como mundialização do capital que se
desenvolve o regime de acumulação flexível, fundado no complexo de reestruturação
produtiva, cujo „momento predominante‟, de caráter organizacional, é caracterizado por um
„novo modelo produtivo‟, o toyotismo (ALVES, 2002).
Alves destaca ainda que:
É por pertencer à lógica estrutural da mundialização do capital - que não está voltada para o
crescimento e políticas de pleno emprego – que o toyotismo e sua ideologia de formação
profissional (a empregabilidade) tendem a frustrar qualquer promessa integradora do mundo do
trabalho, tão comum na era do capitalismo fordista pós-guerra.
Em nosso entendimento a noção de competência é uma das formas pela qual o capital,
no contexto de sua mundialização, busca capturar de forma manipulada a subjetividade do
trabalho. A noção de competência vincula-se à perspectiva da reestruturação produtiva de
10
caráter flexível. Ou seja, a noção de competência encaixa-se perfeitamente com a desenvoltura
do trabalhador polivalente e multifuncional exigido pelo toyotismo.
A noção de competência
A noção de competência aparece nas diferentes abordagens como um termo que
substitui a categoria conhecimento pelos alardeados jargões dos saberes – saber, saber fazer,
saber ser – espraiados pelos documentos dos organismos bilaterais (UNESCO, BIRD, BID,
OIT/CINTERFOR).
Na perspectiva da UNESCO o trabalhador no contexto da reestruturação produtiva
deve possuir competências não voltadas para um posto específico de trabalho, pois, neste
contexto, não se exige apenas o “saber-fazer” do trabalhador, o que se exige são características
gerais de caráter comportamentais, as denominadas atitudes, ou seja, “saber-ser”. Esta retórica
está explicitada no Relatório da UNESCO4, que retoma os relatórios anteriores, recuperando
conceitos e propostas daquela instituição. Este relatório enfatiza a importância do capital
humano, ou seja, o investimento educativo voltado para a produtividade.
O referido relatório dá muita importância aos documentos do Banco Mundial, o que é
revelador da articulação entre as duas instituições. No capítulo quatro desse relatório
deparamos com os denominados quatro pilares da Educação, que seriam as quatro grandes
necessidades que a educação deve responder no século XXI: aprender a conhecer, aprender a
fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser (DELORS, 1996, p. 90).
O capítulo quatro do Relatório da UNESCO possui um sub-ítem denominado “Da
noção de qualificação à noção de competência”, onde se explicita que: “Na indústria
especialmente para os operadores e os técnicos, o domínio do cognitivo e do informativo nos
sistemas de produção, torna um pouco obsoleta a noção de qualificação profissional e leva a
que se dê muita importância à competência profissional...” (IBID, p. 93, grifo nosso).
Esse relatório não deixa dúvidas o quanto essa ideologia vincula-se ao toyotismo, pois,
tomando-se por base “as empresas japonesas: uma espécie de taylorismo ao contrário”,
verifica-se a exigência de uma qualificação “...que se apresenta como uma espécie de coquetel
individual, combinando a qualificação, em sentido estrito, adquirida pela formação técnica e
4 DELORS, J. Op cit.
11
profissional, o comportamento social, a aptidão para o trabalho em equipe, a capacidade de
iniciativa, o gosto pelo risco” (IBID, p. 94, grifo nosso).
Verifica-se, pois, que o referido relatório da UNESCO possui um viés toyotista e uma
vasta capacidade para propagar seus termos, conceitos e pressupostos ideológicos, sendo
capaz de influenciar não só as políticas de educação básica, superior e profissional no âmbito
do MEC, mas também a Educação Profissional no âmbito do MTE/SPPE, ou seja, o
PLANFOR5. Já que, o MTE/SPPE em sintonia com o relatório da UNESCO, entende a
dimensão da qualificação como competência mais que um estoque de saberes (saber-fazer e
saber-ser). Nesse sentido, entende o MTE que as referidas competências norteiam os
denominados novos perfis da qualificação, exigindo que o trabalhador seja capaz de:
...incluir necessariamente, a capacidade de enfrentar o imprevisto e o imprevisível, de ir além do
domínio de tarefas prescritas (...) ou seja, a bagagem de conhecimentos e de habilidades tenderia a
perder importância, valorizando-se, em escala crescente, a capacidade de domínio ou condução de
situações imprevistas – „acontecimentos‟ ou „eventos‟ (BRASIL, 1999, p. 18).
Com a universalização da reestruturação produtiva, tendo o toyotismo como momento
predominante, ocorreu a propagação de conceitos sobre os quais se funda a produção flexível,
tais como: reengenharia, controle de qualidade total, círculo de controle de qualidade, just-in-
time, kanban, kaisen etc. Concomitantemente a esse processo, ocorreu o bombardeio
ideológico dos conceitos de competência e de empregabilidade num fenômeno em que o
Estado brasileiro, através do MTE/SPPE e do MEC/SEMTEC, das instituições empresariais,
fundamentalmente através do sistema S6, e de uma parte do movimento sindical através das
Centrais, adaptam-se à lógica dos organismos internacionais (FMI, BIRD, BID, UNESCO,
OIT/CINTERFOR), incorporando seus termos, conceitos e ideologias, numa demonstração de
subalternidade e dependência do capitalismo periférico no contexto da mundialização do
capital.
5 Em nosso entendimento apesar do PLANFOR ter sido um programa de formação profissional dos governos
FHC, portanto, em tese expirou-se em 2002. Entretanto a política de formação profissional desenvolvida pelo MTE, no governo Lula não trouxe mudanças significativas em relação ao PLANFOR, razão pela qual afirmo que
esses pressupostos estão ainda em vigor. 6 O sistema S é o conjunto de instituições assistenciais e educacionais, de caráter não-governamental,
administradas pelas entidades patronais dos setores da indústria, comércio, transporte e agricultura. O sistema S
desenvolve atividades de formação profissional, educação formal, ação social e cultural e é composto pelo
Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial - SENAC, Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial -
SENAI, Serviço Social do Comércio - SESC, Serviço Social da Indústria - SESI, Serviço Nacional do Transporte
- SENAT, Serviço Social do Transporte - SEST e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas -
SEBRAE. Esse sistema tem origem na criação do SENAI e o SENAC pelos decretos-leis n.º 4.048, de 22 de
janeiro de 1942, e n.º 8.621, de 10 de janeiro de 1946.
12
De tal forma que, no contexto da reestruturação produtiva, sob a lógica do toyotismo e
da mundialização do capital, saber ser é mobilizar-se e colocar-se por inteiro à disposição do
objetivo do capital, ou seja, o trabalhador deve estar sempre apto para realizar múltiplas
tarefas, ser polivalente, multifuncional e estar a serviço da rentabilidade e valorização do
capital, por meio do engajamento e da participação subalterna em torno das necessidades da
empresa. Competente é aquele que se comporta de forma a saber ser de acordo com os
interesses da empresa, enquadradando-se de forma subalterna na perspectiva da valorização do
capital.
A noção de competência não é uma coisa nova, mas revigora-se com a acumulação
flexível, que têm como momento predominante o toyotismo e a produção enxuta, seus
princípios e nexos organizacionais. Nos últimos tempos esta noção tem sido estrategicamente
chave para a organização capitalista do trabalho, mas, também da educação voltada para o
mercado. Portanto, o conceito de competência vincula-se à chamada pedagogia do “aprender a
aprender” e às ilusões da assim chamada sociedade do conhecimento (DUARTE, 2001).
A noção de competências é portadora de um rol de habilidades – coquetel individual -
que a educação do trabalhador deve levá-lo a adquirir e desenvolver. Nesse sentido, a noção
de competências articula-se com os pressupostos pós-modernos, tendo nesse um fundamento
conceitual que explica e justifica as exigências postas pelo mundo da produção ao trabalho e à
educação.
Pois é na captura da subjetividade que ocorre o envolvimento manipulatório do
trabalhador, que têm que ser polivalente e multifuncional, do contrário, de acordo com a
ideologia do toyotismo, sua competência estará comprometida. Aqui, mais uma vez
recorreremos a Alves que, tomando como base as análises de Coriat (1990), nos esclarece:
Na verdade, a preocupação fundamental do toyotismo é com o controle do elemento subjetivo no
processo de produção capitalista, isto é, com a captura da subjetividade do trabalho pela produção
do capital e com a „manipulação‟ do consentimento do trabalho através de um conjunto amplo de
inovações organizacionais, institucionais e relacionais no complexo de produção de mercadorias,
caracterizadas pelos princípios de „automação‟ e de „auto-ativação‟, ou ainda, pelo junst-in-
time/kan-ban, a polivalência do trabalhador, o trabalho em equipe, produção enxuta, os CCQ‟s, programas de Qualidade Total, iniciativas de envolvimento do trabalhador, a inserção engajada dos
trabalhadores no processo produtivo (ALVES, 2000, p. 5).
Aqui, vemos que a subjetividade é objetivada/coisificada nas coisas do capital.
Entretanto, no campo teórico, os apologetas do sistema do capital promovem a radicalização
do relativismo pós-moderno, introduzindo conceitos do campo artístico em outras áreas. É o
13
que vemos no caso da educação profissional, quando a noção de estética da sensibilidade, de
ética da identidade e de princípios da autonomia aparece como arcabouço ideológico dos
pareceres 15/98 e 16/99.
Portanto, podemos afirmar que os ideólogos da educação profissional encrustados no
Conselho Nacional de Educação, responsáveis pela consolidação legal da noção de
competências no Brasil, mesclam os textos legais, tornando-os miscelâneos e ecléticos, porém
com uma predominância da ideologia pós-moderna que fragmenta o pensamento e radicaliza o
julgamento estético fundado no individualismo.
Nesse sentido, recorremos a Silva Jr. e González (2001, p. 56), que afirmam:
A prática que se encontra como central na noção de competências parece não considerar a
racionalidade social, que dá sentido à organização social existente. Opera, dessa maneira, no âmbito da ideologia/política/cultura, legitimando os processos de reprodução social, que vêm
coisificando o ser humano, ao mesmo tempo, que legitima essa ordem social historicamente
produzida. Opera, portanto, a naturalização de uma substância histórica, contribuindo para a
produção da atual forma fenomênica do capitalismo.
Esses autores afirmam com propriedade que a noção de competências assume um
abstracionismo como conteúdo, pois, “parece existir uma inversão, uma lógica fechada e
idealista que pretende emoldurar a história em desenvolvimento em seu cotidiano, por meio
das práticas sociais, tomadas fenomenologicamente” (p. 67). Apontam ainda que nessa
ideologia de formação ocorre “uma forte dimensão individualista, [e que], o „coletivismo‟,
como um traço cultural cede lugar ao individualismo” (p. 69). Silva Jr. e González indicam
ainda que nesse contexto ocorre uma adaptabilidade cognitiva às transformações em curso nos
últimos trinta anos, que já estariam postas desde sempre no capitalismo e em seu progresso ou
na reprodução social da vida humana. Uma adaptação funcionalista, que não põe em questão a
naturalização da sociedade na consciência humana, que não põe em questão uma natureza
emigrada para a consciência humana, mas que a molda para pôr em movimento o progresso ou
a reprodução social, antes do que a humanidade que o precede (p. 69).
A ideologia da nova educação profissional no Brasil
No Brasil a ideologia da nova educação profissional, presente em diversos documentos
oficiais que consolidam a legislação da educação e a nova institucionalidade da educação
14
profissional, apresenta as denominadas competências como requisitos exigidos da força de
trabalho como uma espécie de “consenso nacional”.
Esse “consenso” faz com que a formação para o trabalho exija níveis cada vez mais
altos de educação básica, geral, não limitada à aprendizagem de algumas habilidades técnicas.
Essa formação pode inclusive se dar em cursos de curta duração voltados para a adaptação do
trabalhador às oportunidades do mercado, desde que associados à promoção de níveis
crescentes de escolarização regular. Essa ideologia afirma que a educação profissional não
pode ser concebida apenas como uma modalidade de ensino médio, mas deve constituir-se
num processo de educação continuada, que perpassa toda a vida do trabalhador.
A ideologia da nova educação profissional apresenta a qualificação exigida do
trabalhador, no contexto da reestruturação produtiva como um conjunto de atributos
individuais, de caráter coletivo ou social, resultante de escolarização e das experiências de
trabalho7.
A ideologia da nova educação profissional, no Brasil, na década de 1990 trouxe como
“novidade” a noção de competências, que não é um conceito presente no arcabouço vocabular
dos ideólogos reformadores da educação, sobretudo a profissional, até meados da década de
1990, pois não está presente na Lei nº 9394/96, a LDB.
Foi com o Decreto nº 2.208/97 que se regulamentou o § 2º do artigo 36 e os artigos 39
a 42 da Lei n.º 9.394/96, ou seja, normatizou a legislação pertinente à educação profissional,
que a noção de competência passa a fazer parte de forma persistente e sistemática no ideário
ideológico dos reformadores. O artigo 6º do referido decreto afirma que haverá cursos
voltados para o desenvolvimento de “habilidades e competências básicas, por área
profissional” e também por “habilidades e competências específicas”.
Além do decreto 2.208/97, os pareceres CNE/CEB8 números 17/97, 15/98 e 16/99 e as
resoluções CNE/CEB números 03/98, 04/99, também são importantes documentos nos quais a
noção de competências aparece como ordenadora do ensino técnico profissional de nível
médio. A resolução CNE/CEB nº 04/99 e o parecer CNE/CEB nº 16/99 definem como
competências “...a capacidade de mobilizar, articular e colocar em ação, conhecimentos,
7 Invariavelmente essas exigências referem-se à necessidade da flexibilidade de raciocínio, autonomia intelectual,
pensamento crítico, iniciativa própria, capacidade de abstração e de colaboração, habilidades para o trabalho em
equipe e interação com os pares, vaticinando com a necessidade de espírito empreendedor calcado na
subjetividade psicologizante. 8 CNE - Conselho Nacional de Educação e CEB – Câmara de Educação Básica.
15
habilidades e valores necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades
requeridas pela natureza do trabalho”.
Os reformistas no Conselho Nacional de Educação afirmam no parecer 15/989 que o
indivíduo tem necessidade de adaptar-se ao mercado através do desenvolvimento de
competências e habilidades, pois este exige a capacidade de acessar, selecionar e processar
informações num mundo em que o conhecimento está cada vez mais integrado e que
“integradas são também as competências e habilidades requeridas por uma organização da
produção na qual criatividade, autonomia e capacidade de solucionar problemas serão cada
vez mais importantes, comparadas à repetição de tarefas rotineiras (BRASIL, 1998, p. 19-20).
O Parecer 16/9910
após sustentar que as atividades profissionais de nível técnico vêm
passando por grande mutação, intensificando uma profunda e contínua alteração no mundo do
trabalho “pressupondo a superação das qualificações restritas às exigências de postos
delimitados, o que determina a emergência de um novo modelo de educação profissional
centrado em competências por área” (BRASIL, 1999, p. 19, grifo nosso).
Nesse sentido, os ideólogos da educação profissional na condição de conselheiros
entenderam que as referidas mutações do mundo do trabalho exigem do profissional de nível
técnico uma sólida escolaridade básica, mas também uma mais ampla educação profissional e
polivalente. Razão pela qual sentenciaram que a revolução tecnológica e a reorganização do
trabalho exigem uma educação profissional de novo tipo “uma vez que é exigido dos
trabalhadores, em doses crescentes, maior capacidade de raciocínio, autonomia intelectual,
pensamento crítico, iniciativa própria e espírito empreendedor, bem como capacidade de
visualização e resolução de problemas” (p. 19, grifo nosso).
Em conformidade com os pressupostos da reestruturação produtiva, que tem no
toyotismo seu momento predominante, os ideólogos da formação profissional assimilaram o
conceito de polivalência e o fizeram firmar e consolidar na legislação profissional.
Também no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) os reformadores da educação
profissional incorporaram a noção de competências, pois as resoluções orientadoras do
9 Parecer nº 15/98 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação definiu as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. 10 Parecer nº 16/99 da Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE) definiu as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico.
16
PLANFOR11
determinavam que os programas de qualificação profissional tivessem uma
divisão entre habilidades básicas, habilidades específicas, e habilidades de gestão. Com isso, o
MTE visava com o PLANFOR dotar a força de trabalho das competências (atitudes e
habilidades) exigidas pelas empresas no contexto da reestruturação produtiva através do
desenvolvimento das habilidades básicas, específicas e de gestão12
.
A ideologia da nova educação profissional insere-se em um contexto ideológico maior,
o neoliberalismo13
. Portanto, vincula-se diretamente ao interesse das empresas e é
desenvolvida pelas organizações empresariais que nos anos 1990 trataram de mobilizar-se no
sentido de propor o desenvolvimento do Estado na área da educação. A preocupação dos
empresários não se dava apenas no âmbito da formação profissional, pois se preocuparam
também com a educação básica.
Esse é o caso da Confederação Nacional da Indústria - CNI, que apresentou em 1993, o
documento Educação básica e formação profissional: uma visão dos empresários (CNI,
1993), vinculando diretamente a questão da produtividade e competitividade das empresas
com a educação e a formação profissional. Nesse documento a CNI defendia a necessidade de
melhorar a escolarização básica dos trabalhadores pois somente assim os trabalhadores
conseguiriam acompanhar os avanços tecnológicos e as novas formas de organização da
produção e do trabalho.
Para a CNI é dever do Estado garantir uma contínua formação profissional adequada à
acumulação flexível, garantindo aos trabalhadores o desenvolvimento de capacidades para
conviver e sobreviver dentro da permanente e perene instabilidade do mercado de trabalho e
11 PLANFOR – Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador, desenvolvido pelo Ministério do Trabalho e
Emprego com recursos do Fundo de amparo do Trabalhador – PLANFOR – período 1995-2002. 12 Essas habilidades são assim definidas: “i. Habilidades básicas - competências e conhecimentos gerais,
essenciais para o mercado de trabalho e para a construção da cidadania, como comunicação verbal e escrita,
leitura e compreensão de textos, raciocínio, saúde e segurança no trabalho, preservação ambiental, direitos
humanos, informação e orientação profissional e outros eventuais requisitos para as demais habilidades. ii.
Habilidades específicas - competências e conhecimentos relativos a processos, métodos, técnicas, normas,
regulamentações, materiais, equipamentos e outros conteúdos próprios das ocupações. iii. Habilidades de gestão
- competências e conhecimentos relativos a atividades de gestão, autogestão, melhoria da qualidade e da
produtividade de micro e pequenos estabelecimentos, do trabalho autônomo ou do próprio trabalhador individual,
no processo produtivo (BRASIL, 1999, p. 41). 13 O neoliberalismo remete-nos ao conjunto de medidas políticas e econômicas aplicadas, com certas
particularidades, por diferentes governos capitalistas, desde os vinculados à tradição liberal aos da social-
democracia. Sua tônica é dada por um conjunto de reformas políticas e fiscais, privatizações, abertura do
comércio mundial e maior controle dos gastos e orçamentos do Estado, a desregulamentação e flexibilização do
trabalho. Nos anos 80, o programa neoliberal ganhou um caráter sistêmico, impondo-se inclusive nos países de
17
no mundo da terceira revolução industrial. Defende, portanto, a universalização da Educação
Básica que deverá ser complementada pela Formação Profissional durante toda a vida
produtiva do trabalhador, pois “não é possível que um indivíduo invista um grande período de
tempo na educação e na formação profissional, com a intenção de adquirir um fundo de
conhecimento ou de qualificação que seja suficiente para toda a sua carreira” (IBID, p. 10).
O Instituto Euvaldo Lodi - IEL, criado pela CNI, elaborou em 1992, com apoio da
CNI, SENAI e SESI um projeto nominado Pedagogia da Qualidade e coordenou um evento
Nacional Indústria-Universidade sobre Pedagogia da Qualidade, além disso, realizou 16
encontros estaduais sobre essa questão. Para esse Instituto é preciso desenvolver uma
formação profissional de caráter permanente, como suplemento da educação básica, no sentido
de garantir os meios para que os trabalhadores tenham condições para o desenvolvimento das
competências necessárias à sua empregabilidade ao longo da vida ativa.
Por outro lado, é necessário partir da premissa de que há uma “fragmentação” na classe
trabalhadora, ou seja, uma heterogeneidade no campo do trabalho, que reflete também nas
posições ideológicas da classe no que concerne à educação, fundamentalmente a formação
profissional, pois se constata que no campo do trabalho há profundas divergências quanto à
educação profissional. Nesse sentido, a partir dos anos 80 as centrais sindicais têm realizado
estudos, produzidos documentos e realizados eventos sobre essa questão.14
O que é uma
novidade, pois, até então, não se percebia a participação das organizações de representação
dos trabalhadores nas políticas de qualificação profissional. Havia até então uma hegemonia
do patronato sobre esta questão.
Entretanto, o posicionamento da Força Sindical e da CGT sobre a formação
profissional possui uma orientação política coerente com o pensamento empresarial, pois estas
Centrais defendem a colaboração entre o capital e o trabalho e a educação básica dos
governo não conservadores: Miterrand na França, Daniel González na Espanha, Mario Soares em Portugal e de
Craxi na Itália (ANDERSON, 1995). 14 As principais centrais sindicais do país, ou seja, a CUT, Força Sindical e CGT “têm atuado, nos últimos cinco
anos, nas seguintes frentes: a) na formulação e proposição de políticas de educação básica e profissional
(articuladas com outras políticas sociais); b) através da participação em Fóruns (nacionais, estaduais, regionais e
latino-americanos) que discutem e decidem políticas e programas de intervenção para fazer frente aos desafios
resultantes do processo de globalização da economia e, conseqüente, reestruturação do mundo do trabalho, onde a
educação básica e profissional constituem aspectos estratégicos; c) pela contratação de questões referentes à
formação profissional (propostas de atividades, gestão, custeio etc.) através de processos de negociações e
convenções coletivas”. MANFREDI, Silvia Maria. A formação profissional na ótica dos trabalhadores. In LEITE,
Márcia P. e NEVES, Magda A. Trabalho, qualificação e formação profissional. São Paulo; Rio de Janeiro:
ALAST, 1998, p. 221.
18
trabalhadores para atender às exigências da produção, sob o império das novas tecnologias ao
pactuarem com a visão empresarial ao adotarem a perspectiva que se pauta na Teoria do
Capital Humano, estabelecendo relações diretas entre a educação e o desenvolvimento
econômico, atribuindo o atraso tecnológico do país às deficiências educacionais e
considerando ser necessário subordinar a educação às demandas de mercado e às imposições
da competitividade internacional (RUMMERT, 1999).
Segundo essa autora, o vínculo entre as concepções de educação básica da CNI, da
Força Sindical e da CGT são inegáveis, pois preconizam propostas que incluem uma educação
básica polivalente [que] enfatiza a importância de aspectos como “aprender permanente”,
“aprender a pensar e a raciocinar” e adquirir “capacidade crítica”. Além disso, é destacado o
fato de que tal educação “forma o homem criador de sua própria história”, embora se
acrescente que a história será construída “livremente”, segundo os limites postos pelo mundo
do trabalho, ou seja, segundo os limites postos pelo capital.
A perspectiva da CUT sobre a questão da qualidade da educação para os trabalhadores
seja ela básica ou profissional, difere-se das perspectivas da FS e da CGT, embora a CUT
também incorpore uma preocupação subordinada às necessidades apontadas pelo mercado de
trabalho, pelo avanço tecnológico e pelas imposições econômicas.
Entretanto, embora haja uma diferença entre a perspectiva da CUT com a das outras
duas Centrais, ao longo dos anos 90, ela se afastou gradativamente dos pressupostos que
nortearam o novo sindicalismo dos anos 80, até ao ponto, de propor uma democracia na
relação capital e trabalho, convocando o Estado para exercer claramente o seu papel de
“provedor de regras garantidoras desse equilíbrio” (INFORMACUT, nº 250, 1995, p. 34).
Afirmando que a história recente do país, revela uma coesão dos diversos segmentos da
sociedade “em torno de propostas objetivas e concretas” (IBID.), a CUT despede-se da
contradição capital e trabalho, dizendo adeus à luta de classes, invocando as “propostas que
tenham por substrato os princípios da transparência, da ética, da informação e dos
procedimentos democráticos. Que estejam voltadas para produzir a cidadania” (IBID., grifo
nosso).
Conclusão
19
Somente em uma perspectiva crítica e de enfrentamento teórico com os pressupostos
da adaptabilidade, do abstracionismo da autonomia do indivíduo, da ideologia do aprender a
aprender, enfim da famigerada sociedade do conhecimento é que efetivamente conseguiremos
nos opor à noção de competência e da empregabilidade.
Para o capital, o trabalhador deve estar sempre predisposto a incorporar os novos
atributos – coquetel individual - consoantes às necessidades da produção flexível, abrangendo
as habilidades básicas e técnicas para enfrentar o imprevisto por meio da participação, da
comunicação em grupo, da multifuncionalidade e da polivalência, enfim, preparado para o
exercício de múltiplas tarefas em um mundo em permanente mutação, ao qual deve
invitavelmente adaptar-se. Esse é o discurso que aparece nos documentos oficiais (MEC e
MTE). É como se o processo de reestruturação produtiva fosse homogêneo e simultâneo em
todos os setores econômicos, de norte a sul e, de leste a oeste do país, exigindo uma verdadeira
revolução no sistema educacional e, conseqüentemente, também na qualificação profissional.
Portanto, somente em uma perspectiva de formação que aponte para além do capital15
seriam possíveis uma autonomia e identidade autêntica, pois essas pressupõem a emancipação
humana, como já apontou Marx na Questão judaica. Pressupor autonomia, identidade e
cidadania na sociedade do capital é ideologia rasteira.
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15 Ver nesse livro o artigo de Jorge Gonzalez.
20
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