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Luís Tomás Reis e Silvino Santos: Imagens da Amazônia nas origens do cinema brasileiro 1 Por Silvio Da-Rin O Cinegrafista da Comissão Rondon: Luís Tomás Reis Luís Tomás Reis e de Silvino Santos foram responsáveis pela maior parte das imagens da Amazônia filmadas nas primeiras décadas do século passado. Suas obras possuem significativos traços em comum. E esta comparação pode tornar-se ainda mais frutífera se nela incluirmos o americano Robert Flaherty, figura seminal do documentário universal. Eles são contemporâneos: Reis nasceu em 1878, Flaherty em 1884 e Santos em 1886. Todos adquiriram sua primeira câmera e aprenderam a operá-la por volta de 1912, preocupando-se também em adquirir o instrumental e o conhecimento necessário à revelação e copiagem in loco de seus filmes, realizados longe dos centros de produção cinematográfica. Eram autodidatas, movidos pelo espírito de aventura e pelo desejo de travar contato com culturas nativas desconhecidas, tendo chegado ao cinema mais ou menos por acaso. Enfim, por caminhos diferentes, tornaram-se representantes de um gênero destacado do cinema dos primeiros tempos, mas pouco comum no Brasil: o filme de viagem, ou travelogue. Flaherty foi o que mais demorou a exibir seu primeiro filme. Começou a filmá-lo em 1913, após acolher a sugestão de seu empregador para que levasse uma câmera em uma expedição que faria para prospectar jazidas minerais. Ao longo de outras longas viagens e depois de perder seus primeiros negativos, Flaherty finalmente em 1922 lançou Nanook of the North, sobre uma comunidade Inuit que habitava os desertos gelados ao norte da Baía de Houston. Recebido inicialmente com estranheza, acabou sendo reconhecido 1 Texto originalmente publicado no livro-apostila do Curso de História do Documentário Brasileiro em 2006

Da-Rin, Silvio-Luís Tomás Reis e Silvino Santos

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  • Lus Toms Reis e Silvino Santos:

    Imagens da Amaznia nas origens do cinema brasileiro1

    Por Silvio Da-Rin

    O Cinegrafista da Comisso Rondon: Lus Toms Reis

    Lus Toms Reis e de Silvino Santos foram responsveis pela maior parte das

    imagens da Amaznia filmadas nas primeiras dcadas do sculo passado.

    Suas obras possuem significativos traos em comum. E esta comparao pode

    tornar-se ainda mais frutfera se nela incluirmos o americano Robert Flaherty,

    figura seminal do documentrio universal. Eles so contemporneos: Reis

    nasceu em 1878, Flaherty em 1884 e Santos em 1886. Todos adquiriram sua

    primeira cmera e aprenderam a oper-la por volta de 1912, preocupando-se

    tambm em adquirir o instrumental e o conhecimento necessrio revelao e

    copiagem in loco de seus filmes, realizados longe dos centros de produo

    cinematogrfica. Eram autodidatas, movidos pelo esprito de aventura e pelo

    desejo de travar contato com culturas nativas desconhecidas, tendo chegado

    ao cinema mais ou menos por acaso. Enfim, por caminhos diferentes,

    tornaram-se representantes de um gnero destacado do cinema dos primeiros

    tempos, mas pouco comum no Brasil: o filme de viagem, ou travelogue.

    Flaherty foi o que mais demorou a exibir seu primeiro filme. Comeou a film-lo

    em 1913, aps acolher a sugesto de seu empregador para que levasse uma

    cmera em uma expedio que faria para prospectar jazidas minerais. Ao

    longo de outras longas viagens e depois de perder seus primeiros negativos,

    Flaherty finalmente em 1922 lanou Nanook of the North, sobre uma

    comunidade Inuit que habitava os desertos gelados ao norte da Baa de

    Houston. Recebido inicialmente com estranheza, acabou sendo reconhecido 1 Texto originalmente publicado no livro-apostila do Curso de Histria do Documentrio Brasileiro em 2006

  • pela crtica como o primeiro filme de viagem a adotar uma estrutura dramtica,

    ao invs de limitar-se a encadear imagens descritivas. Flaherty faleceu em

    1951, sendo considerado por alguns "o pai do documentrio". Mas este termo

    s entraria em circulao no vocabulrio cinematogrfico a partir do incio dos

    anos 1930, quando o escocs John Grierson divulgou uma srie de artigos,

    intitulados "princpios bsicos do documentrio", onde combinava os mtodos

    de dramatizao utilizados por Flaherty com os objetivos sociais de um cinema

    voltado para a educao e a propaganda.

    Toms Reis e Silvino Santos lanaram seus primeiros filmes alguns anos antes

    de Flaherty e realizaram obras mais extensas do que ele, mas sofreram as

    vicissitudes do cinema latino-americano, um territrio sempre dominado pelos

    mitos estrangeiros. Caram no esquecimento, para serem apenas palidamente

    recuperados muitas dcadas depois. No entanto, ambos realizaram

    "documentrios" avant la lettre. Ainda que seus filmes no se assemelhem aos

    de Flaherty no que concerne aos mtodos de dramatizao centrados em

    personagens, seus filmes contemplam aquilo que Grierson viria considerar,

    alguns anos mais tarde, como caractersticas bsicas do documentrio: um

    cinema de propaganda utilizando a "cena natural". Oficial do Exrcito brasileiro,

    Reis dedicou-se a propagar os valores e as conquistas da Comisso Rondon.

    Silvino foi um propagandista da cultura amaznica e dos negcios seu patro

    J. G. Arajo.

    O Cinegrafista da Comisso Rondon: Lus Toms Reis

    Sem desconsiderar as marcas estilsticas autorais contidas nos filmes de

    Toms Reis, sua obra est intimamente ligada aos trabalhos das sucessivas

    comisses que implantaram linhas telegrficas no noroeste brasileiro,

    conhecidas genericamente como Comisso Rondon. Estas comisses foram

    motivadas, nos ltimos anos do Imprio, pela necessidade de ocupao das

    zonas fronteirias, atravs da construo de ferrovias e estaes de telgrafo.

    A primeira comisso surgiu em 1888, quando o general Deodoro da Fonseca,

  • acompanhado de oficiais engenheiros, comandou uma expedio em direo

    ao oeste, com o objetivo de construir a ligao telegrfica entre o Rio de

    Janeiro e as cidades de Cuiab, Corumb e Coimbra. Depois da proclamao

    da Repblica, os trabalhos prosseguiram com a Comisso Construtora da

    Linha Telegrfica de Cuiab ao Araguaia, chefiada pelo major Gomes Carneiro.

    Este solicitou ao idelogo positivista Benjamim Constant, que havia sido seu

    professor na Academia Militar, a indicao de um auxiliar. Constant

    encaminhou a Carneiro um discpulo seu, o recm formado oficial-engenheiro

    Cndido Mariano da Silva Rondon. Em 1892, aps o falecimento de Gomes

    Carneiro, Rondon assumiu a chefia do distrito telegrfico.

    Em 1900, Rondon foi encarregado de comandar a Comisso Construtora de

    Linhas Telegrficas do Estado de Mato Grosso, criada para completar as redes

    de comunicao com os principais pontos estratgicos das nossas fronteiras

    com o Paraguai e a Bolvia. Nos anos seguintes, novas comisses foram

    sucessivamente implantadas para promover expedies a outras reas da

    Amaznia. A carreira de Rondon teve desdobramento no SIF-Servio de

    Inspeo de Fronteiras, criado em 1927 e submetido diretamente ao Estado

    Maior do Exrcito. Designado chefe do novo rgo, levou consigo as tradies,

    os arquivos e parte do pessoal da Comisso Rondon, ficando frente do

    Servio at 1934, quando recebeu a misso de representar o Brasil na

    comisso internacional pacificadora dos conflitos fronteirios em Letcia,

    envolvendo a Colmbia e o Peru.

    Os trabalhos da misso Rondon tinham o mltiplo carter militar, poltico e

    cientfico. Afinada com o iderio positivista e nacionalista que inspirava a

    oficialidade da poca, a misso encarava as linhas telegrficas como um

    instrumento geopoltico de fixao, integrao e colonizao do territrio

    nacional herdado do Imprio. Ao avanar em territrio florestal escassamente

    povoado, os engenheiros militares no encontravam somente obstculos

    geogrficos, mas tambm a resistncia de ndios, que vinham sendo expulsos

    de outras reas por seringueiros e ncleos de colonizao agrcola. Gomes

    Carneiro, preocupado com a manuteno das linhas telegrficas que

  • implantava, evitou o confronto e procurou uma aproximao pacfica com os

    indgenas. Rondon seguiu a mesma orientao e, extrapolando suas funes

    no plano da engenharia militar, transformou-se em um pacificador de ndios,

    instituindo o paradigma do "sertanista". Suas expedies eram acompanhadas

    por gegrafos, botnicos e etnlogos e o saldo dos trabalhos abrange o

    levantamento cartogrfico de grande parte serto brasileiro, a descrio

    fisiogrfica e demogrfica de reas indgenas, e a coleta de dados lingsticos,

    antropomtricos e etnogrficos em geral. Rondon manteve contato com

    pesquisadores nos campos nascentes das cincias naturais e sociais, tendo

    sido agraciado com o ttulo de membro honorrio da Congregao do Museu

    Nacional, em 1921 [PIAULT: 90].

    A Comisso Rondon foi um importante agente de implementao da poltica

    agrcola da Primeira Repblica, que visava ordenar a explorao das riquezas

    em um territrio nacional ainda carente de balizamento, tanto fsico quanto

    simblico. Paralelamente ocupao das reas de fronteira, era preciso

    estabelecer a idia de nao e a identificao de um "povo brasileiro", com a

    conseqente unificao das diferentes comunidades culturais e lingsticas que

    se espalhavam pelo serto. J em 1890, visando ampliar a fronteira agrcola e

    incorporar produo novos contingentes de mo-de-obra, o Governo

    Provisrio havia promulgado o Decreto 163, "regulando a localizao dos

    trabalhadores nacionais". S muito mais tarde, em 1907, o governo federal

    criaria o Servio de Povoamento; e, trs anos depois, o SPILTN-Servio de

    Proteo aos ndios e Localizao dos Trabalhadores Nacionais, sendo

    Rondon convidado a chefi-lo. Um dos principais objetivos do rgo era a

    fixao das populaes nmades do Brasil em colnias agrcolas.

    Ao longo de dcadas, Rondon desenvolveu uma poltica de "proteo" ao ndio,

    que consistia em atra-los, conquistar sua confiana, fix-los em colnias

    prximas aos postos telegrficos, e ministrar a eles ensinamentos da lngua

    portuguesa, de tcnicas agrcolas e de civismo, integrando-os como

    "trabalhadores nacionais" sociedade brasileira. Uma "proteo" ambgua, que

    por um lado evitava o extermnio dos povos indgenas no confronto com o

  • homem branco, reconhecia e valorizava suas culturas; mas que, na prtica,

    promovia o desaldeamento e a aculturao do ndio brasileiro. O SPILTN foi o

    embrio institucional da sinuosa poltica indigenista brasileira. Transformou-se

    em SPI, foi transferido para o Ministrio da Guerra, voltou para o mbito da

    Agricultura e, em 1967, sob a gide do regime militar, desembocou no recm

    criado Ministrio do Interior como FUNAI-Fundao Nacional do ndio.

    Pioneiro no uso da imagem como um instrumento de marketing pessoal e

    institucional no Brasil, Rondon sempre procurou documentar suas expedies.

    Inicialmente, convocou os servios fotogrficos da Casa Musso, do Rio de

    Janeiro. Diante da inadaptao dos profissionais contratados vida na selva,

    em 1910 Rondon designou como fotgrafo um segundo tenente recentemente

    transferido para atuar junto Comisso, na qualidade de auxiliar de desenho.

    Seu nome era Lus Toms Reis.

    Abraando a misso com entusiasmo, Reis rapidamente props a ampliao

    de suas funes para tornar-se tambm cinegrafista: "Um dia, me apresentei

    ao ento Coronel Rondon e me propus a adquirir o material necessrio

    criao de nosso servio, que me comprometia a executar. Com dez contos de

    ris (...) embarquei para a Europa, onde comprei, em Londres e Paris, o

    material indispensvel, naquele tempo o mais perfeito, e segui para o serto

    com sete mil metros de filme da marca Lumire tropical, material que no

    existia no Rio" [apud MAGALHES, 372]. Reis trouxe da Europa duas cmeras

    35 mm, uma Williamson de 30 metros e uma Debrie Studio de 120 metros,

    alm de acessrios e produtos qumicos necessrios revelao, copiagem e

    edio de filmes. O xito das primeiras experincias convenceu Rondon a

    convidar Reis para chefiar Seo de Cinematografia e Fotografia,

    implementada em 1914, quando o Escritrio Central foi reorganizado.

    Rondon deu mostras de haver desenvolvido uma ambiciosa e bem sucedida

    poltica de comunicao, com o objetivo de obter respaldo junto opinio

    pblica para continuar garantindo os meios materiais necessrios s misses

  • e, ao mesmo tempo, conscientizar a sociedade sobre a grandeza territorial, a

    riqueza econmica e a diversidade cultural do Brasil. A Comisso produziu

    abundante material complementar s conferncias promovidas por Rondon,

    como dezenas de publicaes e lbuns fotogrficos, colees de diapositivos e

    sesses cinematogrficas promovidas por todo o pas, inclusive em cinemas

    comerciais, obtendo considervel sucesso de pblico.

    O primeiro filme de Luiz Toms Reis, Sertes de Mato Grosso, iniciado em

    1912, foi assistido por cerca de 20 mil pessoas em cinco dias de exibio no

    Teatro Fnix, no Rio de Janeiro, e projetado em So Paulo durante dez dias

    em oito cinemas. A repercusso pode ser avaliada pelo seguinte trecho de uma

    nota publicada em O Estado de So Paulo, na edio de 7/11/1915: " um

    trabalho a mais prestado pelo Coronel Rondon, pois coloca ao alcance de

    todos os belos trechos de terras lindssimas. O filme representa a parte

    percorrida por aquele oficial do Exrcito, compreendendo empolgantes quedas

    d'gua, extensas matas virgens e campos que se perdem no ilimitado do

    horizonte. Na 5a e 6a partes do filme so exibidos vrios representantes da

    famosa tribo dos Nanbikura, inimigos dos Paresi, com quem hoje em dia

    andam em boa paz devido interveno do Coronel Rondon que os

    confraternizou. Os usos e costumes dessas tribos, a sua perfeita

    adaptabilidade ao meio civilizado, so evidenciadas no correr de vrias cenas

    do filme e no raro so eles, os indgenas, apanhados em franca

    demonstrao de simpatia pelo chefe da comisso". [in BERNARDET 1979 (b):

    1915-19].

    Entre dezembro de 1913 e maio do ano seguinte, Reis foi convocado a

    registrar em pelcula uma expedio pelo interior do Brasil, em que o ex-

    presidente americano Theodore Roosevelt foi guiado por Rondon. O filme,

    mostrado em uma homenagem prestada a Rondon em outubro de 1915 pela

    Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, foi tambm exibido em So Paulo,

    com o ttulo Expedio Roosevelt a Mato Grosso.

    Em 1916, Reis foi encarregado pelo Capito Amlcar Botelho de Magalhes,

  • chefe do Escritrio Central, de realizar um filme sobre os rituais funerrios dos

    ndios Borro que habitavam o vale do rio So Loureno, no Mato Grosso.

    Rondon havia estado ali quinze anos antes, quando chefiou sua primeira

    expedio, conquistando a colaborao dos ndios nos trabalhos de construo

    da linha telegrfica. Ao contrrio dos filmes anteriores, desaparecidos ou

    inacessveis, este conservado no Museu do ndio: Rituais e Festas Borro, o

    trabalho mais interessante de Lus Toms Reis.

    Antes de examin-lo, cabe fazer um resumo da trajetria posterior de seu

    autor. Em 1917, ele viajou ao sul do Brasil para tomar filmar as Cataratas do

    Igua e, na volta, tomou "vistas" de So Paulo e Rio de Janeiro. Com este

    material, editou curtas-metragens que, juntamente com Expedio Roosevelt a

    Mato Grosso, Rituais e Festas Borro e Caada de Ona no Sul do Estado,

    comporiam o programa Wilderness, exibido no Carnegie Hall de New York,

    como acompanhamento de uma palestra preparada por Roosevelt

    especialmente para a ocasio. O programa, com algumas modificaes, seria

    lanado em cinemas do Rio de Janeiro e So Paulo em 1920, com o ttulo De

    Santa Cruz.

    No anos seguintes, Reis realizou uma srie de filmes que vieram a

    desaparecer, entre eles: Indstria da Borracha em Mato Grosso e Amazonas

    (1917), sobre a extrao de borracha e castanha nas margens do rio Gy-

    Paran; Inspeo no Nordeste (1922), onde registrou a inspeo que Rondon

    faz, a convite do presidente Epitcio Pessoa, das obras contra a seca;

    Operaes de Guerra, sobre a participao de Rondon no combate aos

    revoltosos paulistas de 1924, liderados por Isidoro Dias Lopes; e Ronuro,

    Selvas do Xing (1924), filmado em Mato Grosso, nas cabeceiras do rio Xing.

    A partir de 1927, a Seo de Cinematografia e Fotografia foi incorporada ao

    Servio de Inspees de Fronteiras. Toms Reis participou ento de

    sucessivas expedies, que resultaram nos filmes Viagem ao Roraim (1927),

    Parim (1927), Posto Alves de Barros (1930) e Mato Grosso e Paran (1931).

    Em 1932, montou um longa-metragem sobre a terceira expedio de Rondon

  • como inspetor de fronteiras, Ao Redor do Brasil - Aspectos do Interior e das

    Fronteiras Brasileiras (1932).

    Reformado compulsoriamente como major em 1928, ao completar cinqenta

    anos, Reis viria a criar uma produtora, a Aruak Filmes, que somente no ano de

    1935 lanou no mercado, atravs da Distribuidora de Filmes Brasileiros, 33

    curtas-metragens com durao de 3 a 5 minutos, todos desaparecidos. A julgar

    pelos ttulos, consistem no reaproveitamento do extenso repertrio de imagens

    filmadas ao longo de suas viagens oficiais pelo Brasil. A Aruak e a DFB

    lanariam dois novos ttulos em 1936 e outros dois no ano seguinte. Em 1938,

    Reis realizou seu ltimo filme, Inspetorias Especial de Fronteiras, registrando a

    viagem do Coronel Manoel Alexandrino Ferreira da Cunha, sucessor de

    Rondon, pelo Rio Negro, at a fronteira colombiana. Este longa-metragem, que

    aborda o ndio brasileiro de modo bem distinto dos trabalhos realizados nos

    primeiros anos da Comisso Rondon, faz parte do acervo do Museu do ndio.

    Em suas viagens, Lus Toms Reis desfrutou de certa autonomia em relao

    hierarquia militar, chegando a produzir e exibir, por conta prpria, atualidades

    regionais. Em relatrio ao seu superior, ele relatou que, caminho do rio So

    Loureno, registrou em Corumb imagens para um filme que depois intitulou

    Mato Grosso em Revista - "um filme sobre a atualidade poltica de Corumb e

    Cuiab, tendo sido muito apreciado no estado". Afirmou ainda que a realizao

    do trabalho foi motivada por "muitas pessoas que desejavam diminuir a

    impresso causada pelo filme Os Sertes de Mato Grosso, com relao aos

    ndios", o que mostra que nem sempre os objetivos propagandsticos da

    Comisso Rondon eram partilhados pela elite da provncia. Esta preferia

    divulgar o engenho e progresso da regio, ao invs de aparecer para a opinio

    pblica somente como repositrio de selvagens. Ao retornar das filmagens com

    os Borro, Reis captou novas imagens, a pedido do presidente do estado. A

    julgar pelas prestaes de contas das despesas e das receitas obtidas com

    exibies, esta faceta "cavadora" de Reis na produo de atualidades,

    produzindo e exibindo com apoio local tanto pblico quanto privado, encontrava

    pleno abrigo na Comisso Rondon. Reis tinha esprito empreendedor e

  • exerceu funes de "ambulante do cinema" em suas andanas pelo serto: em

    relatrio, Reis cita "compromissos com 'empresrios' da cidade (de Bauru) e

    arredores para exibio do filme Os sertes de Mato Grosso e registra as

    percentagens de 50 e 60% da renda que auferiu com as exibies, tendo que

    pagar os msicos militares, mesmo assim auferindo lucro".

    Reis se empenhava na obteno de recursos e na criao de um fundo prprio

    para as atividades de seu setor. Em relatrio ao Coronel Magalhes, chefe do

    Escritrio Central, datado de 10 dezembro de 1918, Reis d provas de lances

    arrojados durante o primeiro semestre daquele ano, quando conseguiu

    convencer pessoalmente Theodore Roosevelt a proferir palestra no Carnegie

    Hall, como abertura da exibio do programa Wilderness. Em outro trecho do

    relatrio, relata seus esforos bem sucedidos para exibir o mesmo programa no

    Strand Theatre, durante alguns dias, e para firmar contrato pelo prazo de cinco

    anos com a distribuidora Interocean. Mesmo sabendo que este contrato foi

    mais tarde rescindido, merece meno esta rara contratao de distribuio

    internacional para um filme brasileiro, sobretudo se considerarmos que Reis

    era um oficial do Exrcito.

    Estas iniciativas individuais de Reis convergem com o vetor dominante do

    pioneiro, ambicioso e bem sucedido projeto de marketing de Rondon - um dos

    primeiros funcionrios pblicos a incorporar a imagem cinematogrfica como

    instrumento de documentao com fins propagandsticos. Ele o fez apenas

    cinco anos depois do surgimento das primeiras salas fixas de cinema no Brasil;

    e cerca de vinte e cinco anos antes de Getlio Vargas criar o INCE - Instituto

    Nacional de Cinema Educativo. Vale aqui mencionar um importante elemento

    comum s duas agncias to separadas no tempo: Edgard Roquette-Pinto,

    intelectual humanista atento importncia educacional do telgrafo, do rdio e

    do cinema. Roquette-Pinto foi primeiro antroplogo brasileiro a realizar

    filmagens em aldeias indgenas, no que foi facilitado por Rondon, que o

    convidou em 1911 a acompanhar uma expedio que atravessou o territrio

    Nanbikura. Naquele momento Roquette-Pinto j havia criado a filmoteca

    cientfica do Museu Nacional, que alis tornou-se o ncleo inicial do INCE, do

  • qual viria a ser o primeiro diretor. H notveis semelhanas entre o projeto do

    INCE, implementado em 1936, e o EMB-Empire Marketing Board, criado por

    John Grierson na Inglaterra, trs anos antes, que estabeleceu as bases da

    tradio do documentrio. Diante destes marcos histricos, digna de nota a

    precocidade da Seo de Cinematografia e Fotografia da Comisso Rondon,

    inspirada por Roquette-Pinto e assumida por Luiz Toms Reis a partir de 1912.

    Reis comeou a trabalhar com Rondon quando era segundo-tenente e foi

    promovido postumamente a tenente-coronel depois que sofreu um acidente

    fatal em 1940, aos 62 anos de idade, durante filmagens de uma obra para a

    Diretoria de Engenharia do Exrcito. Produziu mais de cinquenta filmes, mas

    sua obra caiu no esquecimento durante dcadas, para ser recuperada em

    meados dos anos 1970, quando foram compilados os primeiros levantamentos

    sistemticos da filmografia brasileira do perodo silencioso. Em 1992, o

    antroplogo Pierre Jordan publicou em Marselha um inventrio das

    contribuies pioneiras do cinema etnogrfico e estampou na capa uma foto de

    Rituais e Festas Borro, que considera "o primeiro filme etnogrfico

    verdadeiro". E prossegue: "L onde seus predecessores se contentavam em

    fazer imagens animadas com uma cmera fixa registrando uma srie de

    fotografias, Reis filma com todas as possibilidades que lhe oferece o tipo de

    material de que dispe; ele escreve com a cmera. Antecipando Flaherty, ele

    revela e copia os filmes no lugar da filmagem apesar dos insetos que, por

    vezes, se aglutinam na pelcula. (...) Totalmente desconhecido dos

    antroplogos e ignorado pelos cinfilos, o filme cai no esquecimento da mesma

    forma como seu autor desaparecer sombra de Rondon" [JORDAN: 20-21].

    O Filme "Rituais e Festas Borro"

    A maior parte da filmografia de Reis constituda de filmes de viagem, com

    sua estrutura tpica, onde o fio condutor o itinerrio percorrido. Rituais e

    Festas Borro, ao contrrio, concentra-se nos rituais funerrios de uma

    comunidade indgena. Muitos anos depois, em 1935, Dina e Claude Levi-

    Strauss realizariam, na aldeia do rio Vermelho, Cerimnias Funerais Entre os

  • ndios Borro; em 1953, Heinz Forthmann e Darcy Ribeiro filmariam Funerais

    Borro, na mesma comunidade do rio So Loureno visitada por Reis.

    O prprio Lus Toms Reis descreve os rituais funerrios dos Borro: "A Jure

    comea com a pesca e confeco de utenslios em palha pelos membros do

    grupo. Os homens vo floresta buscar grandes palmas de Uauau e

    constroem com elas uma grande palhoa onde organizam no centro da tribo,

    uma dana, longe da vista das mulheres, que ficam de fora. Para esta dana,

    os homens pintam o corpo com urucum e usam cocares com penas coloridas.

    Os funerais permitem vrios rituais extremamente sofisticados que implicam

    numa dupla cremao. O cadver colocado no centro da tribo numa

    sepultura temporria. O corpo do defunto envolto em pano retirado da

    sepultura todas as manhs a fim de acelerar a putrefao. No final de oito dias,

    o cadver deixa a tribo. Numa lagoa distante das habitaes, os ossos so

    ento limpos, pintados e envolvidos numa urna de palha que submersa"

    [Rondon, apud JORDAN: 20].

    A descrio, infelizmente, no corresponde ao filme, que mostra somente os

    preparativos, danas ao ar livre e o sepultamento de uma criana que havia

    morrido na vspera da chegada de Reis aldeia. As sucessivas lavagens do

    corpo e o descarnamento do cadver no puderam sequer ser filmados. Reis

    enfrentou obstculos funcionais e tcnicos que comprometeram o resultado

    pretendido. Em um relatrio datado de maro de 1917, ele relata as

    dificuldades criadas pelo funcionrio encarregado da colnia, muito respeitado

    pelos ndios. Eis um trecho que, apesar de longo, revelador da abordagem

    que Reis tinha em mente, e da necessidade de adaptar-se [foi preservada a

    grafia original]:

    "Comevamos ento o trabalho cujo programma eu previra, mas muitos contratempos esperavam-me antes que pudesse obter aquillo para o que j tantos esforos tinham sido empregados; refiro-me ao facto de querer eu tomar os assuntos borros com o caracter de tradio da raa, nos

    seus trajes primitivos, principalmente nos quadros de danas e scenas ao

  • ar livre. Contra isto manifestou-se o encarregado do nucleo, ou por

    opposio a este servio ou por motivo que escapa minha comprehenso, allegando que o Sr. Coronel Rondon no permittiria isto, uma immoralidade que depunha contra o servio, e que elle pediria demisso caso se photographassem as ndias em seu costume primitivo,

    permittindo isto aos homens somente. [...] a moralidade uma qualidade s delles no difficil reparar onde esto os extremos deante do ponto de vista scientifico ou artistico. [...] Eu no desejava que as indias se desnudassem, o que eu propunha era as que quizessem danar com os

    seus habitos primitivos, isto , cobertas com cinturas de palha a que denominavam codobye, estas seriam assim cinematographadas, para a que ellas, muitas dellas, quasi todas queriam, contanto que fossem recompensadas com dadivas, por esta ligeira pose, o que era justo.

    Estando ellas habituadas ao uso destes cintures nenhum sacrifcio estava eu a pedir e portanto a questo de moralidade aqui de todo descabida. Poder-se-ia talvez objectar que no conviria ao servio isto, que no se deve proceder assim por tal ou qual motivo; ento eu

    consideraria tempo perdido o abalar-me do Rio de Janeiro para tomar um film indigena, onde os filhos das selvas apparecessem vestidos com as roupas compradas no Parc Royal: uma boa comedia; dizer-se porem o que immoral, equivale [a] conceitos injustos a quem conscientemente

    os repelle por principio [Relatrio de Reis ao Cap. Magalhes, chefe do Escritrio Central, microfilmado pelo Museu do ndio, in LASMAR: 112].

    A estes problemas somaram-se as dificuldades tcnicas de filmagem com

    iluminao insuficiente para as emulses de baixa sensibilidade da poca. Reis

    descreve com viva impresso os rituais que se seguiram morte de uma ndia,

    que ocorreu quando ele estava na aldeia, mas lamenta profundamente que no

    lhe foi permitido descobrir parte do teto da palhoa, para dispor de suficiente

    luz natural:

    "Entretanto, se outro fosse o encarregado da colnia, parece-me que se

    faria um acordo e eu teria completado o servio satisfao. Assim, pude

  • somente tomar os quadros ao ar livre, mas no se diga que a vista destes

    nos far conhecer a vida e os costumes dos ndios coroados, porque muito mais interessantes e bonitos so os quadros do interior de suas casas. Quando eu puder completar este filme com os assuntos que faltam, ento ele sobrepujar outro qualquer, e para isso depender

    somente dos bons ofcios do Chefe da Comisso, nico talvez que poder obter deles todas as facilidades." [microfilme citado].

    Reis no teve a oportunidade de voltar aldeia do rio So Loureno em

    companhia de Rondon, para tentar filmar com a liberdade que desejava. E seu

    filme, como ele o primeiro a reconhecer, falho na representao dos rituais

    funerrios que foi encarregado de documentar. Os rituais so incompletos e

    sua durao no se torna suficientemente clara. Mas o filme surpreende pela

    precocidade de algumas solues narrativas, pelo uso criativo da montagem e

    pelo rigor dos enquadramentos. Reis est longe de ter sido pioneiro na

    filmagem de culturas isoladas - dezenas de registros anteriores so

    conhecidos. Mas isso o que eram: apenas registros. Apesar das limitaes

    com que se defrontou Reis, Rituais e Festas Borro desenvolve uma gil

    estrutura narrativa do ritual funerrio e exibe, em algumas seqncias, uma

    hbil montagem de planos, incomum em filmes de viagem ou filmagens

    etnogrficas do seu tempo.

    Filmado seis anos antes do lanamento do primeiro filme de Flaherty, Rituais e

    Festas Borro no constri um personagem individual, como Nanook, nem

    tampouco explora o conflito dramtico entre um protagonista e a natureza,

    como antagonista. Ao contrrio, o entorno dos Borro do rio So Loureno

    mais se assemelha paradisaca ilha de Samoa, onde vivia Moana. A se d

    um aparente ponto de aproximao entre Reis e o romantismo de Flaherty,

    cineasta que sempre buscou enfatizar os traos "primitivos" das culturas que

    abordou, chegando diversas vezes a reconstituir prticas culturais j

    abandonadas. Mas se Flaherty era assumidamente um apologista do "bom

    selvagem", Lus Toms Reis pautava seu trabalho pelas metas da comisso

    Rondon, que pretendia superar a condio selvagem dos indgenas e "civiliz-

  • los". Rituais e Festas Borro parece expressar o resultado do encontro entre

    um grupo indgena em plena exuberncia de sua expresso ritualstica e um

    cinegrafista militar fascinado com o que presenciava. De todos os filmes

    remanescentes da filmografia de Reis, este , sem dvida, o nico em que o

    homem branco no tem nada a ensinar, mas muito o que aprender.

    Em filmes posteriores, como Ao Redor do Brasil (1932), ndios recebem roupas

    e so ensinados a us-las. A maior parte de Inspeo Especial de Fronteiras

    (1938) dedicada demonstrao do xito da catequese leiga da Comisso

    Rondon e da catequese religiosa dos salesianos e monfortianos: crianas

    ndias no esto simplesmente vestidas, mas uniformizadas, praticam

    exerccios coletivos e, segundo uma legenda, "sabem cantar o hino nacional".

    Talvez possamos interpretar a nudez parcial dos corpos dos Borro em Rituais

    e Festas Borro como fruto de um olhar etnogrfico mais espontneo de Reis

    quando ainda s voltas com este seu terceiro filme, em 1916-17. Um olhar que

    seria gradativamente disciplinado pelos objetivos institucionais para os quais

    Rondon criou a Seo de Cinematografia e Fotografia. Esta hiptese pode ser

    confirmada pela completa ausncia de imagens dos padres missionrios, em

    contraste com a onipresena deles no ltimo filme realizado por Reis,

    Inspetoria Especial de Fronteiras (1938). Os salesianos estabeleceram misses

    no Mato Grosso a partir de 1884 e mantinham contato com os Borro desde

    pelo menos 1906. Naquela aldeia, como em outras da Amaznia, concorriam

    dois projetos missionrios. Um deles era implementado pela Repblica, que

    havia promovido a separao entre a Igreja e o Estado. O outro era praticado

    pela ordem religiosa dos salesianos, que havia substitudo os jesutas nas

    misses junto aos ndios brasileiros. Talvez em 1916 no fosse conveniente

    mostrar ndios dependentes de religiosos em um dos primeiros filmes de

    propaganda das conquistas "pacificadoras" e "protetoras" da Comisso

    Rondon. Esta omisso aos salesianos, como observa TACCA [2005: 321ss],

    ainda mais notvel quando lembramos que o tema central do filme um ritual

    funerrio que implicava em molhar diariamente o cadver, descarn-lo at que

    seus ossos ficassem brancos, antes de enterr-lo - uma prtica profana que

    possivelmente era objeto de repulsa dos padres.

  • Duas dcadas depois, a pacificao leiga e a catequese religiosa j eram

    consideradas pelo governo Vargas convergentes no propsito de domesticao

    indgena. Talvez por esta razo, Inspetoria de Especial de Fronteiras contenha

    tantas e to redundantes imagens de ndios que mal podemos reconhecer

    como tal, marchando fardados, praticando ginstica, entoando hinos e

    trabalhando no telgrafo e na lavoura. ndios disciplinados e uniformizados

    pelos salesianos, que no revelam alegria em suas expresses. Ao longo da

    primeira metade do filme, so chamados nos letreiros de "educandos",

    "alunos", "caboclos", ou genericamente de "ndios", destitudos portanto de

    suas identidades tribais. S nos ltimos minutos deste longo e montono filme

    institucional encontramos imagens de ndios integrados natureza, os

    primeiros a sorrir e brincar diante da cmera, exibindo descontraidamente seus

    corpos nus ou semi-nus, danando e mergulhando nos rios.

    Os letreiros finais de Inspetoria de Especial de Fronteiras so reveladores da

    vacilao de Reis entre sua admirao pela exuberncia dos ndios livres e sua

    misso de propagandista de uma catequese que, quela altura, tinha

    contribudo decididamente para a aculturao de grande parte da populao

    indgena brasileira. No ltimo minuto do filme, entre imagens de ndios

    enfeitando-se e danando, podemos ler: "Os Tuiuca passariam a vida

    danando". Para em seguida completar, antes do derradeiro plano, que mostra

    um grupo de ndios alegremente reunidos beira do rio que faz fronteira com a

    Colmbia: "A civilizao porm vai chegando... s agora esto as misses em

    contato com as populaes do Tiqui".

    Silvino Santos e as Atualidades Amaznicas

    Em sua comunicao no I Simpsio do Filme Documental Brasileiro, realizado

    no Recife em 1974, Paulo Emlio Salles Gomes cunhou duas expresses para

    caracterizar boa parte da produo dos primrdios do documentrio brasileiro:

    "Desde as primeiras filmagens de 1898, dois temas se afirmaram,

    acompanhando alis a trilha j traada pela fotografia: o Bero Esplndido e o

  • Ritual do Poder" [GOMES, 1986: 325]. O Bero Esplndido "o culto das

    belezas naturais do pas". E o Ritual do Poder o culto s personalidades da

    elite poltica, militar, eclesistica, comercial e industrial, que financiavam as

    atualidades e assim promoviam sua imagem - e seus negcios - nas telas de

    cinema.

    Luiz Toms Reis, como vimos, era o principal cinegrafista da Comisso

    Rondon. Logo, representava o prprio poder republicano propagando seus

    projetos. No caso, projetos estratgicos que eram implementados nos sertes

    do noroeste, espao privilegiado do bero esplndido. Embora de modo menos

    tpico do que na filmografia dos "cavadores" dos centros de produo de

    atualidades, as expresses cunhadas por Paulo Emlio estavam ambas

    representadas na filmografia do tenente Reis, pontuada pelos rios e cachoeiras

    amaznicas.

    Silvino Santos foi outro cineasta brasileiro a representar, igualmente de modo

    atpico, aqueles conceitos. A maior parte de sua obra uma louvao das

    belezas e riquezas da Amaznia, e para realiz-la sempre dependeu do

    patrocnio dos poderosos locais, interessados em se beneficiar do efeito

    propagandstico das imagens cinematogrficas. Toda a sua carreira, de final

    melanclico, foi marcada pela mais absoluta dependncia elite amaznica.

    Nascido em famlia abastada de uma pequena cidade portuguesa da Beira

    Baixa, nos contrafortes da Serra da Estrela, Silvino ainda criana impressionou-

    se com o que leu em uma enciclopdia escolar sobre o rio Amazonas, o maior

    do mundo. A viagem de uma famlia amiga Amaznia foi a oportunidade de

    visitar o Brasil, onde chegou de navio no dia em que completava 14 anos, em

    29 de novembro de 1889. Conseguiu emprego em uma livraria, descobriu a

    fotografia e explorou igaraps, matas e aldeias indgenas da regio. Leonel

    Rocha, pintor e fotgrafo viajante que passava por Belm, o levou como

    assistente rio Amazonas acima, at a cidade peruana de Iquitos. Nos meses

    que passou ali, Silvino se aperfeioou na tcnica fotogrfica, ganhou noes de

    pintura e confirmou o desejo de radicar-se na Amaznia. Viajou a Portugal em

    1903, mas um ano depois j havia se despedido da famlia e voltado a Belm,

  • e em 1910 fixou definitivamente residncia em Manaus, onde vivia seu irmo

    mais velho. Montou um pequeno estdio e ofereceu aos manauenses os

    servios profissionais de pintor e fotgrafo.

    Naquele momento Manaus apenas comeava a viver a decadncia do ciclo da

    borracha. Os sinais aparentes ainda eram de opulncia. Nos trinta anos

    anteriores, Manaus deixou de ser um vilarejo na barra do rio Negro para

    transformar-se em uma metrpole tropical, dotada de ricas casas comerciais,

    sistema de bondes eltricos ligando os bairros ao centro, monumentos em ferro

    fundido importados e um magnfico teatro de pera. Os navios da Boot Line

    ligavam diretamente Manaus ao porto ingls de Liverpool. As relaes

    comerciais e financeiras com a Europa tambm fluam em linha direta: o

    London Bank of South America se instalou em Manaus antes que qualquer

    casa bancria brasileira tivesse inaugurado uma agncia na cidade, e a libra

    esterlina era moeda to aceita quanto os mil ris. Atrados pelo boom da

    borracha, cerca de 150 mil retirantes nordestinos passavam semanalmente

    pelo rio Amazonas, em direo aos seringais que se espalhavam pelos seus

    afluentes [SOUZA 1999: 39].

    O cinema bateu porta do estdio de Silvino Santos em 1912, quando o

    cnsul peruano veio convid-lo a subir novamente o Amazonas para fotografar

    os ndios do rio Putumaio, fronteira do Peru com a Colmbia. A julgar pela

    intensidade do interesse que, desde menino, sempre manifestou pela

    Amaznia profunda, Silvino deve ter aceitado de imediato. O cnsul agia como

    emissrio de Julio Csar Arana, proprietrio de extensos seringais e principal

    acionista da Peruvian Amazon Rubber Company, que pagou a expedio

    fotogrfica de Silvino. Uma denncia de escravido de ndios nos seringais

    desta empresa resultou em um processo contra Arana na justia inglesa, j que

    havia membros da Cmara dos Comuns entre os acionistas. As fotos de Silvino

    causaram tima impresso a Arana, que vivia na Europa, aonde vinha

    percebendo a enorme fora persuasiva do cinema. Interessado em produzir um

    documento visual mais impactante como pea de defesa, Arana resolveu

    financiar a compra de equipamentos cinematogrficos e patrocinar o

  • treinamento de Silvino nas instalaes de Path-Frres e dos Lumire. Assim

    comeou a aventura cinematogrfica de Silvino Santos.

    Arana acabou sendo condenado em Londres e preso no Peru. Mais tarde,

    recuperou sua imagem e foi eleito senador pelo distrito de Loreto. Silvino

    tambm no foi afortunado no primeiro momento. De volta regio do

    Putumaio, passou dois meses fotografando e filmando em seringais e nas

    aldeias dos ndios Witto e Andoke. Depois de reunir o material necessrio ao

    filme que serviria como pea de defesa de seu patrocinador, enviou os rolos a

    um laboratrio norte-americano. Mas, j tendo comeado a I Guerra Mundial, o

    navio que transportava os negativos foi atingido por um submarino alemo e

    tudo se perdeu para sempre no fundo do mar [apud LOBO, 174].

    Este infortnio marcou o fim da atuao de Santos junto a Peruvian Amazon

    Rubber Co., mas no o fez desistir da realizao de filmes. As poucas sobras

    das filmagens patrocinadas por Arana foram aproveitadas no curta-metragem

    ndios Witotos do rio Putumayo, lanado no Teatro Polytheama de Manaus em

    junho de 1916. No foram as primeiras imagens amaznicas exibidas na

    cidade. J em 1907 a Empresa Fontenelle havia apresentado as atualidades

    Posse do Coronel Governador na Intendncia Municipal, Vistas de Manaos,

    Manaus Harbour e O Matadouro de Manaus. Nove anos depois, no mesmo

    programa onde era anunciado o curta de Silvino, outros ttulos eram

    prometidos ao pblico: Festa da rvore, Beneficente Portugueza, Amores de

    seu Romo com a sua cara metade ("scena cmica passada em Manaos -

    nica exibio desta fita"), outras Vistas de Manaos (todos de autoria

    desconhecida) alm das produes estrangeiras Abnegao (drama editado

    pela fbrica Gaumont) e O Ladro Fantasma (comdia burlesca da Nordisk)

    [COSTA, 1987: 154].

    To logo restabeleceu-se financeiramente, Silvino procurou utilizar sua

    filmadora Path para produzir atualidades locais. O governador do Amazonas

    lhe proporcionou a oportunidade de realizar um filme de propaganda oficial

  • intitulado O Horto Florestal de Manaos, projeto que abriu caminhos para uma

    segunda fase da sua carreira cinematogrfica. Segundo o dirio A Imprensa,

    na edio de 26/01/1918, "este o primeiro film de uma grande srie que ser

    preparada de acordo com o governo para a propaganda do Amazonas no sul e

    no estrangeiro" [COSTA, 1987: 152]. Os efeitos da crise comercial da borracha

    se alastravam rapidamente e a elite local buscava reanimar a economia

    amazonense. Grandes comerciantes da cidade se associavam ao governo e

    decidiam criar a Amaznia Cine Film, tendo Silvino Santos como scio e

    operador. O empreendimento era ambicioso: importaram uma moderna cmera

    Bell&Howel, equipamento para revelao e copiagem de pelcula. O ttulo do

    primeiro projeto j sugeria a materializao do sonho que trouxera Silvino,

    ainda menino, ao Brasil: Amazonas, o Maior Rio do Mundo.

    Enquanto se preparava a produo, surgiu o convite para acompanhar uma

    expedio pela Amaznia, chefiada por Leopoldo de Mattos, espcie de cnsul

    de Mato Grosso em Manaus. Nesta viagem, quem filmou um ato marcante da

    trajetria de Rondon no foi seu cinegrafista Toms Reis, mas Silvino Santos,

    conforme escreveu em suas memrias: "A caminho para Presidente Marques,

    o cel. Leopoldo de Mattos entregou ao capito Rondon a promoo a coronel

    (...) eu filmei esta cerimnia em plena selva. Seguimos viagem at Villa Bella

    no Alto-Guapor, acima do Forte Prncipe da Beira (...) tirei uma cpia positiva

    que foi entregue com os negativos aqui em Manaus Comisso de Mato

    Grosso" [apud COSTA, 1987:155].

    Entre 1917 e 1920 a Amaznia Cine-Film lanou pelo menos dez atualidades

    nos "cinemas" na Manaus, entre elas a primeira e nica edio de um

    cinejornal. No mesmo perodo, Silvino percorre o rio Amazonas, da ilha de

    Maraj selva peruana, empenhado na realizao de Amazonas, o Maior Rio

    do Mundo. mais um projeto que no se completa. Um professor de Manaus

    ofereceu-se para levar os negativos a Londres, onde seriam feitas as cpias e

    l os vendeu a uma empresa de turismo. A firma foi falncia, mas Silvino

    consegue manter-se de posse dos equipamentos.

  • A terceira fase da atividade cinematogrfica de Silvino, a mais longa e mais

    promissora, teve incio quando ele ofereceu a um dos maiores comerciante

    locais o projeto de um filme de propaganda da Amaznia, para ser exibido na

    exposio comemorativa do Centenrio da Independncia, que seria

    inaugurada em 1922 no Rio de Janeiro. O portugus Joaquim Gonalves de

    Arajo, que no havia sido procurado para integrar a Amaznia Cine-Film,

    acolheu a idia. O comendador Arajo havia comeado a vida como

    comerciante de piaava no rio Negro, mais tarde fundou uma firma em

    Manaus, e sempre procurou diversificar seus negcios. Tinha visvel interesse

    em abrir mercados e atrair investimentos capazes de reverter o quadro de

    estagnao econmica instaurado com o fim do ciclo da borracha.

    Toda a experincia que Silvino acumulou nos sete anos anteriores foi

    capitalizada no filme mais bem sucedido que realizou: No Pas das Amazonas.

    Como previsto, foi exibido na exposio de 1922, onde recebeu o nico prmio

    concedido a uma produo cinematogrfica, uma medalha de ouro. Diante da

    dificuldade inicial de lan-lo nos cinemas da capital federal, Agesilau de

    Arajo, filho do comendador, buscou ajuda junto ao ministro da Agricultura

    Miguel Calmon, conseguindo que o presidente Arthur Bernardes e alguns

    ministros assistissem ao filme no Palcio do Catete. Com a repercusso obtida,

    No Pas das Amazonas teve um exitoso lanamento comercial. No Rio, ficou

    cinco meses em cartaz. Em So Paulo, foi exibido em 17 cinemas: "No dia da

    estria, o Avenida teve que fechar as portas de ferro, tal foi o sucesso (...)

    neste mesmo dia, 7.836 espectadores viram o filme no Avenida e Royal, e 15

    mil, nestes mesmos cinemas, nos dias 6 e 7/8/1923" [BERNARDET 1979 (b):

    1923-48].

    Aproveitando sua permanncia na capital federal, Silvino filmou o carnaval nas

    ruas, a praia de Copacabana, as avenidas do centro, um jogo de futebol no

    campo do Fluminense e os pavilhes da Exposio do Centenrio da

    Independncia. Do alto do Corcovado, faz uma panormica da Baa de

    Guanabara. Viajou pela Serra da Mantiqueira e filmou as Agulhas Negras e o

    Itatiaia. De volta a Manaus, editou o material. Terra Encantada foi lanado em

  • dezembro de 1923. A Cinemateca do MAM/RJ conserva grande parte deste

    filme.

    No ano seguinte, Silvino foi contratado como operador de cmera da expedio

    liderada pelo norte-americano Hamilton Rice, que percorreu o rio Negro, Boa

    Vista, a serra do Parim e Rio Branco, atual Roraima - regio que pouco

    depois seria percorrida por Lus Toms Reis, acompanhando as expedies da

    Inspetoria de Fronteiras, sob a liderana de Rondon. A equipe de Rice

    dispunha de um hidroavio, o que possibilitou a Silvino fixar uma Bell&Howell

    na fuselagem e realizar aquelas que provavelmente foram as primeiras

    filmagens areas da Amaznia. A firma J.G.Arajo fazia em Manaus a

    revelao dos negativos, que ao fim da expedio foram levados para os

    Estados Unidos. Agesilau Arajo havia extrado uma cpia e, em outubro de

    1925, a J.G.Arajo lanou uma verso nos cinemas locais: No Rastro do

    Eldorado. Cpia em nitrato deste material foi localizada no National Film

    Archive, em Londres.

    A firma ainda produziu e lanou cerca de dez outros programas de atualidades

    nos cinemas de Manaus, antes que Joaquim Gonalves Arajo levasse parte

    de sua famlia para Portugal, para uma permanncia de dois anos. Silvino os

    acompanhou e fez nada menos que 35 curtas exibidos comercialmente, 15

    filmes de famlia e dois projetos longos. O primeiro, Miss Portugal, de 1927, foi

    uma "reportagem cinematogrfica" que o levou a registrar desfiles em Vigo,

    Porto e Estoril. O segundo foi Terra Portuguesa - o Minho, finalizado

    tardiamente, em 1934, no Rio de Janeiro, beneficiando-se da tecnologia do

    sonoro. Em suas memrias, Szilvino fala sobre a dublagem dos nmeros

    musicais: "O som era gravado no filme separado, depois copiava-se o positivo

    e de lado o som. Foi o primeiro filme mudo que se sincronizou. Ficou timo. Foi

    um sucesso, todos gostaram (...) Fez-se diversas cpias que se passou em

    diversos cinemas" [in COSTA 1987: 194]. Silvino nunca voltaria a utilizar a

    utilizar o som.

    Neste mesmo ano de 1934, Joaquim Gonalves Arajo decidiu desativar a

  • produo de filmes. Silvino, ento com 48 anos, no procurou outro

    patrocinador. Permaneceu como um homem de confiana do comendador,

    deslocado para atividades que nada tinham a ver com suas antigas funes,

    como a criao de padronagens para tapetes de borracha, a organizao do

    empacotamento de produtos e outros servios menores. Vez por outra, filmava

    cenas da famlia Arajo e passeios de barco pela regio. Seu ltimo projeto,

    inacabado, foi um filme sobre a Vila Amaznia, uma ex-colnia de japoneses

    desapropriada aps a II Guerra e comprada por J.G.Arajo. Vivendo em um

    barraco onde o comendador guardava objetos em desuso, Silvino passou

    longos anos inativo, junto com seus rolos de filme e fotografias em chapa de

    vidro, que, sem conservao adequada e expostos umidade tropical, foram

    se deteriorando com o passar do tempo.

    O Filme No Pas das Amazonas

    No Pas das Amazonas se apresenta, atravs das cartelas, como um filme de

    viagem, descrevendo um percurso pelos rios da regio. Mas sua estrutura

    corresponde a um documentrio de propaganda das riquezas naturais e das

    condies de beneficiamento, transporte e comercializao dos produtos

    amaznicos, com amplo destaque aos estabelecimentos J.G.Arajo e seus

    fornecedores na regio.

    A cmera de Silvino tem grande mobilidade e toda a primeira parte do filme

    constituda por lentas panormicas descritivas. O filme comea pela metrpole,

    exibindo as instalaes porturias, os monumentos urbanos e o movimentado

    comrcio manauense. Em seguida, sucedem-se as sries de produtos,

    apresentadas por cartelas graficamente decoradas: "As pescas", "A castanha",

    "A borracha", "O guaran" e "A balata". Por fim, as atraes naturais da regio

    de Rio Branco, atual estado de Roraima, e a criao de gado nas fazendas de

    Arajo. Pontuando as seqncias principais, so mostrados exemplares

    exticos da fauna regional - jacar, preguia, macaco, anta, borboleta, lontra,

    ona, tamandu, tartaruga e gara - ou pontos geogrficos notveis do "bero

  • esplndido" - Salto Teotnio e "a clebre Pedra Pintada". A lgica da

    propaganda comercial prevalece sobre o roteiro da viagem: tanto a castanha

    quanto a borracha formam sries fechadas, que acompanhamos desde a

    colheita, o beneficiamento, o transporte e, por fim, o armazenamento em

    Manaus.

    Na edio, nota-se um especial cuidado com a imagem dos ambientes de

    produo, sempre racionais, limpos e humanizados. Os trabalhadores so

    sorridentes, bebem gua durante a jornada e refrescam-se no rio ao final,

    sendo remunerados conforme a produtividade. Na exibio da grandiosidade

    das instalaes, no falta uma seqncia da sada dos operrios dos

    estabelecimentos Arajo, ao modo do primeirssimo filme do cinematgrafo,

    filmado pelos Lumire em frente ao porto de sua fbrica em Lyon.

    Embora simule uma viagem pela Amaznia, o filme no reproduz propriamente

    o roteiro das filmagens. Relatos de Silvino indicam que os trabalhos

    comearam nas fazendas de J.G.Arajo, subiram at a regio da fronteira com

    a Venezuela, desceram at a pesca do pirarucu e do peixe-boi no lago do

    Piracuara, seguiram em direo aos seringais do rio Madeira, passando pela

    aldeia dos ndios Parintin, voltando a Manaus, retomando a viagem para o rio

    Purus, onde filmaram a castanha, e finalmente para Vista Alegre, na rea de

    cultivo da balata [in COSTA 1987: 168].

    As cartelas contendo legendas, prdigas de adjetivos, metforas e clichs, so

    de autoria de Agesilau de Arajo. O mito das Amazonas, j evocado no ttulo,

    reforado nas quatro primeiras cartelas, que desfiam uma interminvel

    louvao parnasiana regio: "Tradicional desde as audazes cavaleiras, que

    emprestaram seu nome ao ttulo deste filme, o Amazonas, em toda a sua

    enorme extenso territorial, muitas vezes superior a de tantos outros pases,

    quase um continente, afigura-se-nos como que um gigante adormecido e

    embalado em seu sono pelo ritmo ruidoso de seus rios sem conta, depositrios

    de fortssima variedade de peixes; acalentado pelo gorjeio harmonioso e

    incessante dos pssaros mais encantadores, habitantes inquietos de suas

  • matas sombrias; acariciado por suave brisa, respirao inebriante de suas

    florestas opulentas, preciosos tesouros da natureza. E essas suas serras,

    arcas dos mais valiosos e resplandecentes minerais, a se erguem do solo,

    como guardas-avanadas e parecem enfeitar-se, majestosas, de luxuriante

    vegetao para saudar num anseio pressuroso, aqueles braos e capitais que

    amanh ho-de desvendar-lhe os mistrios de sua incalculvel riqueza".

    Embora o filme tenha como finalidade principal a propaganda amaznica, nota-

    se nas legendas uma excessiva preocupao educativa, que faz acompanhar

    de seus nomes cientficos as imagens de espcies vegetais e animais -

    aprendemos que o peixe-boi chama-se Manatus Americanos; tambaqui,

    Myletes Bidens; o jacar, Calman Niger; o fumo, Nicottiana Tabacum; e a

    seringueira, Hvea Brasiliensis. Aps um plano geral de um numeroso grupo

    de vaqueiros cavalgando no campo, duas cartelas finalizam o filme em tom

    ufanista: "Terminaram as campeadas. Os vaqueiros regressam s fazendas e

    passando por uma elevada rocha, fortes e unidos mirando as terras que se

    abraam com o horizonte, soltam o patritico brado: Viva o Brasil!". No muito

    longe daquela fronteira norte, cinco anos mais tarde, Reis filmaria os

    expedicionrios da Inspetoria de Fronteiras chegando no alto do Monte

    Roraima. Bandeiras da Venezuela, da Inglaterra e do Brasil tremulavam sobre

    o grupo, ao lado de uma pedra onde se l: "General Rondon Viva o Brasil 29

    out. 1927". Meras coincidncias histricas ou snteses perfeitas do bero

    explndido com o ritual do poder?

    Mesmo sendo a obra mais conhecida de Silvino Santos, as cpias existentes

    de No Pas das Amazonas no correspondem exatamente verso original. A

    pesquisadora amazonense Selda Vale da Costa, principal bigrafa de Silvino e

    compiladora da mais completa filmografia que dele se conhece, esclarece: "A

    cpia em 16mm, localizada em Manaus, em 1984, corresponde de 1962,

    faltando algumas seqncias das trs primeiras partes sobre Manaus. Fizemos

    uma nova montagem dessas partes, a partir do material flmico encontrado e

    em base a informaes das exibies na poca. Em agosto de 1986

    localizamos na Cinemateca de S. Paulo um rolo, de 6', sobre os ndios parintins

  • e os ndios do Putumayo, parte de No Pas das Amazonas, que foi integrada

    cpia a ser exibida" [COSTA 1987: 173]. Na verso existente na Cinemateca

    Brasileira esta seqncia dos ndios, que abre com o letreiro "Os ndios

    parintins e outros", est agregada ao final do filme, e conclui com uma cartela

    do INCE, provavelmente acrescentada nesta instituio, muitos anos depois.

    J na cpia 16mm existente no CTAV do MinC, a seqncia dos ndios est

    agregada ao incio do filme. Uma resenha publicada no dirio O Estado do

    Par em 28/12/1922, com citao expressa de uma das legendas, confirma

    que esta seqncia dos ndios aparecia no meio do filme. O mais provvel

    que, em vista dos problemas causados poca pela nudez das ndias, o trecho

    tenha sido retirado para facilitar a comercializao, sendo mantido em um rolo

    separado, que mais tarde foi agregado aleatoriamente ao incio ou ao fim do

    filme.

    Apesar da notvel repercusso que seus filmes tiveram na poca em que

    foram realizados, Silvino Santos figurava apenas como operador- ou sequer

    figurava - nos impressos de divulgao e nos anncios de jornais. Todo o

    crdito era dado a J.G.Arajo & Cia. Ltd. Talvez por isso, seu nome tenha

    mergulhado no mais completo esquecimento durante dcadas. Na cidade de

    Manaus, a partir de 1960, houve sucessivas iniciativas no campo da cultura

    cinematogrfica: o GEC-Grupo de Estudos Cinematogrficos, o Cineclube Dom

    Bosco, um Festival de Cinema Amador em 1966, a publicao de "O Cinfilo -

    revista amazonense de cinematografia", entre outras atividades de crtica e

    realizao amadora [LOBO]. Nada disso foi capaz de trazer tona o nome do

    pioneiro do cinema amazonense.

    No segundo semestre de 1969, um grupo de cinfilos manauenses reuniu-se

    na casa da famlia de Cosme Alves Neto para desenvolver o projeto de um

    festival de cinema em Manaus, que acabou sendo realizado meses depois.

    Cosme j era h alguns anos o responsvel pela Cinemateca do Museu de

    Arte Moderna do Rio de Janeiro, um dos mais antigos e ativos plos de cultura

    cinematogrfica em nosso pas. Mas, do mesmo modo como os demais

    presentes, todos amazonenses, nunca tinha ouvido falar em Silvino Santos.

  • Quase vinte anos depois, em uma entrevista coletiva gravada em Manaus,

    Cosme rememorou o prosaico episdio: "Ento, naquela primeira reunio que

    foi realizada no jardim de casa (...) aparece meu pai na janela, (...) e disse:

    'Vocs deviam era procurar o Silvino Santos, um portugus que fez cinema

    aqui na dcada de 20 e ningum fala dele'. Eu que nunca tinha ouvido falar em

    Silvino Santos! - Quem Silvino Santos? 'Ele funcionrio do J.G.Arajo'. E

    assim, j no dia seguinte, foram encontrar Santos, "num canto de garagem de

    um prdio do J.G na rua Isabel, onde havia montado um escritoriozinho, onde

    havia vrios rolos de filmes, mquinas que ele mesmo havia construdo na

    dcada de 20, e fomos conversar com ele" [in COSTA, 1987: 113]. Silvino foi o

    grande homenageado na sesso de encerramento do I Festival Norte de

    Cinema Brasileiro, a 26 de outubro de 1969, aplaudido de p pelo pblico

    reunido no Cine Odeon. Morreria meses depois, em 14 de maio de 1970.

    Lus Toms Reis e Silvino Santos foram espritos aventureiros que no se

    conheceram, embora tenham comeado quase simultaneamente a filmar os

    espaos selvagens da Amaznia. O primeiro trabalhou para instituies

    pblicas, o segundo "cavou" patrocnio privado. Ambos fizeram,

    simultaneamente a Flaherty, uma interpretao criativa do filme de viagem; e,

    antes de Grierson, um cinema educativo e de propaganda. Todos os filmes que

    realizaram podem ser enquadrados na tradio do documentrio, embora este

    nome s viesse a circular no final dos anos 1920. A maior parte de suas

    extensas obras se perdeu, restando poucos filmes inteiros e alguns fragmentos

    nas cinematecas brasileiras e estrangeiras. Caram no esquecimento, sendo

    discretamente recuperados dcadas depois. Cada um a seu modo, ambos

    representaram as possibilidades e os limites dos sucessivos ciclos que

    marcaram o cinema brasileiro do sculo XX, bem sintetizados na expresso

    melanclica porm agudamente realista de Paulo Emlio Salles Gomes: "uma

    trajetria no subdesenvolvimento" [GOMES 1996a].

    Silvio Da-Rin

    Outubro de 2006

  • Agradeo a Patrcia Monte-Mr, Denise Portugal Lesmar e Nelie S Pereira

    pelas indicaes e emprstimo de materiais que tornaram possvel a

    elaborao do presente texto.

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