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ANAIS DO IV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Junho/2015
1 IV Encontro Científico da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA 2015 http://www.portalanda.org.br/anais ISSN 2238-1112
DANÇA DO ESTRELA: CORPOREIDADE EM MOVIMENTO
Laís Salgueiro Garcez (UFF)i
RESUMO: Este é um fragmento da minha dissertação em Antropologia Cultural. Meu objeto de análise foi a Dança do Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife. Demonstro que esta dança se configura a partir das experiências cotidianas de cada individuo em relação ao mundo social que vive. Diante disso apresento uma visão antropológica sobre a metodologia desenvolvida pelo dançarino e mestre Maurício Soares que sobrepõe suas experiências individuais e coletivas para a manutenção e recriação de seus saberes corporificados. Além disso, revela a ênfase no universo afro diaspórico como via de percepção dos movimentos (unindo vivências, corpo, som e voz). Estes saberes integram as dimensões sociais, políticas e culturais de suas ações corporificadas.
PALAVRAS CHAVES: corporeidade, movimento, maracatu, Maurício Soares, saberes corporificados.
ESTRELA’S DANCE: CORPOREITY IN MOVEMENT
ABSTRACT: This is a piece of my Cultural’s Antropology master project. My object
was the Maracatu’s dance of Nação Estrela Brilhante de Recife. I demonstrate that this dance is configured by everyday (rotinary) individual experiences related to the experienced social world. By this I do an anthropological approach about the methodologies used by the master and dancer Maurício Soares, who overrides individual and collective experiences for the maintenance and recreation of embodied knowledge. This also reveals an emphasis of the afro diasporic universe as a way for the perception of movements (joining existences, body, sound and voice). That knowledge integrates the social, political and cultural dimensions of their embodied acts.
KEYWORDS: corporeity, movement, maracatu, Maurício Soares, embodied
knowledge.
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Maracatus Nação
Um dos traços definidores dos Maracatus Nação é a permanência do culto às
calungas1 realizado em terreiros de Xangô e/ou Jurema2. De acordo com seus
integrantes, é no carnaval que as calungas “podem ver toda a sua nação unida”. Na
rua, durante o cortejo, são exibidos figurinos, adereços e personagens, como
lanceiros, baianas ricas, caboclos, rei e rainha, damas de paço, porta estandarte,
baianas de cordão ou catirinas e outros, todos respondendo as “toadas”3 junto com
os batuqueiros, que tocam os instrumentos percussivos.
Hoje em dia, o Maracatu tem repercussão em vários países graças ao
surgimento de “grupos” pelo mundo4. A principal diferença entre as Nações e estes
novos “grupos” é a relação dos primeiros com terreiros e rituais afro-brasileiros e sua
realidade periférica. Esta diáspora5 do Maracatu permite que sua performance viva
intensos processos criativos que lidam, por um lado, com memórias e histórias e por
outro, com a possibilidade de transformações culturais. Essa dinâmica se revela nos
corpos em movimento, que estão constantemente revisando e atualizando seus
1As calungas são as entidades pelas quais toda a Nação dedica devoção e correspondem a
bonecas (por vezes bonecos) pretas feitas de madeira, pano ou outros materiais, representando ancestrais significativos para a Nação. Estas recebem obrigações rituais e são consideradas suas protetoras.
2O culto de Xangô é uma forma religiosa afro-brasileira que tem paralelos com o candomblé da Bahia. Sua linha predominante em Recife é a nação nagô. Seu sistema de crença está baseado nos rituais para os orixás (divindades da natureza), no orí (princípio vital individual) e nos eguns (ancestrais). A Jurema é um dos cultos, ao lado dos terreiros de Xangô, que estão mais presentes em Pernambuco. Teoricamente as duas seitas seguem rituais e preceitos diferentes, mas como veremos é possível seu intercruzamento: é o caso do Estrela Brilhante de Recife atualmente. A Jurema é, portanto uma linhagem das religiões afro descendentes onde estão presentes entidades espirituais como caboclos, índios e mestres. Na minha experiência em campo o termo “jurema” foi aos poucos sendo vivenciado a partir da minha relação com o mestre Maurício, desde a ingestão da bebida chamada jurema até a presença num terreiro de jurema e numa festa de jurema.
3As “toadas” ou “loas” são os cantos das Nações de Maracatu. 4Essa repercussão se dá pelo movimento crescente do resgate da cultura popular
pernambucana no fim da década de 80, evidenciando o surgimento crescente de “grupos” de Maracatu considerados para-folclóricos ou estilizados, diferenciando-se assim, das Nações. Vê Salgueiro (2013).
5O conceito de diáspora foi bastante abordado pelos estudos culturais e descreveu os exílios, fugas e dispersões dos judeus, as fragmentações espaciais e culturais vividas pelos africanos e as migrações na atual era da globalização. Esses movimentos diaspóricos engendraram novas formas de organização social e cultural para esses povos, de modo a contribuir com a concepção aqui proposta de que os movimentos produzem categorias corporificadas explicativas de uma realidade.
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saberes corporificados6, por exemplo, ao observarmos o desfile da Nação estudada7
podemos perceber que seus dançarinos vivem personagens que compõem suas
“toadas”, de modo que não há uma separação clara entre as linguagens em
movimento (toque, canto, dança).
Dança: um dos órgãos do Maracatu
A dança foi classificada por Mauss (2003) como uma “técnica do movimento”,
tendo sua eficácia e está em todas as sociedades. Para ele as formas como o corpo
é usado, estão relacionados aos atos técnicos, físicos, psicológicos, sociais,
culturais e mágico-religiosos, os quais se confundem no seu agente. Sheets-
Johnstone (1999) diz que os movimentos são formas corporificadas de pensar –
“thinking in movement” – que se manifestam através das atividades humanas que,
por sua vez, se relacionam com determinadas dinâmicas culturais. Disso decorre a
importância do corpo como campo de produção de subjetividades e performances
coletivas. Recorro, então, ao paradigma metodológico da corporeidade, entendido
como "a base existencial da cultura” (CSORDAS, 2008, p.102) e demonstrando que
no caso do Maracatu, seus rituais e performances expressam saberes oriundos de
processos interativos entre corpo e mente, indivíduo e cultura, percepção e ação.
A análise a partir do paradigma da corporeidade revela que os movimentos da
Dança do Maracatu podem ser entendidos como uma linguagem não verbal, onde “o
bom dançarino é o que sente, escuta... os tambores respondem a toada”8. Dunham
(1983) enfatiza esse papel das performances afro diaspóricas ao demonstrar que
nas danças do Haiti os dançarinos ficam impossibilitados de executarem suas
coreografias se não há ninguém para tocar o ritmo ou cantar a música para
acompanha-los.
6Tavares (1984,p.76) define o saber corporal como “uma enunciação em prática discursiva,
que se serve dos movimentos e ações corporais para a estruturação de seu repertório. Este repertório é a resultante das articulações dos signos que são elaborados das vivências cotidianas ou nelas intercambiadas”. Seguindo esta definição falo em saber corporificado enfatizando o caráter encarnado dos saberes apreendidos cotidianamente característico das performances afro diaspóricas, que a partir de uma filosofia prática tem o corpo como centro das organizações de suas atividades.
7Meu contato foi com o Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife, vivendo um total de aproximadamente 4 meses em sua comunidade entre 2012 e 2013. Abreviarei o nome da Nação com a sigla MNEBR.
8MAURÍCIO SOARES em entrevista em fevereiro de 2012.
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Neste artigo, teremos como referência a dança do MNEBR, especialmente
através da compreensão de seu integrante, Maurício Soares. Sua dança se revela
como um conjunto de movimentos e gestos que seguem um fluxo reconhecido que
vai do centro para a periferia do corpo de um indivíduo tão logo bate o tambor de
sua Nação, fazendo mover um cortejo tanto em Recife quanto em outros lugares do
mundo – fazendo alusão à diáspora do Maracatu.
De acordo com Laban “a dança pode ser considerada como a poesia das
ações corporais no espaço. Na dança selecionam-se poucas, mas significativas
ações corporais que compõem os modelos característicos de uma dança particular”.
(LABAN, 1978, p. 52). Portanto, na Dança do Maracatu sua poesia é preenchida por
um conjunto de gestos: na metade superior do tronco os braços se movimentam
incessantemente preenchendo os espaços ao redor de seu corpo, na parte inferior
as pernas e pés pisam forte no chão e todo o tronco descobre diversas direções
para o seu eixo, principalmente devido aos constantes giros. O conjunto desses
gestos que configuram a dança da Nação revela como o corpo individual se dilui no
coletivo configurando algo parecido com o que Dunham (1983) classificou como
“danse-collé”9, uma dança de massa que no Haiti ocorria durante o carnaval. Além
disso, sem a dança os figurinos10 do carnaval da Nação não realizam seu propósito
de destacar os movimentos do personagem. Maurício Soares explica:
ser a baiana rica é um compromisso sério de você defender um pavilhão e saber dominar a roupa que eu visto, a saia que eu visto, o sapato que eu danço... A dança do Maracatu é um dos órgãos que precisa tá sempre junto. Se o batuque é a força, é o coração, o impulso, então a dança é um dos órgãos que também ajuda o coração a bater, a movimentar.
No Maracatu, seu ritmo interliga a dança, o som dos tambores, seus
adereços, e os cantos configurando uma “dance-music form” (DANIEL,2002, p.23).
Entende-se então, que dançar Maracatu é como dançar a vida. É uma dança
9Para Dunham (1982, p.59) o que define a “danse-collé” é a massa compacta que engendra
coesão social enquanto que, ao mesmo tempo, os impulsos recreativos e os desejos de externalizar e compartilhar experiências desenha um conjunto de pessoas juntas (tradução minha para “the closeness and the compactness of the mass engenders social cohesion, while at the same time the gregarious, recreational impulses and the desire to externalize and share experiences draw people together in mass form.”)
10Os figurinos fazem parte da construção do carnaval da Nação, momento ritual fundamental, quando são atualizados seus saberes corporificados, dando ênfase ao também aos ensaios da percussão e aos “trabalhos religiosos”. Vê Salgueiro (2013).
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catártica que desperta muitas atenções e além de evocar força para estar presente
ali nas condições permitidas (noite, frio, chuva, cansaço, sol, empolgação, chão de
paralelepípedo, dores...), seja no desfile de carnaval ou nos ensaios ou
apresentações de rua. É uma dança em que todos cantam juntos com os tambores.
Os corpos se integram, seja qual função exerçam – cantador, tocador ou dançarino.
Ela faz menção aos símbolos específicos daquele contexto (exemplos: Joventina,
Erundina, dama do paço, estandarte, Nação, Cangaruçu...). E leva seus movimentos
ao extremo, com a invasão do espaço com aparentes repetições, mas com gestos e
articulações dos braços que nunca se repetem porque, paradoxalmente, a
performance depende do contexto e da interação dos corpos que dividem aquele
momento.
Experimenta-se que “ser corpo, é estar unido a um certo mundo” (MERLEAU-
PONTY, 2011) e que além desses destaques apontados, no caso do Maracatu,
mantém-se uma forte intimidade com a gestualidade das danças dos cultos
religiosos afro diaspóricos, visto que o eixo de funcionamento de uma Nação se dá
em torno à adoração de suas entidades religiosas.
Mestre Maurício11
A performance de Mestre Maurício do MNEBR não envolve apenas o
aprendizado de uma saber corporificado que ele tenta transmitir, mas envolve uma
maneira de vida, modos de se colocar no mundo diante das suas condições sociais
e culturais. Ele diz: “Eu defendo o meu pavilhão. Sou Estrela Brilhante!”. Ou seja,
indivíduo e coletivo tornam-se um corpo só, uma forma de estar no mundo que tem
em vista referências vividas cotidianamente. Ele nos conta que
As minhas técnicas de dança eu posso dizer que quem me ajudou a desenvolver as minhas técnicas de dança foi Dona Joventina e Dona Erundina... e também geralmente a convivência porque quando vocês vêm de raízes do candomblé, minha mãe vem do candomblé... já tem nossos sotaque, nós já temos nosso sangue, nossas veias começam a ferver com os tambores tocando. E foi daí... a experiência também assistindo o desfile
11Mestre Maurício é umas das “baianas ricas” do MNEBR, além disso, é juremeiro há mais de
10 anos e mora na Mangabeira – o outro lado do Alto José do Pinho, onde está a sede da Nação. Tem passagem pela Escola de Samba Gigantes do Samba e pelo Maracatu Nação Leão Coroado e inaugura o atual período histórico do Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife junto com a Rainha Marivalda e Mestre Walter.
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de Maracatu... vendo o desfile de Leão Coroado, e do samba que também querendo ou não é uma dança de negro. Então fazendo a mistura de samba junto com o Maracatu foi que conclui tudo... (silêncio) Foi a essência de tudo...(Grifos meus, entrevista realizada em fevereiro de 2012)
Esta fala de Mestre Maurício apresenta que a forma primeira de aprendizado
de seus saberes corporificados se dá na convivência cotidiana, na relação com os
elementos que compõem aquela Nação (ensaios, carnaval, figurinos, rituais
religiosos) e levando em conta também as experiências individuais de cada um.
Seus saberes corporificados expressam que
[...]cada um dos movimentos se origina de uma excitação interna dos nervos, provocada tanto por uma impressão sensorial imediata quanto por uma complexa cadeia de impressões sensoriais previamente experimentadas e arquivadas na memória (LABAN, 1978, p.49).
Oficinas de Dança De Maracatu
O atual contexto diaspórico produziu a necessidade de organização de
oficinas de dança para as pessoas que se interessam em conhecer o maracatu. Isso
gerou uma construção metodológica específica e voltada para quem não tem o
convívio com a comunidade o ano inteiro e quer sair dançando no carnaval da
Nação. De acordo com Maurício, as oficinas podem ser consideradas como uma
experiência necessária para apreender a corporeidade da Nação e com isso
compartilhar gestos, ritmos e histórias. No entanto ele reforça o caráter cotidiano dos
aprendizado dizendo que
to passando pra vocês o pouco saber, é como eu digo a vocês, Maracatu num é nunca a primeira aula, nunca segunda, num é o primeiro desfile de vocês dentro do Maracatu que vai dizer assim: „eu já sei dançar Maracatu‟. Não é isso! Nem é a primeira vez que a gente tá tocando um tambor que a gente diz “eu já sei tocar Maracatu‟. É a vivência, é aquilo que falei antes. É a universidade, quanto mais se estuda mais coisas tem pra se aprender, quanto mais estuda mais coisa vai se descobrindo, mais coisa vai se vivendo... (Grifo meu, entrevista em fevereiro de 2012)
As aulas se desenvolveram de modo que as Formas dos movimentos eram
incessantemente repetidas. Na tentativa de aprender a dançar perguntou-se sobre
possíveis “regras” para se iniciar o movimento e o Mestre mais uma vez disse “pode
começar com qualquer um”, o importante é entender o “passo básico”. Além disso,
enfatizou “não precisa uma fazer igual à outra, o bonito do Maracatu é não seguir”.
Assim, o início do movimento da Dança do Maracatu é o próprio improviso.
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A observação e a participação das oficinas e convívio com o Mestre me fez
pensar em Formas e Estruturas que constituem sua dança. Inicialmente percebe-se
que a dança se apresenta como uma totalidade onde se mexem os braços e mãos,
pernas e pés, tronco e voz. Parafraseando Laban (1978), na dança, a Forma são os
gestos, posturas, passos que o corpo desenha no chão e no ar e que contém um
ritmo próprio. No caso da Dança do Maracatu entendo que as suas duas principais
Formas são o “passo básico” e o “gingado”, já sua Estrutura é baseada no diálogo
com os sons – o que vai direcionar o ritmo da performance. Esta relação entre
Forma e Estrutura apresenta-se, a meu ver, quando Gonçalves (2010) em seu
estudo sobre as danças de carnaval diz que os “gestos são executados
diferenciadamente, mas a partir de um repertório amplamente compartilhado”.
Seguem as categorias elencadas:
1 – o “passo básico”: se refere às movimentações dos pés. A partir delas são
desdobradas as giradas e caminhadas de um lado para o outro. De acordo com o
Mestre é importante a incorporação desta Forma para que com as mudanças do
“baque”12 se retorne facilmente ao “passo básico” e se realize sua função: não
perder o ritmo. Por exemplo, o “baque de parada” pode ser entendido como uma
célula rítmica que pede que os perfomers girem (improviso) e quando os tambores
retornam para a marcação rítmica os dançarinos devem retornar ao “passo básico”.
Descritivamente, o “passo básico” diferencia-se do samba na ponta do pé ou dos
pés em chute típicos do afoxé, como explica Maurício.
2 – o “gingado”: é o “jogo dos ombros”, como demonstra o Mestre. É uma
movimentação do corpo onde os pés repicam jogando automaticamente os ombros
para cima. O “gingado” do corpo continua no mesmo ritmo, com a base dos pés.
O batuqueiro Pitoco me explica que dentre as muitas diferenças entre a
Dança do Maracatu nas Nações e nos “grupos”, a principal é: “o gingado da dança
do Maracatu... das pessoas da comunidade são totalmente diferente das do
grupo...”. Dessa forma, a categoria “gingado” citada por Maurício e por Pitoco pode
ser vista como uma Forma do movimento dançado que traça um diálogo com o ritmo
a partir de vários caminhos pelo corpo, podendo, no entanto, ter ênfases distintas.
12São os toques dos tambores do Maracatu.
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Além disso, a categoria pode ser vista como uma derivação de “ginga”, corroborando
com a leitura de Tavares (1998) sobre o significado de ter a “ginga”, ou seja, de ter
uma noção de ritmo, de balanço e de percepção que se conectam na performance
dos sujeitos. Por fim, a categoria corporificada mapeia os modos como os sujeitos
da afro diáspora se entendem no mundo a partir de seus cotidianos.
3 – o diálogo com som: “é preciso estar atento ao baque que está tocando”,
diz Maurício, “para saber o que a música pede”. A meu ver, diferente do “passo
básico” e do “gingado” esse diálogo não se configura como uma Forma, mas como
uma Estrutura da própria organização da dança, que tem por fim as funções de guiar
e indicar os momentos em que os dançarinos devem girar ou apenas marcar com o
“passo básico”. Esta compreensão é clara para seus dançarinos, como disse
Maurício “Se o Maracatu não tiver dança, e o grupo não tiver dança então não é um
Maracatu, porque todo ritmo precisa de dança”. O som do apito do mestre também
se relaciona com a dança, o primeiro anuncia a entrada da percussão e suscita a
preparação dos corpos para o início da dança, o segundo chama a viração do
“baque” – é a hora que os dançarinos devem girar. E o último apito “é que vai
terminar”, todos da Nação devem estar atentos a esse momento para que os
movimentos do toque, da dança e do canto cessem coletivamente.
Diante desses três destaques entende-se que as Formas da dança (“passo
básico” e “gingado”) estão relacionadas às experiências específicas de um coletivo e
de um indivíduo (DUNHAM, 1983), reforçando a proposta metodológica da
corporeidade que compreende as performances humanas a partir da relação entre
as percepções e experiências individuais e seus contextos culturais. Já a Estrutura
destaca a ênfase no ritmo da performance, que caracteriza a conexão coletiva da
dança. Dessa forma, o diálogo com os sons é seu ponto de partida, o plano a partir
do qual se constroem linguagens não verbais – o que caracteriza as danças de
matriz africana como já salientou Dunham (1983).
Portanto, a relação de música com dança, as “toadas” organizadas em cantos
de pergunta e resposta e o diálogo e improviso entre todas as linguagens dessa
performance (canto, dança e batuque) revelam um corpo catalisador de significados
do mundo, de modo que seu caráter experimental se expressa através da inter-
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relação de Formas e Estrutura, onde as primeiras são maneiras de se manter a
segunda e fazer funcionar o organismo Maracatu com o toque do seu coração
(batuque) e seu órgão dança.
Considerações Finais
Os exemplos do cotidiano do Mestre e suas oficinas mostram que a Dança do
Maracatu revela tanto a esfera das memórias afetivas – quando ele diz que som dos
tambores “faz o sangue ferver” – quanto as esferas econômicas e políticas do
MNEBR.
Nestas últimas, nesse período de diáspora do Maracatu, as oficinas de Dança
do Maracatu se apresentam como um meio legítimo de sobrevivência econômica, de
onde o Mestre pode complementar sua renda e também investir nos seus
“trabalhos”13. Isto fica intrinsecamente atrelado ao poder político dessa Dança que
afirma que as Nações formam a “universidade” do Maracatu, ou seja, o lugar do
conhecimento, o lugar “autêntico”14 para se aprender. Seus saberes corporificados
reforçam uma filosofia própria, cotidiana e prática que se apresentam como
possibilidades de ser-no-mundo que tem seu paralelo com as forças organizacionais
dos movimentos vividos na afro diáspora em outros períodos históricos. A
performance afro diaspórica
implica uma transgressão refletida em dois níveis, no mínimo: primeiramente porque sua realização [da dança] ao nível empírico contrastaria com eventos que ocorressem naquele cotidiano despótico, principalmente para os escravos, pois, no caso, este evento corresponderia a um outro código linguístico e, portanto, a uma outra fala, num território já delimitado pela guerra etnocida de imposição de convenções comportamentais. Em segundo lugar, devido ao efeito catártico sobre os agentes, na medida que, ao se transpor a bipolaridade objetividade/subjetividade, transpassava-se a rotina, as inculcações, as internalizações arbitrárias... (TAVARES, 1984, p. 44)
A passagem revela, portanto, o corpo, sua dança e movimentos como “arma e
arquivo” (TAVARES, 1984), por onde se expressa uma realidade cultural que se
13A categoria “trabalho” foi amplamente discutida na minha dissertação como um conjunto de
atividades e de formas de organização cultural que engendram uma variedade de experiências corporais (os “trabalhos” da percussão, da dança, dos figurinos, do carnaval, dos terreiros....), determinando pertencimentos culturais e reconhecimento político.
14O termo “autenticidade” faz referência aos modos como os próprios integrantes das Nações se auto referenciam como “autênticos”, “originais”, construindo politicamente suas “raízes”.
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contrapõe às linguagens dominantes e que transpõe polaridades de modo que
mente e corpo, percepção e ação não se distinguem, mas configuram um saber
corporificado.
Desde a ótica da performance, a perspectiva aqui proposta pode contribuir na
compreensão da totalidade da vida do performer e seu grupo, desde a história
pessoal e experiências individuais até as esferas política e econômica. Assim é
possível compreender os modos como se dão o contorno dos pertencimentos a
partir de linguagens não verbais que comunicam um conjunto de sentidos culturais,
que no caso, se expressam na Dança do Maracatu.
No entanto, a definição seguinte nos ajuda a entender que
a dança: a) pode exprimir a infinidade do sentido e da experiência humana; b) que, para o fazer, recorre a um numero infinito de gestos (como a linguagem articulada forma uma infinidade de frases); c) que os gestos infinitos se constroem a partir de um numero limitado de movimentos (como as frases a partir das palavras, dos monemas e dos fonemas (GIL, 2004, p. 81)
Portanto, a Dança do Maracatu configura-se como uma corporeidade em
movimento na medida em que se encontra no limiar entre uma semântica conhecida
e entre a possibilidade de articulações diversas que vão abrir o corpo dançante para
múltiplos sentidos no mundo. Isso reforça o caráter dinâmico de performances tidas
como tradicionais, e que sua própria sistematização a partir do método de Mauricio
revela uma força criativa como forma de vida e sobrevivência.
Para uma genealogia do movimento – como forma de pensamento repleto de
memórias e sempre em risco de ser transgredido – as categorias “passo básico” e
“gingado” revelam que existem diferentes modos de se dançar Maracatu, mas todos
eles costuram um organismo onde “o batuque é o coração e a dança é um dos
órgãos que faz o coração movimentar”. Mesmo espalhado pelo mundo os corpos na
Dança do Maracatu não deixam de pulsar ao som de tambores e na descoberta de
seus giros.
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Referências
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SALGUEIRO, Laís. Os movimentos do Maracatu Estrela Brilhante de Recife: os “trabalhos” de uma “nação diferente”. Dissertação de Mestrado, Antropologia, PPGA/ IFCH, UFF, 2013. Disponível em: http://www.uff.br/ppga/wp-content/uploads/2013/06/Os-movimentos-do-Maracatu-Estrela-Brilhante-de-Recife.pdf. Acesso em 29 de agosto de 2015.
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12 IV Encontro Científico da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA 2015 http://www.portalanda.org.br/anais ISSN 2238-1112
iMestre em Antropologia pela UFF-RJ, técnica em dança contemporânea pela Escola Angel Vianna e colaboradora do Laboratório de Etnografia e Estudos em Comunicação, Cultura e Cognição (LEECCC-UFF). Atua como dançarina e pesquisadora das manifestações afro brasileiras, já participou de seminários e espetáculos de dança negra e é professora da rede estadual de ensino (RJ). Email: [email protected]